0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO CUIDADOS CLÍNICOS EM ENFERMAGEM E SAÚDE MANUELA DE MENDONÇA FIGUEIRÊDO COELHO EDUCAÇÃO EM SAÚDE: OS DITOS E NÃO DITOS DA PRÁTICA DE ENFERMAGEM COM ADOLESCENTES FORTALEZA- CEARÁ 2012 1 MANUELA DE MENDONÇA FIGUEIRÊDO COELHO EDUCAÇÃO EM SAÚDE: OS DITOS E NÃO DITOS DA PRÁTICA DE ENFERMAGEM COM ADOLESCENTES Dissertação submetida ao Programa de Pós Graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual do Ceará – UECE, para obtenção do grau de mestre em cuidados clínicos em Enfermagem. Aprovada em 07 de Dezembro de 2012. Orientador (a): Profª. Dra. Karla Corrêa Lima Miranda FORTALEZA-CEARÁ 2012 2 MANUELA DE MENDONÇA FIGUEIRÊDO COELHO EDUCAÇÃO EM SAÚDE: OS DITOS E NÃO DITOS DA PRÁTICA DE ENFERMAGEM COM ADOLESCENTES Dissertação submetida ao Programa de Pós Graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual do Ceará – UECE, para obtenção do grau de mestre em cuidados clínicos em Enfermagem. Aprovada em 07 de Dezembro de 2012. BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Karla Corrêa Lima Miranda Universidade Estadual do Ceará – UECE Orientadora – Presidente Prof. Dr. Antônio Marcos Tosoli Gomes Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ Membro Efetivo Profa. Dra. Lia Carneiro Silveira Universidade Estadual do Ceará – UECE Membro Efetivo Profa. Dra. Maria Vilaní Cavalcante Guedes Universidade Estadual do Ceará – UECE Suplente 3 Dedicatória A Deus, ao Rik e ao João. Amor eterno! 4 AGRADECIMENTOS Gostaria de nesse espaço agradecer especialmente a minha orientadora Karla Corrêa Lima Miranda. Agradeço pela paciência, dedicação e parceria. No início eu não compreendia o que queria me dizer, na verdade, eu não conseguia compreender tantas perguntas, afinal eu gostaria das respostas. Parafraseando um aluno meu, você nem sempre me deu o que eu queria, mas sempre me proporcionou o que eu necessitava. O carinho e dedicação com que me conduziu ao entendimento e a abertura para novos saberes foi fundamental na construção desse estudo, e mais, na minha construção enquanto enfermeira, professora e também orientadora. A sua percepção e sensibilidade sobre o meu tempo, minha forma de funcionamento, minhas demandas pessoais e emocionais que se misturaram nesse caminho foram essenciais para uma produção menos sofrida, com amparo, com zelo. Nunca terei como agradecer o muito do tempo que direcionou a me ensinar, a me ouvir e a estudar comigo. Obrigada pela confiança, pelo afeto, pelo olhar e pela escuta. Você vive da forma que acredita, da forma que ensina, e essa coerência me faz admirá-la cada dia mais. Esse trabalho é verdadeiramente nosso! Você é realmente uma Educadora Brilhante! Obrigada! Obrigada! Obrigada! Agradeço aos brilhantes mestres , Dr. Marcos Tosoli, Dra. Lia Carneiro e Dra. Vilaní Guedes, que compuseram a banca examinadora e contribuíram em meu crescimento intelectual; Agradeço aos profissionais que participaram do estudo; Agradeço ao meu marido Rik e ao João que conseguiram “suportar” as enormes ausências e comemoram junto comigo essa vitória; Agradeço especialmente à minha sogra e amiga Terezinha Leite pela sua torcida e orações, mesmo longe sinto seu carinho; Agradeço à amigas antigas e queridas, Sara Taciana, Camila Montezuma e Letícia Rolim que são parte de mim, de minha história; Agradeço à amigas novas e importantes, Goreth Albuquerque e Karine Limaverde, que contribuem em meu crescimento pessoal e profissional diariamente; Agradeço à meus companheiros do CAPS que me oportunizaram afastamentos do trabalho com a certeza de sua contribuição e parceria, principalmente Camila Augusta, Didi Muniz e Vânia; 5 Agradeço ao Gael, Adriano, Josy e Vitória pelo carinho e cuidado dispensado ao meu João nos momentos cruciais em que precisei me isolar nesse processo, vocês cuidaram e amaram meu filho, e nunca terei como recompensar isso; Agradeço à minhas amigas “balzaquianas” Aurilene, Simone, Graça e Ana Maria pelo caminho trilhado juntas e tantos cafés com leite; Agradeço aos brilhantes professores do Programa de Pós Graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde; Agradeço à todos os meus alunos, em especial os orientandos que compreenderam o meu tempo nesse percurso final; Agradeço à Prefeitura Municipal de Maracanaú pela diminuição na carga horária de trabalho para realização do curso e por disponibilizar o campo para a realização da pesquisa. Obrigada Senhor Deus por sua Fidelidade e Amor comigo, tudo isso foi pela sua graça! 6 Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam, comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais. Os homens reacionários, os homens opressores não podem ser utópicos. Não podem ser proféticos e, portanto, não podem ter esperança. Paulo Freire, 1979 7 RESUMO Educar pode ser ato vivo, de crescimento e compreensão de mundo, significado por busca contínua, ou meramente um caminho didático, com aplicações técnicas, que conduzem à criação de saberes massificados, destituídos de criticidade. Observo as ações educativas direcionadas aos adolescentes realizadas de forma reprodutiva, algumas vezes sem planejamento prévio, outras sem objetivação dos resultados, e sem a preocupação com grau de entendimento e do impacto que tais ações refletem nesses adolescentes. Conhecer como esses momentos são vivenciados desvela as lacunas encobertas e possíveis fragilidades das práticas educativas como instrumento do cuidado clínico de enfermagem enquanto ferramenta de promoção da saúde. Tomando por base essas questões, e considerando-as essenciais no fortalecimento de uma prática consciente e crítica da enfermagem, esse estudo busca compreender a ideologia mantenedora das ações educativas da enfermagem junto aos adolescentes. Estudo de abordagem qualitativa conduzido pelo Método Criativo e Sensível junto a quinze enfermeiros da Estratégia Saúde da Família do município de Maracanaú cujas equipes encontram-se cadastradas no Programa Saúde na Escola (PSE). Os dados foram produzidos através das dinâmicas de Criatividade e Sensibilidade e analisados a partir da Análise de Discurso. O diálogo com os dados deu-se através dos pressupostos freireanos. Os enfermeiros discutiram sobre educação em saúde, e teceram enunciações que apresentam suas relações com as práticas educativas direcionadas aos adolescentes. O adolescente apresenta-se como ponto de tensão nessa emblemática problematização, pois compreendê-lo e significá-lo retrata o imaginário e desvela as relações de força mantidas entre esses sujeitos. Os objetivos delineados pelo PSE constituem a trama exclusiva em que estes profissionais estão inseridos, delimitando um espaço de fala único, que nos apresenta quem é esse profissional, de onde ele nos fala, suas subjetivações e objetivações para o porquê de seus dizeres. A ideologia opressora mostra-se viva nas formações discursivas que apresentam o adolescente enquanto vazio, destituído de saberes e prontos para receber o conhecimento. O enfermeiro coloca-se nesse papel de educador inato, transitando polissemicamente entre sua ação opressora e sua constituição de oprimido. Essa relação educativa mantém-se preferencialmente na vigilância aos corpos, descolando o adolescente físico de suas subjetividades e desejos. Repensar as possibilidades de uma prática de educação em saúde numa perspectiva multidimensional conduz o enfermeiro a pensar em si, em sua palavra, no que se é e o que se pretende: promover educação em saúde viva e real, ou continuar como meros reprodutores de signos sem sentido ou com sentido para opressão e formatação dos sujeitos. Palavras chave: Enfermagem. Educação em Saúde. Adolescente. 8 ABSTRACT Educating can be a living act of growth and world understanding, a continuous search or merely a didactic method with technical applications that lead to the creation of mass knowledge, without criticism. Observing the educational activities directed at adolescents conducted reproductively, some did not have any prior planning, others without specifying the results and without concern for the level of understanding and the impact of such actions on these adolescents. Knowing how these moments are experienced reveals hidden gaps and possible weaknesses of educational practices as an instrument of clinical nursing care seeking health promotion. Based on these issues, and considering them essential in strengthening a critical and conscious nursing practice, this study aims to understand the ideology sponsor of nursing educational activities with adolescents. A qualitative study carried out through the Creative and Sensitive Method with fifteen nurses from the Family Health Strategy of the municipality of Maracanaú-CE, Brazil, whose teams are registered in the School Health Program (SHP). Data collection happened through group dynamics of Creativity and Sensibility and they were analyzed based on Discourse Analysis. The Data dialogue occurred through Freire's assumptions. Nurses discussed on health education and wove considerations that show their relationship with educational practices directed at adolescents. The adolescent presents himself as a point of tension in this emblematic problematization, since understanding him and his significance portrays the imagery and reveals the power relations between these subjects. The objectives of the SHP represent the unique plot where these professionals are inserted, outlining a unique speech space that presents us who these professional are, where they speak from, their subjectivations and objectivations for their speeches. The oppressive ideology is present in the discursive formations that show the adolescent empty, without knowledge and ready to receive the knowledge. Nurses put themselves in this role of innate educator going between their oppressive actions of their situation of oppressed. This educational relationship remains preferentially in the body surveillance, taking the adolescents away from their physical desires and subjectivities. Rethinking the possibilities of a health education practice in a multidimensional perspective leads nurses to think of themselves, in their word, in what they are and what they intend: to promote real health education or continue as mere reproducers of meaningless signs or with meaning for oppression and shaping the subjects. Keywords: Nursing. Health Education. Adolescent. 9 RESUMEN Educar puede ser acto vivo, de crecimiento y comprensión del mundo, con significación de búsqueda continua, o simplemente manera didáctica, con aplicaciones técnicas, dando lugar a la creación de conocimiento sin criticidad. Se observan acciones educativas dirigidas a los adolescentes realizadas de manera reproductiva, a veces sin planificación previa, otras sin objetivación de los otros resultados, y preocupación con el grado de comprensión y del impacto que estas acciones en estos adolescentes. Saber cómo se viven estos momentos encubierto revela las deficiencias y debilidades posibles de las prácticas educativas como herramienta de la atención clínica de enfermería como herramienta para la promoción de la salud. Con base en estas cuestiones, y considerándolas esenciales en el fortalecimiento de una práctica crítica y consciente de la enfermería, este estudio busca comprender la ideología mantenedora de las acciones educativas de la enfermería con adolescentes. Estudio cualitativo realizado por el Método Creativo y Sensible a quince enfermeros de la Estrategia Salud de la Familia de MaracanaúCE, Brasil, cuyos equipos están registrados en el Programa de Salud Escolar (PSE). Los datos se obtuvieron a través de las dinámicas de creatividad y sensibilidad, sometidos al análisis del discurso. Diálogo con los datos ocurrió a través de supuestos freireanos. Los enfermeros discutieron acerca de la educación en salud, y tejieron expresiones que señalaron su relación con las prácticas educativas dirigidas a los adolescentes. El adolescente se presenta como punto de tensión en esta problematización emblemática, ya que la comprensión y el significado retratan la imagen y revela las relaciones de poder mantenidas entre estos sujetos. Los objetivos planteados por el PSE constituyen la trama exclusiva en que estos profesionales se insertan, delineando espacio único de discurso, que presenta quien es el profesional, de donde nos dice, y sus objetivaciones y subjetivaciones para el por qué de sus dichos. La ideología opresiva aparece viva en las formaciones discursivas que cuentan con adolescente, en vacío, desprovisto de conocimiento y listos para recibir el conocimiento. El enfermero se pone en ese papel de educador innato, caminando polisémicamente entre su acción opresiva y su constitución de oprimidos. Esta relación educativa sigue siendo preferentemente en los órganos de vigilancia, quitándose deseos físicos del adolescente y sus subjetividades. Repensar las posibilidades de una práctica de educación para la salud en una perspectiva multidimensional motiva enfermeros a pensar en sí mismo, en su palabra, en lo que es y lo que pretende: promover la educación para la salud y la vida real, o continuar como meros jugadores de signos sin sentido o con sentido para la opresión y para ofrecer formato a los sujetos. Palabras clave: Enfermería. Educación en Salud. Adolescente. 10 LISTA DE QUADROS QUADRO 01. Caracterização dos Sujeitos 54 QUADRO 02.Descrição do tempo de Enunciação dos Participantes 64 Das Dinâmicas QUADRO 03. Síntese dos Núcleos de Sentido, temática e Situações 65 Existenciais Delimitadas LISTA DE FIGURAS FIGURA 01. Materiais Dispostos para as DCS 55 FIGURA 02. Dinâmica de Sensibilidade e Criatividade – Almanaque 57 FIGURA 03. Modelo Solar dos Resultados da Análise de Discurso e 67 Das Relações Entre os Elementos que o Constitui FIGURA 04. Esquema Representativo do Percurso da Comunicação 101 No Discurso Pedagógico FIGURA 05. Modelo Ciclone Representando a Constituição da Prática 139 de Educação em Saúde dos Enfermeiros com Adolescentes Figura 06. Dimensão Estelar de Educação em Saúde Possível 143 11 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS AD AIDS AVISA BDENF BIREME CAPS CD CEP CRES DCS DP DST EPS ESF FD GTI HIV LILACS MCS MEDLINE NASF OMS PIB PNPS PPP PSE SCIELO SPE SUS TCLE UBASF UECE UNESCO UNICEF Análise de Discurso Síndrome da Imunodeficiência Adquirida Áreas de Vigilância à Saúde Base de Dados Bibliográficos Especializada na Área de Enfermagem do Brasil Biblioteca Virtual em Saúde Centro de Atenção Psicossocial Caderno Discursivo Comitê de Ética em Pesquisa Coordenadoria Regional em Saúde Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade Discurso Pedagógico Doenças Sexualmente Transmissíveis Educação Popular em Saúde Estratégia Saúde da Família Formações Discursivas Grupo de Trabalho Intersetorial Vírus da Imunodeficiência Adquirida Literatura Latino Americana em Ciências da Saúde Método Criativo e Sensível Literatura Internacional em Ciências da Saúde Núcleo de Apoio à Saúde da Família Organização Mundial de Saúde Produto Interno bruto Política Nacional de Promoção da saúde Projeto Político Pedagógico Programa Saúde na Escola Scientific Eletronic Library Online Saúde e Prevenção nas Escolas Sistema Único de Saúde Termo de Compromisso Livre e Esclarecido Unidade Básica de Saúde da Família Universidade Estadual do Ceará Organização das Nações Unidas para a Educação Fundo das Nações Unidas Para a Infância 12 SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 13 2 REFERENCIAL TEÓRICO 20 2.1 Pressupostos teóricos da educação 21 2.2 Educação em saúde e enfermagem 26 2.3 Educação em saúde como cuidado clínico de enfermagem na saúde do adolescente 2.4 Conhecendo a educação problematizadora 2.5 Conceitos freirianos 31 38 42 2.5.1 Homem 43 2.5.2 Diálogo 44 2.5.3 Educação 46 2.5.4 Conscientização 48 3 CONSTRUINDO O CAMINHO 50 3.1 Olhares e ferramentas de investigação 51 3.2 Cenário do estudo 52 3.3 Sujeitos envolvidos 53 3.4 Produção e realização das dinâmicas 55 3.5 Aspectos éticos 59 3.6 Análise e discussão das informações 59 4 EDUCAÇÃO COM ADOLESCENTES: PRODUÇÃO DO CENÁRIO 69 4.1 O enfermeiro como educador 72 4.2 O ser adolescente 78 4.3 A escola, o PSE e a Unidade Básica de Saúde 85 5 DISCURSO PEDAGÓGICO: CIRCULARIDADES DISCURSIVAS DE UMA EDUCAÇÃO OPRESSORA 5.1 Formação discursiva – Vazio repletos de nós: tecendo a rede educativa para adolescentes 5.2 Formação discursiva - Práticas instituídas entre campanhas e circuitos: vigilância de corpos e sujeição ao modelo higienista 5.3 Formação discursiva – Eu ensino e você aprende: laços que unem oprimidos 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 99 102 114 121 137 REFERÊNCIAS 145 APÊNDICES 157 ANEXOS 160 13 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Pensar em educação e nos motivos pelos quais se educa, remete a reflexões complexas e por vezes filosóficas. Educar pode ser ato vivo, de crescimento e compreensão de mundo, significado por uma busca contínua, ou meramente um caminho didático, com aplicações técnicas, que conduzem à criação de saberes massificados, destituídos de criticidade. Brandão (1995) resgata o envolvimento humano em processos educativos nos diversos espaços, em que constantemente somos ensinados, em espaços onde ensinamos e aprendemos-e-ensinamos. O autor discorre sobre a existência de múltiplos modelos educativos e seus cenários, negando a escola e o professor profissional como únicos praticantes. Assim se podem recordar lições aprendidas no cotidiano, como ensinamentos básicos obtidos na família sobre higiene, boas maneiras ou como amarrar os sapatos. Ensinam-se também costumes e noções religiosas, diferenciam e organizam-se socialmente as pessoas em “modos de vida”, definindo códigos sociais de conduta, regras de trabalhos, tecnologias e culturas (BRANDÃO, 1995). A educação também compõe instância “deseducadora”, que por vezes o professor acredita ensinar, porém, acaba instrumentalizando uma educação ingênua para interesses políticos e econômicos (BRANDÃO, 1995). Não penso em envolvimentos inocentes, mas reguladores que apontam para diferentes visões de homem e mundo, em que sua aplicação está associada aos pressupostos que se escolhem como referência. Esse exercício pode ser baseado em prescrições pedagógicas, ou direcionado por um trabalho consequente que busca por transformações (LIBÂNEO, 2010). Estudiosos contemporâneos apresentam fundamentações teóricas diversas articuladas em paradigmas que sustentam a prática educativa em diversas perspectivas. Saviani (2008) apresenta educação como determinante social imbricado com a questão da marginalidade. Para ele, a marginalidade encontra-se desenhada 15 pelos processos educativos divididos em duas teorias educacionais: teorias não críticas e teorias crítico-reprodutivistas. Libâneo (2010) descreve tendências pedagógicas baseadas em condicionantes sócios políticos, classificando-as como Liberais e Progressistas. Mizukami (1986) expõe abordagens pedagógicas apoiadas nas teorias do conhecimento, denominada de Tradicional, Comportamentalista, Humanista, Cognitivista e Sociocultural. Essas correntes de ensino apresentam influências de diversas teorias, que motivam a compreensão do ensino-aprendizagem, direcionando o entendimento de condutas do binômio educador-educando que envolve os processos educacionais. Esses processos associam-se à comunicação e interação pelos quais os sujeitos assimilam saberes, habilidades, atitudes organizadas culturalmente, no sentido de produzir outros conhecimentos, técnicas e valores. É próprio ao ato educativo seu caráter de mediação que contribui para o crescimento dos sujeitos, na dinâmica sociocultural de seu grupo (LIBÂNEO, 2010). Nessa perspectiva, Freire (1979) em sua abordagem libertadora concebe a educação como um ato criativo de intervenção no mundo, no qual o educador seria um mediador do novo saber produzido pelo aluno por meio de suas perguntas inseridas em seu contexto e experiências vividas e não um mero expectador e reprodutor de saberes, valores, técnicas e conhecimento (FREIRE, 1979; FREIRE; FAUNDEZ, 1985; FREIRE, 1999). Logo, educar desenvolve-se em interface com vários atos, estes devem ser dialogados e problematizados em busca de um saber relacionado, articulando os conhecimentos apreendidos na “escola da vida” com os aprendidos na “vida da escola”. O setting escolar deve ser o mundo, investindo no desenvolvimento de seres que constroem seu próprio projeto pedagógico, baseado não apenas em suas carências, mas, sobretudo, em suas potencialidades (REZENDE; DANTAS, 2009). É cediço que dos diversos conceitos e das concepções de educação, são produzidos inúmeros sentidos. Miaralet (1976) propõe três sentidos para educação. A educação como instituição social que corresponde à estrutura organizacional e administrativa, ou seja, o funcionamento interno de cada instituição de ensino. O sentido da educação como processo, relacionado às condições e aos modos pelos 16 quais os sujeitos introjetam meios de se educar. E educação produto, caracterizada pelos resultados obtidos pelas ações educativas (MIARALET, 1976). Portanto, as formas de pensar e conceber a educação interfere na ação educativa a qual se realiza, seja esta prática consciente ou inconsciente. Assim, as atividades educativas não devem ser ações de condicionamento ou de regulação dos sujeitos, mas um espaço de encontro, de relação, em que considerar o outro em suas singularidades e planos, constituem-se em verdadeiros atos educativos. Educar, assim como cuidar, é um desafio, porque implica em relações humanas entre seres singulares, com demandas e enfrentamentos variados. Pensamos cada vez mais na saúde associada a educação. As posturas dos trabalhadores de saúde encontram-se repletas de ações educativas, mesmo que de forma inconsciente, esse profissional cuida educando. Ao admitir a educação como uma das estratégias do cuidado clínico de enfermagem, compreende-se, então, que esta se apresenta como um signo complexo e multifacetado. Refletir sobre sua fundamentação é não conceber o aprisionamento dessa ação quando a compreende como uma prática social, arraigada em diversas atividades humanas, vivendo em diversos cenários: ambientes de trabalho, organizações políticas, igrejas, unidades de saúde (LIBÂNEO, 2008). Ao compreender essa prática diferente dos moldes que predominam na atualidade, cuja objetificação da doença apenas numa dimensão biológica predomina, alude-se a enfermagem vivenciando um cuidado clínico que pode atuar além do adoecimento, em um movimento de reconhecimento dos sujeitos em suas realidades, suas formações culturais e expectativas de vida (VIEIRA; SILVEIRA; FRANCO, 2011). Nesse sentido, conceitos e saberes oriundos da prática educativa são um dos caminhos para a construção de um novo fazer da Enfermagem, em uma perspectiva plural e ampliada, que possa abranger as constantes mudanças e reflexões exigidas pelos sujeitos em interação com seu meio e no resgate de sua cidadania. 17 O início de mudança na postura da Enfermagem, ao agregar a sua prática clínica o papel educativo, pode propiciar o resgate da cidadania dos sujeitos ao implicar novas propostas, uma clínica ampliada, com ênfase no diálogo e nos saberes populares, promovendo um encontro de conhecimentos, práticas e vivências dos grupos humanos (ALVIM; FERREIRA, 2007). Pretende-se assim um cuidado clínico de enfermagem pautado numa clínica que potencializa encontros, respeita sujeitos e propõe ressignificação de vidas (VIEIRA; SILVEIRA; FRANCO, 2011). Apesar de reconhecer a educação em saúde como tecnologia de cuidado que deve promover autonomia, ainda são observadas práticas com abordagens verticalizadas, nas quais a participação do sujeito é simplificada à expectador/receptor de informações. Santos et al. (2006) reconhecem que as práticas educativas estão presentes no cotidiano da Enfermagem, contudo chamam atenção para o fato de que ainda persistem abordagens que não potencializam os sujeitos para a promoção da autonomia e livre exercício da cidadania. Estudos demonstram o reconhecimento da educação em saúde pela enfermagem como possibilidade de troca, como possível promotora do conhecimento compartilhado, cujo diálogo pode instrumentalizar a condição de pensar e refletir esse fazer como veículo de cuidar nas diversas clientelas: idosos, puérperas, adolescentes, mulher e criança, clientes crônicos entre outros (SANTOS; PENNA, 2009; TEIXEIRA; FERREIRA, 2009; GUEDES; SILVA; FREITAS, 2004). As atividades realizadas na lógica pedagógica da problematização criam um espaço favorável ao trabalho de educação em saúde, trabalhando atitudes para o desenvolvimento de cidadania e reconhecimento da subjetividade desses sujeitos. Talvez essa prática permita a manifestação dos desejos, conceda aos sujeitos a pronuncia de sua palavra, e permita o envolvimento esperançoso nas relações educativas. Outras pesquisas apresentam forte presença do modo tradicional de educar pelos enfermeiros, com repasse de informações, pautado no modelo biomédico, com postura impositiva, em que se propõe romper mitos e mudar atitudes, sem reconhecer na verdade a quem pertence esses mitos (PEREIRA; 18 VIEIRA; FILHO, 2011; PRADO; MEDINA-MOYA; MARTÍNEZ-RIEIRA, 2011; ZAMPIERI et al., 2010). Como estímulo às ações educativas políticas vêm sendo instituídas pelo Ministério da Saúde agregando educação em saúde à clínica, ampliando assim o escopo de trabalho direcionado ao sujeito. O Programa Saúde nas Escolas (PSE) é exemplo vivo. O programa objetiva reduzir as iniquidades sociais que afetam a saúde de crianças e adolescentes, dificultando assim o aprendizado (BRASIL, 2009). Essa estratégia propõe a integração dos setores saúde e educação, fortalecendo e sustentando a articulação entre as escolas e as Unidades Básicas de Saúde da Família (UBASF) no cuidado aos adolescentes. Em face do exposto, destaco minha experiência profissional, em que o município no qual desenvolvo minha prática realizou capacitações técnicas na tentativa de sensibilizar e aperfeiçoar as equipes das unidades básicas e das escolas para a realização do trabalho proposto pelo PSE. As ações clínicas voltadas ao adoecimento obtiveram melhor aceitação pelas equipes de saúde. As proposições educativas obtiveram resistência por parte de alguns profissionais, que, ao alegar sobrecarga de trabalho, demonstraram de forma velada o descrédito nessas atividades como ferramenta de trabalho em saúde. Durante a construção de uma linha de cuidado, cujo foco esteve direcionado ao indivíduo, reconheci a educação em saúde como um dispositivo nas relações interpessoais com a clientela. Assim, adotei a postura educadora e dediquei-me com afinco às atividades educativas. Ademais, observo alguns trabalhos educativos direcionados aos adolescentes e identifico atividades realizadas de maneira aleatória, algumas vezes sem planejamento prévio, outras sem objetivação dos resultados, e o que considero ser o mais preocupante: sem noção do grau de entendimento e do impacto que tais ações refletem nesses adolescentes. Outra característica do trabalho apresentado seria a metodologia aplicada: palestras educativas, realizadas a partir de temas propostos pelos profissionais. Essa abordagem prescritiva, autoritária, exercita o direito de dizer o que deve ou não ser feito, sem nenhum conhecimento sobre o contexto que os sujeitos estão 19 inseridos, se suas expectativas e planos de vidas corroboram o que se insiste em falar-lhes. Essa realidade remete às lacunas na produção do cuidado clínico de enfermagem ao atuar junto à população tão específica. Diante essa realidade, sentime instigada a estreitar laços com as práticas educativas da enfermagem, buscando por entender as seguintes questões: como os enfermeiros concebem a educação em saúde? Quais as constituições históricas, sociais e culturais que mantém as ações de educação em saúde realizadas pela enfermagem direcionadas aos adolescentes? Conhecer como esses momentos são vivenciados desvela as lacunas encobertas e possíveis fragilidades das práticas educativas como instrumento do cuidado clínico de enfermagem enquanto ferramenta de promoção da saúde. Tomando por base essas questões, e considerando-as essenciais no fortalecimento de uma prática consciente e crítica da enfermagem, o objetivo desse estudo é compreender a ideologia mantenedora das ações educativas da enfermagem junto aos adolescentes. Desse modo, este estudo busca pela compreensão proposta pela investigação científica da base ideológica presente nas práticas pedagógicas dos enfermeiros ao trabalharem educação em saúde com o público adolescente, identificando as construções histórica, social e imaginária que influenciam e subjetivam essa prática. A hipótese deste estudo é de que as práticas educativas da enfermagem encontram-se centradas no modelo tradicional de educação, cujas tentativas de transformação das ações encontram-se embasadas na intuição, destituídas de um referencial teórico metodológico que direcionem novas práticas. 20 REFERENCIAL TEÓRICO 21 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 Pressupostos teóricos da educação Os princípios que fundamentam os processos educativos tornam-se imperativos na compreensão da história da educação em saúde, tendo em vista que esses fundamentos perpassam por diversas e possíveis áreas de atuação, incluindo o educar para saúde. Nessa reflexão, optou-se por mergulhar nas concepções propostas por José Carlos Libâneo, Dermeval Saviani e Maria da Graça Nicoletti Mizukami, por serem estudiosos da atualidade que apresentam diversas abordagens do processo de ensino e aprendizagem. Saviani apresenta fundamentações que compõem as teorias não críticas em três vertentes: Pedagogia Tradicional, Pedagogia Nova e Pedagogia Tecnicista. Essas compreendem a educação como ferramenta capaz de equalizar as diferenças sociais, diminuindo assim a marginalidade (SAVIANI, 2008). A Pedagogia Tradicional iniciou-se em meados do século XIX com os Sistemas Nacionais de Ensino e apresenta como eixo central o professor, que deve estar apto a ensinar as lições que deverão ser rigorosamente seguidas pelos alunos. A questão central dessa escola era aprender o que o professor ensina. O intuito seria universalizar o conhecimento na tentativa de minimizar o abismo marginalizador existente, e como possibilidade única para essa transformação aponta-se apenas o conhecimento transmitido. O insucesso nessa equalização da sociedade fornece espaço para duras críticas a esse método (SAVIANI, 2008). As insatisfações proferidas ao método tradicional iniciaram o movimento da Pedagogia Nova. O Escolanovismo aceita que o marginalizado deixa de ser o que não tem instrução, tendo em vista a impossibilidade da garantia de aprendizagem uniforme, fornecendo espaço ao rejeitado, ao anormal, promovendo um movimento de biopsicologização da sociedade, da educação e da escola. Apresentam assim os indivíduos como únicos, e que os “anormais”, deverão ser incorporados à sociedade de acordo com seu potencial, e assim deverão ser aceitos pelo meio. Para essa proposta, a escola deverá perpassar por uma reformulação 22 estrutural, agrupando alunos de acordo com seus interesses, em que o professor seria facilitador e estimulador de aprendizagem, fomentando uma relação viva entre alunos e professores. Aqui se deve aprender a aprender. O custo econômico desse novo modelo impediu sua expansão em larga escala, sendo implantado de forma inexpressiva em algumas instituições (SAVIANI, 2008). Observou-se nesse modelo uma tentativa de reconhecer as subjetividades dos indivíduos e seu envolvimento na construção dos saberes mesmo com a separação por categorias de interesse. O determinante econômico que justapôs essa ideologia educacional demonstra as prioridades dos sistemas educacionais vigentes. Após a desilusão do Escolanovismo, surgiram tentativas de desenvolver uma “Escola Nova Popular”, denominada Pedagogia Tecnicista. Essa objetivou reorganizar os pressupostos educativos de forma a torná-los operacionais ainda da perspectiva de aprender a aprender. As propostas pedagógicas são voltadas para o tele ensino, a instrução programada com especialização de funções com o início do ensino técnico em diferentes áreas (SAVIANI, 2008). Nesse modelo, o marginalizado abandona a condição de ignorante ou rejeitado e toma o perfil de incompetente, improdutivo. Entende-se esse modelo como fabricante de mão de obra ao capitalismo, em que os educados servem as necessidades do sistema. Não permite oportunizar espaço de trabalho e diminuir a desigualdade econômica, porém o fator que motiva esse ensino (produção) deveria estar centrado no sujeito (interesses individuais). As teorias crítico-reprodutivistas são: Teoria do Sistema de Ensino como Violência Simbólica, Teoria da Escola como Aparelho Ideológico do Estado e a Teoria da Escola Dualista. Estas qualificam a educação como fator determinante da marginalização, contribuindo para o afastamento social entre classes. A Teoria do Sistema de Ensino como Violência Simbólica apresenta a educação como imposição de uma cultura dominante sobre os grupos dominados, determinando o sistema educacional como produtor de desigualdades sociais. As classes dominadas são a representação dos marginalizados, da qual o ato de ser educado reforça tal submissão, educar tem função de marginalizar (SAVIANI, 2008). 23 Na Teoria da Escola como Aparelho Ideológico de Estado, a escola capacita a força de trabalho para a produção, da qual classes sociais irão diferenciando-se no decorrer do tempo. Os operários e camponeses cumprem a escola básica e são incluídos no sistema produtivo braçal. Outros atingem um nível escolar médio e são denominados “pequenos burgueses”, enquanto uma pequena parcela atinge o topo da cadeia em que serão agentes de exploração (sistema produtivo), agentes de repressão (Aparelhos Repressivos do Estado) ou profissionais de ideologia (nos Aparelhos Ideológicos do Estado). Nesse aspecto, a marginalidade apresenta-se na classe trabalhadora da produção capitalista (SAVIANI, 2008). A Teoria da Escola Dualista propõe uma dicotomia em duas classes básicas: a burguesia e o proletariado, esta representa a força de trabalho. Nesta organização, a escola tem como cerne impedir o fortalecimento ideológico do proletariado, qualificando o intelecto e desqualificando o trabalho braçal (SAVIANI, 2008). Observa-se que as teorias não críticas apresentam uma proposta pedagógica, enquanto os críticos reprodutivistas movem-se em “explicar o funcionamento da escola como tal está constituída” (SAVIANI, 2008, p. 24). Libâneo (2010) apresenta tendências pedagógicas baseadas nos condicionantes sócios políticos, classificando-as como Liberais e Progressistas. A Pedagogia Liberal surge como defensora da liberdade individual, na tentativa de organizar uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção, em que a escola prepara os indivíduos para exercerem seu papel social determinado por sua aptidão pessoal. Entre as correntes liberais, encontra-se a Tendência Tradicional, com conteúdos e procedimentos centrados nas regras dos professores. A Tendência Renovada reconhece o aluno como foco do saber, tendo o ensino direcionado as suas necessidades, sendo dividida em Renovada Progressista (trabalha a singularidade dos indivíduos), e Renovada Não Diretiva (objetivos de desenvolvimento pessoal e relações interpessoais). A corrente Liberal Tecnicista fundamenta-se na formação de recursos humanos para a sociedade produtiva, 24 construindo uma “consciência politizada”, de acordo com as necessidades do Estado (LIBÂNEO, 2010). A Pedagogia Progressista atua na criticidade do mundo e de suas relações sociais, questionando os compromissos sociais e políticos do sistema educacional. As três tendências que compõem essa corrente são: Crítica Social dos Conteúdos, escola como articuladora de conteúdos e mediadora social, produtora de saber crítico em conjunto com os alunos; Libertadora, Pedagogia de Paulo Freire; e a Libertária, que se assemelha pelo trabalho com a experiência de vida dos educando, valorizando o aprendizado em grupo (LIBÂNEO, 2010). Cinco abordagens são apresentadas por Mizukami (1986): Tradicional, Comportamentalista, Humanista, Cognitivista e Sociocultural. A abordagem Tradicional é pautada pela transmissão do conhecimento pelo educador, com sistematização e memorização pelo educando. O método Comportamentalista é direcionado pelo condicionamento de comportamento dos sujeitos para que venham atingir os objetivos propostos (MIZUKAMI, 1986). A abordagem Humanista admite a pessoa como centro do ensino, com orientações direcionadas a sua experiência e singularidade. O método Cognitivista exercita a organização e o processamento das informações, direcionando o aluno à tomada de decisões, cujo sujeito inserido numa situação social é o ponto de partida para o processo de aprendizagem. A abordagem Sociocultural busca pela superação da relação opressor-oprimido na transformação da situação que oprime, desenvolvendo consciência crítica, em que educador e educando “se educam” (MIZUKAMI, 1986). A abordagem Sócio Cultural trata do envolvimento dos indivíduos em sua realidade cultural, e como esta influencia diretamente o seus significantes. Nessa teoria homem e mundo devem ser vistos em constante interação, onde o mundo apresenta-se como cenário para o desenvolvimento cultura (MIZUKAMI, 1986). Nessa perspectiva insere-se Freire e seu pensamento pedagógico (descrito adiante) que propõe na reflexão o início da libertação do homem. 25 Alguns conceitos são convergentes nas abordagens apresentadas. Referenciais aproximam-se e muitas vezes até se misturam, consentindo uma tênue linha de percepção entre o início e o fim de determinada abordagem. Essas correntes de ensino apresentam influências de teorias psicológicas que motivam a compreensão psíquica do comportamento de aprendizagem: Behaviorista, Cognitiva, Humanista e Psicodinâmica. Esses referenciais direcionam o entendimento de condutas do binômio educador-educando que envolve os processos educacionais. A teoria Behaviorista demonstra o aprendizado através de relações estímulo-resposta. Fatores condicionantes podem modificar as atitudes e respostas dos indivíduos orientados por uma motivação. O comportamento condicionado muitas vezes se transfere da situação inicial provocadora e adapta-se a outras realidades. Esse modelo pode ser utilizado tanto em aprendizado primário quanto na dessensibilização de comportamentos ameaçadores. O ambiente apresenta-se como instrumento condicionante. Nesse processo, o sujeito apresenta-se passivo e responsivo aos estímulos ambientais (BRAUNGART; BRAUNGART, 2010). No referencial cognitivo, a percepção do indivíduo é o caminho da aprendizagem. O sujeito é ativo no processo de aprendizagem. Enquanto compreende a informação, relaciona conhecimentos prévios, reorganizando em novas informações e modos de compreensão. A recompensa externa torna-se desnecessária, pois os educandos possuem interesses e objetivos que motivam suas ações. Nesse processo, o educador é ativo e estruturante das significações do outro, em que o aprender a aprender fundamenta o aprendizado (BRAUNGART; BRAUNGART, 2010). A perspectiva humanista apresenta cada ser como únicos e desejosos de crescer. O valor dos sentimentos e das emoções, a criatividade e o direito de escolha são alguns dos princípios que norteiam esse aprendizado. Não renuncia a um referencial motivacional, porém, ao invés de guiar-se por um resultado, baseiase nas necessidades e subjetividades individuais. O aprendizado é facilitado pela curiosidade e liberdade de escolha. O educador apresenta-se como um facilitador, em que a escuta deverá ser sua principal habilidade (BRAUNGART; BRAUNGART, 2010). 26 Baseada nos trabalhos de Freud, a teoria psicodinâmica pode por vezes não ser encarada como uma teoria de aprendizagem, apesar de apresentar condições significativas para tal. Esta ressalta forças conscientes e inconscientes que guiam o comportamento e efeito das experiências da infância que influenciam o aprendizado. O princípio motivador é o desejo. O educador coloca-se como intérprete das motivações do aprendiz, propondo questões e estimulando a tomada de consciência e a força do ego (BRAUNGART; BRAUNGART, 2010). Para Freud, o domínio, direção e o controle estão na base de qualquer sistema pedagógico, e jamais poderão ser integralmente alcançados. A pedagogia precisa reprimir para ensinar. Precisa de energia libidinal sublimada e não sexualizada. Assim, ensinar exige que o professor aceite sem desespero que ele pode ensinar, mas que isso não trará mudanças aos modos subjetivos de pensar, e dessa maneira, no futuro, os alunos saberão pensar sozinhos. A morte simbólica do docente é vital para tornar-se mestre de si mesmo. O encontro entre o que foi inserido e a subjetividade de cada um é que torna possível o pensamento renovado, a criação e produção de novos conhecimentos (KUPFER, 2012). Essa breve reflexão sobre as tendências pedagógicas não consegue reproduzir a profundidade de suas influências no ensino aprendizado, propõe apenas vislumbrar as diversas nuances comportamentais que fundamentam o processo de aprender. Este se apresenta mediado pela interação indivíduo-ambiente na apropriação de informações e experiências, demonstrando individualidade em cada ser. As teorias sugerem que para aprender, o sujeito é fortemente influenciado pelo “ganhar algo”, sendo esse algo catalisador de mudança de comportamentos. 2.2 Educação em saúde e Enfermagem A educação em saúde como disciplina teve sua origem nos Estados Unidos, em 1921. Winslow (1923) aduziu os primeiros escritos, definindo educação para saúde, com primeira inferência à saúde pública como promotora direta. A história da educação em saúde no Brasil tem seu registro inicial na Educação Sanitarista, no início do século XX, em que a relação homem e meio torna-se circunscrita por normas para prevenção das enfermidades. As doenças 27 infecciosas e parasitárias eram centro das atenções, fomentando campanhas repressoras, com íntima dependência de intervenções médicas (GAZINELLE; REIS; MARQUES, 2006). As ações educativas em saúde eram normas prescritivas e policialescas para a manutenção da saúde coletiva, baseando-se apenas na causalidade das doenças. Esse modelo olvidava-se das condições de pobreza da população e mantinha interesse de que os agravos não afetassem a produção humana que sustentava o capitalismo. O profissional de saúde, detentor do conhecimento e mantenedor do poder de ensinar, apresenta-se como centro do processo educativo, objetivando arranjos e condicionamentos pessoais na tentativa de garantir a aprendizagem por um programa pré-estabelecido. Aos indivíduos cabia apenas o direito de assimilar as informações transmitidas, pautando-se em práticas tradicionais e comportamentais. Nesse contexto normativo, infere-se a base que subsidia práticas educativas ainda nos dias atuais, cujo modelo higienista de saúde e a educação sanitária estão implicados na forma tradicional de educar, moldando os sujeitos às condições científicas ideais, desconsiderando outros determinantes da saúde e as individualidades de cada ser (REIS, 2006). Rizzotto (1999) descreve uma enfermagem partícipe do contexto higienista de saúde, da qual a enfermeira-visitadora era a “educadora sanitária”. O Dr. Carlos Chagas propôs, sem sucesso, um curso formativo para essas profissionais, baseado no sistema nightingaleano. A rejeição da população em receber orientações, assim como a desistência das enfermeiras em realizar tal trabalho foram alguns dos motivos da não realização desse projeto. O perfil das enfermeiras na época predizia a dificuldade de implantar tais ações. Em sua maioria eram mulheres de classe média ou alta e em número reduzido. A formação dessas profissionais privilegiava o campo curativo, individual e hospitalar, afastando-se cada vez mais do perfil de enfermeiras educadoras sanitárias (RIZZOTTO, 1999). O primeiro cuidado com “corpos” na universidade seria com cadáveres, iniciando uma criação subjetiva do cuidado em “pessoas” que não tinham sentimentos, cultura, voz nem valores. Deve-se ter cuidado para que essa primeira 28 representação não perdure em toda formação e atuação profissional (KRUSE, 2008). Os sentidos instituídos pelos profissionais de enfermagem aos sujeitos de sua prática e aos modos de cuidar são determinantes no desenvolvimento de seu exercício profissional. A forma como o enfermeiro reconhece e compreende a educação em saúde é traduzida em ações, olhares e falas, direcionando as atividades, incorporando sentidos e valores ao seu fazer, desvelando também o lugar do outro no processo educativo. Na década de 1980, a Reforma Sanitária Brasileira despertou mudanças no paradigma da saúde. A educação prescritiva apareceu em outro arranjo, talvez menos agressivo e normativo, com uma roupagem informativa, norteada pelo conceito de promoção de saúde. O referencial que guia a proposta de promoção em saúde é o proposto pela Carta de Ottawa, em que promover saúde implica fornecer condições aos sujeitos de melhorar sua saúde e exercer postura ativa sobre a mesma. Os indivíduos deveriam possuir, além de capacidade física, integridade psíquica e social, obtendo assim qualidade de vida (WHO, 2010). Souza, Colomé e Oliveira (2005) revelam que a promoção em saúde muitas vezes é vista como sinônimo de educação em saúde. Essa afirmativa não renuncia suas razões de existir, tendo em vistas que as ações educativas apresentam-se como mola propulsora da condição de promover saúde. Não é demasiado lembrar essa promoção em íntima relação com a educação, incluindo a população e suas necessidades. Essa perspectiva de cuidado do outro ainda permanecia direcionada por informações prontas, verticalizadas e destituídas de características socioculturais da população, considerando apenas os saberes científicos como determinantes na saúde dos indivíduos (OLIVEIRA, 2011). Nessas práticas, a preocupação em transferir conhecimento sem compromisso de modificações e adaptações à realidade dos indivíduos ainda era determinante (FIGUEIRÊDO; RODRIGUES NETO; LEITE, 2010). Esse método pautava-se no Modelo de Educação Tradicional, que sairia das escolas e integraria o campo da saúde. 29 A ação educativa deveria deslocar-se da filosofia “de mudança de comportamento pela informação” para “ações educativas participativas”, aproximando-se dos referenciais libertador e sociocultural (REIS, 2006). Esse movimento iniciou-se na década de 1960, quando Paulo Freire propôs uma atitude dialógica e libertadora como arte educativa, na qual os saberes científicos estavam interligados aos populares, propondo que essa relação poderia modificar as condições das populações através do conhecimento e da autonomia dos sujeitos. Esse novo modelo ficou conhecido como modelo dialógico, libertador ou problematizador. A Educação Popular em Saúde (EPS) surgiu na década de 1970, a partir de inquietações de profissionais de saúde insatisfeitos com os interesses mercantilistas no setor saúde, desejosos por uma atuação mais significativa da população que representasse a ruptura com o autoritarismo e a normatização (SANTOS et al., 2010). Paulo Freire sistematizou e organizou os princípios deste movimento num método que reconheceu a relevância do trabalho participativo e de conquista de direitos (VASCONCELOS, 2007). Nessa transformação, a EPS apresentou-se como instrumento de participação popular, contribuindo para práticas transformadoras, emancipatórias e dialógicas, fortalecendo a autonomia dos usuários e profissionais de saúde no que diz respeito à condição dos sujeito como autores de sua condição de saúde/doença e reinvenção dos modos de cuidar (BRASIL, 2007). Alvim e Ferreira (2007) identificaram importantes contribuições da educação popular freiriana para o cuidado de enfermagem à medida que os sujeitos estabelecem uma relação dialógica que possibilita troca de saberes técnico-científico e do senso comum, em que ambos assumem papéis de educadores e educandos, simultaneamente. Superar a concepção do indivíduo “paciente” que ocupa uma posição de receptor do cuidado dependente do saber técnico-científico para uma posição ativa e crítica é um desafio para enfermagem que se propõe a manter no diálogo a base do cuidar, que reconhece partes de um no outro, na recriação e decisão das histórias e sua integração com o mundo. As contribuições da educação popular freiriana para o cuidado de enfermagem, à medida que os sujeitos estabelecem uma relação 30 dialógica, possibilita troca de saberes e assunção de papéis “educador-educando”, simultaneamente, estimulando a emancipação e o fortalecimento da cidadania (MIRANDA; BARROSO, 2004). Na constante metamorfose das relações, corrobora-se Nietsche (2000) quando afirma que se podem perseguir nas práticas de enfermagem tecnologias emancipatórias dos sujeitos no processo de cuidar, libertando-os dessa “escravidão científica”, podendo proporcionar participação ativa e modificadora. No âmbito do cuidado, a enfermagem muitas vezes dispensa instrumentos materiais, produzindo bens e valores que são invisíveis, compondo assim modos subjetivos da produção de tecnologias da prática assistencial (PAIM et al., 2006). Nesse sentido participativo e emancipatório, a reflexão que a educação em saúde proporciona remete os indivíduos a crescimento enquanto seres políticos que conhecem, decidem e agem (SANTOS; PENNA, 2009). O enfermeiro, ao colocar-se como educador, deve ser capaz de provocar o diálogo problematizador entre os sujeitos, neste sentido o educador se confirma como um mediador e partícipe desta ação transformadora (OLIVEIRA; GONÇALVES, 2004). Experiências exitosas têm sido realizadas por profissionais de enfermagem, com tecnologias dialógicas, norteando tais vivências. Inicia-se um movimento de mudança no modo predominante de pensar educação em saúde, apresentando transformação e conscientização dos participantes (MONTEIRO; VIEIRA, 2010). Nesse modelo, a escuta apresenta-se como importante ferramenta educativa, pois quando se ouve o outro, escuta-se o próprio eu, podendo se tornar sujeito reflexivo e construtivo. Ouvir torna-se fundamental para o profissional quando participante de um processo educativo dialógico. Quando anteriormente ele na maioria das vezes apenas falava, agora precisa também ouvir (SANTOS; PENNA, 2009). As ações educativas que fornecem conteúdo e formas prontas devem ser questionadas em seu alcance de compreensão e promoção da autonomia. Apresenta-se quase como um “trabalho morto”. Questiona-se assim a serviço de quem se encontra a prática educativa da enfermagem, e como se pode provocar os sujeitos e aos profissionais envolvidos a 31 interrogar sobre sua condição de vida, seus sonhos, seus interesses e projetos. Será que se provem ações que regulam, moldam os discurso, não permitindo o outro, nem a si, pensar e dizer sua própria palavra. Entretanto, apresentar um modelo educativo como unânime seria negar a diversidade da vida e as singularidades dos seres. Deve-se refletir sobre a forma de uso das práticas educativas destinadas à saúde, como estão sendo pensadas, realizadas e objetivadas, para que não se desvirtue do verdadeiro sentido de educar para a saúde. 2.3 Educação em saúde como cuidado clínico de enfermagem à saúde do adolescente O adolescer faz parte do processo de vida do ser humano, assim como o nascer, envelhecer e morrer. No entanto, mais que simples marco cronológico, representa um estágio do ciclo da vida humana, com características biopsíquicas e sociais próprias, na qual se vivencia a passagem da infância para a vida adulta e com ela mudanças, expectativas conflitos e grandes oportunidades (RAMOS, 2001). Durante a história brasileira nem sempre os adolescentes tiveram “vez e voz”. Três paradigmas de proteção às crianças e aos adolescentes foram identificados através dos séculos. O período colonial entre os anos 1500 e 1800 apresentou a sociedade patriarcal com o desenho de unicidade familiar, em que os adolescentes eram governados pelos interesses de seus pais, que determinavam suas profissões e casamentos. Nesse recorte histórico, o Estado não intervinha na estrutura familiar, estando o adolescente exposto aos mandos dos familiares. Educação e saúde não eram prioridades, e a morte desses sujeitos não representava grandes percas, pois estes não eram determinantes ao sistema produtivo da época. O sistema de proteção vigente as crianças e aos adolescentes estava ligado ao caritativismo religioso (SANTOS et al., 2009). A partir de 1850 até a primeira metade do século XX, surgiu o primeiro desenho de proteção jurídico social ao adolescente. O Estado Moderno começou a 32 articular um cuidado a essa população, particularmente nos campos da saúde e educação. Normas e leis começaram a ser pensadas, e o judiciário passou a atuar com varas de família e o juizado de menores na tentativa de garantir o bem-estar das crianças e dos adolescentes. Essa corrente diferencia-se da caritativa, porém ainda não se consideravam os condicionantes sociais determinantes nas iniquidades que predominavam nessa população (SANTOS et al., 2009). Desde 1980, o Brasil evoluiu para um modelo de proteção à adolescência, construindo uma concepção de “sujeitos de direitos”. Essa reação ideológica que elevou os adolescentes da condição de incapacidade a cidadãos é apresentada e fundamentada em questões políticas e pedagógicas (SANTOS et al., 2009). Diante dessa realidade vivenciada pelos jovens, e do espaço conquistado pela juventude na mídia, nas pesquisas e nos debates públicos, o Estado desenvolveu a Política Nacional de Juventude, que apontou a singularidade, o protagonismo, valorização da diversidade juvenil, transversalidade das políticas, participação juvenil e fortalecimento dos seguimentos vulneráveis como suas principais diretrizes (BRASIL, 2006). A primazia dada ao adolescente foi reafirmada pela Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde, reforçando a importância de trabalhar e estudar aspectos relativos à saúde do adolescente brasileiro (BRASIL, 2008). Apresentam-se, em seguida, os resultados de uma revisão integrativa da literatura, que buscou artigos publicados e disponíveis na íntegra no período de 2000 a 2010 que apresentavam como as práticas educativas da enfermagem direcionadas aos adolescentes estavam sendo apresentadas na atualidade. Priorizaram-se fontes relevantes na área de saúde brasileira, realizando buscas na Biblioteca Virtual em Saúde (BIREME) e, especificamente, no índice bibliográfico Literatura Latino-Americana em Ciências de Saúde (Lilacs), na Base de Dados Bibliográficos Especializada na Área de Enfermagem do Brasil (BDENF), Literatura Internacional em Ciências da Saúde (Medline) e na biblioteca eletrônica Scientific Electronic Library Online (Scielo). Os descritores utilizados foram Enfermagem, Educação em Saúde e Adolescente. Os critérios utilizados para constituir a amostra foram: artigos completos, disponíveis na íntegra, publicação da enfermagem brasileira, com data de 33 publicação da última década e que estivessem relacionados com a temática adolescentes, educação em saúde e enfermagem. Foram selecionadas 51 publicações, porém ao realizar a leitura dos títulos e dos resumos, detectou-se duplicidade de alguns estudos. Observou-se ainda que alguns trabalhos se enquadravam nos objetivos da revisão. Ao rever as produções, obtive uma amostra final de 18 artigos. Estes foram identificados pela letra A e enumerados de acordo com a ordem de leitura (A01 até A18), facilitando assim a organização dos escritos. Ao realizar a leitura temporal, observou-se um crescente interesse de propostas educativas da enfermagem direcionadas aos adolescentes nos últimos cinco anos, sendo esse período representado por 88,88% dos estudos. Destacou-se o ano de 2010, como responsável por 37,5% dessas publicações. Ao considerar a proporção continental do Brasil, catalogaram-se os trabalhos em concordância com as regiões demográficas em que foram realizados, apresentando a região Sudeste (61,11%) como maior colaboradora nessa área de pesquisa, seguida pelas regiões Sul (16,66%), Nordeste (16,63%), e Norte (5,5%). Entre os temas encontrados nas diversas atividades educativas, a sexualidade dos adolescentes (55,55%) foi o assunto mais abordado pela enfermagem. Acredita-se que a preocupação com a prevenção de DST’S/HIV/Aids, gravidez não planejada na adolescência, conhecimento do corpo adolescente e uso de métodos contraceptivos, seja respaldada pelos números ainda preocupantes de jovens infectados pelo HIV e mães adolescentes com que se deparam nos serviços e acompanham nos indicadores de saúde. Corrobora ainda o proposto por Marques et al. (2006), que incentiva a abordagem do tema sexualidade, Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e anticoncepção junto aos adolescentes, e apoia o planejamento e a implantação efetiva de programas educativos sobre estes assuntos. Outros assuntos têm sido trabalhados com os adolescentes, como saúde, transplante de órgãos, projeto de vida, autocuidado em diabetes e violência (5,55%), álcool e drogas (11,11%). Percebeu-se poucos trabalhos educativos relacionados à violência e ao uso de álcool e drogas na adolescência, o que demonstra uma lacuna que deve ser repensada na prática da enfermagem, considerando o potencial 34 destrutivo destas situações para o adolescente, com extensão à família e toda sociedade. . Porém, a vivência do grupo é que deverá pautar a discussão dos assuntos, considerando que as características e necessidades de adolescentes variam de comunidade para comunidade. Acredita-se que o assunto que mais interfere na saúde do adolescente é aquele que mais o aflige, que mais lhe traz questionamentos e dúvidas, podendo desencadear decisões que incorram em risco para sua saúde. Conhecer a população para qual se dirige as atividades é tão fundamental quanto considerar a opinião deste grupo para escolha dos temas. Nas atividades educativas descritas nos artigos, os adolescentes demonstraram interesse pelo tema que estava sendo abordado, porém, em poucos casos, foram questionados sobre o que gostariam de aprender. Aponta-se que é preciso ponderar a opinião destes jovens, que enfrentam problemáticas diversas nesta fase de vida. Havendo o desinteresse de uma das partes, o diálogo não acontece. Portanto, é de praxe o equilíbrio entre os dois critérios (necessidades e interesses) para que o aprendizado ocorra. Ao ponderar os delineamentos das pesquisas, dezessete trabalhos (94,44%) apresentaram-se como pesquisas e uma como reflexão teórica sobre a temática. Dentre as pesquisas, a maioria foi construída com uma roupagem qualitativa (94,11%) e apenas uma não discriminou o método utilizado, embora com características de um estudo com predominância quantitativa. É compreensível a escolha quase totalitária por essa abordagem quando se tem em vista que a pesquisa qualitativa trabalha com o mundo dos significados, de valores, crenças e atitudes, apresentando o universo humano intimamente relacionado aos encontros dos seres e suas representações (MINAYO; GOMES, 2009). Ao planear a educação como um processo de relacionar-se, sem ignorar ou marginalizar sentimentos, idealiza-se um movimento real e solidário de transformações. Um ponto que mereceu atenção nesses estudos foi a insuficiente clareza de um quadro teórico que fundamentasse as pesquisas (38,88%), apesar de apresentar indícios de referenciais fenomenológicos. A Teoria Freiriana é frequente em estudos de enfermagem que abordam educação em saúde com adolescentes 35 (33,33%), seguida pela Teoria das Representações Sociais (11,11%), Teoria da Ação Racional, Materialismo Histórico e Dialético e Teoria da Promoção da Saúde (5,55% cada). Diante dos pressupostos utilizados, pôde-se considerar que esses estudos despertaram para uma nova condução do cuidado clínico de enfermagem, dirigida ao sujeito, com uma prática dialógica, interessada em interações comportamentais e dialéticas. Os dispositivos educativos utilizados pelas enfermeiras em atividades educativas foram: grupos educativos (35,71%), oficinas (21,42%), dinâmicas de grupo (14,28%), círculo de cultura (14,28%), acolhimento individual (7,14%) e palestra (7,14%). Essa variedade de ações pode ser reconhecida como tecnologias leves, produtos de trabalho vivo e abordagem assistencial diferenciada da enfermagem na produção do cuidado ao adolescente. Defronte a essas ações, vale destacar o uso do Círculo de Cultura, significante estratégia educativa, pois permite aos adolescentes dialogarem entre si sobre situações do cotidiano. Freire (2009) relata que favorece o aprendizado rápido, contextualizado a realidade dos educandos, no qual existe uma inter-relação que proporciona liberdade e crítica acerca do assunto abordado, resultando em um grupo participativo nos debates, diálogos e trabalhos. Ademais, as oficinas mostraram-se úteis como método educativo por facilitarem o aprendizado ao contar com a participação dos sujeitos nas atividades. Neste método, o adolescente aprende ouvindo, vendo, fazendo, tocando e discutindo (AFONSO, 2010). O uso de dinâmicas, por muito tempo, foi o único instrumento utilizado como estratégia de educação em saúde. Hoje, ganhou uma nova roupagem e são realizadas de maneira contínua nas atividades. É importante observar, que mesmo em estudos que traziam uma abordagem tradicional, os resultados extrapolaram os muros da escola (OLIVEIRA; GONCALVES, 2004). As autoras relatam que mães de alunos compareceram à escola manifestando apoio às palestras proferidas. Isso demonstra a carência de informações e orientações que este grupo demanda. 36 Os artigos pontuam de forma diferenciada contribuições para a prática educativa da enfermagem com o adolescente, alguns de forma direta e objetiva, outras destacando apenas uma compreensão subjetiva. A necessidade de capacitações e atualizações técnicas dos profissionais foi apresentada por 16,66% dos trabalhos, cujos autores convergem ao sugerirem esses momentos como potencializadores das habilidades educativas do enfermeiro. O investimento intelectual torna-se pertinente, principalmente ao conviver com profissionais que trabalham educação em saúde muitas vezes de uma forma empírica, produzindo ações educativas desconexas e desordenadas com prejuízos aos objetivos preteridos. Ao trabalhar com educação, o enfermeiro deve ter ciência da importância dessa prática, assim como compreender as abordagens teóricas metodológicas que fundamentam esse cuidado para realizá-lo de forma consciente. A necessidade de sensibilização dos profissionais de enfermagem também surgiu como reflexão dos autores (16.66%). Essa sensibilização deve ser iniciada com um processo reflexivo do educador sobre sentimentos e subjetividades a respeito do sujeito de suas ações, como seu olhar e entendimento direcionam seu fazer. Conhecer como o enfermeiro compreende a prática educativa e os sentidos que permeiam suas ações surge como necessidade de produção de uma práxis consciente, indo de encontro a orientações verticalizadas e algumas vezes destituídas de sentidos nas diferentes realidades de atuação do enfermeiro. Por conseguinte, sugere-se que a enfermagem deve apresentar-se mais compassiva as ações educativas dialógicas, possuindo um entendimento dos contextos sócio-político-cultural, em que os adolescentes estejam envolvidos, e principalmente, a sensibilidade para compreender a importância das posturas educativas. Essa reflexão aponta o reconhecimento de uma clínica educativa polissêmica, em que estar junto do outro e considerar suas subjetividades torna-se condição sine qua non na proposta de um cuidado clínico de enfermagem que educa, participa, reconhece o outro (VIEIRA; SILVEIRA; FRANCO, 2011). A necessidade de intensificar o trabalho inter e multidisciplinar (16,66%) foi apresentada como indicador de qualidade dessas práticas. Vilela e Mendes (2003) apresentam a interdisciplinaridade como desenvolvimento da sensibilidade, que não pode ser ensinado, mas deve ser vivido e exercido entre os profissionais, 37 apresentando o conhecimento humano como essencial diante da complexidade de mundo em que se vive. A mudança de cenários na atuação do enfermeiro enquanto educador tornou-se presente em alguns textos (16,33%), incentivando os profissionais a atuarem em espaços públicos compartilhados e diferenciados, como forma de alcance a uma população jovem muitas vezes à margem do sistema. Essa atuação em inúmeros espaços sociais é um instrumento de ação da enfermagem que favorece a construção de vínculo terapêutico com os adolescentes. A inclusão do profissional nesses espaços valoriza e respeita os adolescentes quanto ao seu modo de viver, produzindo ações reais. Um dos artigos recomenda a busca de novas técnicas educativas como forma de promoção do cuidado e aprendizado, sugerindo que o círculo de cultura seja uma prática presente na atuação da enfermagem junto aos adolescentes por considerarem essa técnica promotora de reflexões e mudanças (BESERRA; PINHEIRO; BARROSO, 2008). A orientação do estudo citado torna-se pertinente quando 22,22% das produções propõem à enfermagem uma postura mediadora, promotora de práticas emancipatórias e transversais ao compromisso com a promoção à saúde do adolescente, em que se deve estimular a autonomia dos adolescentes no cuidado, e estes se reconhecerem como cooperadores e partícipes desse processo transformador. Sete estudos não declararam objetivamente contribuições para prática educativa da enfermagem, porém todos demonstraram que atividades educacionais com metodologias participativas são estratégias que atendem às expectativas dos adolescentes e contribuem para aumentar a motivação e interesse por essas atividades. Apresentaram reflexões críticas e participação dos sujeitos mediante ações dialógicas, transmitindo-nos de uma forma subliminar que talvez esse seja o caminho para o cuidado clínico de enfermagem numa perspectiva educadora. Percebeu-se nos estudos o despertar da necessidade de novas ações educativas aos adolescentes, talvez se despindo da postura opressora e higienista predominante nas práticas. Os pressupostos freirianos foram apresentados como norteadores de alguns estudos, e outros, mesmo quando não se referiam a Freire 38 diretamente, declaravam o exercício de uma educação em saúde participativa com proposta de autonomia e reflexões críticas dos sujeitos. Freire (1996) defende que a autonomia é baseada na decisão, e que essa somente irá constituir-se na experiência de decidir. Em certos momentos, os mesmos profissionais que defendem a importância da educação em saúde problematizadora, trabalham como um check-list, tarefa a ser cumprida. No processo educativo, quando não há a participação do educando na temática abordada, pode se estar diante de um provável insucesso. Ao reconhecer o outro como autônomo e nada se fazer para que esse predicado se cumpra, vivencia-se uma farsa. O modelo dialógico presente nos estudos reforça a educação problematizadora como construtora de conhecimentos e competências, em que os adolescentes são objeto e sujeito das ações. Mediante tais leituras e reflexões sobre como a enfermagem vivencia sua prática educativa direcionada aos adolescentes, apropriei-me de alguns referenciais freirianos que embasam a educação problematizadora como condutores deste estudo. Essa condução não se disporá a apontar posturas e ações como certas ou erradas, apenas apoiará na interlocução com os resultados obtidos no estudo, remetendo à reflexão acerca de onde se encontra e o que se deseja enquanto enfermagem que educa. 2.4 Conhecendo a educação problematizadora Paulo Freire foi um visionário. Ousado e vanguardista, uma pessoa a frente de seu tempo. Acreditou que o homem era um ser livre de direito, porém enquanto inconsciente de sua autonomia e criticidade de mundo, apresentava-se como oprimido e subjugado. Grande filósofo e teórico da educação, que marcou a história ao apresentar uma possibilidade de libertação: o diálogo. Sua ferramenta de conscientização foi a educação. Esta melhoraria a condição humana, contribuindo para o que acreditava ser “a vocação ontológica da espécie humana”: a humanização. Não devemos esquecer que o contrário existe, a 39 desumanização, porém, não é condição sine quanon da humanidade, podendo os homens lutar contra isso (FREIRE, 2005). Na época da ditadura militar, alfabetizou 300 homens em 45 dias com o “círculo de cultura”, trazendo junto a esse soletrar, o pensar. Esse feito expandiu-se por todo o Brasil, provavelmente, contribuindo a posteriori para seu exílio. As pessoas não deveriam compreender o mundo, apenas vivê-lo. Ao refletir sobre educação freiriana, encontra-se o homem como ponto de partida. Porém, o homem em si não representa o cerne que sustenta os princípios educativos. Freire (1979a) desvela o inacabamento, a inconclusão humana como disparadores desse processo. A busca pelo autoconhecimento expõe o homem à descoberta do inacabado, produzindo a busca pela completude, “pela resposta da finitude infinita” (FREIRE, 1979, p.27). Na compreensão da incompletude e da certeza da busca de sua reversão, Freire (1979) afirma que esse caminho não deve ser solitário, e sim, em comunhão com outras consciências, outros seres, fugindo da “coisificação” da consciência. A proposta conscientizadora deve manter a minha consciência como a consciência do mundo, não deve constituir-se em separado das outras, senão se viverá no vazio, em mundos diferentes. Se o lugar de encontro comum das consciências não for o mundo, as pessoas não existiram enquanto seres de comunicação (FREIRE, 2005). Do reconhecimento do homem como ser inacabado emergiu a necessidade da educação, sendo essa ação exclusiva do homem, que na consciência de sua inconclusão, mantém contínuo processo de educar. Porém, Freire (2005) alerta que o “homem deve ser sujeito de sua própria educação. Não pode ser objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém” (FREIRE, 1979a, p. 28). Nessa visão, não se deve sobrepor como resgatadores do outro, e sim permitir que este se autoconfigure, responsavelmente. A descoberta da ingenuidade inata transforma as pessoas em seres críticos, conscientes da insatisfação social e reconhecedor da opressão. Freire (2005) apresenta os homens como oprimidos que contribuem para a construção do opressor, sendo esse escravo desse poder de opressão. Ao visualizar o que está além, talvez seja possível perceber que o opressor também é 40 um oprimido de si mesmo. A libertação do oprimido ao encontrar sua humanidade proporciona ato positivo para ambos: liberta a si e a seu opressor. O reconhecimento de si às vezes torna-se prejudicado pelo envolvimento com a opressão, em que tornar-se opressor apresenta-se como tendência primeira dos oprimidos que se libertam. Apresenta-se como vontade de experienciar o “outro lado”, pois essas são as únicas realidades que se conhece. É interessante que a mudança parta também da ação, e não puramente do intelecto, pois essa ação que desperta reflexão é constructo de uma nova práxis. Enquanto educadores que participam da libertação, Freire (2005) propõe não apenas a dizer que os homens devem “ser autônomos”, pois, corroboraria as mesmas atitudes prescritivas criticadas. O resultado desse processo educativo deve ser a conscientização, e não a transferência de conhecimentos. Freire (2005) critica as relações educativas baseadas em narrativas. A postura de educandos e educadores no processo narrativo qualificam o aprendiz como “objetos pacientes”. Os conteúdos encontram-se distanciados de suas vidas, não representando nenhum significado para os ouvintes. As palavras encontram-se presentes, porém mortas de conteúdo, vazias de sentido. A esse modelo educativo, Freire (2005) denominou de Educação Bancária. O depósito desses saberes oportuniza a impressão de conhecer, quando na verdade, alimenta a ingenuidade do educando. Nessa relação, o objetivo é conduzir o receptor a um pensamento que interessasse o locutor, destituído de qualquer reflexão que possa proporcionar transformação da realidade. A ausência da história dos educandos nesse modo educativo afasta o sujeito de um ato cognoscitivo, e apresenta apenas um ato cognoscente do educador. Contrariando os princípios bancários, Freire (2005) propõe a educação problematizadora. Esta trabalha com a intencionalidade da consciência e comunicação. Essa proposta emerge e gesta da reflexão dos educadoreseducandos. O educador se reinventa e, então, também é educado pelos objetivos dos educandos, que investigam, criticam. A educação problematizadora implica em um constante desvelamento da realidade. O mundo e as experiências são na 41 verdade os facilitadores e mediadores do processo educativo transformador, agindo como tecnologia educativa. A educação problematizadora é representada em prática pelo Círculo de Cultura. Imagine que o “círculo” substitui a sala de aula, em que todos estão envolvidos, enlaçados em equipe, tendo como método de estudo o diálogo. “De cultura” porque representa a construção cultural daquele grupo (BRANDÃO, 1981). O método freiriano dispõe da ação dialogal entre educadores e educandos. Após aceitar envolver-se no trabalho educativo, o primeiro passo deve ser a pesquisa. Apresenta-se como um trabalho cartográfico de (re)conhecimento da realidade local, do cenário de vida dos sujeitos (BRANDÃO, 1981). Esse primeiro momento obteve diversas nominações: levantamento do universo vocabular, descoberta do universo vocabular, pesquisa do levantamento vocabular e investigação do universo temático. Todas essas denominações mantêm o mesmo objetivo: descobrir, investigar a fala da cultura dos educandos. Essa descoberta não é realizada através de questionários ou roteiros, mas no conviver, no participar da comunidade, em que todas as falas são importantes: provérbios, dizeres, versejares, ou o cantar de mundo e traduzir a vida (BRANDÃO, 1981). Essa vivência aproxima o pesquisador do pesquisado. Após a descoberta das palavras, descobre-se também um mundo contado em suas particularidades, mundo este que produzirá leitura dupla: a palavra vivida e a escrita que a traduz. O encantador desse método é que não existe forma única de realizá-lo, pode-se, e deve-se recriá-lo e vivê-lo em sua plenitude de oportunidades. As palavras abandonam sua condição de signos linguísticos e passam a constituir uma relação, um aprendizado. Essa prática vai além de alfabetizar, ação muitas vezes impensada e mecanizada. Por isso, palavras como: Eva, Ivo, ovo, ave, sapato, são tão universais quando vazias. E, na verdade, elas nada precisam dizer nem evocar, porque tradicionalmente alfabetizar tem sido considerado como um trabalho mecânico de ensino de uma habilidade necessária, mas neutra. Uma espécie de mágica que vira mania, ato coletivo compulsivo com que se aprende pelo esforço do simples repetir sem refletir (BRANDÃO, 1981 p.30). 42 As palavras escolhidas além da riqueza fonêmica e dificuldade fonética devem possuir densidade pragmática de sentido. Esse é o segundo momento do método. Essas palavras conduzirão debates que sugerem a constituição de mundo do grupo. Estarão codificadas e apresentadas em situações reais, porém desafiadoras. Essas situações problemas deverão ser decodificadas pelos sujeitos, levando a uma conscientização concomitante à alfabetização (FREIRE, 2009). O momento que atravessa o abstrato para demonstração do concreto é o da leitura das fichas de cultura. Nelas, desenhos são realizados a partir da codificação-decodificação dos temas geradores. O debate gira em torno das situações apresentadas, em que os homens descobrem-se como seres relacionais, produtivos e políticos (BRANDÃO, 1981). Em último momento, as palavras geradores representadas foneticamente são apresentadas aos educandos, em que ocorrerá a decomposição e reconhecimento dos fonemas, oportunizado a criação de outras palavras (FREIRE, 2009). Esses constructos forneceram origem ao movimento de Educação Popular. Não nascia um novo método, mas toda uma nova visão de resgate de mundo e nova esperança no homem, o “método foi só uma botina que calçaram nos pés ao caminhar” (BRANDÃO, p. 15, 1981). A obra de Freire é complexa e vasta. Difícil tarefa definir conceitos que direcionarão este estudo. Adotarei alguns dos conceitos que julgo básicos para as discussões a que se propõe a pesquisa: homem, educação, diálogo e conscientização. Compreendo que durante o caminhar poderão se agregar novas ideias a essa composição. Adiante, apresento uma breve análise de tais postulados que subsidiarão a interlocução dos achados propostos. 2.5 Conceitos freirianos Compreender as implicações dos movimentos relacionais propostos pela educação inspira a transpor a superficialidade da concepção de homem. O 43 pensamento crítico-reflexivo de Freire que introduz o diálogo como princípio primeiro do educar, educar esse envolto em homens, apresenta a conscientização de si, de sua incompletude e de sua opressão como produto gerador da liberdade. Esse constructo ideológico pode apoiar o enfermeiro educador e justificar o trilhar pelos caminhos dos conceitos abaixo explorados. 2.5.1 Homem O homem não está sozinho. É um ser reflexivo. Busca “ser mais” por se reconhecer incompleto, incompletude que fomenta a raiz da educação. Está no mundo e com o mundo, capaz de relacionar-se, refletir e capturar a realidade para produzir conhecimento. O homem ao se relacionar com outro, diferencia-se dos demais animais. Estabelece relação com a realidade e através destas chegam a sujeitos. Este ser “temporalizado e situado”, ontologicamente incabado – sujeito por vocação, objeto por distorção-, descobre que não só está na realidade, mas também que está com ela. Realidade que é objetiva, independente dele, possível de ser reconhecida e com a qual se relaciona (FREIRE, 1979a, p. 62). Desenvolve assim relações com o ambiente e seres, codificando relações reflexivas, consequentes, temporais (FREIRE, 2009). Dinamiza e recria seu mundo além dos espaços físicos, produz valores e cultura. Esse homem deve alinhar-se com atitude crítica, e apenas assim integrase ao mundo e aos outros, transpondo a acomodação e os ajustamentos impostos, exercitando sua capacidade criadora. Assim, humaniza, liberta (FREIRE, 2009). A antropologia freiriana apresenta o homem como histórico, cultural, processual e inconcluso. Residente em uma realidade opressiva e mutiladora que nega freneticamente sua humanidade. O enfrentamento para a busca dessa humanidade é iniciado com sua conscientização de mundo (OLINDA, 2005). O homem é plural em sua singularidade, construído por diversos pedaços de sua história, negando adaptação nos contextos pré-escritos. Com a criação e recriação, o homem produz história. Freire (1979) apresenta a atitude crítica ao 44 homem como instrumento integrativo a sua historicidade. O homem ocupa posição de oprimido/opressor, ou de liberto, numa constante dialética entre “ser mais” e desumanizar-se. O homem enquanto oprimido abriga o opressor assemelhando-se a este, impossibilitando a descoberta de sua real condição e afastando-se de sua libertação ao aconchegar o papel de futuro opressor. Nessa perspectiva, o encontro dos homens oprimidos e opressores produz no primeiro o que Freire (2005) nomina “aderência” ao opressor, que irá admirar o segundo e mergulhar em sua constituição opressiva constituindo-se como “homem novo” (FREIRE, 2005). O homem novo não prediz a condição liberta, e sim ao exercício da opressão onde os oprimidos serão vivenciados por outros. Não existe compreensão de si, apenas a óptica de um mundo que oprime. Uma dos principais mediadores dessa relação entre os homens é a prescrição. Essa prescrição modela e aprisiona o homem que teme por sua liberdade. A conquista da liberdade requer a substituição da sombra opressora pela autonomia, implicando a compreensão das razões para que por meio de sua libertação o homem inicie a busca pelo “ser mais” (FREIRE, 2005). A descoberta do homem enquanto ser oprimido dispara uma dualidade interior que carece escolher entre “seguirem prescrições ou terem opções” (FREIRE, 2005, p. 38), desvelando o dilema que sustenta a pedagogia do oprimido. Tal dilema é sofrido, metaforizado por Freire como “um parto”, doloroso, mas que permitirá a liberdade a este homem. 2.5.2 Diálogo O diálogo apresenta-se como essência da educação que liberta. É prática de conhecimento, necessidade vital e mediatizadora das relações. Posto como necessidade existencial condutora do caminho, no qual os homens encontram seu significado (FREIRE, 1979). A palavra dialogada pronuncia o trabalho da ação reflexão, descortina a ignorância existente no homem e o retira da postura de meros “istos” e propõem reconhecimento de seus “eus”. (FREIRE, 2005). 45 O diálogo ao conduzir a educação libertadora define-o enquanto essência do conhecimento. Na busca por conhecer, o diálogo desperta a atividade intelectual dos homens conduzindo a caminhos complexos de conhecimento e transformação social (DAMKE, 1995). Como condição apriori do diálogo, Freire (1979a) apresenta o amor pelo mundo e pelos homens. Amor com capacidade de recriação, em que reflexão e ação orientam a transformação conduzida pelo diálogo. Nessa relação dialógica não pode haver dominação, pois o verdadeiro amor não domina. O diálogo como travessia para a comunicação propõe um encontro de homens, um encontro livre, um encontro amoroso. A comunicação entre homens que aprendem causa ruptura e carece de revestimentos de humildade. Nesse clima, a confiança mútua conduz os que dialogam, e deve buscar comprometimento por parte dos que discursam. O que é o diálogo, neste momento de comunicação, de conhecimento e de transformação social? O diálogo sela o relacionamento entre os sujeitos cognitivos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a realidade (FREIRE, SHOR, 1986, p.123) Nega-se, portanto, a existência de monólogos ao educar, rejeitando o ato de depositar ideias de um sujeito no outro. O diálogo nasce de uma matriz crítica e de relação horizontal, produzindo assim o verdadeiro comunicar. Contrapõe-se ao antidiálogo, que desesperançoso e arrogante, implica em uma relação que não comunica, faz comunicados (FREIRE, 1979). O caráter dialógico afirma que não se pode pensar pelo outro. Nesse pensar próprio, os sujeitos conservam suas identidades e crescem juntos, sem nivelamentos ou reducionismos (FREIRE, 2000). O afeto que constitui o diálogo conduz este a possibilidades de realizações, fomenta a expressão de convergências e divergências humanas e conduz a construções e reinvenções. O diálogo não é a simples palavra que externa da boca, não é o simples ouvir, mas a apreensão e compreensão do outro, o enxergar através do que é visto e o sentir falar do outro advindo da alma. 46 O diálogo, na verdade, não pode ser responsabilizado pelo uso distorcido que dele se faça. Por sua pura imitação ou por sua caricatura (FREIRE, 2000, p.118) O diálogo ao contrário do que se possa pensar, não anula a possibilidade de ensinar, ele constitui o processo de aprendizagem que circunda o educador crítico que se abre a curiosidade do educando. No entanto, o diálogo não deve ser confundido com bate papo casual, há de se ter uma palavra responsável, deve se ter conteúdo (GADOTTI, 1996). Assim, reflete-se acerca de alguns questionamentos de Freire (2005) sobre a posição do homem enquanto ser de diálogo: como dialogar se nos consideramos superior aos outros? Como dialogar se me fecho às contribuições externas? Como dialogar se temo a superação? Essas inferências apresentam o diálogo e sua incompatibilidade com a autossuficiência humana, pois dialogar não requer seres absolutos, e sim em comunhão.No diálogo devemos reconher o outro, e libertos da arrogância ao discordar manter o respeito ao passo alheio que não se quer acompanhar (FREIRE, 2000). O diálogo pressupõe fé na historicidade dos homens e sua construção particular de mundo, onde a esperança vinda do encontro libertador prediz um futuro diferente através do amadurecimento e criticidade dos povos. Deve também instaurar a confiança e envolver os sujeitos na pronúncia do mundo, pronúncia que espera pelo fazer destituído de burocracia, prima por um fazer relacional, crítico e alegre. 2.5.3 Educação A educação é uma busca de compreensão dos sujeitos, sendo estes protagonistas do seu educar. Não se apresenta como promessa de adaptação da realidade, mas propõe uma transformação na busca pelo “ser mais”. O ímpeto de criar desprende de uma educação autêntica, que não reprime, não cria barreiras, mas oportuniza a criação de novos homens (FREIRE, 1979). Agrega em si uma dimensão prática e estética que convivem e se fundem na vivência da teoria com a prática, na criação e recriação do conhecimento (FREIRE, SHOR, 1986). 47 A educação problematizadora acolhe os homens enquanto seres em devir, em sua incompletude e suas realidades inacabadas. A problematização apresenta-se como fio condutor utilizado pelos educadores para instigar reflexão e criticidade dos educandos sobre sua realidade. Essa educação propõe a superação da contradição educador-educando, sendo conduzida pela dialogicidade (FREIRE, 2005). A práxis proposta por esse modelo é a relação dos participantes no processo educativo com o mundo, relação esta que deve ser autêntica enquanto pensamento e atuação, “Pensar-se a sim mesmos e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da ação” (FREIRE, 2005, p. 82). Esse processo instiga a percepção crítica dos homens em como estão sendo, com que, e em que se reconhecem no mundo. A discussão das relações é pressuposto básico. Essa educação se empenha em desmistificar as ligações humanas (FREIRE, 2005). A educação problematizadora não pode negar a curiosidade, a insubmissão e a rebeldia do outro em questionar, em aguçar sua curiosidade. Essa proposta educacional coloca como condição verdadeira de aprendizagem a transformação dos sujeitos com a desconstrução e reconstrução dos saberes. Baseia-se não no ensino de conteúdos, mas no ensinar a pensar certo (FREIRE, 1996). Não pode então a educação problematizadora servir aos opressores, pois estes não permitem a pergunta, e não há educação libertadora sem questionamentos. A educação deve ser ato de conhecimento entre seres, deve aproximar a realidade e revesti-la de crítica. (FREITAS, 2001). Para vivenciar esse ato deve-se garantir espaços para que essa educação brote, circule, espaços férteis, amorosos, possíveis para interação dos mundos. ...é impossível pensar a educação numa perspectiva libertadora sem pensar os modos concretos de garantir a sua dialogicidade (DAMKE, RIGHI, 1995, P.80) Uma das tarefas mais relevantes dessa educação é propiciar o reconhecimento e a assunção da identidade cultural dos sujeitos, cuja assunção dos sujeitos não exclui o outro. As experiências vividas devem ser assumidas, pois elas 48 criam os homens sociais, históricos e culturais, e estes se reconhecem diante de si, corroborando a estratégia crítica proposta por esse modelo. Assim, educação problematizadora aponta para um caráter reflexivo, propondo ao homem o entendimento de sua inclinação ontológica como diretiva para uma consciência dialética com a realidade, aprofundando conhecimentos e atitudes frente ao mundo. 2.5.4 Conscientização A conscientização apresenta-se enquanto postura. Aparece no entendimento do homem enquanto ser incompleto que busca pela completude no desenvolvimento crítico do saber. Toma sua posição no mundo e apreende a realidade como objeto cognoscível de uma esfera crítica . Para Freire (1975, p. 289) conscientização é: ... o desenvolvimento crítico da tomada de consciência. A conscientização comporta, pois, um ir além da (apreensão) fase espontânea da apreensão até chegar a uma fase crítica na qual a realidade se torna um objeto cognoscível e se assume uma posição epistemológica procurando conhecer. São reconhecidas três dimensões no processo de conscientização: A dimensão política, que alimenta um caráter ético e de encontro entre os homens, onde a esperança de uma postura crítica é nutrida como potencialmente transformadora; a dimensão epistemológica que se entrelaça a dimensão estética na busca pelo novo e que se mantém na alegria enquanto mantenedora da esperança. Torna-se por vezes complexo o entendimento de cada uma dessas dimensões onde elas nutrem-se e completam-se num processo de transformação permanente (FREITAS, 2001). Discorrendo acerca da consciência crítica nos processos educativos, Freitas (2001) chama atenção que a dimensão epistemológica da conscientização se caracteriza pela inquietação, pela busca do conhecimento, pelo entendimento estético que referem à subjetividades dos indivíduos e incluem o prazer, o amor e a alegria enquanto componentes fundamentais a prática educativa. 49 Assim, mantém-se um compromisso histórico baseado na ligação consciência-mundo. Nessa relação de reflexão crítica, os homens desvelam sua obscuridade e aproximam-se do mundo, vivenciando uma retroalimentação reflexivocrítica desses “novos mundos”. É processo infindável (FREIRE, 1979). As implicações do homem consciente têm que estar além do saber, deve apresentar-se no denunciar, no transformar. Chega a ser utópico, porém “quanto mais conscientizados nos tornamos, mais capacitados estamos para ser anunciadores e denunciadores, graças ao compromisso de transformação que assumimos” (FREIRE, 1979a, p. 16). Conhece-se, assim, a conscientização como posse da realidade produtora da desmitologização, e que jamais podem ser propostas pelos opressores, pois conscientizar é olhar com olhos críticos para a realidade, desnudando seus mitos opressores (FREIRE, 1979). A consciência crítica difere da ingênua pela compreensão dos fatos e sua realidade empírica, considerando um sistema de causas e feitos, enquanto que a segunda se posiciona de forma superior e manipula os fatos conforme lhe convir, com um olhar de superposição, com argumentações mágicas para os porquês da realidade (FREIRE, 2009). A conscientização prima pela profundidade da análise dos problemas, reconhecendo a mutabilidade das realidades, porém, subsidiada por autenticidades e desnuda de preconceitos. É inquieta, indagadora, investigativa. Ama o diálogo, e através deste, nutre-se (FREIRE, 1979). 50 CONSTRUINDO O CAMINHO 51 3. CONSTRUINDO O CAMINHO 3.1 Olhares e ferramentas de investigação Na condução do estudo, optei pela abordagem qualitativa. Essa aproximação foi direcionada pelo tema e objeto do estudo que deseja trabalhar questões que nem sempre são expostas ou quantificadas, como em nosso caso o universo ideológico, que só nos permite compreensão pela imersão nas falas, realidades e aspirações dos sujeitos (MINAYO; GOMES, 2009). Guiado pelo Método Criativo e Sensível (MCS) proposto por Cabral (1998), a participação ativa dos envolvidos foi singular para a produção do conhecimento, trouxe à tona a interioridade e experiências do grupo através da artecriação. Tal método é composto pela tríade: discussão de grupo, observação participante e dinâmicas de criatividade. A interação grupal foi utilizada para discutirmos a prática clínica associadas a métodos de pesquisa e educação, criando uma riqueza e diversidade na produção de dados que constituíram o corpus do estudo (CABRAL, 1998). O MCS apresenta alicerce teórico em estudiosos como Gauthier, PichonRivière e Paulo Freire. O primeiro influencia esse modelo de pesquisa ao revelar seu pensamento contra a maneira conservadora do estudo da ciência, que há um distanciamento entre corpo e mente, desprezando o saber popular, transformando o sujeito em objeto. Cabral (1998) aponta o pensar de Pichon-Rivière como defensor da prática grupal, ferramenta interdisciplinar que aproxima o sujeito coletivo, mantendo singularidades e especificidades no trabalho de objetivos comuns, flutuando da individualidade para pluralidade. O MCS interpõe-se com a pedagogia crítico-reflexiva proposta por Freire, entendendo que assim como na educação, a produção do conhecimento deve ter o homem como sujeito de reflexão e construção de saber (FREIRE, 1979). Esse trilhar produz encontro entre pesquisadores e sujeitos da pesquisa, propondo homogeneidade, olhar para as singularidades, e mescla do lúdico a rigorosidade 52 científica durante as Dinâmicas de Criatividade e Sensibilidade (DCS)(GOMES, 2005). 3.2 Cenário do estudo O estudo foi realizado no município de Maracanaú-CE. O nome Maracanaú tem origem tupi e significa lagoa onde bebem as maracanãs. Recebeu essa denominação em função da grande quantidade destas aves que sobrevoavam suas lagoas. Geograficamente, Maracanaú localiza-se no estado do Ceará, nordeste do Brasil, fazendo parte da Região Metropolitana de Fortaleza. Possui o segundo Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Ceará, estando atrás apenas do município de Eusébio (MARACANAÚ, 2010). O Município integra a macrorregional de Fortaleza e a terceira Microrregional de Saúde do Estado ou 3ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRES), que se constitui como um conjunto de oito municípios com grande integração e interdependência, e, sobretudo, com vontade política para pactuarem na busca de soluções para problemas comuns, na área da saúde (MARACANAÚ, 2010). A Secretaria de Saúde de Maracanaú é composta pelas Coordenadorias de Atenção à Saúde; Vigilância em Saúde; Administrativa, Planejamento, Controle, Avaliação, Regulação e Auditoria; Hospital Municipal e Ouvidoria da Saúde. O município está dividido em 06 (seis) Áreas de Vigilância à Saúde (AVISA), criadas pela lei municipal nº 561/97. Cada AVISA possui em média 32.500 habitantes, constituindo-se num espaço territorial com características geográficas e demográficas próprias, e de gestão sanitária descentralizada (MARACANAÚ, 2010). As duas primeiras dinâmicas ocorreram no auditório da secretaria de saúde municipal, por sua centralidade e fácil acesso aos participantes, assim como por ter espaço físico propício às dinâmicas. O espaço é amplo, climatizado e com capacidade instalada para receber até 40 pessoas. Na realização do último grupo não foi possível encontrarmo-nos no mesmo local, pois neste acontecia outra reunião. Como alternativa e para não 53 postergar o encontro, a última dinâmica ocorreu na sala de grupo do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em Maracanaú. Tal opção deu-se por ser meu local de trabalho, o que viabilizou o uso do espaço, que possui ambiente amplo, climatizado e oportuno para a técnica utilizada. 3.3 Sujeitos envolvidos Os sujeitos desta pesquisa foram 15 enfermeiros das Equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) de Maracanaú, vinculadas às escolas municipais cadastradas no Programa Saúde nas Escolas (PSE). Essa escolha tornou-se intencional ao acreditar que integrar uma equipe participante do PSE propicie ao enfermeiro manter relação educativa com o adolescente como proposto pelo programa. Inicialmente solicitei junto à secretaria de saúde o nome desses enfermeiros e o endereço do posto de saúde em que trabalhavam. Realizei contato com cada um deles através de visita ou ligação telefônica explicando sobre nossa proposta de estudo e convidando-os a participar das DCS. Em sua quase totalidade os mesmo demonstraram receptividade em participar do estudo, porém afirmaram necessitar de liberação da Coordenadoria da Atenção Básica junto a suas gerentes para que os encontros ocorressem em horário de trabalho. Produzi ofício (APÊNDICE 1) solicitando liberação dos profissionais para participação nas DCS e entreguei junto ao coordenador da ESF que deliberou junto às gerentes de AVISA liberando os profissionais para participação dos encontros. Procurei disponibilizar horários alternados (manhã e tarde) e em dias diferentes da semana com intuito de facilitar a inserção dos enfermeiros nos grupos. O primeiro grupo aconteceu no dia vinte e nove de maio de 2012 pela manhã, contanto com a presença de três enfermeiros. O segundo grupo ocorreu no mesmo dia à tarde com a participação de seis profissionais. Após novo contato telefônico com os enfermeiros que não compareceram ao primeiro dia, foi marcado novo encontro para o dia sete de Junho do mesmo ano, deixando livre o horário que quisessem participar (manhã ou tarde). Nesse encontro nenhum enfermeiro compareceu. Após esse momento a coordenadoria de saúde nos solicitou adiarmos novo encontro devido à fiscalização do Ministério da Saúde 54 nas Unidades de Saúde da Família (UBASF), o que impossibilitaria a ausência das profissionais nos seus locais de trabalho. A coleta ficou suspensa durante o mês de julho, obtendo um retorno positivo no último encontro agendado para o dia oito de agosto. Nesse encontro compareceram sete enfermeiros. No início desse encontro um dos enfermeiros solicitou não participar da DCS. Justificou que apesar de sua equipe estar vinculada ao PSE nunca realizou nenhum tipo de trabalho com adolescentes, sendo excluída por sua solicitação e ademais não preenchia os critérios de inclusão do estudo. Os critérios de inclusão no estudo foram: incluir apenas aos profissionais que possuam a equipe cadastrada no PSE e realizem, ou tenham realizado ações educativas com adolescentes. O método a ser aplicado (MCS) propõe o trabalho grupal com um número restringido de participantes, proporcionando um espaço vivo, dialógico e dialético (CABRAL, 1998). Assim, foram formados três grupos (caracterizados no quadro abaixo): Quadro 01. Caracterização dos sujeitos Identificação do Enfermeiro 1º Grupo: Dinâmica do Almanaque 2º Grupo: Dinâmica do Almanaque 3º Grupo: Dinâmica do Almanaque Girassol Lírio Jasmim Paloma Mara Violeta Flor Pamela Rosa Misteriosa Royal Planta Guerreira Pocahontas Einstein Idade (anos) Tempo de Graduação (anos) Tempo no PSE (anos) 37 27 30 28 29 29 28 28 30 28 31 24 27 34 27 8 2 4 3 5 5 3 4 6 2 7 2 2 10 5 3 1 3 3 3 3 3 3 3 1 3 1 1 1 3 55 Dentre os participantes apenas um é do sexo masculino. Para preservar o anonimato dos participantes, sugeri ao início de cada dinâmica a seleção de nomes fictícios para representação das formações discursivas durante a análise do estudo. A caracterização dos sujeitos demonstrou que os enfermeiros tinham em média 5 anos de graduados, e destes pelo menos 2,3 anos de atuação junto ao programa destinado a trabalho com adolescentes. 3.4 Produção e realização das dinâmicas Na produção dos dados, utilizei dinâmicas de criatividade e sensibilidade para aproximação do grupo com o objeto de estudo numa perspectiva que despertasse conhecimentos e subjetividades dos enfermeiros sobre a temática. Antes de cada grupo o ambiente foi organizado de maneira propícia ao desenvolvimento da dinâmica do Almanaque. Para realização da dinâmica do Almanaque produzida por Cabral (1998) disponibilizei aos enfermeiros os seguintes materiais: revistas, folhas de papel ofício branca e coloridas, cartolinas, fitas coloridas de cetim, novelos de lã, cola glitter, perfurador, lápis, borracha, papel crepom, giz de cera, cola, tesoura, caneta hidrocor, fita adesiva (Figura 01). Figura 01. Materiais dispostos para as DCS. Os materiais dispostos numa grande mesa compunham o ambiente junto à circularidade das cadeiras. A mesa propunha apoio à confecção dos almanaques. Ademais, mantive dois gravadores portáteis para gravação durante as dinâmicas, duas máquinas digitais, uma para registro em vídeo e outra para manutenção 56 fotográfica, assim como notebook e caixa de som portátil para música de fundo durante a produção dos almanaques. Apesar de apresentarem suas singularidades cada encontro teve como eixo quatro momentos apresentados por Gomes e Cabral (2010): Momento1- Acolhimento e apresentação do ambiente da pesquisa. Os enfermeiros foram recebidos nos locais das dinâmicas e apresentados quanto organização do espaço. Embora fossem ambientes que já conhecessem estavam organizados de maneira não convencional. Percebi que em primeiro momento os materiais para oficina causavam certo impacto e ás vezes resistência em alguns participantes. Alguns consideraram não ter habilidades lúdicas nem criativas para nenhuma composição artística, e questionavam se seriam obrigados a desenhar. Acolhi as primeiras indagações e esclareci que no momento seguinte (explicação dos encontros) todas as dúvidas e questionamentos seriam discutidos. Momento 2- Apresentação dos participantes e explicação sobre os encontros. Nos três encontros iniciamos com uma breve apresentação dos participantes com a pronuncia do nome, idade e há quanto tempo estavam graduados. Posteriormente foram entregues duas cópias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (Apêndice 2) onde prosseguimos com a leitura do termo e explicações sobre o objetivo da pesquisa bem como o funcionamento das dinâmicas. Nesse momento foram esclarecidas as dúvidas em relação à participação na criação do almanaque, onde os enfermeiros ficaram a vontade para realizar ou não a produção artística. No instante inicial do terceiro grupo, uma profissional decidiu não participar devido à ausência de práticas com adolescentes (anteriormente relatado). Ademais, os que consentiram assinaram TCLE em duas vias e iniciaram a construção do almanaque. 57 Momento 3- A enunciação e discussão das questões geradoras. Passado os dois momentos iniciais postei em uma cartolina as três perguntas norteadoras do estudo que serviriam como disparadoras para a produção dos capítulos do almanaque: a) Como você concebe educação em saúde b) Como você realiza sua prática educativa com adolescentes? c) Qual o sentido dessas ações pra você? Solicitei que criassem um almanaque com o material disponível, e durante a produção identificassem pelo menos três capítulos distintos: “educação em saúde e enfermagem”, “educação em saúde com adolescentes”, “sentido da prática educativa com adolescentes” Figura 02: Dinâmica de Sensibilidade e Criatividade – Almanaque Durante a elaboração artística ocorre a codificação dos saberes, onde os enfermeiros dialogam consigo e trazem à consciência questões vivenciadas sobre o tema do estudo (CABRAL, 1999). Apesar de alguns receios iniciais todos participaram e a duração média de criação das produções foi de 49 minutos. Toda construção do material foi filmada e fotografada mediante anuência dos participantes e consentimento assinado. 58 Momento 4- Análise individual. A produção lúdica revela a consciência objetiva e subjetiva dos enfermeiros em relação as suas práticas educativas. Depois de concluída as produções, os profissionais apresentaram seus almanaques, dimensionando assim seus conhecimentos e atuação na educação em saúde com adolescentes. Realizase aqui o processo de decodificação. Mediado pelo diálogo grupal e análise das produções artísticas, os enfermeiros debateram sobre as questões geradoras a partir de suas criações, empreendendo a negociação de saberes e dando vida a discursividade. Como proposto por Gomes (2005) realizei gravação de em áudio e vídeo, para que não se permitisse escapar nenhuma produção verbal e não verbais dos sujeitos, assim como observação participante para contribuir com a análise em explicitações contextuais que se fizessem necessárias. Após transcrição dos diálogos, cronometrei o tempo utilizado por cada participante e pelo pesquisador e conferi a materialidade linguística ao texto. 3.5 Aspectos éticos Os imperativos éticos foram considerados conforme Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, Ministério da saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da Universidade estadual do Ceará (UECE) sob parecer nº 11584251-9 (ANEXO 01). Aos participantes foi explicado sobre a realização da pesquisa, seguida pela leitura e compreensão do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Os termos foram assinados em duas vias de igual teor, ficando um com os participantes e outro sob a guarda do pesquisador. Em conjunto com os participantes foram escolhidos pseudônimos os quais seriam representados durante a apresentação dos dados, conferindo-lhes assim a garantia do anonimato sob as informações e imagens para resguardar sua identidade. As gravações e filmagens digitalizadas permanecem sob minha guarda, vedando-se a utilização de seus fins que não os dessa pesquisa. 59 3.6 Análise e discussão das informações As informações foram analisadas através da Análise de Discurso (AD), entendendo que esta apresenta ferramentas para compreensão dos sentidos interligados ao tempo e ao espaço das práticas, mediado pelo discurso, pela história e seu contexto social. Orlandi (2001) descreve o discurso como espaço de compreensão entre língua, ideologia e sentido para aqueles que o proferem. A análise do discurso trabalha as contradições de outras disciplinas. Abraça a exterioridade excluída pela linguística e agrega a linguagem que às ciências sociais rejeitam em função do exterior, focando assim nos sujeitos e situações. Para a AD o social constrói a língua, onde as construções discursivas referem-se ao mundo para aquele ser e não o mundo como é (ORLANDI, 2007). O discurso torna possíveis as reflexões sobre os sujeitos e suas situações, desconstruindo a noção de real que é apresentada trabalhando assim seus processos de produção (ORLANDI, 2007). Compreendo o discurso como uma ponte entre o inconsciente e a linguagem. A AD possibilita o desvelar de uma ideologia que se consolida de forma complexa por não estar deliberadamente exposta nas falas, e sim obscura nas entrelinhas. Para compreensão desse discurso torna-se necessário compreender a história como pano de fundo, não se limitar ao dito, mas sim em como esse dizer é construído (ORLANDI, 2008). Orlandi (2008, p.100) afirma que “a ideologia interpela o indivíduo em sujeito e este submete-se à língua significando e significando-se pelo simbólico na história”. Considera-se assim a subjetivação como processo não quantificável e sim afetado pelo simbólico e pelo sistema significante. Ao compreender que os sentidos estão interligados pelas proposições ideológicas que propiciam a condução da palavra, considera-se que a depender de como forem empregadas e por quem, elas se ressignificam em relação às formações discursivas. (ORLANDI, 2001). Constitui-se como base da AD a formação discursiva, pois através desta a produção dos sentidos e sua relação ideológica propõem ao analista reconhecer o 60 funcionamento discursivo determinando assim o que pode ser dito. Segundo Orlandi (2009, p. 125): O funcionamento discursivo [...] é a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas. As formações discursivas (FD) representam as marcas ideológicas no discurso através de seus traços materializados como linguagem e ideologia se entrelaçam (ORLANDI, 2001). As pistas engendradas nas formações discursivas possíveis num discurso não constituem ideologias diferentes e sim consolidam a mesma trama ideológica interposta em diferentes signos. As diversas formações discursivas relacionam-se entre os efeitos de sentido que transitam no equívoco, no sentido do outro, no silêncio. Constituem-se então os diferentes espaços do dizer, inscrevendo sujeito e sentido como produtores de relações que constituem as FD (ORLANDI, 2002). Para a AD o texto é a uma unidade de análise que se constitui de outros elementos, de outros textos, das condições de produção de discurso em sua exterioridade constitutiva. Não se trabalha apenas com as palavras apresentadas, mas com a historicidade do texto denominado de trabalho dos sentidos (ORLANDI, 2007). O uso de dispositivos analíticos da AD propicia a descoberta destes sentidos e a identificação das formações discursivas presentes nos textos. Tratarei aqui sobre os principais dispositivos que subsidiam a análise constitutiva e que me ampararam durante o estudo. Orlandi (2001, p. 36) anuncia que “quando pensamos discursivamente a linguagem, é difícil traçar limites restritos entre o mesmo e o diferente”. A autora considera o funcionamento linguístico assentado entre a polissemia (deslocamento, rupturas) e paráfrase (o que se mantém). Compreende assim as possibilidades de equívocos, ao movimento contínuo de construção do simbólico e da história. A paráfrase vem constituir a matriz dos sentidos, enquanto a polissemia joga com novos processos de significação que transitam nos processos discursivos. Outro importante dispositivo é o interdiscurso. “O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2001, p. 33). O interdiscurso apresenta a possibilidade da interpretação 61 do dizer que se constitui dentro da história tendo em vista que este dizer encontra-se apagado no sujeito, e este o enunciará como propriedade sua, com sua interpretação. A metáfora é importante dispositivo tendo em vista que sentido se faz presente em manifestações metafóricas, onde uma palavra não é colocada enquanto figura de linguagem, mas se acomoda num processo transferencial e ressignificando o signo (GOMES, 2006). Não me é pretenso esgotar as definições sobre tais dispositivos, apenas considerá-los aqui como fundamentais no processo da AD. Assim, não poderia me abster de trazer à luz as formações imaginárias, fatores essenciais na compreensão constitutiva dos discursos: Relações de sentido, relações de força e antecipação. O primeiro retrata que “um dizer tem relação com outros dizeres realizados (ORLANDI, 2001, p. 39)”. Ou seja, os sentidos provêm de relações com outros dizeres, e que os discursos são construídos em resposta ao que já foi dito a depender de quem ocupa esse espaço de locutor e quem será o interlocutor desse objeto. (GOMES, 2006). As relações de força nos dizem de que lugar esse sujeito nos fala que autoriza o enunciado da forma como ele se constitui. Ou seja, o sujeito fala com o amparo da hierarquia social que sustenta tal enunciação. A antecipação é a capacidade do locutor de experimentar o lugar do outro antevendo seus sentidos para conduzirem sua argumentação em cima da projeção realizada (ORLANDI, 2001). Tais fatores nos possibilitam o alcance do processo de constituição do sujeito, onde compreender quem é esse “eu” que se posiciona no discurso e sua função social torna-se essencial na constituição dos sentidos que brotam da linguagem. Falamos aqui das condições de produção de discurso. Tais condições consideram o material, o institucional e o imaginário para encontrarmos quem fala e de onde fala esse sujeito dentro de suas relações sociais que constituirão sua imagem e levarão ao significante do dizer (ORLANDI, 2001). Não poderia deixar de considerar o silêncio como constituinte discursivo. Este também produz sentido, “Não é um mero complemento da linguagem. Ele tem significância própria” (ORLANDI, 2002, p. 23). O silêncio pode ser distinto em 62 silêncio fundador e política do silêncio. O primeiro atravessa as palavras e existe sem elas, possibilita significar o que não foi dito e produz lugar de recuo para que se possa significar (ORLANDI, 2002). A política do silêncio pode ser dividida em silêncio constitutivo e silêncio local. O silêncio constitutivo fundamenta que “para dizer é preciso não dizer uma palavra apaga necessariamente as “outras” palavras” (ORLANDI, 2002, p.23). Enquanto o silêncio local se mantém pelo que não é permitido dizer, pelo que é censurado. Orlandi (2002) nos chama atenção que ao trabalhar com o silêncio pistas associadas ao processo políticos e históricos produzem a formulação dos sentidos, apresentando assim o não dito, ou seja, “a construção do poder dizer” (ORLANDI, 2002, p. 75). Não devemos esperar marcas demonstrativas do que o silêncio anuncia. Com o amparo teórico de Orlandi (2001, 2002, 2005, 2007 2008, 2009) e sua leitura da análise de discurso francesa, e os três passos metodológicos propostos por Gomes (2007) (a superação da superfície linguística, o alcance do objeto e do processo discursivo, e demonstração das formações ideológica e imaginária) construi a trajetória analítica desse estudo. O primeiro passo anunciado por Gomes (2007), superação da superfície linguística, inicia-se durante a transcrição das falas, que defende a manutenção de todas as partículas linguísticas expressas durante o diálogo na tentativa de minimizar as possíveis lacunas de sentido na produção das discursividades. Após a transcrição torna-se vital a reconstrução da materialidade linguística através da inserção de símbolos no corpus do estudo com a finalidade de compreender as falas em envolvimento das formações discursivas prementes (GOMES, 2007). Apresento adiante a simbologia utilizada na dessuperficialização do corpus discursivo e sua devida explicação conforme proposto por Gomes (2006): 1. (itálico): Comentários do pesquisador esclarecendo o contexto da enunciação, como movimentação do sujeito, a quem ou a que se referem motivações que levaram os participantes a falarem, entre outras coisas. 2. ... Incompletude do pensamento. 3. > Interrupção da fala de um sujeito por outro sujeito. 63 4. < Interrupção da fala de um sujeito pelo pesquisador. 5. (INAUDÍVEL) A fala não pode ser transcrita, pois é inaudível. 6. SUBLINHADO Quando ocorrem falas simultâneas. 7. / Pausa breve na fala do sujeito. 8. // Pausa longa na fala do sujeito. 9. _ Início da enunciação. 10. * Inconclusão do dizer. 11. Negrito - ênfase no dizer. Após dessuperficialização do copus do estudo, realizei a marcação temporal da fala de todos os participantes (Quadro 2) observando por ventura a polarização da fala de um dos enfermeiros e se esta se constitui como possível interferência discursiva (GOMES, 2007). Quadro 2. Descrição do tempo de enunciação dos participantes das dinâmicas Participantes 1ª Dinâmica do Almanaque 2ª Dinâmica do Almanaque 3ª Dinâmica do Almanaque Tempo de Enunciação Duração do Encontro Pesquisador 05 min. Girassol 14 min. Lírio 17 min. Jasmim 15 min. Pausas 01 min. 1 hs e 58 min. (15 min. de acolhimento, 48 min. Construção Almanaque, 55 min. discussão grupal Pesquisador 04 min. Paloma 05 min. Mara 06 min. Violeta 12 min. Flor 09 min. Pamela 09 min. Rosa 12 min. Pausas 01 min. Pesquisador 05 min. Misteriosa 06 min. Royal 08 min. Einstein 09 min. Planta 11 min. Guerreira 14 min. Pocahontas 09 min. Pausas 1 min. 2 hs e 5 min. (12 min. de acolhimento, 55 min. construção do Almanaque, 58 min. discussão grupal) 2 hs e 02 min. (15 min. Acolhimento, 45 min. construção do Almanaque 62 min. discussão grupal. 64 Após conferir materialidade linguística ao corpus e a contabilização do tempo produzi o Caderno Discursivo (CD) que me guiou nas intervenções subsequentes. O CD não foi uma ferramenta estática e criada nesse momento, mas um componente permanentemente modificado em cada instante do desvelar discursivo, tornando-se impresso fundamental para a construção das formações discursivas e compreensão ideológica. Através de leituras exaustivas sobre o material empírico do CD, utilizei a colorimetria para auxiliar-me na identificação dos dispositivos analíticos e situações existenciais que compuseram as formações discursivas. Apresento a simbologia colorimétrica por mim determinada durante a análise: LILÁS: Trecho que se destaca o interdiscurso, a memória discursiva. AZUL: Fragmentos de paráfrase, diferentes formulações do mesmo dizer. LARANJA: Trecho do discurso onde ocorre polissemia, rupturas dos processos de significação. VERMELHO: Trecho discursivo relativo à metáfora. MARROM: Situações existenciais que posteriormente compuseram a primeira formação discursiva. PINK: Situações existenciais que posteriormente compuseram a segunda formação discursiva. VERDE: Situações existenciais que posteriormente compuseram a terceira formação discursiva. Durante a identificação colorimétrica realizei anotações na aba do CD referente aos dizeres, onde pontuei questionamentos ao dito e o não dito dos sujeitos. Esse movimento interroga a estrutura linguística apresentada e permite pensar na possibilidade de outra construção para o dizer (ORLANDI, 2001). Tais interrogativas possibilitaram explicitar respostas e realizar análise das situações existenciais de acordo com os sentidos conferidos pelos sujeitos lançando mão dos dispositivos analíticos para posterior decodificação. Situação existencial é a representação de determinada situação apresentada em códigos, na qual educadores e educandos refletem sobre “o objeto 65 que os mediatiza” (FREIRE, 1979, p.18), gerando o decodificar da experiência baseadas em suas realidades. Finda a superação da superfície linguística apontada por Gomes (2007). Segundo o autor, após as situações existenciais serem codificadas pelo grupo pesquisado, decodificadas após reflexões apoiadas na AD, caminha-se para a segunda etapa: o alcance do objeto através da passagem do objeto discursivo para o processo discursivo, onde se questiona a origem das formações discursivas presentes no corpus estudado. Nesse instante, o percurso analítico deve ser cauteloso e considerar “ao dito já cristalizado no âmbito da sociedade, lugar em que a ideologia pode se mostrar e concretizar na discursividade (GOMES, 2007, p.560)”. Nessa etapa considera-se a paráfrase como dispositivo essencial no reconhecimento da ideologia presente, e motiva o pesquisador a ser cuidadoso e mergulhar na produção textual gerada pelo grupo a fim de confirmar a “coerência das diversas FD” (GOMES, 2007, p.560) para atingir a terceira etapa (demonstração das formações ideológicas e imaginárias). Para análise do processo discursivo, após aplicação colorimétrica agreguei as situações existenciais que identificavam objetos comuns mediatizados pelos sujeitos do estudo. Realizei então o recorte de situações existenciais e as conjuguei em um quadro analítico (GOMES, 2005) (Quadro 3) de acordo com as temáticas fundantes que desvelaram as formações discursivas presentes em nosso estudo. Quadro 3: Síntese dos núcleos de sentido, temática e situações existenciais delimitadas. FORMAÇÕES DISCURSIVAS Vazio repleto de nós: tecendo a rede educativa para adolescentes. TEMÁTICA Educar é preencher vazios. SITUAÇÕES EXISTENCIAIS DINÂMICAS RELACIONADAS Adolescentes como seres esvaziados de conteúdos ou mantenedores de saberes equivocados. Educação inculcada nos sujeitos é o dispositivo primeiro para manutenção da saúde 1ª, 2ª e 3ª Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade. 66 Práticas instituídas entre campanhas e circuitos: vigilância aos corpos e sujeição ao modelo higienista. Eu ensino e você aprende: laços que unem oprimidos Vigilância aos corpos Corpo biológico em plano de visão primeira. , 2ª e 3ª Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade Enfermeiro como centro do processo educativo Transmissão do saber 1ª, 2ª e 3ª Dinâmica de Criatividade e Sensibilidade Artifícios educativos Depois de identificada as formações discursivas e reconhecê-las atravessando todas as DCS atinge-se a terceira etapa sistematizada por Gomes (2007): a demonstração das formações discursivas que confluem para a formação ideológica. Não se afirma dizer que as três formações discursivas estiveram presentes nos discursos de todos os sujeitos. Cada enfermeiro construiu sua enunciação sobre uma ou mais temática, mas todas mantendo como pano de fundo a mesma ideologia. Chega-se então ao modelo solar, “um esqueleto dos resultados obtidos e que dispõe os diferentes elementos que constituem a AD” (GOMES, 2007, p.560). Adianto que durante a leitura dessa dissertação não serão encontrados fragmentos discursivos de todos os participantes nas formações discursivas em que se fizeram presentes. Devido à riqueza textual que constitui o corpus estudado, opto trazer para a discussão alguns recortes que se sobressaem nos movimentos discursivos, de maneira alguma diminuindo o valor analítico dos outros, mas por questões organizacionais e estéticas. Apresento adiante o modelo solar que figura a discursividade dos enfermeiros participantes desse estudo (Figura 3). Gostaria de esclarecer que ao citar a ideologia de base que constituiu o discurso desses enfermeiros, opto por nominá-la de educação opressora, nomenclatura que julgo aproximar-se aos referenciais freirianos que irrigam este estudo mantendo a amplitude dos achados 67 que o constituem e denominam raízes políticas e sociais que versam na formação opressora, indo além do constituinte educativo. Figura 3: Modelo solar dos resultados da análise de discurso e das relações entre os elementos que o constitui. EDUCAÇÃO OPRESSORA LÍRIO JASMIM PAMELA ROSA MARA GUERREIRA POCAHONTAS S ROYAL EINSTEIN MISTERIOSA GIRASSOL VIOLETA FLOR PALOMA PLANTA Vazio repletos de nós: tecendo a rede educativa para adolescentes. Eu ensino e você aprende: laços que unem oprimidos Praticas instituídas entre campanhas e circuitos: vigilância aos corpos e sujeição ao modelo higienista 68 A discussão deste estudo encontra-se organizada em quatro capítulos: um para as condições de produção de discurso, e cada um dos capítulos subseguintes relacionam-se aos três núcleos de sentidos identificados. 69 EDUCAÇÃO EM SAÚDE COM ADOLESCENTES: PRODUÇÃO DO CENÁRIO 70 4 EDUCAÇÃO EM SAÚDE COM ADOLESCENTES: PRODUÇÃO DO CENÁRIO Compreender o setting que sustenta a discursividade dos sujeitos tornase fundamental no processo analítico das produções de sentido. As condições de produção do discurso podem ser classificadas como estritas (contexto imediato) ou amplas (contexto sócio histórico) (GOMES, 2007). Essa exterioridade imediata e histórica que se mistura com o enunciado produzido conduz a materialidade linguística às formações discursivas na busca por transpor a opacidade do texto (ORLANDI, 2007). As condições de produção dos discursos possuem pontos fundamentais. O primeiro deles apresenta-se na relação de sentidos, no envolvimento do discurso com outros dizeres, possíveis ou imaginários, e que se mantém num processo amplo, sem início absoluto nem final definitivo. Em sequência, o mecanismo de antecipação permite ao locutor antever os sentidos do interlocutor, conduzindo sua argumentação de acordo com o impacto predito. Como terceiro ponto, as relações de forças apresentam de onde fala o enunciador, qual o seu lugar no discurso do outro, lugar aqui compreendido como espaço de representações sociais constitutivo do campo das significações, sendo parte constitutiva do sentido do dizer (ORLANDI, 2001). Durante alguns anos, e desde o início de minha atuação profissional estive inserida no trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF), vivendo constante construção profissional mediante as diversidades que apontam diariamente nesse território. Tais diversidades não são conduzidas apenas pelas demandas comunitárias, mas por obrigatoriedades sistematicamente imputadas aos enfermeiros, seja por normatizações ministeriais ou mesmo local. Além de toda demanda gerada pelos “programas” de saúde, a obrigatoriedade de práticas educativas eram (e ainda o são) solicitadas ao enfermeiro. Busquei nesse encontro com os colegas tentar me aproximar da neutralidade nas opiniões (embora não me desnudo de meus conteúdos e percepções) na tentativa de ouvir o que está além, de não me ludibriar pela transparência da linguagem como apresenta Orlandi (2001), nem muito conduzir as reflexões estritamente direcionadas pela minha experiência. 71 Os enfermeiros participantes da pesquisa discutiram sobre educação em saúde, e teceram enunciações que apresentam suas relações com as práticas educativas direcionadas aos adolescentes. As condições que favorecem esse discurso são fundamentais para a compreensão de suas disposições discursivas e base ideológica, onde torna-se necessário compreender de que lugar fala esse enfermeiro, como ele se coloca para falar e trabalhar sobre esse adolescente e quais componentes estão envolvidos nos processos educativos desses sujeitos. O adolescente apresenta-se como ponto de tensão nessa emblemática problematização, pois compreendê-lo e significá-lo retrata o imaginário e desvela as relações de força mantidas entre esses sujeitos, pois aqui fala o “educador”, que se posiciona como profissional da saúde, decerto detentor do conhecimento “verdadeiro” para esse adolescente. O sujeito a quem é dirigida tal ação educativa é projetado, e através dessa projeção é que ocorre a organização e argumentação do dizer, compreendendo assim sujeito e situação enquanto condição para produção discursiva (ORLANDI, 2001). Considero também indispensável retratar o cenário onde os encontros ocorrem, trazendo assim o contexto imediato desses sujeitos, embora adiante o imediato apareça mesclado com o contexto histórico, pois o agora é partícipe da construção histórica do amanhã. Como critério para inclusão dos participantes no estudo, optei por escolher apenas os enfermeiros que tinham suas equipes cadastradas no Programa Saúde na Escola. Essa escolha em momento algum foi com intento de desmerecer os profissionais que não possuíam tal afiliação, mas por acreditar que estes condicionalmente trabalhavam a demanda educativa com adolescentes, objeto primeiro de nosso estudo. Digo assim primeiro, pois ao construir o caminho percebi que o trajeto me oportunizou outros objetivos reflexivos que veladamente estavam agregadas ao objetivo inicial e que precisavam ser desmembrados, revividos para elucidação da questão direcionadora do estudo. Mesmo de forma inconsciente, tal critério delineia uma produção para a discursividade desses sujeitos, constituindo a trama exclusiva em que estes profissionais estão inseridos, delimitando um espaço de fala único, que nos apresenta quem é esse profissional, de onde ele nos fala, suas subjetivações e objetivações para o porquê de seus dizeres e seu funcionamento. 72 4.1 O enfermeiro como educador Todo sujeito ocupa uma posição na sociedade, e esta constitui significados aos dizeres. Na busca pela imagem do sujeito enunciante dessa pesquisa, Orlandi (2001) nos apresenta questionamentos que direcionam a construção imaginária que em conjunto com o material e o institucional tecem as condições de produção do discurso. Tais interrogações nos possibilitam vislumbrar a posição do sujeito enunciador (quem ele é para falar assim?), tecendo assim possibilidades de compreensão para as formações discursivas desse locutor. Compreender o enfermeiro, o sujeito enunciante, no contexto sócio político da saúde brasileira me pareceu fundamental na disposição deste que fala e faz educação como pressuposto básico para a saúde. Optei nesse momento repensar sobre essa profissão no Brasil. Apesar de ser uma profissão antiga, a enfermagem moderna tem seu marco com Florence Nightingale, mulher de classe rica que se dedica a Enfermagem e a classifica como arte que requer treinamento organizado, prático e científico (COSTA et al, 2009). Mesmo após o advento nightigaleano, a construção histórica da enfermagem apresenta uma profissão que caminhou ideologicamente ao longo dos tempos num quadro de dependência/submissão social, política e institucional. No Brasil, o primeiro dispositivo legal da profissão aparece em 1890 com a criação da primeira escola de enfermagem que tinha o seu corpo docente composto por médicos (OGUISSO, SCHMIDT, 2010). O desenvolvimento de bases legais que ancorassem a profissão e o seu exercício foi lento e gradual, com lacunas temporais significativas, demonstrando a fragilidade política e social que cerceava essa categoria. Apenas em 1970, após a criação do Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Enfermagem, a profissão caminha para a criação de constituintes legais importantes para a categoria, obtendo como marco exponencial a lei 7.498/86 constituindo os dispositivos legais do exercício da profissão de Enfermagem (OGUISSO, SCHMIDT, 2010). A lei 7.498/86 ao ser regulamentada pelo decreto 94.406/87 traz detalhadamente as possibilidades de atuação do enfermeiro, delineando suas ações 73 privativas e possibilidades de atuação que até então não estavam claras. Entre essas possibilidades, e de acordo com a atual conjuntura de saúde brasileira (criação do Sistema Único de Saúde – SUS, e redirecionamento do modelo assistencial de saúde), a Enfermagem assenta-se como profissão atuante nas políticas públicas de saúde. Os profissionais participantes dessa pesquisa são enfermeiros da ESF, pilar estruturante na reorientação do modelo assistencial proposta pelo SUS, trazendo assim um sujeito discursivo único dentro da enfermagem profissional. Almeida e Barbosa (2011) apresentam que a atuação do enfermeiro na Saúde da Família tem sido a base da estratégia, principalmente no que diz respeito à articulação entre comunidade e serviço, trazendo consigo a responsabilidade de diversas práticas assistenciais, gerenciais e educativas. O enfermeiro da ESF traz consigo as marcas da reforma sanitária, onde a reorientação do modelo de assistência à saúde enfatiza a promoção da saúde. Na promoção da saúde algumas ferramentas têm sido consideradas mestras, apontando as práticas de educação em saúde como fundamentais para as mudanças almejadas na saúde da população. Tal necessidade foi lançada aos profissionais como diretriz de atuação, fazendo-se urgente na vivência de tais profissionais. Reporto-me agora aos enfermeiros, que trazem consigo uma responsabilidade especial em realizar práticas educativas. Essa responsabilidade tem seu bojo no delineamento das ações do enfermeiro de base comunitária desde os primórdios da prática educativa “na saúde” (RIZZOTO, 1999). Não me disponho a contradizer tal princípio, porém considero fundamental visitar o processo de formação do enfermeiro, e dialogar com os enunciados apresentados pelos sujeitos desse estudo, onde a educação em saúde apresenta-se como prática fundamental na assistência de enfermagem. Durante esse diálogo, além dos dizeres que apontam para essa essencialidade, alinhavo minha vivência acadêmica às produções científicas sobre a construção do profissional de enfermagem. A tecnização do cuidado mantém prioridade no desenvolvimento acadêmico, com exercícios semiotécnicos e práticas clínicas voltadas para o 74 processo de adoecimento dos sujeitos, condicionando a prevenção/promoção a reduzidos espaços de discussão comparados ao cuidado curativo. Recordo-me da ansiedade por aprender procedimentos técnicos e de preferência invasivos, minimizando a importância de ações básicas. A educação da enfermagem direciona o profissional e sua essência à produção de seu discurso e constituição de seu fazer (KRUSE; 2008, THERRIEN et al., 2008; BERNARDINO; OLIVEIRA; CIAMPONE, 2006). A formação acadêmica é determinante e direciona as práticas dos profissionais, então se os profissionais de enfermagem não são formados numa perspectiva crítico reflexivo, torna-se difícil vivenciar essa prática na assistência. Estudos apontam que os Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) dos cursos de enfermagem mantém de forma predominante uma metodologia tradicional de ensino, detentora atual de diversas críticas por não facilitarem o desenvolvimento do pensamento crítico reflexivo dos alunos, assim como desconsiderar os processos de subjetivação dos sujeitos (THERRIER et al, 2010; PEREIRA, TAVARES, 2010). As grades curriculares dos cursos de enfermagem embora disparem sobre a integralidade do cuidado, ainda mantém predominância do modelo Flexneriano, que capturam o profissional moldando sua prática e identidade profissional. (SILVA, SENA, 2006; NIEMEYER, SILVA e KRUSE, 2010; COLOMÉ, OLIVEIRA, 2012). O dispositivo educativo apresenta-se na academia (principalmente na graduação) de forma insipiente e prescritiva, onde a sentença “fazer educação em saúde” acaba por constituir-se na memória dos profissionais pelo método de repetição. São desproporcionais e escassas discussões sobre as correntes teóricofilosóficas da educação existentes, pressupondo que realizar o processo educativo é algo simples e que não carece de aprofundamento teórico que embase essa prática. Essa imagem pronuncia-se pela interdiscursividade dos enfermeiros ao apresentarem a prática de educação em saúde como constituinte essencial da profissão. Essa formulação parafrástica sustenta diversas enunciações durante as três dinâmicas realizadas, na tentativa de manter a essencialidade e vitalidade da educação como cuidado de enfermagem (principalmente na atenção primária): 75 LÍRIO: _Meu almanaque / “educação em saúde e enfermagem” (leitura do almanaque) destacando a educação // educar o próprio nome educação já diz, é educar, ai a enfermagem tem papel fundamental nisso (na educação) desde a nossa formação né, que a gente vem falando da educação, educação, educação (a gente quem? A academia? Os estudante? Os profissionais?)... Porém, durante as possibilidades reflexivas propostas pela dinâmica do almanaque, através do movimento grupal e inserção de diversas circunstâncias existenciais vivenciadas por esses atores, assertivas polissêmicas nos apresentam pistas da efemeridade dessa prática vista como essencial. Fragilidades teóricas desvelam-se entre os dizeres, dando visibilidade a uma prática desacreditada pelos próprios profissionais, que teima em tentar desaparecer na opacidade dos discursos, principalmente quando tal prática tem foco no adolescente: LÍRIO: _ Pra mim é novo! / Bem novo. Até pouco tempo atrás eu meio que rejeitava... PESQUISADOR: - Quanto tempo esse novo mais ou menos (pergunto a Lírio)? LÍRIO: _ Esse novo / quando a nossa equipe entrou no PSE propriamente dita, foi, há uns três quatro meses atrás quando a gente foi lá pro > GIRASSOL: Ah porque a equipe de vocês é nova né... LÍRIO: _ É, é nova no PSE, e como a minha prática antes como acadêmica não tinha esse papel de educação em saúde, nem pra gestante, nem pra idoso, nem pra nenhum / veio / quando eu cheguei na unidade que eu encontrei uma enfermeira que fazia (Educação em saúde) / então começou a despertar (despertar o que , a necessidade de fazer? O reconhecimento da importância?), mas eu tinha um certo receio, e eu to começando a despertar agora quando eu comecei a ir pras escolas, que realmente a importância né, na educação pro adolescente,[...] Apresenta-se assim a tensão produzida entre a paráfrase e a polissemia apresentada por Orlandi (2001), onde ao manter a matriz do dizer na essencialidade da prática educativa para a enfermagem, apresenta uma ruptura que conduz ao novo, ao ausente de sua prática acadêmica. Tal interrupção nos denuncia que a construção social de enfermeiro educador sofre importante deslocamento ao apresentar dificuldades em sua realização, apesar de considerada atividade básica como percebemos na fala de Rosa e confirmado pela assertiva de Violeta: 76 ROSA: _ Nem todo mundo tem afinidade com isso, apesar de ser uma das práticas da gente na atenção básica, mas nem todo mundo tem, né essa, essa > Violeta: _ Aptidão né! Essa aptidão é conclamada desse profissional, principalmente enquanto integrante de uma equipe de saúde. A composição mínima da equipe da ESF é mantida pelo enfermeiro, médico e agentes comunitários. Porém outras categorias profissionais da área da saúde podem contribuir no cuidado comunitário, integrando assim o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), instituída pela portaria nº 154/2008 (BRASIL, 2008a), que propõe a participação de outros profissionais junto a equipe de saúde da família para melhoria da assistência a comunidade. Compartilhar a prática educativa com outros profissionais não tem sido visto de forma positiva entre os enfermeiros. ROYAL: _ (risos) Um dos problemas é isso. A gente: vamos lá na escola, porque às vezes eu não quero ir só, porque fica muito sobrecarregado, chamo alguém do NASF, e ainda há algumas falta de informação, falta de comunicação, e depois: a culpa (culpa pelo quê?) é da enfermeira! [...] O enfermeiro é que tem que organizar (organizar tudo necessário para as ações educativas acontecerem), é que tem que mandar o cronograma. Vamos aqui sentar a equipe todinha, já que a gente tem o NASF, tem o médico, tem as dentistas, vamos sentar a equipe toda. Ai senta a enfermeira, e ela senta com a diretora, a diretora me passa, ai eu vou em cada sala saber que dia a pessoa (os outros profissionais da equipe) pode ir, o que ela pode fazer. É um trabalho meio que árduo, mais pras enfermeiras, não sei se pra vocês é assim, eu creio que é. A insistência na sobrecarga de trabalho deflagrada pela na dificuldade encontrada de participação da equipe multidisciplinar nas atividades educativas enuncia um dizer que transpõe as dificuldades de relacionamento interpessoal, ou de que o enfermeiro ao ser um exímio educador deve ser responsável por toda organização-realização das atividades educativas. Ele prediz o imaginário social que permeou ou permeia um profissional submisso e que tem em sua prática possibilitar o fazer do outro sempre de maneira invisível. Penso se o quadro de dependência/submissão que direcionaram a enfermagem durante tantos anos ainda cerceia as organizações e as relações, inclusive com outras profissões. Esse fazer condescendente dirige diversas obrigações do enfermeiro, principalmente as direcionadas por indicadores e metas interpostas pelo Ministério 77 da Saúde. Estes indicadores são geradores de recursos financeiros aos municípios. A realidade numérica por vezes se interpõe às necessidades de cuidado, direcionando as ações dos profissionais e comprometendo suas atividades educativas, muitas vezes reduzindo o espaço e o reconhecimento sobre a importância de tais ações. EINSTEIN: _ A minha prática educativa com adolescentes eu acho que é uma corrida contra o tempo (efeito metafórico para o curto tempo dentro das diversas atividades que tem), diante do, do número de funções que a gente tem no PSF né, a gente tá sempre atrás de metas, de indicadores, tem sempre uma meta a cumprir, tipo o número de adolescentes a serem vistos. MISTERIOSA: _ [...] mas esse ano com o PSE, infelizmente a gente não teve tempo ainda de tirar um dia só pra palestra, mas assim sempre que eu tô no PSE, na escola eu deixo aberto pra quando eles quiserem é, é dá um tema, a gente vai lá rapidinho e faz essa palestra. Apesar da trama simplista que ousa se manter parafrásticamente durante a discussão grupal, os efeitos metafóricos apregoados (corrida contra o tempo) em algumas enunciações apresenta a ideia de que a prática educativa pode sim constituir o profissional de enfermagem, mas que vem escoltado por diversos afazeres que pronunciam a dificuldade no exercício dessa prática, quem sabe até como uma ação materializada em segundo plano. Percebo o esforço dos enfermeiros em se reconhecerem como educadores, colocando por vezes as ações educativas como atividade intrínseca ao cuidar de enfermagem, porém, engendrada com perfil de excelência que nos permite interpretar tais ações (educativas) quase como um componente nato da profissão. Em algumas enunciações apresentadas, os enfermeiros apresentam características da posição sobre a qual esse profissional nos fala, onde a tentativa de impor a imagem do profissional como dominante da arte de educar e que direciona essa prática com maestria e simplicidade, aos pouco se dissolve nas enunciações polissêmicas do grupo. Durante a dinâmica, no questionamento referente à compreensão dos enfermeiros sobre as práticas de educação em saúde da enfermagem (ainda no geral, como constituinte profissional e não voltado a qualquer grupo específico), 78 percebi um reducionismo sobre tal fazer, como se o exercício educativo lhes fosse congênito conforme explicitado nos enunciados abaixo: Paloma: _ Eu botei aqui que é essencial né (referindo-se a educação em saúde), não tá dando pra enxergar direito (apresentando o almanaque), que eu acho que é essencial na nossa profissão, é essencial... a gente,/ nós somos educadores, verdadeiros educadores né, ai como educadores né, a importância, que é muito importante essa prática [...] JOSIANE: _Educar está no sangue da gente né! Retratar a face educativa do enfermeiro como visceral, como verdadeiros educadores, ou que tal prática possa estar no sangue dando ideia de constituição primeira desse profissional e naturalização dessas ações, podendo inicialmente promover a ingênua condição que a enfermagem possui essa qualificação como a priori de si, esquecendo-se da amplitude assistencial a que esse profissional está comprometido, dificultando, pois o exercício dessa prática educativa algumas vezes considerada “nata”, e que por si apresenta dificuldades no seu exercício. 4.2 O ser adolescente A compreensão sobre o adolescente e sua posição/atuação na sociedade tem sido alvo de discussão entre os diversos setores da sociedade. Encarar o adolescer em sua complexidade e diversidade é um processo desafiador e de luta pelos direitos humanos. É quase paradoxal a experiência de “ser” adolescente com direitos que, mesmo sendo universais, necessitam de conquista. Refletir sobre o momento da adolescência na perspectiva do autoconhecimento e descoberta de valores culturais e pessoais tem proposto evitar a rotulação dos sujeitos, propiciando assim o despertar de si mesmo (FREITAS e DIAS, 2010). Ribeiro e Gualda (2011) propõem trabalhar com os adolescentes respeitando sua cultura e estimulando suas competências pessoais na proposta de construção de um projeto de vida. As autoras enfatizam que a abordagem deve ser centrada no indivíduo e no grupo social, não com a função coercitiva, mas com foco 79 na promoção do desenvolvimento de habilidades pessoais e coletivas para a melhoria da qualidade de vida desse sujeito. Atualmente há a consideração do adolescente enquanto protagonista juvenil. Esta se constitui com participação ativa dos adolescentes em atividades de seu interesse, tanto individualmente como numa perspectiva coletiva (COSTA, 2001). Silva, Mello e Carlos (2010) nos propõem refletir sobre este protagonismo que nos instiga a repensar uma nova sociedade, abrangendo sua constituição política e social, assim como suas relações com esses jovens. Acredito na autonomia juvenil e suas possibilidades reais, contanto, concordo com as autoras que tal princípio requer reformulações sociológicas profundas, pois o que se mantém vivo no imaginário é o adolescente como ser confuso e em construção. Permito-me tais assertivas mediante experiência profissional dedicada aos adolescentes que me possibilitou enxergar um movimento emancipatório presente em falas, porém, profundamente marcado por práticas prescritivas e modeladoras, proveniente de raízes ideológicas profissionais e sociais em referência ao ser adolescente. Essa experiência a que me refiro foi construída num processo compartilhado com os enfermeiros participantes desse estudo, permitindo-me assim, confirmar as condições discursivas que se delineiam nessa relação enfermeiroadolescente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência compreende o período entre 10 e 19 anos, fase da vida caracterizada por grandes mudanças em termos biológicos, psíquicos e sociais. Garantir aos adolescentes e jovens a satisfação dos seus direitos e necessidades de forma a proporcionar-lhes um perfeito desenvolvimento físico, emocional, político e social torna-se fundamental ao julgar esse sujeito de forma mais ampliada (BRASIL, 2005). Entretanto, a adolescência se configura em um campo vasto de investigação. Não pode ser definida e vinculada apenas pela faixa etária e pelas mudanças hormonais e corporais. Pode ser pensada como uma experiência subjetiva de ruptura com a vida infantil e uma travessia rumo à vida adulta. Logo, o processo da adolescência é delineado também psiquicamente. Trago aqui nesse capítulo, uma leitura que não se faz unânime sobre o adolescente, mas que se apresenta impregnada nos discursos dos enfermeiros 80 mantendo uma matriz que converge para o reconhecimento biológico desse ser, por vezes descartando o constituinte afetivo, psíquico, político, familiar e social que tramam para a complexidade do adolescente. Afirmo assim, que o processo de adolescer perpassa diversos pontos de vista. Nasio (2011) reflete sobre a adolescência através de três prismas: psicanalítico, biológico,e sociológico. Reconheço a existência de outras condições que são componentes de sua constituição, porém gostaria de refletir sobre essas três percepções com auxílio do autor referenciado. Na visão psicanalítica, a adolescência é uma vivência neurótica saudável, onde o ser transita com facilidade entre os extremos comportamentais e emocionais, sendo um momento compreendido como normal e vital para a constituição do adulto (NASIO, 2011). A gênese da adolescência é um processo, uma continuidade que fundamenta o sujeito contrariando o imaginário de crise evidenciada pela sociedade. Corso (2002, p.19) diz que “a adolescência é a edição encadernada de uma série de papeis que permanecem avulsos, que dormiam em gavetas, que circulavam como bilhetes clandestinos”, ou seja, é o momento de consolidar processos subjetivos existente na continuidade de formação do eu. A autora ainda discorre sobre o adolescer por sua perspectiva edípica, latente e púbere, explicitando o processo de separação entre pais e filhos na vigência de um segundo parto: o de um sujeito sexuado e desejante que depende de outro para que se efetue tal desejo. Biologicamente, Nasio (2011) reforça o conceito predominante no imaginário social, que corrobora a adolescência como período da puberdade, onde o organismo sexual eviscera sobrepondo todos os outros. Esse instante marca a capacidade de procriação. A sexualidade é um componente intrínseco ao ser humano, e sua abordagem é fundamental na promoção da saúde integral de adolescentes e jovens. As relações sexuais têm início na adolescência, variando de 13,9 a 14,5 anos para estudantes do sexo masculino e 15,2 a 16 anos para as meninas sem variações significativas quando comparados quanto à região (ABRAMOVAY; CASTRO; SILVA, 2004). 81 O direito à saúde obtido pelos adolescentes assegura assistência integral, com garantias de confidencialidades e atendimento singular. A área da saúde sexual e reprodutiva foi a mais beneficiada. Nessa etapa da vida, a corporalidade assume lugar importante, pois mudanças como aparecimento de pelos e mamas, crescimento e desenvolvimento de genitais, alteração no timbre vocal, e o despertar do corpo para a sexualidade não passam despercebidos. Adentrando ao ponto de vista da sociologia, o adolescer representa a transição da infância para fase adulta, onde tal período depende de características ou ritos culturais previamente definidos. A cultura jovem é difundida em diversos espaços marcados por sua linguagem, atitudes, roupas e estilos. Os adolescentes rejeitam padrões já determinados; “ele cria, em muitas ocasiões, uma linguagem própria” (DAVIM et al. 2009, p. 136). Essa linguagem constitui criação cultural e estrutura de uma consciência grupal que conecta esses jovens com as pessoas e espaços. Considero a compreensão do ser adolescente pelos profissionais envolto em movimentos de antecipação e por relações de forças entre o locutor (enfermeiro) e o interlocutor (adolescente). Tais mecanismos são fundamentais para a construção das formações imaginárias que se relacionam intimamente com as sequências discursivas do locutor em relação ao objeto (educação em saúde) e aos interlocutores, significando assim condições de produção de discursos únicos (ORLANDI, 2001; ORLANDI, 2007). Tais condições evoluem para o apagamento no dizer dos locutores devido ao sentido atribuído por suas palavras nas condições específicas que se encontram e que se apropriam como seus, dando assim pistas de seus contextos ideológicos. Nesse entremeio, enquanto analista desse discurso, procuro compreender o sentido de suas falas através do funcionamento de seus dizeres, suas posições em relação a si e em relação ao adolescente. Durante a discussão a respeito do capítulo construído no almanaque sobre as práticas educativas dos profissionais direcionadas aos adolescentes, um dos direcionamentos foi à compreensão desse sujeito como um ser sexualmente ativo, e tal prática como indicativo de risco. 82 O reconhecimento de ser esta uma fase complexa e única permeou a discursividade do grupo, apresentando o imaginário desses profissionais a respeito do adolescente construído pelo movimento antecipatório. Essas projeções ficam notórias em dizeres explícitos, que trazem a vivência pessoal do profissional como lente para o relacionamento com o adolescente. JASMIM: _ [...] eu me uso de exemplo muitas vezes é que na adolescência parece que você tá imune a tudo quanto é doença, é incrível como na adolescência você não apresenta um problema [...] GUERREIRA: _ [...] eu tive conhecimento, eu tive escola, eu tive pai, eu tive mãe, pra eu poder ajudar porque eles não tiveram nada do que eu tive, então... o que eles vivem é o reflexo do que eles vivem todo dia, é uma consequência do que eles tem dentro de casa. Os recortes acima determinam a projeção pessoal do enfermeiro sob o adolescente. Enquanto utilizam suas inferências pessoais, o não dito que sobressai desses discursos é a falta de subsídios teóricos que direcionem o cuidado de enfermagem para o adolescente, pautando-se numa projeção imaginária do senso comum, mas não necessariamente representativa para o cuidado de enfermagem. Outra representação que permanece sobre o adolescente e que direciona o dizer dos enfermeiros é a condição da sexualidade apenas ligada ao ato sexual e suas possíveis consequências. Aqui retomo o componente biológico que compõe a tessitura do adolescer, onde não me permito negar a importância da biologicidade nesse ente e todas as suas implicações para o cuidado e olhar da enfermagem. As falas dos enfermeiros foram direcionadas ao adolescente no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, corroborando com o interesse dos estudiosos em abordar a sexualidade dos adolescentes (FERREIRA; PINHEIRO, 2010; FREITAS; DIAS, 2010; BAGGIO et al., 2009; CAMARGO; FERREIRA, 2009; TAQUETTE, 2009; SOARES et al., 2008; MOREIRA et al., 2008; CAMARGO; BOTELHO, 2007; BESERRA; ARAÚJO; BARROSO, 2006; MARQUES et al., 2006; ALMEIDA; SILVA; CUNHA, 2005; MIRANDA; GADELHA; SZWARCWALD, 2005; TAQUETTE et al., 2005). Os trabalhos citados em sua grande maioria foram realizados por enfermeiros, e apresentavam como tecnologia de cuidado ao adolescente a educação em saúde. 83 Estudos encontram-se também voltados para a perspectiva de atuação na prevenção de gravidez na adolescência e sobre os cuidados que estas devem ter com recém-nascidos (FREITAS, DIAS, 2010; BERETTA et al, 2011). Outro ponto de repetição apontado na literatura é a necessidade de discutir sobre as doenças sexualmente transmissíveis, com ênfase na Aids. Tal tendência se deve a uma concepção restrita de saúde que considera assuntos como DST/AIDS e anticoncepção mais importantes. A busca pelo objeto sexual e seus possíveis desdobramentos (DST, gravidez) permeiam a realidade dos adolescentes, mas não representam a totalidade de seus interesses. Os enfermeiros reproduziram nos três encontros a preocupação em relação à gravidez desse adolescente, colocando tal situação como preditora de um perfil carreado pela irresponsabilidade e impossibilidade autônoma de decidir engravidar: Essa corresponsabilização e repreensão cultural apregoa através do que não é explicito em alguns momentos, a incapacidade desse jovem de pensar ou tomar decisões conscientes, principalmente no que se refere à vivência da gravidez, um lapso ocorrido, onde a simples ideia de um ato pensado e desejado não é permitido existir em virtude da impossibilidade reflexiva desse sujeito. A compreensão do adolescente vazio de conteúdo e iniciativa mantém-se além dos não ditos, constituindo-se parafrasticamente em diversas falas, fomentando o que Orlandi (2008) apresenta como famílias parafrásticas entre o que se explicitou e o que foi rejeitado para o não dito, levando a inclusão do dizer como seu. A alusão metafórica ao plantio do conhecimento no adolescente pontuada em duas das dinâmicas por alguns enfermeiros arremata o imaginário de adolescentes como seres vazios, incapazes, que necessitam de seu semeador, e os enfermeiros se colocam em posição de realizar esse plantio. Tais momentos retratam o enfermeiro em sua onipotência em educar para a saúde, onde os indivíduos após suas intervenções estão aptos a desenvolver suas bases ideológicas e enveredarem pelo caminho denominado de certo. Os profissionais tomam pra si uma verdade que acreditam ter origem neles e que determina a direção de suas relações e as consequências na vida do outro. 84 Nesse momento inscreve-se o que Orlandi (2008) chama de eficácia de assujeitamento, em que o locutor profere acreditar em sua autonomia, e ao assim proferir, evolui para a estabilidade referencial, mantendo a ilusão de transparência dos sentidos. Retomarei essa posição mais adiante nos capítulos em que discutiremos os núcleos de sentido produzidos pelo discurso dos participantes do estudo, onde a posição de “semeador” transversaliza uma ideologia opressora e tradicional nas relações educativas. A diversidade de comportamentos vivenciada pelo adolescente vista como psiquicamente normal, é uma marca que acompanha esse jovem. O olhar direcionado às diferenças muitas vezes produz uma interpretação de atitude moral duvidosa, ou apresenta-se como dificultantes dos relacionamentos. Concebe-se como algo laborioso no processo educativo. Reconheço em minhas experiências educativas com adolescentes uma estrutura diferenciada para o trabalho. Não nego a necessidade de conhecimento teórico-prático diferente na interação com esses sujeitos, considerando suas especificidades coletivas e subjetividades individuais. Nasio (2011, p.31) nos propõe um olhar prático mediante o adolescente, que considero extremamente figurativo e potencial contribuidor para direção do imaginário: Quando se está na presença de um jovem, devemos pensar que dentro dele – da mesma maneira que a cada segundo perdemos imperceptivelmente uma célula do nosso corpo,- ele perde a cada segundo uma célula de sua infância. É uma perda sorrateira que não se vê nem se sente, mas que persiste inexoravelmente até a conquista da maturidade. A compreensão da perda nesse momento transicional deve ser levada em consideração junto ao referencial teórico que direcionará nossas práticas. Essas peculiaridades são percebidas pelos enfermeiros, parafrasticamente apresentando suas dificuldades pessoais, porém encostando através do não dito suas fragilidades teóricas no trabalho com adolescentes. VIOLETA: _ Assim... eu coloquei aqui né, que, que, educação em saúde com adolescentes não é uma coisa fácil né. Que você tem que usar uma linguagem diferente, coloquei aqui uma linguagem diferente, [...] pra mim é um desafio, preciso vencer esse desafio, 85 porque como foi falado / e eu já coloquei, como nessa imagem aqui (apresentando o almanaque), porque os adolescentes são muito sonhadores, né, eles né, idealizam muito, eles né, eles querem conquistar uma (INAUDÍVEL) [...] você tem que ter todo um jogo de cintura porque cada adolescente é uma maneira diferente, cada um com uma coisas diferente né, eles tem uma necessidade muito grande de auto afirmação né, querem mostrar pro coleguinha que né, que é melhor que pode ser o melhor, e pra mim é um desafio ainda, que eu preciso reconhecer que eu preciso vencer, que eu preciso superar. A linguagem, os pensamentos, os sonhos, as diferenças e a autoafirmação aparecem como marcas na imagem que os profissionais constroem dos adolescentes. Durante o movimento discursivo percebo nessas enunciações não apenas o reconhecimento desses componentes como naturais do processo de adolescer, mas um dizer que sustenta tais traços como fatores dificultadores para a prática do profissional, onde seus saberes podem ser desafiados pela dinâmica de mundo do adolescente, destituindo-os da soberania do saber. O jogo simbólico aqui apresentado pelo que não foi dito traz o trabalho ideológico e inconsciente desses profissionais em relação ao adolescer. 4.3 A escola, o PSE e a Unidade Básica de Saúde Muitos fluxos e trabalho na saúde são criados a partir de diretrizes e normatizações ministeriais. A Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) nasce das necessidades da população de uma vida mais saudável, constituindo-se como importante marco político/ideológico na construção do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2009). Como estímulo a intersetorialidade e o fortalecimento da participação popular, a escola começa a ser (re)visitada como privilegiado espaço de relações, onde os diferentes sujeitos que constituem tal instituição devem participar de forma ativa e crítica na construção de valores que contribuem na produção social da saúde (BRASIL, 2009). Com a bandeira do direito à vida com qualidade, com saúde e educação, compromissos são assumidos por alguns setores com propostas estratégicas e operacionais capazes de subsidiar e/ou intermediar transformações. 86 Assim, em 2003, o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, em ação conjunta com a Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) despontaram com uma ação em busca de promoção de saúde de adolescentes e jovens, o programa Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) (BRASIL, 2006). Como cerne inicial do SPE, destaca-se a saúde sexual e reprodutiva, questões referentes às Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), gravidez não planejada na adolescência e assuntos relacionados às questões de etnia, gênero e violência, entre outros, sempre estimulando discussões entre educadores, alunos, pais e profissionais de saúde (BRASIL, 2006). Posteriormente, esta proposta veio a compor uma política de assistência maior: o Programa Saúde na Escola (PSE), instituído pelo Decreto nº 6.286 de 2007 (BRASIL, 2007). Este apresenta a urgência de ações de saúde sistemáticas junto aos adolescentes, motivando os profissionais de saúde a deslocarem a atenção curativa assistencial do espaço ambulatorial ao escolar, com uma perspectiva preventiva e ampliada. Além de ações de saúde destinadas à saúde sexual e reprodutiva, a atenção à saúde integral dessa faixa etária tornava-se prioridade (BRASIL, 2009). Os principais objetivos desse programa são: I- Promover a saúde e a cultura de paz, reforçando a prevenção de agravos à saúde; II- Articular as ações da rede pública de saúde com as ações da rede pública de Educação Básica, de forma a ampliar o alcance e o impacto de suas ações relativas aos estudantes e suas famílias, otimizando a utilização de espaços, equipamentos e recursos disponíveis; III - contribuir para a constituição de condições para a formação integral de educandos; IV - contribuir para a construção de sistema de atenção social, com foco na promoção da cidadania e nos direitos humanos; V - fortalecer o enfrentamento das vulnerabilidades, no campo da saúde, que possam comprometer o pleno desenvolvimento escolar; VI - promover a comunicação entre escolas e unidades de saúde, assegurando a troca de informações sobre as condições de saúde dos estudantes; e VII - fortalecer a participação comunitária nas políticas de educação básica e saúde, nos três níveis de governo. (BRASIL, 2007a, p.01) 87 As ações de saúde previstas no âmbito do PSE devem considerar os aspectos de promoção, prevenção e assistência em saúde, explorando a escola como espaço potencializador para promover a educação para saúde entre crianças e adolescente (BRASIL, 2009). Pensou-se na escola constituindo cenário educativo propício para construção de saberes a partir de diferentes olhares: alunos, familiares, professores e funcionários. A esse entrelaçar de saberes e vivências convencionou-se chamar de “cultura escolar”. A vivência escolar é considerada por muitos como a abertura do mundo familiar para a complexidade do mundo (social, política e econômica) (BRASIL, 2009). Esse espaço que figurativamente funciona como ponte a essas realidades torna-se a aposta das políticas ministeriais (saúde e educação) como catalisador da promoção da saúde. Pressupõe-se que tal processo construtivo deva ser pautado pelo estímulo da autonomia dos sujeitos e da participação ativa das equipes de saúde da família (DEMARZO; AQUILANTE, 2008). Acredito que tal vivência deva fomentar a utilização de técnicas e métodos participativos que transceda os limites físicos escolares, conduzindo a comunidade a participar desse movimento educativo. Pontuo adiante a sugestão apresentada no caderno da atenção básica que propõe a operacionalização das ações do PSE. Conhecer tais sugestões se fazem necessárias para que possamos engendrar as considerações dos enfermeiros que possuem suas equipes de saúde vinculadas ao PSE, nos possibilitando conhecer como a discursividade desses profissionais funciona face ao contexto de inserção. As considerações apresentam particularidades gestadas em diretrizes, e que são produtoras de realidade específica desses sujeitos. A matriz de ação que se propõe ás equipes do PSE é que inicialmente seja realizado diagnóstico situacional da escola em que irá atuar como subsidio para elaboração de um projeto de intervenção estratégico e sistematizado para as ações de saúde na escola. As diretrizes pontuam que devam ser levadas em consideração as prioridades nacionais para a área de promoção da saúde como balizadoras para as propostas de atuação. As propostas devem sem fixadas pela equipe de saúde em 88 conjunto com a comunidade, devendo identificar assim potenciais multiplicadores (BRASIL, 2009). Na promoção da saúde os projetos devem ser dirigidos para: a) Conscientização da comunidade para a vulnerabilidade dos estudantes face aos riscos ambientais que constituem as principais ameaças à sua saúde, em geral, poluição atmosférica, saneamento inadequado, ruído, substâncias químicas, radiações, entre outros, e as formas de reduzi-los; b) Envolvimento dos estudantes nos projetos de educação para o ambiente e saúde; c) Promoção da segurança e contribuição para a prevenção de acidentes: rodoviários, domésticos e de lazer ou trabalho, quer eles ocorram na escola e no espaço periescolar; d) Monitoramento dos acidentes ocorridos na escola e no espaço periescolar; e) Avaliação das condições de segurança, higiene e saúde nos estabelecimentos de educação e ensino, incluindo cantinas, bares e espaços de jogos e recreios; f) Intervenção em áreas prioritárias para promoção de estilos de vida saudáveis: saúde mental, saúde bucal, alimentação saudável, atividade física, ambiente e saúde, promoção da segurança e prevenção de acidentes, saúde sexual e reprodutiva, educação para o consumo; g) Criação de mecanismos e estratégias de enfrentamento das violências, em todas as suas dimensões, bem como a difusão e a promoção da cultura de paz nas escolas brasileiras (BRASIL, 2009, p.17). O PSE apresenta a necessidade de atendimentos clínicos e psicossociais direcionados as crianças e adolescentes escolares, onde estes devem ter acesso pelo menos uma vez por ano a tais avaliações (BRASIL, 2008). Em seus fundamentos estão inclusos medidas educativas como se apresenta: Orientações em relação à nutrição, à prevenção do uso de drogas, aos cuidados com os dentes, à prevenção a violência (física, sexual e bullying ou assédio moral, como ficou reconhecido no Brasil), à alimentação saudável e à prática de atividades física, à prevenção de doença sexualmente transmissível, ao aconselhamento contraceptivo, à cultura de paz, entre outras (BRASIL, 2009, p. 21). As diretrizes apresentadas no caderno de atenção básica reconhecem não existir consenso em torno de como deve ser feita tal assistência, deixando a critério das equipes locais envolvidas no PSE o planejamento e execução que melhor se adapte ao contexto vivenciado (BRASIL, 2009). O município de Maracanaú adere ao PSE no ano de 2008, com sua implantação efetiva apenas em 2009. Encontros de planejamento e momentos formativos foram articulados e realizados com profissionais da saúde e educação. 89 Tais momentos foram direcionados por trocas de experiência e estudos de casos fomentando a discussão que objetivasse a superação de desafios (MARACANAÚ, 2010). Nesse instante, 17 equipes de saúde da família e seis NASF’s apoiavam 19 escolas estaduais e municipais envolvidas no programa. Em 2010 184 ações educativas foram registradas por essas equipes, apresentando como cenário de execução a escola e unidades básicas de saúde da família (UBASF). As ações informadas ao núcleo gestor central centraram-se em realização de oficinas, palestras, campanhas educativas, cursos de formação de agentes jovens multiplicadores, além de escovação supervisionada, aplicação de flúor, aferição de medidas antropométricas e valores pressóricos e glicêmicos. Não pude identificar nos relatórios de gestão relatos detalhados de quais profissionais realizam quais atividades, impossibilitando conhecer em detalhes a prática educativa da enfermagem. Porém um número se faz presente e registrado: 1270 consultas de enfermagem de crianças e adolescentes do PSE (MARACANAÚ, 2010). Os relatórios municipais criticam a impossibilidade de garantir detalhamento das ações realizadas no PSE assim como a real apresentação dos dados devido à impontualidade na entrega dos relatórios mensais a gestão central. A responsabilidade no envio do consolidado mensal é do enfermeiro da equipe. Os relatórios demonstram que algumas equipes de saúde realizam ações esporádicas e pontuais, fragilizando assim o alcance dos objetivos almejados (MARACANAÚ, 2010). Alinhado as atividades inconsistentes, o governo federal resolve através da portaria interministerial nº 1.910 de 8 de Agosto de 2011, associar a renovação dos termos de compromisso do PSE entre as Secretarias Municipais de Saúde e Educação a pactuação de metas executáveis na vigência do programa para o repasse financeiro (BRASIL, 2011). Nesse pactuação ficam definidos dois componentes essenciais de cobertura de ação, condicionando o repasse financeiro ao cumprimento de tais metas: Ficam definidos, por Componente, os Parâmetros Essenciais de cobertura das ações de prevenção, promoção e atenção à saúde dos escolares do Programa Saúde na Escola (PSE), seno eles: 500 90 escolares/ano por Equipe de Saúde da Família para as ações do componente I – Avaliação Clínica e Psicossocial e 1000 escolares/ano ou 100% dos escolares em caso inferior a 1000 escolares no Município, por Equipe de Saúde da Família, para as ações do Componente II – Promoção e Prevenção à saúde (BRASIL, 2011, p. 49). As linhas de ação que constituem o Componente I são: avaliação antropométrica, atualização de calendário vacinal, detecção precoce de agravos negligenciados (prevalentes na região: hanseníase, tuberculose), avaliação oftalmológica, avaliação auditiva, avaliação nutricional, avaliação da saúde bucal e avaliação psicossocial. O Componente II relacionado às ações de promoção e prevenção à saúde aparecem guiados por ações de segurança alimentar e promoção da alimentação saudável, promoção das práticas corporais e atividades física nas escolas, educação para a saúde sexual e reprodutiva, prevenção das DST/Aids, prevenção ao uso do álcool, tabaco e outras drogas, promoção da cultura de paz e prevenção das violências e promoção da saúde ambiental e desenvolvimento sustentável (BRASIL, 2011). Ainda existe o Componente III, voltado para educação permanente e capacitação dos profissionais da educação, saúde e dos jovens do PSE. Esse componente, porém não é condicionante ao recebimento do recurso (BRASIL, 2011). O Grupo de Trabalho Intersetorial (GTI) que gere o recurso acompanha e monitora o PSE no território resolve dividir as ações e potencializar a força de trabalho no alcance de metas dos dois componentes. Baseados na cláusula quinta, item b da portaria 1.910/2011 que fala sobre a inclusão dos temas do PSE nos projetos políticos pedagógicos das escolas, o GTI institui que o Componente II ficaria na responsabilidade dos educadores escolares, tendo a equipe de saúde como apoiadores (MARACANAÚ, 2011). Instituiu-se também em 2012 o dia “D” de promoção da saúde denominado “Circuito de Saúde”. O circuito é uma ação multidisciplinar das equipes de saúde da família e NASF nas escolas vinculadas ao PSE. Essas equipes devem ir mensalmente as escolas e realizar os atendimentos clínicos e psicossociais determinados no Componente I com vistas a atingir o quantitativo pactuado na adesão do programa (MARACANAÚ, 2011). 91 Optei em apresentar o desenrolar da trama do PSE no âmbito federal e municipal por entender que tal processo tornou-se decisório e produtor histórico de condições para as ações/enunciações dos enfermeiros. Reconhecer as condições produtoras dos discursos dos enfermeiros que trabalham educação em saúde com adolescentes nos possibilita vislumbrar o enredo que enlaça a linguagem e o social. Orlandi (2008) apresenta a discursividade como a inscrição dos efeitos da língua na história, ou seja, a íntima relação da língua com a exterioridade. Chama-me a atenção uma instituição legal que olha para a infância e adolescência e prediz possibilidades ampliadas de cuidado, e paradoxalmente reforça através de metas remuneradas a importância ao cuidado biológico. Não desconsidero o componente educativo proposto por tal política, porém, o vislumbro numa posição secundária, confirmada pela política municipal implantada (circuito). Tais pensamentos são impostos nos discursos que emergem nos grupos, suplantando a educação em saúde no fortalecimento das ações propostas pelos circuitos de saúde. Organizo e explico melhor mais adiante. Durante o dialogo do primeiro e terceiro grupo, predomina um deslizamento metafórico que mantém o mesmo dizer (paráfrase) de acordo com o ajustamento histórico local, onde a interpretação do que seria a prática de educação em saúde reconhece na constituição do PSE o proferido, com sua produção textual dita metaforicamente: GUERREIRA: _Então assim, foi um vínculo que eu criei trabalhando isso com eles né. Não trabalhei nenhuma temática de saúde na primeira parte, até porque na primeira parte eu não era do PSE, eu fiz porque a minha linha de pesquisa como era em violência, e era uma área que tava apresentando um número elevado de mortes em adolescentes, eu entrei lá porque quis e fiz um PSE (ações educativas) sem, sem dizer a secretária que tava fazendo um PSE. ROYAL: E a interação com esse grupo, tanto com os alunos né, com a equipe, eu sinto que, só eu procuro,/ só eu estou procurando o PSE, porque no momento que eu bato na sala da assistente social da AVISA, _olha a escola solicitou isso aqui, e ai como é que nós vamos fazer (reproduz diálogo com assistente social da equipe)/ Eu é que tô procurando, ela não tem o estímulo de procurar e dizer: e ai vamos lá na escola? / né colega. 92 Em diversos momentos durante a discussão sobre como eram realizadas as práticas de educação em saúde os profissionais deslocam o sentido da prática educativa substituindo para o termo PSE. Nos recortes acima, Royal afirma que está procurando o PSE, onde este retoma o sentido de realizar as práticas educativas. Significativo o termo acima onde o gerúndio procurando apresenta a ideia de progressão indefinida da ação, onde aqui, tal ação é representada pelo PSE enquanto prática educativa que não se apresenta concreta. Guerreira traz em sua discursividade um fazer PSE (práticas educativas) sem o conhecimento da secretaria de saúde, revelando um não dito de uma prática condicionada à aprovação de uma gestão maior e não como atividade autônoma do enfermeiro. Orlandi (2001, p.44) afirma que “palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes”. A depender do contexto e de como é colocado o termo PSE tanto atua metaforicamente como prática de educação em saúde, como representa o próprio programa que se institui, ou em outro momento representa as ações realizadas pelo circuito de saúde (atendimentos clínicos). Tal equívoco desvela seu constituinte ideológico quando transfere o modo de significar essa palavra (o Programa, para educação e saúde), onde em seu contexto de atuação é traduzida pela implantação do circuito de saúde, que prioriza atendimentos clínicos ao invés de educativos. Tal metaforicidade esteve presente nas três dinâmicas de sensibilidade e criatividade, trazendo a presença marcante do circuito de saúde nas ações do PSE, suscitando questionamentos quando por ocasião Rosa relata experiências educativas em paralelo ás atividades clínicas: ROSA: _Então eu tenho uma realidade um pouco diferente. Há pouco tempo a gente terminou um grupo de adolescentes no posto, foram duas turmas e a gente tinha procurado captar os adolescentes... é essa captação pra levar pro posto através da escola, a escola da área, da equipe a gente foi na escola captar esses adolescente e nós formamos um grupo e eles iam ao posto, então foram duas turmas. E como PSE também a gente desenvolve atividade na escola agora com esse novo modelo circuito, sempre a gente tem*..., desde quando a equipe*..., NASF, essa questão do PSE, então a gente abraça esse compromisso, de ter o jovem, o adolescente como foco né, ligado ao PSE, como quem diz, cada 93 equipe, equipe que tá no PSE querendo ou não a gente vai ter que desenvolver com os adolescentes né. PAMELA: _Vocês fazem educação em saúde com os adolescentes (é uma pergunta com estranhamento pela fala de Rosa)? ROSA: _É, com os adolescentes. Uma vez por mês, na época do PET1 nós íamos duas vezes no mês de 15 em 15 dias né, agora por conta do circuito que tem que levar todos os profissionais né a gente tá fazer uma vez ao mês, mensal. O dialogo apresentado por Rosa deixa clara a dicotomia que modulou a implantação do circuito como estratégia de saúde na atenção ao adolescente. Aqui, o PSE retratado vem se constituir enquanto Programa, diretriz, intimamente ligado a práticas clínicas/biológicas. Pamela ao questionar Rosa sobre a possibilidade de práticas educativas no PSE mantém um não dito que conclama as ações desses profissionais direcionadas por protocolos, onde os mesmos devem ser seguidos à risca, produtora assim de estranheza e questionamentos sobre a execução das ações que se “desviam” do preconizado. Partindo dessa perspectiva dos protocolos de cuidado que enrijecem as práticas dos enfermeiros me aventuro a apresentar as reflexões de Cecilio (2012) que nos propõe a “não fazermos mais o mesmo”. Tal proposição é relativa à organização dos processos de trabalho no campo da saúde que nos leva a refletir sobre o regime governamental/formal como complexo regulador ao acesso e consumo dos serviços de saúde. Para fugir do mesmo, o autor reflete que deveríamos acimentar um regime de regulação subsidiado pelas relações dos trabalhadores de saúde e comunidade, onde o cuidado é vivenciado por seres reais. Ao se moldar de acordo com os saberes produzidos nessa relação haveria reinvenção do cuidado, provavelmente distanciado das normatizações dos gestores. Percebi durante a problematização sobre o PSE certa confusão em definir com clareza quais os seus propósitos e suas ações norteadoras, pois como acima referenciado ora os enfermeiros metaforizam o PSE como sua prática educativa, em outros momentos questionam tais práticas realizadas na vigência do programa, 1 Programa de Educação pelo Trabalho na Saúde do Ministério da Saúde que estava em vigência no município e possuía uma linha de pesquisa que trabalhou educação em saúde com adolescente 94 assim como demarcam o circuito como atendimento clínico com possibilidade ampliada. No momento em que questiono sobre o que seria o circuito, Mara confirma ações de cunho biológico, porém desliza em questões sociais de forma despercebida como se todas tivessem o mesmo desenvolvimento e objetivo. PESQUISADOR: _Esses circuitos eles são mais atendimentos clínicos ou tem a parte >? MARA: _ Circuito é mais atendimento, uma visão física e clínica ao mesmo tempo, porque você tanto olha pressão, olha altura, olha o peso, como você pergunta se ele tá sofrendo bullyng, se ele tem algum tipo de... já sofreu, se alguém tem algum preconceito, vc pergunta se ele tem o registro, se ele passa por algum problema, você pergunta se ele tem tosse, se ele tá... ROSA: _se é sintomático, sintomático respiratório, dermatológico. Em outro momento a confusão aparece claramente no discurso de Misteriosa, que tal como Guerreira delimita o PSE em dois momentos, o antes do circuito, onde reconhecem esse PSE quase como sinônimo de educação em saúde no antes, e o agora, onde predomina a prática clínica. GUERREIRA: ... _ Quando eu ia pras escolas o que eu via era que: eu fazia uma pesquisa do que é que eu queria que eu conversasse com eles, isso no primeiro PSE, vamo falar do circuito [...] Não trabalhei nenhuma temática de saúde na primeira parte, até porque na primeira parte eu não era do PSE, eu fiz porque a minha linha de pesquisa como era em violência, e era uma área que tava apresentando um número elevado de mortes em adolescentes, eu entrei lá porque quis e fiz um PSE sem, sem dizer a secretária que tava fazendo um PSE. [...]E o que é que eu vivo aqui nesse circuito, eu tenho pouco contato (pouco contato com os adolescentes), o contato da enfermeira é olhar cartão de vacina, fazer uma avaliação geral, então eu acho que o vínculo ele se perde muito né, deixa de ser semanal, deixa de ter uma escuta de um problema dele, o que é que ele tá querendo (ele quem, o adolescente?) conversar naquele momento. MISTERIOSA: _Assim, com relação a prática é mais é conversa, discussão, palestra, apresentação de vídeo, essas coisas, mas assim, isso foi mais o ano passado, mas esse ano com o PSE, infelizmente a gente não teve tempo ainda de tirar um dia só pra palestra, mas assim sempre que eu tô no PSE, na escola eu deixo aberto pra quando eles quiserem é, é dá um tema, a gente vai lá rapidinho e faz essa palestra. 95 Nessa acepção de trabalho convergem propostas clínicas e educativas. Não pretendo de nenhuma forma uniformizar as ações nem conclamar sua independência, mas entendo que a indistinção dos objetivos de todas as práticas contribui para um fazer quase caótico e talvez vazio de sentidos. Há de se perceber a incompreensão sobre a solubilidade dessas ações quando apontado por Guerreira (um primeiro PSE) e por Misteriosa (mas esse ano com o PSE, infelizmente a gente não teve tempo ainda de tirar um dia só pra palestra), onde ao se instaurar o componente clínico, este automaticamente exclui a prática educativa. Ao considerar o processo educativo como ferramenta para o cuidado, deve-se preterir os pressupostos que se assentam nos sujeitos, inclusive a clínica do indivíduo. Este deve ter espaço para a compreensão e participação, se considerado e reconhecido verdadeiramente como ator de sua história, inclusive como ser biológico (PIRES, MUSSI, 2009). Percebo que esta compreensão totalitária apresenta-se como uma das principais dificuldades dos enfermeiros, disparando um descolamento entre sujeito/ser e sujeito/biológico, dicotomia esta que direciona a prática marcada pelo “antes” e “depois” da instituição do PSE. O enrijecimento de compreensão dessa prática vai além do direcionamento das ações, institui-se na apropriação dos espaços de atuação. Aqui falo desse lugar imposto pelo PSE, que mobiliza um grupo a atender demandas biológicas (lideradas pelo circuito), desestabilizando e desvinculando de uma prática educativa já fragilizada. Sustentou-se o dizer parafrasticamente na manutenção da vitalidade do ambiente escolar, como se a essência educativa não sobrevivesse fora desse local. PESQUISADOR: _Bom meninas, é assim a gente queria fazer uma rodada seguindo cada tópico né, primeiro que cada uma pudesse falar um pouco sobre o que pensou e o que produziu sobre o que é educação em saúde na enfermagem / né, que é, é uma coisa assim, que a gente pede inclusive que diga não no que a gente acha como um todo mas o que é pra você, aí vocês podem começar aleatoriamente se quiserem. VIOLETA: _Eu coloquei... é pra falar o cartaz ou é pra falar espontaneamente? 96 PESQUISADOR: _Do jeito que você quiser, como você concebe a educação em saúde? VIOLETA: _Eu coloquei aqui uma mulher né, grávida, diabetes / Porque assim, quando eu coloquei aqui *... Eu penso que educação em saúde / tá relacionado muito com a escola e tá relacionado principalmente com as crianças, porque é na, é com as crianças que você vai trabalhar né,/ a educação, puramente a educação ( o que é puramente educação?) / e lá na frente vai ter resultados a educação que você promoveu na infância né / e coloquei aqui também que a saúde é uma parte que precisa tá andando com a educação né, que eu acho que as duas elas tendem a se complementar muito [...] Assim... eu coloquei aqui né, que, que, educação em saúde com adolescentes não é uma coisa fácil né. Que você tem que usar uma linguagem diferente, coloquei aqui uma linguagem diferente, então a gente pensar educação em saúde e adolescente a gente relaciona logo a escola né. E acho que o PSE como foi falado vem pra, pra, é , oficializar essa relação que tem a saúde com a escola, com os adolescentes em si. O espaço consagrado pela escola como educativo é reforçado pela política ora implantada, marcando processos de significação históricos e sedimentando o sentido provido pelas condições impostas, aqui no caso pelo PSE, ganhando assim estatuto dominante. Marca-se um dizer com a proposta que educação é para acontecer na escola assim como aponta Violeta (Eu penso que educação em saúde tá relacionado muito com a escola, ou, educação em saúde e adolescentes a gente relaciona logo a escola né!) que a traz como espaço único e fértil para práticas educativas. Tal realidade é corroborada por estudos que apontam a escola como cenário primeiro em diversas práticas educativas (OLIVEIRA, CARVALHO E SILVA, 2008; FREITAS E DIAS, 2010; SOUZA, 2011). Essa discursividade se fortalece na problemática apresentada pelos enfermeiros em concretizar sua prática educativa com esses jovens nas UBASF. PAMELA: _Assim, lá, vou falar da minha realidade lá no ...(nome do posto onde trabalha). O adolescente... Dificilmente você ver o adolescente na unidade de saúde, né. Ele só vai no dia do planejamento*(refere-se aqui ao planejamento familiar), a menina, o menino você nunca vê, ou é no pré natal ou é no planejamento familiar. O adolescente em si assim pra consulta do adolescente, a não ser que tenha no nosso cronograma, consulta de adolescente, a enfermeira que não fizer consulta de adolescente (como assim ter no cronograma? Não há regularmente espaço para o atendimento desse público?), vc não vê o adolescente no posto de saúde né, ou então a não ser que a gente tenha o grupo de adolescentes né, que no ano 97 passado eu tinha e foi assim, foi / pouco tempo, foi só uma temporada. Então assim, se a enfermeira não tiver o grupo de adolescente / então você... né... nunca vê o adolescente na unidade. PESQUISADOR: _Como é essa sua prática , esse grupo? PAMELA: _Então, eu ia falar no terceiro tópico, (risos), era isso que eu ia te dizer. Então a educação em saúde pros adolescentes, hoje em dia eu pelo menos em si... não tenho adolescente na unidade de saúde, entendeu? Não tem adolescente na unidade de saúde, é isso que eu to querendo dizer, só no planejamento familiar, então, minha educação em saúde é só individual, eu com o paciente. Pamela além de trazer a dificuldade de relação do adolescente com os equipamentos de saúde abraça uma construção polissêmica ao trazer esse sujeito ao planejamento familiar, contradizendo a afirmação do adolescente não frequentar a UBASF. A mesma traz inclusive um diagnóstico situacional que aponta a maior frequência das meninas em programas de saúde sexual e reprodutiva. Apesar de relatar que sua educação em saúde é só individual não há um desenrolar desse discurso que evolua oportunizando o cuidado clínico que educa, pois este se mantém distanciado do cuidado clínico biológico.É um dizer que se faz para calar o que não pode ser dito, pois este dito implica em projeções e introjeções pessoais e profissionais não esperadas de um enfermeiro “educador”. Compreendi o movimento grupal que por vezes apoia a ideia de afastamento desses jovens das unidades de saúde como uma cristalização que mantêm os profissionais protegidos dentro de seu grau de alcance aos adolescentes, direcionando aos adolescentes a responsabilidade pela falta de potência do equipamento de saúde como espaço de relações. PAMELA: _Mas assim pra trabalhar o grupo (de adolescentes), grupo assim na unidade de saúde, para captar os adolescentes pra unidade de saúde também é um pouco difícil, porque eles vêm no começo ai depois começa a evadir-se. Goulart, Lucchesi e Chiari (2010) estimulam a criação de espaços educativos e preventivos nos equipamento de saúde, afirmando que em tais espaços ao fomentar práticas educativas que apoiem os planos de cuidados dos indivíduos há consequente melhoria do serviço e promoção do vínculo e parceria entre profissionais e comunidade. Trabalhar o componente afetivo juntamente com o 98 cognitivo nas práticas educativas é o proposto por Miranda et al (2008) para possibilidade na construção de conhecimentos. 99 DISCURSO PEDAGÓGICO: CIRCULARIDADES DISCURSIVAS DE UMA EDUCAÇÃO OPRESSORA 100 5 DISCURSO PEDAGÓGICO: CIRCULARIDADES DISCURSIVAS DE UMA EDUCAÇÃO OPRESSORA Antes de dissertar sobre as formações discursivas desse estudo, considero pertinente trazer a introdução de Orlandi sobre os tipos de discurso (2009). Essa pequena resenha se faz oportuna tendo em vista a manutenção de um desses tipos discursivos em nossa análise. A classificação dos tipos de discurso é expressa com base no objeto discursivo e seus participantes. Orlandi (2009, p.15) apresenta os discursos como lúdico, polêmico e autoritário. O discurso lúdico é aquele em que o seu objeto se mantém presente enquanto tal2 e os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso o que chamaríamos de polissemia aberta (o exagero é o non-sense). O discurso polêmico mantém a presença do seu objeto, sendo que os participantes não se expõem, mas ao contrário procuram dominar o referente, dando-lhe uma direção, indicando perspectivas particularizantes, pelas quais se olha e se o diz, o que resulta na polissemia controlada (o exagero é a injúria). No discurso autoritário, o referente está “ausente”, oculto pelo dizer. Não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida (o exagero é a ordem do sentido em que se diz “isso é uma ordem”, em que o sujeito passa a instrumento de comando). Esse discurso recusa outra forma de ser que não a linguagem. A autora caracteriza o Discurso Pedagógico (DP) enquanto autoritário. Utilizarei essa classificação durante nossa análise por identificar o funcionamento discursivo dos enfermeiros participantes desse estudo direcionado ao DP. Tal aproximação é aqui identificada e justificada desde as condições de produção de discurso desses sujeitos. Ainda com o auxílio de Orlandi (2009) represento tal proposição para certificar-me dessa classificação: 2 Isto é, enquanto objeto, enquanto coisa (ORLANDI, 2009, p. 15) 101 Figura 4: Esquema representativo do percurso da comunicação no Discurso Pedagógico QUEM ENSINA O QUÊ PARA QUEM AONDE QUE O Enfermeiro Inculca Educação em Saúde M Adolescente Escola ou UBASF A partir da leitura de Pêcheux, Orlandi (2009) me autoriza na utilização das formações imaginárias constituídas pelas condições de produção do discurso (conforme exposto na figura) apresentar o domínio do discurso pedagógico em minhas proposições. Antes de realizar tais aproximações, julgo ainda pertinente justificar o termo “inculcar” utilizado por Orlandi como constructo imaginário do ensinar. A inculcação diz sobre o lugar de não saber que o interlocutor assume (em nosso caso o adolescente), que permite alguém que resolva por ele o que ainda não sabe o que “verdadeiramente lhe interessa” (ORLANDI, 2009, p.31). Ao identificar a composição ideológica que comporta as formações discursivas adiante apresentadas, observei a proximidade dos enfermeiros com a inculcação, o que por meio da lente freiriana é deveras conhecida como educação bancária. Esta mantém o educador como agente máximo, com a tarefa de encher e preencher os espaços vazios do educando de forma desconectada de suas realidades, mantendo o ato educativo funcionante apenas na sonoridade da palavra (FREIRE, 2005). 102 5.1 Formação Discursiva - Vazio repleto de nós: tecendo a rede educativa para adolescentes. A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. (Paulo Freire) Optei iniciar este capítulo com a ideia que Freire nos traz de educandos “vasilhas”, que em sua constituição primeira são vazias, carentes de preenchimento para então existir e ter sua história. Minha opção deu-se a partir do movimento de descoberta das situações existenciais que circularam e consolidaram a formação discursiva que denominei de “vazio repleto de nós”. A escolha por tal nominação brinca com o sentido da palavra nós enquanto pronome pessoal (referência a nós, educadores), e nós enquanto substantivo plural de nó, laço que constitui dobras difíceis, que por vezes sustenta, outras atrapalha. Neste núcleo, duas situações existenciais foram predominantes e marcaram o constituinte discursivo dos três grupos que legitimam a denominação recebida: A ideia de adolescentes como seres esvaziados de conteúdos ou mantenedores de saberes equivocados que possuem constituintes culturais errados e que por isso necessitam “ser educados” (primeira situação existencial), e a de que a educação inculcada nos sujeitos é o dispositivo primeiro para manutenção da saúde (segunda situação existencial). Retrato adiante formações discursivas através dos recortes enunciativos dos profissionais que justificam e esclarecem a proposição ideológica desse núcleo. Freire (1996, p.30) diz que “ensinar exige respeito aos saberes do educando”. Tal respeito constitui-se em acolher experiências constituídas na prática comunitária e no aproveitamento destas como ponto de partida para o ensino. Através das questões norteadoras das dinâmicas de criatividade e sensibilidade sobre como os enfermeiros compreendem educação em saúde e como se dá essa relação educativa com os adolescentes, houve sustentação discursiva durante decodificação pelo grupo do adolescente como alheio de si, e do 103 adolescente como sujeitado a uma prática por ser alienado. Na manutenção dessa alienação percebi que os enfermeiros encontraram a razão de ser educadores, de promover saúde através da educação para aqueles que não a tem (FREIRE, 2005). LÍRIO: _Mas não é só naqueles momentos (que momentos, da prática educativa?), pode ser na consulta,/ que a gente faz ao hipertenso, ao diabético, à criança, ao adolescente em si, o idoso que às vezes vem (vem aonde?), ás vezes só pra conversar, então permeia todo um processo (que processo, o educativo, ou o de adoecimento?), desde a alimentação, do envelhecimento, da, do conhecimento do corpo, que eles nesse processo muito de adoecer eles não se conhecem, e quando você explica o simples, o básico, que é uma educação em saúde, eles veem de outra forma, e se previnem de outra forma. LÍRIO: _É bem mais complicado, mas é uma necessidade (referindose a educação em saúde), porque eles acham que sabem tudo (os adolescentes), que eles são experientes, que eles podem que não vai acontecer com eles // principalmente a*... // (inconclusão do dizer, penso que quando iria se referir a gravidez) eu percebi também no pré natal, não tinha adolescente no pré natal, hoje eu tô com três adolescentes, então o que faltou pra elas pra elas estarem agora participando do grupo de gestantes com 15, 16 anos e antes não tinha? (antes não tinha o que, gravidez na adolescência? Nunca houve gravidez na adolescência nessa área?) Tessituras do silenciamento assinalam a discursividade de Lírio em relação aos processos vivenciais que marcam os indivíduos. Apresenta-se de forma ideologicamente censurável ao adolescente vivenciar alguns dos processos biológicos e sociais, como no caso aqui a gestação. Lírio mantém parafrasticamente nos dois recortes de fala a concepção de seres que não se conhecem, formação discursiva que remete ao desconhecimento de si pelos próprios sujeitos, necessitando assim da intervenção do outro para garantir o autocuidado. Há de se trazer as reflexões de Oliveira (2011, p.186) entre a “inevitável associação entre autocuidado e autonomia” na contemporaneidade, principalmente no que tange a promoção da saúde. Como uma das principais premissas da promoção à saúde é a prática autônoma dos sujeitos, confesso concordar com a ideia de simbiose entre a proposição de saúde e autonomia (OLIVEIRA, 2011). Tal assentamento deveria viabilizar a prática educativa como catalisadora da autonomia para o autocuidado. 104 Observo nas pistas discursivas que conduzem esse grupo que dissertar sobre a prescrição de vida saudável previamente instituída e distante da realidade dos sujeitos embute no silenciamento a zona de conforto aos enfermeiros instituído pela ideologia opressora, onde os educandos são depósitos que devem ser preenchidos num processo pacífico (FREIRE, 2005). Assim, ao considerá-los vazios os profissionais se autorizam a trazer não o que é real ou faz sentido aos adolescentes, mas o que é favorável ao profissional, mantendo uma passividade receptiva desses sujeitos. Essa pacificidade apresenta-se nos discursos por deslocamentos incorporados em conceitos que vem sendo amplamente discutidos nos processos de cuidado da saúde como o vínculo e escuta. Tais conceitos cristalizam-se como dispositivos que trazem a interdiscursividade dos profissionais para justificar práticas verticalizadas e engessadas na relação entre profissionais e comunidade. GUERREIRA: [...] _Então assim,/ eu ganhei a confiança deles (dos adolescentes) e o que aconteceu foi à questão de, desconstruir alguns saberes né, tanto da minha parte quanto da deles, porque quando a gente quando tá de fora (de fora do quê?) a gente aponta muito o dedo, quando a gente conhece a realidade, vai pra perto, a gente percebe que a coisa não é tão como a gente imagina que seja, então a gente *, então a gente desconstrói muita coisa e a gente constrói muita coisa com eles (o que é construído e desconstruído?), e isso, como eu já coloquei, era a primeira parte do que eu fazia, eu coloquei isso aqui justamente pela questão de regar, que eu deixo de ir o vínculo quebra e você não consegue mais pegar o adolescente de volta né. Vínculo de acordo com o dicionário é posto enquanto laço, relação (FERREIRA, 1986). Tal conceito é reapresentado por Schimith e Lima (2004, p.1487) numa releitura de Campos (1997): “O vínculo entre profissional/paciente estimula a autonomia e a cidadania, promovendo sua participação durante a prestação de serviço”. A autonomia proposta no conceito de vínculo acima adotado fortalece uma das ideias força de Freire (1979) que propõe a integração do homem em seu contexto de vida, refletindo e atuando nos desafios impostos como prática consciente e libertadora. Guerreira materializa em sua interdiscursividade essa ideia de relação estabelecida entre os indivíduos, e traz este vínculo para a possibilidade pacífica de 105 educação, apresentando visível tensão na polissemia quando enuncia a construção e desconstrução mútua de saberes, finalizada com a paráfrase mantenedora de ideologia que oprime: “eu deixo de ir o vínculo quebra e você não consegue mais pegar esse adolescente”. Tal tensão pode ser corroborada no silenciamento estabelecido entre o que se desconstrói e reconstrói durante as práticas educativas, trazendo à dimensão do não dito possíveis razões para as formulações dos sentidos que se deixa expressar pelo que é silenciado. Por meio da leitura política, histórica e cultural não posso deixar de pensar que esse processo construtivo referido por Guerreira paute-se em domesticar, onde mesmo após projeção da desocupação de si pelo educador que coloniza, a mente continua colonizada, corporifica e presentifica o opressor, não permitindo a anunciação do que possa vir a ser reconstruído porque escancara a sua tendência dominadora (FREIRE, FAUNDEZ, 1985). A submissão do adolescente mantida através do vínculo que se fragiliza na possibilidade de um educando que não esteja sob júdice de seu educador, reforça a ideia de prática educativa encarcerada, que controla e destitui o outro de si. Penso aqui em Freire (2005, p. 191) que em sua concepção de ação antidialógica, apresenta que a conquista “[...] implica um sujeito que, conquistando o outro, o transforma em quase “coisa” [...]”, e em Orlandi quando apresenta a inculcação como predominante do DP. O discurso apresentado afasta-se então dos conceitos supracitados de vínculo. Vislumbro a utilização do vínculo, após transpor a opacidade proposta pelos discursos por meio do não dito como dispositivo opressor para o modelo de educação realizado. Jasmim apresenta uma formação discursiva que sustenta o dizer do adolescente vazio de conhecimento, sendo este terreno próspero de plantio. JASMIM: [...] _então se eu não planto (alusão aos adolescentes serem terrenos vazios para o plantio) aqui nessa cabecinha né as ideias, aqui as cabeça tudo aberta pra entrar e vazia (alusão aos adolescentes não possuírem saberes prévios) né, que a gente pode colocar o que quiser (risos), então botar as práticas corretas, e aí eles vão formando seu próprio conhecimento e a sua própria 106 ideologia de vida, né, que a ideia é que eles formem a ideologia e sigam, então, ai vai, vai criando a cabecinha formada e vai formar né qual é o valor [...] O discurso acima reforça que ao inculcar práticas “corretas” esses jovens constituem sua ideologia, seus valores. Tal postura abraça um dos constructos da educação bancária discutida por Freire (2005), que preza a passividade e ingenuidade para adaptação do mundo, e anula a possibilidade crítica desse adolescente ao estimular sua ingenuidade na pretensão de “transformar a mentalidade dos oprimidos e não da situação que os oprime (FREIRE, 2005, p. 69)”. Discutir sobre sua posição e como esses jovens se reconhecem no mundo não apareceu como prática balizadora desses profissionais. Promover a autonomia e a constituição de valores através de escolhas direcionadas e formatadas reduz “as possibilidades de qualquer independência dos sujeitos, porque emerge carregado de “verdades” da ciência, a qual é difícil contrariar (OLIVEIRA, 2011, p.186)”. Os profissionais utilizam sua cientificidade e sua posição de conhecedor em favor de outro a quem desconhece, e por meio de um discurso que propõe uma “escolha informada” mantém o controle de formações ideológicas que se sustentam na opressão. Essa relação educativa com o adolescente é mantida pela mesma situação existencial concreta da formação do enfermeiro (abordada nas condições de produção de discurso), calcando nesse ser o status “de homem novo, homens opressores” (FREIRE, 1979, p.31). O imaginário de adolescentes que não sabem, ou de que possuem conteúdos errôneos dão suporte à prática educativa do enfermeiro através dos não ditos em diversos momentos em que sua posição torna-se ameaçada pela possibilidade de saber desse outro. Tal manutenção discursiva é consolidada por enunciações parafrásticas que desdenha do saber cultural e mantém nessa destituição o que os autoriza os enfermeiros a educar. Convém por em relevo a leitura de cultura sob a ótica da plasticidade, e desconsiderar o “enraizamento”, ao conceber cultura como as interações humanas produtoras de saberes. Atenta-se para o uso da cultura apenas como um signo 107 frequente nas práticas de educação em saúde, sem configurar-se como episteme das práticas profissionais (BOEHS et al., 2007). Para Freire (1985) a cultura é manifesta não apenas por representações artísticas, constitui-se no viver a vida cotidiana, desde os hábitos alimentares às múltiplas formas de se relacionar. As marcas culturais nos permitem viver e absorver novas culturas, compreender novos conceitos e produzir novas significações. Nesse intento, considero fundamental trazer a enunciação de Jasmim sobre a “problemática” da gravidez da adolescência frequente em seu território de atuação: JASMIM: [...] _quanto ela tem três gestantes adolescentes eu tenho milhões (risos), inclusive pra elas engravidar na adolescência é genético, então, veio da mãe, veio da avó, _então porque que eu não vou engravidar também? Então a minha realidade é bem diferente, a adolescência lá (no bairro próximo a tribo indígena e assistido pela ESF dessa profissional) é bem, digamos assim, pra frente (risos), as meninas engravidam com 12 anos né, aquela parte indígena, então ali não tem*..., mas a questão familiar é realmente uma necessidade porque não é o professor nem é o enfermeiro que vai dizer o que ele tem que fazer, é a prática dentro de casa, _então se a minha mãe engravidou com 12 anos qual o problema de eu engravidar também? A minha mãe é feliz hoje ela não tá reclamando, então eu vou, vou seguir isso também e não é você que vai mudar minha cabeça! Então a gente até,/ é do ano passado pra cá decidiu fazer um trabalho agora com os pais. Então na reunião de pais e mestres da escola que é uma vez por mês a gente é chamado pra dar palestra pra eles, pra ver se eles em casa conseguem atingir os filhos né, pra quem sabe a longo prazo ter uma mudança de atitude. A fala de Lírio nos impele a pensar numa produção de corresponsabilização, onde a incompletude do dizer ao referenciar a gravidez sugere um silenciamento alusivo à possibilidade de tal fato acontecer como uma fragilidade em sua assistência. Jasmim refere-se à gravidez na adolescência como um “problema cultural”, metaforizando a gravidez como algo genético entre os indígenas. Esse olhar me pareceu motivado em justificar a gravidez entre os jovens de sua comunidade não estar diretamente relacionada à sua assistência, apresentando repreensão por tal realidade cultural Jasmim traz em seu dizer uma projeção imaginária de práticas corretas pautadas em princípios esteticamente científicos onde a adolescente não pode engravidar. A profissional explicita trabalhar junto à população indígena, povo este 108 de costumes e cultura própria. Mesmo mediante a satisfação em conviver com a maternidade na juventude, passos galgados de acordo com seus ancestrais, Jasmim não retrocede e investe seu arsenal educativo como proposta de “mudança de atitude” dessas adolescentes. Penso aqui sobre como trabalhar educação através de imperativos técnicos constituídos a partir do que seja um estilo de vida saudável sem considerar a exterioridade desse sujeito e nem possibilidade de escolhas para o desejado. A invasão cultural constitui-se como ferramenta de conquista onde o dominador impõe sua visão de mundo, modela, freia a criatividade inibindo sua expansão, dominando econômica e culturalmente o invadido (FREIRE, 2005) Os enfermeiros posicionam-se em alguns momentos como dotados de poderes mágicos, que de uma forma superior acabam com os mitos e tabus. Mas a quem será que pertencem as ideias míticas e erradas, será que aos adolescentes, a sociedade ou ao juízo profissional? Observo o que Freire (2009) denomina de consciência ingênua, de superioridade aos fatos, dominando-os de fora e julgandose livres para entendê-los conforme for conveniente. ROSA: [...] _então é aquela confiança que você tem com aquele adolescente, né, o compromisso né com o atendimento, com a situação. E a questão que a gente faz muito, desmistificar né, alguns mitos ou tabus né que essa... que esse público dos adolescentes tem bastante. MARA [...] _o que eu tento transmitir é passar um certo conforto e uma confiança neles, que qualquer coisa eles podem procurar, como as vezes acontecem, ele vão lá no posto, perguntam, tem alguma dúvida, eles vão, e eu tento sempre orientar, sempre nesse sentido de tá orientado, não dizendo o que é certo ou errado, mas tá orientando, mostrando pra eles qual o melhor, pra ver o que, se eles tão seguindo pra eu tentar abrir mais os olhos, que muitos já sabem também muitas coisas. PAMELA: [...] _a gente tem até que perguntar qual temática a ser abordada, porque eles são assim, até quando a gente vai pra escola trabalhar a escola (inferência de trabalhar o aluno, e não a escola como um todo), quando a gente chega na escola eles não, não ficam quietos pra escutar o que a gente vai falar, eles viram é as costas pra gente, entendeu? Verdadeiras interações culturais podem promover um espaço movediço de subjetivações que afrontam o “saber científico”, e apresentando-se como mitos e 109 tabus, ganham intenções metafóricas ao desvaler o saber do outro que não pode ser dito nem aceito pelo profissional. Tais saberes ganham artifícios linguísticos na tentativa de subjugar as experiências dos adolescentes. Boehs et al. (2007) trazem essa perspectiva do profissional de saúde que compreende o conceito de cultura como no início do século XX, em que esse “outro” não possui algo, e como tal apresenta uma deficiência, sendo sua formação cultural um entrave para o que o profissional quer ensinar. Frente a tais reflexões ressalto a proposição de Rosa que ao movimentar esforços em reconhecer o interesse desses sujeitos como disparadores para a discussão educativa mantém um dizer explicitado aqui pela locução conjuntiva subordinativa até que, desvelando o que não é dito: os profissionais devem em alguns momentos submeter-se ás vontades dos adolescentes como artifício para chamar sua atenção para o que “eu” educador tenho a dizer. Tal consideração nos apresenta um educador que se movimenta em prol do interesse do outro através da escuta, confirmando possibilidades de uma nova prática, mas que mantém atravessado em seu dizer um interesse relativo à manutenção do comportamento (eles não ficam quietos pra escutar). Tal postura não corrobora com uma educação participativa, e me desperta a pensar nessa escuta como mais um dispositivo que oprime e modela o outro para que este atente para as minhas verdades. Aposto na proposição da escuta que nos convoca a deslocar o processo de escutar de um ““eu” que escuta outro “eu” para colocá-la no plano dos encontros, entre práticas, forças, movimentos.” (HECKERT 2007,p.207). Tal escuta potencializa as narrativas e pressupõe possibilidades de reinventar-se diante das situações. Boehs et al. (2007,p.311) ainda afirma que “[...] aprender a ouvir é uma habilidade fundamental na educação em saúde e no cuidado em enfermagem”. Porém, reconheço nas enunciações do grupo pesquisado pistas do que Heckert (2007) apresenta como escuta surda. A escuta surda produz como efeito a tutela e a culpabilização dos sujeitos, uma vez que fala por, fala de, em nome de, no lugar de falar com o outro (HECKERT, 2007, p.205). 110 A proposição de confiança e conforto nos discursos de Mara e Rosa consolida a utilização da escuta dos problemas e espaço para fala do adolescente como dispositivo opressor, onde se assenta nessas relações as formações discursivas sobre inculcar o melhor, abrir os olhos e desmistificar seus conhecimentos ditos errôneos. A escuta surda destitui esse adolescente de suas subjetividades e os apresenta como produtores de erros que devem ser corrigidos para que se mantenha o equilíbrio, constituindo-se assim julgamentos e prescrições produzidas pelo “especialismo” profissional, acomodando esse adolescente no lugar de objeto de suas ações (HECKERT, 2007). Tal discurso especializado interpõe-se na circularidade do DP, que apaga o saber do aluno apontando-o como aprendiz do que não se sabe, fomentando o professor-cientista como autoridade definitória (ORLANDI,2009). Essa relação fomenta o que Freire (2005) denomina como autodesvalia, pois de tanto ouvir que não são capazes, convencido de sua “incapacidade” remetem ao outro a autoridade de falar por si e de impor-lhes critérios convencionais. Tal movimento renega a autonomia aos educandos. Esta autonomia resguardaria o adolescente em sua tomada de decisão e afirmação de postura inclusive com a assunção de responsabilidades mediante a sociedade, conferindolhe assim a cidadania que lhe é direito (OLIVEIRA, 2010). Entretanto, a autonomia fomentada nas concepções educativas de saúde enquanto ferramenta de promoção da saúde mantém o sujeito sob a égide dos fundamentos especializados que invalidam o potencial dos adolescentes ao produzir ecos de um saber científico hegemônico. Ao sustentar proposições que adolescentes são praticamente “tabulas rasas”, a discursividade dos enfermeiros conduz a possibilidade de preencher tais espaços ou lacunas com a educação, aqui em especial a educação “para” saúde. Como educadora e leitora do assunto, tenho presenciado esforços de enfermeiros assistenciais, assim como os dedicados a pesquisa, em quantificar e adjetivar as competências educativas como pré requisitos para instituir-se a saúde. Acredito, porém, que tal debate deva considerar outros leitos condutores, que a 111 despeito da educação creio determinante às condições de saúde. Tratando apenas de questões externas, traço como exemplo o constituinte econômico, que a depender do cenário pode desconsiderar a potência educadora como produtora de saúde. Motivados pelas perguntas norteadoras do estudo, os enfermeiros mantiveram dizeres parafrásticos, onde educar aparece como determinante primeiro para se ter saúde, segunda situação existencial. Tal educação é direcionada pelo viés biológico, como veremos em capítulo adiante. Considero pertinente fazer esta observação, pois tais convicções me revelam uma proposta de ação que considera saúde como simples ausência de doenças, e que após “educado” o sujeito deverá, ou pelo menos deveria, conduzir o autocuidado com maestria e teoricamente não apresentar nenhum adoecimento. JASMIM: _Ai coloquei “a saúde começa com a educação” (leitura do almanaque) / foi a primeira frase que eu* porque ela termina, ela tem continuidade no próximo cartaz (risos) > [...] _ É, começa com a educação né, você criando atividades e educando essa pessoa sobre a /, os cuidados que ela tem que ter com a saúde dela, então ela não pode ficar na dependência de um profissional, ela vai aprender a cuidar dela mesma. LÍRIO: (apresentando a produção do almanaque) _Eu coloquei, porque é o caule (a educação em saúde) que sustenta tudo, toda copa da árvore (referindo-se a todo o ser), se não tiver um caule e uma raiz bem forte, bem segura, nada vai acontecer. Jasmim reconduz a discussão numa tensão polissêmica que anuncia a possibilidade de independência desse sujeito para o autocuidado, mas sustenta o discurso que este deverá se sujeitar a uma prática educativa para conseguir tal liberdade. Freire (2005) atento para a possibilidade de educação sem a reflexão pontua a tendência de usar as pessoas, e “mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico (nem sempre percebido por muitos do que a realizam), é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão” (FREIRE, 2005, p.76). O autor nos convida a acreditar nesse outro que concebemos destituídos de saber, que possamos enxergá-los como capazes de pensar certo, pois a dependência do ensinar só gera mais dependência. 112 O pensar certo na visão de Freire (1996) diferencia-se do pensar “o” certo. Para o educador pensar certo vai além de conteúdos objetificados, nos propõe duvidar de nossa demasiada certeza, nos reconhecer como seres históricos e críticos. Pensar certo nos instiga a compreender a relação dos conteúdos ensinados e nossos saberes, demandando profundidade na compreensão dos fatos e não sua simples interpretação, assim como nos disponibilizar ao risco de aceitar que o novo conviva com o velho. Enfim, “pensar certo, é fazer certo (FREIRE, 1996, P.34)”. A assertiva de Lírio sobre a educação em saúde ser a raiz e o caule que sustentam uma árvore vai além de imagens metafóricas, mas se colocam enquanto substituições alusivas e interdiscursivas sobre a educação em saúde servir de base e sustentação para a saúde dos indivíduos. Penso nas ideias que circulam em órgãos internacionais que relatam que para se promover saúde, devemos atentar para as condições de habitação e alimentação, oportunidades de trabalho, manutenção do ecossistema, paz e oportunidade da educação (OPAS, 1996; WHO, 1986). Como reduzir o sustento das condições de saúde a apenas o condicionante educação, este que, por si já é intrinsecamente dependente de outros? A circularidade dessa formação discursiva ainda se desdobra quando ao adolescente é imposta a responsabilização por sua saúde nos anos vindouros a partir dessa prática educativa. JASMIM: [...]: _“a educação começa na adolescência” (leitura do almanaque), eu sempre digo isso pra eles, se vocês cuidam da saúde de vocês agora depois dos 20 vocês não vão ter problemas que vocês vão talvez enfrentar uma gastrite, um problema / mais sério por conta da falta de cuidado na adolescência né [...]), “a saúde começa com a educação” (leitura do almanaque) / aí, “a educação começa na adolescência” (leitura do almanaque), que ai vem a arvorezinha da Lírio né, e, a prática educativa traz a melhor idade [...] ROYAL: [...] _é uma sementinha, eu plantei e com certeza vou querer colher, é colher mais tarde (colher o que?) que é justamente, não é pra ficar ali na sala de aula, é pra levar pra casa, pra levar (levar o que?) pros amigos, pra que isso seja divulgado e a gente tenha uma saúde melhor, principalmente em relação aos adolescentes que a gente sabe que eles são danadinhos (fala pausadamente) que é uma beleza (risos)né, então o adolescente, eu acho que, o adolescente e a criança é nossa porta, se engatar foi, mas senão depois de adulto já é tarde, ele já tem tudo formado e pra quebrar aquela cultura deles é muito dificil, ai termina assim, "Mais saúde" né, se eu conseguir multiplicar os meus conhecimentos no mundo dos adolescentes e as crianças vão conseguir mais saúde. 113 Assim, mantêm-se a educação atrelada às condições de saúde sustentadas por Jasmim ao anunciar o adolescente como único responsável, sedimentando uma postura que não acredito ser ingênua. Os dois trechos discursivos acima apresentam uma falsa aparência que a educação proporá autonomia a esses sujeitos, que serão donos de si e de sua saúde após o processo educativo. Jasmim antecipa a culpabilização ao adolescente pela possibilidade de adoecimentos futuros após a intervenção educativa, mantendo a auto responsabilização individual. Tal conduta fortalece o deslocamento do Estado em sua participação na vida dos sujeitos, onde guiados pelo neoliberalismo, este não pode interferir em nossa vida privada (CASTIEL, DIAZ, 2007). Esta compreensão é possível ao percebermos os discursos imbricados pelo sentido social e histórico que representam o homem e sua interlocução com o meio (ORLANDI, 2001). Mantêm-se aqui a prática sanitarista de responsabilização dos indivíduos pela saúde de forma individual, desconsiderando todo o contexto social, econômico e cultural, onde podem ser responsabilizados ao se “rebelarem” a não manterem práticas saudáveis (REIS, 2006). A depender dessa postura educativa como geradora de autonomia desse adolescente, apresento problema levantado por Oliveira (2011): a educação em saúde realizada pela enfermagem tem sido um investimento emancipatório ou uma prática de sujeição? Trago aqui uma reflexão que por ser paradoxal é digna de atenção. Sob a luz da interrogativa acima, e mediante a sustentação ideologia identificada nos discursos dos enfermeiros, ideologia esta que apresenta a educação suspensa em pilares opressores, atrevo-me a lançar o paradoxo do qual falei: as posturas educativas para adolescentes enodadas nas ações dos enfermeiros sustentam mais um dispositivo opressor: a autonomia. Em busca de prover essa autonomia se destitui, subjuga, imprime e invade. Sob olhar da análise de discurso creio que a autonomia aqui seja talvez o maior processo metafórico presente nessa formação discursiva, onde heteronomia é o que se propõe, mas que de acordo com Orlandi (2005) fica escondida nos não ditos, no silêncio constitutivo, e que só nos possibilita enxergar suas pistas pela lente da historicidade. 114 5.2 Formação Discursiva - Práticas instituídas entre campanhas e circuitos: vigilância de corpos e sujeição ao modelo higienista A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter nos próprios oprimidos, que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos. (Paulo Freire) Debates giram em torno das competências necessárias aos profissionais para trabalhar a prática de educação em saúde enquanto ferramenta de promoção à saúde. A criação do Consenso de Galway após conferência realizada na Irlanda em 2008 tem chamado atenção de estudiosos do mundo inteiro para a identificação de competências fundamentais a tais práticas, assim como a necessidade de mapear o padrão de qualidade de cursos acadêmicos (ARRUDA et al., 2009). Não me oponho a sistematizações e consensos. Entretanto, reflito se para educar não seja necessário mais que normas impostas que apontam o engessamento de ações e modelos de profissionais que se recriam para caber em determinadas expectativas. Proponho tal reflexão por acreditar que a prática educativa em saúde não é instituída apenas pelo profissional, mas como no processo educativo libertador o qual defendo se dá no encontro do educadoreducando (FREIRE, 1996). A ideia de Freire no início deste capítulo nos convida enfermeiros educadores, a refletir sobre o sustento de nossas raízes profissionais que nos desenham como opressores oprimidos. A contendo dessas raízes pronuncia esta formação discursiva a denotação assumida pela discursividade do grupo de enfermeiros pesquisados: a sujeição ao modelo higienista. Mesmo após inúmeros estudos, relatos e problematizações sobre práticas educativas dos enfermeiros, percebo forte ligação entre essas ações e normas preventivas ao adoecimento, mantendo o corpo biológico em plano de visão primeira (situação existencial). 115 Prado, Medina-Moya, Martínez Rieira (2011) falam sobre a opressão sofrida pela enfermagem através da colonização pelo paradigma biomédico que contribui até hoje com a dificuldade de emancipação da profissão. Tais assertivas dão espaço para longo debate que não findará aqui. Porém trago estas ideias apenas como disparadoras das reflexões sobre essa formação discursiva, tendo em vista a manutenção da visão biológica e comportamento sanitarista aqui predominante. GIRASSOL: [...] _mas é da infância passando como se fosse na adolescência né, aqui o namoro o amor começa surgir, a paquera começa a surgir, e daí vem a questão também da prevenção, que tem a camisinha masculina e a feminina, e se não usar a prevenção ela pode engravidar, ou então pegar uma doença sexualmente transmissível. LÍRIO: _Então que a gente, de uma forma bem simples, o que a gente plantar nessa cabecinha agora, enquanto adolescente, vai refletir no futuro, onde vai ter a questão de conhecimento da cidadania, porque educar em saúde não é só falar sobre doenças né,/ são quando eles vão reconhecer os direitos e os deveres dele / a questão da prevenção da gravidez na adolescência, da gravidez indesejada, a questão do contra*... das DST, os métodos contraceptivos [...]. Reconheço a sexualidade como premente no universo adolescente. O que está silenciado na discursividade de Girassol e Lírio é uma sexualidade que embute perigos, doenças e como tal devem ser evitadas, reduzindo os direitos e deveres sexuais destes seres a questões preventivas. A polissemia anunciada por Lírio ao insinuar os adolescentes enquanto seres de direitos traz o rompimento que o pronuncia enquanto sujeito, mas que sucumbe a imagem reducionista de um direito sexual limitado, cerceado de pré-requisitos como não engravidar e contrair doenças. Freitas e Dias (2010) discorrem sobre a sexualidade na adolescência como contexto frutífero para a formação de identidade desses sujeitos. Reconhecem a presença de conflitos gerados pela gravidez não planejada e pelas DST, mas não reduzem a educação sexual a isto. Ressaltam que os jovens mantém a consciência de sua sexualidade povoada por questões afetivas presentes desde ligação a um parceiro, quanto à crise que se impõe com os adultos durante a vivência de sua 116 sexualidade. A construção da identidade sexual também se faz presente na realidade dos adolescentes, e tal discussão se faz merecedora de atenção. Considero prudente trazer definição de sexualidade proposta por Pereira (2012, p.1): Tendo em vista que como as demais dimensões da identidade, a sexualidade é uma construção, social, histórica e cultural, e portanto, não se refere apenas ao sexo genital ou às relações sexuais. Nesse sentido esta não pode ser vista apenas como uma das dimensões do desenvolvimento da pessoa. Tratar desta temática pressupõe reconhecê-la como uma abordagem que tem a sua multidimensionalidade, nos diversos níveis e nos aspectos biológicos, psíquico, social e político. Não sou estudiosa da psicanálise, me considero mais uma curiosa. Assim, não pude deixar de trazê-la para minha argumentação enquanto compreensão da lida da sexualidade nesse contexto educativo. Freud (2006) traz que a sexualidade acompanha o ser humano desde o seu nascimento, e durante o curso da infância existe um apagamento em relação ao desenvolvimento da sexualidade (amnésia infantil) que deixa rastros vindouros na vida desse indivíduo. Kupfer (1989) discute sobre as aproximações e distanciamentos da psicanálise como suporte a educação. Permito-me nesse instante através da compreensão psicanalítica sobre sexualidade pensar esse componente estruturante enquanto constituinte dos seres, e como tal de impossível dissociação a despeito do papel ocupado por cada indivíduo. Freud pensa a participação da psicanálise na educação na perspectiva de reconhecer o papel da educação na condenação da sexualidade, condenação essa produtora de histeria. Ao tratar da sexualidade infantil Freud traz a luz pulsões parciais que devem ser sublimadas para que estas caminhem direcionadas a espaços socialmente úteis (KUPFER, 1989). Para Freud as pulsões parciais e perversas são a base para o processo de sublimação, e a educação repressora a tais pulsões seria além de inúteis, prejudiciais aos indivíduos. Freud traz diversas questões que oportunizam a psicanálise a participar da educação, levantando suas possibilidades e conflitos 117 (FREUD, 1976). Tais postulados apresentam a impossibilidade de o educador promover a sublimação por este ser um processo inconsciente; que os educadores deveriam esclarecer a respeito da sexualidade com crianças, mas estas não lhe ouviriam, e por fim, ao esquecer sua criança interior este educador distancia-se da necessária reconciliação que deve ter com esta (KUPFER, 1989). Pós Freud outros estudiosos mantiveram interesse pelo tema e realizaram leituras diversas sobre o assunto. Pensamos aqui que a partir dessas pequenas proposições, que no processo educativo, educador e educando expõem seus desejos e através da relação transferencial realizam a aprendizagem. LÍRIO: _Tem a questão da diversidade (lentifica a fala para pronunciar diversidade), que eu acho que é pra mim, é o que mais trava essa questão com os adolescentes, talvez pela educação muito conservadora que eu tive, e tenho até hoje por parte da minha mãe, apesar do meu pai não ser conservador, mas ela impõe muito essa do correto, do certo. Então a minha maior dificuldade é perceber e enfrentar essa diversidade que tem entre os adolescentes de pensamentos, principalmente. [...]É uma fase de descoberta! Ai aqui vem a questão dos nossos tabus, dos preconceitos, porque, a gente não fala muito sobre a mudança do corpo, sobre a própria sexualidade, então como falar com o adolescente sobre isso? É bem mais complicado. Lírio traz sua leitura e vivência castrada, oprimida em relação a sexualidade como influência em sua prática, onde trabalhar a sexualidade em sua amplitude resgata a dificuldade em discutir tema intimo e polêmico, gerador de preconceitos e tabus. Nessa perspectiva, institui-se a prática sanitarista vigente que acolhe protetoramente o profissional não preparado para tais reflexões (penso aqui na vigência das indagações dos pressupostos freudianos), munindo assim o enfermeiro com ações prescritivas e preventivas apagadas em sua interdiscursividade como autoproteção e não prática educativa libertadora. Nesse instante, ao trazer a discursividade para o âmbito físico, descubro ser este um possível artifício utilizado pelos enfermeiros na condução de sua prática, pois os protocolos clínicos direcionam a condutas seguras. Conhecer esse adolescente em sua real constituição aparece em rupturas que posteriormente reforçam a prevalência pelo conhecimento físico (paráfrase). 118 LÍRIO: _Então eu penso que a educação com adolescentes é mais uma questão de enfrentamento de conhecimento, não só do profissional,/ da pessoa, mas como dos adolescentes também. Conhecer sobre eles, não só as mudanças físicas mas o que permeia ao redor dele, o que realmente eles querem, eles conhecem. JASMIM: _E engraçado é que eu, eu me coloquei no lugar do adolescente porque eu acho que eu me lembro muito bem da minha adolescência... Ao trazer o enfrentamento como possibilidade de conhecer não só o outro, mas a si também, Lírio fala de um lugar que permite ao profissional também ser sujeito, se reconhecer enquanto vítimas dessa coação que vivenciamos sobre o usufruto de nosso conhecimento, sejam científicos, culturais ou comuns o qual levanta a necessidade de enfrentamento. A dimensão simbólica dos sujeitos é disciplinada pelo processo orgânico, desprezando desejos e experiências humanas em prol de um saber científico. Lírio rompe momentaneamente com a posição higienista e se permite aceitar e questionar o que brota do desejo do outro e não apenas da necessidade física. Ao considerar o querer envereda pelo que Aguiar, Silveira e Dourado (2011) propõem: a busca pela complexidade, reconhecer que os sujeitos são muito mais do que células e processos metabólicos, mas que possuem suas histórias, sonhos, desejos. Os autores convidam a conhecer o outro, a considerar quem ele é, como se formou e quais seus significantes, aceitando o sujeito e seus desejos como possibilidade para reinvenção do cuidado. O cuidado que alicerça a prática do enfermeiro também se apresenta como dispositivo opressor na manutenção do cuidado físico prevalente. Em nome desse cuidado que visa proporcionar bem estar assumimos uma posição de ajuda e estímulo à autonomia, havendo uma pluralidade entre reconhecer o outro e a manutenção do assujeitamento a proposições formatadas que coloca o enfermeiro em posição acomodada de estar fazendo o que é “preconizado”: PLANTA: _Então, é dessa forma o circuito que eu vejo no PSE, o circuito ele tira um pouco da propriedade da gente abordar certas temáticas, porque você fica preso somente aquele questionário, nada mais do que o questionário. 119 POCAHONTAS: [...] _esse mês a gente vai,/ aliás em julho a gente fez uma atividade que era só palestra né com uma determinada turma, ai levamos , métodos contraceptivos, álbum seriados, vídeos, ai passamos a tarde lá, nessa sala, sempre a gente tá fazendo. E o circuito que acontece a cada mês, aí a gente leva a equipe de saúde, leva balança, o NASF sempre nos ajuda,/ pronto, é isso ai. A discursividade dos enfermeiros sustenta a cristalização de práticas institucionalizadas pela política municipais aqui apresentadas pelo modelo “circuito”. Os profissionais justificam o enfoque no olhar biológico por meio da orientação municipal nos atendimentos clínicos necessários ao cumprimento de metas impostas pelo PSE. A vigilância aos corpos interpõe-se como diligência do cuidado clínico educativo que vai além da disciplina de corpos, descola o adolescente físico de suas subjetividades e desejos. Horta e Sena (2011) consideram ações cuidadoras de saúde ao corpo juvenil como essenciais, porém, as estratégias para tais ações devem ser guiadas pela imersão no cotidiano dos adolescentes, promovendo a visibilidade de suas prioridades na quebra da perspectiva tradicional de ações de cuidado. Há a acomodação diante à situação, sem diálogo, participação nem reflexão. Tal acomodação comporta-se na ideia de Planta que desloca ao questionário a responsabilidade de prática biologicista e mecânica. Aqui, o questionário do circuito é o agente imobilizador. Não quero deixar a impressão que sou contra os atendimentos clínicos, pelo contrário, como profissional de saúde reconheço sua importância e em certa parte louvo a iniciativa proposta pelo circuito de saúde de prevenir o adoecimento dos jovens. O que aceno em minhas considerações é a paralisação dos enfermeiros ecoada sob a proposta do modelo exógeno do adoecimento, desconsiderando o circuito inclusive como espaço educativo que pode reconhecer histórias de vida. PAMELA: [...] _a gente sabe que quando chega a campanha de hipertensão e diabetes sempre vem aquela cobrança (de quem vem a cobrança, dos gestores?) / da palestra na campanha de hipertensão e diabetes, ai coloquei aqui: na campanha do aleitamento materno... > LÍRIO: _Então eu penso na saúde dentro da educação em saúde não só naquele momento que a gente faz na palestra né, nas campanhas que cobram muito da gente, que muitos companheiros 120 (os gestores municipais), como diz minha mãe deixa só pra cobrança das campanhas e deixa esse momento de educação pra lá. Mantém-se assim como apresentado por Pamela e Lírio, ações coletivas intervencionistas e dominadoras de comportamentos condizentes com as diretrizes do sanitarismo com normas higiênicas promotoras de bem estar (REIS, 2006). O modelo campanhista mantém relação assimétrica entre profissionais e comunidade fortalecendo participação débil caracterizada de cima (dos profissionais) para baixo (à comunidade) e pelo verticalismos que propõe o controle social, a manipulação (HERNÁEZ, 2010). Esse modelo de trabalho fundamenta-se nas raízes históricas do modelo de educação em saúde, e apesar de diversas problematizações e críticas aos moldes tradicionais o trabalhador reproduz o modelo educativo que lhe foi ensinado ao valoriza práticas curativas (PINAFO, NUNES, GONZÁLEZ, 2012). 121 5.3 Formação Discursiva - Eu ensino e você aprende: laços que unem oprimidos. Quando entro em sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, a curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento. (Paulo Freire) Creio poder iniciar esse capítulo confessando minha dificuldade em escrevê-lo. Explico. Inicialmente esta me pareceu a formação discursiva mais fácil de dissertar devido a unânime presença dessa formação discursiva entre os participantes do estudo. Ato a essa presença a força dos componentes ideológicos presentes nas enunciações dos enfermeiros sobre como entendem e executam sua prática educativa e a direcionam ao público adolescente. Parecia não haver dúvidas. E de certo não há. O que dificulta a escrita é justamente o emaranhado proposto pela riqueza nas situações existenciais aqui explicitas. Riqueza esta que requer tempo, reflexões e organização nas proposições para nossa melhor compreensão. Outra dificuldade talvez exista em tentar refugiarme das descobertas ideológicas no posto de enfermeira educadora. Declaro que o dizer de Freire na abertura do capítulo incide sobre a formação que conduz este capítulo, constituição e execução de práticas educativas com adolescentes vivificadas em duas situações existenciais de base: transmissão do saber e seus artifícios educativos. Diversos estudos têm sido realizados para fomentar a discussão e possível “enquadre” de ações de educação em saúde como corretas. As práticas de educação ativa guiadas por teorias problematizadoras vêm sendo apontadas com as mais coerentes na promoção da saúde dos indivíduos (FIGUEIRÊDO, RODRIGUES NETO, LEITE, 2012; FERNANDES, BACKES, 2010; MIRANDA et al., 2008; MELO, SANTOS , ATREZZA, 2005). Discorrerei a seguir sobre a relação de processos interativos que constituem a vivência educativa dos enfermeiros com adolescentes, uma construção tensa entre a manutenção parafrástica de práticas tradicionais e verticalizadas mantida através do discurso pedagógico, e momentos de ruptura, onde esse 122 educador se reconhece também oprimido, e enquanto sujeito questiona em enunciações polissêmicas a ideologia opressora que os mantêm. Os enfermeiros afirmam que enquanto seres vazios, os adolescentes tem que ser educados. Mediante a discussão apresentada na formação discursiva anterior aprofundo-me na condição posta por esse profissional que legitima “um outro” como possuidor do saber e que portanto deve educar. A esse outro personificou interdiscursivamente três instituições detentoras do saber e responsáveis por “inculcar” a saúde a esses sujeitos: a família, a escola e os profissionais de saúde. Essa trilogia institui de forma marcante a transmissão do saber pré-definido pelo poder assentido culturalmente a tais instituições. GIRASSOL: [...] _Na escola, eles estudando, que é a formação de tudo (formação de que?), é a base de tudo (que base é esta? )pra gente poder concluir e ter uma boa saúde e uma boa educação. VIOLETA: _Assim... eu coloquei aqui né, que, que, educação em saúde com adolescentes não é uma coisa fácil né. Que você tem que usar uma linguagem diferente, coloquei aqui uma linguagem diferente, então a gente pensar educação em saúde e adolescente a gente relaciona logo a escola né. POCAHONTAS: _Assim, além do que os colegas falaram, eu criei assim tipo uma historinha (apresenta o almanaque): aqui é a residência né, pra indicar que a educação vem da, / começa na família, porque um aluno educado claro que ele vai ser um bom aluno né, um aluno que é educado em casa, tem orientações dos pais. Nos discursos de Violeta e Girassol atua o imaginário de escola e família como fundamento para o saber base dos indivíduos, e associa essa base educativa direcionada a manutenção da saúde. Tais assertivas isoladas não são provocadoras de questionamentos, pois não desconsidero aqui o espaço escolar e familiar como frutíferos para educar. Considero, porém, as condições que geram tal discursividade, onde este enfermeiro como agente público empossado do conhecimento e da responsabilidade em educar para se ter saúde, escora um entendimento que a educação em seu contexto primário escolar-familiar é propícia enquanto preparo do terreno a que irá se plantar. 123 Girassol, Violeta e Sandra apontam em seus discursos a intenção de submissão desses educandos e do componente educativo vindo da escola e família como domesticador dos sujeitos quando afirmam que ao estudar possuirão base, serão formados por alguém, e ao se pensar nas dificuldades de interação profissional com esse ser, associam a educação vinda da escola e família (a gente relaciona logo a escola, porque um aluno educado claro que ele vai ser um bom aluno né; um aluno que é educado em casa) como “pacificadora” para esse encontro. O constituinte simbólico de suas assertivas ecoa como “argumentos de autoridade” (FREIRE, 2005, p. 70), e traz a luz o que Bacha (2003, p. 24) nos convida a pensar: E, se a educação é adaptação ou normatização, quer dizer, se educar não é mais que tentar fazer da criança um ser semelhante à imagem projetada pelo adulto, ainda é preciso esclarecer “qual” é este ideal em relação ao qual a criança deveria ser formada. E, fundamentalmente, se os conhecimentos escolares seriam meios para atingir “este” fim. Aqui então se inicia uma resposta à projeção dos enfermeiros em relação ao imaginário que detêm do adolescente: como seres que não sabem e necessitam ser preenchido. O que aparece silenciado nesse discurso, mas que se compreende através das pistas discursivas (para gente concluir; tem orientações dos pais) é uma relação educativa transmissora, disciplinante, onde o educador, seja representado por qualquer instituição, é o que orienta, prescreve a opção, que produz adaptações e é sujeito do aprendizado preparando assim o terreno para as práticas de educação em saúde realizadas pelos enfermeiros (FREIRE, 2005). A ideologia de uma educação transmissora, onde o educador em saúde traz as ideias corretas e seus conhecimentos são repassados materializa-se nas enunciações que emergem durante a discussão nos três grupos sobre a prática de educação em saúde com adolescentes. Essa transmissão vem sob a proteção do preparo para o futuro desses adolescentes. LÍRIO: _Então que a gente, de uma forma bem simples, o que a gente (os enfermeiros) plantar nessa cabecinha agora, enquanto adolescente, vai refletir (refletir o que? Como?) no futuro [...] 124 ROSA: _Educação em saúde e enfermagem né, eu coloquei “a arte de cuidar bem da sua saúde”(apresentado o almanaque), coloquei o que a gente (enfermeiros) faz, essa arte de cuidar, de se comprometer com a saúde do outro, e essa interrogação que eu coloquei, ás vezes pra gente, a gente não tem a dúvida, mas na cabeça das outras pessoas o que pra gente não é dúvida*... então muitas interrogações, muitas coisas que a gente com o nosso conhecimento, praticando realmente a educação em saúde a gente (enfermeiros) pode está esclarecendo esses fatos né. “A informação é sua maior aliada” (apresentado o almanaque), né, a gente vai estar levando uma ajuda pra essa pessoa, ou pras pessoas, os adolescentes o público em geral. MARA: [...] _é isso que eu acho que eu procuro tentar sempre tá fazendo essa educação em saúde com os adolescentes você tem que tá sempre se atualizando, e se atualizar e passar pra eles o que é que tá acontecendo. POCAHONTAS: _Então eles lá (na escola) recebem informações a respeito que /, da saúde, que próximo à escola tem o posto de saúde, que tem atendimento pra os filhos se precisarem e outras e outras informações. No intento de transmitir para criar, para ajudar, para deliberar algum futuro ao outro vislumbro a tentativa dos profissionais em conscientizar os adolescentes. Aqui me permito dizer que tal possibilidade de conscientização aproxima-se do que Freire apresenta não como conscientização, mas como fundamento da concepção bancária onde: [...] a consciência é, em sua relação com o mundo, esta “peça” passivamente escancarada a ele, à espera de que entre nela, coerentemente concluída que ao educador não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo no educandos. Seu trabalho será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de “encher” os educando de conteúdos. É o de fazer depósitos de “comunicados” – falso saber – que ele considera como verdadeiro saber (FREIRE, 2005, p.72). Constitui-se assim o que Orlandi (2009) refere sobre a presença de conteúdos ideológicos substituindo os referenciais de ensino, aqui reconhecido pelos profissionais como conhecimento legítimo, que poderá conduzir os adolescentes a um futuro consciente. Após a produção artística proposta pelas DCS, a discussão nos grupos toma o caminho decodificador sobre os pressupostos que constituem os enfermeiros 125 enquanto profissionais educadores em saúde junto aos adolescentes. Reforçando o caráter de discurso pedagógico como mantenedor dos dizeres, aparece nas falas a perspectiva de informação, objetivo do DP (ORLANDI, 2009). O uso da metalinguagem como definidora de conceitos elaborados, que estabelecem o aspecto científico e desconsidera o senso comum ao fortalecer o ideal de informar, transmitir, sem perspectivas de reflexões, pois as questões estão reduzidas ao “é-porque-é” (ORLANDI, 2009, p19). Orlandi (2009) alerta para outra produção da metalinguagem: a instituição de recortes do objeto, fragmentando para homogeneizar, determinando de onde o saber legítimo deve ser produzido. Não há sustos, dúvidas ou questões sem resposta. Assim se constrói o saber devido, o saber útil (vale perguntar pra quem?) (ORLANDI, 2009, p. 30). Valendo-se dos artifícios metalinguísticos que o DP autoriza, Lírio Rosa, Mara e Sandra determinam quem (enfermeiro) e onde (posto de saúde) as informações educativas que proverão saúde aos adolescentes são encontradas. Vestem-se da responsabilidade na atualização de informações para passar o que o adolescente necessita encarcerado essa relação educativa ao território estático do binômio UBASF-escola. Distanciam-se assim de uma relação educativa libertadora, que prima pelo diálogo com o outro, diálogo que promove movimentos críticos e rebeldes na expressão dos seres. Institui-se sim aqui, relação “quietista”, que engessa os adolescentes frente ao saber profissional (FREIRE, 2009). Essa perspectiva educativa de transmitir encontra-se enraizada nos discursos (paráfrase), onde desconsiderar o diálogo apresenta-se de forma dócil no enunciado de Mara, sobre a proposição de atualizações que justifiquem o “passar” dos acontecimentos vigentes aos adolescentes, ou no produzido por Guerreira que antecipa a necessidade do adolescente para justificar o direcionamento de suas ações educativas. GUERREIRA: _E assim a gente tem as dificuldades que eu encontrei, primeiro foi de trabalhar uma temática (que temática?) que pra mim não é interessante e muito menos pra eles. É eu por mim, 126 eu enfermeiro eu nem podia tá dizendo que pra mim isso não é interessante, mas eu não gosto de trabalhar isso, pelo menos com adolescente não. PESQUISADOR: _O que é? GUERREIRA: _Hipertensão,/ medir criança, olhar se tem mancha, eu acho que isso é muito do pai e da mãe, na puericultura a gente já faz esse trabalho,/ e assim, eu acho que não é o foco deles, e assim, não é o que eu gosto de trabalhar com eles. As formações discursivas de Mara e Guerreira apresentam palavras e sentidos diferentes às mesmas proposições: eu educo a partir do meu saber, do que me é interessante e porque não dizer, do que me é seguro. Compreendo o não dito que salta desse discurso movido pela necessidade do educador proteger-se do que possivelmente não venha a conhecer, negando a possibilidade de trabalhar questões que não lhe são confortáveis ou não lhe parecem do seu interesse. Em seu discurso Guerreira renega a importância para os adolescentes de trabalhar questões provenientes de adoecimentos, utilizando a antecipação que produz a projeção do interesse desses adolescentes como subterfúgio para o que a mesma anuncia: não é o que eu gosto de trabalhar com eles. Reflito aqui através do pensamento de Freire (2005), que para Guerreira trabalhar com questões próprias do adoecimento em sua comunidade numa perspectiva libertadora implicaria trazer o reconhecimento crítico de uma série de questões possíveis para o processo do adoecimento. A mesma referiu atuar numa área pobre e com a presença de diversos problemas sociais. A discussão com adolescentes sobre hipertensão arterial (assunto rejeitado pela profissional) pode enveredar por caminhos que vão além dos condicionantes genéticos. Pode trazer a tona fatores como alimentação saudável e qualidade de vida que podem estar atrelados a conflitos econômicos sobre os quais a profissional não ousa discutir com os adolescentes. Esse reconhecimento crítico despontaria uma situação opressora e poderia iniciar movimento transformador na busca do “ser mais” por esses sujeitos. O não ousar da profissional repousa na condição do silenciamento que esse locutor ocupa no contexto social que não lhe permite o “dizer” pela cientificidade e por sua posição instituída: profissional liberal, em busca de 127 reconhecimento profissional e desejoso na manutenção do seu labor, do seu sustento, que se encontra sem nenhuma estabilidade profissional sujeita ao olhar governamental. Nesse contexto, as proposições metalinguísticas sustentam a separação do biológico constitutivo (genético) e o biológico social (fatores de risco), amparados por constructos ideológicos de uma educação que faz do profissional também oprimido onde “[...] acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la” (FREIRE, 2005, p. 37). LÍRIO: _Então eu penso na saúde dentro da educação em saúde não só naquele momento que a gente faz na palestra né, nas campanhas que cobram muito da gente, que muitos companheiros (os gestores municipais), como diz minha mãe deixa só pra cobrança das campanhas e deixa esse momento de educação pra lá. Os companheiros ora referidos por Lírio são os gestores municipais que “cobram” atividades de educação em saúde pontuais e programadas a depender do momento e perfil epidemiológico municipal. A profissional apresenta movimento contrário ao engessamento produzido por práticas tradicionais (não é só naquele momento que a gente faz na palestra), reflete na possibilidade das práticas educativas estarem vivas em diversos espaços, emergindo assim da uma condição instalada de educação em saúde campanhista. Entretanto Lírio transparece resquícios verticalizados no direcionamento de suas ações. A visão do gestor e carência de políticas claras em relação ás ações educativas dos enfermeiros são apresentadas por Roecker, Budó e Marcon (2012) como fatores dificultantes nas mudanças das práticas educativas da enfermagem. Na condição de opressores que não se destituem também do papel de oprimidos, os enfermeiros fazem enunciações polissêmicas que desnudam a proposição ideológica de uma educação dominadora. Assenta-se nessa situação existencial o reconhecimento do enfermeiro enquanto oprimido, que tenta se movimentar dentro dessa realidade assujeitada, mas que é subjugado pela sua condição de opressor. 128 FLOR: [...] _que a própria educação em saúde acaba sendo uma propaganda que a gente faz, boa ou ruim, porque se a gente vai falar daquilo dali, você pode fazer, você pode através..., as vezes o que você vai tratar na palestra depois a pessoa vem individualmente tirar as dúvidas perguntar as coisas, se você fala bem, se você consegue se expressar, consegue fazer uma boa propaganda daquilo dali, eu acho que os frutos são bem melhores do que quando você simplesmente joga (esse joga refere-se ao conhecimento repassado), porque muitas vezes... é acontece de vai e faz porque tem que fazer, então vai e joga ali e pronto, e eu acho que quando é assim não rende, não tem > (aqui refere-se as práticas educativas realizadas no automatismo, depositando, sem possibilidade de enxergar aproveitamento) > VIOLETA: _Não tem força né! FLOR: _Exatamente! Flor reflete em seu discurso a ideia de uma relação educativa verticalizada, interposta por tirar dúvidas, onde o sucesso nessa interlocução projeta a imagem de bom educador. Porém a profissional traz uma produção polissêmica que prontamente é aceita por Violeta de que apenas jogar, ou seja, transmitir não apresenta modificações na vida do outro. A leitura propagandista do educar mostra-se como paráfrase de uma educação que mantém a dominação e o convencimento como apriori, que se mostra indiferente ao conteúdo e dúvidas do outro, pois o que está em jogo é o conhecimento do profissional e sua habilidade de dominar através do conhecer. Aqui, a pedagogia da propaganda é vívida na pedagogia da resposta, do convencimento, onde “o que se pretende autoritariamente com o silêncio imposto, em nome da ordem, é exatamente afogar nele a indagação (FREIRE, FAUNDEZ, 1985, p. 47). As indagações críticas dos educandos assustam aos educadores autoritários que prezam pela “castração da curiosidade” do outro por medo, um medo gerado pelas possibilidades de resposta (FREIRE, FAUNDEZ, 1985). Penso na ideia que educar em saúde deve proporcionar tais inquietações e ser geradora de questionamentos. Só assim se inicia o verdadeiro conhecimento, através da pergunta. Freire e Faundez (1985) defendem a educação que a priori facilita e prima pela pergunta ao invés de ofertar respostas prontas, e afirmam ser papel do 129 educador ajudar o educando “a melhor perguntar (FREIRE, FAUNDEZ, 1985, p. 48)”. Lopes e Tocantins (2012) refletem sobre educação em saúde fundamentada numa concepção que supera a habilidade de memorizar dos educandos, e sim uma prática que estimule inquietações necessárias para as críticas sobre suas condições de saúde. O cerne da pedagogia libertadora transita de forma silenciosa por meio da discursividades dos enfermeiros, numa trama quase planejada e mesclada pela interdiscursividade e leve toque polissêmico, que, se não há mergulho no contexto discursivo pode se manter a impressão de uma segunda ideologia de base: PLANTA: _Então o meu desenho ele é um muro,(apresenta seu desenho) onde eu coloquei cada quadradinho como um tijolo, e eu concebi educação em saúde como a *..., dando continuidade o que a Guerreira falou, que é uma atividade né, um trabalho de formiguinha, que é construtiva, então que eu chego lá*... (chega lá aonde?), e que essa base do muro ela é feita por nós, não é... os, os, posso dizer o preceptor, não gosto nem de usar essa palavra (porque a resistência em usar essa palavra?), ah / o profissional, o preceptor da educação em saúde, e que a construção dessa atividade ela se dá em cima da reflexões que a gente (os enfermeiros) lança, então cada indivíduo vai ser dono do saber dele, vai construir o próprio saber dele, não vai ser eu que vou dizer, fulano você tem que fazer isso, fulano você tem que fazer aquilo, então ele vai ser o próprio construtor do saber dele. Então que esse muro, a construção desse muro, vai depender do que ele acha melhor pra ele, do que é que ele quer pra ele. Então*..., e nesse trabalho de construção do muro eu também construo o meu muro, então, é uma via de mão dupla, uma prática construtiva, que a gente ensina e também aprende. Planta durante toda a DCS propõe a ruptura dessa prática educativa tradicional com construções que apontam o educando como protagonista e escritor de sua história, corroborando com a visão freiriana de que “ninguém educa ninguém” (FREIRE, 2005, p.78). O profissional entretanto desliza na proposição ideológica circulante do discurso pedagógico dominante ao determinar que os enfermeiros lancem as reflexões que direcionam as práticas educativas, sem preterir a realidade e necessidade do interlocutor. Freire (1996) defende que o pensar certo, ingrediente do processo educativo libertador, não pode ser realizado sem entendimento, e que tal 130 entendimento não pode ser transferido e sim coparticipado, destituído de cuidados alienadores implicados na comunicabilidade. O pensar certo segundo Freire (1996, p.39) “tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor”. ROYAL: _A escola diz a necessidade do adolescente, mas será que é aquilo que ele tá precisando? Eu acho que o adolescente devia participar, se não todos, selecionar alguns, vê o que, qual é a oficina que vocês querem, qual é o assunto que vocês tão precisando agora, né! Muitas vezes eu sento com a diretora (entonação de indignação, questionamento), a diretora: eu quero isso, isso e isso,/ ou o diretor, como a gente tem uma escola que é de adolescente que vai na nossa escola e diz: eu tô precisando disso. Mas será que é o que o adolescente tá precisando? Nesse fragmento a profissional se faz sujeito, e propõe também esse lugar ao adolescente ao reconhecer a necessidade de ouvir e trabalhar sobre de acordo com o desejo e necessidade do outro. Percebe-se então a soberania da escola cumprindo o papel de reprodutora das hierarquias sociais fundada nas relações de força, inclusive sob o enfermeiro (ORLANDI, 2009). Nesse movimento de reconhecer a necessidade de mudanças nas práticas de educação em saúde, os enfermeiros enquanto educadores (oprimidos ou opressores) propõem estratégias para recondução dessas práticas, mas que em seu devir (re)dimensionam o mesmo, o que regula (segunda situação existencial). Os artifícios educativos presentes nos discursos acimentam uma prática tradicional ao mesmo tempo em que propõe rupturas por meio dos dizeres dos enfermeiros ao reconhecem a necessidade de mudanças nas atividades vigentes como possibilidade ao rompimento ideológico tradicional. Uma prática comum e reconhecida no meio profissional é a realização de palestras educativas. Tal vivência apesar de predominante foi apresentada pelos profissionais como prática desvalorizada que preza realização narrativa em forma quase de monólogo. PAMELA: _Eu coloquei aqui educação em saúde e enfermagem né.// Eu coloquei aqui, é / a mãe ... / primeiro assim, eu acho que educação em saúde e enfermagem ainda é um pouco precária né. A gente não vê assim*,/ porque assim*..., educação em saúde é mais assim, as palestra que a gente entende o que: ai meu Deus do céu, 131 educação em saúde a gente (a gente quem? O profissional?) vai logo *: Palestra. Mas assim, é // não é bem assim né (o que não é bem assim? A prática educativa não se reduzir apenas a palestras?) / não é só assim, então assim, quando a gente pensa educação em saúde na enfermagem, é / a gente pensa logo na palestra em si [...] VIOLETA: _É como a Pamela falou educação em saúde não é feito só com palestras é feito né... PALOMA: [...] _tem que ter mudança, porque todo mundo já pensa mesmo que é aquela questão só de ir, de falar e dar palestra, então a gente tem que mudar, tem que inovar, e pronto. (10’44’’ – 11’20’’) 36 segundos A manutenção discursiva sobre a predominância da palestra confere às práticas do enfermeiro educador características verticalizadas. Porém ao reconhecer tais práticas como insuficientes e até precárias como proposto por Pamela, reforçados na incompletude dos pensamentos, o olhar desse profissional é deslocado para a necessidade de relações aproximadas. Atrevo-me a dizer que reconhecer a necessidade do diálogo em suas relações educativas é reconhecido pelo não dito como urgência de mudança, onde o monólogo tange o insuficiente. Chagas et al. (2009) consideram que práticas repetitivas e descontextualizadas, escoradas em saberes verticais desvirtuam e desinteressam enquanto tecnologia educativa viva para promoção da saúde. Contanto, reconhecer a participação dos adolescentes como fundamental nas práticas de educação em saúde assim como a proposição de técnicas que possibilitem a problematização e integração entre educando e educador não garantem nova perspectiva de atuação. ROYAL: _E eu acho assim, com o adolescente (aqui a profissional faz alusão aos adolescentes maiores), o pouco que eu trabalhei com eles, é que muitas vezes a gente vai na escola, organiza o PSE*, sim vamos lá qual o seu nome, as palestras que tu quer, as oficinas [...] porque muitas vezes a gente vai falar de DST Aids: "Isso ai de novo?"(indagação feita pelos adolescentes) Aí eu já tenho que mudar minha estratégia porque ele já sabe [...]. Torrezan, Guimarães e Furlanetti (2012) apresentam a oficina como tecnologia positiva para se ensinar fazendo, onde a interação conteúdo/sujeitos expandem os sentidos e fomentam o aprendizado e interação coletiva. As autoras 132 propõe a conexão do corpo enquanto ferramenta para o trabalho, voz e ouvidos para a constituição das narrativas e a alma enquanto dispositivo de memória. Todos esses constituintes fortalecem a interação e o diálogo participativo. O recorte discursivo de Royal traz reconhecimento de ferramentas que estimulem a participação e o diálogo, e fala de um profissional que se reconhece tradicional e abre-se para novas possibilidades. Esse discurso revive no profissional a possibilidade de libertar-se da condição opressora, da construção de sujeitos problematizadores e relações dialógicas que redirecionem as relações ora vigentes. Há de se atentar que a inovação do método não garante a mudança episteme educativa. O processo de mudança de mentes, colonizadora – colonizadas, leva tempo e requer ampliação de perspectivas, pois tais constituições imaginárias carecem de ser substituídas por mentes críticas (FREIRE, FAUNDEZ, 1985). Parece-me simplista e ao mesmo tempo arriscado eleger uma técnica como potencialmente transformadora enquanto as subjetivações dos envolvidos transitam na opressão e tradicionalismo. A proposição de Royal em saber por quais oficinas o adolescente se interessa se apresenta em sua discursividade como possibilidade de dispositivo libertador, mas finda em retratar uma etapa de tarefa instituída na tentativa de obter sucesso em sua estratégia de ação que não permite discutir o que possivelmente é sabido pelo outro. Outro artifício que se fez presente nessa situação existencial foi à formação de grupos como catalisadores educativos. O grupo constitui-se como ferramenta e fecundo território de encontros para a educação participativa em saúde, mas que necessita da coparticipação de todos os envolvidos para ser definido como tecnologia emancipatória e geradora de relações horizontais (GONÇALVES, SCHIER, 2005). POCAHONTAS: _Assim / como eu realizo né as práticas educativas. No posto de saúde eu sempre tenho apoio da escola, quando eu quero fazer uma atividade na unidade, porque eu tenho dificuldade de formar aquele grupo de adolescentes, eu nunca consegui manter o grupo,/ porque eles faltavam (porque eles faltavam?) muito, então quando eu quero fazer uma atividade educativa assim na unidade, então ligo e agendo com a professora, ela manda uma turma ou duas e agente faz uma roda de conversa. Isso aqui, eu né, falando blá blá 133 blá, e aqui são os, são os adolescentes (mostra seu desenho representando sua atividade educativa). Também na escola, eu sempre vou e tenho o apoio de algumas pessoas do NASF. A gente leva álbum seriado, passa algum vídeo educativo, fala sobre gravidez na adolescência, vacinação, bullyng, essas coisas que você também já fazem. ROSA: _Então eu tenho uma realidade um pouco diferente. Há pouco tempo a gente terminou um grupo de adolescentes no posto, foram duas turmas e a gente tinha procurado captar os adolescentes... é essa captação pra levar pro posto através da escola, a escola da área, da equipe a gente foi na escola captar esses adolescente e nós formamos um grupo e eles iam ao posto, então foram duas turmas [...]. A estratégia de Pocahontas e Rosa em utilizar o grupo como espaço para educação em saúde reforça a prática de coerção que utiliza da tutela que a escola exerce sobre o adolescente durante o horário de aula para que sejam “mandados” para os grupos educativos. Reconheço nessa situação pertinência semântica da palavra mandado enquanto “enviado”, o que vai, e o que obedece, que é submetido. Em revisão integrativa da literatura que realizei, os dispositivos educativos mais utilizados pelas enfermeiras em atividades educativas foram os grupos e oficinas, presentes em 35,71% e 21,42% respectivamente na amostra estudada. Acreditar, porém, que práticas educativas se reduzem a formação de grupos ou realização de oficinas podem esvaziar essas ações quando não se percebe os pressupostos teóricos que devem fundamentar tais atividades. Em disposição a tal revisão e mediante enunciações dos enfermeiros apresentadas anteriormente (Rosa, Pocahontas e Royal) penso que devemos ter cautela ao apresentar práticas educativas potencialmente transformadoras e vivenciá-las como transmissoras, ou até mesmo impositores de uma realidade que possivelmente liberta, porém com movimentos tradicionais como o que vem sendo criticado. A proposta de artifícios na condução da prática educativa do enfermeiro ultrapassa proposição de subterfúgios técnicos, trazendo a consciência subterfúgios relacionais como artifício educativo. FLOR: _É um desafio mesmo por que ai tem que ser bastante criativo né, porque se você não for, eu tinha até colocado aqui, porque se a gente não for criativo... acaba que se você for só lá pra frente e falar, falar, falar (referência a palestra no modelo tradicional), 134 é capaz deles tomarem de conta da situação e você não conseguir mais dominar nada, então acho que a gente tem que ser criativo. MISTERIOSA: _Comigo não acontece isso, os meus são adolescentes acima de 12 anos, então assim, eles não trazem cartão de vacina mas com a orientação da gente dada na hora ás vezes a gente acaba é, convencendo, então eles acabam tomando a vacina, mesmo sem o cartão de vacina. Compreender educação como uma forma de “invenção do mundo” (FREIRE, 1996, p.98), transcende os conteúdos e possibilita a reprodução ou desmascaramento ideológico predominante. Nos recortes discursivos de Flor e Misteriosa, elas discutem sobre desdobramentos afetivos constituídos através de criatividade e convencimento. Tais artifícios podem inicialmente indicar estarem em pólos opostos por sua constituição de sentidos, mas na realidade são constituição parafrásticas alusivas a instrumentais dominadores. Alerto principalmente para a criatividade como estatuto positivo para educação que por um instante consegue nos cegar para a perspectiva de inovação e quem sabe rejeição da opressão em detrimento da liberdade. O indivíduo, aqui o enfermeiro, é interpelado à ideologia e a língua “significando e significando-se pelo simbólico” (ORLANDI, 2008, p. 100). Ou seja, o sujeito constitutivo é submisso a língua, a língua inserida na história enquanto produção de sentidos, trazendo nas formações discursivas “o lugar de constituição do sentido e de identificação do sujeito” (ORLANDI, 2008, p.103). Nesse instante, por meio da instituição simbólica presente no dizer de Flor, criatividade revela-se como artifício dominador, como possibilidade de controle de uma situação que insinua desestabilidade na força do educador (é capaz deles tomarem de contam da situação). A criatividade proposta não corrobora com a prática educacional criativa “que envolve todos os sujeitos para a superação de limitações, trazendo responsabilidade, autonomia e que, entre outros diversos fatores, oportuniza ampliar a visão de mundo” (BACKES et al., 2008, p.864). Permito-me considerar que a criatividade deve transforma-se em tecnologia inspiradora e atrativa para os que participam da educação em saúde, tanto em posição de educando como de educador. Pode apresentar-se como prática estética, complexa de pedagogias educacionais, e potente ferramenta de transformação quando revestida de consciência, crítica. 135 A instituição de artifícios é atravessada por sentidos metafóricos constitutivos de uma educação dominadora. Observemos o diálogo de Planta ao termino da discussão proposta na DCS o sentido de troca atribuído à prática educativa com adolescentes: PLANTA: _Então o meu PSE, a forma como eu construo educação em saúde né, a roda de conversa na escola, então quando eu comecei a fazer o desenho eu fiz aqui uma forma circular e eu fiquei: e agora o que é que eu vou fazer, como é que eu vou desenhar cada aluno desses? Então eu denominei como se fossem cada um um ponto cardeal né, onde o enfermeiro tá inserido dentro desse contexto, não existe aquele contexto do enfermeiro lá na frente na palestra, a minha forma de trabalhar eu gosto de sentar e ficar no mesmo patamar dos alunos (qual seria esse patamar?), e dentro dessa roda fica inserido todo o saber e a troca de informação, então essa é a forma como eu realizo a educação em saúde. E,/ o sentido pra mim da educação em saúde, hoje no Programa saúde da Escola, ela se perdeu um pouco, dando continuidade o que a Guerreira falou, que os alunos reclamam muito, é o que eles dizem: eu gostava mais quando tinham as palestras e os sorteios de brinde. Então os alunos ficam muito presos, nessa coisa *... a gente tem que dá um alguma coisa pra poder chamar atenção [...]. Como apresentei em outro momento, Planta traz ideias aproximadas de uma prática educativa libertadora, mas que nas tensões polissêmica que escapam no DP instituído pelo grupo, reconhece aqui a diferença de patamar entre adolescentes e enfermeiros, diferença essa constituinte das condições discursivas retratada pela relação de força existente entre eles, o qual renuncia a sua condição representativa maior e “desce” ao nível dos alunos como requisito educativo igualitário. Penso no que Freire (2005) discute sobre reconhecer os homens como pessoas livres e não consolidar ações que objetivem essa condição constitui-se na realidade uma farsa. Tal farsa desnuda-se na ideologia educativa tradicional principalmente no constituinte metafórico apresentado pela troca de informação, troca essa mediatizada não pelos saberes e possibilidades de críticas e de diálogo, mas em trocar algo material para chamar a atenção. Segundo Freire (2005, p. 42): Este é um dos problemas mais graves que se põem a libertação. É que a realidade opressora, ao constituir-se como um quase- 136 mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências. A arte de educar não deve se forjar em contentos piedosos e técnicos como propostos pelos artifícios aqui discutidos, pois reduzem os sujeitos a entes vazios e abstratos. Atento assim para a possibilidade de desestabilização de nossas verdades como dispositivo que acolhe as sensibilidades e produz a tomada de decisões conscientes, não somente a do educando, mas também a do enfermeiro como educador. Finalizando a discussão desse capítulo ressalto a constituição dos processos discursivos que identificaram essa formação discursiva: a metaforização botânica alusiva às práticas educativas. Inferências ao plantio das ações de educação em saúde, associação dos educandos a solos férteis e vazios e a educação enquanto caule que suste o ser nos remete aos primórdios de nossa educação: o jardim da infância. Este termofoi criado por Friedrich Frobel, que considerava as crianças como plantinhas de um jardim, que necessitavam ser regadas, cuidadas e preparadas para render bons frutos (FERNANDES, 2011). O intento do pedagogo era, entretanto prover liberdade para o desenvolvimento desses seres. Em algum momento de nossa história essa diretriz libertadora se desvirtua e nos escapa para a educação tradicional que enquadra e nos acompanha até a vida adulta. 137 CONSIDERAÇÕES FINAIS 138 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao buscar entender o que fundamenta as práticas de educação em saúde com adolescentes numa perspectiva que transcende “o que se faz” para a leitura “de como se constitui esse fazer”, fui desafiada na releitura de cenários e saberes que me constituíram enquanto profissional. Nesse compasso confesso que a escolha pela análise do discurso possibilitou-me compreender que as superfícies reais destoam da exterioridade, do visível, do seguro. Tal compreensão foi fundamental na leitura do constructo ideológico que ampara os profissionais de enfermagem em suas ações educativas. Revisitando os capítulos anteriormente expostos reconheço a Educação Opressora entranhada nas práticas educativas do enfermeiro. Tal educação assenta-se no discurso pedagógico que direciona as constituições sociais, culturais e educacionais que convergem à formação imaginária do processo de educação em saúde com adolescentes, agregando estruturas e as remodelando. Permito-me fazer um paralelo da formação imaginária da prática de educação em saúde com a formação de um ciclone. O ciclone forma-se a partir de um ponto comum (ar quente), atraí partículas do ambiente para sua constituição, onde será preenchido até a formação do centro (ar frio). Percebe-se que o constituinte inicial é o mesmo do final (ar), modificado apenas em sua temperatura e pressão. Apresento assim a prática de educação em saúde realizada pelos enfermeiros, nascida em uma linhagem tradicional que optei nominá-la por opressora (como explicado anteriormente), linhagem de cunho político e sócio cultural que teima em destituir os sujeitos de seus espaços e realidades, agregandolhes o que convêm numa perspectiva macro em detrimento de suas subjetividades. O movimento mantém-se na circularidade oprimida e conflui para práticas de educação em saúde também opressoras. Apresento graficamente o modelo de formação do ciclone para melhor compreensão dos acordes de minhas considerações. 139 Figura 05. Modelo ciclone representando a constituição da prática de educação em saúde dos enfermeiros com adolescentes EDUCAÇÃO OPRESSORA VIGILÂNCIA AO CORPO (EPISTEME) PSE (EPISTEME) O ADOLESCENTE NÃO SABE (OUTRO) O ENFERMEIRO ENSINA (EU) Formação de Enfermeiro (EU) Compreensão do ser adolescente (OUTRO) EDUCAÇÃO OPRESSORA Na compreensão da ideologia que rege as práticas educativas dos enfermeiros junto aos adolescentes, refletirei sobre a formação ciclone das práticas de educação em saúde a partir das condições de produção do discurso e das formações discursivas que constituíram esse estudo como produtores desse movimento contínuo e circular. Aqui, as condições de produção de discurso são os componentes externos que se agregam e versam uma prática que aprisiona, modela, reproduz. Essas condições balizam o processo educativo dos profissionais e constituem-se como componentes primários da formação ideológica. Tal ideologia transparece por meio das formações discursivas presentes nos enunciados do grupo pesquisado. Aqui proponho repensar tais proposições (condições de produção do discurso e formações discursivas) a partir de três constituintes que considerei no modelo acima apresentado e que delineiam a formação imaginária abstraída da prática de educação em saúde dos enfermeiros junto aos adolescentes: o outro (interlocutor/educando), o eu (locutor/educador), e a episteme (objeto/educação em saúde). 140 O eu aqui é representado pelo enfermeiro. A formação do enfermeiro apresenta uma construção tradicional e impositiva. Os conteúdos biológicos atravessam toda a sua trajetória acadêmica, condicionando as ações de educação em saúde como prática isenta de fundamentação teórica e constituinte basal para prática. Essa realidade acompanha o enfermeiro e o faz acreditar que ser educador é um apriori da profissão. Baseados nessa crença, os profissionais participantes desse estudo desconhecem os diversos referenciais teóricos que podem amparar uma prática educativa consubstanciada, repetindo padrões ora aprendidos (ou apenas reforçados) no universo acadêmico. Nesse instante, esse eu é uma mescla. Uma parte de si é oprimido por esse constituinte formador tradicional, que lhe nega a possibilidade de novos olhares e diversas tonalidades que poderiam tingir sua face profissional, acinzentando um perfil educativo numa perspectiva prescrita: Eu educo. Assim, enquanto oprimido também se constitui opressor, que higieniza, que sabe, que conduz. É o enfermeiro que educa e que traz para o ser adolescente a possibilidade de uma vida saudável constituída a partir de seus ensinamentos. O enfermeiro sabe. Há constante tensão entre os papeis de opressor e oprimido na discursividade dos enfermeiros retratada aqui pelas polissemias e metáforas que por vezes rompem o que esta instituído (paráfrase) e (re)significam em si, apresentam lacunas de onde saltam novos sentidos e possibilidades de reinvenção de sua prática. Nesses espaços vislumbro a possibilidade de um novo eu. Essa constituição ascende e apresenta mais um constituinte na formação desse ciclone: o outro. Esse outro figurado pelo adolescente é em sua grande maioria projetado através da lente a qual o eu foi construído. Daí esse outro deve ser vazio, destituído, para que o eu educador possa existir, se materializar e depositar sua pretensão opressora e autodenominar-se educador. Esse adolescente deve estar apto para receber a educação. Deve estar preparado para constituir-se do lugar de onde o educador lhe impõe, deve distorcer sua realidade para que esta caiba nas regras corretas do bom viver. O adolescente continua a ser sujeito sem voz, sem espaço e sem cor. Seu retrato é pintado de um lugar social submisso, que não considera seus valores, suas vivências, suas “tribos”. O adolescente “deve” aprender, e com esse aprender 141 deve responsabilizar-se totalmente por sua saúde independente da possibilidade de outros fatores afetarem sua existência. Essa relação educador / educando retalha a episteme constituinte dos primórdios da Enfermagem: saber pautado no modelo biomédico, com exercício de um cuidado prescritivo e asséptico. As ações de educação em saúde com os adolescentes apresentam-se nas discursividades dos enfermeiros em sua grande maioria direcionadas para a prevenção de doenças (com ênfase para as sexualmente transmissíveis) e da gravidez na adolescência. O que se pode ou não fazer é o fio condutor do diálogo entre enfermeiros e adolescentes. Essa educação castra, paralisa um corpo que se modifica, enrijece desejos transformando-os em culpa. Ao invés de conhecer para decidir qual caminho deseja experienciar, o que prevalece é um caminho científico pronto, que destituí esse adolescente da possibilidade de descobrir e viver seus desejos, calam e oprimem suas escolhas. Nessa jornada o enfermeiro certo do esvaziamento dos adolescentes produzem discursos que reconhecem a família e a escola como instituições educadoras que se figuram enquanto parceiras nessa obrigação de educar. Tal parceria é reconhecida como facilitadora na ação de educar em saúde, pois a escola “manda” os adolescentes ao posto de saúde para atividades educativas, a família “ensina” as regras da pacificação, assentando assim os comportamentos dos sujeitos que serão trabalhados pelo enfermeiro. Na realidade estudada essa prática ainda apresenta uma diretriz condutora maior, uma orientação ministerial, o PSE, onde se preconiza o olhar clínico ao corpo adolescente. A opção pelo modelo circuito de saúde com predomínio da clínica biologicista reforça a prática de vigilância aos corpos apresentando-se para alguns profissionais como escudo defensor para a possibilidade de reinvenção de seu cuidado educativo. O enfermeiro destitui-se da possibilidade da gestão micropolítica de seu trabalho e aconchega-se no caminho protegido por normatizações. Nega-se então um importante constituinte do trabalho educativo: a dimensão política. A assunção dessa dimensão possibilita o diálogo, institui a ética nas relações, propõe esperança e alegria. 142 Nesse instante, descubro como constituinte dessa episteme composições polissêmicas distorcidas para o que se pensou inicialmente como produtores de relações harmoniosas, longitudinais e afetivas: vínculo, escuta e autonomia. Na relação educativa com os adolescentes, os enfermeiros apontam tais constructos como fundamentais para a prática. No entanto, o que se lê na discursividade desse profissionais é a distorção das vivências relacionais propostas por tais conceitos, fundamentando uma prática que teima em manobrar os sujeitos, que vincula e escuta para moldar, que propõe uma autonomia que na verdade deve depender do saber de outro. Castra-se a curiosidade, nega-se a possibilidade da pergunta, pois esta pode não casar com minhas respostas prontas. Perde-se o constituinte estético de educar. Compreender a construção ideológica opressora que atravessa o enfermeiro em sua prática educativa pode inicialmente parecer desanimador. Como reconstruir tantos fundamentos opressivos em busca de uma educação em saúde dialógica, que proponha ao adolescente ou qualquer outro interlocutor a possibilidade de transformação participativa e real? Paulo Freire traz em toda sua obra a proposição de inédito viável, apresentando o sonho possível, a predição da Educação Utópica. Utópica não no sentido de impossível, mas sim no sentido de que virá, de que se há de construir. Acredito que conhecer os constituintes ideológicos pode nos conduzir a possibilidades de recriação. Saber a ideologia opressora que nos mantém me possibilita refletir e pensar possibilidades de enfrentar as situações limites que se impõem. Mediante o encontro com a discursividade desse grupo de enfermeiros, permito-me pensar em uma transformação e reinventar possibilidades já vivenciadas. Mantenho o tripé que ora considerei vital como constituinte do processo de formação imaginária e proposição ideológica desse estudo e repenso a prática de educação em saúde a partir do modelo estelar apresentado abaixo: 143 Figura 06. Dimensão estelar de uma Educação em Saúde possível. VÍNCULO E ESCUTA: DIMENSÃO ESTÉTICA O OUTRO EU EPISTEME AUTONOMIA E CURIOSIDADE; DIMENSÃO POLÍTICA RESPEITO E ESPERANÇA: DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA O OUTRO AUTONOMIA E CURIOSIDADE; DIMENSÃO POLÍTICA VÍNCULO E ESCUTA: DIMENSÃO ESTÉTICA EDUCAÇÃO EM SAÚDE EU EPISTEME RESPEITO E ESPERANÇA: DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA Os componentes apresentados na discursividade dos enfermeiros como diretrizes das práticas de educação em saúde não necessitam ser desconsideradas. Se eu assim fizesse, ao eliminar seus constituintes eliminaria também os sujeitos, e não é o que desejo. Tento com a produção da estrela de cinco pontas instigar encontros, ligações, aproximações. Considero no eu, no outro e na episteme possibilidades das dimensões que creio compor uma educação que liberta, que conscientiza como proposto por Freitas (2004): a dimensão política, que gesta autonomia, que respeita a curiosidade; a dimensão estética, que traz beleza através do encontro, da escuta e do vínculo que abrilhanta relações; e a dimensão epistemológica, que antes de tudo é condensada no respeito e produtora de 144 esperança. Repensar as possibilidades de uma prática educativa nessa perspectiva multidimensional conduz o enfermeiro a pensar em si, em sua palavra, no que se é e o que se pretende: promover educação em saúde viva e real, ou continuar como meros reprodutores de signos vazios de sentido. 145 . REFERÊNCIAS 146 REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M.G.; SILVA, B.S. Juventudes e sexualidade. Brasília: Unesco, Brasil, 2004. AFONSO, M. L. M. (Org.) Oficinas em dinâmica de grupo na área da saúde. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. AGUIAR, D. T.; SILVEIRA, L. 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Suas respostas serão tratadas de forma anônima e confidencial, isto é, em nenhum momento será divulgado o nome dos profissionais que participam desse estudo, nem os locais de trabalho ou outra informação que possibilite a identificação dos participantes. O estudo foi aprovado no Comitê de ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, e atende todos os preceitos éticos exigidos na pesquisa envolvendo seres humanos. Certa de sua colaboração, desde já agradeço e coloco-me a disposição para maiores esclarecimentos no telefone 8852-2598. __________________________________________________________ Manuela de Mendonça Figueirêdo Coelho Enfermeira, Discente do Programa de Pós Graduação em Cuidados Clínicos e Enfermagem e Saúde. Universidade Estadual do Ceará 158 APÊNDICE 2 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Caro (a) participante, Gostaríamos de convidá-lo(a) a participar como voluntário(a) da pesquisa intitulada “EDUCAÇÃO EM SAÚDE: OS DITOS E NÃO DITOS DA PRÁTICA DE ENFERMAGEM COM ADOLESCENTES”. O objetivo desse estudo é analisar a produção das práticas de educação em saúde realizadas por enfermeiros na atenção ao adolescente. Sua participação se dará através de discussões em grupo, com produções lúdicas sobre o tema estudado. Suas respostas serão tratadas de forma anônima e confidencial, isto é, em nenhum momento será divulgado o nome dos profissionais que participam desse estudo, nem os locais de trabalho ou outra informação que possibilite a identificação dos participantes. Solicito sua autorização para utilização de meios digitais como: gravador, máquina fotográfica e filmadora, no intuito de obter a maior quantidade de dados possíveis. Solicitamos a permissão para se necessário, a utilização das imagens em apresentações e publicações em eventos e periódicos, sem a identificação dos participantes. Informamos que esta pesquisa não trará riscos diretos à sua saúde, mas se houver algum problema ou desconforto, estes serão acompanhados pela pesquisadora que dará todo o apoio e encaminhamentos necessários para minimizá-los. Acreditamos nos benefícios que esta pesquisa trará com suas informações, pois serão repassadas aos gestores e aos profissionais, trazendo momentos de reflexão, além de aumentar a visão dos pesquisadores e cuidadores, sobre os pontos importantes a serem melhorados no planejamento e nas ações de cuidados junto aos adolescentes nessa unidade e outras. Assim, pensamos estar contribuindo também nas sugestões de políticas que melhorarão a qualidade dos serviços destinados aos adolescentes. As informações coletadas serão utilizadas nos resultados da pesquisa, os quais serão organizados para apresentação e publicação em revistas de circulação nacional e internacional e apresentados em eventos científicos. Garantimos ainda a liberdade para retirar-se da pesquisa a qualquer momento. Sua recusa em participar do estudo não trará nenhum prejuízo em sua relação com o pesquisador ou com a instituição. No momento em que desejar entender melhor a pesquisa ou se desejar desistir da participação, retirando o consentimento, poderá fazê-lo entrando em contato com o pesquisador de campo Manuela de Mendonça Figueirêdo Coelho pelos telefones (85) 88522598 ou e-mail: [email protected] e, ou com a orientadora Karla Correa Lima Miranda pelo telefone (85) 91712310, e com o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará pelo telefone (85) 31019890. Caso concorde em participar do estudo, assine este documento, que também será assinado pela pesquisadora de campo, o qual será preenchido em duas vias de igual teor. Termo de Consentimento Pós- Esclarecido 159 Eu, ____________________________________________, declaro que depois de ser esclarecido pelo pesquisador e ter entendido o que me foi explicado, concordo em participar da pesquisa. Maracanaú, ______ de ______________ de 2012. _______________________________________ Assinatura do Pesquisado _______________________________________ Assinatura do Pesquisador Responsável 160 ANEXO 1