HARMONIZAÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 ATRAVÉS DO DIÁLOGO DAS FONTES1 Andréa Nicotti Gomes Ferreira RESUMO A entrada em vigor do Código Civil de 2002 estabeleceu uma concorrência de normas incidentes sobre algumas relações jurídicas obrigacionais com relação ao Código de Defesa do Consumidor, lei 8078/90, uma vez que a lei geral passou a regular, por vezes, também as relações de consumo. De acordo com parte da doutrina, a superação para essas eventuais antinomias se daria através do princípio lex posterior generalis non derogat priori speciali, que se baseia na prevalência do critério de especialidade sobre o de anterioridade nos casos em que ambas as leis sejam ordinárias. Essa decisão, no entanto, seria paradoxal nas hipóteses em que o Código Civil de 2002 pudesse ser mais favorável à proteção do consumidor. O diálogo entre essas fontes, viável em razão de suas congruências principiológicas, é a solução que integraria os dois diplomas, alcançando, através da utilização complementar e subsidiária das normas do Código Civil, sempre o resultado mais favorável ao consumidor, satisfazendo, assim, não apenas o mandamento constitucional de proteção a esse sujeito de direitos fundamentais, como também a justiça no caso concreto. Palavras-chave: Código de Defesa do Consumidor. Código Civil de 2002. Princípios. Antinomias. Hermenêutica. Diálogo. Harmonização. INTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo buscar uma forma de harmonização para as aparentes antinomias que possam vir a surgir nas relações sistêmicas entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Mais especificamente, pretende aprofundar a pesquisa sobre o diálogo das fontes como método de superação dessas antinomias, visando a um resultado mais justo do que aquele que poderia ser produzido através dos critérios tradicionais apontados pela doutrina. O Código de Defesa do Consumidor, além de ter se apresentado como um diploma legal específico para a regência das relações de consumo, se mostrou inovador, à época de sua edição, também por inserir uma série de regras e princípios em nosso Direito. Ao identificar o caráter de hipossuficiência do consumidor na relação contratual de consumo e reconhecer a necessidade de proteção a este, rompeu com antigas noções clássicas do Direito Civil. O Código Civil de 2002, editado posteriormente ao Código de Defesa do Consumidor, sob a égide de uma nova realidade social, trouxe em seu texto normas por vezes mais benéficas do que as previstas no CDC e aplicáveis inclusive às relações de consumo. Neste sentido, caberá aos operadores do Direito solver este possível conflito de normas, existente entre as regulamentações do Código de Defesa do Consumidor e as do novo Código Civil, a partir de critérios hermenêuticos apropriados. Por outro lado, deve-se levar em conta que o Código Civil de 2002, ao contrário de revogar o microssistema principiológico do diploma 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso orientado pelo professor Adalberto Pasqualotto e apresentado à banca examinadora constituída ainda pelas professoras Lívia Pittan e Maria Alice Hofmaister em 25 de junho de 2007, cujo grau obtido foi dez. 2 consumerista, tem se apresentado como uma novel fonte que reafirma valores já insertos na Lei 8.078/90, tais como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio econômico. Desta forma, é mister que os mecanismos de interpretação sejam utilizados na busca de uma harmonização não só possível, mas necessária, entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, a partir do entendimento de que o ordenamento jurídico merece ser compreendido e utilizado não como um sistema fechado, em que a aplicação de uma norma signifique a negação de outra, mas como um sistema aberto e dinâmico, onde os dois diplomas possam coexistir e complementar-se, de modo a cumprirem suas finalidades. Com essa percepção, própria à análise de um direito social, e através do auxílio de critérios hermenêuticos apropriados à realidade de um direito pós-moderno, é que nos propomos a estabelecer um equilíbrio entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil, solucionando os eventuais conflitos existentes através da comunicação entre os dois diplomas. O atual ordenamento fornece todos os subsídios para a prática de um Direito mais justo, basta não se aceitar a cômoda e, por vezes, ilógica utilização de clássicas regras de soluções conflitivas e buscar interpretações construtivas mais condizentes com os princípios constitucionais pós-modernos. Os operadores do Direito têm crucial relevância nesse contexto e devem dedicar-se com seriedade e profundidade à análise das antinomias entre diplomas legislativos, a fim de encontrar o real sentido de cada norma, considerando sempre que se vive hoje uma realidade com pilares na eticidade, socialidade e operacionalidade2. A Constituição Federal impõe um novo enfoque ao direito atual, em que é imprescindível atenção à dignidade humana, à solidariedade e aos direitos diferenciados dedicados aos consumidores. A interpretação das normas sob a nova perspectiva proposta no nosso trabalho, com o reconhecimento das diferenças de status jurídicos e a integração de todo o sistema privado, constitucional e infraconstitucional, através de uma hermenêutica inspirada diretamente nos vetores axiológicos que formam o espírito das normas integrantes de cada diploma, tem a expectativa de chegar a instrumentos mais eficientes para a realização de uma harmonização entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. O método de abordagem a ser utilizado no trabalho será, predominantemente, o indutivo, fundamentando-se em pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais. No procedimento, utilizaremos o modelo monográfico. Outrossim, a técnica de pesquisa será documental, tanto na fonte primária judicial e legislativa, na medida em que nos valeremos do estudo de leis e jurisprudências, como também na fonte secundária - bibliográfica -, através de pesquisas em livros e revistas para averiguar os estudos já realizados a respeito do tema proposto. A fim de facilitar a compreensão do trabalho ora apresentado, foram esquematizados quatro capítulos: Inicialmente, para o desenvolvimento da pesquisa, estudar-se-á o caráter sistemático do ordenamento jurídico, para, após, analisar-se a conjuntura da hermenêutica pós-moderna, enquadrada em um contexto de abertura do sistema jurídico, bem como seu dinamismo. No mesmo capítulo, abordar-se-ão os critérios hermenêuticos tradicionais, à luz deste quadro atual em que se encontra inserida a ordem jurídica. Por fim, examinar-se-á o papel do juiz diante desta nova realidade, que deflagra uma relevância cada vez maior para a interpretação da lei na busca pela justiça social. No segundo capítulo, serão analisados aspectos fundamentais das relações sistêmicas do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002, tais como a evolução histórica dos dois diplomas, suas convergências principiológicas e limites de aplicação. 2 REALE, Miguel. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 7-12. 3 Ainda, verificar-se-á, como produto do estudo obtido no capítulo, se houve ou não a revogação do Código de Defesa do Consumidor pelo Código Civil de 2002. No terceiro capítulo proceder-se-á a um estudo aprofundado das antinomias jurídicas, tratando-se de aspectos gerais e fundamentais sobre a matéria, em tópicos como conceito, história e classificação. Por fim, dissertar-se-á acerca dos critérios tradicionalmente apontados pela doutrina de superação dos conflitos de normas, para que se possa concluir que, no caso de conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, nem sempre esses critérios encaminhariam a uma solução justa. Finalmente, no último capítulo, desenvolvendo o objeto específico deste trabalho, será apresentada e estudada a proposta da solução de antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002 através do diálogo das fontes, que sugere a comunicação e a coordenação entre os dois diplomas objetivando-se encontrar o sentido da norma mais favorável ao consumidor, na busca de conceder às leis uma maior efetividade social. Observar-se-á, também, neste capítulo, exemplos de antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 e a possível solução através do diálogo sugerido, além da análise de alguns julgados utilizando-se dele. Frisa-se, por derradeiro, que o tema, abordado sob as óticas jurídica e social, não tem a pretensão de exaurir todas as formas de diálogos possíveis entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, mas sugerir o diálogo sistemático de complementação e subsidiariedade3 como alternativa de superação de antinomias entre os dois diplomas, através da utilização auxiliar da lei geral às relações de consumo, no que essas puderem ser mais favoráveis ao consumidor. 1 A HERMENÊUTICA NO SISTEMA JURÍDICO PÓS-MODERNO 1.1 SISTEMA JURÍDICO ABERTO E DINÂMICO Neste primeiro momento do trabalho, importante que estudemos um ponto de extrema relevância para o alcance da harmonização de antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, qual seja, a interpretação das normas à luz do sistema pós-moderno: dinâmico e aberto. A questão do conflito normativo é, eminentemente, sistemática, razão pela qual convém apresentar uma noção de sistema. Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, sistema é um complexo que se compõe de um conjunto de relações, que forma sua estrutura, fornecido por um conjunto de elementos, que representa seu repertório.4 Desta forma, segundo o autor, a ordem jurídica, composta por elementos normativos e não normativos - repertório -, cuja disposição e relação entre si permitem identificar uma estrutura, pelo que se depreende de sua capacidade de determinar as regras para a criação e reprodução de suas normas, estabelecer sua validade e indicar sua aplicação, pode ser pensada como um sistema. Na mesma linha, a definição de Juarez Freitas, que entende ser o sistema jurídico constituído por conteúdo, e não apenas uma aglutinação de normas que guardam entre si senão uma relação de forma: 3 4 Expressão usada por Cláudia Lima Marques. (MARQUES, Cláudia Lima. Diálogos entre o CDC e o CC/2002. In: PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 18). FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4.ed. São Paulo: Atlas. 2003, p. 176. 4 O sistema jurídico é uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição5. O sistema jurídico, para Canaris, é dotado de dois lados, quais sejam, o objetivo e o científico, ambos em processo constante de abertura. O primeiro representa a ordem jurídica assente na idéia de codificação, enquanto o segundo pode ser entendido como as proposições doutrinárias da ciência do direito. A abertura do sistema objetivo se dá como conseqüência da modificabilidade dos valores fundamentais da ordem jurídica, pois o direito positivo é suscetível de aperfeiçoamento, resultado de sua essência dinâmica, como fenômeno colocado no processo da História, e, por isso, mutável6 . Essas modificações do sistema objetivo reportam-se, no essencial, a modificações legislativas, a novas formações consuetudinárias, e, subsidiariamente, às cláusulas gerais carecidas de preenchimento com valorações e à erupção de princípios gerais de Direito extralegais. Com relação ao sistema científico, a abertura se deve em razão do caráter de incompletude e provisoriedade do conhecimento científico, que acaba por tornar cada sistema científico apenas "projetos de sistemas", tendo em vista a possibilidade de reelaboração e progresso constante dos valores fundamentais do Direito vigente, através da obtenção de novos e mais exatos conhecimentos. Há que se considerar, portanto, diante deste quadro, a idéia de um sistema jurídico aberto, que acompanha as evoluções das relações sociais e termina por retratar uma real superação de paradigmas no que se refere à matéria jurídica. Esta abertura pode ser compreendida através da possibilidade de o sistema sofrer a influência de valores externos, metajurídicos ou extrajurídicos, que atuam diretamente sobre ele, alterando, internamente, seu conteúdo normativo. Além disso, a abertura do sistema jurídico propõe uma estrutura dialógica inclusive interdisciplinar7, de forma a partilhar desta interconectividade com outros mundo-sistemas, na busca de uma maior dimensão da justiça no seio da complexidade social8. Deste modo, conclui-se que se torna inviável a percepção de um conceito de sistema jurídico perfeito e fechado, à base de definições alheias ao mundo exterior, porquanto a ordem jurídica, para pretender-se válida, não pode explicar-se, meramente, através de parâmetros formais. Nesse sentido, o sistema jurídico é compreendido, felizmente, como inacabado e inacabável. Ademais, através desta idéia de reorganização de normas, decorrente da contínua transformação da realidade, assume o sistema jurídico também um caráter dinâmico. Nesse processo, normas são editadas, subsistem ao tempo, atuam, se defasem, são substituídas por outras ou perdem sua atualidade em decorrência de alterações nas situações reguladas. 9 Esta noção aberta e dinâmica do sistema pode também ser constatada através da coexistência de regras e princípios, que permite uma relativa descodificação da estrutura sistêmica, como explica Canotilho: Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa - legalismo - do mundo e da vida, fixando, em 5 6 7 8 9 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 54. CANARIS, 2002, p. 110. Ibid., p. 109-110. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1454. FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 178. 5 termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-seia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional. O modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios levar-nos-ia a conseqüências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflituantes, a dependência do “possível” fático e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema.10 Assim, podemos compreender que nosso sistema é jurídico por se apresentar como um sistema dinâmico de normas, e aberto porque tem uma estrutura dialógica de regras e princípios, traduzida na disponibilidade e na capacidade de aprendizagem das normas, para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da verdade e da justiça11. Esse sistema aberto e dinâmico torna-se exigível, sobretudo, na busca de uma igualdade não apenas formal, mas material, na medida em que possibilita, cada vez mais, a articulação da lei com o caso concreto. 1.2 NOÇÕES GERAIS DE HERMENÊUTICA Esta nova concepção de sistema jurídico acarreta conseqüências particularmente relevantes no que respeita à interpretação das normas, considerando-se, diante deste contexto que cria cada vez mais mecanismos para a adaptação da lei à realidade, a importância crescente da interpretação das leis. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, toda hermenêutica legislativa deve atender a três critérios básicos, em decorrência dos quais torna-se possível a esquematização de métodos de interpretação. Esses critérios são a correção (ou coerência), o consenso e a justiça. A coerência, ao buscar uma significação correta da lei, exige um sistema hierárquico de normas e conteúdos normativos. O consenso, por sua vez, exige respaldo social, na busca de um sentido funcional da lei. Já a justiça, ao procurar a finalidade justa da norma, exige que se atinjam os objetivos axiológicos do direito. Em função destes critérios, a doutrina sistematiza os métodos lógico-sistemático, histórico-sociológico e teleológico-axiológico12 de interpretação das leis, através dos quais se pretende atingir uma hermenêutica coerente, fundada na razão social da lei e que vise à justiça. Para isso, a conjugação destes critérios interpretativos deve conduzir à ratio legis, que representa o sentido, espírito ou razão da lei, fator decisivo para se fazer uma interpretação justa. Será, pois, a ratio legis que nos permitirá, enfim, iluminar os pontos obscuros e chegar à norma que se encerra na fonte13. A propósito, vale lembrar que não há varias espécies distintas de interpretação. Esta é única: os diversos meios possíveis de serem empregados ajudam-se uns aos outros, combinam-se e controlam-se reciprocamente, e, assim, todos contribuem para a averiguação do sentido legislativo14. A partir daí, o resultado que se pode alcançar através da interpretação poderá ser: declarativo, quando a interpretação feita da lei coincide com seu texto; restritivo, quando é 10 CANOTILHO, 2003, p. 1126. CANOTILHO, 2003, p. 1123. 12 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 286. 13 ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 396. 14 FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. Belo Horizonte: Lider, 2002, p. 23. 11 6 preciso limitar o sentido de uma norma, não obstante a amplitude do texto da lei; ou extensivo, se é necessário ampliar-se o sentido de uma lei para além do contido em sua letra15. Analisemos, então, os parâmetros interpretativos coerentes com um sistema jurídico pós-moderno apontados pela doutrina. 1.2.1 Interpretação sistemática A interpretação sistemática acompanha a idéia de um sistema jurídico aberto e dinâmico. Para Canaris, longe de tornarem inviável a formação do sistema, a incompletude do conhecimento científico e a modificabilidade da própria ordem jurídica, características do sistema pós-moderno, justamente possibilitam sua determinação a partir da realidade: À abertura como incompleitude(sic) do conhecimento científico acresce assim a abertura como modificabilidade da própria ordem jurídica. Ambas as formas de abertura são essencialmente próprias do sistema jurídico e nada seria mais errado do que utilizar a abertura do sistema como objeção contra o significado da formação do sistema na Ciência do Direito ou, até, caracterizar um sistema aberto como uma contradição em si. A abertura do sistema científico resulta, aliás, dos condicionamentos básicos do trabalho científico que sempre e apenas pode produzir projectos(sic) provisórios, enquanto, no âmbito questionado, ainda for possível um progresso, e, portanto, o trabalho científico fizer sentido.16 Assim, parte-se para uma interpretação sistemática das normas, com base no pressuposto de abertura e unidade do ordenamento, para alcançar uma visão em conjunto do sistema consonante com a atual pluralidade de funções do Direito Positivo, sobremodo em face das mudanças em curso na denominada sociedade pós-industrial. Rejeita-se, com isso, qualquer espécie de solipsismo hermenêutico, unilateralismos ou simplificações reducionistas e conjuga-se cada norma com todo o sistema, aplicando-se o Direito em sua totalidade valorativa, para além do estritamente contido na letra da lei, empregando-se o sentido mais justo, dentre os vários possíveis, aos princípios e às regras. Na visão de Norberto Bobbio, a interpretação sistemática pode ser entendida como aquela forma de hermenêutica que tira seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento, ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento como o Direito privado - constituam uma totalidade ordenada, e, portanto, seja lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma deficiente recorrendo-se ao que ele denomina de “espírito do sistema”17. Com relação ao método sistemático de interpretação, considera-se que a letra da norma é apenas o limite inicial da atividade interpretativa, e que a conexão lógica de uma expressão normativa com as demais do contexto é indispensável para a obtenção do significado da lei. 18 A interpretação sistemática, assim, não se contrapõe ou é incompatível à interpretação gramatical - lingüística ou literal - da lei: não se trata de operações separadas, porque além de terem o mesmo fim, realizam-se conjuntamente - são as partes conexas de uma una e indivisível atividade, a interpretação19. Muito antes pelo contrário: não há nenhuma interpretação sistemática que se separe do exame do texto20. A análise da letra normativa é o 15 16 17 18 19 20 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 294-297. CANARIS, 2002, p. 109. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10.ed. Brasília: UnB, 1999, p. 76. JUSEFOVICZ, Eliseu. Contratos: proteção contra cláusulas abusivas. Curitiba: Juruá, 2005, p. 202. FERRARA, 2002, p. 33. ASCENSAO, 2005, p. 387. 7 ponto de partida para o exercício hermenêutico, visto que fornece a percepção sobre sua convergência ou não com o espírito da lei. Este método de interpretação é utilizado para solver questões léxicas, partindo-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma21. O sentido legislativo, no entanto, pode não se identificar com o que, literalmente, se expõe. Afinal, o texto da lei é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos e portadoras de pensamento, mas podem ser defeituosas. Nestas condições, percebe-se a importância de uma visão sistemática da lei em conjunto com seu sentido literal. No fundo, pois, a análise léxica funciona apenas como meio para demonstrar um problema a ser interpretado, e não como um método de solucioná-lo. Só nos sistemas jurídicos primitivos a interpretação literal era decisiva, tendo um valor místico e sacramental. Em tendência contrária, com o desenvolvimento da civilização, esta concepção é abandonada e procura-se a intenção legislativa. Relevante é o elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida através das palavras do legislador. 22 Nas palavras de Franscesco Ferrara, A interpretação literal é o primeiro estágio da interpretação. Efetivamente, o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete. Uma vez que a lei está expressa em palavras, o interprete há de começar a extrair o significado verbal que delas resulta, segundo a sua conexão e as regras gramaticais. [...] As palavras hão de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados, deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, [...] e por isso o sentido literal há de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto.23 O autor conclui, então, que a simples utilização da interpretação literal não é capaz de remediar situações em que as palavras empregadas são equívocas ou indeterminadas, se restam princípios obscuros ou se resultam conseqüências contraditórias, havendo-se que recorrer a uma interpretação sistemática da lei. E acrescenta: De resto, mesmo quando o sentido é claro, não pode haver logo a segurança de que ele corresponde exatamente à vontade legislativa, pois é bem possível que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas, que não reproduzam em extensão o conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam demasiado gerais e façam entender um princípio mais lato do que o real, assim como, por último, não é excluído o emprego de termos errôneos que falseiem abertamente a vontade legislativa. O sentido literal é incerto, hipotético, equívoco24. O exemplo fornecido por Tércio Sampaio Ferraz Júnior ilustra este entendimento: Se a norma prescreve: "a investigação de um delito que ocorreu num país estrangeiro não deve levar-se em consideração pelo juiz brasileiro", o pronome que não deixa claro se está se reportando à investigação ou a delito. [...] É óbvio que as exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem essas dúvidas. A análise das conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical, não se reduz, pois, a meras regras de concordância, mas exige regras de decidibilidade25. 21 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 287. FERRARA, 2002, p. 24. 23 Ibid., p. 33-34. 24 FERRARA, 2002, p. 35. 25 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 287. 22 8 Assim, deduz-se que a análise gramatical ou literal da norma possui valor na medida em que obriga o jurista a tomar consciência da letra da lei e estar atento às equivocidades proporcionadas pelo uso das línguas naturais e imperfeitas regras de conexão léxica26. A interpretação lógica, assim como a gramatical, não exclui a necessidade conjunta de uma análise sistemática da lei. Cuida-se, também aqui, de um instrumento técnico que, ao solver questões lógicas referentes à legislação, tem sua razão a serviço da identificação de inconsistências normativas. Exemplo do caso ocorre quando, em um mesmo diploma legal, utiliza-se termo idêntico em normas distintas com conseqüências diferentes27. Chega-se à conclusão, então, de que o princípio lógico da identidade (A=A), assim como o estudo gramatical da letra da lei, também permite ao jurista tão-somente mostrar a questão, mas não resolvê-la. Com isto, torna-se necessário tomar por base a noção de que o sentido de cada parte é condicionado pelo todo em que se integra, procedendo-se a uma interpretação sistemática do direito. Disso resulta que toda lei só revelará o seu verdadeiro preceito a partir do diálogo com as demais. O melhor significado normativo há de ser recolhido da alteridade jurídica resultante do encontro finalístico das partes com a inteireza do sistema: "the intencion of the whole will control interpretation of parties". Dessa forma, o direito é posto, na interpretação sistemática, como permeável unidade ou centro de sentido em que estão ordenados e coordenados todos os seus fragmentos. Sistema e norma são, originária e funcionalmente, correlatos, e só nessa correlatividade têm razão e voz: o todo esclarece a parte, e a parte reflete o todo. 28 Uma análise à luz da interpretação sistemática voltada para a solução de antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 exigiria, pois, uma avaliação conjunta dos dois diplomas, bem como da Constituição Federal. 1.2.2 Interpretação histórico-sociológica As interpretações histórica e sociológica levam em consideração o tempo e as condições em que ocorreu a gênese de uma norma para melhor compreender seu significado e função no contexto social vigente. Sabe-se que o direito, em especial o direito privado, é produto de uma lenta evolução, resultado de um desenvolvimento histórico muito longo que remonta ao direito romano e depois, através da elaboração medieval, em que confluem correntes de direito comum, pelo trâmite do direito francês, entra no nosso ordenamento. Compreende-se que precioso auxílio para a plena inteligência de um texto resulta de se descobrir a sua origem histórica e seguir o seu desenvolvimento e as suas transformações, até o arranjo definitivo do assunto no presente. Fórmulas e princípios, que considerados só pelo lado racional parecem verdadeiros enigmas, encontram a chave da solução em uma razão histórica, no rememorar de condições e concepções de um tempo longínquo que lhes deram uma fisionomia especial29. O conjunto de circunstâncias que marcaram efetivamente o surgimento de uma lei é denominado occasio legis, que pode ser levantado através dos precedentes normativos normas que vigoraram no passado e antecederam à nova disciplina para, por comparação, entender os motivos da origem - ou, quando existentes, através dos trabalhos preparatórios - 26 Ibid., 2003, p. 287. FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 287. 28 PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 90. 29 FERRARA, 2002, p. 38. 27 9 ilustrações de caráter científico que refletem debates internos, de modos de ver dos diversos relatores ou preopinantes30, discussões parlamentares, emendas preteridas, etc. A análise histórica, por sua vez, permite a compreensão da interpretação sociológica das leis, na medida em que facilita o entendimento de sua razão no ordenamento. A interpretação sociológica diz respeito ao levantamento das condições atuais onde vige uma norma, que deve levar o intérprete a verificar as funções do comportamento e as instituições sociais no contexto em que ocorrem. Assim pode-se, por exemplo, chegar à conclusão de que determinada lei atendeu a uma situação de emergência, cujas condições típicas não mais correspondem à época atual e, portanto, devem ser restringidas para o entendimento das normas31. Com isso conclui-se que, para uma efetiva hermenêutica que intencione superar eventuais conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, tornase imprescindível uma análise histórica e exame das raízes sociológicas de ambos os diplomas. 1.2.3 Interpretação axiológico-teleológica Por fim, pode-se falar em uma interpretação axiológico-teleológica da lei, isto é, em que se postulam fins e valorizam situações na intenção de, a partir de seu enquadramento na ordem social, se alcançar o real sentido da norma. No direito brasileiro, a própria Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 5º, contém uma exigência teleológica, ao dispor que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Sua menção pressupõe uma unidade de objetivos do comportamento social do homem32. O bem comum consiste em uma síntese ética de condições sociais necessárias à plena realização das pessoas, sendo, também, o bem da comunidade, formando uma consideração extralegal, genericamente vinculante, enquanto por fins sociais devem ser compreendidos os da lei especificamente analisada33. Assim, o jurista deve atender sempre à finalidade da lei, o resultado que quer alcançar na sua atuação prática; a lei é um ordenamento de proteção que pretende satisfazer certas necessidades, e deve ser interpretada no sentido que melhor responda a este fim, e, portanto, em toda a plenitude que assegure tal tutela34. Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei quer dar satisfação às exigências econômicas e sociais e, portanto, ocorre em primeiro lugar um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em causa. A interpretação não é pura arte dialética, não se desenvolve com métodos geométricos em um círculo de abstrações, mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade social35. Não se confunde, porém, o elemento teleológico da interpretação com sua ratio. Enquanto aquele pode ser concebido como motivo de política legislativa que ditou a regra, a ratio legis se separa daquelas considerações para dar a razão ou sentido intrínseco da lei36, numa relação de meio e fim. 30 Ibid., 2002, p. 39. FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 291. 32 FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 293. 33 ASCENÇÃO, 2005, p. 390. 34 FERRARA, 2002, p. 26. 35 FERRARA, 2002, p. 36. 36 ASCENSÃO, 2005, p.396. 31 10 A esse propósito, imperativo reexaminar a própria tarefa da exegese, sob o prisma de alcançar o irrenunciável melhor significado a partir de uma dada escolha axiológica, lidando com princípios e regras, devidamente hierarquizáveis, estando o intérprete presumivelmente atento às demandas concomitantes de segurança e de justiça, inextricavelmente consideradas37. Com relação à hierarquização axiológica como método interpretativo, vem ganhando força na doutrina do direito privado uma concepção de hermenêutica conforme o sistema com aptidão para subordinar a matéria sob exame, sempre com respeito primordial aos princípios jurídicos. Neste rumo, ganham importância tanto os princípios gerais da legislação civil quanto princípios fundamentais da constituição. Além disso, aviva-se a noção de que os valores fundamentais constitucionais devem servir como critério permanente para a fundamentação da decisão judicial38. Portanto, ainda mais relevante do que a voluntas legitoris, na utilização dos métodos teleológico e axiológico de interpretação está a vontade axiológica do sistema, que se pode reconhecer após a interação dialética entre ordenamento e intérprete, consubstanciando insofismável ultrapassagem do paradigma da subsunção formal, adotando, com sérias e fundas implicações, o modelo da ponderação ou da axiológica hierarquização39. Em síntese, doravante, toda exegese, bem como todo sistema jurídico, só poderão ser compreendidos enquanto busca do espírito legislativo, que se dará através da análise sistemática do ordenamento, considerando-se seus aspectos históricos e sociológicos e sobrepesando-se valores que melhores assentam o real sentido da lei. 1.3 O PAPEL DO JUIZ Se a interpretação ganha importância fundamental em um contexto de abertura e dinamismo da ordem jurídica, o intérprete aparece no centro desta nova realidade. Caberá a ele conferir sistematicidade às normas, vale dizer, harmonizá-las formal e substancialmente, garantindo a salutar e democrática coexistência das liberdades e igualdades no presente em que ocorre a hermenêutica. Logo, sem comungar com a escravidão mental - não abolida pelo originalismo extremado nem pelo textualismo radical -, o intérprete contemporâneo deve guardar vínculo com a excelência ou com a otimização máxima da efetividade do discurso normativo. Deve fazê-lo, entretanto, naquilo que este possuir de eticamente superior, relevante e universalizável, conferindo-lhe, simultaneamente, a devida eficácia jurídica e a não menos devida eficácia ético-social40. Através da conjunção das posições crítica e hermenêutica, a tarefa do exegeta ou aplicador do direito é, eternamente, a de realizar, diante do caso concreto, "a máxima justiça sistemática possível” 41. Tomando como meta a incansável busca pela justiça no caso concreto e estabelecendo como limite o sistema jurídico em que está inserido, dentro do qual deve encontrar a legitimação para a sua decisão, ainda que utilizando as janelas que o sistema aberto contém, o juiz atua. Nos dizeres de Ruy Rosado: O Juiz não é servo da lei, nem escravo de sua vontade, mas submetido ao ordenamento jurídico vigente, que é um sistema aberto afeiçoado aos fins e valores que a sociedade quer atingir e preservar, no pressuposto indeclinável de que essa 37 FREITAS, 2004, p. 64. JUSEFOVICZ, 2005, p. 195. 39 FREITAS, op. cit., p. 26. 40 FREITAS, 2004, p. 68-69. 41 PASQUALINNI, 1999, p. 121. 38 11 ordem aspira à justiça. O primeiro compromisso do julgador é com a justiça; estando ele convencido de ser injusto o sistema, trazendo-lhe sua sujeição inconciliável conflito de consciência, não há como exercer a atividade operativa, porque toda aplicação que fizer será sempre um modo de efetivação do sistema. O intérprete não é um ser solto no espaço, liberto de todas as peias, capaz de pôr a ordem jurídica entre parênteses. Ele atua com a ordem jurídica, fazendo-a viva no caso concreto. Inserido no ambiente social onde vive, tem o dever de perceber e preservar os valores sociais imanentes dessa comunidade, tratando de realizá-los. Não pode fazer prevalecer a sua vontade a esses valores.42 Não obstante a multiplicidade de métodos interpretativos de que dispõe o aplicador da lei e a diversidade de conteúdos adaptáveis aos conceitos abertos das normas, a natureza decisória de sua atividade lhe impõe uma única escolha, e esta deve estar sempre vinculada à justiça. 2 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA No contexto de uma ordem jurídica aberta e dinâmica, o direito privado, inserido neste sistema mutável e, necessariamente, adaptável às mudanças da realidade, deve evoluir, ao passo que acompanha os acontecimentos sociais. Assim podemos entender a defasagem do Código Civil de 1916. De índole liberal e forte na liberdade e na igualdade dos indivíduos, vigoravam, no código, os princípios do pacta sunt servanda e da intangibilidade do contrato. Com fundamento na autonomia da vontade, acreditava-se que cada indivíduo era livre para escolher o parceiro, o objeto e as condições contratuais. Tendo optado, livremente, pela sua celebração, deveria cumpri-lo. Neste panorama, destacava-se o papel absenteísta do Estado e, conseqüentemente, dos tribunais, em tudo o que dissesse respeito à intervenção em atividades econômicas. A eles, era dado tão-somente o dever de resguardar a liberdade dos particulares e zelar para que a vontade desses fosse preservada43. As transformações advindas da segunda metade do século XX acabaram por tornar, porém, este quadro insustentável. O crescimento da economia, a sofisticação das relações de consumo, o desenvolvimento de técnicas de Marketing, o advento dos contratos de adesão, as tecnologias modernas, a desproporcionalidade das partes contratuais, os abusos e a concentração de renda cada vez maiores denotavam o surgimento de uma sociedade massificada pós-industrial, que já não mais poderia ser regulada pelo Código Civil de 1916. Adalberto Pasqualotto sublinha dois grandes desgastes no Código Civil de 1916, acentuados pelas modificações políticas, econômicas e sociais havidas no século XX: De um lado, matérias que eram objeto de sua regulação foram transformadas em leis especiais, dando lugar aos chamados microssistemas, para cuja existência Orlando Gomes alertava em 1983.1 A primeira grande migração foi a das leis trabalhistas, ainda na década de 40. O direito de família refletiu a mudança dos costumes. A concentração urbana ditou a necessidade de sucessivas leis especiais de inquilinato. Um sistema foi estruturado para proporcionar acesso à casa própria, com articulação de diversos negócios jurídicos, desde a incorporação imobiliária 42 43 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Interpretação. Ajuris. Porto Alegre, v. 16, n. 45, mar. 1989, p. 17. OLIVEIRA, Amanda Flávio de. O juiz e o novo contrato: considerações sobre o contrato à luz do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002. In: PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 327-328. 12 até o financiamento aquisitivo através de mútuo bancário, além dos seguros com função de garantia do mutuante e de quitação em favor dos beneficiários do mutuário. Tudo isso levou a um desprestígio do Código Civil como lei básica reguladora da vida do cidadão, abalando a idéia de hegemonia legislativa, dominante no conceito de codificação. Por outro lado, à parte principiológica do direito das obrigações carecia substituir os princípios do individualismo e do voluntarismo, consectários do liberalismo, por outros que refletissem a realidade desigual emergente da sociedade massificada, que, mercê da concentração de poder econômico nas grandes empresas, derrotou a idéia de liberdade contratual, colocando em seu lugar a indefectibilidade dos contratos de adesão44. A jurisprudência refletia a necessidade de atualização legislativa, introduzindo, lentamente, novos paradigmas nas relações contratuais. Assim, princípios inspirados na solidariedade, na boa-fé objetiva e no equilíbrio das prestações começaram a fundamentar julgados jurisprudenciais, à margem dos pressupostos de liberdade contratual e igualdade plena entre os contratantes, que ainda imperavam no Código Civil de 191645. O precedente que segue, de 1987, ilustra o entendimento: CONTRATO. REVISÃO. ALTERACAO DA BASE DO NEGOCIO. DIREITO DE O CONTRATANTE PEDIR A REVISAO DA CLAUSULA CONTRATUAL FACE A MODIFICACAO DAS BASES DO NEGOCIO. CONTRATO DE FINANCIAMENTO REALIZADO AO TEMPO DO PLANO CRUZADO, CUJAS PRESTACOES HOJE SE TORNAM EXCESSIVAMENTE ONEROSAS PARA O DEVEDOR. MANDADO DE SEGURANCA CONTRA O ATO QUE DEFERIU LIMINAR EM PROCESSO CAUTELAR, PARA IMPEDIR A PRATICA DE QUALQUER ATO DE EXECUCAO DA DIVIDA. DEFERIMENTO EM PARTE DA ORDEM, PARA PERMITIR AO CREDOR A COBRANCA DO PRINCIPAL CORRIGIDO, MAIS JUROS LEGAIS. (Mandado de Segurança Nº 587050220, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 15/12/1987). A sobrevinda da Constituição Cidadã de 1988, eminentemente democrática, instituiu, de vez, o Estado Social (Welfare State), estabelecendo os pilares para um código de defesa aos consumidores, ao reconhecê-los como sujeitos de direito subjetivo público frente ao estado (artigo 5º, inciso XXXII da CF/88), considerá-los princípio impostergável da atividade econômica (artigo 170, inciso V da CF/88) e, por fim, ao prever a organização de um Código especial para tutelá-los (artigo 48 ADCT/CF/88), reestruturando, com isto, o Direito Privado brasileiro com uma divisão tríplice: Direito Civil, Comercial e de proteção do consumidor46. Surge, então, em 1990, o Código de Defesa do Consumidor, como primeiro passo rumo a um contrato mais justo. Superando antigos e ultrapassados dogmas individualistas típicos da ideologia liberal, através de inovações como a modificação ou revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas, a possibilidade de se decretar nulas cláusulas abusivas e o reconhecimento e tutela do contrato de adesão, o CDC instaurava uma nova tendência social no Direito Privado47. O Estado, antes neutro e distante, agora assume um papel intervencionista, que busca a justiça entre as partes envolvidas no contrato e para isso concede novos direitos ao consumidor, identificando-os como vulneráveis. Assim, surge a chamada "socialização da 44 PASQUALOTTO. A. S. O Código de Defesa do Consumidor em face do Código Civil de 2002, In: PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 131-132. 45 Ibid., p. 132. 46 MARQUES, 2005, p. 58. 47 OLIVEIRA, 2005, p. 239. 13 teoria contratual" ou "dirigismo contratual", na tentativa de "realcançar" o equilíbrio entre os contratantes, embora essa situação praticamente nunca tenha existido. Equipado com normas abertas e cláusulas gerais, que conferem ao magistrado poderes para manter o direito sempre atualizado, o Código de Defesa do Consumidor se revelou uma lei moderna, flexível e pronta para dar resposta ao dinamismo da nova realidade econômica brasileira48. O novo papel conferido ao julgador pode ser ilustrado pelo art. 51 do CDC, que estabelece um rol exemplificativo de cláusulas abusivas, utilizando-se da expressão "entre outras", no caput do dispositivo legal, para manter aberto o intercâmbio do juiz com a realidade. No entanto, a estrutura normativa instituída pelo Código de Defesa do Consumidor restringia-se às relações de consumo, mostrando-se insuficiente para reger, de forma plena, o direito privado, na medida em que não incorporava contratos civis, que haviam passado, também, por um processo de modificação. Neste sentido, travou-se uma polêmica com relação ao campo de aplicação do Código de Defesa do Consumidor e seus limites, sobre o que poderia se compreender por relação de consumo e a extensão do conceito de consumidor. Em 2002 foi promulgado o novo Código Civil, que, influenciado pelo caráter solidarista do Código de Defesa do Consumidor, figurou muitas alterações em relação ao regime anterior, demonstrando preocupação em acompanhar as mudanças ocorridas na realidade49. Nos dizeres do coordenador da comissão de redação do anteprojeto, Miguel Reale, o Código Civil de 2002 foi orientado pelos pilares da eticidade, socialidade e operabilidade50. A eticidade surge em substituição ao tecnicismo e formalismo jurídico presentes no Código Civil de 1916, através de valores éticos como a boa-fé, os bons costumes e a função social dos direitos subjetivos51, que ensejam a participação ativa do intérprete por vias hermenêuticas para se verificar a ocorrência ou não destes princípios. Nas palavras de Miguel Reale: Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa e eqüitativa52. A socialidade, por sua vez, vem a superar o antigo individualismo jurídico característico do antigo regime. Este princípio, que sobrepõe os interesses sociais ao patrimonialismo que impregnava o Código Civil de 1916, atua temperando a liberdade contratual com a função social do contrato, estatuindo o princípio da interpretação mais favorável ao aderente nos contratos de adesão, reduzindo os prazos de usucapião, valorizando a natureza social da posse e submetendo o direito de propriedade à sua função social e econômica53. Miguel Reale assevera, sobre o princípio, que “se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da ‘socialidade’, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana”54. 48 OLIVEIRA, 2005, p. 330. Ibid., p. 331. 50 REALE, 1999, p. 7-12. 51 PASQUALOTTO, 2005, p. 145. 52 REALE, 1999, p. 8. 53 PASQUALOTTO, 2005, p. 145. 54 REALE, op. cit., p. 7. 49 14 A operabilidade, por fim, surge visando à prática e à efetividade das normas, através de soluções normativas que facilitem sua interpretação e aplicação, tais quais a clareza e a distinção entre prescrição e decadência, a disciplina apartada das associações e sociedades, a utilização de cláusulas gerais (como a boa-fé) e de preceitos de conteúdo indeterminado (como a onerosidade excessiva)55. Este novo quadro principiológico, declaradamente de índole social, passa, finalmente, a nortear também as relações civis. Consagra-se a intervenção estatal, agora não mais exclusivamente nas relações de consumo, e o julgador cumpre a função fundamental de buscar a justiça no caso concerto em todo o direito privado. Embora a crítica que aponta a desatualização, desde seu nascimento, do Código de 2002, em razão da desconsideração de temas atuais, como a fertilização, a clonagem e o comércio eletrônico56, o novel diploma consolidou avanços significativos, através da consagração de princípios como a função social do contrato (artigo 421) e a boa-fé objetiva (artigo 422). Com relação ao Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 pode, não obstante, representar um retrocesso a respeito de certas matérias, ao passo que disciplina institutos já previstos na lei 8078/90, como a lesão (artigo 157), os contratos de adesão (artigos 423 e 424) e a resolução por onerosidade excessiva (artigos 478 a 480), porém com uma conformação mais restrita, em regra ainda vinculada a uma concepção voluntarista e abstrata do fenômeno contratual57. Por outro lado, há que se salientar também a ocorrência de situações em que o diploma geral prevê disposições mais benéficas ao consumidor do que o próprio CDC, cabendo, nestes casos, uma análise aprofundada do campo de aplicação respectivo de cada código, para que o consumidor possa valer-se, também, dos direitos adquiridos no Código Civil. 2.2 LIMITES DE APLICAÇÃO Pelo que se pode depreender do caráter especial da lei 8078/90, que regula as relações específicas de consumo, entre fornecedor e consumidor, enquanto ao Código Civil de 2002, lei geral das relações do direito privado, compete todas as relações não privilegiadas por uma lei especial, não há colisão possível entre seus campos de aplicação, como explica Cláudia Lima Marques: O CDC é um microssistema especial, um código para agentes “diferentes” da sociedade, ou consumidores, em relação entre “diferentes” (um vulnerável, o consumidor, e um expert, o fornecedor). Já o CC/2002 é um código geral, um código para os iguais, para relações entre iguais, civis e empresariais, puras58. Assim, a constatação da existência de um direito subjetivo típico de consumo frente a um ou mais fornecedores decorrerá da análise do sujeito da relação jurídica, para se descobrir se se trata de um consumidor frente a um fornecedor, e de seu próprio ato/finalidade, do qual se verifica a ocorrência, ou não, da relação de consumo59. Cabe analisar, pois, a definição de consumidor e seus alcances. Como se pode constatar no artigo 1º da lei 8078/90, o consumidor é o sujeito ativo da relação jurídica de consumo, a quem se destinam os meios de proteção e defesa instituídos. Ele vem conceituado no artigo 2º do mesmo estatuto, que estabelece que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". 55 PASQUALOTTO, op. cit., p. 145. PASQUALOTTO, 2005, p. 144. 57 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 316. 58 MARQUES, 2005, p. 22. 59 Ibid., p. 23-24. 56 15 Essa definição é denominada pela doutrina como padrão, standard ou srticto sensu. Ressaltese, a priori, que o Código de Defesa do Consumidor ainda estende a proteção a outras figuras extraconsumo, consumidores equiparados por força da lei (bystandard), nos artigos 2º, parágrafo único, 17 e 29. O parágrafo único do artigo 2º equipara a consumidor "a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo". O artigo 17, por sua vez, estende a proteção legal dos consumidores, para efeito de responsabilidade civil do fornecedor, a todas as vítimas de acidentes causados por defeito de um produto ou serviço. Por fim, o artigo 29 amplia o conceito de consumidor a todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais e contratuais. O âmago da questão da definição de consumidor, no entanto, é estabelecer até onde vai o conceito de destinatário final, elemento crucial na delimitação da abrangência das figuras protegidas pelo código. O tema levantou polêmicas jurisprudenciais e doutrinárias, das quais se pode identificar duas correntes principais: os maximalistas e os finalistas. A teoria maximalista leva em conta a vulnerabilidade e a hipossuficiência do adquirente profissional do produto ou serviço, propondo uma interpretação ampliada do conceito de consumidor. Para esta corrente, a menção feita pelo artigo 2º do CDC ao destinatário final diz respeito à destinação final fática que é dada àquele produto ou serviço. Assim, basta que a pessoa retire o bem do mercado de consumo para que seja considerada consumidora, sem que se perquira sobre a finalidade que dará a esse bem60. Seriam considerados consumidores, portanto, para esta teoria, aqueles que adquirissem um bem para aliená-lo no mesmo estado (atividade típica do comerciante), para transformá-lo e incorporálo em outro bem, recolocando-o, posteriormente, ao mercado (como, por exemplo, atividades industriais), para usá-lo instrumentalmente em uma atividade-fim (é o caso de computadores em uma lan-house) e aquele que utiliza, como destinatário final, o produto ou serviço61. Em síntese, para os maximalistas, seria consumidor o adquirente ou o usuário que retira o bem de circulação, independentemente da finalidade que vai atribuir-lhe, mesmo que o praticante seja uma empresa que venha a utilizar o produto como insumo de sua produção62. A corrente finalista, por outro lado, sustenta que o sentido de "destinatário final" deve manter-se restrito ao consumidor literalmente descrito no artigo 2º do CDC, a fim de que não se banalize a tutela proposta pelo código, que existe justamente para proteger uma minoria vulnerável e hipossuficiente. Destarte, vale-se de conceitos da teoria econômica, segundo a qual as atividades econômicas compreendem produção, circulação, distribuição e consumo, para delimitar e esclarecer a definição de consumidor, considerando-o, portanto, apenas o destinatário final, que adquire o produto ou serviço para uso estritamente próprio ou de sua família. Na concepção finalista, portanto, não basta que o consumidor adquira, por destinação fática, o produto ou serviço, sendo necessário, ademais, que ele se configure como destinatário final econômico do bem. Ser destinatário final econômico do bem significa não usá-lo para atividades profissionais que gerem novos benefícios econômicos, mas sim para satisfação particular, pessoal ou familiar; isso significa que a expressão "destinatário final" deve ser entendida não em seu sentido literal, mas sim em seu sentido teleológico 63 . 60 61 62 63 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual no código civil e no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 104-105. PASQUALOTTO, 2005, p. 134. Ibid., p. 135. BARLETTA, 2002, p. 104. 16 No mesmo sentido, a opinião de Cláudia Lima Marques, adepta da corrente finalista: não basta ser destinatário final fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência, é necessário ser o destinatário final e econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso não haveria a exigida "destinação final" do produto ou do serviço64. Com relação á possibilidade de a pessoa jurídica ser considerada destinatária final na concepção finalista, elucida José Geraldo Brito Filomeno: [...] prevaleceu, entretanto, a inclusão das pessoas jurídicas como "consumidores" de produtos e serviços, embora com ressalva de que assim são entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa 65. Uma interpretação sistemática da questão leva à conclusão de que este pensamento é correto, pois o espírito do Código de Defesa do Consumidor é privilegiar a parte fraca da relação contratual de consumo, concedendo-lhe tratamento diferenciado66. Concorda-se, assim, com Maria Antonieta Zanardo Donato: [...] conquanto o conceito de consumidor disposto no art. 2º do CDC possa ser interpretado de forma ampla, como pretendem os maximalistas, entendemos que não seria esta a interpretação apta a coadunar-se com a sistemática adotada pela lei, vez que abrangeria, indistintamente, todas as pessoas jurídicas, mesmo aquelas que não se apresentassem vulneráveis e, simultaneamente, conferiria tutela a situações que, por sua própria natureza, já estariam sendo tuteláveis pelo Direito Comercial. 67 A jurisprudência, por algum tempo, refletiu a polêmica, posicionando-se ora pela teoria maximalista, ora pela finalista. As decisões do Rio Grande do Sul demonstravam uma tendência maximalista, admitindo, majoritariamente, um conceito amplo de consumidor. Nesse sentido, a jurisprudência que admitiu a Incidência do Código de Defesa do Consumidor a contratos como o entabulado entre as partes (compra e venda com reserva de domínio), mesmo que a consumidora (pessoa física ou jurídica) utilize o bem em sua atividade comercial.68 Em orientação oposta pareciam estar os tribunais do resto do país, que demonstravam concordar com a teoria finalista. Nesse sentido, o julgado de São Paulo: PROVA - Ônus - Inversão - Monitória - Inadmissibilidade - Co-embargante que é indústria e utiliza os serviços bancários como instrumento e fomento no exercício da sua atividade empresarial - Código de Defesa do Consumidor - Não incidência Adoção da Teoria Finalista, cuja aplicação é abrandada apenas diante da 64 65 66 67 68 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 100. FILOMENO, José Geraldo Brito. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 27. BARLETTA, 2002, p. 106. DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 107. Agravo de Instrumento Nº 70018698092, Décima Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sejalmo Sebastião de Paula Nery, Julgado em 22/02/2007. 17 comprovação da vulnerabilidade da pessoa jurídica - Embargante que é sociedade empresária, conta com préstimos de profissional da contabilidade, não se revelando hipossuficiente - Impossibilidade quando a inversão se opera no intuito apenas de transferir o custo da prova - Precedentes do Superior Tribunal de Justiça - Decisão mantida - Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 7.072.838-0 - São Paulo - 12ª Câmara de Direito Privado - Relator: Amado de Faria - 13.09.06 - V.U. - Voto n. 5.393) O tema mereceu igual tratamento no tribunal do Rio de Janeiro: AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CDC. FORO DE DOMICÍLIO DO AUTOR. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DA TEORIA FINALISTA. NÃO SENDO O EXCEPTO DESTINATÁRIO FINAL DO PRODUTO OU SERVIÇO, NÃO E COMPETENTE O JUÍZO DO FORO DO SEU DOMICILIO, DEVENDO INCIDIR A REGRA GERAL PROCESSUAL QUE FIXA A COMPETÊNCIA DO JUIZO DO FORO DO DOMICILIO DO RÉU, QUE SENDO PESSOA JURÍDICA, CORRESPONDE AO DA SEDE DA EMPRESA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (agravo de instrumento n. 2005.002.18651 Rio de Janeiro - DECIMA CAMARA CÍVEL - DES. SYLVIO CAPANEMA Julgamento: 11/10/2005) A jurisprudência de Minas Gerais também apresentava uma interpretação no sentido econômico de consumidor, exemplo é o julgado que decidiu que a pessoa física que adquire veículo para desenvolver sua atividade profissional com objetivo de lucro não pode ser enquadrada no conceito de destinatário final.69 O Supremo Tribunal Federal demonstrou tendência finalista no julgado sintetizado por Adalberto Pasqualotto: A empresa brasileira "T", fabricante de toalhas e produtos afins, foi vencida pela exportadora irlandesa de algodão, "A", em demanda contratual decidida por arbitragem no exterior. A vencedora ingressou no STF com pedido de homologação de sentença estrangeira, que foi contestado pela vencida. Um dos argumentos principais da empresa brasileira era que a arbitragem fora convencionada em contrato de adesão, sem a cautela de redação da cláusula compromissória em negrito. O STF decidiu que o contrato não era de adesão e que “o laudo exarado [na decisão arbitral] nada tem a ver com o Código Nacional de Defesa do Consumidor, para escusar-se a devedora da obrigação assumida, por não se aplicar à empresa importadora de produto destinado a consumidor final, conforme prevê o art. 2º, que define o consumidor como toda "pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (grifo do acórdão). Induvidosamente, a corte suprema interpretou o conceito de consumidor em sentido econômico, segundo a teoria finalista, afastando a hipótese de que um insumo caracterize objeto de relação de consumo.70 O STJ, que adotava, até recentemente, os argumentos mais moderados da teoria maximalista, segue, atualmente, uma posição mais coerente com a teoria finalista e harmônica com o STF, como ilustra o precedente que segue: 69 70 AÇÃO REVISIONAL - CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO - PESSOA FÍSICA QUE ADQUIRE VEÍCULO PARA O DESENVOLVIMENTO DE SUA ATIVIDADE ECONÔMICA - NÃOENQUADRAMENTO NO CONCEITO DE DESTINATÁRIO FINAL - INAPLICABILIDADE DO CODECON - COMISSÃO DE PERMANÊNCIA - TAXA DE MERCADO - VEDAÇÃO - MULTA CONTRATUAL - INTELIGÊNCIA DO ART. 413 DO CÓDIGO CIVIL - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS FIXADOS EM SALÁRIOS MÍNIMOS - SÚMULA 201 DO STJ. (Ação Revisional n. 2.0000.00.447921-2/000(1), Data do acordão: 21/09/2004, Data da publicação: 23/10/2004, Relator: TARCISIO MARTINS COSTA). PASQUALOTTO, 2005, p. 141-142. 18 COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO. UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE. - A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca. (Recurso Especial n.541867, Segunda Seção, Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Data do Julgamento 10/11/2004, Data da Publicação/Fonte DJ 16.05.2005 p. 227, RDR vol. 31 p. 349, RSTJ vol. 200 p. 260). Contudo, como assevera Adalberto Pasqualotto71, a discussão entre finalistas e maximalistas parece ter encontrado um fim com a definição de empresário, no artigo 966 do Código Civil de 2002. A lei assim dispõe: “Art. 966: Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”. Desta forma, o Código Civil considera atividades próprias do fornecedor a transformação, a produção, a distribuição e a comercialização de bens e de produtos, conceito que converge com o pensamento finalista, bem como com a teoria econômica de destinatário final. Nas palavras do autor: O conceito é harmônico com o CDC, que define fornecedor no caput do art. 3º como quem desenvolve “atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos” ou presta serviços. É interessante notar que a celeuma entre maximalismo e finalismo parece ter ignorado esse texto, que é expresso em considerar a transformação como atividade própria de fornecedor, além de consignar todas as etapas do processo econômico, antecedentes ao consumo: produção, distribuição e comercialização, além de algumas derivações (montagem, criação e construção, equivalentes à produção; importação e exportação), correspectivas da comercialização72. O Código Civil de 2002 também traz outra contribuição importante na delimitação do conceito de consumidor no parágrafo único do já citado artigo 966: Parágrafo único: Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa. O caput do artigo 966 do Código civil determina sua aplicação ao empresário contigo na regra geral, incluindo-se, por conseguinte, a lei especial aos excluídos dessa categoria, que vêm conceituados no parágrafo único do dispositivo legal. Assim, os que exercem profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, embora possuam atividade de natureza econômica, serão regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, desde que não estejam organizados empresarialmente73. 71 Ibid., p. 146. PASQUALOTTO, 2005, p. 146. 73 Será o caso de profissionais liberais que trabalhem por conta própria, como pesquisadores, escritores e artistas (PASQUALOTTO, 2005, p. 147). 72 19 Parece restar dirimida, com isso, a questão sobre os campos de aplicação do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002, regulando, este, as relações entre civis e as relações entre empresários, e, aquele, as relações entre consumidores e fornecedores. 2.3 PRINCIPIOLOGIA No capítulo anterior, destacamos a relevância dos princípios na concretização de uma aplicação justa do direito, por representarem, na ordem jurídica contemporânea, a base axiológica de qualquer interpretação, formando o “coração da noção de sistema normativo aberto e dinâmico”74. Ressaltando a importância dos princípios no direito contemporâneo, Humberto Ávila afirma que "[...] é até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico".75 Relevante, portanto, analisar os princípios presentes no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002, a fim de constatar se existe ou não, no aspecto principiológico, congruência entre os dois diplomas, fator indispensável para a compreensão do real espírito normativo destas duas leis, bem como para a busca de uma harmonização de antinomias através do diálogo entre elas.76 2.3.1 Distinção entre princípios e regras Nesta primeira parte do estudo sobre a principiologia do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, é importante examinarmos a definição de princípio. Para isso convém, ainda preliminarmente, apresentar as principais distinções entre princípios e regras. Em substituição à teoria clássica, a nova concepção opera uma discussão entre regras e princípios como duas espécies de normas jurídicas. A literatura sobre o modo de entender a diferença entre os princípios e as regras jurídicas é extensíssima e demonstra não somente o caráter problemático, como também a relevância dessa distinção a qual se presta uma atenção crescente77. A intenção deste estudo não é investigar todas as concepções acerca da distinção entre princípios e regras, mas trazer ao trabalho as principais contribuições e os critérios evidenciados pela teoria contemporânea com relação ao tema. Para Josef Esser, os princípios são normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. Assim, a diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão78. Canaris entende que os princípios se diferenciam das regras em razão de seu conteúdo axiológico e do modo de interação com outras normas: Em primeiro lugar, os princípios, ao contrário das regras, possuem um conteúdo axiológico explícito, e carecem, por isso, de regras para sua concretização. Em segundo lugar, com relação ao modo de interação com outras normas do ordenamento, os princípios, diferentemente das regras, receberiam seu conteúdo somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação79. Porém, foi através dos estudos de Ronald Dworkin e, posteriormente, Robert Alexy, que a definição de princípio recebeu decisiva contribuição. 74 JUSEFOVICZ, 2005, p. 306. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 15. 76 No mesmo sentido, Cláudia Lima Marques: “A convergência de campos de aplicação pode levar ao "conflito", já a convergência de princípios é o caminho para o diálogo de fontes” (PASQUALOTTO, 2005, p. 21). 77 JUSEFOVICZ, 2005, p. 288. 78 ESSER apud ÁVILA, 2004, p. 27. 79 CANARIS, 2002, p. 88-99. 75 20 Para Dworkin, a distinção entre regras e princípios não consiste em uma distinção de grau, mas em uma diferenciação quanto à estrutura lógica: La diferencia entre principios jurídicos y normas jurídicas es uma distinción lógica. Ambos conjuntos de estándares apuntam a decisiones particulares referentes a la obligación jurídica en determinadas circunstancias, pero diferen en el carácter de la orientación que dan. Las normas son aplicables a la manera de disyuntivas. Si los hechos que estipula uma norma están dados, entonces o bien la norma es válida, em cuyo caso la respuesta que da debe ser aceptada, o bien no lo es, y entonces no aporta nada a la decisión.80 Assim, o autor sugere que, no caso de colisão de regras, uma delas deve ser considerada inválida. Já os princípios, em sentido inverso, podem ser conjugados entre si mantendo sua validade, pois contêm uma característica que falta às normas: a dimensão de peso ou importância. Deste modo, em caso de colisão, “quien debe resolver el conflicto tiene que tener en cuenta el peso relativo de cada uno”81. Robert Alexy propõe uma distinção qualitativa entre regras e princípios, no sentido de que os princípios são comandos de otimização, ou seja, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Assim, nos casos de colisão de princípios, após a ponderação entre eles, deverá prevalecer o que apresenta, diante do caso concreto, maior peso e relevância, a depender das circunstâncias. Já no caso de um conflito de regras, a solução se dará através da declaração de invalidade de uma delas ou abertura de uma exceção que exclua a antinomia. Nas palavras do autor: [...] os principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios e reglas opuestos. Em cambio, las reglas son normas que solo pueden ser cumplidas o no. Si uma regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el âmbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas e principios es cualitativa y no de grado. 82 Sintetizando as principais teorias doutrinárias, Humberto Ávila aponta os quatro critérios usualmente empregados para a distinção entre princípios e regras83: O critério do caráter hipotético-condicional se fundamenta no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo “se, então”, ao passo que os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto. Em seguida, o critério do modo final de aplicação se baseia no fato de as regras serem aplicadas de modo absoluto (“tudo ou nada”), enquanto os princípios são aplicados de modo gradual. O critério do relacionamento normativo, por sua vez, se fundamenta no fato de que o conflito entre regras apenas pode ser resolvido através da declaração de invalidade de uma das regras ou com a criação de uma exceção, enquanto em casos de colisão de princípios a solução poderá se dar através da ponderação, pela qual se atribui uma dimensão de peso a cada princípio. E, por fim, 80 DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1997, p. 74-75. Ibid., p. 77. 82 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 86-87. 83 ÁVILA, 2004, p. 30-31. 81 21 o critério do fundamento axiológico considera os princípios, diferentemente das regras, como fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada. Essa breve abordagem sobre as principais distinções entre regras e princípios jurídicos será de fundamental importância para o trabalho, na medida em que o papel dos princípios na interpretação das leis é cada vez mais relevante, desempenhando uma função constitutiva de todo o ordenamento jurídico, além de ser necessário, para o alcance de um equilíbrio entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, uma verdadeira interação entre as regras e os princípios de ambos os diplomas. 2.3.2 Boa-fé A expressão "boa-fé" remonta ao Direito Romano, que, a princípio, fazia referência apenas a fides, posteriormente adquirindo a significação da expressão "bona fides”84. Com o decorrer dos séculos, a boa-fé renovou-se e difundiu-se, encontrando-se, hoje, impregnada em todos os aspectos na nossa legislação. Para Teresa Negreiros, A fundamentação constitucional do princípio da boa-fé assenta na cláusula geral de tutela da pessoa humana - em que esta se presume parte integrante de uma comunidade, e não um ser isolado, cuja vontade em si mesma fosse absolutamente soberana, embora sujeita a limites externos. Mais especificamente, é possível reconduzir o princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária, na qual o respeito pelo próximo seja um elemento essencial de toda e qualquer relação jurídica. Neste sentido, a incidência da boa-fé objetiva sobre a disciplina obrigacional determina uma valorização da dignidade da pessoa, em substituição à autonomia do indivíduo, na medida em que se passa a encarar as relações obrigacionais como um espaço de cooperação e solidariedade entre as partes e, sobretudo, de desenvolvimento da personalidade humana. 85 Hodiernamente, a doutrina distingue boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva. A boa-fé subjetiva pode ser entendida como o "estado psíquico de conhecimento ou desconhecimento, de intenção ou falta de intenção da parte da relação"86, enquanto a boa-fé objetiva impõe um dever de conduta. Nas palavras de Judith Martins-Costa, boa-fé objetiva significa um modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual "cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arqétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade". Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjuntivo 87. Teresa Negreiros ressalta que a abrangência do princípio da boa-fé objetiva é contornada mediante uma tripartição das funções, quais sejam: cânon interpretativointegrativo; norma de criação de deveres jurídicos; e norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos. Em comum, estas três funções atribuídas à boa-fé compartilham uma 84 85 86 87 BARLETTA, 2002, p. 116. NEGREIROS, 2006, p. 118. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor. v. 18, abr./jun. 1996, p. 25. MARTINS-COSTA, Judith. Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2000, p. 411. 22 mesma concepção acerca da relação contratual como sendo uma relação de cooperação e de respeito mútuo, e não de perseguição egoísta da satisfação individual88. Foi nesse sentido objetivo que a boa-fé, sob a forma de uma cláusula geral, foi expressamente consagrada no Código de Defesa do Consumidor, como fundamento para a declaração de nulidade da cláusula contratual que a transgrida: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que [...] IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; [...] Além do mais, o artigo 4º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe sobre a Política Nacional de Relações de Consumo, estabelece como uma de suas diretrizes o princípio da boa-fé: Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: [...] III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; [...]. No novo Código Civil, a boa-fé também está presente, definida não somente como critério de interpretação da declaração de vontade nos negócios jurídicos (artigo 113) e de valoração da abusividade no exercício de direitos subjetivos (artigo 187)89, mas, igualmente, como uma regra de conduta imposta aos contratantes, como expressamente objetiva o artigo 422: "Os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé"90. Pode-se concluir, pois, que as disposições do Código Civil sobre a boa-fé completam as que constavam no Código de Defesa do Consumidor. Por isso, a cláusula geral da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor e as cláusulas gerais sobre boa-fé no Código Civil podem ser aplicadas complementarmente91. Por fim, vale ressaltar que a boa-fé no direito privado brasileiro se coaduna com a Constituição Federal, que positiva o princípio da solidariedade ao estabelecer, como objetivos da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Logo, o princípio da boa-fé deve estar presente em toda relação jurídica, na medida em que significa a honestidade e a justiça nas condições gerais estabelecidas92. 2.3.3 Equilíbrio econômico 88 89 90 91 92 NEGREIROS, 2006, p. 118-119. In verbis: Art.113: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração; Art. 187: Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. NEGREIROS, 2006, p. 128. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O novo código civil e o código de defesa do consumidor: pontos de convergência. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, p. 55-68, n. 48, 2004, p. 60-61. NEGREIROS, op. cit., p. 159. 23 Assim como o princípio da boa-fé, o princípio do equilíbrio econômico também encontra fundamento na Constituição Federal. A vedação a que as prestações contratuais apresentem um desequilíbrio real e injustificável entre as vantagens obtidas por um e por outro dos contratantes, ou seja, a vedação a que se desconsidere o sinalagma contratual em seu perfil funcional, constitui expressão do princípio da igualdade substancial, consagrado no artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal, pressuposto da justiça social que proíbe a utilização do contrato como um meio, sob a capa de um equilíbrio meramente formal, para que as prestações em favor de um contratante lhe acarretem um lucro exagerado em detrimento da outra parte93. Para Teresa Negreiros, em idéia oposta à liberdade consagrada no Código de 1916, o princípio do equilíbrio econômico representa a intervenção do estado nas relações contratuais, avaliando seu conteúdo e resultado, mediante a comparação das vantagens e encargos atribuídos a cada um dos contratantes e expressando a preocupação da teoria contratual contemporânea com o contratante vulnerável. Nas palavras da autora: [...] o princípio do equilíbrio do contrato, postulando que os contratantes, mediante o estabelecimento de prestações recíprocas, se mantenham em um certo nível de paridade, se configura como uma ponte entre o justo e o jurídico no domínio das relações contratuais.94 O princípio vem disposto no já citado artigo 4º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor, que o define, juntamente com a boa-fé, como base para a concretização dos ditames da Constituição Federal sobre a ordem econômica. Além do mais, dispõe ainda o Código de Defesa do Consumidor, com base na proteção do sinalagma contratual, sobre a revisão por onerosidade excessiva: Art. 6º: São direitos básicos do consumidor: [...] V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Ainda, o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor estabelece que são nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. Outrossim, presume-se exagerada, nos termos do parágrafo primeiro do artigo 51, incisos II e III do CDC, a vantagem que ameace o equilíbrio contratual, ou que seja excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. O novo Código Civil também apresenta dispositivos que visam ao restabelecimento do equilíbrio econômico entre as partes contratantes. Os artigos 478 e 479, por exemplo, permitem a resolução do contrato ou a modificação de seus termos na hipótese de superveniência de acontecimentos extraordinários que tornem a prestação excessivamente onerosa para uma das partes em decorrência de vantagem para a outra parte. Além disso, o código consagra o instituto da lesão como defeito no negócio jurídico no artigo 157, que dispõe: Art. 157. Ocorre lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. 93 94 NEGREIROS, 2006, p. 157-158. Ibid., p. 168. 24 §1º. Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. § 2º. Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito. 2.3.4 Função social do contrato A função social do contrato surge, na legislação brasileira, como meio para se evitar que a liberdade contratual prejudique as partes envolvidas. Assim, pode-se dizer que a função social "relativiza o clássico princípio contratual da relatividade entre os contratantes", uma vez que vincula a análise do contrato ao contexto social, levando-se em consideração, sobretudo, sua importância na sociedade. Nas palavras de Teresa Negreiros: [...] a função social do contrato, quando concebida como um princípio, antes de qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, significa muito simplesmente que o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetadas.95 A constatação do princípio no Código Civil de 2002 é clara. Dispõe o artigo 421 que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social". A dúvida, no entanto, pode surgir quando busca-se algum dispositivo que se refira ao princípio no Código de Defesa do Consumidor. Teria o CDC adotado o princípio da função social do contrato? A pergunta é esclarecida ao se analisar o princípio básico e definidor do Código de Defesa do Consumidor, a vulnerabilidade96. Reconhecida no artigo 4º, que dispõe sobre os "princípios da política nacional das relações de consumo", a vulnerabilidade fornece a razão de ser do diploma: um código protetivo. Assim, identificando os consumidores como indivíduos vulneráveis, toda a estrutura do Código de Defesa do Consumidor é estabelecida no sentido de tutelar, desigualmente, estes "desiguais" - diferentemente do que ocorre com o Código Civil, que regula as relações entre empresários e entre civis, a partir do pressuposto de igualdade. Os reflexos da proteção especial destinada ao consumidor em razão de sua condição vulnerável podem ser percebidos, por exemplo, no artigo 6º, que estipula os direitos básicos do consumidor. Nesse sentido, a possibilidade de inversão do ônus da prova no processo civil, prevista no inciso VII do referido artigo. José Reinaldo de Lima Lopes dispõe sobre a importância do princípio: [...] É um princípio de caráter estritamente normativo. Ele pode ser considerado um princípio geral de interpretação, mais do que uma presunção, uma definição construtiva do consumidor: o consumidor é, por definição, vulnerável e, por isso, todas as políticas (as ações concretas, os planos, a legislação e a adjudicação dos conflitos de consumo) devem presumir (postular) esta vulnerabilidade. 97 Assim, se o Código de Defesa do Consumidor não dispõe explicitamente, em seu texto, sobre a função social do contrato, pode-se entender, a partir da análise da estrutura do diploma, que, materialmente, a lei 8078/90 traz ínsita a idéia do princípio. Verifica-se, com isso, mais uma convergência principiológica entre os diplomas. 95 NEGREIROS, 2006, p. 208. Cláudia Lima Marques salienta que a vulnerabilidade do consumidor pode ser técnica, fática (ou sócioeconômica) ou jurídica, ressaltando as diversas formas como podem se manifestar as desproporções entre as partes de uma relação de consumo (MARQUES, 2006, p. 147-149). 97 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito Civil e Direito do Consumidor: Princípios. In: PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 100. 96 25 Pode-se concluir, a partir do exame elaborado, que o Código Civil de 2002 não apenas não revogou a principiologia do diploma consumerista, como reafirmou os valores ali contidos. Dessa forma, ambos os códigos trazem, em seu corpo, princípios como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social do contrato. É, indubitavelmente, um ponto de grande relevância na possibilidade de harmonização dessas leis. 2.4 A NÃO REVOGAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002 O parágrafo segundo do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe que a lei nova que estabeleça disposições gerais “a par das já existentes”, como o Código Civil de 2002, “não revoga nem modifica a lei anterior”, no caso, o Código de Defesa do Consumidor. O parágrafo primeiro do artigo 2º da LICC estabelece, por sua vez, que a lei posterior revogará a anterior quando: expressamente o declare; regule inteiramente a matéria de que tratava a anterior; ou seja com ela incompatível. Vale lembrar que o artigo 2045 do Código Civil, que revogou expressamente o Código civil de 1916 e parte do Código Comercial de 1850, foi silente com relação ao Código de Defesa do Consumidor. Dispôs assim a lei: “Art. 2045: Revogam-se a Lei 3071, de 1.º de janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei 556, de 25 de junho de 1850.” O artigo 2043, sobre o mesmo assunto, ao preservar apenas as normas penais, administrativas e processuais, indica a existência de uma revogação tácita das leis especiais incorporadas expressamente no texto do Código Civil de 2002:98 Art. 2043. Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este código. Considerando que o Código Civil de 2002 nada menciona sobre "consumidores", em nenhum artigo de seu diploma, conclui-se que o tema da proteção aos consumidores não foi incorporado ao novo código. Assim, também o artigo 2043 do Código Civil não pode ser aplicado ao Código de Defesa do Consumidor. Ademais, do estudado neste capítulo, pode-se deduzir que, com campos de aplicação distintos e diferença com relação às matérias tuteladas, o Código Civil de 2002 não regulou inteiramente a matéria de que trata o Código de Defesa do Consumidor. Por fim, da análise ora elaborada, constata-se a convergência de princípios entre os dois diplomas, o que resulta na inexistência de incompatibilidade. Conclui-se, com isso, que o Código de Defesa do Consumidor não pode ser enquadrado em nenhum dos itens previstos no parágrafo primeiro do artigo 2º da LICC, não ocorrendo, portanto, sua revogação pelo novel diploma. 3 ANTINOMIAS JURÍDICAS 3.1 CONCEITO Questão particularmente relevante na coexistência entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor se firmou no plano das antinomias jurídicas, já que, após a entrada em vigor do novo diploma, em 1º de janeiro de 2003, estabeleceu-se uma concorrência de normas incidentes sobre algumas relações jurídicas obrigacionais, uma vez 98 MARQUES, 2005, p. 26. 26 que o Código de Defesa do Consumidor, em vigência desde 13 de março de 1991, trata, em alguns dispositivos, sobre relações de consumo. Em razão de ambas as leis serem ordinárias, colocou-se a questão de qual seria o critério adequado para a superação de eventuais conflitos surgidos entre os dois diplomas. Primeiramente, imperioso conceituar o tema. De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Júnior, antinomia jurídica é aquela posição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito em posição insustentável pela ausência de inconsistência de critérios aptos a permitirem-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento jurídico dado99. Norberto Bobbio, por sua vez, concebe antinomia jurídica como a situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, desde que presentes os requisitos de pertencerem ao mesmo ordenamento e possuírem o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material)100. Situando-nos em uma breve abordagem da evolução histórica dos conflitos normativos, tem-se que as antinomias se tornaram um problema teórico-jurídico apenas no século XIX, com o advento do positivismo e da conseqüente concepção do direito como sistema, que propiciaram o surgimento de condições imprescindíveis para os problemas da coerência lógica do sistema jurídico e da existência de conflitos de normas, como explica Maria Helena Diniz: O vocábulo antinomia surgiu na Antigüidade nas lições de Plutarco e Quintiliano, este último chegou até a escrever que numquam lex legi contraria iure sed eae casu colliduntur atque eventu, mas só atingiu certa relevância jurídica no século XVII, com Goclenius, que, em sua obra Lex philosophicum quotanquan clave philosophiae fores aperiuntur, de 1613, distinguiu a antinomia em sentido amplo, que ocorria entre as sentenças e proposições, e a em sentido estrito, existente entre leis pugnantia legum inter se. Esta acepção estrita foi adotada anos depois, em 1660, por Eckolt, no seu livro De antinomiis. [...] Zedler, em 1732, na sua obra Grosses vollstaendiges Universallex, conceituou antinomia como o conflito que ocorre quando duas leis se opõem ou se contradizem. No seu livro Philosophia generalis, publicado em 1770, Baumgarten fez menção à antinomia entre direito natural e direito civil. Entretanto, o problema do conflito normativo, tal como aparece na atualidade, surgiu na época da Revolução Francesa, que propiciou a consolidação de certas condições políticas, como soberania nacional e separação de poderes, e jurídicas, como a preponderância da lei enquanto fonte do direito, o controle da legalidade das decisões judiciárias e, principalmente, a concepção do direito como sistema, imprescindíveis para a tomada do contato com essa problemática em termos de profundidade101. As antinomias representam uma manifestação da problemática do dever de coerência do ordenamento jurídico - conjunto ou complexo de normas -, que o faz excluir qualquer inconsistência normativa. Para Bobbio, a coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento: [...] É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça 99 FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 211. BOBBIO, 1999, p. 87-88. 101 DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 2. 100 27 (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria102. 3.2 CLASSIFICAÇÃO Aprofundando a conceituação, cabe agora classificar as antinomias103. No que diz respeito ao âmbito dos conflitos, há antinomias de direito interno, quando ocorrerem entre normas dentro de um ramo do direito ou entre normas de diferentes ramos jurídicos, antinomias de direito internacional, quando se derem entre normas de direito internacional público, e antinomias de direito interno-internacional, quando surgirem conflitos entre norma de direito interno e norma de direito internacional público. Com relação à extensão da contradição, as antinomias podem se dividir em total-total, total-parcial e parcial-parcial. Ocorrem antinomias totais-totais quando uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra. É o caso, por exemplo, de normas que prescrevem uma proibição e uma permissão à mesma ação. As antinomias totais-parciais se referem àqueles casos em que uma das normas não pode ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra, enquanto esta tem um campo de aplicação que conflita com a anterior apenas em parte, subsistindo, assim, a antinomia apenas para a parte em comum. A antinomia, neste caso, é total por parte de uma norma e parcial por parte da outra. As antinomias parciais-parciais, por fim, são aquelas em que duas normas têm um campo de aplicação que apenas em parte conflita um com o outro. Quanto ao conteúdo, as antinomias podem ser próprias ou impróprias. Antinomias impróprias são aquelas que acontecem em virtude do conteúdo material das normas, caracterizando um conflito entre o comando estabelecido e a consciência do legislador, não impedindo que o sujeito aja conforme as normas. Podem, estas, apresentar-se como antinomias principiológicas, antinomias avaliativas e antinomias teleológicas. As antinomias principiológicas ocorrem no caso de desarmonia em uma ordem jurídica decorrente de valores entre os quais se pode estabelecer um conflito, como, por exemplo, quando as normas de um ordenamento preguem idéias fundamentais antinômicas, como liberdade e segurança, no sentido de que a garantia da liberdade causa dano, comumente, à segurança, e a garantia da segurança tende a restringir a liberdade. As antinomias valorativas são aquelas em que o legislador põe-se em conflito com suas próprias valorações já estabelecidas, como, por exemplo, prescrever uma pena mais leve para um delito mais grave. Finalmente, as antinomias teleológicas surgem no caso de incompatibilidade entre os fins propostos por uma certa norma e os meios previstos por outra para a consecução daqueles fins. Denominam-se antinomias próprias aquelas que decorrem de razões formais. Surgem, por exemplo, quando uma conduta aparece, ao mesmo tempo, prescrita e não prescrita, proibida e permitida ou prescrita e proibida, ficando o sujeito em uma situação insustentável, devendo optar por uma das duas normas em desobediência à outra, o que o leva a recorrer a critérios para sair dessa situação. Urge consignar, no entanto, que tais critérios não são suficientes para dirimir todo e qualquer conflito normativo, e daqui deriva a necessidade de apresentar nova distinção doutrinária. Dentre as antinomias próprias, há casos nos quais faltam critérios para sua solução ou existe conflito entre os próprios critérios, em razão da possibilidade de utilização de duas ou mais regras ao mesmo tempo. Essas antinomias insolúveis denominam-se antinomias reais. 102 103 BOBBIO, 1999, p. 113. De acordo com FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Antinomia. In: FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 14-18. 28 Ás demais antinomias, visto seu caráter solúvel, se destinam os critérios tradicionais de superação, e estas classificam-se como antinomias aparentes. 3.3 CRITÉRIOS TRADICIONAIS DE SUPERAÇÃO DE ANTINOMIAS Conforme estudado, a ciência jurídica, procurando entender o ordenamento como um todo funcional, deve evitar qualquer contradição, partindo do pressuposto de que, através da interpretação, todos os conflitos normativos podem e precisam ser superados. Para isso, a doutrina aponta critérios tradicionais de soluções antinômicas no direito interno, que se originaram na jurisprudência, através do reiterado exercício de exegese, quais sejam, o hierárquico, o cronológico e o de especialidade. O critério hierárquico, regido pela máxima lex superior derogat legi inferiori, se baseia na superioridade de uma fonte de produção sobre a outra para dar prevalência, quando em um conflito entre normas de diferentes níveis, às normas de escalonamento superior em detrimento das normas inferiores, independentemente da ordem cronológica104. O critério cronológico, por sua vez, ilustrado no axioma lex posterior derogat priori, é aquele com base no qual a lei posterior revoga a anterior no que for incompatível com esta, desde que ambas as normas sejam do mesmo nível ou escalão105, não obstante a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, e a Lei de introdução ao Código Civil, em seu artigo 6º, parágrafos 1º, 2º e 3º, protejam as situações jurídicas que se regeram pela lei anterior quando da sua vigência, prescrevendo que a norma em vigor tem efeito imediato e geral, respeitando sempre o ato jurídico perfeito106, o direito adquirido107 e a coisa julgada108. No direito brasileiro, o princípio da lex posterior é expressamente disposto no já citado artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, textualmente: Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que trata a lei anterior. Finalmente, o critério de especialidade, lex specialis derogat legi generali, determina a prevalência da norma especial em detrimento da geral. Para Norberto Bobbio, este critério se justifica em razão do pressuposto de tratamento diferenciado aos desiguais, visto que o legislador, ao tratar especificamente de determinado tema o faz, presumidamente, com maior precisão. Reflete-se, assim, a regra suum cuique tribuere - dar a cada um o que é seu -, representando uma evolução no caminho da justiça e igualdade109. No âmbito da legislação brasileira, o critério em tela pode ser encontrado expresso no artigo 2º, parágrafo segundo da Lei de Introdução ao Código Civil.110 3.3.1 Insuficiência de critérios 104 DINIZ, 1998, p. 34. Ibid., p. 35. 106 Aquele já consumado e apto a produzir seus efeitos. 107 Aquele já incorporado definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular. 108 Qualidade dos efeitos do julgamento. 109 BOBBIO, 1999, p. 96. 110 Ex vi: Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. 105 29 Os critérios tradicionais para a solução de antinomias mostram-se insuficientes, no entanto, em duas situações: Quando a antinomia se dá entre duas normas contemporâneas, de mesmo nível e ambas gerais, não vislumbrando-se possível, nestes casos, a aplicação de nenhuma das regras pensadas para a solução dos conflitos, e quando se pode aplicar, ao mesmo tempo, dois ou mais critérios para solver a antinomia. No primeiro caso, conforme Norberto Bobbio, tem-se que a solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete, que o resolverá de acordo com sua discricionariedade e oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas. Disso resulta a eliminação de uma das normas (ab-rogação simples), a eliminação de ambas (abrogação dupla) ou a conservação das duas. A terceira solução, possível através da demonstração de que a incompatibilidade é puramente aparente, derivada de uma interpretação ruim, unilateral, incompleta ou errada da lei, é a mais freqüentemente utilizada pelo intérprete. Assim, assinala o autor, a tendência comum não é mais a eliminação de normas incompatíveis, mas a eliminação da incompatibilidade entre elas111. O segundo caso de insuficiência de critérios, em que duas normas se encontram em uma relação passível da aplicação concomitante de dois critérios, um com solução oposta à aplicação do outro, é denominado antinomia de segundo grau. Em tais situações, a doutrina estabelece uma hierarquia entre os critérios para a resolução da antinomia. Desse modo, temos que112: Em situações de conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, em que há uma norma inferior-geral e outra inferior-especial, a doutrina não aponta uma resposta consolidada, preferindo-se um critério a outro, sem contrariar a adaptabilidade do direito113. A solução dependerá, nestes casos, da interpretação do intérprete, aplicando-se, por vezes, o critério de hierarquia, por outras, o critério de especialidade, conforme as circunstâncias. Nos conflitos entre os critérios hierárquico e cronológico, que ocorrem quando uma norma anterior-superior conflita com outra posterior-inferior, deverá prevalecer o critério hierárquico. O princípio lex posterior inferiori non derogat priori superiori é indúbito, pois o critério hierárquico é mais forte, em razão de a competência se apresentar mais sólida do que a sucessão no tempo, bem como pelo fato de a aplicação do critério cronológico sofrer uma limitação por não ser absoluta, já que sua validade se restringe a normas do mesmo nível. Por fim, em casos de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, que tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posteriorgeral, a doutrina, em geral, assenta que se deve valer o célebre brocado latino lex posterior generalis non derogat priori speciali, prevalecendo o critério de especialidade ao cronológico.114 Aqui se enquadram as antinomias ocorridas entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, pois, tendo em vista serem ambas consideradas leis ordinárias, por eregirem da mesma fonte, a Constituição Federal, são dirimidas pelos critérios de especialidade e cronológico. Não obstante ainda haja, na doutrina, correntes que adotam o princípio que sobrepõe o critério de especialidade ao cronológico, atenta-se que essa solução seria paradoxal nos casos em que o Código Civil pudesse ser mais favorável à proteção do consumidor, situação que de fato ocorre por diversas vezes. O desafio dos doutrinadores atualizados e preocupados com a efetividade social das normas, então, tem sido encontrar uma hermenêutica integradora, que leve essas duas fontes legislativas a dialogarem produtivamente entre si. 111 BOBBIO, op. cit., p. 97-105. De acordo com a classificação de BOBBIO, 1999, p. 105-110. 113 DINIZ, 1998, p. 50. 114 Nesse sentido, Norberto Bobbio assevera: "O conflito entre critério de critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro" (BOBBIO, 1999, p. 108). 112 especialidade e 30 4 HARMONIZAÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 ATRAVÉS DO DIÁLOGO DAS FONTES 4.1 O DIÁLOGO DAS FONTES O direito pós-moderno, de caráter sistemático aberto e dinâmico, busca, na conjugação interativa do ordenamento, alcançar uma interpretação mais eficiente e justa do sistema jurídico. A pluralidade de leis, característica do direito contemporâneo, termina, por vezes, a acarretar antinomias, em razão da atuação intertemporal entre seus campos de aplicação, como vimos no capítulo anterior. Nesta linha, o Código de Defesa do Consumidor de 1990, lei anterior, e o novo Código Civil brasileiro de 2002, lei posterior, estariam em "conflito", daí a necessária solução das eventuais antinomias que possam surgir entre os dois diplomas. Contudo, os critérios para resolver tais conflitos seriam apenas aqueles três citados: anterioridade, especialidade e hierarquia. A utilização destes critérios, no entanto, exige, por regra, a retirada de uma das normas do ordenamento, através da prevalência de uma lei sobre a outra. Esta "monossolução autofágica" do sistema, resultante da exclusão mecânica de alguma das normas conflitantes, não encontra espaço no direito privado contemporâneo, que, concebendo o ordenamento como um sistema aberto e carente de interação a fim de ampliar a praticabilidade de seu caráter social e garantir justiça para os mais vulneráveis nos tribunais brasileiros, debruça-se na tarefa de elaboração de novos modelos hermenêuticos. De acordo com Erik Jayme, nos tempos pós-modernos, caracterizados pela pluralidade e complexidade, a distinção impositiva dos direitos humanos e do droit à la differénce (direito a ser diferente e ser tratado diferentemente, sem necessidade mais de ser "igual" aos outros) não mais permitem este tipo de clareza ou de "monossolução". A solução sistemática pósmoderna deve ser mais fluída, mais flexível, a permitir maior mobilidade e fineza de distinções. 115 Nestes tempos, a superação de paradigmas é substituída pela convivência de paradigmas, havendo, por fim a convivência de leis com campos de aplicação por vezes convergentes e, em geral, diferentes, em um mesmo sistema jurídico, que parece ser agora um sistema (para sempre) plural, fluído, mutável e complexo. Não deixa de ser um paradoxo que o "sistema", o todo construído, seja agora plural [...]116 Surge, então, como proposta de um processo alternativo para a superação de antinomias, o "diálogo das fontes" ("dialogue de sources"), que visa, por meio da coordenação e da comunicação harmônica das fontes do sistema jurídico, a “uma solução flexível e aberta de interpenetração ou mesmo a solução mais favorável aos mais fracos da relação”117. A intenção é priorizar-se não uma solução baseada em critérios predeterminados, mas sempre a justiça no caso concreto. Dessa forma, possibilita-se o diálogo normativo com o finco de conceder uma eficiência funcional ao sistema, de modo a extrair a essência axiológica de cada norma em conflito, para se chegar a uma maior efetividade social. Assim, o diálogo das fontes sugere, em caso de antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, a comunicação entre os diplomas legislativos na 115 JAYME apud MARQUES, 2005, p. 14. MARQUES, 2005, p. 14-15. 117 Ibid., p. 17. 116 31 busca da prevalência da norma mais favorável ao consumidor, parte mais fraca de uma relação de contrato de consumo em razão de sua vulnerabilidade, em lugar do produto da aplicação monóloga dos critérios tradicionais de superação, que, por vezes, poderia ser injusto. A idéia, que representa um novo paradigma doutrinário, atual e necessário, encontra sua origem e fundamento na própria codificação tutelar dos consumidores no Brasil, na medida em que a Constituição Federal de 1988, identificando-os como vulneráveis e especiais, concede-lhes status máximo de direito fundamental expressamente disposto no artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, in verbis: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Além do mais, o artigo 1º da lei 8078/90 prescreve claramente que as regras ali dispostas são de ordem publica118. Nestas condições, a proteção do consumidor está amparada pelo princípio da proibição do retrocesso dos direitos e garantias individuais, não podendo sequer ser objeto de deliberação de emenda tendente a aboli-lo, de acordo com o artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF/88. Outrossim, desde seu preâmbulo até os ditames da ordem econômica (artigo 170 e seguintes), a nossa Carta Magna prevê a articulação da livre iniciativa com a justiça social, impondo uma nova ordem constitucional no Mercado, limitada pelos direitos do consumidor (artigo 170, V). Tanto assim que, em seu artigo 1º, ao declarar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, coloca entre os fundamentos deste, no inciso IV, os valores sociais da livre iniciativa. Por fim, vale lembrar que a organização de um código protetivo dos consumidores, para legislar sobre seus direitos, foi expressamente ordenada pelo artigo 48 das Disposições Transitórias da Constituição Federal, que dispôs: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”. Cabe ressaltar que os princípios constitucionais constituem normas de aplicação direta e imediata, que devem servir de base para a interpretação e aplicação de todas as demais. Com efeito, a Constituição define a tábua axiológica que condiciona a interpretação de cada um dos setores do direito civil119. Neste diapasão, sob a ótica do diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 em eventual conflito, objetivando-se conceder mais eficácia à proteção constitucionalmente prevista ao consumidor, tem-se que, nos casos em que o Código Civil de 2002 for mais favorável ao consumidor do que seu próprio diploma protetivo, não se aplica o critério de especialidade em detrimento do critério de anterioridade. A doutrina moderna já adotava com cautela o princípio lex posterior generalis non derogar priori speciali, conferindo-lhe parcial inefetividade por ser menos seguro que os demais. Para Maria Helena Diniz, a preferência entre um critério e outro não é evidente, devendo haver, conforme o caso concreto, a supremacia ora de um, ora de outro120. Até mesmo Bobbio, surpreendentemente, assevera que para fazer afirmações mais precisas nesse campo é necessário dispor de uma ampla casuística121. Ademais, é preciso não olvidar que, havendo antinomia, independentemente da espécie, acima de qualquer critério preestabelecido, “o valor justum deverá lograr entre as normas incompatíveis, devendo-se seguir sempre a mais justa ou a mais favorável à parte mais fraca, procurando salvaguardar a ordem pública ou social”122. Além disso, da análise do texto do próprio artigo 7º do Código de Defesa do Consumidor, depreende-se que o diploma não tem pretensão de exaurir a matéria, prevendo a 118 119 120 121 122 Dispõe o artigo: “O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.” TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 221. DINIZ, 1998, p. 97-105. BOBBIO, 1999, p. 108. DINIZ, op. cit., p. 40. 32 possibilidade de os direitos do consumidor estarem regulados em outras leis. O dispositivo, que representa uma cláusula de abertura e uma interface com o sistema maior, dispõe que os direitos previstos no diploma não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Assim a teoria do diálogo das fontes se enquadra também aos critérios interpretativos indicados pela doutrina como parâmetros para se alcançar uma hermenêutica coerente, fundada na razão social da lei e que vise à justiça, pois vai ao encontro da racio legis do Código de Defesa do Consumidor, uma lei protetiva que intenciona tutelar os indivíduos presumivelmente vulneráveis. Nesse sentido, dispõem Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem: O CDC é um sistema permeável, não exaustivo, daí determinar o art.7º que se utilize a norma mais favorável ao consumidor, encontra-se ela no CDC ou em outra lei geral, lei especial ou tratado do sistema de direito brasileiro. Esta abertura é tanta que o art. 7º do CDC permite a utilização da eqüidade para preencher lacunas em favor dos consumidores. Como se sabe, esta justiça para o caso concreto, mesmo fora do sistema, só pode ser usada pelo juiz brasileiro quando autorizada por lei (art. 4º, da LICC) , e aqui abre-se o sistema do CDC ao uso deste instrumento maior para alcançar a justiça e a igualdade entre os desiguais123. O critério da interpretação mais favorável ao consumidor, de acordo com Gustavo Tepedino, [...] vai sendo mais e mais associado não à qualificação do consumidor como um status, um privilégio, uma espécie de salvo-conduto para melhor exercer suas atividades econômicas, mas à preocupação constitucional com a redução das desigualdades e com o efetivo exercício da cidadania, perspectiva que não poderia deixar de compreender, segundo a vontade normativa do constituinte, as relações consideradas de direito privado. Sendo assim, funcionalmente ou pela teleologia da própria lei 8078/90 e da Constituição Federal124, propõe-se que, na hipótese de conflito entre as regras de especialidade e superioridade, prevaleça, em todos os casos, a norma mais favorável aos direitos do consumidor, alternando-se um e outro critério, conforme as circunstâncias fáticas e os valores contrapostos, sempre com o objetivo de encontrar a solução mais sistemática e, por conseguinte, mais consetânea com os valores fundamentais da ordem jurídica, impedindo a ruptura do ordenamento e permitindo ao sistema, sem exceção, neutralizar e, até mesmo, inverter o efeito das antinomias125. É o que Cláudia Lima Marques denomina de diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil126, através do qual uma lei pode complementar a aplicação da outra, a depender de seu 123 124 125 126 MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 220. MARQUES, 2005, p. 25. PASQUALINNI, 1999, p. 107. De acordo com Cláudia Lima Marques, outros dois diálogos seriam possíveis entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: o diálogo sistemático de coerência, através da aplicação simultânea das duas leis, e diálogo de coordenação e adaptação sistemática, através da influência recíproca de ambos os diplomas. Como exemplo de aplicação simultânea entre o CDC e o CC/2002 podemos entender a definição de conceitos previstos no microssistema e não especificados na lei geral, como consumidor, fornecedor, serviço e produto nos artigos 2, 17, 29 e 3 do CDC, ou até mesmo o contrário, visto que o Código Civil conceitua expressões como nulidade, pessoa jurídica, prova, decadência, prescrição e assim por diante, 33 campo de aplicação no caso concreto, ao indicar a aplicação complementar tanto de suas normas, quanto de seus princípios. Assim, o sistema geral pode encontrar uso complementar para regular as relações de consumo quando apresentarem normas mais favoráveis ao consumidor. Dito diversamente, após o exame do tipo de relação jurídica em questão envolvida na antinomia, caso esta seja uma relação de consumo, tem-se que o Código de Defesa do Consumidor regulará prioritariamente, e, subsidiariamente e no que for complementar, o Código Civil. Cláudia Lima Marques afirma que este diálogo é exatamente contraposto, ou no sentido contrário, à revogação ou ab-rogação clássica de normas, em que uma lei era ‘superada’ e ‘retirada’ do sistema pela outra. Agora há escolha - pelo legislador (artigos 777, 721 e 732 do Código Civil) ou pelo juiz (no caso concreto do favor debilis do artigo 7º do Código de Defesa do Consumidor) - daquela que vai "complementar" a ratio da outra127. 4.2 APLICAÇÃO DO DIÁLOGO DAS FONTES EM ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL Ao estabelecer, antes de qualquer critério tradicionalmente apontado pela doutrina, a preferência da norma mais justa, que fará prevalecer o sentido mais favorável à parte mais fraca, o diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade propõe um supracritério em situações de aparentes antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. Dessa forma, alternar-se-á entre as normas de ambos os diplomas na regulação das relações de consumo, aplicando-se ora as regras do Código Civil, ora as do Código de Defesa do Consumidor, esgotando-se, primeiro, a aplicação de uma lei, e depois, no que couber, para beneficiar o consumidor, utiliza-se complementarmente (e subsidiariamente) a outra128. Analisemos, então, algumas situações em que ocorrem antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 solúveis com a aplicação do diálogo das fontes através do uso complementar e subsidiário das normas do diploma geral no que essas puderem beneficiar os consumidores. 4.2.1 Do contrato de transporte O Código Civil de 2002, em seus artigos 730 a 756, cuidou de regular o contrato de transporte. Conforme estabelece o artigo 730, o contrato de transporte pode ser conceituado como aquele em que alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas. Esse tipo de contrato pode ser classificado como bilateral, consensual, comutativo, por adesão e oneroso. Ademais, trata-se de um contrato de prestação de serviços - caracterizado por uma obrigação de resultado - estabelecido entre um consumidor e um fornecedor deste serviço, configurando-se como uma relação de consumo129. servindo, nestes casos, uma lei de base conceitual para a outra. O diálogo das influências recíprocas sistemáticas, por sua vez, pode ser ilustrado no exemplo de uma possível redefinição do campo de aplicação dos dois sistemas. Assim, ilustrativamente, as definições de consumidor stricto sensu e de consumidor equiparado, que sofreram influências finalísticas do novo Código Civil, já que este vem justamente para regular as relações entre iguais, dois iguais-consumidores ou dois iguais-fornecedores entre si. É a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de double sens (MARQUES, 2005, p. 17-18). 127 MARQUES, 2005, p. 18-19. 128 Ibid., p. 25. 129 Nesse sentido, Ruy Rosado: "Ora, todos sabemos que o transporte é uma relação de consumo estabelecida entre um fornecedor de serviço e um consumidor desse serviço. Embora o legislador tenha posto isso no Código Civil, na verdade, ele está regulando uma relação de consumo, à qual se aplica o Código Civil, não o Código de Defesa do Consumidor" (AGUIAR JÚNIOR, 2004, p. 4). 34 Merece especial relevância a disposição do artigo 740, face ao direito conferido ao transportado de resolver o contrato antes de iniciada a viagem, devendo ser restituído o valor desde que a comunicação seja feita em tempo ao transportador, de modo a permitir a renegociação da passagem. Além disso, uma vez iniciada a viagem, ao passageiro é facultado desistir do transporte, sendo-lhe devida a restituição do valor correspondente ao trecho não utilizado, demonstrando que houve a revenda para outra pessoa. Também dispõe que, em todas essas situações, tem o transportador o direito de reter 5% a título de multa compensatória130. Essas disposições específicas do Código Civil de 2002 para a relação de consumo em caso de transporte de pessoas e coisas podem nos ilustrar um exemplo de diálogo de complementariedade e subsidiariedade entre a lei geral e a lei consumerista. Isso porque essas normas devem ser aplicadas em detrimento de qualquer outra que possa estar no Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de um direito superveniente que veio dispor, de modo específico, sobre uma relação de consumo. Porém, para reger uma relação entre consumidor e fornecedor, a aplicação das regras do Código Civil deverá dialogar com os princípios contidos na legislação protetiva, que continuam prevalecendo. É o que se infere da própria leitura do artigo 732 do Código Civil, que estabelece que “aos contratos de transporte, em geral são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais”. Constata-se, com isso, que o Código Civil de 2002, em sentido excepcional à regra geral de hermenêutica, tem aplicação preferencial na regulação de relações que envolvem contratos de transporte. Subsidiariamente, essa mesma regra permite a aplicação de outros dispositivos legais ou decorrentes de tratados e convenções internacionais. Assim, por exemplo, nessa relação de transporte, a questão da prova a respeito do prejuízo será regulada pelos princípios que estão no Código de Defesa do Consumidor, e não no Código Civil. Não vigorará, então, o princípio de que o ônus da prova é de quem alega o fato, ilustrado, de certo modo, no artigo 877 do Código Civil de 2002, que estabelece que “àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro”, mas o ônus será do transportador, porque em relações de consumo admite-se a presunção da veracidade da alegação do consumidor, expressamente autorizada no artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor. Ruy Rosado de Aguiar Junior, valendo-se da mesma idéia do diálogo de complementariedade e subsidiariedade sugerido, porém com outras palavras, dispõe que “os princípios são os do Código de Defesa do Consumidor, as regras são as do Código de Defesa do Consumidor, salvo quando o Código Civil dispuser especificamente sobre uma relação de consumo", prevalecendo, nesse caso, a norma mais favorável ao consumidor131. Disso concluise que, embora utilizando de diferente terminologia, é tendência da doutrina moderna a superação de antigos paradigmas e a defesa da interpretação pró-consumidor, resultante da 130 131 In verbis: Art. 740. O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada. § 1.º Ao passageiro é facultado desistir do transporte, mesmo depois de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor correspondente ao trecho não utilizado, desde que provado que outra pessoa haja sido transportada em seu lugar. § 2.º Não terá direito ao reembolso do valor da passagem o usuário que deixar de embarcar, salvo se provado que outra pessoa foi transportada em seu lugar, caso em que lhe será restituído o valor do bilhete não utilizado. § 3.º Nas hipóteses previstas neste artigo, o transportador terá direito de reter até 5% (cinco por cento) da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória. AGUIAR JÚNIOR, 2004, p. 5. 35 aplicação conjunta do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002 na solução de antinomias.132 4.2.2 Da decadência Outra questão em que se pode vislumbrar o diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 diz respeito ao prazo decadencial que regula a matéria dos vícios. O Código Civil de 2002 disciplina a questão dos vícios ocultos, também conhecidos como vícios redibitórios, nos artigos 441 a 446, exigindo, pelo que se constata do artigo 441, a comutatividade no contrato para a incidência das normas ali dispostas. Vícios ocultos são aqueles vícios presentes desde a gênese do contrato, não perceptíveis a um homem médio - revelando-se apenas mediante exames técnicos ou testes -, que tornem a coisa imprópria para o uso a que é destinada ou lhe diminuam o valor. Assim, a depender da conveniência conferida ao adquirente, ele pode optar pela ação de redibição - caso queira rejeitar (redibir) a coisa e receber o dinheiro correspondente - ou ação estimatória, também conhecida como quanti minoris - pela qual é facultado ao adquirente reclamar um abatimento no valor da coisa. O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, traz, nos artigos 18 a 20, a idéia de vícios de qualidade e de quantidade. Vícios de qualidade são aqueles que se referem aos bens inadequados para o fim a que se destinam, e são passíveis de existir tanto em produtos quanto em serviços. Já por vícios de quantidade entendem-se aqueles em que o produto apresenta disparidade de medida, volume ou peso com relação às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária. As opções apresentadas ao consumidor, nesses casos, são: substituir o produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os aludidos vícios (artigos 18, parágrafo primeiro, inciso I e 19, inciso III), restituir imediatamente a quantia paga, monetariamente atualizada e sem prejuízo de eventuais perdas e danos (artigos 18, parágrafo primeiro, inciso II e 19, inciso IV) ou, ainda, preferir o abatimento proporcional do preço (artigos 18, parágrafo primeiro, inciso III e 19, inciso I). Além do mais, se o vício for de qualidade, o consumidor pode optar apenas pela substituição das partes viciadas (artigo 18, parágrafo terceiro), e, nos casos de vícios de quantidade, há também a opção da complementação do peso ou da medida (artigo 19, inciso III). O Código de Defesa do Consumidor trata do direito de reclamar tais vícios no artigo 26, estabelecendo o prazo decadencial de trinta dias para produtos não-duráveis e de noventa dias para produtos duráveis. O mesmo prazo se dá com relação aos vícios ocultos: Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviços e de produtos não-duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviços e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. § 2° Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser 132 Assim, o que Cláudia Lima Marques denomina de subsidiariedade, que se explica pela aplicação prioritária das normas do Código de Defesa do Consumidor e subsidiária do Código Civil de 2002, naquelas hipóteses em que a matéria não for regulada pelo microssistema e aplicam-se as normas da legislação geral parte da doutrina prefere terminologia distinta, referindo-se à aplicação supletiva das normas do direito comum aos consumidores, por exemplo, como lacuna, a ser solucionada pela analogia prevista no artigo 4º da LICC (JUSEFOVICZ, 2005, p. 240), ou como “princípio da aplicação mais favorável ao consumidor” (TEPEDINO, 2004, p. 233). 36 transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado). III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito. A questão é que o atual Código Civil prevê um prazo de um ano para a reclamação de vícios ocultos existentes em bens imóveis, categoria que se enquadra em bens duráveis133, no caput do artigo 445, que assim estabelece: “O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de 30 (trinta) dias se a coisa for móvel, e de 1 (um) ano se for imóvel, contado da entrega efetiva”. Isso quer dizer que o Código Civil prevê uma classificação, além de mais específica, mais benéfica ao consumidor do que o dispositivo da lei consumerista no que se refere ao prazo decadencial. A lei de defesa dos consumidores, em que pese essa questão, também traz, se comparada à legislação geral, vantagens ao consumidor. Assim pode ser entendido o parágrafo terceiro do artigo 26, que não fixa previamente um limite temporal máximo para o surgimento do vício oculto, diferentemente do Código Civil que, no parágrafo primeiro do artigo 445, estabelece um período máximo de cento e oitenta dias para bens móveis e de um ano para bens imóveis. Ademais, o parágrafo segundo do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor permite que a fluência do prazo decadencial seja obstada pela reclamação formulada ao fornecedor ou instauração de inquérito civil, matéria não regulada no Código Civil. Neste sentido o diálogo das fontes atua, sugerindo que o consumidor se favoreça, quando for o caso, do prazo decadencial previsto no Código Civil, sem prejuízo dos direitos estatuídos no Código de Defesa do Consumidor. 4.2.3 Da responsabilidade objetiva Analisemos, por fim, o caso da regulação da responsabilidade objetiva do fornecedor no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002. Na lei 8078/90, a matéria é tratada no artigo 12, que dispõe: Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. § 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em circulação. § 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado. § 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I - que não colocou o produto no mercado; II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. 133 “Entende-se por produtos não duráveis aqueles que se exaurem no primeiro uso ou logo após sua aquisição, enquanto os duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não efêmera” (REsp 114.473, 96/0074492-0/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 24.03.1997) 37 O Código Civil de 2002, por sua vez, no artigo 931, ampliou o conceito de fato do produto existente no Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer que, ressalvados outros casos previstos em lei especial, “os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Desse modo, ao vincular a empresa e os empresários individuais à circulação dos produtos, a lei geral cria uma hipótese não prevista, anteriormente, na redação do diploma consumerista. É o que a doutrina denomina de "risco do desenvolvimento", ou seja, [...] o defeito impossível de ser conhecido e evitado no momento em que o produto foi colocado em circulação, em razão do estágio da ciência e da tecnologia. É aquele defeito que não pode ser cientificamente conhecido no momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um período de uso do produto, como ocorre com certos medicamentos novos - vacinas contra o câncer, drogas contra AIDS, pílulas para melhorar o desempenho sexual, etc.134 Considerando-se, sobretudo, que o parágrafo terceiro do artigo 12, ao prever as causas de exclusão de responsabilidade do fornecedor, não incluiu os riscos do desenvolvimento, entende-se que o fornecedor pode ser responsabilizado, através de uma exegese conjunta do artigo 931 do Código Civil e do artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor, por mais esta espécie de defeito135. Assim, resta demonstrado, mais uma vez, o diálogo entre essas duas fontes legislativas atuando de forma a beneficiar, sempre, o consumidor. 4.3 ALGUNS JULGADOS ADOTANDO O DIÁLOGO DAS FONTES NA HARMONIZAÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL Por derradeiro, considera-se importante a análise jurisprudencial que ilustre o diálogo estudado neste trabalho, para que se possa visualizar, em casos práticos, a teoria desenvolvida. Com relação ao diálogo de complementariedade e subsidiariedade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 no que diz respeito aos prazos decadenciais, a jurisprudência que segue, na qual o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que o prazo contido no artigo 445 do Código Civil deveria prevalecer sobre o artigo 26, inciso II do Código de Defesa do Consumidor, em razão de ampliar o prazo de reclamação do vício para um ano: CONSUMIDOR. CONSTRUÇÃO CIVIL. DECADÊNCIA. A entrega das chaves do imóvel constitui marco inicial do prazo decadencial para reclamação quanto a vício redibitório. O prazo é de um ano, em se tratando de bem imóvel. Derrogação parcial do art. 26, inc. II, do CDC, pelo art. 445, caput, do CC de 2002. A suposta falta de veneziana em uma das aberturas enquadra-se nessa hipótese. Recurso desprovido. Unânime. (Recurso Cível Nº 71000582197, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: João Pedro Cavalli Junior, Julgado em 11/11/2004) No mesmo sentido o acórdão abaixo, que igualmente ilustra a utilização do artigo 445 do Código Civil em lugar do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor, ao rejeitar uma argüição de decadência do direito de reclamar o vício redibitório de um imóvel, 134 135 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Responsabilidade civil por danos causados por remédios. Revista de direito do consumidor. São Paulo: RT, n. 29, 1999, p. 61. A doutrina que se posiciona a favor da responsabilização objetiva do fornecedor por “risco do desenvolvimento” entende que esta hipótese configuraria uma espécie do gênero defeito de concepção, podendo ser enquadrada, assim, independentemente de sua época de colocação ao mercado, como um acidente de consumo causado por insegurança do produto. (CAVALIERI FILHO, 1999, p. 61). 38 postulada pela parte fornecedora, que alegava o esgotamento do prazo de noventa dias previsto na lei 8078/90. Para tanto, utilizou-se, com o fim de beneficiar o consumidor, do prazo ânuo previsto na lei geral, que ainda não havia transcorrido. CONSTRUÇÃO. VICIO REDIBITÓRIO. AÇÃO CONTRA O CONSTRUTOR. DECADÊNCIA. MARCO INICIAL. REPARAÇÃO DOS DANOS. I. Tratando-se de vício redibitório oculto em imóvel, o prazo decadencial é de um ano a contar da ciência do defeito, nos termos do art. 445 do CC. II. Exame do mérito nos termos do art. 515, § 3º, do CPC. Prova segura acerca dos danos afirmados pela autora (infiltrações e fissuras), bem como da origem na construção, descortinando a responsabilidade civil do construtor. (Recurso Cível Nº 71000676841, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: João Pedro Cavalli Junior, Julgado em 23/06/2005). O diálogo de complementariedade e subsidiariedade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 com relação ao contrato de transporte pode ser verificado na decisão abaixo colacionada, que julgou procedente o pedido do consumidor desistente do contrato de transporte para ver-se indenizado pelo valor correspondente à passagem aérea de uma viagem a qual formulou desistência. No caso, o consumidor se viu forçado, por motivos particulares, a cancelar a viagem, fato que comunicou à transportadora com antecedência prévia de 72 horas. Pretendia, assim, ser ressarcido de acordo com o artigo 740 do Código Civil. A demandada, por seu turno, asseverou ser descabida a devolução nos moldes pretendidos, uma vez que se tratava de vôo charter, restando o assento não ocupado, de modo que faz jus tão somente ao percentual correspondente a 20%. Em sede recursal, decidiu-se que, embora tratasse de vôo charter, que tem o seu custo reduzido justamente por ser um vôo fretado, o que pressupõe o preenchimento de todos os assentos, o consumidor não fora informado dessas condições, o que as torna ineficazes. O julgado ainda entendeu que cabia à transportadora a prova de que o assento efetivamente não foi ocupado, demonstrando também, aqui, a adoção conjunta do princípio presente no Código de Defesa do Consumidor de inversão do ônus da prova para beneficiar o consumidor. CONSUMIDOR. VÔO FRETADO. DESISTÊNCIA. Se o consumidor não foi informado quanto às limitações postas no contrato em relação ao direito de desistência e de ressarcimento do valor correspondente, de nenhuma eficácia o que restou estabelecido no contrato. Dever da ré de demonstrar, comunicada que foi com razoável antecedência, que efetivamente não houve a ocupação do assento. DERAM PROVIMENTO. (Recurso Cível Nº 71000566240, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 22/09/2004) Para finalizar, vale mencionar uma decisão em que o Supremo Tribunal de Justiça manteve a sentença de primeiro grau que condenou, com fundamento no risco assumido pela empresa ao colocar o produto em circulação, o fabricante de um medicamento que causou dano para o consumidor136. O caso era de uma jovem que veio a falecer após ingerir, por prescrição médica, o medicamento “Energisan E. V.", em razão de um dos componentes do remédio, denominado dinitrila succinica. O fabricante, Aché Laboratórios Farmacêuticos S.A., alegando desconhecimento da toxicidade do componente, apresentou laudos do Instituto Adolfo Lutz que concluíam ser o efeito constatado fato novo e imprevisível. Não obstante, a decisão do STJ baseou-se no risco assumido pela empresa ao colocar o produto em circulação no mercado antes mesmo de comprovada definitivamente a eficiência e ausência de eventual dano da medicação para condenar a empresa a indenizar os pais da vítima137. 136 137 Recurso Especial nº 6.422-PR, 4ª Turma, STJ, unânime, Rel. Min. Barros Monteiro, 4.6.91, Lex 31/150 PASQUALOTTO, A. S. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. In: 39 O exemplo, embora anterior à criação do Código de Defesa do Consumidor, retrata a idéia da responsabilidade objetiva do fornecedor por riscos do desenvolvimento. Deduz-se, com isso, que se tal fato já era reconhecido antes mesmo da vigência da lei tutelar dos consumidores, menos direitos, hoje, eles não terão. Assim, através do diálogo das fontes, a decisão deve apoiar-se na hipótese regulada no Código Civil de responsabilidade objetiva do fornecedor por produtos postos à circulação no mercado, e valer-se do Código de Defesa do Consumidor, que não arrola o fato como causa excludente da responsabilidade do fornecedor quando trata da matéria no parágrafo terceiro do artigo 12, para, assim, ampliar a proteção ao consumidor. Os Enunciados 42 e 43 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, ilustram este entendimento: 42 – Art. 931: o art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos. 43 – Art. 931: a responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento. Assim restam demonstrados, na prática, exemplos possíveis do diálogo entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor sugerido ao longo do trabalho, afastando as aparentes antinomias existentes em cada caso para se alcançar uma harmonização entre as referidas leis. CONCLUSÃO Neste último momento da nossa pesquisa, em que cabe encerrar a idéia desenvolvida, mantendo-se, no entanto, abertos a posteriores discussões, torna-se conveniente proceder-se a uma breve retomada das principais conclusões a que chegamos ao decorrer do estudo. O problema abordado neste trabalho foi a superação de conflitos entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor através de critérios que permitam uma harmonização entre os dois diplomas. A doutrina tradicional aponta a prevalência do critério de especialidade sobre o critério de anterioridade nessas situações. Indagou-se, porém, que a adoção desse conceito seria injusta nos casos em que o Código Civil de 2002 pudesse ser mais benéfico ao consumidor do que a lei especial. Nesse raciocínio, a pergunta que se pretendeu responder foi qual seria o critério apropriado para, então, solucionar-se tais antinomias. O desafio foi encontrar uma hermenêutica integradora, que fizesse com que essas duas fontes legislativas dialogassem produtivamente entre si. Assim defendeu-se, no decorrer da reflexão elaborada, uma idéia de superação de antinomias entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor alternativa à adotada, tradicionalmente, pela doutrina. Sugeriu-se, através da base teórica fornecida pelos estudos de Cláudia Lima Marques, um diálogo entre essas duas fontes legislativas, de modo a permitir a comunicação e a coordenação de suas normas para se alcançar, com isso, uma maior eficácia na busca da proteção, constitucionalmente prevista, à parte mais fraca da relação jurídica de consumo, o consumidor. A partir da concepção de um sistema jurídico pós-moderno aberto e dinâmico, concluiu-se que o diálogo entre regras e princípios no interior de todo o ordenamento e suscetíveis a influências externas para sua adequação social conforme a realidade concreta torna-se, além de possível, necessário na concretização de uma aplicação justa do Direito. MARQUES, Cláudia Lima (Org.). Estudos sobre a Proteção do Consumidor no Brasil e no Mercosul. Porto Alegre: Livraria e Editora do Advogado, 1994, p. 90-91. 40 Para sugerir-se, ao longo deste trabalho, o diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, partiuse da premissa de que o novel diploma, além de não ter revogado as regras da lei consumerista, reafirmou valores já insertos na Lei 8.078/90, tais como a boa-fé objetiva, equilíbrio econômico e função social do contrato, o que foi possível deduzir-se através da análise evolutiva de ambos os diplomas, seus respectivos campos de aplicação e convergências principiológicas. Assim, constatou-se a plausabilidade do diálogo proposto. O tema aqui desenvolvido é apenas um dos diversos caminhos que a doutrina moderna e consciente dos problemas da nossa sociedade atual pode e deve aprofundar na busca por uma igualdade não apenas formal, mas material. Há muitos outros. Todos esses caminhos se cruzam na imperiosa tarefa de, buscando a congruência cada vez maior de binômios como justiça-direito e teoria-prática, fornecer um sentido ao sistema jurídico. REFERÊNCIAS AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Interpretação. Ajuris. Porto Alegre, v. 16, n. 45, p. 0720, mar. 1989. AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O novo código civil e o código de defesa do consumidor: pontos de convergência. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, p. 55-68, n. 48, 2004. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor. v. 18, p. 23-31, abr./jun. 1996. 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