HARMONIZAÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 ATRAVÉS DO DIÁLOGO DAS
FONTES1
Andréa Nicotti Gomes Ferreira
RESUMO
A entrada em vigor do Código Civil de 2002 estabeleceu uma concorrência de normas
incidentes sobre algumas relações jurídicas obrigacionais com relação ao Código de Defesa
do Consumidor, lei 8078/90, uma vez que a lei geral passou a regular, por vezes, também as
relações de consumo. De acordo com parte da doutrina, a superação para essas eventuais
antinomias se daria através do princípio lex posterior generalis non derogat priori speciali,
que se baseia na prevalência do critério de especialidade sobre o de anterioridade nos casos
em que ambas as leis sejam ordinárias. Essa decisão, no entanto, seria paradoxal nas hipóteses
em que o Código Civil de 2002 pudesse ser mais favorável à proteção do consumidor. O
diálogo entre essas fontes, viável em razão de suas congruências principiológicas, é a solução
que integraria os dois diplomas, alcançando, através da utilização complementar e subsidiária
das normas do Código Civil, sempre o resultado mais favorável ao consumidor, satisfazendo,
assim, não apenas o mandamento constitucional de proteção a esse sujeito de direitos
fundamentais, como também a justiça no caso concreto.
Palavras-chave: Código de Defesa do Consumidor. Código Civil de 2002. Princípios.
Antinomias. Hermenêutica. Diálogo. Harmonização.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por objetivo buscar uma forma de harmonização para as
aparentes antinomias que possam vir a surgir nas relações sistêmicas entre o Código de
Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. Mais especificamente, pretende aprofundar
a pesquisa sobre o diálogo das fontes como método de superação dessas antinomias, visando a
um resultado mais justo do que aquele que poderia ser produzido através dos critérios
tradicionais apontados pela doutrina.
O Código de Defesa do Consumidor, além de ter se apresentado como um diploma
legal específico para a regência das relações de consumo, se mostrou inovador, à época de sua
edição, também por inserir uma série de regras e princípios em nosso Direito. Ao identificar o
caráter de hipossuficiência do consumidor na relação contratual de consumo e reconhecer a
necessidade de proteção a este, rompeu com antigas noções clássicas do Direito Civil.
O Código Civil de 2002, editado posteriormente ao Código de Defesa do Consumidor,
sob a égide de uma nova realidade social, trouxe em seu texto normas por vezes mais
benéficas do que as previstas no CDC e aplicáveis inclusive às relações de consumo. Neste
sentido, caberá aos operadores do Direito solver este possível conflito de normas, existente
entre as regulamentações do Código de Defesa do Consumidor e as do novo Código Civil, a
partir de critérios hermenêuticos apropriados. Por outro lado, deve-se levar em conta que o
Código Civil de 2002, ao contrário de revogar o microssistema principiológico do diploma
1
Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso orientado pelo professor Adalberto Pasqualotto e
apresentado à banca examinadora constituída ainda pelas professoras Lívia Pittan e Maria Alice Hofmaister em
25 de junho de 2007, cujo grau obtido foi dez.
2
consumerista, tem se apresentado como uma novel fonte que reafirma valores já insertos na
Lei 8.078/90, tais como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio
econômico. Desta forma, é mister que os mecanismos de interpretação sejam utilizados na
busca de uma harmonização não só possível, mas necessária, entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002, a partir do entendimento de que o ordenamento
jurídico merece ser compreendido e utilizado não como um sistema fechado, em que a
aplicação de uma norma signifique a negação de outra, mas como um sistema aberto e
dinâmico, onde os dois diplomas possam coexistir e complementar-se, de modo a cumprirem
suas finalidades.
Com essa percepção, própria à análise de um direito social, e através do auxílio de
critérios hermenêuticos apropriados à realidade de um direito pós-moderno, é que nos
propomos a estabelecer um equilíbrio entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo
Código Civil, solucionando os eventuais conflitos existentes através da comunicação entre os
dois diplomas.
O atual ordenamento fornece todos os subsídios para a prática de um Direito mais
justo, basta não se aceitar a cômoda e, por vezes, ilógica utilização de clássicas regras de
soluções conflitivas e buscar interpretações construtivas mais condizentes com os princípios
constitucionais pós-modernos. Os operadores do Direito têm crucial relevância nesse contexto
e devem dedicar-se com seriedade e profundidade à análise das antinomias entre diplomas
legislativos, a fim de encontrar o real sentido de cada norma, considerando sempre que se vive
hoje uma realidade com pilares na eticidade, socialidade e operacionalidade2.
A Constituição Federal impõe um novo enfoque ao direito atual, em que é
imprescindível atenção à dignidade humana, à solidariedade e aos direitos diferenciados
dedicados aos consumidores. A interpretação das normas sob a nova perspectiva proposta
no nosso trabalho, com o reconhecimento das diferenças de status jurídicos e a integração
de todo o sistema privado, constitucional e infraconstitucional, através de uma hermenêutica
inspirada diretamente nos vetores axiológicos que formam o espírito das normas integrantes
de cada diploma, tem a expectativa de chegar a instrumentos mais eficientes para a
realização de uma harmonização entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil
de 2002.
O método de abordagem a ser utilizado no trabalho será, predominantemente, o
indutivo, fundamentando-se em pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais. No procedimento,
utilizaremos o modelo monográfico. Outrossim, a técnica de pesquisa será documental, tanto
na fonte primária judicial e legislativa, na medida em que nos valeremos do estudo de leis e
jurisprudências, como também na fonte secundária - bibliográfica -, através de pesquisas em
livros e revistas para averiguar os estudos já realizados a respeito do tema proposto.
A fim de facilitar a compreensão do trabalho ora apresentado, foram esquematizados
quatro capítulos: Inicialmente, para o desenvolvimento da pesquisa, estudar-se-á o caráter
sistemático do ordenamento jurídico, para, após, analisar-se a conjuntura da hermenêutica
pós-moderna, enquadrada em um contexto de abertura do sistema jurídico, bem como seu
dinamismo. No mesmo capítulo, abordar-se-ão os critérios hermenêuticos tradicionais, à luz
deste quadro atual em que se encontra inserida a ordem jurídica. Por fim, examinar-se-á o
papel do juiz diante desta nova realidade, que deflagra uma relevância cada vez maior para a
interpretação da lei na busca pela justiça social.
No segundo capítulo, serão analisados aspectos fundamentais das relações sistêmicas
do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002, tais como a evolução
histórica dos dois diplomas, suas convergências principiológicas e limites de aplicação.
2
REALE, Miguel. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2.ed. São
Paulo: Saraiva, 1999, p. 7-12.
3
Ainda, verificar-se-á, como produto do estudo obtido no capítulo, se houve ou não a
revogação do Código de Defesa do Consumidor pelo Código Civil de 2002.
No terceiro capítulo proceder-se-á a um estudo aprofundado das antinomias jurídicas,
tratando-se de aspectos gerais e fundamentais sobre a matéria, em tópicos como conceito,
história e classificação. Por fim, dissertar-se-á acerca dos critérios tradicionalmente apontados
pela doutrina de superação dos conflitos de normas, para que se possa concluir que, no caso
de conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, nem sempre
esses critérios encaminhariam a uma solução justa.
Finalmente, no último capítulo, desenvolvendo o objeto específico deste trabalho, será
apresentada e estudada a proposta da solução de antinomias entre o Código de Defesa do
Consumidor e do Código Civil de 2002 através do diálogo das fontes, que sugere a
comunicação e a coordenação entre os dois diplomas objetivando-se encontrar o sentido da
norma mais favorável ao consumidor, na busca de conceder às leis uma maior efetividade
social. Observar-se-á, também, neste capítulo, exemplos de antinomias entre o Código de
Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 e a possível solução através do diálogo
sugerido, além da análise de alguns julgados utilizando-se dele.
Frisa-se, por derradeiro, que o tema, abordado sob as óticas jurídica e social, não tem a
pretensão de exaurir todas as formas de diálogos possíveis entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002, mas sugerir o diálogo sistemático de complementação
e subsidiariedade3 como alternativa de superação de antinomias entre os dois diplomas,
através da utilização auxiliar da lei geral às relações de consumo, no que essas puderem ser
mais favoráveis ao consumidor.
1 A HERMENÊUTICA NO SISTEMA JURÍDICO PÓS-MODERNO
1.1 SISTEMA JURÍDICO ABERTO E DINÂMICO
Neste primeiro momento do trabalho, importante que estudemos um ponto de extrema
relevância para o alcance da harmonização de antinomias entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002, qual seja, a interpretação das normas à luz do sistema
pós-moderno: dinâmico e aberto.
A questão do conflito normativo é, eminentemente, sistemática, razão pela qual
convém apresentar uma noção de sistema. Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, sistema é um
complexo que se compõe de um conjunto de relações, que forma sua estrutura, fornecido por
um conjunto de elementos, que representa seu repertório.4
Desta forma, segundo o autor, a ordem jurídica, composta por elementos normativos e
não normativos - repertório -, cuja disposição e relação entre si permitem identificar uma
estrutura, pelo que se depreende de sua capacidade de determinar as regras para a criação e
reprodução de suas normas, estabelecer sua validade e indicar sua aplicação, pode ser pensada
como um sistema.
Na mesma linha, a definição de Juarez Freitas, que entende ser o sistema jurídico
constituído por conteúdo, e não apenas uma aglutinação de normas que guardam entre si
senão uma relação de forma:
3
4
Expressão usada por Cláudia Lima Marques. (MARQUES, Cláudia Lima. Diálogos entre o CDC e o CC/2002.
In: PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o
Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 18).
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4.ed.
São Paulo: Atlas. 2003, p. 176.
4
O sistema jurídico é uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios
fundamentais, de normas estritas (regras) e de valores jurídicos cuja função é a de,
evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos
justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados,
expressa ou implicitamente, na Constituição5.
O sistema jurídico, para Canaris, é dotado de dois lados, quais sejam, o objetivo e o
científico, ambos em processo constante de abertura. O primeiro representa a ordem jurídica
assente na idéia de codificação, enquanto o segundo pode ser entendido como as proposições
doutrinárias da ciência do direito. A abertura do sistema objetivo se dá como conseqüência da
modificabilidade dos valores fundamentais da ordem jurídica, pois o direito positivo é
suscetível de aperfeiçoamento, resultado de sua essência dinâmica, como fenômeno colocado
no processo da História, e, por isso, mutável6 . Essas modificações do sistema objetivo
reportam-se, no essencial, a modificações legislativas, a novas formações consuetudinárias, e,
subsidiariamente, às cláusulas gerais carecidas de preenchimento com valorações e à erupção
de princípios gerais de Direito extralegais. Com relação ao sistema científico, a abertura se
deve em razão do caráter de incompletude e provisoriedade do conhecimento científico, que
acaba por tornar cada sistema científico apenas "projetos de sistemas", tendo em vista a
possibilidade de reelaboração e progresso constante dos valores fundamentais do Direito
vigente, através da obtenção de novos e mais exatos conhecimentos.
Há que se considerar, portanto, diante deste quadro, a idéia de um sistema jurídico
aberto, que acompanha as evoluções das relações sociais e termina por retratar uma real
superação de paradigmas no que se refere à matéria jurídica. Esta abertura pode ser
compreendida através da possibilidade de o sistema sofrer a influência de valores externos,
metajurídicos ou extrajurídicos, que atuam diretamente sobre ele, alterando, internamente, seu
conteúdo normativo.
Além disso, a abertura do sistema jurídico propõe uma estrutura dialógica inclusive
interdisciplinar7, de forma a partilhar desta interconectividade com outros mundo-sistemas, na
busca de uma maior dimensão da justiça no seio da complexidade social8.
Deste modo, conclui-se que se torna inviável a percepção de um conceito de sistema
jurídico perfeito e fechado, à base de definições alheias ao mundo exterior, porquanto a ordem
jurídica, para pretender-se válida, não pode explicar-se, meramente, através de parâmetros
formais. Nesse sentido, o sistema jurídico é compreendido, felizmente, como inacabado e
inacabável.
Ademais, através desta idéia de reorganização de normas, decorrente da contínua
transformação da realidade, assume o sistema jurídico também um caráter dinâmico. Nesse
processo, normas são editadas, subsistem ao tempo, atuam, se defasem, são substituídas por
outras ou perdem sua atualidade em decorrência de alterações nas situações reguladas. 9
Esta noção aberta e dinâmica do sistema pode também ser constatada através da
coexistência de regras e princípios, que permite uma relativa descodificação da estrutura
sistêmica, como explica Canotilho:
Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um
sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina
legislativa exaustiva e completa - legalismo - do mundo e da vida, fixando, em
5
6
7
8
9
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 54.
CANARIS, 2002, p. 110.
Ibid., p. 109-110.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7.ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 1454.
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 178.
5
termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-seia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a
complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é
necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras
não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de
valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma
organização política monodimensional. O modelo ou sistema baseado
exclusivamente em princípios levar-nos-ia a conseqüências também inaceitáveis. A
indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios
conflituantes, a dependência do “possível” fático e jurídico, só poderiam conduzir a
um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a
complexidade do próprio sistema.10
Assim, podemos compreender que nosso sistema é jurídico por se apresentar como um
sistema dinâmico de normas, e aberto porque tem uma estrutura dialógica de regras e
princípios, traduzida na disponibilidade e na capacidade de aprendizagem das normas, para
captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da verdade e da
justiça11. Esse sistema aberto e dinâmico torna-se exigível, sobretudo, na busca de uma
igualdade não apenas formal, mas material, na medida em que possibilita, cada vez mais, a
articulação da lei com o caso concreto.
1.2 NOÇÕES GERAIS DE HERMENÊUTICA
Esta nova concepção de sistema jurídico acarreta conseqüências particularmente
relevantes no que respeita à interpretação das normas, considerando-se, diante deste contexto
que cria cada vez mais mecanismos para a adaptação da lei à realidade, a importância
crescente da interpretação das leis.
Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, toda hermenêutica legislativa deve atender a
três critérios básicos, em decorrência dos quais torna-se possível a esquematização de
métodos de interpretação. Esses critérios são a correção (ou coerência), o consenso e a justiça.
A coerência, ao buscar uma significação correta da lei, exige um sistema hierárquico de
normas e conteúdos normativos. O consenso, por sua vez, exige respaldo social, na busca de
um sentido funcional da lei. Já a justiça, ao procurar a finalidade justa da norma, exige que se
atinjam os objetivos axiológicos do direito. Em função destes critérios, a doutrina sistematiza
os métodos lógico-sistemático, histórico-sociológico e teleológico-axiológico12 de
interpretação das leis, através dos quais se pretende atingir uma hermenêutica coerente,
fundada na razão social da lei e que vise à justiça.
Para isso, a conjugação destes critérios interpretativos deve conduzir à ratio legis, que
representa o sentido, espírito ou razão da lei, fator decisivo para se fazer uma interpretação
justa. Será, pois, a ratio legis que nos permitirá, enfim, iluminar os pontos obscuros e chegar à
norma que se encerra na fonte13. A propósito, vale lembrar que não há varias espécies
distintas de interpretação. Esta é única: os diversos meios possíveis de serem empregados
ajudam-se uns aos outros, combinam-se e controlam-se reciprocamente, e, assim, todos
contribuem para a averiguação do sentido legislativo14.
A partir daí, o resultado que se pode alcançar através da interpretação poderá ser:
declarativo, quando a interpretação feita da lei coincide com seu texto; restritivo, quando é
10
CANOTILHO, 2003, p. 1126.
CANOTILHO, 2003, p. 1123.
12
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 286.
13
ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 396.
14
FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. Belo Horizonte: Lider, 2002, p. 23.
11
6
preciso limitar o sentido de uma norma, não obstante a amplitude do texto da lei; ou
extensivo, se é necessário ampliar-se o sentido de uma lei para além do contido em sua letra15.
Analisemos, então, os parâmetros interpretativos coerentes com um sistema jurídico
pós-moderno apontados pela doutrina.
1.2.1 Interpretação sistemática
A interpretação sistemática acompanha a idéia de um sistema jurídico aberto e
dinâmico. Para Canaris, longe de tornarem inviável a formação do sistema, a incompletude do
conhecimento científico e a modificabilidade da própria ordem jurídica, características do
sistema pós-moderno, justamente possibilitam sua determinação a partir da realidade:
À abertura como incompleitude(sic) do conhecimento científico acresce assim a
abertura como modificabilidade da própria ordem jurídica. Ambas as formas de
abertura são essencialmente próprias do sistema jurídico e nada seria mais errado
do que utilizar a abertura do sistema como objeção contra o significado da
formação do sistema na Ciência do Direito ou, até, caracterizar um sistema aberto
como uma contradição em si. A abertura do sistema científico resulta, aliás, dos
condicionamentos básicos do trabalho científico que sempre e apenas pode produzir
projectos(sic) provisórios, enquanto, no âmbito questionado, ainda for possível um
progresso, e, portanto, o trabalho científico fizer sentido.16
Assim, parte-se para uma interpretação sistemática das normas, com base no
pressuposto de abertura e unidade do ordenamento, para alcançar uma visão em conjunto do
sistema consonante com a atual pluralidade de funções do Direito Positivo, sobremodo em
face das mudanças em curso na denominada sociedade pós-industrial. Rejeita-se, com isso,
qualquer espécie de solipsismo hermenêutico, unilateralismos ou simplificações reducionistas
e conjuga-se cada norma com todo o sistema, aplicando-se o Direito em sua totalidade
valorativa, para além do estritamente contido na letra da lei, empregando-se o sentido mais
justo, dentre os vários possíveis, aos princípios e às regras.
Na visão de Norberto Bobbio, a interpretação sistemática pode ser entendida como
aquela forma de hermenêutica que tira seus argumentos do pressuposto de que as
normas de um ordenamento, ou, mais exatamente, de uma parte do ordenamento como o Direito privado - constituam uma totalidade ordenada, e, portanto, seja
lícito esclarecer uma norma obscura ou diretamente integrar uma norma deficiente
recorrendo-se ao que ele denomina de “espírito do sistema”17.
Com relação ao método sistemático de interpretação, considera-se que a letra da
norma é apenas o limite inicial da atividade interpretativa, e que a conexão lógica de uma
expressão normativa com as demais do contexto é indispensável para a obtenção do
significado da lei. 18
A interpretação sistemática, assim, não se contrapõe ou é incompatível à interpretação
gramatical - lingüística ou literal - da lei: não se trata de operações separadas, porque além de
terem o mesmo fim, realizam-se conjuntamente - são as partes conexas de uma una e
indivisível atividade, a interpretação19. Muito antes pelo contrário: não há nenhuma
interpretação sistemática que se separe do exame do texto20. A análise da letra normativa é o
15
16
17
18
19
20
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 294-297.
CANARIS, 2002, p. 109.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10.ed. Brasília: UnB, 1999, p. 76.
JUSEFOVICZ, Eliseu. Contratos: proteção contra cláusulas abusivas. Curitiba: Juruá, 2005, p. 202.
FERRARA, 2002, p. 33.
ASCENSAO, 2005, p. 387.
7
ponto de partida para o exercício hermenêutico, visto que fornece a percepção sobre sua
convergência ou não com o espírito da lei. Este método de interpretação é utilizado para
solver questões léxicas, partindo-se do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo
como elas estão conectadas são importantes para obter-se o correto significado da norma21. O
sentido legislativo, no entanto, pode não se identificar com o que, literalmente, se expõe.
Afinal, o texto da lei é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos e
portadoras de pensamento, mas podem ser defeituosas. Nestas condições, percebe-se a
importância de uma visão sistemática da lei em conjunto com seu sentido literal. No fundo,
pois, a análise léxica funciona apenas como meio para demonstrar um problema a ser
interpretado, e não como um método de solucioná-lo. Só nos sistemas jurídicos primitivos a
interpretação literal era decisiva, tendo um valor místico e sacramental. Em tendência
contrária, com o desenvolvimento da civilização, esta concepção é abandonada e procura-se a
intenção legislativa. Relevante é o elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida
através das palavras do legislador. 22
Nas palavras de Franscesco Ferrara,
A interpretação literal é o primeiro estágio da interpretação. Efetivamente, o texto
da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete.
Uma vez que a lei está expressa em palavras, o interprete há de começar a extrair o
significado verbal que delas resulta, segundo a sua conexão e as regras gramaticais.
[...] As palavras hão de entender-se na sua conexão, isto é, o pensamento da lei
deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados,
deixando-se no escuro uma parte da disposição. Deve-se partir do conceito de que
todas as palavras têm no discurso uma função e um sentido próprio, [...] e por isso o
sentido literal há de surgir da compreensão harmônica de todo o contexto.23
O autor conclui, então, que a simples utilização da interpretação literal não é capaz de
remediar situações em que as palavras empregadas são equívocas ou indeterminadas, se
restam princípios obscuros ou se resultam conseqüências contraditórias, havendo-se que
recorrer a uma interpretação sistemática da lei. E acrescenta:
De resto, mesmo quando o sentido é claro, não pode haver logo a segurança de que
ele corresponde exatamente à vontade legislativa, pois é bem possível que as
palavras sejam defeituosas ou imperfeitas, que não reproduzam em extensão o
conteúdo do princípio ou, pelo contrário, sejam demasiado gerais e façam entender
um princípio mais lato do que o real, assim como, por último, não é excluído o
emprego de termos errôneos que falseiem abertamente a vontade legislativa. O
sentido literal é incerto, hipotético, equívoco24.
O exemplo fornecido por Tércio Sampaio Ferraz Júnior ilustra este entendimento:
Se a norma prescreve: "a investigação de um delito que ocorreu num país
estrangeiro não deve levar-se em consideração pelo juiz brasileiro", o pronome que
não deixa claro se está se reportando à investigação ou a delito. [...] É óbvio que as
exigências gramaticais da língua, por si, não resolvem essas dúvidas. A análise das
conexões léxicas, por uma interpretação dita gramatical, não se reduz, pois, a meras
regras de concordância, mas exige regras de decidibilidade25.
21
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 287.
FERRARA, 2002, p. 24.
23
Ibid., p. 33-34.
24
FERRARA, 2002, p. 35.
25
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 287.
22
8
Assim, deduz-se que a análise gramatical ou literal da norma possui valor na medida
em que obriga o jurista a tomar consciência da letra da lei e estar atento às equivocidades
proporcionadas pelo uso das línguas naturais e imperfeitas regras de conexão léxica26.
A interpretação lógica, assim como a gramatical, não exclui a necessidade conjunta de
uma análise sistemática da lei. Cuida-se, também aqui, de um instrumento técnico que, ao
solver questões lógicas referentes à legislação, tem sua razão a serviço da identificação de
inconsistências normativas. Exemplo do caso ocorre quando, em um mesmo diploma legal,
utiliza-se termo idêntico em normas distintas com conseqüências diferentes27. Chega-se à
conclusão, então, de que o princípio lógico da identidade (A=A), assim como o estudo
gramatical da letra da lei, também permite ao jurista tão-somente mostrar a questão, mas não
resolvê-la. Com isto, torna-se necessário tomar por base a noção de que o sentido de cada
parte é condicionado pelo todo em que se integra, procedendo-se a uma interpretação
sistemática do direito.
Disso resulta que toda lei só revelará o seu verdadeiro preceito a partir do diálogo com
as demais. O melhor significado normativo há de ser recolhido da alteridade jurídica
resultante do encontro finalístico das partes com a inteireza do sistema: "the intencion of the
whole will control interpretation of parties". Dessa forma, o direito é posto, na interpretação
sistemática, como permeável unidade ou centro de sentido em que estão ordenados e
coordenados todos os seus fragmentos. Sistema e norma são, originária e funcionalmente,
correlatos, e só nessa correlatividade têm razão e voz: o todo esclarece a parte, e a parte
reflete o todo. 28
Uma análise à luz da interpretação sistemática voltada para a solução de antinomias
entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 exigiria, pois, uma
avaliação conjunta dos dois diplomas, bem como da Constituição Federal.
1.2.2 Interpretação histórico-sociológica
As interpretações histórica e sociológica levam em consideração o tempo e as
condições em que ocorreu a gênese de uma norma para melhor compreender seu significado e
função no contexto social vigente.
Sabe-se que o direito, em especial o direito privado, é produto de uma lenta evolução,
resultado de um desenvolvimento histórico muito longo que remonta ao direito romano e
depois, através da elaboração medieval, em que confluem correntes de direito comum, pelo
trâmite do direito francês, entra no nosso ordenamento. Compreende-se que precioso auxílio
para a plena inteligência de um texto resulta de se descobrir a sua origem histórica e seguir o
seu desenvolvimento e as suas transformações, até o arranjo definitivo do assunto no presente.
Fórmulas e princípios, que considerados só pelo lado racional parecem verdadeiros enigmas,
encontram a chave da solução em uma razão histórica, no rememorar de condições e
concepções de um tempo longínquo que lhes deram uma fisionomia especial29.
O conjunto de circunstâncias que marcaram efetivamente o surgimento de uma lei é
denominado occasio legis, que pode ser levantado através dos precedentes normativos normas que vigoraram no passado e antecederam à nova disciplina para, por comparação,
entender os motivos da origem - ou, quando existentes, através dos trabalhos preparatórios -
26
Ibid., 2003, p. 287.
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 287.
28
PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretação sistemática do
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 90.
29
FERRARA, 2002, p. 38.
27
9
ilustrações de caráter científico que refletem debates internos, de modos de ver dos diversos
relatores ou preopinantes30, discussões parlamentares, emendas preteridas, etc.
A análise histórica, por sua vez, permite a compreensão da interpretação sociológica
das leis, na medida em que facilita o entendimento de sua razão no ordenamento. A
interpretação sociológica diz respeito ao levantamento das condições atuais onde vige uma
norma, que deve levar o intérprete a verificar as funções do comportamento e as instituições
sociais no contexto em que ocorrem. Assim pode-se, por exemplo, chegar à conclusão de que
determinada lei atendeu a uma situação de emergência, cujas condições típicas não mais
correspondem à época atual e, portanto, devem ser restringidas para o entendimento das
normas31.
Com isso conclui-se que, para uma efetiva hermenêutica que intencione superar
eventuais conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, tornase imprescindível uma análise histórica e exame das raízes sociológicas de ambos os
diplomas.
1.2.3 Interpretação axiológico-teleológica
Por fim, pode-se falar em uma interpretação axiológico-teleológica da lei, isto é, em
que se postulam fins e valorizam situações na intenção de, a partir de seu enquadramento na
ordem social, se alcançar o real sentido da norma.
No direito brasileiro, a própria Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 5º,
contém uma exigência teleológica, ao dispor que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins
sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Sua menção pressupõe uma
unidade de objetivos do comportamento social do homem32. O bem comum consiste em uma
síntese ética de condições sociais necessárias à plena realização das pessoas, sendo, também,
o bem da comunidade, formando uma consideração extralegal, genericamente vinculante,
enquanto por fins sociais devem ser compreendidos os da lei especificamente analisada33.
Assim, o jurista deve atender sempre à finalidade da lei, o resultado que quer alcançar
na sua atuação prática; a lei é um ordenamento de proteção que pretende satisfazer certas
necessidades, e deve ser interpretada no sentido que melhor responda a este fim, e, portanto,
em toda a plenitude que assegure tal tutela34.
Para se determinar esta finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da
vida, para cuja regulamentação a norma foi criada. Devemos partir do conceito de que a lei
quer dar satisfação às exigências econômicas e sociais e, portanto, ocorre em primeiro lugar
um estudo atento e profundo, não só do mecanismo técnico das relações, como também das
exigências que derivam daquelas situações, procedendo-se à apreciação dos interesses em
causa. A interpretação não é pura arte dialética, não se desenvolve com métodos geométricos
em um círculo de abstrações, mas prescruta as necessidades práticas da vida e a realidade
social35.
Não se confunde, porém, o elemento teleológico da interpretação com sua ratio.
Enquanto aquele pode ser concebido como motivo de política legislativa que ditou a regra, a
ratio legis se separa daquelas considerações para dar a razão ou sentido intrínseco da lei36,
numa relação de meio e fim.
30
Ibid., 2002, p. 39.
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 291.
32
FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 293.
33
ASCENÇÃO, 2005, p. 390.
34
FERRARA, 2002, p. 26.
35
FERRARA, 2002, p. 36.
36
ASCENSÃO, 2005, p.396.
31
10
A esse propósito, imperativo reexaminar a própria tarefa da exegese, sob o prisma de
alcançar o irrenunciável melhor significado a partir de uma dada escolha axiológica, lidando
com princípios e regras, devidamente hierarquizáveis, estando o intérprete presumivelmente
atento às demandas concomitantes de segurança e de justiça, inextricavelmente
consideradas37.
Com relação à hierarquização axiológica como método interpretativo, vem ganhando
força na doutrina do direito privado uma concepção de hermenêutica conforme o sistema com
aptidão para subordinar a matéria sob exame, sempre com respeito primordial aos princípios
jurídicos. Neste rumo, ganham importância tanto os princípios gerais da legislação civil quanto
princípios fundamentais da constituição. Além disso, aviva-se a noção de que os valores
fundamentais constitucionais devem servir como critério permanente para a fundamentação da
decisão judicial38.
Portanto, ainda mais relevante do que a voluntas legitoris, na utilização dos métodos
teleológico e axiológico de interpretação está
a vontade axiológica do sistema, que se pode reconhecer após a interação dialética
entre ordenamento e intérprete, consubstanciando insofismável ultrapassagem do
paradigma da subsunção formal, adotando, com sérias e fundas implicações, o
modelo da ponderação ou da axiológica hierarquização39.
Em síntese, doravante, toda exegese, bem como todo sistema jurídico, só poderão ser
compreendidos enquanto busca do espírito legislativo, que se dará através da análise
sistemática do ordenamento, considerando-se seus aspectos históricos e sociológicos e
sobrepesando-se valores que melhores assentam o real sentido da lei.
1.3 O PAPEL DO JUIZ
Se a interpretação ganha importância fundamental em um contexto de abertura e
dinamismo da ordem jurídica, o intérprete aparece no centro desta nova realidade. Caberá a
ele conferir sistematicidade às normas, vale dizer, harmonizá-las formal e substancialmente,
garantindo a salutar e democrática coexistência das liberdades e igualdades no presente em
que ocorre a hermenêutica. Logo, sem comungar com a escravidão mental - não abolida
pelo originalismo extremado nem pelo textualismo radical -, o intérprete contemporâneo
deve guardar vínculo com a excelência ou com a otimização máxima da efetividade do
discurso normativo. Deve fazê-lo, entretanto, naquilo que este possuir de eticamente
superior, relevante e universalizável, conferindo-lhe, simultaneamente, a devida eficácia
jurídica e a não menos devida eficácia ético-social40. Através da conjunção das posições
crítica e hermenêutica, a tarefa do exegeta ou aplicador do direito é, eternamente, a de
realizar, diante do caso concreto, "a máxima justiça sistemática possível” 41.
Tomando como meta a incansável busca pela justiça no caso concreto e
estabelecendo como limite o sistema jurídico em que está inserido, dentro do qual deve
encontrar a legitimação para a sua decisão, ainda que utilizando as janelas que o sistema
aberto contém, o juiz atua. Nos dizeres de Ruy Rosado:
O Juiz não é servo da lei, nem escravo de sua vontade, mas submetido ao
ordenamento jurídico vigente, que é um sistema aberto afeiçoado aos fins e valores
que a sociedade quer atingir e preservar, no pressuposto indeclinável de que essa
37
FREITAS, 2004, p. 64.
JUSEFOVICZ, 2005, p. 195.
39
FREITAS, op. cit., p. 26.
40
FREITAS, 2004, p. 68-69.
41
PASQUALINNI, 1999, p. 121.
38
11
ordem aspira à justiça. O primeiro compromisso do julgador é com a justiça;
estando ele convencido de ser injusto o sistema, trazendo-lhe sua sujeição
inconciliável conflito de consciência, não há como exercer a atividade operativa,
porque toda aplicação que fizer será sempre um modo de efetivação do sistema. O
intérprete não é um ser solto no espaço, liberto de todas as peias, capaz de pôr a
ordem jurídica entre parênteses. Ele atua com a ordem jurídica, fazendo-a viva no
caso concreto. Inserido no ambiente social onde vive, tem o dever de perceber e
preservar os valores sociais imanentes dessa comunidade, tratando de realizá-los.
Não pode fazer prevalecer a sua vontade a esses valores.42
Não obstante a multiplicidade de métodos interpretativos de que dispõe o aplicador da
lei e a diversidade de conteúdos adaptáveis aos conceitos abertos das normas, a natureza
decisória de sua atividade lhe impõe uma única escolha, e esta deve estar sempre vinculada à
justiça.
2 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002
2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
No contexto de uma ordem jurídica aberta e dinâmica, o direito privado, inserido neste
sistema mutável e, necessariamente, adaptável às mudanças da realidade, deve evoluir, ao
passo que acompanha os acontecimentos sociais.
Assim podemos entender a defasagem do Código Civil de 1916. De índole liberal e
forte na liberdade e na igualdade dos indivíduos, vigoravam, no código, os princípios do
pacta sunt servanda e da intangibilidade do contrato. Com fundamento na autonomia da
vontade, acreditava-se que cada indivíduo era livre para escolher o parceiro, o objeto e as
condições contratuais. Tendo optado, livremente, pela sua celebração, deveria cumpri-lo.
Neste panorama, destacava-se o papel absenteísta do Estado e, conseqüentemente, dos
tribunais, em tudo o que dissesse respeito à intervenção em atividades econômicas. A eles, era
dado tão-somente o dever de resguardar a liberdade dos particulares e zelar para que a
vontade desses fosse preservada43.
As transformações advindas da segunda metade do século XX acabaram por tornar,
porém, este quadro insustentável. O crescimento da economia, a sofisticação das relações de
consumo, o desenvolvimento de técnicas de Marketing, o advento dos contratos de adesão, as
tecnologias modernas, a desproporcionalidade das partes contratuais, os abusos e a
concentração de renda cada vez maiores denotavam o surgimento de uma sociedade
massificada pós-industrial, que já não mais poderia ser regulada pelo Código Civil de 1916.
Adalberto Pasqualotto sublinha dois grandes desgastes no Código Civil de 1916,
acentuados pelas modificações políticas, econômicas e sociais havidas no século XX:
De um lado, matérias que eram objeto de sua regulação foram transformadas em
leis especiais, dando lugar aos chamados microssistemas, para cuja existência
Orlando Gomes alertava em 1983.1 A primeira grande migração foi a das leis
trabalhistas, ainda na década de 40. O direito de família refletiu a mudança dos
costumes. A concentração urbana ditou a necessidade de sucessivas leis especiais
de inquilinato. Um sistema foi estruturado para proporcionar acesso à casa própria,
com articulação de diversos negócios jurídicos, desde a incorporação imobiliária
42
43
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Interpretação. Ajuris. Porto Alegre, v. 16, n. 45, mar. 1989, p. 17.
OLIVEIRA, Amanda Flávio de. O juiz e o novo contrato: considerações sobre o contrato à luz do Código de
Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002. In: PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO,
Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e
assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 327-328.
12
até o financiamento aquisitivo através de mútuo bancário, além dos seguros com
função de garantia do mutuante e de quitação em favor dos beneficiários do
mutuário. Tudo isso levou a um desprestígio do Código Civil como lei básica
reguladora da vida do cidadão, abalando a idéia de hegemonia legislativa,
dominante no conceito de codificação. Por outro lado, à parte principiológica do
direito das obrigações carecia substituir os princípios do individualismo e do
voluntarismo, consectários do liberalismo, por outros que refletissem a realidade
desigual emergente da sociedade massificada, que, mercê da concentração de poder
econômico nas grandes empresas, derrotou a idéia de liberdade contratual,
colocando em seu lugar a indefectibilidade dos contratos de adesão44.
A jurisprudência refletia a necessidade de atualização legislativa, introduzindo,
lentamente, novos paradigmas nas relações contratuais. Assim, princípios inspirados na
solidariedade, na boa-fé objetiva e no equilíbrio das prestações começaram a fundamentar
julgados jurisprudenciais, à margem dos pressupostos de liberdade contratual e igualdade
plena entre os contratantes, que ainda imperavam no Código Civil de 191645.
O precedente que segue, de 1987, ilustra o entendimento:
CONTRATO. REVISÃO. ALTERACAO DA BASE DO NEGOCIO. DIREITO
DE O CONTRATANTE PEDIR A REVISAO DA CLAUSULA CONTRATUAL
FACE A MODIFICACAO DAS BASES DO NEGOCIO. CONTRATO DE
FINANCIAMENTO REALIZADO AO TEMPO DO PLANO CRUZADO, CUJAS
PRESTACOES HOJE SE TORNAM EXCESSIVAMENTE ONEROSAS PARA O
DEVEDOR. MANDADO DE SEGURANCA CONTRA O ATO QUE DEFERIU
LIMINAR EM PROCESSO CAUTELAR, PARA IMPEDIR A PRATICA DE
QUALQUER ATO DE EXECUCAO DA DIVIDA. DEFERIMENTO EM PARTE
DA ORDEM, PARA PERMITIR AO CREDOR A COBRANCA DO PRINCIPAL
CORRIGIDO, MAIS JUROS LEGAIS. (Mandado de Segurança Nº 587050220,
Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ruy Rosado de Aguiar
Júnior, Julgado em 15/12/1987).
A sobrevinda da Constituição Cidadã de 1988, eminentemente democrática, instituiu,
de vez, o Estado Social (Welfare State), estabelecendo os pilares para um código de defesa
aos consumidores, ao reconhecê-los como sujeitos de direito subjetivo público frente ao
estado (artigo 5º, inciso XXXII da CF/88), considerá-los princípio impostergável da atividade
econômica (artigo 170, inciso V da CF/88) e, por fim, ao prever a organização de um Código
especial para tutelá-los (artigo 48 ADCT/CF/88), reestruturando, com isto, o Direito Privado
brasileiro com uma divisão tríplice: Direito Civil, Comercial e de proteção do consumidor46.
Surge, então, em 1990, o Código de Defesa do Consumidor, como primeiro passo
rumo a um contrato mais justo. Superando antigos e ultrapassados dogmas individualistas
típicos da ideologia liberal, através de inovações como a modificação ou revisão de cláusulas
contratuais excessivamente onerosas, a possibilidade de se decretar nulas cláusulas abusivas e
o reconhecimento e tutela do contrato de adesão, o CDC instaurava uma nova tendência social
no Direito Privado47.
O Estado, antes neutro e distante, agora assume um papel intervencionista, que busca a
justiça entre as partes envolvidas no contrato e para isso concede novos direitos ao
consumidor, identificando-os como vulneráveis. Assim, surge a chamada "socialização da
44
PASQUALOTTO. A. S. O Código de Defesa do Consumidor em face do Código Civil de 2002, In:
PFEFFEIR, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o
Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 131-132.
45
Ibid., p. 132.
46
MARQUES, 2005, p. 58.
47
OLIVEIRA, 2005, p. 239.
13
teoria contratual" ou "dirigismo contratual", na tentativa de "realcançar" o equilíbrio entre os
contratantes, embora essa situação praticamente nunca tenha existido.
Equipado com normas abertas e cláusulas gerais, que conferem ao magistrado poderes
para manter o direito sempre atualizado, o Código de Defesa do Consumidor se revelou uma
lei moderna, flexível e pronta para dar resposta ao dinamismo da nova realidade econômica
brasileira48. O novo papel conferido ao julgador pode ser ilustrado pelo art. 51 do CDC, que
estabelece um rol exemplificativo de cláusulas abusivas, utilizando-se da expressão "entre
outras", no caput do dispositivo legal, para manter aberto o intercâmbio do juiz com a
realidade.
No entanto, a estrutura normativa instituída pelo Código de Defesa do Consumidor
restringia-se às relações de consumo, mostrando-se insuficiente para reger, de forma plena, o
direito privado, na medida em que não incorporava contratos civis, que haviam passado,
também, por um processo de modificação.
Neste sentido, travou-se uma polêmica com relação ao campo de aplicação do Código
de Defesa do Consumidor e seus limites, sobre o que poderia se compreender por relação de
consumo e a extensão do conceito de consumidor.
Em 2002 foi promulgado o novo Código Civil, que, influenciado pelo caráter
solidarista do Código de Defesa do Consumidor, figurou muitas alterações em relação ao
regime anterior, demonstrando preocupação em acompanhar as mudanças ocorridas na
realidade49.
Nos dizeres do coordenador da comissão de redação do anteprojeto, Miguel Reale, o
Código Civil de 2002 foi orientado pelos pilares da eticidade, socialidade e operabilidade50.
A eticidade surge em substituição ao tecnicismo e formalismo jurídico presentes no
Código Civil de 1916, através de valores éticos como a boa-fé, os bons costumes e a função
social dos direitos subjetivos51, que ensejam a participação ativa do intérprete por vias
hermenêuticas para se verificar a ocorrência ou não destes princípios.
Nas palavras de Miguel Reale:
Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em
certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à
"concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução
mais justa e eqüitativa52.
A socialidade, por sua vez, vem a superar o antigo individualismo jurídico
característico do antigo regime. Este princípio, que sobrepõe os interesses sociais ao
patrimonialismo que impregnava o Código Civil de 1916, atua
temperando a liberdade contratual com a função social do contrato, estatuindo o
princípio da interpretação mais favorável ao aderente nos contratos de adesão,
reduzindo os prazos de usucapião, valorizando a natureza social da posse e
submetendo o direito de propriedade à sua função social e econômica53.
Miguel Reale assevera, sobre o princípio, que “se não houve a vitória do socialismo,
houve o triunfo da ‘socialidade’, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais,
sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana”54.
48
OLIVEIRA, 2005, p. 330.
Ibid., p. 331.
50
REALE, 1999, p. 7-12.
51
PASQUALOTTO, 2005, p. 145.
52
REALE, 1999, p. 8.
53
PASQUALOTTO, 2005, p. 145.
54
REALE, op. cit., p. 7.
49
14
A operabilidade, por fim, surge visando à prática e à efetividade das normas, através
de soluções normativas que facilitem sua interpretação e aplicação, tais quais a clareza e a
distinção entre prescrição e decadência, a disciplina apartada das associações e sociedades, a
utilização de cláusulas gerais (como a boa-fé) e de preceitos de conteúdo indeterminado
(como a onerosidade excessiva)55.
Este novo quadro principiológico, declaradamente de índole social, passa, finalmente,
a nortear também as relações civis. Consagra-se a intervenção estatal, agora não mais
exclusivamente nas relações de consumo, e o julgador cumpre a função fundamental de
buscar a justiça no caso concerto em todo o direito privado.
Embora a crítica que aponta a desatualização, desde seu nascimento, do Código de
2002, em razão da desconsideração de temas atuais, como a fertilização, a clonagem e o
comércio eletrônico56, o novel diploma consolidou avanços significativos, através da
consagração de princípios como a função social do contrato (artigo 421) e a boa-fé objetiva
(artigo 422). Com relação ao Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil de 2002 pode,
não obstante, representar um retrocesso a respeito de certas matérias, ao passo que disciplina
institutos já previstos na lei 8078/90, como a lesão (artigo 157), os contratos de adesão
(artigos 423 e 424) e a resolução por onerosidade excessiva (artigos 478 a 480), porém com
uma conformação mais restrita, em regra ainda vinculada a uma concepção voluntarista e
abstrata do fenômeno contratual57. Por outro lado, há que se salientar também a ocorrência de
situações em que o diploma geral prevê disposições mais benéficas ao consumidor do que o
próprio CDC, cabendo, nestes casos, uma análise aprofundada do campo de aplicação
respectivo de cada código, para que o consumidor possa valer-se, também, dos direitos
adquiridos no Código Civil.
2.2 LIMITES DE APLICAÇÃO
Pelo que se pode depreender do caráter especial da lei 8078/90, que regula as relações
específicas de consumo, entre fornecedor e consumidor, enquanto ao Código Civil de 2002,
lei geral das relações do direito privado, compete todas as relações não privilegiadas por uma
lei especial, não há colisão possível entre seus campos de aplicação, como explica Cláudia
Lima Marques:
O CDC é um microssistema especial, um código para agentes “diferentes” da
sociedade, ou consumidores, em relação entre “diferentes” (um vulnerável, o
consumidor, e um expert, o fornecedor). Já o CC/2002 é um código geral, um
código para os iguais, para relações entre iguais, civis e empresariais, puras58.
Assim, a constatação da existência de um direito subjetivo típico de consumo frente a
um ou mais fornecedores decorrerá da análise do sujeito da relação jurídica, para se descobrir
se se trata de um consumidor frente a um fornecedor, e de seu próprio ato/finalidade, do qual
se verifica a ocorrência, ou não, da relação de consumo59.
Cabe analisar, pois, a definição de consumidor e seus alcances.
Como se pode constatar no artigo 1º da lei 8078/90, o consumidor é o sujeito ativo da
relação jurídica de consumo, a quem se destinam os meios de proteção e defesa instituídos.
Ele vem conceituado no artigo 2º do mesmo estatuto, que estabelece que “consumidor é toda
pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final".
55
PASQUALOTTO, op. cit., p. 145.
PASQUALOTTO, 2005, p. 144.
57
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 316.
58
MARQUES, 2005, p. 22.
59
Ibid., p. 23-24.
56
15
Essa definição é denominada pela doutrina como padrão, standard ou srticto sensu. Ressaltese, a priori, que o Código de Defesa do Consumidor ainda estende a proteção a outras figuras
extraconsumo, consumidores equiparados por força da lei (bystandard), nos artigos 2º,
parágrafo único, 17 e 29.
O parágrafo único do artigo 2º equipara a consumidor "a coletividade de pessoas,
ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo".
O artigo 17, por sua vez, estende a proteção legal dos consumidores, para efeito de
responsabilidade civil do fornecedor, a todas as vítimas de acidentes causados por defeito de
um produto ou serviço.
Por fim, o artigo 29 amplia o conceito de consumidor a todas as pessoas,
determináveis ou não, expostas às práticas comerciais e contratuais.
O âmago da questão da definição de consumidor, no entanto, é estabelecer até onde
vai o conceito de destinatário final, elemento crucial na delimitação da abrangência das
figuras protegidas pelo código. O tema levantou polêmicas jurisprudenciais e doutrinárias, das
quais se pode identificar duas correntes principais: os maximalistas e os finalistas.
A teoria maximalista leva em conta a vulnerabilidade e a hipossuficiência do
adquirente profissional do produto ou serviço, propondo uma interpretação ampliada do
conceito de consumidor. Para esta corrente, a menção feita pelo artigo 2º do CDC ao
destinatário final diz respeito à destinação final fática que é dada àquele produto ou serviço.
Assim, basta que a pessoa retire o bem do mercado de consumo para que seja considerada
consumidora, sem que se perquira sobre a finalidade que dará a esse bem60. Seriam
considerados consumidores, portanto, para esta teoria, aqueles que adquirissem um bem para
aliená-lo no mesmo estado (atividade típica do comerciante), para transformá-lo e incorporálo em outro bem, recolocando-o, posteriormente, ao mercado (como, por exemplo, atividades
industriais), para usá-lo instrumentalmente em uma atividade-fim (é o caso de computadores
em uma lan-house) e aquele que utiliza, como destinatário final, o produto ou serviço61.
Em síntese, para os maximalistas, seria consumidor o adquirente ou o usuário que
retira o bem de circulação, independentemente da finalidade que vai atribuir-lhe, mesmo que
o praticante seja uma empresa que venha a utilizar o produto como insumo de sua produção62.
A corrente finalista, por outro lado, sustenta que o sentido de "destinatário final" deve
manter-se restrito ao consumidor literalmente descrito no artigo 2º do CDC, a fim de que não
se banalize a tutela proposta pelo código, que existe justamente para proteger uma minoria
vulnerável e hipossuficiente. Destarte, vale-se de conceitos da teoria econômica, segundo a
qual as atividades econômicas compreendem produção, circulação, distribuição e consumo,
para delimitar e esclarecer a definição de consumidor, considerando-o, portanto, apenas o
destinatário final, que adquire o produto ou serviço para uso estritamente próprio ou de sua
família.
Na concepção finalista, portanto, não basta que o consumidor adquira, por destinação
fática, o produto ou serviço, sendo necessário, ademais, que ele se configure como
destinatário final econômico do bem.
Ser destinatário final econômico do bem significa não usá-lo para atividades
profissionais que gerem novos benefícios econômicos, mas sim para satisfação
particular, pessoal ou familiar; isso significa que a expressão "destinatário final"
deve ser entendida não em seu sentido literal, mas sim em seu sentido teleológico
63
.
60
61
62
63
BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão contratual no código civil e no código de defesa do
consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 104-105.
PASQUALOTTO, 2005, p. 134.
Ibid., p. 135.
BARLETTA, 2002, p. 104.
16
No mesmo sentido, a opinião de Cláudia Lima Marques, adepta da corrente finalista:
não basta ser destinatário final fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção,
levá-lo para o escritório ou residência, é necessário ser o destinatário final e
econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso
profissional, pois bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço
será no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso não haveria a exigida
"destinação final" do produto ou do serviço64.
Com relação á possibilidade de a pessoa jurídica ser considerada destinatária final na
concepção finalista, elucida José Geraldo Brito Filomeno:
[...] prevaleceu, entretanto, a inclusão das pessoas jurídicas como "consumidores"
de produtos e serviços, embora com ressalva de que assim são entendidas aquelas
como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como
insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa 65.
Uma interpretação sistemática da questão leva à conclusão de que este pensamento é
correto, pois o espírito do Código de Defesa do Consumidor é privilegiar a parte fraca da
relação contratual de consumo, concedendo-lhe tratamento diferenciado66. Concorda-se,
assim, com Maria Antonieta Zanardo Donato:
[...] conquanto o conceito de consumidor disposto no art. 2º do CDC possa ser
interpretado de forma ampla, como pretendem os maximalistas, entendemos que
não seria esta a interpretação apta a coadunar-se com a sistemática adotada pela lei,
vez que abrangeria, indistintamente, todas as pessoas jurídicas, mesmo aquelas que
não se apresentassem vulneráveis e, simultaneamente, conferiria tutela a situações
que, por sua própria natureza, já estariam sendo tuteláveis pelo Direito Comercial.
67
A jurisprudência, por algum tempo, refletiu a polêmica, posicionando-se ora pela
teoria maximalista, ora pela finalista.
As decisões do Rio Grande do Sul demonstravam uma tendência maximalista,
admitindo, majoritariamente, um conceito amplo de consumidor. Nesse sentido, a
jurisprudência que admitiu a Incidência do Código de Defesa do Consumidor a contratos
como o entabulado entre as partes (compra e venda com reserva de domínio), mesmo que a
consumidora (pessoa física ou jurídica) utilize o bem em sua atividade comercial.68
Em orientação oposta pareciam estar os tribunais do resto do país, que demonstravam
concordar com a teoria finalista.
Nesse sentido, o julgado de São Paulo:
PROVA - Ônus - Inversão - Monitória - Inadmissibilidade - Co-embargante que é
indústria e utiliza os serviços bancários como instrumento e fomento no exercício da
sua atividade empresarial - Código de Defesa do Consumidor - Não incidência Adoção da Teoria Finalista, cuja aplicação é abrandada apenas diante da
64
65
66
67
68
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 100.
FILOMENO, José Geraldo Brito. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993, p. 27.
BARLETTA, 2002, p. 106.
DONATO, Maria Antonieta Zanardo. Proteção ao consumidor: conceito e extensão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1994, p. 107.
Agravo de Instrumento Nº 70018698092, Décima Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Sejalmo Sebastião de Paula Nery, Julgado em 22/02/2007.
17
comprovação da vulnerabilidade da pessoa jurídica - Embargante que é sociedade
empresária, conta com préstimos de profissional da contabilidade, não se revelando
hipossuficiente - Impossibilidade quando a inversão se opera no intuito apenas de
transferir o custo da prova - Precedentes do Superior Tribunal de Justiça - Decisão
mantida - Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 7.072.838-0 - São Paulo
- 12ª Câmara de Direito Privado - Relator: Amado de Faria - 13.09.06 - V.U. - Voto
n. 5.393)
O tema mereceu igual tratamento no tribunal do Rio de Janeiro:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CDC.
FORO DE DOMICÍLIO DO AUTOR. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DA
TEORIA FINALISTA. NÃO SENDO O EXCEPTO DESTINATÁRIO FINAL DO
PRODUTO OU SERVIÇO, NÃO E COMPETENTE O JUÍZO DO FORO DO SEU
DOMICILIO, DEVENDO INCIDIR A REGRA GERAL PROCESSUAL QUE
FIXA A COMPETÊNCIA DO JUIZO DO FORO DO DOMICILIO DO RÉU, QUE
SENDO PESSOA JURÍDICA, CORRESPONDE AO DA SEDE DA EMPRESA.
DESPROVIMENTO DO RECURSO. (agravo de instrumento n. 2005.002.18651 Rio de Janeiro - DECIMA CAMARA CÍVEL - DES. SYLVIO CAPANEMA Julgamento: 11/10/2005)
A jurisprudência de Minas Gerais também apresentava uma interpretação no sentido
econômico de consumidor, exemplo é o julgado que decidiu que a pessoa física que adquire
veículo para desenvolver sua atividade profissional com objetivo de lucro não pode ser
enquadrada no conceito de destinatário final.69
O Supremo Tribunal Federal demonstrou tendência finalista no julgado sintetizado por
Adalberto Pasqualotto:
A empresa brasileira "T", fabricante de toalhas e produtos afins, foi vencida pela
exportadora irlandesa de algodão, "A", em demanda contratual decidida por
arbitragem no exterior. A vencedora ingressou no STF com pedido de homologação
de sentença estrangeira, que foi contestado pela vencida. Um dos argumentos
principais da empresa brasileira era que a arbitragem fora convencionada em
contrato de adesão, sem a cautela de redação da cláusula compromissória em
negrito. O STF decidiu que o contrato não era de adesão e que “o laudo exarado [na
decisão arbitral] nada tem a ver com o Código Nacional de Defesa do Consumidor,
para escusar-se a devedora da obrigação assumida, por não se aplicar à empresa
importadora de produto destinado a consumidor final, conforme prevê o art. 2º, que
define o consumidor como toda "pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final” (grifo do acórdão). Induvidosamente, a
corte suprema interpretou o conceito de consumidor em sentido econômico, segundo
a teoria finalista, afastando a hipótese de que um insumo caracterize objeto de
relação de consumo.70
O STJ, que adotava, até recentemente, os argumentos mais moderados da teoria
maximalista, segue, atualmente, uma posição mais coerente com a teoria finalista e harmônica
com o STF, como ilustra o precedente que segue:
69
70
AÇÃO REVISIONAL - CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO - PESSOA FÍSICA QUE ADQUIRE
VEÍCULO PARA O DESENVOLVIMENTO DE SUA ATIVIDADE ECONÔMICA - NÃOENQUADRAMENTO NO CONCEITO DE DESTINATÁRIO FINAL - INAPLICABILIDADE DO
CODECON - COMISSÃO DE PERMANÊNCIA - TAXA DE MERCADO - VEDAÇÃO - MULTA
CONTRATUAL - INTELIGÊNCIA DO ART. 413 DO CÓDIGO CIVIL - HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS FIXADOS EM SALÁRIOS MÍNIMOS - SÚMULA 201 DO STJ. (Ação Revisional n.
2.0000.00.447921-2/000(1), Data do acordão: 21/09/2004, Data da publicação: 23/10/2004, Relator:
TARCISIO MARTINS COSTA).
PASQUALOTTO, 2005, p. 141-142.
18
COMPETÊNCIA.
RELAÇÃO
DE
CONSUMO.
UTILIZAÇÃO
DE
EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA
ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL
INEXISTENTE.
- A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com
o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa
como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária.
Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da
Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos
praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas
Cíveis da Comarca. (Recurso Especial n.541867, Segunda Seção, Min. Antônio de
Pádua Ribeiro, Data do Julgamento 10/11/2004, Data da Publicação/Fonte DJ
16.05.2005 p. 227, RDR vol. 31 p. 349, RSTJ vol. 200 p. 260).
Contudo, como assevera Adalberto Pasqualotto71, a discussão entre finalistas e
maximalistas parece ter encontrado um fim com a definição de empresário, no artigo 966 do
Código Civil de 2002. A lei assim dispõe: “Art. 966: Considera-se empresário quem exerce
profissionalmente atividade organizada para a produção ou circulação de bens ou de
serviços”.
Desta forma, o Código Civil considera atividades próprias do fornecedor a
transformação, a produção, a distribuição e a comercialização de bens e de produtos, conceito
que converge com o pensamento finalista, bem como com a teoria econômica de destinatário
final.
Nas palavras do autor:
O conceito é harmônico com o CDC, que define fornecedor no caput do art. 3º como
quem desenvolve “atividades de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de
produtos” ou presta serviços. É interessante notar que a celeuma entre maximalismo
e finalismo parece ter ignorado esse texto, que é expresso em considerar a
transformação como atividade própria de fornecedor, além de consignar todas as
etapas do processo econômico, antecedentes ao consumo: produção, distribuição e
comercialização, além de algumas derivações (montagem, criação e construção,
equivalentes à produção; importação e exportação), correspectivas da
comercialização72.
O Código Civil de 2002 também traz outra contribuição importante na delimitação do
conceito de consumidor no parágrafo único do já citado artigo 966:
Parágrafo único: Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de
natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou
colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da empresa.
O caput do artigo 966 do Código civil determina sua aplicação ao empresário contigo
na regra geral, incluindo-se, por conseguinte, a lei especial aos excluídos dessa categoria, que
vêm conceituados no parágrafo único do dispositivo legal. Assim, os que exercem profissão
intelectual, de natureza científica, literária ou artística, embora possuam atividade de natureza
econômica, serão regulados pelo Código de Defesa do Consumidor, desde que não estejam
organizados empresarialmente73.
71
Ibid., p. 146.
PASQUALOTTO, 2005, p. 146.
73
Será o caso de profissionais liberais que trabalhem por conta própria, como pesquisadores, escritores e artistas
(PASQUALOTTO, 2005, p. 147).
72
19
Parece restar dirimida, com isso, a questão sobre os campos de aplicação do Código de
Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002, regulando, este, as relações entre civis e as
relações entre empresários, e, aquele, as relações entre consumidores e fornecedores.
2.3 PRINCIPIOLOGIA
No capítulo anterior, destacamos a relevância dos princípios na concretização de uma
aplicação justa do direito, por representarem, na ordem jurídica contemporânea, a base
axiológica de qualquer interpretação, formando o “coração da noção de sistema normativo
aberto e dinâmico”74. Ressaltando a importância dos princípios no direito contemporâneo,
Humberto Ávila afirma que "[...] é até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional
vive, hoje, a euforia do que se convencionou chamar de Estado Principiológico".75
Relevante, portanto, analisar os princípios presentes no Código de Defesa do
Consumidor e no Código Civil de 2002, a fim de constatar se existe ou não, no aspecto
principiológico, congruência entre os dois diplomas, fator indispensável para a compreensão
do real espírito normativo destas duas leis, bem como para a busca de uma harmonização de
antinomias através do diálogo entre elas.76
2.3.1 Distinção entre princípios e regras
Nesta primeira parte do estudo sobre a principiologia do Código de Defesa do
Consumidor e do Código Civil, é importante examinarmos a definição de princípio. Para isso
convém, ainda preliminarmente, apresentar as principais distinções entre princípios e regras.
Em substituição à teoria clássica, a nova concepção opera uma discussão entre regras e
princípios como duas espécies de normas jurídicas. A literatura sobre o modo de entender a
diferença entre os princípios e as regras jurídicas é extensíssima e demonstra não somente o
caráter problemático, como também a relevância dessa distinção a qual se presta uma atenção
crescente77. A intenção deste estudo não é investigar todas as concepções acerca da distinção
entre princípios e regras, mas trazer ao trabalho as principais contribuições e os critérios
evidenciados pela teoria contemporânea com relação ao tema.
Para Josef Esser, os princípios são normas que estabelecem fundamentos para que
determinado mandamento seja encontrado. Assim, a diferença entre os princípios e as regras
seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria,
portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão78.
Canaris entende que os princípios se diferenciam das regras em razão de seu conteúdo
axiológico e do modo de interação com outras normas: Em primeiro lugar, os princípios, ao
contrário das regras, possuem um conteúdo axiológico explícito, e carecem, por isso, de
regras para sua concretização. Em segundo lugar, com relação ao modo de interação com
outras normas do ordenamento, os princípios, diferentemente das regras, receberiam seu
conteúdo somente por meio de um processo dialético de complementação e limitação79.
Porém, foi através dos estudos de Ronald Dworkin e, posteriormente, Robert Alexy,
que a definição de princípio recebeu decisiva contribuição.
74
JUSEFOVICZ, 2005, p. 306.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 15.
76
No mesmo sentido, Cláudia Lima Marques: “A convergência de campos de aplicação pode levar ao
"conflito", já a convergência de princípios é o caminho para o diálogo de fontes” (PASQUALOTTO, 2005, p.
21).
77
JUSEFOVICZ, 2005, p. 288.
78
ESSER apud ÁVILA, 2004, p. 27.
79
CANARIS, 2002, p. 88-99.
75
20
Para Dworkin, a distinção entre regras e princípios não consiste em uma distinção de
grau, mas em uma diferenciação quanto à estrutura lógica:
La diferencia entre principios jurídicos y normas jurídicas es uma distinción lógica.
Ambos conjuntos de estándares apuntam a decisiones particulares referentes a la
obligación jurídica en determinadas circunstancias, pero diferen en el carácter de la
orientación que dan. Las normas son aplicables a la manera de disyuntivas. Si los
hechos que estipula uma norma están dados, entonces o bien la norma es válida, em
cuyo caso la respuesta que da debe ser aceptada, o bien no lo es, y entonces no
aporta nada a la decisión.80
Assim, o autor sugere que, no caso de colisão de regras, uma delas deve ser
considerada inválida. Já os princípios, em sentido inverso, podem ser conjugados entre si
mantendo sua validade, pois contêm uma característica que falta às normas: a dimensão de
peso ou importância. Deste modo, em caso de colisão, “quien debe resolver el conflicto tiene
que tener en cuenta el peso relativo de cada uno”81.
Robert Alexy propõe uma distinção qualitativa entre regras e princípios, no sentido de
que os princípios são comandos de otimização, ou seja, normas que ordenam que algo seja
realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes.
Assim, nos casos de colisão de princípios, após a ponderação entre eles, deverá prevalecer o
que apresenta, diante do caso concreto, maior peso e relevância, a depender das
circunstâncias. Já no caso de um conflito de regras, a solução se dará através da declaração de
invalidade de uma delas ou abertura de uma exceção que exclua a antinomia. Nas palavras do
autor:
[...] os principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el
hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado y que la medida debida de su
cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las
jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios e
reglas opuestos. Em cambio, las reglas son normas que solo pueden ser cumplidas o
no. Si uma regla es válida, entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más
ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el âmbito de lo
fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas e
principios es cualitativa y no de grado. 82
Sintetizando as principais teorias doutrinárias, Humberto Ávila aponta os quatro
critérios usualmente empregados para a distinção entre princípios e regras83:
O critério do caráter hipotético-condicional se fundamenta no fato de as regras
possuírem uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas
ao modo “se, então”, ao passo que os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado
pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto. Em seguida, o critério
do modo final de aplicação se baseia no fato de as regras serem aplicadas de modo absoluto
(“tudo ou nada”), enquanto os princípios são aplicados de modo gradual. O critério do
relacionamento normativo, por sua vez, se fundamenta no fato de que o conflito entre regras
apenas pode ser resolvido através da declaração de invalidade de uma das regras ou com a
criação de uma exceção, enquanto em casos de colisão de princípios a solução poderá se dar
através da ponderação, pela qual se atribui uma dimensão de peso a cada princípio. E, por fim,
80
DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1997, p. 74-75.
Ibid., p. 77.
82
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1997, p. 86-87.
83
ÁVILA, 2004, p. 30-31.
81
21
o critério do fundamento axiológico considera os princípios, diferentemente das regras, como
fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada.
Essa breve abordagem sobre as principais distinções entre regras e princípios jurídicos
será de fundamental importância para o trabalho, na medida em que o papel dos princípios na
interpretação das leis é cada vez mais relevante, desempenhando uma função constitutiva de
todo o ordenamento jurídico, além de ser necessário, para o alcance de um equilíbrio entre o
Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, uma verdadeira interação entre
as regras e os princípios de ambos os diplomas.
2.3.2 Boa-fé
A expressão "boa-fé" remonta ao Direito Romano, que, a princípio, fazia referência
apenas a fides, posteriormente adquirindo a significação da expressão "bona fides”84. Com o
decorrer dos séculos, a boa-fé renovou-se e difundiu-se, encontrando-se, hoje, impregnada em
todos os aspectos na nossa legislação.
Para Teresa Negreiros,
A fundamentação constitucional do princípio da boa-fé assenta na cláusula geral de
tutela da pessoa humana - em que esta se presume parte integrante de uma
comunidade, e não um ser isolado, cuja vontade em si mesma fosse absolutamente
soberana, embora sujeita a limites externos. Mais especificamente, é possível
reconduzir o princípio da boa-fé ao ditame constitucional que determina como
objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária, na qual
o respeito pelo próximo seja um elemento essencial de toda e qualquer relação
jurídica. Neste sentido, a incidência da boa-fé objetiva sobre a disciplina
obrigacional determina uma valorização da dignidade da pessoa, em substituição à
autonomia do indivíduo, na medida em que se passa a encarar as relações
obrigacionais como um espaço de cooperação e solidariedade entre as partes e,
sobretudo, de desenvolvimento da personalidade humana. 85
Hodiernamente, a doutrina distingue boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva. A boa-fé
subjetiva pode ser entendida como o "estado psíquico de conhecimento ou desconhecimento,
de intenção ou falta de intenção da parte da relação"86, enquanto a boa-fé objetiva impõe um
dever de conduta. Nas palavras de Judith Martins-Costa, boa-fé objetiva significa um
modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual "cada
pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arqétipo, obrando como obraria um
homem reto: com honestidade, lealdade, probidade". Por este modelo objetivo de
conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status
pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do
standard, de tipo meramente subjuntivo 87.
Teresa Negreiros ressalta que a abrangência do princípio da boa-fé objetiva é
contornada mediante uma tripartição das funções, quais sejam: cânon interpretativointegrativo; norma de criação de deveres jurídicos; e norma de limitação ao exercício de
direitos subjetivos. Em comum, estas três funções atribuídas à boa-fé compartilham uma
84
85
86
87
BARLETTA, 2002, p. 116.
NEGREIROS, 2006, p. 118.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor:
estudo comparativo com a responsabilidade contratual no direito comum. Revista de Direito do
Consumidor. v. 18, abr./jun. 1996, p. 25.
MARTINS-COSTA, Judith. Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2000, p. 411.
22
mesma concepção acerca da relação contratual como sendo uma relação de cooperação e de
respeito mútuo, e não de perseguição egoísta da satisfação individual88.
Foi nesse sentido objetivo que a boa-fé, sob a forma de uma cláusula geral, foi
expressamente consagrada no Código de Defesa do Consumidor, como fundamento para a
declaração de nulidade da cláusula contratual que a transgrida:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que [...] IV - estabeleçam obrigações
consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; [...]
Além do mais, o artigo 4º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe
sobre a Política Nacional de Relações de Consumo, estabelece como uma de suas diretrizes o
princípio da boa-fé:
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o
atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e
segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de
vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios:
[...]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e
compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento
econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a
ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; [...].
No novo Código Civil, a boa-fé também está presente, definida não somente como
critério de interpretação da declaração de vontade nos negócios jurídicos (artigo 113) e de
valoração da abusividade no exercício de direitos subjetivos (artigo 187)89, mas, igualmente,
como uma regra de conduta imposta aos contratantes, como expressamente objetiva o artigo
422: "Os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios da probidade e da boa-fé"90.
Pode-se concluir, pois, que as disposições do Código Civil sobre a boa-fé completam
as que constavam no Código de Defesa do Consumidor. Por isso, a cláusula geral da boa-fé
no Código de Defesa do Consumidor e as cláusulas gerais sobre boa-fé no Código Civil
podem ser aplicadas complementarmente91.
Por fim, vale ressaltar que a boa-fé no direito privado brasileiro se coaduna com a
Constituição Federal, que positiva o princípio da solidariedade ao estabelecer, como objetivos
da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Logo, o princípio da
boa-fé deve estar presente em toda relação jurídica, na medida em que significa a honestidade
e a justiça nas condições gerais estabelecidas92.
2.3.3 Equilíbrio econômico
88
89
90
91
92
NEGREIROS, 2006, p. 118-119.
In verbis: Art.113: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração;
Art. 187: Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
NEGREIROS, 2006, p. 128.
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O novo código civil e o código de defesa do consumidor: pontos de
convergência. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, p. 55-68, n. 48, 2004, p. 60-61.
NEGREIROS, op. cit., p. 159.
23
Assim como o princípio da boa-fé, o princípio do equilíbrio econômico também
encontra fundamento na Constituição Federal. A vedação a que as prestações contratuais
apresentem um desequilíbrio real e injustificável entre as vantagens obtidas por um e por
outro dos contratantes, ou seja, a vedação a que se desconsidere o sinalagma contratual em
seu perfil funcional, constitui expressão do princípio da igualdade substancial, consagrado no
artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal, pressuposto da justiça social que proíbe a
utilização do contrato como um meio, sob a capa de um equilíbrio meramente formal, para
que as prestações em favor de um contratante lhe acarretem um lucro exagerado em
detrimento da outra parte93.
Para Teresa Negreiros, em idéia oposta à liberdade consagrada no Código de 1916, o
princípio do equilíbrio econômico representa a intervenção do estado nas relações contratuais,
avaliando seu conteúdo e resultado, mediante a comparação das vantagens e encargos
atribuídos a cada um dos contratantes e expressando a preocupação da teoria contratual
contemporânea com o contratante vulnerável. Nas palavras da autora:
[...] o princípio do equilíbrio do contrato, postulando que os contratantes, mediante o
estabelecimento de prestações recíprocas, se mantenham em um certo nível de
paridade, se configura como uma ponte entre o justo e o jurídico no domínio das
relações contratuais.94
O princípio vem disposto no já citado artigo 4º, inciso III do Código de Defesa do
Consumidor, que o define, juntamente com a boa-fé, como base para a concretização dos
ditames da Constituição Federal sobre a ordem econômica.
Além do mais, dispõe ainda o Código de Defesa do Consumidor, com base na
proteção do sinalagma contratual, sobre a revisão por onerosidade excessiva:
Art. 6º: São direitos básicos do consumidor: [...]
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas.
Ainda, o artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor estabelece que são
nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas,
que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé
ou a eqüidade. Outrossim, presume-se exagerada, nos termos do parágrafo primeiro do artigo
51, incisos II e III do CDC, a vantagem que ameace o equilíbrio contratual, ou que seja
excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do
contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.
O novo Código Civil também apresenta dispositivos que visam ao restabelecimento do
equilíbrio econômico entre as partes contratantes. Os artigos 478 e 479, por exemplo,
permitem a resolução do contrato ou a modificação de seus termos na hipótese de
superveniência de acontecimentos extraordinários que tornem a prestação excessivamente
onerosa para uma das partes em decorrência de vantagem para a outra parte. Além disso, o
código consagra o instituto da lesão como defeito no negócio jurídico no artigo 157, que
dispõe:
Art. 157. Ocorre lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da
prestação oposta.
93
94
NEGREIROS, 2006, p. 157-158.
Ibid., p. 168.
24
§1º. Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo
em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2º. Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente,
ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
2.3.4 Função social do contrato
A função social do contrato surge, na legislação brasileira, como meio para se evitar
que a liberdade contratual prejudique as partes envolvidas. Assim, pode-se dizer que a função
social "relativiza o clássico princípio contratual da relatividade entre os contratantes", uma
vez que vincula a análise do contrato ao contexto social, levando-se em consideração,
sobretudo, sua importância na sociedade. Nas palavras de Teresa Negreiros:
[...] a função social do contrato, quando concebida como um princípio, antes de
qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, significa muito
simplesmente que o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica
que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que
o cercam e que são por ele próprio afetadas.95
A constatação do princípio no Código Civil de 2002 é clara. Dispõe o artigo 421 que
"a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social". A dúvida, no
entanto, pode surgir quando busca-se algum dispositivo que se refira ao princípio no Código
de Defesa do Consumidor. Teria o CDC adotado o princípio da função social do contrato?
A pergunta é esclarecida ao se analisar o princípio básico e definidor do Código de
Defesa do Consumidor, a vulnerabilidade96. Reconhecida no artigo 4º, que dispõe sobre os
"princípios da política nacional das relações de consumo", a vulnerabilidade fornece a razão
de ser do diploma: um código protetivo. Assim, identificando os consumidores como
indivíduos vulneráveis, toda a estrutura do Código de Defesa do Consumidor é estabelecida
no sentido de tutelar, desigualmente, estes "desiguais" - diferentemente do que ocorre com o
Código Civil, que regula as relações entre empresários e entre civis, a partir do pressuposto
de igualdade. Os reflexos da proteção especial destinada ao consumidor em razão de sua
condição vulnerável podem ser percebidos, por exemplo, no artigo 6º, que estipula os
direitos básicos do consumidor. Nesse sentido, a possibilidade de inversão do ônus da prova
no processo civil, prevista no inciso VII do referido artigo. José Reinaldo de Lima Lopes
dispõe sobre a importância do princípio:
[...] É um princípio de caráter estritamente normativo. Ele pode ser considerado
um princípio geral de interpretação, mais do que uma presunção, uma definição
construtiva do consumidor: o consumidor é, por definição, vulnerável e, por isso,
todas as políticas (as ações concretas, os planos, a legislação e a adjudicação dos
conflitos de consumo) devem presumir (postular) esta vulnerabilidade. 97
Assim, se o Código de Defesa do Consumidor não dispõe explicitamente, em seu
texto, sobre a função social do contrato, pode-se entender, a partir da análise da estrutura do
diploma, que, materialmente, a lei 8078/90 traz ínsita a idéia do princípio. Verifica-se, com
isso, mais uma convergência principiológica entre os diplomas.
95
NEGREIROS, 2006, p. 208.
Cláudia Lima Marques salienta que a vulnerabilidade do consumidor pode ser técnica, fática (ou sócioeconômica) ou jurídica, ressaltando as diversas formas como podem se manifestar as desproporções entre as
partes de uma relação de consumo (MARQUES, 2006, p. 147-149).
97
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito Civil e Direito do Consumidor: Princípios. In: PFEFFEIR, Roberto
A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Coords.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002:
convergências e assimetrias. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2005, p. 100.
96
25
Pode-se concluir, a partir do exame elaborado, que o Código Civil de 2002 não apenas
não revogou a principiologia do diploma consumerista, como reafirmou os valores ali
contidos. Dessa forma, ambos os códigos trazem, em seu corpo, princípios como a boa-fé
objetiva, o equilíbrio econômico e a função social do contrato. É, indubitavelmente, um ponto
de grande relevância na possibilidade de harmonização dessas leis.
2.4 A NÃO REVOGAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR PELO
CÓDIGO CIVIL DE 2002
O parágrafo segundo do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe que a
lei nova que estabeleça disposições gerais “a par das já existentes”, como o Código Civil de
2002, “não revoga nem modifica a lei anterior”, no caso, o Código de Defesa do Consumidor.
O parágrafo primeiro do artigo 2º da LICC estabelece, por sua vez, que a lei posterior
revogará a anterior quando: expressamente o declare; regule inteiramente a matéria de que
tratava a anterior; ou seja com ela incompatível.
Vale lembrar que o artigo 2045 do Código Civil, que revogou expressamente o Código
civil de 1916 e parte do Código Comercial de 1850, foi silente com relação ao Código de
Defesa do Consumidor. Dispôs assim a lei: “Art. 2045: Revogam-se a Lei 3071, de 1.º de
janeiro de 1916 - Código Civil e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei 556, de 25 de
junho de 1850.”
O artigo 2043, sobre o mesmo assunto, ao preservar apenas as normas penais,
administrativas e processuais, indica a existência de uma revogação tácita das leis especiais
incorporadas expressamente no texto do Código Civil de 2002:98
Art. 2043. Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as
disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constantes de leis
cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este código.
Considerando que o Código Civil de 2002 nada menciona sobre "consumidores", em
nenhum artigo de seu diploma, conclui-se que o tema da proteção aos consumidores não foi
incorporado ao novo código. Assim, também o artigo 2043 do Código Civil não pode ser
aplicado ao Código de Defesa do Consumidor.
Ademais, do estudado neste capítulo, pode-se deduzir que, com campos de aplicação
distintos e diferença com relação às matérias tuteladas, o Código Civil de 2002 não regulou
inteiramente a matéria de que trata o Código de Defesa do Consumidor. Por fim, da análise
ora elaborada, constata-se a convergência de princípios entre os dois diplomas, o que resulta
na inexistência de incompatibilidade. Conclui-se, com isso, que o Código de Defesa do
Consumidor não pode ser enquadrado em nenhum dos itens previstos no parágrafo primeiro
do artigo 2º da LICC, não ocorrendo, portanto, sua revogação pelo novel diploma.
3 ANTINOMIAS JURÍDICAS
3.1 CONCEITO
Questão particularmente relevante na coexistência entre o Código Civil de 2002 e o
Código de Defesa do Consumidor se firmou no plano das antinomias jurídicas, já que, após a
entrada em vigor do novo diploma, em 1º de janeiro de 2003, estabeleceu-se uma
concorrência de normas incidentes sobre algumas relações jurídicas obrigacionais, uma vez
98
MARQUES, 2005, p. 26.
26
que o Código de Defesa do Consumidor, em vigência desde 13 de março de 1991, trata, em
alguns dispositivos, sobre relações de consumo. Em razão de ambas as leis serem ordinárias,
colocou-se a questão de qual seria o critério adequado para a superação de eventuais conflitos
surgidos entre os dois diplomas.
Primeiramente, imperioso conceituar o tema. De acordo com Tércio Sampaio Ferraz
Júnior, antinomia jurídica é aquela
posição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente),
emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam
o sujeito em posição insustentável pela ausência de inconsistência de critérios aptos
a permitirem-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento jurídico dado99.
Norberto Bobbio, por sua vez, concebe antinomia jurídica como a situação que se
verifica entre duas normas incompatíveis, desde que presentes os requisitos de pertencerem ao
mesmo ordenamento e possuírem o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e
material)100.
Situando-nos em uma breve abordagem da evolução histórica dos conflitos
normativos, tem-se que as antinomias se tornaram um problema teórico-jurídico apenas no
século XIX, com o advento do positivismo e da conseqüente concepção do direito como
sistema, que propiciaram o surgimento de condições imprescindíveis para os problemas da
coerência lógica do sistema jurídico e da existência de conflitos de normas, como explica
Maria Helena Diniz:
O vocábulo antinomia surgiu na Antigüidade nas lições de Plutarco e Quintiliano,
este último chegou até a escrever que numquam lex legi contraria iure sed eae casu
colliduntur atque eventu, mas só atingiu certa relevância jurídica no século XVII,
com Goclenius, que, em sua obra Lex philosophicum quotanquan clave philosophiae
fores aperiuntur, de 1613, distinguiu a antinomia em sentido amplo, que ocorria
entre as sentenças e proposições, e a em sentido estrito, existente entre leis
pugnantia legum inter se. Esta acepção estrita foi adotada anos depois, em 1660, por
Eckolt, no seu livro De antinomiis. [...] Zedler, em 1732, na sua obra Grosses
vollstaendiges Universallex, conceituou antinomia como o conflito que ocorre
quando duas leis se opõem ou se contradizem. No seu livro Philosophia generalis,
publicado em 1770, Baumgarten fez menção à antinomia entre direito natural e
direito civil. Entretanto, o problema do conflito normativo, tal como aparece na
atualidade, surgiu na época da Revolução Francesa, que propiciou a consolidação de
certas condições políticas, como soberania nacional e separação de poderes, e
jurídicas, como a preponderância da lei enquanto fonte do direito, o controle da
legalidade das decisões judiciárias e, principalmente, a concepção do direito como
sistema, imprescindíveis para a tomada do contato com essa problemática em termos
de profundidade101.
As antinomias representam uma manifestação da problemática do dever de coerência
do ordenamento jurídico - conjunto ou complexo de normas -, que o faz excluir qualquer
inconsistência normativa. Para Bobbio, a coerência não é condição de validade, mas é sempre
condição para a justiça do ordenamento:
[...] É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode
haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio
daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamentais
em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência
da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça
99
FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 211.
BOBBIO, 1999, p. 87-88.
101
DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 2.
100
27
(que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas,
ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue
garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de
prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça,
entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria102.
3.2 CLASSIFICAÇÃO
Aprofundando a conceituação, cabe agora classificar as antinomias103.
No que diz respeito ao âmbito dos conflitos, há antinomias de direito interno, quando
ocorrerem entre normas dentro de um ramo do direito ou entre normas de diferentes ramos
jurídicos, antinomias de direito internacional, quando se derem entre normas de direito
internacional público, e antinomias de direito interno-internacional, quando surgirem conflitos
entre norma de direito interno e norma de direito internacional público.
Com relação à extensão da contradição, as antinomias podem se dividir em total-total,
total-parcial e parcial-parcial. Ocorrem antinomias totais-totais quando uma das normas não
puder ser aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra. É o caso, por
exemplo, de normas que prescrevem uma proibição e uma permissão à mesma ação. As
antinomias totais-parciais se referem àqueles casos em que uma das normas não pode ser
aplicada, em nenhuma circunstância, sem conflitar com a outra, enquanto esta tem um campo
de aplicação que conflita com a anterior apenas em parte, subsistindo, assim, a antinomia
apenas para a parte em comum. A antinomia, neste caso, é total por parte de uma norma e
parcial por parte da outra. As antinomias parciais-parciais, por fim, são aquelas em que duas
normas têm um campo de aplicação que apenas em parte conflita um com o outro.
Quanto ao conteúdo, as antinomias podem ser próprias ou impróprias. Antinomias
impróprias são aquelas que acontecem em virtude do conteúdo material das normas,
caracterizando um conflito entre o comando estabelecido e a consciência do legislador, não
impedindo que o sujeito aja conforme as normas. Podem, estas, apresentar-se como
antinomias principiológicas, antinomias avaliativas e antinomias teleológicas. As antinomias
principiológicas ocorrem no caso de desarmonia em uma ordem jurídica decorrente de
valores entre os quais se pode estabelecer um conflito, como, por exemplo, quando as normas
de um ordenamento preguem idéias fundamentais antinômicas, como liberdade e segurança,
no sentido de que a garantia da liberdade causa dano, comumente, à segurança, e a garantia da
segurança tende a restringir a liberdade. As antinomias valorativas são aquelas em que o
legislador põe-se em conflito com suas próprias valorações já estabelecidas, como, por
exemplo, prescrever uma pena mais leve para um delito mais grave. Finalmente, as
antinomias teleológicas surgem no caso de incompatibilidade entre os fins propostos por uma
certa norma e os meios previstos por outra para a consecução daqueles fins.
Denominam-se antinomias próprias aquelas que decorrem de razões formais. Surgem,
por exemplo, quando uma conduta aparece, ao mesmo tempo, prescrita e não prescrita,
proibida e permitida ou prescrita e proibida, ficando o sujeito em uma situação insustentável,
devendo optar por uma das duas normas em desobediência à outra, o que o leva a recorrer a
critérios para sair dessa situação. Urge consignar, no entanto, que tais critérios não são
suficientes para dirimir todo e qualquer conflito normativo, e daqui deriva a necessidade de
apresentar nova distinção doutrinária.
Dentre as antinomias próprias, há casos nos quais faltam critérios para sua solução ou
existe conflito entre os próprios critérios, em razão da possibilidade de utilização de duas ou
mais regras ao mesmo tempo. Essas antinomias insolúveis denominam-se antinomias reais.
102
103
BOBBIO, 1999, p. 113.
De acordo com FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Antinomia. In: FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.).
Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 14-18.
28
Ás demais antinomias, visto seu caráter solúvel, se destinam os critérios tradicionais de
superação, e estas classificam-se como antinomias aparentes.
3.3 CRITÉRIOS TRADICIONAIS DE SUPERAÇÃO DE ANTINOMIAS
Conforme estudado, a ciência jurídica, procurando entender o ordenamento como um
todo funcional, deve evitar qualquer contradição, partindo do pressuposto de que, através da
interpretação, todos os conflitos normativos podem e precisam ser superados. Para isso, a
doutrina aponta critérios tradicionais de soluções antinômicas no direito interno, que se
originaram na jurisprudência, através do reiterado exercício de exegese, quais sejam, o
hierárquico, o cronológico e o de especialidade.
O critério hierárquico, regido pela máxima lex superior derogat legi inferiori, se
baseia na superioridade de uma fonte de produção sobre a outra para dar prevalência, quando
em um conflito entre normas de diferentes níveis, às normas de escalonamento superior em
detrimento das normas inferiores, independentemente da ordem cronológica104.
O critério cronológico, por sua vez, ilustrado no axioma lex posterior derogat priori, é
aquele com base no qual a lei posterior revoga a anterior no que for incompatível com esta,
desde que ambas as normas sejam do mesmo nível ou escalão105, não obstante a Constituição
Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, e a Lei de introdução ao Código Civil, em seu artigo
6º, parágrafos 1º, 2º e 3º, protejam as situações jurídicas que se regeram pela lei anterior
quando da sua vigência, prescrevendo que a norma em vigor tem efeito imediato e geral,
respeitando sempre o ato jurídico perfeito106, o direito adquirido107 e a coisa julgada108.
No direito brasileiro, o princípio da lex posterior é expressamente disposto no já citado
artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, textualmente:
Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue.
§ 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que trata a lei
anterior.
Finalmente, o critério de especialidade, lex specialis derogat legi generali, determina
a prevalência da norma especial em detrimento da geral. Para Norberto Bobbio, este critério
se justifica em razão do pressuposto de tratamento diferenciado aos desiguais, visto que o
legislador, ao tratar especificamente de determinado tema o faz, presumidamente, com maior
precisão. Reflete-se, assim, a regra suum cuique tribuere - dar a cada um o que é seu -,
representando uma evolução no caminho da justiça e igualdade109. No âmbito da legislação
brasileira, o critério em tela pode ser encontrado expresso no artigo 2º, parágrafo segundo da
Lei de Introdução ao Código Civil.110
3.3.1 Insuficiência de critérios
104
DINIZ, 1998, p. 34.
Ibid., p. 35.
106
Aquele já consumado e apto a produzir seus efeitos.
107
Aquele já incorporado definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular.
108
Qualidade dos efeitos do julgamento.
109
BOBBIO, 1999, p. 96.
110
Ex vi: Art. 2º - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou
revogue.
§ 2º - A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem
modifica a lei anterior.
105
29
Os critérios tradicionais para a solução de antinomias mostram-se insuficientes, no
entanto, em duas situações: Quando a antinomia se dá entre duas normas contemporâneas, de
mesmo nível e ambas gerais, não vislumbrando-se possível, nestes casos, a aplicação de
nenhuma das regras pensadas para a solução dos conflitos, e quando se pode aplicar, ao
mesmo tempo, dois ou mais critérios para solver a antinomia.
No primeiro caso, conforme Norberto Bobbio, tem-se que a solução do conflito é
confiada à liberdade do intérprete, que o resolverá de acordo com sua discricionariedade e
oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas. Disso
resulta a eliminação de uma das normas (ab-rogação simples), a eliminação de ambas (abrogação dupla) ou a conservação das duas. A terceira solução, possível através da
demonstração de que a incompatibilidade é puramente aparente, derivada de uma
interpretação ruim, unilateral, incompleta ou errada da lei, é a mais freqüentemente utilizada
pelo intérprete. Assim, assinala o autor, a tendência comum não é mais a eliminação de
normas incompatíveis, mas a eliminação da incompatibilidade entre elas111.
O segundo caso de insuficiência de critérios, em que duas normas se encontram em
uma relação passível da aplicação concomitante de dois critérios, um com solução oposta à
aplicação do outro, é denominado antinomia de segundo grau. Em tais situações, a doutrina
estabelece uma hierarquia entre os critérios para a resolução da antinomia. Desse modo, temos
que112:
Em situações de conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, em que há
uma norma inferior-geral e outra inferior-especial, a doutrina não aponta uma resposta
consolidada, preferindo-se um critério a outro, sem contrariar a adaptabilidade do direito113. A
solução dependerá, nestes casos, da interpretação do intérprete, aplicando-se, por vezes, o
critério de hierarquia, por outras, o critério de especialidade, conforme as circunstâncias.
Nos conflitos entre os critérios hierárquico e cronológico, que ocorrem quando uma
norma anterior-superior conflita com outra posterior-inferior, deverá prevalecer o critério
hierárquico. O princípio lex posterior inferiori non derogat priori superiori é indúbito, pois o
critério hierárquico é mais forte, em razão de a competência se apresentar mais sólida do que
a sucessão no tempo, bem como pelo fato de a aplicação do critério cronológico sofrer uma
limitação por não ser absoluta, já que sua validade se restringe a normas do mesmo nível.
Por fim, em casos de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, que
tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posteriorgeral, a doutrina, em geral, assenta que se deve valer o célebre brocado latino lex posterior
generalis non derogat priori speciali, prevalecendo o critério de especialidade ao
cronológico.114
Aqui se enquadram as antinomias ocorridas entre o Código de Defesa do Consumidor
e o Código Civil de 2002, pois, tendo em vista serem ambas consideradas leis ordinárias, por
eregirem da mesma fonte, a Constituição Federal, são dirimidas pelos critérios de
especialidade e cronológico. Não obstante ainda haja, na doutrina, correntes que adotam o
princípio que sobrepõe o critério de especialidade ao cronológico, atenta-se que essa solução
seria paradoxal nos casos em que o Código Civil pudesse ser mais favorável à proteção do
consumidor, situação que de fato ocorre por diversas vezes. O desafio dos doutrinadores
atualizados e preocupados com a efetividade social das normas, então, tem sido encontrar uma
hermenêutica integradora, que leve essas duas fontes legislativas a dialogarem
produtivamente entre si.
111
BOBBIO, op. cit., p. 97-105.
De acordo com a classificação de BOBBIO, 1999, p. 105-110.
113
DINIZ, 1998, p. 50.
114
Nesse sentido, Norberto Bobbio assevera: "O conflito entre critério de
critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro" (BOBBIO, 1999, p. 108).
112
especialidade
e
30
4 HARMONIZAÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 ATRAVÉS DO DIÁLOGO DAS
FONTES
4.1 O DIÁLOGO DAS FONTES
O direito pós-moderno, de caráter sistemático aberto e dinâmico, busca, na conjugação
interativa do ordenamento, alcançar uma interpretação mais eficiente e justa do sistema
jurídico.
A pluralidade de leis, característica do direito contemporâneo, termina, por vezes, a
acarretar antinomias, em razão da atuação intertemporal entre seus campos de aplicação,
como vimos no capítulo anterior. Nesta linha, o Código de Defesa do Consumidor de 1990,
lei anterior, e o novo Código Civil brasileiro de 2002, lei posterior, estariam em "conflito", daí
a necessária solução das eventuais antinomias que possam surgir entre os dois diplomas.
Contudo, os critérios para resolver tais conflitos seriam apenas aqueles três citados:
anterioridade, especialidade e hierarquia. A utilização destes critérios, no entanto, exige, por
regra, a retirada de uma das normas do ordenamento, através da prevalência de uma lei sobre
a outra. Esta "monossolução autofágica" do sistema, resultante da exclusão mecânica de
alguma das normas conflitantes, não encontra espaço no direito privado contemporâneo, que,
concebendo o ordenamento como um sistema aberto e carente de interação a fim de ampliar a
praticabilidade de seu caráter social e garantir justiça para os mais vulneráveis nos tribunais
brasileiros, debruça-se na tarefa de elaboração de novos modelos hermenêuticos.
De acordo com Erik Jayme, nos tempos pós-modernos, caracterizados pela pluralidade
e complexidade, a distinção impositiva dos direitos humanos e do droit à la differénce (direito
a ser diferente e ser tratado diferentemente, sem necessidade mais de ser "igual" aos outros)
não mais permitem este tipo de clareza ou de "monossolução". A solução sistemática pósmoderna deve ser mais fluída, mais flexível, a permitir maior mobilidade e fineza de
distinções. 115
Nestes tempos, a superação de paradigmas é substituída pela convivência de
paradigmas, havendo, por fim a convivência de leis com campos de aplicação por
vezes convergentes e, em geral, diferentes, em um mesmo sistema jurídico, que
parece ser agora um sistema (para sempre) plural, fluído, mutável e complexo. Não
deixa de ser um paradoxo que o "sistema", o todo construído, seja agora plural
[...]116
Surge, então, como proposta de um processo alternativo para a superação de
antinomias, o "diálogo das fontes" ("dialogue de sources"), que visa, por meio da
coordenação e da comunicação harmônica das fontes do sistema jurídico, a “uma solução
flexível e aberta de interpenetração ou mesmo a solução mais favorável aos mais fracos da
relação”117. A intenção é priorizar-se não uma solução baseada em critérios predeterminados,
mas sempre a justiça no caso concreto. Dessa forma, possibilita-se o diálogo normativo com o
finco de conceder uma eficiência funcional ao sistema, de modo a extrair a essência
axiológica de cada norma em conflito, para se chegar a uma maior efetividade social.
Assim, o diálogo das fontes sugere, em caso de antinomias entre o Código de Defesa
do Consumidor e o Código Civil de 2002, a comunicação entre os diplomas legislativos na
115
JAYME apud MARQUES, 2005, p. 14.
MARQUES, 2005, p. 14-15.
117
Ibid., p. 17.
116
31
busca da prevalência da norma mais favorável ao consumidor, parte mais fraca de uma
relação de contrato de consumo em razão de sua vulnerabilidade, em lugar do produto da
aplicação monóloga dos critérios tradicionais de superação, que, por vezes, poderia ser
injusto.
A idéia, que representa um novo paradigma doutrinário, atual e necessário, encontra
sua origem e fundamento na própria codificação tutelar dos consumidores no Brasil, na
medida em que a Constituição Federal de 1988, identificando-os como vulneráveis e
especiais, concede-lhes status máximo de direito fundamental expressamente disposto no
artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, in verbis: “O Estado promoverá, na forma
da lei, a defesa do consumidor”. Além do mais, o artigo 1º da lei 8078/90 prescreve
claramente que as regras ali dispostas são de ordem publica118. Nestas condições, a proteção
do consumidor está amparada pelo princípio da proibição do retrocesso dos direitos e
garantias individuais, não podendo sequer ser objeto de deliberação de emenda tendente a
aboli-lo, de acordo com o artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF/88.
Outrossim, desde seu preâmbulo até os ditames da ordem econômica (artigo 170 e
seguintes), a nossa Carta Magna prevê a articulação da livre iniciativa com a justiça social,
impondo uma nova ordem constitucional no Mercado, limitada pelos direitos do consumidor
(artigo 170, V). Tanto assim que, em seu artigo 1º, ao declarar que a República Federativa do
Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, coloca entre os fundamentos deste, no
inciso IV, os valores sociais da livre iniciativa.
Por fim, vale lembrar que a organização de um código protetivo dos consumidores,
para legislar sobre seus direitos, foi expressamente ordenada pelo artigo 48 das Disposições
Transitórias da Constituição Federal, que dispôs: “O Congresso Nacional, dentro de cento e
vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
Cabe ressaltar que os princípios constitucionais constituem normas de aplicação direta
e imediata, que devem servir de base para a interpretação e aplicação de todas as demais. Com
efeito, a Constituição define a tábua axiológica que condiciona a interpretação de cada um dos
setores do direito civil119. Neste diapasão, sob a ótica do diálogo entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002 em eventual conflito, objetivando-se conceder mais
eficácia à proteção constitucionalmente prevista ao consumidor, tem-se que, nos casos em que
o Código Civil de 2002 for mais favorável ao consumidor do que seu próprio diploma
protetivo, não se aplica o critério de especialidade em detrimento do critério de anterioridade.
A doutrina moderna já adotava com cautela o princípio lex posterior generalis non
derogar priori speciali, conferindo-lhe parcial inefetividade por ser menos seguro que os demais.
Para Maria Helena Diniz, a preferência entre um critério e outro não é evidente, devendo haver,
conforme o caso concreto, a supremacia ora de um, ora de outro120. Até mesmo Bobbio,
surpreendentemente, assevera que para fazer afirmações mais precisas nesse campo é necessário
dispor de uma ampla casuística121. Ademais, é preciso não olvidar que, havendo antinomia,
independentemente da espécie, acima de qualquer critério preestabelecido, “o valor justum deverá
lograr entre as normas incompatíveis, devendo-se seguir sempre a mais justa ou a mais favorável
à parte mais fraca, procurando salvaguardar a ordem pública ou social”122.
Além disso, da análise do texto do próprio artigo 7º do Código de Defesa do
Consumidor, depreende-se que o diploma não tem pretensão de exaurir a matéria, prevendo a
118
119
120
121
122
Dispõe o artigo: “O presente Código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem
pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art.
48 de suas Disposições Transitórias.”
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 221.
DINIZ, 1998, p. 97-105.
BOBBIO, 1999, p. 108.
DINIZ, op. cit., p. 40.
32
possibilidade de os direitos do consumidor estarem regulados em outras leis. O dispositivo, que
representa uma cláusula de abertura e uma interface com o sistema maior, dispõe que os direitos
previstos no diploma não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais
de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas
autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do
direito, analogia, costumes e equidade. Assim a teoria do diálogo das fontes se enquadra
também aos critérios interpretativos indicados pela doutrina como parâmetros para se alcançar
uma hermenêutica coerente, fundada na razão social da lei e que vise à justiça, pois vai ao
encontro da racio legis do Código de Defesa do Consumidor, uma lei protetiva que intenciona
tutelar os indivíduos presumivelmente vulneráveis.
Nesse sentido, dispõem Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e
Bruno Miragem:
O CDC é um sistema permeável, não exaustivo, daí determinar o art.7º que se
utilize a norma mais favorável ao consumidor, encontra-se ela no CDC ou em outra
lei geral, lei especial ou tratado do sistema de direito brasileiro. Esta abertura é
tanta que o art. 7º do CDC permite a utilização da eqüidade para preencher lacunas
em favor dos consumidores. Como se sabe, esta justiça para o caso concreto,
mesmo fora do sistema, só pode ser usada pelo juiz brasileiro quando autorizada
por lei (art. 4º, da LICC) , e aqui abre-se o sistema do CDC ao uso deste
instrumento maior para alcançar a justiça e a igualdade entre os desiguais123.
O critério da interpretação mais favorável ao consumidor, de acordo com Gustavo
Tepedino,
[...] vai sendo mais e mais associado não à qualificação do consumidor como um
status, um privilégio, uma espécie de salvo-conduto para melhor exercer suas
atividades econômicas, mas à preocupação constitucional com a redução das
desigualdades e com o efetivo exercício da cidadania, perspectiva que não
poderia deixar de compreender, segundo a vontade normativa do constituinte, as
relações consideradas de direito privado.
Sendo assim, funcionalmente ou pela teleologia da própria lei 8078/90 e da
Constituição Federal124, propõe-se que, na hipótese de conflito entre as regras de
especialidade e superioridade, prevaleça, em todos os casos, a norma mais favorável aos
direitos do consumidor, alternando-se um e outro critério, conforme as circunstâncias fáticas e
os valores contrapostos, sempre com o objetivo de encontrar a solução mais sistemática e, por
conseguinte, mais consetânea com os valores fundamentais da ordem jurídica, impedindo a
ruptura do ordenamento e permitindo ao sistema, sem exceção, neutralizar e, até mesmo,
inverter o efeito das antinomias125.
É o que Cláudia Lima Marques denomina de diálogo sistemático de
complementariedade e subsidiariedade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código
Civil126, através do qual uma lei pode complementar a aplicação da outra, a depender de seu
123
124
125
126
MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 220.
MARQUES, 2005, p. 25.
PASQUALINNI, 1999, p. 107.
De acordo com Cláudia Lima Marques, outros dois diálogos seriam possíveis entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002: o diálogo sistemático de coerência, através da aplicação simultânea
das duas leis, e diálogo de coordenação e adaptação sistemática, através da influência recíproca de ambos os
diplomas. Como exemplo de aplicação simultânea entre o CDC e o CC/2002 podemos entender a definição
de conceitos previstos no microssistema e não especificados na lei geral, como consumidor, fornecedor,
serviço e produto nos artigos 2, 17, 29 e 3 do CDC, ou até mesmo o contrário, visto que o Código Civil
conceitua expressões como nulidade, pessoa jurídica, prova, decadência, prescrição e assim por diante,
33
campo de aplicação no caso concreto, ao indicar a aplicação complementar tanto de suas
normas, quanto de seus princípios. Assim, o sistema geral pode encontrar uso complementar
para regular as relações de consumo quando apresentarem normas mais favoráveis ao
consumidor. Dito diversamente, após o exame do tipo de relação jurídica em questão envolvida
na antinomia, caso esta seja uma relação de consumo, tem-se que o Código de Defesa do
Consumidor regulará prioritariamente, e, subsidiariamente e no que for complementar, o
Código Civil.
Cláudia Lima Marques afirma que este diálogo é exatamente contraposto, ou no
sentido contrário, à revogação ou ab-rogação clássica de normas, em que uma lei era
‘superada’ e ‘retirada’ do sistema pela outra. Agora há escolha - pelo legislador (artigos 777,
721 e 732 do Código Civil) ou pelo juiz (no caso concreto do favor debilis do artigo 7º do
Código de Defesa do Consumidor) - daquela que vai "complementar" a ratio da outra127.
4.2 APLICAÇÃO DO DIÁLOGO DAS FONTES EM ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL
Ao estabelecer, antes de qualquer critério tradicionalmente apontado pela doutrina, a
preferência da norma mais justa, que fará prevalecer o sentido mais favorável à parte mais fraca, o
diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade propõe um supracritério em
situações de aparentes antinomias entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.
Dessa forma, alternar-se-á entre as normas de ambos os diplomas na regulação das relações de
consumo, aplicando-se ora as regras do Código Civil, ora as do Código de Defesa do
Consumidor, esgotando-se, primeiro, a aplicação de uma lei, e depois, no que couber, para
beneficiar o consumidor, utiliza-se complementarmente (e subsidiariamente) a outra128.
Analisemos, então, algumas situações em que ocorrem antinomias entre o Código de
Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 solúveis com a aplicação do diálogo das fontes
através do uso complementar e subsidiário das normas do diploma geral no que essas puderem
beneficiar os consumidores.
4.2.1 Do contrato de transporte
O Código Civil de 2002, em seus artigos 730 a 756, cuidou de regular o contrato de
transporte. Conforme estabelece o artigo 730, o contrato de transporte pode ser conceituado
como aquele em que alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para
outro, pessoas ou coisas. Esse tipo de contrato pode ser classificado como bilateral,
consensual, comutativo, por adesão e oneroso. Ademais, trata-se de um contrato de prestação
de serviços - caracterizado por uma obrigação de resultado - estabelecido entre um
consumidor e um fornecedor deste serviço, configurando-se como uma relação de
consumo129.
servindo, nestes casos, uma lei de base conceitual para a outra. O diálogo das influências recíprocas
sistemáticas, por sua vez, pode ser ilustrado no exemplo de uma possível redefinição do campo de aplicação
dos dois sistemas. Assim, ilustrativamente, as definições de consumidor stricto sensu e de consumidor
equiparado, que sofreram influências finalísticas do novo Código Civil, já que este vem justamente para
regular as relações entre iguais, dois iguais-consumidores ou dois iguais-fornecedores entre si. É a influência
do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de double sens (MARQUES, 2005, p. 17-18).
127
MARQUES, 2005, p. 18-19.
128
Ibid., p. 25.
129
Nesse sentido, Ruy Rosado: "Ora, todos sabemos que o transporte é uma relação de consumo estabelecida
entre um fornecedor de serviço e um consumidor desse serviço. Embora o legislador tenha posto isso no
Código Civil, na verdade, ele está regulando uma relação de consumo, à qual se aplica o Código Civil, não o
Código de Defesa do Consumidor" (AGUIAR JÚNIOR, 2004, p. 4).
34
Merece especial relevância a disposição do artigo 740, face ao direito conferido ao
transportado de resolver o contrato antes de iniciada a viagem, devendo ser restituído o valor
desde que a comunicação seja feita em tempo ao transportador, de modo a permitir a
renegociação da passagem. Além disso, uma vez iniciada a viagem, ao passageiro é facultado
desistir do transporte, sendo-lhe devida a restituição do valor correspondente ao trecho não
utilizado, demonstrando que houve a revenda para outra pessoa. Também dispõe que, em todas
essas situações, tem o transportador o direito de reter 5% a título de multa compensatória130.
Essas disposições específicas do Código Civil de 2002 para a relação de consumo em
caso de transporte de pessoas e coisas podem nos ilustrar um exemplo de diálogo de
complementariedade e subsidiariedade entre a lei geral e a lei consumerista. Isso porque essas
normas devem ser aplicadas em detrimento de qualquer outra que possa estar no Código de
Defesa do Consumidor, por se tratar de um direito superveniente que veio dispor, de modo
específico, sobre uma relação de consumo. Porém, para reger uma relação entre consumidor e
fornecedor, a aplicação das regras do Código Civil deverá dialogar com os princípios contidos
na legislação protetiva, que continuam prevalecendo.
É o que se infere da própria leitura do artigo 732 do Código Civil, que estabelece que
“aos contratos de transporte, em geral são aplicáveis, quando couber, desde que não
contrariem as disposições deste Código, os preceitos constantes da legislação especial e de
tratados e convenções internacionais”. Constata-se, com isso, que o Código Civil de 2002, em
sentido excepcional à regra geral de hermenêutica, tem aplicação preferencial na regulação de
relações que envolvem contratos de transporte. Subsidiariamente, essa mesma regra permite a
aplicação de outros dispositivos legais ou decorrentes de tratados e convenções internacionais.
Assim, por exemplo, nessa relação de transporte, a questão da prova a respeito do
prejuízo será regulada pelos princípios que estão no Código de Defesa do Consumidor, e não
no Código Civil. Não vigorará, então, o princípio de que o ônus da prova é de quem alega o
fato, ilustrado, de certo modo, no artigo 877 do Código Civil de 2002, que estabelece que
“àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro”, mas o
ônus será do transportador, porque em relações de consumo admite-se a presunção da
veracidade da alegação do consumidor, expressamente autorizada no artigo 6º, inciso VIII do
Código de Defesa do Consumidor.
Ruy Rosado de Aguiar Junior, valendo-se da mesma idéia do diálogo de
complementariedade e subsidiariedade sugerido, porém com outras palavras, dispõe que “os
princípios são os do Código de Defesa do Consumidor, as regras são as do Código de Defesa do
Consumidor, salvo quando o Código Civil dispuser especificamente sobre uma relação de
consumo", prevalecendo, nesse caso, a norma mais favorável ao consumidor131. Disso concluise que, embora utilizando de diferente terminologia, é tendência da doutrina moderna a
superação de antigos paradigmas e a defesa da interpretação pró-consumidor, resultante da
130
131
In verbis: Art. 740. O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem,
sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em
tempo de ser renegociada.
§ 1.º Ao passageiro é facultado desistir do transporte, mesmo depois de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a
restituição do valor correspondente ao trecho não utilizado, desde que provado que outra pessoa haja sido
transportada em seu lugar.
§ 2.º Não terá direito ao reembolso do valor da passagem o usuário que deixar de embarcar, salvo se provado
que outra pessoa foi transportada em seu lugar, caso em que lhe será restituído o valor do bilhete não
utilizado.
§ 3.º Nas hipóteses previstas neste artigo, o transportador terá direito de reter até 5% (cinco por cento) da
importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória.
AGUIAR JÚNIOR, 2004, p. 5.
35
aplicação conjunta do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002 na solução
de antinomias.132
4.2.2 Da decadência
Outra questão em que se pode vislumbrar o diálogo entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002 diz respeito ao prazo decadencial que regula a matéria
dos vícios.
O Código Civil de 2002 disciplina a questão dos vícios ocultos, também conhecidos
como vícios redibitórios, nos artigos 441 a 446, exigindo, pelo que se constata do artigo 441,
a comutatividade no contrato para a incidência das normas ali dispostas.
Vícios ocultos são aqueles vícios presentes desde a gênese do contrato, não
perceptíveis a um homem médio - revelando-se apenas mediante exames técnicos ou testes -,
que tornem a coisa imprópria para o uso a que é destinada ou lhe diminuam o valor.
Assim, a depender da conveniência conferida ao adquirente, ele pode optar pela ação
de redibição - caso queira rejeitar (redibir) a coisa e receber o dinheiro correspondente - ou
ação estimatória, também conhecida como quanti minoris - pela qual é facultado ao
adquirente reclamar um abatimento no valor da coisa.
O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, traz, nos artigos 18 a 20, a idéia de
vícios de qualidade e de quantidade. Vícios de qualidade são aqueles que se referem aos bens
inadequados para o fim a que se destinam, e são passíveis de existir tanto em produtos quanto
em serviços. Já por vícios de quantidade entendem-se aqueles em que o produto apresenta
disparidade de medida, volume ou peso com relação às indicações constantes do recipiente, da
embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária. As opções apresentadas ao consumidor,
nesses casos, são: substituir o produto por outro da mesma espécie, marca ou modelo, sem os
aludidos vícios (artigos 18, parágrafo primeiro, inciso I e 19, inciso III), restituir
imediatamente a quantia paga, monetariamente atualizada e sem prejuízo de eventuais perdas
e danos (artigos 18, parágrafo primeiro, inciso II e 19, inciso IV) ou, ainda, preferir o
abatimento proporcional do preço (artigos 18, parágrafo primeiro, inciso III e 19, inciso I).
Além do mais, se o vício for de qualidade, o consumidor pode optar apenas pela substituição
das partes viciadas (artigo 18, parágrafo terceiro), e, nos casos de vícios de quantidade, há
também a opção da complementação do peso ou da medida (artigo 19, inciso III).
O Código de Defesa do Consumidor trata do direito de reclamar tais vícios no artigo
26, estabelecendo o prazo decadencial de trinta dias para produtos não-duráveis e de noventa
dias para produtos duráveis. O mesmo prazo se dá com relação aos vícios ocultos:
Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca
em:
I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviços e de produtos não-duráveis;
II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviços e de produtos duráveis.
§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto
ou do término da execução dos serviços.
§ 2° Obstam a decadência:
I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor
de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser
132
Assim, o que Cláudia Lima Marques denomina de subsidiariedade, que se explica pela aplicação prioritária
das normas do Código de Defesa do Consumidor e subsidiária do Código Civil de 2002, naquelas hipóteses
em que a matéria não for regulada pelo microssistema e aplicam-se as normas da legislação geral parte da
doutrina prefere terminologia distinta, referindo-se à aplicação supletiva das normas do direito comum aos
consumidores, por exemplo, como lacuna, a ser solucionada pela analogia prevista no artigo 4º da LICC
(JUSEFOVICZ, 2005, p. 240), ou como “princípio da aplicação mais favorável ao consumidor”
(TEPEDINO, 2004, p. 233).
36
transmitida de forma inequívoca;
II - (Vetado).
III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.
§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que
ficar evidenciado o defeito.
A questão é que o atual Código Civil prevê um prazo de um ano para a reclamação de
vícios ocultos existentes em bens imóveis, categoria que se enquadra em bens duráveis133, no
caput do artigo 445, que assim estabelece: “O adquirente decai do direito de obter a redibição
ou abatimento no preço no prazo de 30 (trinta) dias se a coisa for móvel, e de 1 (um) ano se
for imóvel, contado da entrega efetiva”. Isso quer dizer que o Código Civil prevê uma
classificação, além de mais específica, mais benéfica ao consumidor do que o dispositivo da
lei consumerista no que se refere ao prazo decadencial. A lei de defesa dos consumidores, em
que pese essa questão, também traz, se comparada à legislação geral, vantagens ao
consumidor. Assim pode ser entendido o parágrafo terceiro do artigo 26, que não fixa
previamente um limite temporal máximo para o surgimento do vício oculto, diferentemente
do Código Civil que, no parágrafo primeiro do artigo 445, estabelece um período máximo de
cento e oitenta dias para bens móveis e de um ano para bens imóveis. Ademais, o parágrafo
segundo do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor permite que a fluência do prazo
decadencial seja obstada pela reclamação formulada ao fornecedor ou instauração de inquérito
civil, matéria não regulada no Código Civil.
Neste sentido o diálogo das fontes atua, sugerindo que o consumidor se favoreça,
quando for o caso, do prazo decadencial previsto no Código Civil, sem prejuízo dos direitos
estatuídos no Código de Defesa do Consumidor.
4.2.3 Da responsabilidade objetiva
Analisemos, por fim, o caso da regulação da responsabilidade objetiva do fornecedor
no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002.
Na lei 8078/90, a matéria é tratada no artigo 12, que dispõe:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o
importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua utilização e riscos.
§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente
se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - sua apresentação;
II - o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi colocado em circulação.
§ 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade
ter sido colocado no mercado.
§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será
responsabilizado quando provar:
I - que não colocou o produto no mercado;
II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;
III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
133
“Entende-se por produtos não duráveis aqueles que se exaurem no primeiro uso ou logo após sua aquisição,
enquanto os duráveis, definidos por exclusão, seriam aqueles de vida útil não efêmera” (REsp 114.473,
96/0074492-0/RJ, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 24.03.1997)
37
O Código Civil de 2002, por sua vez, no artigo 931, ampliou o conceito de fato do
produto existente no Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer que, ressalvados outros
casos previstos em lei especial, “os empresários individuais e as empresas respondem
independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”.
Desse modo, ao vincular a empresa e os empresários individuais à circulação dos produtos, a
lei geral cria uma hipótese não prevista, anteriormente, na redação do diploma consumerista.
É o que a doutrina denomina de "risco do desenvolvimento", ou seja,
[...] o defeito impossível de ser conhecido e evitado no momento em que o produto
foi colocado em circulação, em razão do estágio da ciência e da tecnologia. É aquele
defeito que não pode ser cientificamente conhecido no momento do lançamento do
produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um período de uso do
produto, como ocorre com certos medicamentos novos - vacinas contra o câncer,
drogas contra AIDS, pílulas para melhorar o desempenho sexual, etc.134
Considerando-se, sobretudo, que o parágrafo terceiro do artigo 12, ao prever as causas
de exclusão de responsabilidade do fornecedor, não incluiu os riscos do desenvolvimento,
entende-se que o fornecedor pode ser responsabilizado, através de uma exegese conjunta do
artigo 931 do Código Civil e do artigo 12 do Código de Defesa do Consumidor, por mais esta
espécie de defeito135. Assim, resta demonstrado, mais uma vez, o diálogo entre essas duas
fontes legislativas atuando de forma a beneficiar, sempre, o consumidor.
4.3
ALGUNS JULGADOS ADOTANDO O DIÁLOGO DAS FONTES NA
HARMONIZAÇÃO DE ANTINOMIAS ENTRE O CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR E O CÓDIGO CIVIL
Por derradeiro, considera-se importante a análise jurisprudencial que ilustre o diálogo
estudado neste trabalho, para que se possa visualizar, em casos práticos, a teoria desenvolvida.
Com relação ao diálogo de complementariedade e subsidiariedade entre o Código de
Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 no que diz respeito aos prazos decadenciais,
a jurisprudência que segue, na qual o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que
o prazo contido no artigo 445 do Código Civil deveria prevalecer sobre o artigo 26, inciso II
do Código de Defesa do Consumidor, em razão de ampliar o prazo de reclamação do vício
para um ano:
CONSUMIDOR. CONSTRUÇÃO CIVIL. DECADÊNCIA. A entrega das chaves
do imóvel constitui marco inicial do prazo decadencial para reclamação quanto a
vício redibitório. O prazo é de um ano, em se tratando de bem imóvel. Derrogação
parcial do art. 26, inc. II, do CDC, pelo art. 445, caput, do CC de 2002. A suposta
falta de veneziana em uma das aberturas enquadra-se nessa hipótese. Recurso
desprovido. Unânime. (Recurso Cível Nº 71000582197, Primeira Turma Recursal
Cível, Turmas Recursais, Relator: João Pedro Cavalli Junior, Julgado em
11/11/2004)
No mesmo sentido o acórdão abaixo, que igualmente ilustra a utilização do artigo
445 do Código Civil em lugar do artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor, ao rejeitar
uma argüição de decadência do direito de reclamar o vício redibitório de um imóvel,
134
135
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Responsabilidade civil por danos causados por remédios. Revista de direito
do consumidor. São Paulo: RT, n. 29, 1999, p. 61.
A doutrina que se posiciona a favor da responsabilização objetiva do fornecedor por “risco do
desenvolvimento” entende que esta hipótese configuraria uma espécie do gênero defeito de concepção,
podendo ser enquadrada, assim, independentemente de sua época de colocação ao mercado, como um
acidente de consumo causado por insegurança do produto. (CAVALIERI FILHO, 1999, p. 61).
38
postulada pela parte fornecedora, que alegava o esgotamento do prazo de noventa dias
previsto na lei 8078/90. Para tanto, utilizou-se, com o fim de beneficiar o consumidor, do
prazo ânuo previsto na lei geral, que ainda não havia transcorrido.
CONSTRUÇÃO. VICIO REDIBITÓRIO. AÇÃO CONTRA O CONSTRUTOR.
DECADÊNCIA. MARCO INICIAL. REPARAÇÃO DOS DANOS.
I. Tratando-se de vício redibitório oculto em imóvel, o prazo decadencial é de um ano
a contar da ciência do defeito, nos termos do art. 445 do CC.
II. Exame do mérito nos termos do art. 515, § 3º, do CPC. Prova segura acerca dos
danos afirmados pela autora (infiltrações e fissuras), bem como da origem na
construção, descortinando a responsabilidade civil do construtor. (Recurso Cível Nº
71000676841, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: João Pedro
Cavalli Junior, Julgado em 23/06/2005).
O diálogo de complementariedade e subsidiariedade entre o Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002 com relação ao contrato de transporte pode ser
verificado na decisão abaixo colacionada, que julgou procedente o pedido do consumidor
desistente do contrato de transporte para ver-se indenizado pelo valor correspondente à
passagem aérea de uma viagem a qual formulou desistência. No caso, o consumidor se viu
forçado, por motivos particulares, a cancelar a viagem, fato que comunicou à transportadora
com antecedência prévia de 72 horas. Pretendia, assim, ser ressarcido de acordo com o artigo
740 do Código Civil. A demandada, por seu turno, asseverou ser descabida a devolução nos
moldes pretendidos, uma vez que se tratava de vôo charter, restando o assento não ocupado,
de modo que faz jus tão somente ao percentual correspondente a 20%. Em sede recursal,
decidiu-se que, embora tratasse de vôo charter, que tem o seu custo reduzido justamente por
ser um vôo fretado, o que pressupõe o preenchimento de todos os assentos, o consumidor não
fora informado dessas condições, o que as torna ineficazes. O julgado ainda entendeu que
cabia à transportadora a prova de que o assento efetivamente não foi ocupado, demonstrando
também, aqui, a adoção conjunta do princípio presente no Código de Defesa do Consumidor
de inversão do ônus da prova para beneficiar o consumidor.
CONSUMIDOR. VÔO FRETADO. DESISTÊNCIA. Se o consumidor não foi
informado quanto às limitações postas no contrato em relação ao direito de
desistência e de ressarcimento do valor correspondente, de nenhuma eficácia o que
restou estabelecido no contrato. Dever da ré de demonstrar, comunicada que foi com
razoável antecedência, que efetivamente não houve a ocupação do assento. DERAM
PROVIMENTO. (Recurso Cível Nº 71000566240, Segunda Turma Recursal Cível,
Turmas Recursais, Relator: Luiz Antônio Alves Capra, Julgado em 22/09/2004)
Para finalizar, vale mencionar uma decisão em que o Supremo Tribunal de Justiça
manteve a sentença de primeiro grau que condenou, com fundamento no risco assumido pela
empresa ao colocar o produto em circulação, o fabricante de um medicamento que causou
dano para o consumidor136.
O caso era de uma jovem que veio a falecer após ingerir, por prescrição médica, o
medicamento “Energisan E. V.", em razão de um dos componentes do remédio, denominado
dinitrila succinica. O fabricante, Aché Laboratórios Farmacêuticos S.A., alegando
desconhecimento da toxicidade do componente, apresentou laudos do Instituto Adolfo Lutz
que concluíam ser o efeito constatado fato novo e imprevisível. Não obstante, a decisão do
STJ baseou-se no risco assumido pela empresa ao colocar o produto em circulação no
mercado antes mesmo de comprovada definitivamente a eficiência e ausência de eventual
dano da medicação para condenar a empresa a indenizar os pais da vítima137.
136
137
Recurso Especial nº 6.422-PR, 4ª Turma, STJ, unânime, Rel. Min. Barros Monteiro, 4.6.91, Lex 31/150
PASQUALOTTO, A. S. A responsabilidade civil do fabricante e os riscos do desenvolvimento. In:
39
O exemplo, embora anterior à criação do Código de Defesa do Consumidor, retrata a
idéia da responsabilidade objetiva do fornecedor por riscos do desenvolvimento. Deduz-se,
com isso, que se tal fato já era reconhecido antes mesmo da vigência da lei tutelar dos
consumidores, menos direitos, hoje, eles não terão. Assim, através do diálogo das fontes, a
decisão deve apoiar-se na hipótese regulada no Código Civil de responsabilidade objetiva do
fornecedor por produtos postos à circulação no mercado, e valer-se do Código de Defesa do
Consumidor, que não arrola o fato como causa excludente da responsabilidade do fornecedor
quando trata da matéria no parágrafo terceiro do artigo 12, para, assim, ampliar a proteção ao
consumidor. Os Enunciados 42 e 43 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho
da Justiça Federal, ilustram este entendimento:
42 – Art. 931: o art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12
do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e
aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos.
43 – Art. 931: a responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do
novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento.
Assim restam demonstrados, na prática, exemplos possíveis do diálogo entre o Código
Civil e o Código de Defesa do Consumidor sugerido ao longo do trabalho, afastando as
aparentes antinomias existentes em cada caso para se alcançar uma harmonização entre as
referidas leis.
CONCLUSÃO
Neste último momento da nossa pesquisa, em que cabe encerrar a idéia desenvolvida,
mantendo-se, no entanto, abertos a posteriores discussões, torna-se conveniente proceder-se a
uma breve retomada das principais conclusões a que chegamos ao decorrer do estudo.
O problema abordado neste trabalho foi a superação de conflitos entre o Código Civil
de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor através de critérios que permitam uma
harmonização entre os dois diplomas. A doutrina tradicional aponta a prevalência do critério
de especialidade sobre o critério de anterioridade nessas situações. Indagou-se, porém, que a
adoção desse conceito seria injusta nos casos em que o Código Civil de 2002 pudesse ser mais
benéfico ao consumidor do que a lei especial. Nesse raciocínio, a pergunta que se pretendeu
responder foi qual seria o critério apropriado para, então, solucionar-se tais antinomias. O
desafio foi encontrar uma hermenêutica integradora, que fizesse com que essas duas fontes
legislativas dialogassem produtivamente entre si.
Assim defendeu-se, no decorrer da reflexão elaborada, uma idéia de superação de
antinomias entre o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor alternativa à
adotada, tradicionalmente, pela doutrina. Sugeriu-se, através da base teórica fornecida pelos
estudos de Cláudia Lima Marques, um diálogo entre essas duas fontes legislativas, de modo a
permitir a comunicação e a coordenação de suas normas para se alcançar, com isso, uma
maior eficácia na busca da proteção, constitucionalmente prevista, à parte mais fraca da
relação jurídica de consumo, o consumidor.
A partir da concepção de um sistema jurídico pós-moderno aberto e dinâmico,
concluiu-se que o diálogo entre regras e princípios no interior de todo o ordenamento e
suscetíveis a influências externas para sua adequação social conforme a realidade concreta
torna-se, além de possível, necessário na concretização de uma aplicação justa do Direito.
MARQUES, Cláudia Lima (Org.). Estudos sobre a Proteção do Consumidor no Brasil e no Mercosul.
Porto Alegre: Livraria e Editora do Advogado, 1994, p. 90-91.
40
Para sugerir-se, ao longo deste trabalho, o diálogo sistemático de complementariedade
e subsidiariedade entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, partiuse da premissa de que o novel diploma, além de não ter revogado as regras da lei
consumerista, reafirmou valores já insertos na Lei 8.078/90, tais como a boa-fé objetiva,
equilíbrio econômico e função social do contrato, o que foi possível deduzir-se através da
análise evolutiva de ambos os diplomas, seus respectivos campos de aplicação e
convergências principiológicas. Assim, constatou-se a plausabilidade do diálogo proposto.
O tema aqui desenvolvido é apenas um dos diversos caminhos que a doutrina moderna
e consciente dos problemas da nossa sociedade atual pode e deve aprofundar na busca por
uma igualdade não apenas formal, mas material. Há muitos outros. Todos esses caminhos se
cruzam na imperiosa tarefa de, buscando a congruência cada vez maior de binômios como
justiça-direito e teoria-prática, fornecer um sentido ao sistema jurídico.
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41
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