II ENCONTRO DE FILOSOFIA E HISTÓRIA DA BIOLOGIA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE AS ERVAS MEDICINAIS E OS JESUÍTAS DO BRASIL: ANÁLISE HISTÓRICA DE UMA RECEITA DE FINAIS DO SÉC. XVIII Fernando Santiago dos Santos Biólogo, Mestre em História da Ciência pelo Centro de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência (PUC-SP) Sábado, 21 de agosto de 2004 ESTE TRABALHO É RESULTANTE DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO: SANTOS, F. S. 2003. "Os jesuítas, os indígenas e as plantas brasileiras: considerações preliminares sobre a Triaga Brasílica". Dissertação de Mestrado. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 174 pp. TÓPICOS ABORDADOS NA APRESENTAÇÃO: 1 OS JESUÍTAS E AS PLANTAS MEDICINAIS DO BRASIL 2 AS TRÍAGAS E OS SIMPLES 3 A TRIAGA BRASÍLICA: ESTRUTURA DA RECEITA 4 AS PLANTAS MEDICINAIS DA TRIAGA BRASÍLICA 1 OS JESUÍTAS E AS PLANTAS MEDICINAIS DO BRASIL “As plantas medicinais brasileiras não curam apenas; fazem milagres” (von Martius, Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros, p. 72) * Introdução, a partir do século XVI, das medicinas, drogas e alimentos vegetais do continente americano na Europa (processo de importância histórica extremamente relevante) * Este processo não se dá somente para a evolução da medicina, e, por conseguinte, também da farmácia e da botânica. Entram em jogo, igualmente, questões econômicas, sociais e culturais. * Primeiras notícias e descrições sobre as plantas americanas apareceram na Europa através de obras espanholas, que muitas vezes resumiam-se a apenas breves menções das plantas encontradas no Novo México e regiões vizinhas, porém incluíam, também, descrições mais detalhadas, tanto a nível morfológico quanto medicinal. * O contato com o europeu trouxe, entretanto, a introdução gradual e constante de novos medicamentos, alheios à cultura íncola. Como uma estrada de mão dupla, o europeu também beneficiou-se, gradativamente, da medicina praticada pelos silvícolas, incorporando às suas receitas e remédios componentes oriundos da flora nativa. * A Europa do século XVII e início do XVIII parecia creditar esperanças em obter proveito da medicina pré-colombiana. Esperava-se, talvez, encontrar nas Américas drogas que tradicionalmente tinham sido importadas de Macau, de Goa e de outras regiões da Ásia. * Os jesuítas não tinham como missão maior a medicina, a não ser a “medicina da alma”. A falta de remédiios, a distância da Metrópole, a pressão dos colonos e a escassez de médicos em terras brasílicas acabaram fazendo com que os jesuítas fizessem, muitas vezes, o papel de médicos e boticários. * Já no século XVII as boticas jesuíticas eram as melhores que havia em terras brasílicas. * As culturas indígenas no Brasil não deixaram registros escritos sobre suas atividades e sobre as plantas medicinais nativas. A oralidade, embora seja por si só um fator complexo e muitas vezes dificilmente compreendido, é a base da transmissão do saber dos povos indígenas sul-americanos aos colonizadores europeus. * Dominar os idiomas dos povos com os quais se deseja manter contato é uma premissa básica para a qual os jesuítas parecem ter sido mestres talentosos. De fato, é incontestável a aproximação feita pelos padres da Companhia às diversas etnias indígenas no Brasil, mediante o aprendizado de suas línguas nativas. * O contato diário com os indígenas deve ter levado os jesuítas a conhecerem de perto as propriedades terapêuticas das plantas brasileiras. O conhecimento da flora nativa foi sendo ampliado através dos longos séculos de contato com os habitantes autóctones da terra. “A necessidade local obrigou pois os Jesuítas a terem abundante provisão de medicamentos; e também logo a procurarem os que a terra podia dar, com as plantas medicinais, que começaram a estudar e a utilizar em receitas próprias, como as do Ir. Manuel Tristão [...]. Destes remédios e tisanas, iniciadas no século XVI, se foi pouco e pouco ampliando a preparação de outros, com ingredientes europeus e da terra, até se estabelecer a farmacopeia brasileira, com as suas Boticas [...]” (Serafim Leite, Artes e ofícios dos Jesuítas no Brasil, p. 86) * Os jesuítas podem ter “copiado” a medicina que os indígenas utilizavam, cujo conhecimento das plantas medicinais superava, em muitos pontos, o dos europeus que aqui aportaram no século XVI. * A medicina trazida da Europa, quando dispunha de condições mínimas, parecia, muitas vezes, não obter resultado positivo frente às novas doenças das Colônias. PORTANTO: a) Aos jesuítas coube, então — dentro de uma cultura bastante distinta da cultura indígena —, dar sentido aos conhecimentos que dela provinham; b) Sendo em princípio “médicos da alma”, os jesuítas, por força das novas condições encontradas nas Novas Terras, forçosamente tornaram-se igualmente “médicos do corpo”; c) O conhecimento adquirido na Escolástica européia foi, paulatinamente, sendo fundido ao conhecimento de cunho prático dos indígenas do Brasil; d) As boticas jesuíticas eram, muitas vezes, o único local onde os colonos podiam adquirir remédios. 2 AS TRIAGAS E OS SIMPLES “O homem deve ter sido antes farmacologista que fazendeiro” (P. Silva, Farmacologia, p. 193) * As triagas são receitas à base de plantas, animais e outras substâncias, como minerais, sais, óleos etc., utilizadas pela humanidade desde a Antigüidade. Algumas vezes eram constituídas por apenas um único ingrediente, mas podiam abarcar mais de seis dezenas de substâncias. * A história das triagas perde-se no tempo. Por esta razão, torna-se difícil, muitas vezes, precisar as fontes de determinadas triagas, ou mesmo a época histórica a que pertencem. Há várias lendas e histórias acerca de sua origem, cuja veracidade dos fatos talvez seja discutível (por exemplo, a famosa lenda do Antídoto de Mitridates, criada, provavelmente, no primeiro século a.C., por Mitridates Eupator, rei do Ponto). * A própria origem do termo deixa dúvidas etimológicas; a maior parte dos autores, porém, considera que o termo originase do grego theriake e do latim theriaca. * A concepção inicial que se dá às triagas é a de antídoto contra a mordida de serpentes e contra venenos em geral. Este sentido permeia sempre as triagas. Posteriormente, entretanto, observa-se que estas receitas acabaram tornando-se remédios universais (panacéias). * Embora as triagas tenham sido originadas como antídoto contra os venenos de serpentes e outros venenos, as receitas foram sendo reformuladas, seus ingredientes foram sendo substituídos e outros ingredientes foram sendo acrescentados às receitas. O processo de seleção, substituição ou acréscimo de ingredientes, entretanto, não deve ter ocorrido de forma pontual e possivelmente seguiu critérios bastante complexos, e não somente o acaso ou a tentativa e erro. Desta forma, muitas modificações foram sendo feitas às fórmulas primitivas. * Podemos definir um simples como sendo qualquer medicamento à base de ervas, cereais, legumes, frutas, partes de animais e minerais. Seu uso por parte da humanidade remonta a vários milênios. Pode haver, entretanto, confusão em relação aos simples e aos compostos. Os simples podem ser entendidos ora como substâncias que apenas possuíam uma das quatro qualidades — por exemplo, simples quentes e frios, de acordo com o Galenismo —, ora como drogas sujeitas a operações de divisão ou purificação. Os compostos, por outro lado, podem ser entendidos como substâncias sujeitas a operações como a extração ou, então, como sendo a mistura de componentes. * Garcia da Orta e sua famosa obra, Coloquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India..., tiveram papel fundamental na medicina de seiscentos e setecentos. Quase todas as drogas referidas por Garcia da Orta nos Colóquios se continuam a utilizar em Portugal no século XVIII. PORTANTO: a) As triagas eram receitas utilizadas há milênios, e podiam empregar um ou dezenas de elementos, de origem vegetal, animal ou mineral (simples) b) A substituição de simples, como já dissemos anteriormente, não deve ter sido um processo de ocorrência pontual e instantânea. Muitos simples empregados em receitas antigas foram cedendo lugar a outros, de uso semelhante ou com eficácia superior; c) Algumas substâncias americanas pareciam estar totalmente inseridas nas farmacopéias européias já no séc. XVII — citemos, por exemplo, a participação da salsaparrilha, da ipecacuanha e de alguns alimentos, como o tomate e a batata. 3 A TRIAGA BRASÍLICA: ESTRUTURA DA RECEITA “Nas veredas há às vezes grandes matas, comuns. Mas, o centro da vereda [...] é sempre ornado de buritis, buritiranas, assafrás e pindaíbas, à beira d’água” (E. Bizzarri, J. G. Rosa, p. 28) * A Triaga Brasílica é uma receita, entre centenas de outras receitas, encontrada na Collecção de Receitas do Colégio dos Jesuítas da Bahia. A data da folha de rosto é 1766. Atualmente, a Collecção de Receitas encontra-se no Arquivo Romano da Companhia de Jesus (Serafim Leite). * Na Noticia do Antidoto ou nova Triaga Brasilica que se faz no Collegio da Companhia de Jesus da Bahia, a receita é definida como um antídoto ou panacéia composta semelhante às triagas de Roma e de Veneza, “[...] de varias plantas, raizes, ervas e drogas do Brasil, que a natureza dotou de tão excellentes virtudes, que cada huma por si só pode servir em lugar da Triaga de Europa [...]”. * Ainda em relação à Notícia: “[...] pois com algumas das raizes, de que se compoem este Antidoto, se curão nos Brazis de qualquer peçonha e mordedura de animais venenosos, como tambem de outras varias [...] enfermidades, só com mastigá-llas. E a experiencia tem mostrado há tantos annos para cá que, se não hé melhor que a Triaga da Europa, ao menos não lhe é inferior em coisa alguma; e muitos Professores da Medicina só uzavão desta, por ser a que nas occazioens lhe obrava mais promptamente. Hé esta Triaga efficacissima contra todo o veneno (excepto os corrosivos), como hé o solimão e outros semilhantes causticos, ainda que contra estes, dado o pezo de huma athé duas oitavas, ainda ajuda a os expellir com vomitos; e dipois, com remedios anodinos, que se costumão applicar a semelhantes venenos, faz a cura mais facil e mais segura.” COLLECÇAÕ DE VARIAS RECEITAS E SEGREDOS PARTICULARES DAS PRINCIPAES BOTICAS DA NOSSA COMPANHIA DE PORTUGAL, DA INDIA, DE MACAO, E DO BRAZIL COMPOSTAS, e experimentadas pelos melhores MEDICOS, E BOTICARIOS MAIS CELEBRES que tem havido neſſas partes. AUMENTADA com alguns indices, e noticias muito curiozas, e neſſessarias para a boa direcçaõ, e acerto contra as enfermidades. [desenho do coração de Jesus, em vermelho] EM ROMA — AN. MDCCLXVI com todas as licenças neceſſarias “Triaga Brasilica, Celeberrima em todo aquele Novo Mundo da Botica do Collegio da Bahia” (Serafim Leite, Artes e ofícios, pp. 295-7) A RECEITA: 1. Raízes (21) 2. Sementes (7) 3. Extratos (4) 4. Outras partes vegetais, tais como cipós, cascas, botões florais, flores etc. (8) TOTAL: 40 5. Gomas (18) 6. Óleos químicos (8) 7. Sais químicos (11) TOTAL: 77 PORTANTO: a) A Triaga Brasílica foi uma receita jesuítica cuja lista de ingredientes e forma de preparo estavam em poder dos jesuítas do Colégio da Bahia; b) Parece ter gozado de boa popularidade em sua época, pelo que atestam os comentários transcritos por Serafim Leite; c) Era composta por simples de origem vegetal, oriundos da flora autóctone e da flora alóctone (Europa, Índia etc.) e por simples de origem mineral (óleos e sais químicos); d) Era composta, ao que tudo indica, à maneira das triagas de Roma e de Veneza. 4 AS PLANTAS MEDICINAIS DA TRIAGA BRASÍLICA * A lista de plantas medicinais é surpreendente. As dificuldades de identificação, à luz da moderna taxonomia, ocorreram devido a alguns fatores: a) alguns nomes dos simples vegetais estão somente em língua indígena da época, ou, então, em língua brasílica (ex. ibiraé, caiapiá, pagimiroba, erva cáácicá); b) o mesmo nome aparece grafado diferentemente, na transcrição de Serafim Leite (ex. jerubeda/jerobeba; nhambuz/neambus); c) há menção de onde algumas dessas plantas podiam ser encontradas no Brasil, porém não de todas. * Plantas de origem autóctone: 18 espécies * Plantas de origem alóctone variada: 20 espécies * Plantas de origem duvidosa: 2 espécies Sua beleza e importância histórica residem justamente no fato de ser uma receita complexa, que fazia uso de plantas medicinais comprovadamente nativas do Brasil, associadas a outros simples e drogas de origem européia, asiática e africana, de pronto uso. A Triaga Brasílica, apesar de bicentenária, continua, talvez, atualíssima. E por que não dizer instigante? Seu estudo une ciências do presente e do passado. Resgata, de certa forma, um saber brasílico — milenar? — fundido ao conhecimento dos padres jesuítas, transmutados em receita secreta e verdadeira panacéia. A DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ENCONTRA-SE DISPONÍVEL, NA ÍNTEGRA, NO ENDEREÇO ABAIXO: www.fernandosantiago.tecnetinfo.com/triabra.htm CONTATOS: [email protected]