Capítulo 7 Controle de qualidade e aumento da competitividade da indústria láctea João Walter Dürr Abstract Quality control and increase in competitiveness of the dairy industry Investments in dairy products quality control are necessary to ensure food safety, to optimize the use of available resources and to open and maintain markets. Food safety has become a major issue worldwide after globalization, not only due to health concerns but also because of non-tarifary trade barriers. Besides, it is quite simple to demonstrate that quality improvements in the dairy chain should lead to an increase in profitability for both milk producers and processors. Finally, quality is not an optional attribute but a requirement of the consumers, especially in the international market, and those companies and countries that wish to stay in business must be able to provide safe and high quality dairy goods. This paper has the objetive of dicussing the importance of quality control for the dairy industry, and tries to achieve that by presenting and integrated view of the problem, enphasizing the leading role of the industry in this process, showing rapidly the basis of the Hazard Analysis and Critical Control Point (HACCP) System and lastly evaluating the current situation of milk quality in Brazil. Introdução As matérias primas alimentícias de origem animal apresentam naturalmente uma maior variabilidade em suas características físico-químicas, microbiológicas e sensoriais. Isto representa um desafio à indústria processadora, cujo objetivo é obter o máximo rendimento na fabricação de derivados com padrão definido e que satisfaçam plenamente a demanda dos consumidores. Quanto mais profissionalizada a cadeia produtiva, menor a tolerância com os fatores que possam comprometer o resultado do processo industrial. O valor que estima o sucesso combinado das atividades de produção, colheita, transporte, processamento e comercialização é referido como qualidade do alimento. A 84 Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde qualidade do produto final é determinada por um processo seqüencial e concatenado em que a qualidade em cada etapa é limitada pela qualidade na etapa anterior. Em outras palavras, não ocorre agregação de qualidade pela manipulação e transformação da matéria prima, sendo tanto maior a qualidade do produto final quanto menor for o comprometimento dos atributos de qualidade ao longo do processamento sofrido pelo alimento. Neste cenário, o conceito de controle de qualidade reveste-se de fundamental importância para a estratégia competitiva da indústria de alimentos de origem animal, sendo de particular interesse no presente texto o controle de qualidade na indústria láctea. Razões para controlar a qualidade Investimentos em controle de qualidade dos alimentos lácteos se justificam basicamente por três razões: a. garantia de segurança alimentar; b. otimização do uso de recursos; e c. conquista e manutenção de mercados. Mesmo que o conceito de qualidade já esteja bem estabelecido no senso comum como um valor inegociável independente da viabilidade de sua obtenção, é a percepção de que qualidade aumenta rentabilidade e competitividade que tem permitido avanços sistemáticos no aprimoramento dos processos envolvidos no suprimento de produtos lácteos à população. Segurança alimentar HENSON AND TRAILL (1993) definem segurança alimentar como o inverso de risco alimentar: a probabilidade de não sofrer algum dano por consumir o alimento em questão. Já MONARDES (2004) aborda um conceito mais amplo, afirmando que a comunidade internacional consagrou a segurança alimentar como um dos direitos humanos fundamentais, sendo a mesma atingida quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico e econômico (seguro) à alimentação em quantidade e qualidade suficientes para uma vida saudável e produtiva. Qualidade do alimento não é sinônimo de segurança alimentar, mas um de seus componentes fundamentais. A garantia de segurança alimentar na cadeia produtiva do leite depende, portanto, do controle de qualidade realizado desde a produção primária até a mesa do consumidor. Ou seja, a única forma de se estimar o grau de segurança (ou risco) no consumo de um determinado alimento é a implementação de procedimentos de controle ao longo do processo produtivo, como é ilustrado pela Tabela 1. Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde 85 Tabela 1. Exemplo de medidas de controle de qualidade aplicado pela cadeia produtiva do leite na Holanda. Ponto de controle Vacas leiteiras • • • • • Alimentos para as vacas leiteiras Fazendas leiteiras • • • • • • • • • Leite cru Indústria de laticínios Produtos lácteos • • • • • • • • • • • • • • • • • • • Medidas Certificação compulsória do estado sanitário de cada vaca Programas de controle de doenças baseados em monitoramento contínuo Registro compulsório de todos os animais em um sistema oficial de rastreabilidade Procedimentos de qualidade padronizados Padrões para a inspeção dos ingredientes adquiridos (detecção da presença de substâncias prejudiciais) Requisitos técnicos para a fabricação de equipamentos Padrões de higiene para o processamento e armazenamento Padrões para a inspeção final dos alimentos (composição e qualidade) Normas regulatórias para o transporte de ingredientes e produtos finais Critérios de acomodação e cuidado do gado leiteiro (bem-estar animal) Controle da administração de tratamentos veterinários (atribuição exclusiva de médicos veterinários) Registro obrigatório de todos os tratamentos veterinários Períodos de descarte bem definidos – leite de vacas que receberam medicamentos não deve ser fornecido ao processador Sistema bem estabelecido de procedimentos de ordenha e refrigeração higiênicos Padrões legais de manejo proteção ambiental Contagem de células somáticas (CCS) Crioscopia pH da gordura Contagem bacteriana total (CBT) Resíduos de antibióticos Presença de bactérias formadoras de ácido butírico Pureza visual Periódica pesquisa de substâncias prejudiciais: dioxina, aflatoxinas, metais pesados, resíduos de pesticidas etc. Procedimentos de qualidade padronizados Exigências específicas para o transporte do leite da fazenda até a indústria Inspeção na recepção do leite cru Padrões de higiene para equipamentos industriais Protocolos estabelecidos para os processos de produção dos vários produtos finais Composição Aditivos Qualidade microbiológica Resíduos de contaminantes Aparência, odor e sabor Fonte: Dutch Dairy Board (2006). 86 Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde O papel estratégico representado pela cadeia produtiva de alimentos na sustentabilidade das sociedades humanas faz com que a segurança alimentar seja uma meta incontestável. A percepção pública sobre a segurança alimentar, contudo, varia de acordo com a renda média da população. Em países ou regiões com baixa renda per capita, segurança alimentar é mais freqüentemente interpretada como o fornecimento de alimentos suficientes para garantir a sobrevivência, reduzindo o risco de fome, enquanto sociedades de economia desenvolvida associam segurança alimentar com a integridade dos alimentos e a garantia de que os procedimentos de produção e industrialização não agreguem riscos à saúde dos consumidores (RITSON & MAI, 1998). Otimização do uso de recursos O controle de qualidade do leite deve contribuir necessariamente para a redução dos custos, a racionalização dos investimentos e o aumento da rentabilidade do negócio leiteiro. Freqüentemente a implementação de sistemas organizados de qualidade total como a Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle (APPCC) sofre rejeição tanto por parte de produtores primários quanto de indústrias sob a alegação de que o ônus da adoção do sistema é superior ao bônus por ele proporcionado. Isto se deve principalmente pelo desconhecimento tanto da metodologia em si quanto das razões pelas quais as medidas devem ser implementadas. Sem a identificação clara dos benefícios do investimento, o compromisso com a implementação do APPCC torna-se muito vulnerável. Interessados em se aprofundar no assunto podem se valer de uma discussão sobre o uso do APPCC na cadeia do leite apresentada por BRITO & BRITO (2002). A Tabela 2 apresenta formas de se perceber os benefícios da implementação de um sistema de controle de qualidade na cadeia produtiva do leite, desde que o seu objetivo maior seja alcançado: a melhoria significativa na qualidade do leite e seus derivados. Além de garantir a segurança alimentar da população, o controle da qualidade, quando realizado de forma integrada a um programa de melhoria da qualidade do leite, traz retornos financeiros a toda a cadeia produtiva. Conquista e manutenção de mercados Outra grande razão para se implementar o controle de qualidade na cadeia láctea é a necessidade de atendimento das demandas crescentes dos diferentes mercados. Como escreve MONARDES (2004), Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde 87 Tabela 2. Exemplos de como medidas de controle que proporcionem a melhoria da qualidade do leite podem otimizar o uso de recursos tanto nas fazendas leiteiras quanto nas indústrias de laticínios. Elo Fazenda leiteira Redução de custos Racionalização de investimentos • • Descartes e condenações por leite ácido e resíduos • • Manejo ambiental • • Despesas com atendimentos clínicos veterinários • Reposição de vacas mais • tardia • Transporte a granel • • • Descartes e condenações por leite ácido e resíduos Indústria de • Manejo ambiental laticínios • Transporte a granel • Perdas por problemas na matéria prima • • • • • Prevenção de doenças vesus Medicamentos Balanceamento das dietas • Monitoramento da qualidade: prevenção de problemas e/ou penalidades Maior nível de informação: manejo racional dos recursos Qualificação dos recursos humanos Pagamento do leite por qualidade: clara sinalização ao fornecedor sobre a matéria prima desejada Logística de captação da matéria • prima orientada para o produto • final • Tecnologias mais sofisticadas • Planejamento a médio e longo prazos Maior nível de informação: manejo racional dos recursos Qualificação dos recursos humanos Aumento da rentabilidade Pagamento do leite por qualidade: possibilidade de agregar valor ao produto Rendimento industrial Novos produtos Novos mercados Padrão superior (exportação) Fonte: elaboração do autor. “...Os consumidores exigem sanidade e qualidade dos alimentos. Conseqüentemente, a reação dos fornecedores deve ser criar sistemas de controle de qualidade e de certificação (garantia) de qualidade...Sabe-se que assim como é muito difícil ganhar espaço no mercado internacional, também é muito fácil perdê-lo se o produto carece de qualidade.” A importância do controle de qualidade como ferramenta de comercialização cresce à medida que os atributos dos produtos passam a ser afetados a ponto de permitir a sua diferenciação por parte do consumidor. Produtos como queijos, iogurtes e bebidas lácteas podem ser diferenciados pelo valor organoléptico (sabor, aparência, odor, textura), pelo valor nutricional (composição) e pelo grau de segurança (qualidade microbiológica, presença de resíduos). A possibilidade de agregação de valor é facilmente perceptível, o que permite o fortalecimento das marcas. 88 Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde A percepção sobre qualidade do público consumidor pode ser um complicador da lógica de que todo avanço em qualidade traduz-se em aumento da satisfação do consumidor. Um bom exemplo disso é o mercado informal de queijos no Brasil, que conta com um público fiel e convicto de que o produto “colonial” é mais “puro” que o industrializado sob inspeção oficial, mesmo que as evidências cientificas apontem que estes consumidores estão expostos a um risco bem maior de zoonoses e outros problemas de saúde (ABRAHÃO et al., 2005; NERO et al., 2003; OLIVAL et al., 2003). Como regra geral, no entanto, pode-se pressupor que a maioria dos consumidores tende a consumir alimentos lácteos de maior valor agregado sempre que têm oportunidade. Atualmente até mesmo as commodities tendem a ser discriminadas pelo seu valor intrínseco. Isto é especialmente verdade para as commodities alimentícias destinadas a mercados externos. A seleção obviamente não é realizada na gôndola do supermercado, mas no acesso aos mercados. Barreiras não tarifárias determinam uma série de pré-requisitos relacionados à qualidade das matérias primas e ao controle dos procedimentos adotados durante as fases de manipulação e processamento, os quais devem ser atendidos por aquelas empresas e/ou países que desejarem entrar na disputa por aqueles mercados. Cada vez mais o controle de qualidade e os processos de certificação de alimentos são passaportes para mercados cada vez mais exigentes. Finalmente, a melhoria da qualidade do leite, particularmente do leite cru, abre um leque de novas possibilidades à indústria processadora, até então limitada a trabalhar com produtos de baixo valor agregado. Inúmeros são os efeitos deletérios da baixa qualidade da matéria prima sobre a qualidade dos produtos lácteos (GIGANTE, 2004), não permitindo que a indústria de laticínios usufrua dos benefícios das tecnologias de processamento mais avançadas disponíveis. Se o leite cru a ser processado possui alta contagem de células somáticas, as alterações na composição do leite advindas do processo inflamatório na glândula mamária alteram as características organolépticas dos produtos lácteos, além de afetar negativamente a sua estabilidade, a vida de prateleira e o rendimento industrial. A fabricação de certos produtos de maior valor agregado somente se viabiliza se houver garantia do fornecimento de matérias primas com padrão de qualidade adequado e em quantidade suficiente. Quem deve controlar a qualidade Apesar da qualidade dos produtos lácteos depender de um esforço conjunto da cadeia produtiva do leite (Tabela 1), onde falhas em qualquer dos elos Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde 89 1 compromete o resultado final, na maioria dos países cabe à indústria de laticínios a condução do processo. Há várias razões que corroboram esta convicção: A indústria só tem benefícios com a melhoria da qualidade do leite (aumento da segurança alimentar, redução de custos, redução de perdas, aumento da vida de prateleira dos lácteos, agregação de valor aos produtos, uso seletivo da matéria prima e viabilização da exportação); A indústria é responsável pelas decisões estratégicas da cadeia (onde, quando, como e quanto investir); A indústria é o único elo que depende totalmente do sucesso do negócio leiteiro (produtores rurais, varejo e consumidores diversificam); A indústria detém mais informação sobre a importância e as conseqüências da melhoria da qualidade do leite; e A indústria é o elo da cadeia que efetivamente sofre permanente vigilância pelos órgãos de inspeção governamentais. Contrastando com a argumentação acima, está arraigado em boa parte dos integrantes da cadeia o conceito de que o controle de qualidade é atribuição “exclusiva” do poder público, o qual deve estabelecer normas rígidas e exercer poder de polícia para que as mesmas sejam cumpridas. Tal postura acaba por reduzir a responsabilidade de cada elo e invariavelmente não traz bons resultados, pois não há como a fiscalização acompanhar todos os pontos críticos de controle necessários desde a propriedade rural até a mesa do consumidor. Ainda que na seção anterior tenha ficado bem estabelecido sua dimensão econômica, qualidade depende primeiramente de uma mudança cultural. Princípios básicos do controle de qualidade Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle (APPCC) O sistema APPCC é uma abordagem universalmente aceita que ataca os perigos biológicos, químicos e físicos aos alimentos por meio de controle e ações preventivas, ao invés de inspeção e testes dos produtos finais. Baseado nos conceitos de qualidade total de W. E. Deming, na década de 1950, e do próprio APPCC desenvolvido na década de 1960 pela Companhia Pillsbury para 1 Há conjunturas em que essa regra não se aplica, como no caso do Canadá, onde a cadeia amadureceu um acordo que resultou no atual sistema de cotas de produção e transformou as federações de produtores nos executores da política nacional de captação, negociação e controle de qualidade do leite cru. 90 Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde o exército norte-americano e para a NASA (United States National Aeronautics and Space Administration), o APPCC foi adotado pela Comissão do Codex Alimentarius em 1993, sendo recomendada a sua adoção nas cadeias alimentares desde então (FAO, 1998). Os sete princípios contemporâneos do APPCC são (CULLOR, 1997): 1. identificação dos perigos, severidades e riscos (químicos, microbiológicos e físicos); 2. estabelecimento dos pontos críticos de controle (PCCs) para os perigos identificados; 3. estabelecimento dos critérios (limites críticos) para cada PCC; 4. adoção de procedimentos de monitoramento rotineiro para os PCCs; 5. adoção das medidas corretivas, quando o critério não for atingido; 6. estabelecimento de um sistema efetivo de registro de informações para o programa; e 7. estabelecimento de um sistema de verificação para documentar que o programa de APPCC está sendo seguido. CULLOR (1997) também apresenta os doze passos para a implementação do APPCC nas cadeias alimentares: 1. Defina uma equipe local e multidisciplinar para liderar o programa de APPCC; 2. Descreva o(s) produto(s) final(is) e o se meio de distribuição (p. ex., requisitos de formulação e processamento); 3. Identifique o provável uso do alimento e a população consumidora alvo; 4. Desenvolva um fluxograma que descreva o processo de produção e distribuição; 5. Verifique o fluxograma; 6. Implemente o princípio 1 – identifique os perigos, severidades e riscos preparando uma lista dos pontos no processo de produção em que ocorrem perigos químicos, físico e microbiológicos e comece a descrever medidas preventivas; 7. Aplique o princípio 2 – identifique os PCCs no processo produtivo; 8. Adote o princípio 3 – estabeleça limites críticos que disparem a implementação de medidas preventivas associadas a cada PCC identificado; 9. Implemente o princípio 4 – estabeleça as exigências de monitoramento e organize os procedimentos para o uso dos resultados do programa de monitoramento (Meta: usar os resultados do programa de monitoramento para ajustar procedimentos e manter controle sobre o processo de produção); 10. Organize o princípio 5 – crie ações corretivas a serem iniciadas quando o programa de monitoramento indicar desvios em relação aos critérios ou limites críticos estabelecidos; Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde 91 11. Mantenha o princípio 6 – estabeleça procedimentos efetivos de registro de informações que atestem a implementação do sistema de APPCC (p. ex., o plano de APPCC, os dados gerados durante o processo de produção etc.); e 12. Institua o princípio 7 – estabeleça procedimentos de verificação de que o sistema de APPCC está trabalhando corretamente (p. ex., auditorias internas e externas, revalidações periódicas do sistema etc.). Apesar do sistema APPCC ser a metodologia recomendada e mais abrangente a ser adotada nos diversos elos da cadeia produtiva, o presente trabalho propõe-se a discutir com mais detalhe a questão da qualidade do leite cru e seu impacto na competitividade da indústria láctea, usando como ilustração o caso brasileiro. Controle de qualidade do leite cru: o caso brasileiro O agronegócio do leite tem experimentado uma grande transformação no Brasil a partir da década de 1990, podendo ser apontados como os principais indicadores dessa transformação: expansão na produção de leite de quase 70% em pouco mais de uma década (de 15,7 para 25 bilhões de litros entre 1994 e 2005), rápido desenvolvimento da produção primária em novas regiões do país, aumento da concentração nos setores industrial e varejista, redução da participação do setor cooperativista na industrialização de leite, crescimento do mercado de commodities (principalmente leite UHT) e ingresso do Brasil no mercado intenacional de lácteos na condição de exportador (DÜRR et al., 2005). Diante dessa verdadeira “revolução”, o setor leiteiro no Brasil está constatando que precisa urgentemente buscar eficiência em todas as suas atividades, tendo que compensar décadas de atraso tecnológico em poucos anos de modernização para que a pressão competitiva do mundo globalizado não comprometa a viabilidade do negócio em expansão. Um dos “pontos críticos” rapidamente identificados foi a qualidade da matéria prima produzida no país. Tal percepção motivou um grande debate nacional em torno do impacto social de se impor exigências tecnológicas mais rígidas para a produção primária de leite uma vez que a mesma ocorre majoritariamente em empresas familiares de pequena escala, causando supostamente a aceleração da exclusão no meio rural. Prevaleceu, contudo, o senso comum de que não se pode abrir mão da segurança alimentar da população consumidora e nem comprometer a competitividade da indústria nacional, e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) publicou a Instrução Normativa 92 Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde No 51/2002 (IN51/2002), constituída pelos regulamentos técnicos sobre produção, identidade e qualidade dos diversos tipos de leite no país, bem como a coleta e o transporte a granel de leite cru refrigerado, a qual passou a vigorar em julho de 2005 (DÜRR, 2004). No tocante à matéria prima, os fundamentos da IN51/2002 são a sanidade animal, a higiene, a refrigeração e a nutrição animal. Ou seja, a qualidade do leite cru que chega à indústria deve ser garantida pela ordenha higiênica de vacas sadias e bem alimentadas, seguida de imediata refrigeração do leite na propriedade rural e de seu transporte a granel em tanques isotérmicos até a indústria. Nenhum conceito novo, portanto, foi estabelecido. O que as normas trouxeram de avanço real foi o estabelecimento de um programa de controle da qualidade do leite produzido através do monitoramento laboratorial mensal do leite de cada fazenda leiteira. Para viabilizar o programa foi criada pelo Mapa a Rede Brasileira de Laboratórios de Controle de Qualidade do Leite (RBQL) formada por laboratórios de instituições de ensino e pesquisa nas principais regiões produtoras do país credenciados para executar as análises laboratoriais previstas na IN51/2002. Além dos serviços laboratoriais prestados, as entidades credenciadas à RBQL emprestam ainda os talentos de seus recursos humanos para formar uma massa crítica que assessora a cadeia na implementação do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite (PNQL). Apesar de estarem em vigor os regulamentos técnicos previstos na IN51/2002, o controle efetivo da qualidade do leite cru produzido no país ainda está em plena fase de implantação. A Tabela 3 apresenta algumas das maiores dificuldades a serem superadas para que o PNQL seja implementado de forma plena. Cabe aqui retomar o aspecto anteriormente enfatizado sobre o papel de liderança que o setor industrial deve assumir no processo de implantação do PNQL. Percebe-se ainda no Brasil a noção de que a iniciativa das transformações deve ser do Governo Federal, havendo inclusive reivindicações de que o poder público arque com o ônus dos investimentos nas propriedades rurais (refrigeradores) e nos programas de controle de qualidade. Parte-se de um conceito distorcido de que o Mapa está “favorecendo grandes empresas” com as normas propostas, quando está simplesmente cumprindo com seu dever de manter uma legislação sanitária moderna e de acordo com as necessidades contemporâneas de segurança alimentar. Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde 93 Tabela 3. Dificuldades encontradas no momento atual de implementação do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite (PNQL). Medidas a serem adotadasa Programas sistemáticos e compulsórios de treinamento, sob responsabilidade da indústria de laticínios Estabelecer um plano de Algumas regiões do país ainda têm dificuldades na acompanhamento mais tolerante logística de escoamento e no fornecimento de energia para as regiões atingidas até que Infra-estrutura nas elétrica, e boa parte dos produtores da agricultura as condições de infra-estrutura propriedades rurais sejam saneadas e linhas de crédito familiar ainda não dispõe de equipamentos de mais acessível para investimentos refrigeração adequados na agricultura familiar Indústrias realizarem o Cadastro Nacional cadastramento de seus de Produtores de Em fase final de testes pelo Mapa fornecedores assim que o sistema Leite estiver operando Tendo em vista as estimativas de que haja no país entre 500 mil e 1,6 milhões de produtores de leite, a Ampliar a capacidade instalada dos Infra-estrutura da RBQL não possui capacidade instalada para atender laboratórios já credenciados à RBQL RBQLb toda a demanda prevista pela IN51/2002, especialmente para a determinação da CBT Publicação, em caráter de Ainda não se estabeleceu em definitivo quais as Definição dos penalidades que serão aplicadas nem o destino a ser urgência, dos critérios de critérios de julgamento a serem adotados pelos dado ao leite que se apresentar fora dos limites julgamento estabelecidos na IN51/2002 fiscais de inspeção “Ponto crítico” Situação em maio de 2006 Ainda há um grande desconhecimento sobre os Capacitação dos fatores de comprometem a qualidade do leite e sobre recursos humanos as tecnologias disponíveis para a resolução de problemas entre produtores e transportadores a Propostas pelo autor. Já há um projeto tramitando com essa finalidade. b Mesmo tendo avançado muito nos últimos anos, a cadeia precisa acelerar seu processo de modernização caso queira aproveitar as grandes oportunidades de inserção no mercado internacional de lácteos que se vislumbram. O Brasil tem uma grande vantagem competitiva que o diferencia, que é a capacidade de ampliar sua produção mantendo os custos abaixo dos competidores. Porém o padrão dos produtos exportados não vai satisfazer os mercados mais exigentes se não houver uma significativa melhoria na qualidade da matéria prima. Nos primeiros dez meses de monitoramento oficial realizado pela RBQL, mais de 50% das amostras de leite cru analisadas apresentam CBT acima de 1 x 106 UFC/mL, atestando as precárias condições de higiene e conservação na maioria das fazendas leiteiras do país. O diagnóstico indica a necessidade de implementação urgente de medidas corretivas, e cabe à indústria a iniciativa. A 94 Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde Tabela 4 apresenta sugestões de como a indústria pode exercer sua liderança e mover a cadeia como um todo para a melhoria da qualidade do leite. Tabela 4. Exemplos de ações catalizadoras que a indústria pode adotar para acelerar a melhoria da qualidade do leite no Brasil. Gargalo Ações da indústria • Rígido controle da temperatura do leite na coleta • Orientação técnica sobre higiene na ordenha, refrigeração, limpeza e Elevada CBT no leite cru manutenção de equipamentos refrigerado • Treinamento e comprometimento dos transportadores • Adoção de sistema de advertências e penalidades no preço do leite • Orientação técnica sobre prevenção da mastite Elevada CCS no leite cru refrigerado • Adoção de sistema de advertências e penalidades no preço do leite • Orientação técnica sobre prevenção da mastite e controle de resíduos • Uso de métodos de detecção de resíduos antimicrobianos sensíveis a Presença de resíduos de diferentes tipos de antibióticos, uma vez que no Brasil se permite a antimicrobianos administração de diferentes grupos de drogas • Adoção de sistema de penalidades envolvendo preço do leite e descarte de cargas condenadas • Orientação técnica sobre nutrição animal Baixos teores de sólidos no • Rígido controle de fraudes (água, soro, desnate) leite cru refrigerado • Adoção de sistema de bonificações pelos sólidos no preço do leite • Adoção de um programa de roteirização da coleta do leite que impeça o transportador de atuar como intermediário • Terceirização da coleta de amostras nas propriedades para profissionais desvinculados dos tranportadores Ausência de um programa integrado de melhoria da • Classificação dos produtores em função da qualidade do leite para a qualidade do leite destinação da matéria prima de acordo com as necessidades industriais • Criação de um sistema de divulgação rápida dos dados de qualidade para que ações corretivas sejam adotadas no tempo certo • Implantação do sistema APPCC em todas as etapas do processo produtivo Comentários finais Controle de qualidade envolve uma mudança cultural em toda a cadeia produtiva, pois além de depender da conscientização dos agentes envolvidos, implica repensar todos os processos, práticas e hábitos já estabelecidos. As resistências, portanto, são naturais. Contudo, a opção pela qualidade é hoje a opção pela sobrevivência da atividade. A explosão demográfica e a globalização dos mercados transformaram irreversivelmente a maneira de se produzir alimentos no mundo, e hoje temos que conviver com preocupações antes irrelevantes sobre a segurança dos alimentos. A cadeia produtiva do leite no Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde 95 Brasil acordou tarde para o seu potencial competitivo, mas hoje tem na melhoria da qualidade do leite o seu grande teste para conquistar espaços importantes no cenário mundial e inibir a concorrência no mercado interno. Referências bibliográficas ABRAHÃO, R.M.C.M.; NOGUEIRA, P.A.; MALUCELLI, M.I.C. O comércio clandestino de carne e leite no Brasil e o risco da transmissão da tuberculose bovina e de outras doenças ao homem: um problema de saúde pública. Archives of Veterinary Science v. 10, n. 2, p. 1-17, 2005. BRITO, J. R. 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