No 6
Novembro
2007
Nesta Edição
A gratuidade de justiça que transforma o
Poder Judiciário em “Porta da Esperança” Pág. 1
Os limites da inversão do ônus da prova no
Código de Defesa do Consumidor Pág. 7
Breves comentários acerca das ações visando a reposição de
perdas inflacionárias causadas pelos planos econômicos Pág. 4
A gratuidade de justiça que
transforma o Poder Judiciário
em “Porta da Esperança”
P
oder-se-ia, pela leitura do título, imaginar um conteúdo oposicionista à Lei 1.060/50, instituidora
da concessão de gratuidade de justiça. Todavia, o
que se espera com a redação do presente artigo é
demonstrar justamente o contrário, ou seja, que a
mencionada legislação é valiosíssima como forma
de zelar pelo acesso à Justiça e que, nos últimos
anos, vem sendo mal aplicada e interpretada, culminando na criação de um enorme “balcão de negócios judiciais”
1. A Evolução legislativa:
Aproveitando os escritos de João Batista Damasceno1, explica-se a evolução dos dispositivos legais
acerca da matéria.
Inicia-se o tratamento legislativo através da Lei
1.060/50 que, em sua redação original do art. 4º e
§1º, exigia a comprovação de rendimento e atestado
de pobreza expedido por autoridade policial ou Prefeito Municipal para o gozo da gratuidade de justiça.
Posteriormente, sobreveio a Lei 6.654/79 que inse-
Paulo Maximilian W. M. Schonblum*
[email protected]
riu o §3º e possibilitou a substituição do atestado de
pobreza pela apresentação da carteira de trabalho,
assegurando a gratuidade ao interessado que percebesse salário igual ou inferior ao dobro do salário
mínimo legal regional.
Com a edição da Lei 7.115/83, foi abolido o atestado
de pobreza e instituída a auto-declaração de hipossuficiência econômica, com imposição de presunção
de veracidade ao conteúdo declarado, ou seja, desde
então, a declaração do próprio interessado passou a
atribuir-lhe o direito subjetivo à gratuidade de justiça,
ante a presunção legal de pobreza. Por fim, com a
edição da Lei 7.510/86, a redação do art. 4º e seus
* Mestre em Direito. Professor de graduação e pós-graduação da Universidade Estácio de Sá. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. Professor do curso de pós-graduação do IBMEC-RJ. Professor do curso de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense – UFF. Membro do IAB. Advogado associado a Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados Associados.
!
João Batista Damasceno, Acesso à justiça, gratuidade e essencialidade da prestação jurisdicional, texto colhido da internet, do site http://www.tribunadoadvogado.com.br/content.asp?cc=5&codedicao=14,
em 13.08.2007.
1
§§ foi novamente alterada, passando a vigorar com
os seguintes dizeres:
”Art. 4º A parte gozará dos benefícios da
assistência judiciária, mediante simples
afirmação, na própria petição inicial, de
que não está em condições de pagar as
custas do processo e os honorários de
advogado, sem prejuízo próprio ou de
sua família.”
cia entre os entendimentos adotados pois, enquanto
alguns entendiam que a simples declaração cumpria
e atendia o mandamento legal, outros vislumbravam
a possibilidade de, ainda assim, poder se instaurar
uma “investigação” para saber se a parte fazia, ou
não, jus ao benefício.
Deste modo, restou pacificado que a comprovação
de hipossuficiência se fazia mediante simples afirmação do interessado, ausente qualquer formalidade ou
necessidade de comprovação.
Em que pese um vacilo inicial da jurisprudência2, consolidou-se o posicionamento (entendido como acertado) de que a declaração mencionada no artigo 4º da
Lei 1.060/50 constitui presunção legal iuris tantum,
ou seja, desafiadora de prova em sentido contrário3.
Nesse sentido foi editado o Enunciado 39 da Súmula
de Jurisprudência Predominante do TJRJ, verbis: “É
facultado ao Juiz exigir que a parte comprove a insuficiência de recursos, para obter concessão do benefício da gratuidade de justiça (art. 5º, inciso LXXIV, da
CF), visto que a afirmação de pobreza goza apenas
de presunção relativa de veracidade”.
2. Surgimento da controvérsia quanto à comprovação da hipossuficiência:
3. Dissenso quanto à forma de comprovação da
hipossuficiência:
Mas, com a facilidade extremada (instituída pela Lei
7.510/86) de se obter a concessão da gratuidade de
justiça, surgiram logo os casos de abuso, visto que,
se por um lado, a Lei 1.060/50 havia realizado um
verdadeiro avanço no plano social do Estado Democrático de Direito, tornando efetivo o acesso à Justiça
para os mais necessitados, por outro, a concessão
da gratuidade de forma imoderada também fez surgir
uma verdadeira “caçada às indenizações” pois, sem
custos e sem riscos, brasileiros de pouco caráter e
ambição desmedida passaram a aventurar-se ajuizando Ações contra tudo e todos (sempre se valendo
da propalada gratuidade) na busca de um punhado
de dinheiro a troco de nada.
Ainda que se tenha admitido a possibilidade de – após
a declaração de hipossuficiência – se comprovar a
desnecessidade de utilização da prerrogativa, nunca
houve consenso quanto à melhor forma para se aferir
a real situação do pretenso hipossuficiente.
§ 1º “Presume-se pobre, até prova em
contrário, quem afirmar essa condição nos
termos desta lei, sob pena de pagamento
até o décuplo das custas judiciais.”
Desta feita, passaram as partes tidas por prejudicadas a utilizar a ferramenta judicial apropriada (impugnação à gratuidade) entregando nas mãos dos Magistrados a tarefa de decidir acerca da necessidade
(ou não) de concessão da mencionada prerrogativa.
E, nesta seara é que foi verificada a maior discrepân2
3
O que se vê na maioria dos casos, é a determinação
judicial para que a parte comprove sua situação financeira através da última declaração do Imposto de
Renda enquanto que, de forma mais exigente, alguns
magistrados ordenam a vinda aos autos de outros
documentos, tais como extratos de conta-corrente,
faturas de cartões de crédito etc..
Não deve o Juiz contentar-se com a apresentação
de declaração de Imposto de Renda pois, como se
sabe, a esta não é atribuído valor de prova absoluta
por tratar-se de tributo com lançamento por declaração (art. 147 CTN4), ou seja, a própria parte efetua
sua declaração. A título de exemplificação, nada impede que uma pessoa efetue a declaração de isenta
Processual civil - Locação - Justiça gratuita - Declaração firmada pela postulante - Inexigibilidade de outras providencias. - É suficiente, para demonstração da condição de beneficiaria da gratuidade
judiciária, simples declaração firmada pela requerente atestando “ser pobre nos termos da lei”. - recurso provido. (STJ – 5ª Turma, REsp. 119.027/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 06.05.97)
“1. Nos termos dos arts. 2º, parágrafo único, e 4º, § 1º, da Lei 1.060/50, a assistência judiciária gratuita pode ser pleiteada a qualquer tempo, desde que o requerente comprove sua condição de hipos-
suficiente, bastando-lhe, para obtenção do benefício, sua simples afirmação de que não está em condições de arcar com as custas do processo e com os honorários advocatícios, sem prejuízo de seu
próprio sustento ou de sua família. 2. Tal direito, todavia, não é absoluto, uma vez que a declaração de pobreza implica simples presunção juris tantum, suscetível de ser elidida pelo magistrado se
tiver fundadas razões para crer que o requerente não se encontra no estado de miserabilidade declarado.(...)”(STJ – 5ª T., REsp. 539.476/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 05.10.2006); “Direito
Processual Civil. Gratuidade da justiça. Lei n.º 1.060/50. Benefício indeferido com base em elementos que ensejaram a conclusão de que o postulante não era pessoa juridicamente pobre. Recurso
especial. Reexame de prova. I – A presunção decorrente do art. 4.º da Lei n.º 1.060/50 não é absoluta e pode ser afastada com base nos elementos de convicção coligidos durante o curso do processo.
(...) III – Agravo de instrumento desprovido.” (STJ – 3ª T., AGA 498234 / RJ, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 24.05.2004). “PROCESSO CIVIL – GRATUIDADE DA JUSTIÇA (LEI 1.060/50). 1.
A presunção contida no art. 4º da Lei 1.060/50, quanto à declaração de pobreza, dispensa o requerente de comprovação. 2. Possibilidade de exigir-se prova quando assim o entender o magistrado, ou
quando houver impugnação da parte contrária. 3. O juiz pode, de ofício, exigir comprovação, se não se satisfez com a mera afirmação.4. Recurso especial provido.” (STJ – 2ª T., REsp. 465966/RS, Rel.
Min. Eliana Calmon, j. 09.12.2003).
4
CTN - Art. 147: “O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à autoridade administrativa informações
sobre matéria de fato, indispensáveis à sua efetivação.”
2
e depois a corrija através da declaração retificadora,
juntando, contudo, aos autos, a primeira e equivocada declaração, isso, sem falar no caso dos que sonegam o imposto, efetuando declarações de isentos e,
então, nesse caso, a sonegação seria o passaporte
para a gratuidade.
Entende-se que, para evitar controvérsias, a comprovação da necessidade deve ser a mais ampla possível, reduzindo-se, com isso, a utilização do benefício
a aqueles que efetivamente necessitem, pois, como
parece não ser observado por alguns, não se trata de
possibilitar à parte alguma economia para manutenção de padrão de vida e sim de garantir o acesso à
Justiça dos que realmente não possuem meios para
tanto.
Lamentavelmente, o que se tem visto na prática forense é um tremendo abuso nas solicitações e nas
concessões de gratuidade de justiça5, podendo ser
citados casos de demandantes – moradores de apartamentos de luxo6 - que discutem nulidades de cláusulas em contrato de financiamento para aquisição de
carros importados, ou revisão de valores em contratos de cartão de crédito várias vezes utilizados para
compra de passagens aéreas, hospedagens, pagamento de restaurantes finos e boates “da moda”.
4. O acesso às Portas (“da esperança”) do Judiciário:
Dessa forma, sem os necessários critérios à concessão da gratuidade de justiça, restam abertas as portas
(“da esperança”!!!) do judiciário8 para todos aqueles
que desejarem (precisando - na maioria dos casos
- de apenas uma declaração de isento de IR) tentar
a sorte em busca de (no mais das vezes imerecida)
indenização. É o caso clássico das chamadas aventuras judiciais, assim consideradas as ações frívolas
e torpes que, de maneira despudorada, assoberbam
o Poder Judiciário que não pode eximir-se de julgar
(art. 5º, XXXV, CRFB/88) mas, por sua vez, deveria
estar ocupado cuidando de causas relevantes.
Conclusão:
Ante a ausência de rigor na concessão do benefício,
fica o mesmo desvirtuado, criando situação que, a
despeito de beneficiar alguns espertalhões, causa
prejuízo à parte ex adverse (não recebe sucumbência) e ao próprio erário público (não há recebimento de custas e taxas), fazendo crescer o número de
processos inúteis, despertando um sentimento de litigiosidade e, numa visão macro – que nunca pode
ser descartada – gerando prejuízo às empresas acionadas que, como se sabe, repassarão os mesmos à
coletividade.
A gratuidade de justiça é tema relevante e dessa forma deve ser tratado, somente devendo ser concedido o benefício aos realmente necessitados.
Destina-se a gratuidade de justiça a permitir o acesso àqueles desprovidos de condições materiais mínimas para tanto e, torna-se, então, óbvio que tal
concessão aos mais favorecidos produz efeitos que
terminam por criar verdadeiro (e injusto!) desequilíbrio, pois, como falado linhas acima, eximem a parte
de custos e riscos, custos para ingresso com a ação7
e riscos de arcar com os ônus da sucumbência (art.
20 do CPC).
“(...) Enfim, está na hora do Judiciário parar de passar a mão pela cabeça de consumidores inadimplentes e que se passam por idiotas hipossuficientes para receber indenizações indevidas, sempre sob o
manto da gratuidade de justiça, em flagrante enriquecimento sem causa. O CDC não veio a lume para isto.” (TJRJ – 9ª Câm., Apel. 2007.001.41670, Rel. Des. Paulo Maurício Pereira, j. 18/09/2006)
Sobre o assunto, duas decisões antagônicas: “Apelação cível. Impugnação à gratuidade de justiça. (...) Inexistência de qualquer prova de que a apelada não se enquadre na definição de hipossuficiente da Lei 1.060/50. Deferimento do benefício em discussão. Para análise do benefício, basta analisar o patrimônio em abstrato da parte, mas sim sua real possibilidade de arcar com as despesas
processuais, sem que isto represente qualquer privação para si ou para sua família. Se a parte contrária impugna a concessão da gratuidade, deve trazer prova de suas alegações, não bastando afirmar
que a parte proprietária de imóvel de luxo, até porque foram apresentadas declarações de isento à SRF. Além do mais, se parte beneficiada vier a adquirir melhor situação financeira, o art. 12 da Lei
1060/50 permite a cobrança dos ônus da sucumbência. Sentença que merece ser integralmente mantida. Recurso não provido.” (TJRJ – 12ª Câm., Apel. 2006.001.50267, Rel. Des. Nanci Mahfuz,
j. 27.03.2007); “AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPUGNAÇÃO À GRATUIDADE DE JUSTIÇA - PROCEDÊNCIA (...)O artigo 4° da Lei n.° 1.060/50 estabelece uma presunção relativa de veracidade
da afirmação, feita pelo requerente do benefício de gratuidade de justiça, de que não tem condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado sem prejuízo do sustento próprio ou
de sua família. Hipótese em que, além de a agravante, na procuração, se qualificar como atriz, a decisão impugnada assinalou que os documentos acostados aos autos comprovam que ela mora em
apartamento de luxo na Barra da Tijuca e sua condição financeira lhe permite o pagamento de contas de telefone na faixa de R$ 400,00. Recurso conhecido, mas improvido.” (TJRJ – 18ª Câm., Agr.
2005.002.10843, Rel. Des. Cássia Medeiros, j. 19.07.2005)
7
ou pagamentos ao final em caso de parte Ré perdedora
8
“Nesse contexto também se observa certo grau de exploração do problema com a chamada ‘indústria do dano moral’ formada por pessoas que vêm a Juízo, geralmente abusando da cobertura constitucional
da justiça gratuita, não pagam as custas, não precisam se preocupar com a sucumbência contrária e apresentam pleitos nos quais, quando muito, observa-se que sofreram mero incômodo, um simples
inconveniente e desses fatos mínimos procuram extrair um quadro de enorme humilhação para faturarem ‘algum’” (LOEWENKRON, Rudi. Arquivos de Consumo e o dano moral. Revista Nada Consta,
a. 4, n. 37, set/99)
5
6
3
Breves comentários
acerca das ações visando
a reposição de perdas
inflacionárias causadas pelos
planos econômicos
Mirela Saár Câmara*
mirela @cgvadvogados.com.br
N
a esteira das palavras do Juiz Cláudio Augusto Annuza Ferreira, em sentença proferida no processo nº.
2007.800.084063-9, o que se viu em maio último foi uma verdadeira corrida aos tribunais no afã de distribuir ações buscando reaver as perdas causadas pelos planos econômicos
de governos passados antes do término do prazo prescricional, confirmando a máxima de que ‘o brasileiro deixa tudo
para a última hora’, em especial com relação ao Plano Bresser, cujo prazo expirava em 31 de maio de 2007.
Para entender melhor a questão convém explicar o que
mudou na forma de remuneração do capital depositado
nas cadernetas de poupança da época.
1. Relato Histórico
O Plano Bresser foi lançado no governo do presidente
Jose Sarney como mais uma tentativa de conter a inflação e estabilizar a economia do país. Com a implementação do plano, o indexador da poupança mudou
de Obrigação do Tesouro Nacional (OTN) para Letra do
Banco Central (LBC). Assim, ficou estabelecido que durante a primeira quinzena de junho de 1987 a remuneração da aplicação se daria pela OTN, passando, posteriormente para LBC.
Como a LBC rendia menos, na época teve variação de
18,02% contra 26,06% da OTN, os bancos deram o retorno financeiro a todos os seus correntistas utilizando o
novo cálculo. Portanto, aqueles que tinham caderneta de
poupança com aniversário entre os dias 1º e 15 de junho
ficaram prejudicados passando, então, a pleitear o direito
de reaver a diferença dos rendimentos, de 8,04%, atua-
lizada monetariamente e com aplicação dos juros legais
desde aquela época (mesmo nos casos em que a conta já
tenha sido encerrada).
2. A “avalanche” de ações judiciais
As ações visando reaver as perdas não se constituem em
novidade nos Tribunais, sendo que muitas delas já estão
tramitando há certo tempo. No entanto, somente após a
divulgação massificada em praticamente todos os telejornais nacionais de que a prescrição do direito de pleitear
os expurgos inflacionários ocorreria em maio deste ano foi
que o assunto voltou à tona e milhares de brasileiros decidiram buscar o Judiciário, levando a uma “enxurrada” de
ações distribuídas antes do fim do prazo.
3. Considerações
3.1. A legitimidade passiva das
Instituições Financeiras
Um dos primeiros pontos suscitados pelas instituições financeiras foi a sua ilegitimidade para figurar no pólo passivo
das ações judiciais abordadas neste artigo, sob o argumento de que a União deveria responder por tais reposições, já
que as mudanças na política econômica nacional se deram
em decorrência de planos governamentais.
Tal questão, no entanto, já se encontra superada pela
jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça1, eis que se verifica evidente a relação jurídica de
direito material existente entre o correntista e a instituição financeira.
*Advogada associada à Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.
1
“Recurso especial. Direito econômico. Caderneta de poupança. Meses de junho de 1987 e janeiro de 1989. Prescrição. Ação pessoal. Prazo vintenário. Legitimidade passiva “ad causam” da instituição
financeira. Aplicação do percentual de 42,72%. Cruzados novos bloqueados. Março a julho de 1990. Fevereiro de 1991. Correção monetária. Legitimidade passiva. Instituição financeira depositária. - Nas
ações de cobrança de expurgos inflacionários em caderneta de poupança, o pedido de incidência de determinado índice de correção monetária constitui-se no próprio crédito, e não em acessório, sendo,
descabida, assim, a incidência do prazo qüinqüenal do artigo 178, §10, III, do Código Civil. Na espécie, tratando-se de ação pessoal, o prazo prescricional é o vintenário. - Esta egrégia Corte pacificou
o entendimento de que a instituição financeira com quem se firmou o contrato de depósito é quem tem legitimidade passiva para responder por eventual prejuízo na remuneração de conta de poupança
em junho de 1987 e janeiro de 1989” (STJ, 4ª T., RESP 149255-SP, Rel. Min. César Asfor Rocha, j. 26/10/1999); no mesmo sentido, tem-se ainda os julgados: RESP. 235903-CE, RESP 71.181-RS,
RESP 299.432-SP; RESP 178.290-SP; RESP 175.011-SP.
4
3.2. As provas necessárias
Para ingressar com a referida ação, é indiscutível que o
poupador deve apresentar um extrato da época ou ao menos um protocolo de que tenha requerido tal documentação junto à instituição financeira em que mantinha a conta
poupança, mesmo porque os extratos são a única prova da
existência de depósitos em junho de 1987, condição básica
para julgar o direito de quem pleiteia reaver as perdas.
Sobre este ponto, não há dúvida de que passados vinte
anos da ocorrência do fato, a grande maioria dos poupadores sequer possui mais os extratos da época e, naturalmente, com a enorme procura antes de expirar o prazo,
muitas instituições financeiras não tiveram como atender
a todos os pedidos.
Assim, muitas ações foram distribuídas sem a documentação mínima necessária para o julgamento da lide.
3.3. A inaplicabilidade do Código de Proteção e Defesa
do Consumidor (CPDC) 2
Convém dizer que o código consumerista, que reconhece
o consumidor como parte vulnerável (art. 4º, inciso I da
Lei 8.078/90)3 na relação jurídica e garante a facilitação
da sua defesa pela inversão do ônus da prova, somente
entrou em vigor no ano de 1991, sendo certo que o fato
gerador dessas ações se deu em junho de 1987, motivo
pelo qual o CPDC não se aplica aos contratos reclamados,
haja vista que sua vigência é posterior ao fato, prevalecendo, assim, o art. 333, I do Código de Processo Civil4, que
determina caber ao autor comprovar os fatos constitutivos
do seu direito.
Com efeito, inexistindo quaisquer documentos comprobatórios das aplicações financeiras, no caso os extratos, não há
dúvida de que as alegações não devem ser consideradas verossímeis, levando à improcedência da pretensão autoral5.
Tratando do tema, Humberto Theodoro Júnior6 observa
oportunamente que:
“Se o autor invoca como causa de pedir fatos indefinidos, que, objetivamente não tem
como provar, não pode se valer de mecanismo processual de inversão do ônus da prova
para transferir ao réu o encargo de fazê-lo.
Ao Autor cabe, em princípio, fundamentar sua
demanda. Se o fato invocado por ele é indefinido e não passível de prova, a conseqüência
inevitável será a improcedência do pleito”.
Ainda sobre este ponto, conveniente mencionar que a ADIN
nº. 19317 pacificou o entendimento de que a lei não poderá
retroagir para atacar o ato jurídico perfeito ou o direito adquirido, quando da entrada em vigor da Lei 9.656/98, que
dispõe sobre os planos de saúde. Assim, da mesma que
forma que restou pacificado ser a referida lei inaplicável
aos contratos antigos, formalizados anteriormente à sua
entrada em vigor, pode-se dizer, por analogia, que o CPDC
não se aplica nas ações que buscam reaver os expurgos
inflacionários ocasionados pelo plano Bresser, já que o
fato gerador é também anterior a sua entrada em vigor.
3.4. Tramitação das ações nas Varas Cíveis
Em sede de Varas Cíveis, a ausência inicial dos extratos
pode ser sanada no curso do processo, durante a instrução probatória, que se revela mais demorada, havendo,
desse modo, tempo hábil para que os mesmos sejam providenciados, já que os bancos, em razão do longo tempo passado, aduzem precisar de 90 dias, em média, para
busca e apresentação desses documentos.
Outra possibilidade, também muito utilizada pelos correntistas, foi distribuir ações Cautelares de Exibição de Documentos8 precedendo a ação principal de efetiva busca à
recomposição do patrimônio. Desta forma, a ação princi-
Lei 8.078, de 11 de Setembro de 1990.
“Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I – reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo”.
4
“Art. 333. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito”.
5
“Plano Bresser. Junho de 1987. Intervenção heterodoxa do Estado na economia nacional. A correção monetária que se pretende discutir nesta ação remonta ao longínquo mês de junho de 1987, enquanto
o código consumerista passou a viger em 1991. Lei nova não pode atingir fatos pretéritos, segundo fundamentação da própria petição inicial. Assim, DECLARO INAPLICÁVEL O CDC AOS CONTRATOS
RECLAMADOS, POIS FIRMADOS ANTES DE SUA VIGÊNCIA. (....) Frise-se que o autor, tal qual milhares de outros brasileiros, aguardou por vinte anos para vir exercer seus direitos, fazendo-o no
limiar do encerramento do prazo prescricional. A juntada pelo autor, em AIJ, de cópia de declaração de imposto de renda ano-base 1987 indica a existência de depósitos em poupança (e respectivos
valores) na data de 31.12.1987, mas não faz prova da existência da relação jurídica na primeira quinzena de junho de 1987 e nem esclarece os valores eventualmente existentes naquele mês. Não se
pode esquecer que a inflação, à época, era de cerca de 20% ao mês, sendo evidente o descompasso entre a data-base do cálculo de fl. 09, indicada para 01.07.1987, porém tomando em consideração
valores do dia 31.12.1987. manifesta imprestabilidade do cálculo ofertado. Carência probatória que impede o pronunciamento judicial líquido de que trata o artigo 38, par. único, da Lei 9.099/95. Pedido
rejeitado. ISTO POSTO, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO. Solucionado o mérito da causa a teor do artigo 269, inciso I, do CPC.” (TJRJ, XII JEC da Capital, processo nº. 2007.800.084063-9, Juiz
Cláudio Augusto Annuza Ferreira, j. 06/07/07)
6
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do Consumidor, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 139.
7
“Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei ordinária 9656/98. Planos de seguros privados de assistência à saúde. Medida provisória 1730/98. Preliminar. Ilegitimidade ativa. Inexistência. Ação
conhecida. Inconstitucionalidades formais e observância do devido processo legal. Ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. (...) 5. Violação ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
Pedido de inconstitucionalidade do artigo 35, caput e parágrafos 1º e 2º, da Medida Provisória 1730-7/98. Ação não conhecida tendo em vista as substanciais alterações neles promovida pela medida
provisória superveniente. 6. Artigo 35-G, caput, incisos I a IV, parágrafos 1º, incisos I a V, e 2º, com a nova versão dada pela medida provisória 1908-18/99. Incidência da norma sobre cláusulas contratuais
preexistentes, firmadas sob a égide do regime legal anterior. Ofensa aos princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Ação conhecida, para suspender-lhes a eficácia até decisão final da ação
(...)” (STF, ADI-MC 1931 / DF, Rel. Min. Mauricio Corrêa, j. 21/08/2003)
8
“Agravo de Instrumento. Ação objetivando a cobrança de diferença de correção monetária envolvendo planos econômicos. Determinação de exibição incidental pela instituição financeira ré de extratos
de caderneta de poupança. Possibilidade. Precedentes do E. Superior Tribunal de Justiça e desta E. Corte. Negativa de seguimento do inconformismo” (TJRJ, 17ª CC, A.I. nº. 2007.002.21210, Rel. Des.
Maria Inês Gaspar, j. 09/08/07);
2
3
5
pal termina sendo devidamente instruída com toda a documentação necessária para o julgamento.
3.5. Tramitação das ações nos Juizados
Especiais Cíveis
Em sede de Juizados Especiais Cíveis a questão adquire
novos contornos, tendo em vista os princípios da economia
processual e da celeridade que os norteiam. Como todas as
provas devem ser produzidas na Audiência de Instrução e
Julgamento, que muitas vezes ocorre no mesmo dia da Audiência de Conciliação, os documentos devem ser necessariamente apresentados nesta ocasião e a ausência dos
extratos impossibilita o julgamento da lide com mérito.
Se a parte autora não estiver de posse dos extratos, portando apenas o protocolo comprovando que os mesmos foram
solicitados, necessariamente deverá fazer pedido de exibição desses documentos9 para comprovar a relação jurídica
existente no mês de junho de 1987 que, como sabido, tem
rito especial previsto pelo Diploma Processual Civil, sendo,
portanto, afastada da competência dos Juizados.
Nesse sentido, foram aprovados no Encontro de Juízes de
Juizados Especiais Cíveis (AMAERJ - 13.06.2007) os seguintes enunciados:
“Nas ações que versem sobre correção de
saldos decorrentes de planos econômicos,
não é cabível a inversão do ônus da prova e
nem a intimação do réu para exibir documentos objetivando comprovar o fato constitutivo do direito do autor”.
“Poderá ser indeferida, de plano, a inicial
na hipótese de ausência de documento
comprobatório da aplicação financeira e/
ou planilha, não se procedendo, neste
caso, a citação do réu, de forma a impedir
a prolação de sentença ilíquida nos termos
do art. 38, parágrafo único, Lei 9.099/95”.
condenatória por quantia ilíquida, ainda que genérico o
pedido”, o que exigiria a apresentação de uma planilha indicativa do valor a ser ressarcido.
Como a referida planilha seria documento produzido unilateralmente por uma das partes, far-se-ia necessária a realização de prova pericial contábil para um perfeito e justo
julgamento da lide, o que não é possível em sede de Juizados Especiais Cíveis10, que abarca apenas as causas de
menor complexidade.
Aqui ressalta-se o entendimento sedimentado no IX Encontro de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil, pelo
qual se verifica os termos do Enunciado n. 54, in verbis:
“A menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto
da prova e não em face do direito material”.
Assim, o que se vê nos Juizados é que por um motivo ou
por outro, as ações propostas terminarão por ser naturalmente extintas sem o julgamento do mérito.
Conclusão
Não há dúvida que milhares de brasileiros têm o direito de
receber as correções e perdas ocasionadas pela mudança
na forma de remuneração das cadernetas de poupança,
nem mesmo que as instituições financeiras administradoras de tais cadernetas são partes legítimas para responder
por essas perdas.
No entanto, o que se tem visto no dia a dia forense é a distribuição de milhares de demandas com documentação deficiente
(ou até mesmo sem qualquer documentação), já que os correntistas deixaram a busca do Judiciário para a última hora, e
tantas outras foram distribuídas através dos Juizados, talvez
pela celeridade do julgamento ou até mesmo pela dispensa do
pagamento de custas judiciais, rito este que certamente não é
o mais adequado para se chegar à tutela jurisdicional pretendida, conforme se demonstrou no presente artigo.
Em outra hipótese, na qual os extratos teriam sido apresentados, deve ser observado que o art. 38, § 1º da Lei
9.099/95 prescreve, in verbis: “Não se admitirá sentença
“A propositura de muitas ações no referido mês, quase no final do prazo prescricional de 20 anos, ocorreu porque foi noticiado nos meios de comunicação que o respectivo prazo estaria terminando, o
que fez com que os consumidores procurassem os bancos onde possuíam conta na época dos referidos planos com a finalidade de obterem os extratos da época, bem como os expurgos inflacionários.
(...) a exigüidade do prazo e a enorme procura fizeram com que muitas pessoas não pudessem ser atendidas antes de expirar o mencionado prazo prescricional. Fato este que resultou na propositura
de muitas ações sem a documentação necessária. Inclusive, os consumidores, em várias demandas ajuizadas, pleiteiam, ainda, a exibição de extratos. Todavia esse pedido formulado, geralmente em
sede de tutela antecipada, não se coaduna e não é compatível com o procedimento adotado na Lei 9.099/95. Ressalto, também, que os consumidores pretendem os expurgos inflacionários, decorrentes
dos planos econômicos, sem que ao menos indiquem o valor preciso que entendem perdido. Registre-se que tal fato impede a prolação de sentença líquida violando frontalmente o parágrafo único do
artigo 38 da Lei 9.099/95. (...) Pelo exposto, JULGO EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, com base no artigo 52, II da Lei 9.099/95.” (TJRJ, XXVI JEC da Capital, processo nº.
2007.800.095522-4, Juíza Maria Daniella Binato de castro Abi Daud, j. 27/06/07).
10
“Considerando a causa de pedir aqui declinada, bem como a iliquidez dos pedidos formulados, a despeito de eventual planilha a ser oportunamente apresentada pela parte, entendo que se mostra
imprescindível, no caso, a realização de perícia para o fim de verificar a corretude dos valores apontados, sedo certo que essa prova técnica não é cabível em sede de Juizado Especial Cível. (...) Por
isso, ante o reconhecimento da incompetência absoluta do Juízo para o julgamento da causa, JULGO EXTINTO O FEITO SEM ANÁLISE DO MÉRITO, a teor do art. 51, II da Lei 9.099/95.” (TJRJ, II JEC
da Capital, processo nº. 2007.800.085724-0, Juíza Natalia Calil Miguel Magluta, j. 16/07/07)
“Com efeito, a exigência de planilha com indicação do valor a ser devolvido, acompanhada de extratos da conta corrente à época, se justifica porque, em caso de procedência do pedido, não seria possível
a realização de prova pericial em sede de Juizado Especial Cível. Diante desses fatos, em caso de procedência, a prolação de sentença que determinasse a devolução de expurgos – contrariando o
que determina a referida Lei – implicaria em sentença inexeqüível, o que não poderia ser permitido. Nestes termos, é evidente que a inicial é inepta, razão pela qual deve ser julgado extinto o processo
sem julgamento do mérito. (....) Ante o exposto, JULGO EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, nos termos do art. 51, II da Lei 9.099/95.” (TJRJ, XIII JEC da Capital, processo nº.
2007.800.083707-0, Juiz Rafael Rodrigues Carneiro, j. 02/07/07)
9
6
Os limites da inversão do ônus
da prova no código de defesa
do consumidor
É
unânime o entendimento sobre os direitos concedidos ao consumidor com a entrada em vigor da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, tendo como principal escopo superar sua vulnerabilidade e estabelecer um equilíbrio entre este e o fornecedor de serviços.
Dentre os diversos direitos previstos, tem-se a inversão do ônus da
prova (ope iudicis), esculpido em seu artigo 6º inc VIII1.
A principal razão à concessão deste direito processual é o fato do
consumidor ser a parte mais fraca da relação de consumo, restando
impossibilitado, em muitas situações, de carrear nos autos as provas necessárias à demonstração dos fatos constitutivos de seu direito. O Legislador levou em consideração a sociedade de consumo
atual, na qual milhares de produtos e serviços são postos à venda
de forma massificada, sem que o consumidor final possa ter um
mínimo de controle sobre sua qualidade intrínseca e extrínseca.
Ocorre que, ao contrário dos que pensam que a inversão é uma
constante nas ações consumeristas, nem sempre tal benefício poderá ser concedido, devendo o Magistrado, em consonância com
a lei, averiguar se no caso específico encontram-se presentes os
pressupostos ensejadores à sua concessão. Intenta-se, neste artigo, analisar o caráter excepcional da inversão do ônus da prova,
delimitando os casos em que tal direito poderá ser concedido.
a) Dos pressupostos legais:
Primeiramente, insta salientar que o Código de Processo Civil prevê a
regra geral em seu artigo 333, estipulando que incumbe ao autor o ônus
de provar os fatos constitutivos de seu direito. Entretanto, o artigo 6º, VIII
do CDC2 trouxe uma exceção à regra geral ao prever a possibilidade da
inversão quando existentes os pressupostos autorizativos, quais sejam,
a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência do consumidor.
O pressuposto da verossimilhança é um juízo de possibilidade, devendo o
Magistrado aferir a possibilidade de que tenham ocorrido os fatos narrados
pelo consumidor. É verossímil toda narrativa que não contrarie norma jurídica,
princípio geral do direito, fato notório ou as regras de experiência comum.
do CDC. Muito embora no texto legal haja a
previsão da conjunção
“ou”, seria precipitado
concluir pela alternatividade dos pressuSari Franco*
postos. Fazendo-se
sari
@cgvadvogados.com.br
uma interpretação sistemática e teleológica
do permissivo legal, verifica-se que a cumulatividade é mais acertada na medida em que a inversão baseada em apenas um dos
requisitos certamente levaria a resultados extremamente injustos.
Partindo do pressuposto que o requisito da verossimilhança é analisado através do juízo de possibilidade, sem a necessidade da produção de qualquer prova, se o consumidor narra fatos que podem
ser verdadeiros, sem, no entanto, ser hipossuficiente para prová-los,
não seria razoável a inversão. Isto porque, neste caso, o consumidor está em par conditio de provar os fatos constitutivos do seu
direito. Logo, inverter o ônus violaria o princípio da isonomia.
Por outro lado, se o autor é hipossuficiente para provar determinado fato inverossímil, também não seria razoável inverter o ônus ao
fornecedor, pois a prova tornar-se-ia difícil ou mesmo impossível.
Para exemplificar, tome-se o exemplo de Antonio Gidi4 de ação
indenizatória movida por um mendigo do centro da cidade que
aciona shopping center luxuoso, requerendo preliminarmente,
em face da sua incontestável hipossuficiência, a inversão do
ônus da prova para que o réu prove que o seu carro (do mendigo) não estava estacionado nas dependências do shopping e
que, nele, não estavam guardadas todas as suas compras de
natal. Neste caso em razão da narrativa estar destituída de um
mínimo de racionalidade, a inversão tão somente com base na
hipossuficiência geraria ao fornecedor o ônus de uma prova extremamente difícil.
Quanto à hipossuficiência, trata-se a mesma da impotência do consumidor para apurar e demonstrar os fatos cuja responsabilidade passa a
ser imputada ao fornecedor. Pressupõe-se uma situação em que concretamente se estabeleça uma dificuldade muito grande para o consumidor de desincumbir-se de seu natural ônus probandi, estando o
fornecedor em melhores condições para dilucidar o evento danoso3.
Desta forma, a cumulatividade dos pressupostos autorizativos da
inversão parece se adequar mais ao espírito da Lei, caso contrário,
estar-se-ia utilizando o CDC como forma de favorecer o consumidor
mesmo nas hipóteses de inexistência da vulnerabilidade processual.
b) Necessidade da cumulatividade dos pressupostos legais:
Na doutrina muito se debateu se a concessão da inversão do ônus
da prova seria um ato discricionário do juiz (faculdade) ou um poderdever. Entretanto, já se pacificou o entendimento que, uma vez exis-
Uma questão controvertida diz respeito à cumulatividade ou alternatividade entre os pressupostos legais previstos no art. 6, inc VIII
c) Impossibilidade da inversão quando versar a prova sobre
fato negativo ou fato impossível de ser provado:
*Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Fundação Getulio Vargas - FGV. Advogada associada à Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.
Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: VIII – “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civi, quando, a critério do juiz, for verossímil
a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.
3
WATANABE, Kazuo. “Disposições Gerais”. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (coord.) et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 5 ed., Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1998, pp. 617/618.
4
Antonio Gidi – “Direito do Consumidor 13 – Aspectos da Inversão do Ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor”. São Paulo: RT, p. 34.
1
2
7
tentes os pressupostos elencados em lei, é um dever do magistrado
concedê-lo, tratando-se, portanto, de uma atividade vinculada à lei5.
Entretanto, em algumas hipóteses a inversão do ônus da prova
não se verificará, isto porque o benefício processual pressupõe a
dificuldade ou impossibilidade da prova apenas ao consumidor, e
não a impossibilidade absoluta da prova em si.
Uma hipótese da impossibilidade absoluta da prova diz respeito a
fato negativo. Para melhor esclarecer, tome-se como exemplo a
seguinte situação: o consumidor munido de seu cartão de crédito
tenta efetuar uma compra no supermercado, mas não obtêm êxito.
Nestes casos, geralmente o consumidor ingressa com ação indenizatória alegando falha na prestação de serviço da administradora do
cartão pelo bloqueio indevido. Ocorre que, é impossível à administradora provar no processo que não bloqueou o cartão (este é o fato
negativo), pois não seria viável a prova de que algo não aconteceu.
No exemplo acima mencionado, caso o juiz invertesse o ônus da
prova, seria deveras excessivo ao fornecedor provar que o cartão
5
não estava bloqueado. Por outro lado, não seria difícil ao consumidor arrolar prova testemunhal do funcionário do estabelecimento
comercial para provar os fatos constitutivos de seu direito.
Nesta linha de raciocínio, é de suma importância ressalvar que nem
sempre será possível a inversão do ônus da prova, devendo o Juiz,
em cada caso concreto, analisar se existentes os pressupostos autorizativos à inversão, bem como, se esta, ao ser concedida, não trará um
ônus demasiadamente excessivo ao fornecedor que o impossibilite de
produzir a prova necessária para rechaçar as alegações autorais.
Conclusão:
Diante da análise concernente ao tema da inversão do ônus da prova,
sem qualquer pretensão de esgotar todas as controvérsias, é indene
de dúvida que este benefício é essencial para tornar a relação processual existente entre o Consumidor e o Fornecedor mais equânime.
Entretanto, em razão da excepcionalidade do encargo previsto no
CDC, deve-se, diante da situação concreta e em conformidade com a
lei, aplicar o benefício processual quando possível, mas deixando de
aplicá-lo quando inexistentes os pressupostos legais.
Alienação Fiduciária. Alegação de vícios redibitórios. Demanda, a rigor, proposta com o objeto de anulação dos negócios jurídicos. Antecipação dos efeitos da tutela para obstar a negativação do nome
do devedor. Inversão do ônus da prova. Comando dirigido ao co-réu. (...). Presentes os pressupostos do art. 6º, VIII, do CDC, pode e deve o juiz determinar a inversão do ônus da prova em favor do
consumidor, até mesmo de ofício. Recurso desprovido. (TJRJ – 13ª Câm, Agravo de instrumento nº 2006.002.27743, Rel. Des. Nametala Machado Jorge, J. 22/02/2007)
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