Fernanda Cristina Aléssio A violência simbólica na escola: uma abordagem a partir da visão de educandos e educadores UNISAL Americana 2007 Fernanda Cristina Aléssio A violência simbólica na escola: uma abordagem a partir da visão de educandos e educadores Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação à Comissão Julgadora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. João Ribeiro Júnior. UNISAL Americana 2007 FICHA DE APROVAÇÃO Tema: A violência simbólica na escola: uma abordagem a partir da visão de educandos e educadores Mestranda: Fernanda Cristina Aléssio Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação à Comissão Julgadora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. João Ribeiro Júnior. Aprovado em _____/ _____/ _____. Comissão Julgadora: ____________________________________ Prof. Dr. João Carlos Nogueira (Membro Externo) ____________________________________ Prof. Dr. Marcos Francisco Martins (Membro Interno) ____________________________________ Prof. Dr. João Ribeiro Júnior (Orientador) DEDICATÓRIA A todos os estudantes que sofrem a mais brutal violência escolar, àquela que não se dá conta, que lhe cega os olhos e não lhe permite ver o negligenciar da sua educação. A todos os educadores que sofrem cotidianamente numa realidade perversa e, ainda assim, têm esperanças e lutam para construir sua práxis com compromisso por um ensino engajado e transformador. AGRADECIMENTOS A DEUS, que me proporcionou a vida e a saúde, dons sem os quais nada seria possível e ainda por tamanha generosidade me dotou de inteligência, dando-me a capacidade do estudo, a compreensão e a reflexão da minha prática. Aos meus pais, Aparecido e Gessi, pelo amor incondicional, pelos ensinamentos, confiança nas minhas resoluções e por me mostrarem, com exemplos práticos, a importância da família. Obrigada pelo apoio na realização desse sonho. A Márcia e a Sandra, duas grandes mulheres, minhas irmãs, pelo companheirismo incansável, pelo entendimento e serena aceitação de uma alma inquieta, pelo apoio e solidariedade, sem os quais certamente não teria sido possível manter-me firme em meus propósitos. Ao meu noivo, Zigomar, homem de fibra, cúmplice dos meus choros, pelo amor, paciência e experiência compartilhada e pela confiança em minha capacidade. Ao meu sobrinho, João Vitor, que há três anos me faz ver como Deus é perfeito e generoso conosco. Ao meu cunhado, David, pela amizade, respeito e carinho dispensados para mim e toda minha família. Ao meu orientador, Prof. Dr. João Ribeiro Júnior, que me acolheu desde o nosso primeiro contato, acreditando em meu potencial, orientando meus estudos, compartilhando o seu saber, respeitando minha forma de expressão e visão de mundo. Ao Prof. Dr. Marcos Francisco Martins, que com muita competência e retidão, contribuiu para minha formação como pesquisadora fiel à sociedade, através da verdade e sua busca. A todos os professores que participam do programa de Mestrado da Unisal e me permitiram o privilégio de conhecer um pouco de suas vivências docentes. Em especial, prof. Severino, Groppo e Sueli, que me serviram de exemplo de dedicação e amor pelo ofício de mestre que tão brilhantemente desempenham. A todos os estudantes da minha turma, em especial, Daniela e Claudiane pela amizade e pelos momentos de descontração compartilhados. Aos participantes da pesquisa e à Direção da escola pesquisada, que gentilmente contribuíram para a realização deste trabalho. A Secretaria de Estado da Educação e à CAPES, representada pelos cordiais supervisores Laércio e Priscila, pela concessão da bolsa de estudo. EPÍGRAFE Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada [...]. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares, mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados. E por temor eu me calo, por temor aceito a condição de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita - MENTIRA! Eduardo Alves da Costa RESUMO A violência no cotidiano escolar tem se tornado uma grande preocupação da sociedade. A observação que temos feito é a de que são praticadas nas escolas públicas inúmeras tentativas de tolher a violência em seu espaço, sem, no entanto, a realização de um estudo efetivo sobre suas bases e repercussões que possam resultar numa mudança prática. Os segmentos escolares em geral interpretam a violência de forma diferenciada e não são viabilizados nas instituições espaços para elucidar essa temática. De modo que entendemos ser necessária a investigação do conceito e da percepção da violência antes de qualquer tentativa de sua superação dentro da escola ou em contexto global. Esta pesquisa foi então desenvolvida a partir da necessidade de se promover uma investigação sobre os diferentes conceitos de violência de um grupo de educandos e seus respectivos educadores, em especial investigar sua compreensão e o valor que atribuem àquela de caráter simbólico, apontada por Bourdieu e Passeron (1970). Procuramos através desta investigação relacionar a visão desses educandos e educadores com o intuito de analisar a situação por eles vivida, bem como também discorrer sobre as possibilidades, que mesmo dentro de limites observados, possam contribuir na interlocução entre esses atores educacionais e sociais. O trabalho desenvolveu-se durante o ano letivo de 2006. Os resultados nos permitiram concluir a ausência da percepção da violência simbólica na escola, indicando uma interpretação simplista desse fenômeno. Para se trabalhar esta problemática nas escolas, julgamos importante a implementação de estratégias urgentes, incluídas no projeto político pedagógico e elaboradas a partir do diálogo entre os segmentos que participam de sua formulação e interpretação. Indicamos que para se representar esta questão é necessária a participação coletiva, pois se trata de um problema amplo e de solução complexa, que tem repercussões não só na área educacional, mas também para toda sociedade. Palavras-chave: Violência escolar; Conflitos em educação; Violência simbólica; Recuperação de Ciclo. ABSTRACT The violence of the daily pertaining to school has begun a great concern of the society, being also of the daily pertaining to school, however. The comment that we have made is of that they are practiced in the public schools, innumerable attempts to hinder the violence in its space, without, however, the accomplishment of an effective study on its bases and repercussions that can result in a practical change. The segments of the school interpret the violence of differentiated form and they are not made possible in the institution, spaces to elucidate this subject it. In the way we understand the inquiry of the concept and of the perception is necessary, before any attempt in the treatment to the violence inside the school or in global context. This research was developed from the necessity of promoting an inquiry on the different conceptualizations of violence of a group of students and its respective educators, in special investigating its understanding and the value that attribute to that one of symbolic character pointed by Bourdieu and Passeron (1970). Through this inquiry we have tried to relate the vision of the students and the educators with intention to analyze the situation lived for them; as well as also discoursing possibilities that of limits exactly inside observed, can contribute in the interlocution between these educational and social actors. The work was developed during the school year of 2006. The results had allowed to conclude us the absence of the perception of the symbolic violence in the school, indicating a simplistic interpretation of this phenomenon. To work this problematic in schools, we judge important implementation of urgent strategies, enclosed in its pedagogical politician project, elaborated from the dialogue between the segments that participate in its formulation and interpretation. We indicate that to imagine this question are necessary the collective participation, for if dealing with an ample problem, and of complex solution, that not only has repercussions in the educational area, but also for all society. Key Words: School violence; Conflicts in education; Symbolic violence; Recovery of Cycle. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................10 CAPÍTULO I – O CONCEITO DE VIOLÊNCIA ESCOLAR 1. Os diferentes conceitos de violência escolar .....................................................18 2. A contribuição de Pierre Bourdieu ......................................................................37 CAPÍTULO II – OS ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA E A CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA 1. A metodologia utilizada: a pesquisa participante ..............................................49 2. A caracterização da escola ...............................................................................57 3. A classe de Recuperação de Ciclo II ................................................................65 CAPÍTULO III – A PESQUISA SOBRE VIOLÊNCIA NUMA PRÁTICA ESCOLAR ESPECÍFICA 1. A coleta de dados ..............................................................................................71 1.1. O perfil dos educandos pesquisados ..............................................................71 1.2. A visão dos educandos sobre a violência na vida escolar ..............................78 1.3. A visão dos educadores sobre a violência na vida escolar .............................87 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................101 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................105 ANEXOS...............................................................................................................108 INTRODUÇÃO Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir. Esse mecanismo deve ser conscientizado, da mesma forma como deve ser fomentada uma educação que não mais premie a dor e a capacidade de suportá-la (ADORNO, 1995). Durante nossa trajetória escolar, especialmente nos últimos quatro anos, questões relacionadas à violência escolar nos causam consternação e ansiedade. E, refletindo sobre a abrangência dessa problemática, atentamos para o fato de que a própria instituição escolar, contando aqui todos os segmentos que dela fazem parte, que vivenciam, que participam e que “sofrem” as conseqüências desse contexto de agressão, pouco discute essa temática. Parece que todos vivem uma conspiração de silêncio sobre a violência no cotidiano da escola. Buscando esclarecimentos para nossos questionamentos e em meio a este conflito, perguntamos o que vem a ser violência escolar. Seria apenas a depredação da estrutura física? Será que poderíamos resumir nossa questão à “indisciplina” em sala de aula? Ou estaria a violência escolar escondida nos livros de expulsões da escola, advertências etc.? Eram muitos os caminhos a seguir com nossas interrogações e, na ânsia de elucidarmos nossa dúvida, fomos propondo diálogos, levantando hipóteses, embora reconhecendo que a maioria não era pautada em estudos sistemáticos, em investigações orientadas pelo método científico, porém na nossa própria vivência. De uma maneira informal, apenas como busca para as perguntas que realizávamos, procuramos conhecer como os participantes da escola concebiam o significado da violência, em específico a escolar. Perguntando para estudantes e professores de uma escola pública de Santa Bárbara D´Oeste – SP, onde estávamos na oportunidade trabalhando, pudemos verificar que, exceto na concordância de que violência escolar é aquela que acontece dentro da escola, as opiniões sobre o que seria a violência no contexto escolar divergiram consideravelmente. Professores interpretam a violência de uma forma e estudantes de outra, mas o que mais nos chamou a atenção foi a opinião dos quinze alunos com os quais tínhamos mais contato. Os estudantes apresentavam dúvidas, inseguranças em responder o que era para eles violência escolar. Os jovens apontados, conforme observação anterior, apresentavam dificuldades de relacionamento em casa e na escola, alguns inclusive envolvidos com tráfico, uma adolescente grávida, alunos em conflito com a lei. No entanto, mesmo com esses agravantes, a maioria deles opinaram que não tinham sofrido nenhum tipo de violência. Um deles nos disse: “a escola é boa, já briguei algumas vezes, mas nunca sofri violência aqui dentro”. (depoimento de um dos estudantes de oitava série pesquisado, 16 anos). A declaração acima nos causou preocupação, pois como afirmar que “já brigou algumas vezes na escola” e ver que isso não é um dos reflexos da violência? Qual o conceito de violência que os estudantes têm considerado em suas vidas? Como não considerar a violência dentro da escola se esta faz parte de um contexto global? A fala do estudante, entre tantas outras, impulsionou nossos questionamentos sobre a dimensão da violência escolar e dos sujeitos que dela fazem parte. Essas reflexões, aguçadas pelas respostas obtidas de maneira informal, fizeram com que procurássemos realizar esse trabalho com base nesses questionamentos, e no fato de a violência ser há muito tempo uma grande preocupação da sociedade, despertando, assim, o interesse para a discussão nesta área, desde sua origem e evolução até suas diferentes manifestações. Apesar de a violência escolar não ser um assunto discutido, refletido, por toda a comunidade escolar, observamos que são praticadas nas escolas públicas inúmeras tentativas de tolher a violência em seu espaço, através de trabalho com projetos, como “Escola da Família”, que propõe jogos estudantis, festivais musicais, danças, teatros... enfim, uma série de atividades, que consideramos válidas e importantes, pois trazem como cunho principal conter a violência dentro da escola. No entanto, não encontramos nesses projetos abertura de espaços para discussão do fenômeno da violência. Delonguemos nossas inquietações com mais algumas questões: como tem sido considerada a manifestação da violência global pela escola? Como isolar a escola de um contexto muito mais abrangente que é o ambiente social do estudante, onde passa a maior parte do seu tempo? Tentar fazer com que o estudante goste da escola a ponto de tornar-se 'bonzinho' dentro dela, sem importar-se com sua conduta no exterior não seria uma forma de conivência com a violência global e uma banalização das atitudes violentas ocorridas fora do espaço escolar? Não seria uma demonstração de ingenuidade ou falta de interesse em devassar esta questão? Não seria necessária a busca de uma reflexão sólida, partindo da interpretação que os estudantes têm da violência e sua significação para, a partir daí, podermos investir em ações vigorosas no seu trato? Para respaldar esses questionamentos, recorremos a Lei Nº. 9.394/96 Título II – Dos princípios e fins da Educação Nacional, Art.2º, que diz, “A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania...”; para tanto, continuamos nos perguntando: como formar um cidadão sem ao menos conhecer seu contexto local, cultural, comunitário, sua vivência, experiências, seus valores? Como trabalhar para formação do desconhecido? Julgamos necessária a investigação e o diálogo com o grupo antes de qualquer tentativa no trato à violência dentro da escola ou em contexto global. É preciso saber como os educandos e educadores a vêem e interpretam para, então, nortearmos ações que visem uma abordagem eficaz desse problema, de maneira a difundir a paz. Segundo o conceito de Jares: A paz é entendida não apenas como a ausência de guerra, mas também de todo tipo de violência, do mesmo modo que o conceito de paz positiva, mas centrada nas relações interpessoais. Por isso, acredita-se que é ‘na mente dos homens que se produzem as guerras’, e é na mente dos homens que será preciso proporcionar os meios para evitá-las (JARES, 2002, p. 145). Nesta perspectiva, buscamos com o presente trabalho investigar e conhecer a visão sobre a violência que tem um grupo de estudantes e educadores de uma escola pública da zona leste de Santa Bárbara D´ Oeste–SP. Esses sujeitos fazem parte do projeto de Recuperação de Ciclo II (objeto que será detalhado no capítulo II desta pesquisa). Almejamos, também, a construção de uma interpretação fidedigna e autêntica desse fenômeno, sem articulação da mídia e das classes dominantes, que visam direcionar opiniões, impor conceitos e assim tolher qualquer tipo de pensamento que possa ameaçar seu poder de domínio e repressão. Para fortalecer nosso pensamento recorremos a Paulo Freire: “não creio em nenhum esforço chamado de educação para a Paz (sic!) que, em vez de revelar o mundo das injustiças, torne-o opaco e tenda a cegar suas vítimas” (1987, p. 68). A reflexão que se deve fazer acerca da visão dos estudantes e dos educadores sobre a violência no contexto escolar demanda grande atenção e cautela. Há necessidade de um diálogo cuidadoso sobre esta temática. É importante fazer uma análise das múltiplas interpretações que possamos alcançar, e ainda dedicarmos a devida atenção aos dizeres explícitos e implícitos que esses atores possam nos trazer. Aguça-nos o tema abordado na presente dissertação, que, em síntese, pretende investigar e refletir sobre a visão que os educandos e educadores têm sobre a violência e suas experiências no contexto escolar. Em especial, saber suas percepções e os valores que atribuem à violência de caráter simbólico, que segundo Bourdieu e Passeron (1970), nem sempre é visível, porém permeia as relações de desigualdade existentes na escola. Com efeito, uma violência que se manifesta de maneira sutil, quase que imperceptível e vai muito além da violência explícita, a violência simbólica (tal conceito será abordado na segunda parte do capítulo I). Assim, a partir dessa visão, refletiremos sobre a possibilidade de aprimoramento do papel da escola e sua função na formação de cidadãos, ou seja, indivíduos capazes de conviver e de se relacionar, no sentido destacado por Mills: “é preciso que cada indivíduo aja em consonância com o fato de que sua vida cotidiana está ligada à vida da sociedade e que suas preocupações pessoais são problemas e questões sociais” (1972, p. 202). O indivíduo necessita ter autonomia para além de participar e adequar-se às regras da sociedade, mas também a esta oferecer sua contribuição com dignidade, acreditando que suas preocupações e problemas são, também, do grupo. Uma comunidade integrada socialmente oferece aos seus partícipes oportunidades de serem ouvidos em suas necessidades e também deles exige contribuição para a garantia da vida em sociedade. Nossos objetivos são, pois, os de identificar e descrever as diferentes conceituações de violência propostas por autores que tratam desta temática. Além disso, intencionamos também identificar e descrever as diferentes conceituações de violência de um grupo de educandos e seus respectivos educadores de escola pública, bem como deles destacar os momentos que observam a manifestação de violência, condutas de perseguição e intimidação no meio escolar. Procuraremos, também, relacionar a visão dos educandos e dos educadores desta escola com o intuito de discutir e analisar a situação por eles vivida, a fim de pensar propostas que venham diminuir e/ou sensibilizar esses grupos acerca da ambigüidade ou não de seus pensamentos e ações. Em geral, nosso objetivo será de discorrer sobre possibilidades que, mesmo dentro de limites observados, possam contribuir na interlocução entre esses atores educacionais e sociais. Assim, iniciaremos especificando e refletindo os diferentes conceitos trazidos pela literatura que trata da violência escolar, dando ênfase à contribuição de Pierre Bourdieu em seus apontamentos sobre a violência simbólica. No capítulo seguinte apresentaremos a metodologia utilizada na pesquisa: a pesquisa participante, que segundo Brandão é importante, pois possibilita a devolução do conhecimento produzido ao grupo pesquisado: Quando o outro se transforma em uma convivência, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. Quando o outro me transforma em um compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua história (BRANDÃO, 1999, p. 12). Na pesquisa participante, por ter o pesquisador ligação com os sujeitos de sua investigação, começa a participar de suas vidas, de sua história e sensibilizarse com suas experiências, possibilitando o aproveitamento dessa abastada experiência para a construção de interpretações de maior riqueza e proveito para própria comunidade. Apresentaremos também, no segundo capítulo, a justificativa da escolha do objeto de pesquisa (os educandos e educadores da classe de Recuperação de Ciclo II de uma escola pública específica). No terceiro capítulo, faremos o levantamento por meio de questionários com questões abertas e fechadas sobre o perfil dos sujeitos pesquisados. Tentaremos conhecer suas visões sobre violência escolar, identificar os momentos em que observam a manifestação de violência, condutas de perseguição e intimidação no meio escolar, saber se estabelecem uma relação entre o projeto de Recuperação de Ciclo II e a violência simbólica. Nas considerações finais trabalharemos com a análise e interpretação dos dados, de forma qualitativa e quantitativa, observando as convergências e divergências na visão dos educandos e educadores, bem como suas considerações acerca da violência simbólica. Examinaremos, dentro dos limites observados, possibilidades de supressão do problema, visando contribuir para aprofundamento das reflexões da prática pedagógica contemplada nesta temática. CAPÍTULO I – O CONCEITO DE VIOLÊNCIA ESCOLAR 1. Os diferentes conceitos de violência escolar A escola é boa, já briguei algumas vezes, mas nunca sofri violência aqui dentro (depoimento de um estudante, 16 anos). As raízes da violência e as conseqüentes preocupações em evitar que ela desestruture e mutile as sociedades são provavelmente tão antigas quanto à própria humanidade. Ao longo de milênios a agressividade humana acompanhou a evolução da sociedade. Contudo, não é possível caracterizar a violência de forma simplista, já que sua dimensão é muito complexa, envolvendo a própria concepção de sociedade. Pode-se afirmar que a violência gera uma apreensão que acompanha a sociedade, já que na maioria dos grupos, em maior ou menor grau, devasta os sistemas de convívio social como se não fosse possível sua superação, uma vez que está inserida nas mais variadas camadas que compõem o tecido social. Assim, conceituar violência é tarefa das mais árduas, tendo em vista que ela abrange espaços públicos e privados e tem como suas principais instituições reprodutoras segmentos que compõem as sociedades, tais como a escola, a família, o trabalho entre outros. Vários conceitos acerca da violência foram sendo estabelecidos, construindo assim um amplo leque de argumentações sobre esse tema. É importante ressaltarmos que cada conceito foi construído dependendo do contexto social-histórico-humano-político e, por isso, pesquisar esta problemática também é possibilitar um olhar sobre o sujeito, o homem, a sociedade, suas concepções e seus valores. O que nos propomos neste capítulo é fazer um breve levantamento do significado da palavra “violência” em obras de referência e diferentes campos de estudo, enriquecendo a pesquisa com as contribuições dos autores que a tratam. Segundo o Dicionário Houaiss, violência é a “ação ou efeito de violentar, de empregar força física (contra alguém ou algo) ou intimidação moral contra (alguém), ato violento, crueldade, força” (HOUAISS, 2001, p. 2866). No aspecto jurídico o mesmo dicionário define o termo como o “constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém, para obrigá-la a submeter-se à vontade de outrem; coação” (idem), um ato violento dotado pela força. No dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, violência, do latim violentia, é “qualidade de violento” (CUNHA, 1999, p. 823) e relaciona-se a violentar, que por sua vez vem do francês violenter e significa “exercer violência sobre”, “forçar, coagir” (idem), quanto ao caráter violento o mesmo dicionário refere-se ao adjetivo “impetuoso” (idem). Para o Prof. Dr. João Ribeiro Junior terá que se distinguir coação de coerção. Coação é constrangimento físico ou moral; coerção é também constrangimento só que baseado em lei, mas ambas são violências à vontade de alguém (informação verbal). Em relação à perspectiva psicológica, recorremos a Freud (1997) e à idéia de que o ser humano nasce violento e só não realiza de forma brutal essa tendência primitiva porque renuncia aos instintos agressivos sob influência do superego, que é a instância que reúne leis da civilização, da cultura; responsável pela limitação de certos comportamentos para que a civilização seja possível. Sobre a violência, na dimensão sociológica, Santos diz ser “um estado de fratura nas relações de solidariedade social e em relação às normas sociais e jurídicas vigentes em dada sociedade” (1986, p. 53). Também aponta a atuação dos conflitos nas relações de dominação, como “um ato de excesso, qualitativamente distinto, que se verifica no exercício de cada relação de poder presente nas relações sociais de produção social”. Antropologicamente, Rifiótis afirma que a violência “nas suas múltiplas formas, é representada como um domínio da experiência social que permeia as brechas da crise da modernidade e busca alternativas interpretativas para a sociedade contemporânea” (1997, p. 18). Além disso, ele alerta para a necessidade de estudos sobre a subjetividade dos sujeitos, as micro relações e aponta aspectos positivos do fenômeno da violência, que contribui na instauração de identidades sociais que vem agir como força frente aos processos de controle e ao princípio de homogeneização. Preocupado também em conceituar violência, Michaud (1989), tendo em vista os Códigos Penal e Civil francês, propôs uma definição que desse conta tanto dos estados quanto dos atos de violência: Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989, pp. 1011). Questão muito debatida na contemporaneidade, com pluralidade de ênfases, a violência chama a atenção do mais comum cidadão, que faz comentários em uma mercearia, das crianças na escola, dos intelectuais, dos meios de comunicação, enfim, está presente em muitas conversas no dia-a-dia. Observamos, porém, que nem todos que corriqueiramente comentam sobre a violência, fazem uma reflexão profunda sobre esse assunto. Percebemos uma atenção voltada para a narração de fatos chocantes, geradores de indignação momentânea; entretanto, esse sentimento é mais tarde substituído pela surpresa com uma notícia ainda mais trágica. Todo esse ciclo vai acontecendo sem que se faça uma reflexão abrangente, sem se analisar o porquê, o contexto; enfim, os aspectos circunstanciais importantes que levariam ao desvelamento de tal postura. Cidadãos que reproduzem violência, por dela terem sido vítimas; crianças que reagem violentamente a atitudes simples de colegas; pessoas que matam, roubam, estupram, agridem verbalmente e quando questionadas, discorrem de forma simplista sobre o porquê praticaram tais atos, como reação a uma provocação, desejo sem fundamentação clara, não gostar do “jeito” do outro, enfim, argumentações que não deveriam impulsionar a ruptura do bem estar alheio. Se a violência faz parte da vida cotidiana, ela se concretiza de diversas maneiras e nos diferentes grupos sociais, mas não atinge a todos igualmente. O entendimento que se faz da violência varia de sociedade para sociedade e até mesmo de grupos que fazem parte de uma mesma sociedade. Atualmente, o sentimento de individualidade tende a se sobrepor ao coletivo contribuindo como pano de fundo da violência que se expande junto aos diversos setores da vida humana. Este momento, no qual a vontade individual prevalece sobre a coletiva, favorece o aparecimento de diferentes formas de violência. Ao estudar a postura de uma criança violenta e/ou violentada, não podemos ignorar que atrás dela há também uma família violenta e/ou violentada, uma sociedade na mesma situação. Perante essa constatação, a violência pode tomar as mais variadas formas de expressão das quais a escolar é só uma delas. Comenta o Prof. Dr. João Ribeiro Júnior que não se deve esquecer que a criança pode aprender agressão pela simples contemplação do comportamento agressivo de outras pessoas. A criança incorpora ao seu repertório de comportamentos a resposta apreendida e depois representa na prática esse papel. A retenção do modelo apreciado não é um ato passivo, mas envolve alguns processos cognitivos que fortalecem a codificação de sua seqüência. Acreditamos não ser possível ignorar a questão da violência escolar quando se é parte dos espaços educacionais, seja na família, na escola ou em qualquer ambiente que objetive direta ou indiretamente o educar. Como agentes educativos, estamos envolvidos e cercados por atos de violência das mais distintas modalidades e cotidianamente somos parte dela. Segundo Vázquez (l977), o caráter da violência é humano, pois é do homem a necessidade de legalizar algo como seu, de dele fazer uso, modificá-lo, adaptá-lo, ocasionando a quebra de uma ordem natural a seu favor. E isso não é feito sem violência; ela se apresenta necessariamente neste processo. Para Vázquez “mediante a violência se torna possível a passagem do meramente natural ao humano [...] A práxis não se reduz aqui à violência, mas esta – como meio - é um elemento indispensável da práxis (1977, p. 377). Podemos considerar que a violência acompanha a práxis - aqui citada segundo a interpretação de Vázquez (1977) - e que através da práxis o homem tem condições de alterar a “ordem natural” do mundo, transformando-o, para fazer dele um “mundo humano”. Ou seja, o autor defende que uma transformação só se tornará possível com certo nível de acesso à violência. Em suas formulações, Vázquez abre espaço para conceber a violência da práxis, servindo não somente como manifestação de descontentamento, mas também como forma de conservação do status quo. Apesar da condição que pode ser observada, de conservação exercida pela práxis, acreditamos que somente através de sua reflexão e implantação conseguiremos desenvolver estratégias objetivando um mundo diferente do que estamos vivenciando hoje, de individualismos, coerção, coação, opressão, desigualdades, miséria para muitos, violência etc. Vivemos em um mundo em que as pessoas, ao perceberem seus direitos sendo constantemente violados e as desigualdades cada dia mais acentuadas, irão demonstrar, através de práticas de violência, seu descontentamento e insatisfação. Concebemos, então, grande dificuldade em delimitar as fronteiras de apreciação da violência devido ao fato também de não haver consenso entre as nossas observações e constatações e as apontadas pelos estudiosos do tema. Portanto, concordamos com Bandura ao dizer que “tentativas de definir um conceito sobre violência representam essencialmente um convite a caminhar por uma selva semântica” (1973, p. 2). Até mesmo o que é caracterizado como violência escolar tem muitas variantes, como o estabelecimento escolar do qual se trata, a posição de quem fala, se professor, diretor, pais, alunos, condição econômica e social, do acesso à cultura e da construção da diversidade de valores individuais e coletivos. Para aprofundar e demarcar esta questão, continuaremos nossa reflexão com base em referenciais teóricos para esclarecermos melhor os conceitos de violência escolar e direcionarmos o trabalho para os fins que objetivamos e expressamos na introdução. Como diferenciar as formas de violência na escola e, assim, optar por uma contribuição que será alvo de estudo mais aprofundado, com a qual possamos dialogar com melhor identificação em relação ao objeto de pesquisa. Debarbieux (2002) é um dos autores que chama a atenção para relevantes mudanças tanto no que é considerado violência como no olhar a partir do qual o tema é abordado. O autor defende, como a maioria dos pesquisadores do tema, a definição da violência de maneira ampla, que inclui atos que nem sempre chegam a ter punição, ou seja, que passam despercebidos pelo sistema jurídico. Afirma Debarbieux que: Se expandirmos a definição de violência, correremos dois riscos: primeiramente, o risco epistemológico de hiperampliar o problema até torná-lo impensável, e em segundo lugar, o risco político de vir a criminalizar padrões comportamentais comuns, ao incluí-los na definição de violência. Por outro lado, uma definição excessivamente limitada pode excluir a experiência de algumas vítimas, ignorando o fato de que a pior violência deriva da “microviolência” (2002, p. 60). O autor identifica uma fase na qual era analisada como violência escolar a prática de parte dos professores contra alunos em forma de punições e castigos corporais. Na literatura contemporânea a concepção já apresenta diferenças, pois sociólogos, antropólogos, psicólogos e outros especialistas privilegiam a análise da violência entre alunos ou desses contra a propriedade e, em menor proporção, de alunos contra professores e de professores contra alunos. Desta forma, é preciso centralizar o foco para as diferentes formas de violência e para a necessidade de apontar o que significam cada uma delas. E como ocorre com outros temas, também afinar definições apropriadas ao objeto de pesquisa. Charlot amplia o conceito de violência escolar, classificando-a em três níveis: a) violência: golpes, ferimentos, violência sexual, roubos, crimes, vandalismos; b) incivilidades: humilhações, palavras grosseiras, faltas de respeito; c) violência simbólica ou institucional: compreendida como a falta de sentido de permanecer na escola por tantos anos; o ensino como um desprazer, que obriga o jovem a aprender matérias e conteúdos alheios aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que não sabe acolher os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de poder entre professores e alunos. Também o é a negação da identidade e satisfação profissional dos professores, a sua obrigação de suportar o absenteísmo e a indiferença dos alunos (1997 apud ABRAMOVAY e RUA, 2002, p. 69). O autor considera o aumento na incidência da agressão física ou a pressão psicológica como as principais ameaças para o sistema escolar. Em seu artigo, Charlot (2002) explica a violência escolar como não sendo um fenômeno novo, o que é realmente novo são as formas mais graves com que esta tem se apresentado na atualidade. A escola não é mais um lugar protegido, estando inclusive os jovens praticando atos de violência cada vez mais cedo, entre 8 a 13 anos, e há professoras da escola maternal que já têm se defrontado com fenômenos novos de violência em crianças com cerca de quatro anos de idade. Segundo o autor, a escola está sofrendo “intrusões externas” por membros da sociedade para resolver problemas gerados dentro ou até mesmo fora da própria escola. A angústia social tem convertido a violência na escola a um fenômeno não mais acidental, mas estrutural, nos fazendo pensar sobre o modelo de vida adotado na atualidade e os valores acrescentados à nossa juventude. Charlot destaca a importância da distinção entre a violência na escola, a violência à escola e a violência da escola. Por violência na escola o autor define aquela que se produz dentro do espaço escolar, por sujeitos da instituição ou por agentes de fora que vêm para “acertar as contas”. Por violência à escola, Charlot aponta aquelas praticadas à natureza e às atividades da instituição, como a depredação, incêndios, bater ou insultar professores, etc. Já a violência da escola é institucional, simbólica, e aponta a maneira com que esta trata os estudantes por meio da imposição de regras, como a composição de suas classes, atribuição de suas notas, palavras de insulto e desestímulo. Para este autor, a escola encontra-se bastante impotente frente à violência na escola, contudo, dispõe de mecanismos de ação face à violência à escola e da escola. Destaca também Charlot, no referido artigo, a importância da distinção feita pelos pesquisadores franceses nos últimos anos, que é de grande utilidade teórica e prática: Eles distinguem a violência, a transgressão e a incivilidade. O termo violência, pensam eles, deve ser reservado ao que ataca a lei com uso da força ou ameaça usá-la: lesões, extorsão [...] A transgressão é o comportamento contrário ao regulamento interno do estabelecimento [...] não realização de trabalhos escolares, faltas de respeito etc. A incivilidade não contradiz, nem a lei, nem o regimento interno do estabelecimento, mas as regras de boa convivência: desordens, empurrões, grosserias, palavras ofensivas ao direito de cada um ver respeitada sua pessoa (CHARLOT, 2002, p. 437). Para o autor é necessário conceber grande atenção com relação ao saber quando se trabalha a questão da violência na escola, analisar o vínculo desta com o estado da sociedade, com as formas de dominação, com a desigualdade, com as questões vinculadas à instituição como organização, regras da vida coletiva, relações interpessoais, como também com as práticas de ensino quotidianas que aponta como “coração” do reator escolar, pois considera rara a existência de alunos violentos entre os que acham sentido e prazer na escola. Charlot conclui afirmando que recai sobre os professores grande responsabilidade nesse processo, mas também lhe atribui uma dignidade profissional que tende a ser retirada dele ao se estabelecer relação direta entre as relações sociais e o ambiente escolar. Guimarães (1996), em uma pesquisa sobre depredação do prédio escolar em duas escolas da cidade de Campinas, destaca o pensamento de Michel Maffesoli (1987), que dedica algumas de suas obras a esse tema e considera a violência como um dos elementos estruturantes da “socialidade”, uma herança comum a todos e constante do fenômeno humano, que representa um papel paradoxal na vida em sociedade. Nesse sentido, não considera a violência somente como saldo negativo, mas afirma ser preciso compreendê-la em sua lógica interna, na qual reside sua ambigüidade, expressa tanto nas suas formas destrutivas como nas construtivas, (Maffesoli 1987 apud GUIMARÃES, 1996, p. 8). Michel Maffesoli defende a tese de que a violência não apenas adquire diferentes modulações em diferentes momentos históricos, como também estabelece as regularidades que apontam para a constância de sua manifestação. Segundo ele, a socialidade atualmente caracteriza-se pelo vaivém entre a massificação e o desenvolvimento de microgrupos, entre a subjetividade e o coletivo. Este vaivém pode ser até ambíguo e conflituoso, mas é esta circulação que favorece o florescimento mais livre possível dos indivíduos no interior da socialidade, impedindo o totalitarismo de um conjunto que esquece, ou nega, aqueles que o constituem. O autor continua destacando três modalidades de violência nas quais demonstra para cada uma delas aspectos específicos de um duplo movimento entre destruição e construção, como também a estreita conexão entre eles, (Maffesoli 1987 apud GUIMARÃES, 1996, p. 9). Este tem como primeira a violência dos poderes instituídos, que se refere à violência dos órgãos burocráticos, dos Estados, do Serviço Público, em que a planificação e o controle racionalizados da vida social são objetivos fundamentais da burocracia. O resultado é a criação de um aparelho administrativo que garantirá a gestão de seus meios centralizados. Com a burocracia nasce uma classe dirigente que controla tudo o que escapa à produção propriamente dita. O explorador é anônimo e está presente na vida cultural da família, nos meios de comunicação de massa, no teatro, no lazer, na educação. A vida passa a ser controlada nos mínimos gestos, pois o que predomina é a planificação, a imposição e a representação. Quanto maior for o alcance da uniformização, maior força terá a violência. A homogeneização faz desaparecer a coesão social, esvaziando a socialidade de sua força, de sua potência e conduzindo a sobressaltos violentos. Para Maffesoli, o totalitarismo fracassa sempre, pelo menos em parte, graças ao irreprimível “querer-viver-social” que corrói as diversas formas de imposição mortífera. Aos elementos do totalitarismo juntam-se as forças que impedem o seu êxito completo e a qualquer momento, o processo de monopolização pode ser frustrado por perturbações que, à maneira “de um grão de areia”, num mecanismo aperfeiçoado, podem travá-lo totalmente. Na segunda modalidade de violência temos a anômica1, que segundo o autor é uma violência fundadora, que mostra a capacidade que uma sociedade tem de identificar-se consigo própria, de estruturar-se coletivamente quando assume e controla a sua própria violência. A tendência à destruição, à agressão, à crueldade é um dado fundamental da vida social, e ao invés de negá-lo ou eliminálo, é preciso ver como ele participa da estruturação da civilização. Nessa concepção, o autor mostra que a violência nunca é absolutamente desenfreada, porque ela entra num processo de negociação, adaptação. Se de um lado não escapa ao plano da adaptação, de outro, a violência não pode ser reduzida à sua estrutura utilitária. Porém, o autor considera que o desenvolvimento da sociedade industrial provocou o rompimento da polaridade _____________ 1 Para o autor, anomia, diferentemente de Durkheim que utiliza o termo em sua obra A Divisão do Trabalho Social, surge quando a autoridade exterior funcionaliza as relações sociais, compartimentalizando a existência e provocando a explosão do “querer-viver-social” que recusa a atomização. O poder, nas sociedades modernas, está cada vez mais distante do conjunto social, intervindo no cotidiano dos indivíduos, nos detalhes de sua existência. Esta imposição, que compartimentaliza a vida social, gera resistência, ou seja, as manifestações anômicas que expressam as diferentes formas de ilegalidade ou, como diz Maffesoli, “um desejo de querer-viver irreprimível” (GUIMARÃES, 1996, p. 12). destruição-construção, apontando o surgimento de uma violência que, de fundadora, passa a ser estritamente racionalizada, assim o controle passa a ser operado no âmbito de um monopólio administrativo, que nega a violência e conduz a uma organização social que suprimi as diferenças e remete a uma equivalência generalizada. Ao indicar o vaivém entre ordem e desordem que fundamenta a estruturação social, Maffesoli indica que se um dos pólos for bloqueado, o equilíbrio será rompido. Quando a violência é objeto de uma “negociação”, sendo assumida pelo ritual, pelo jogo, pela festa, pelo riso, pela fala, ela passa a restaurar a “harmonia conflitual” do coletivo. Viver regularmente a sua morte de todos os dias, enfrentar a crueldade e a morte é ritualizar a violência. Neste sentido, o ritual permite que, de maneira simbólica, haja o desenvolvimento de forças tanto agregadoras como antagônicas sob todas as suas formas (Maffesoli 1987 apud GUIMARÃES, 1996, p. 15). A violência banal aparece como terceira modalidade de violência. Ela está ativada no que o autor chama de “resistência de massa”. Submissões aparentes podem representar resistências reais, desde que se considerem as atitudes que, tomadas em conjunto, tendam a quebrar ou pelo menos desviar as imposições da planificação social. Sendo assim, a alienação da sociedade nunca é absoluta, porque a socialidade organiza-se entre dois pólos: a aceitação e a resistência. A expressão espontânea do querer-viver irreprimível recusa a atomização e retira a sua força das minúsculas atitudes do cotidiano. Maffesoli refere-se a um “imoralismo ético das massas”, que aparentemente aceita as diversas imposições morais, mas também consegue encontrar saídas para a expressão do querer-viver na socialidade. Se individualismo e coletivização extremados levam ao nivelamento de todas as diferenças e à pior das tiranias, viver a diferença é reconhecer a existência de uma desigualdade essencial que enfraquece a realização de uma unidade generalizada. O consenso, minado pela tensão das diferenças individuais e coletivas, favorece o florescimento dos indivíduos no interior de uma socialidade flexível e durável que não esquece e nem nega aqueles que constituem o conjunto social (Maffesoli 1987 apud GUIMARÃES, 1996, p. 18). Na visão de Chesnais, existem várias concepções de violência que deveriam ser organizadas segundo o seu custo social. Para o autor, o primeiro referencial é a violência física, inclusive sexual, que pode resultar em danos irreparáveis à vida dos indivíduos e exige a reparação da sociedade, mediante intervenção do Estado com medidas punitivas. A segunda abrange a violência econômica, que se refere somente aos prejuízos causados ao patrimônio, à propriedade, resultantes de atos de delinqüência como o vandalismo. Para o autor, essa modalidade foge ao sentido estrito da violência, pois não caracteriza a violação da integridade da pessoa, mas sim de seus bens. Uma terceira concepção tem por foco a idéia de autoridade, que possui forte conteúdo subjetivo, de cunho bem atual. Trata-se da chamada violência moral ou violência simbólica. O autor destaca que “falar de violência neste sentido é um abuso de linguagem, próprio a certos intelectuais ocidentais, excessivamente bem instalados na vida para conhecer o mundo obscuro da miséria e do crime” (Chesnais 1981, apud ABRAMOVAY e RUA, 2002, p. 68). Este autor sustenta que somente a primeira concepção tem por base uma definição etimologicamente correta. Assim, a violência física é que significaria efetivamente a agressão contra as pessoas, já que ameaça o que elas têm de mais precioso: “a vida, a saúde, a liberdade” (Chesnais 1981, apud ABRAMOVAY e RUA, 2002, p. 69). Apesar do respeito à contribuição da pesquisa realizada pelo autor, contextualizada em sua época e sua concepção, não podemos deixar de apontar que a citação trazida à baila, demonstrando a minimização do poder exercido pela violência simbólica, nos causou bastante inquietude. Pois não concebemos uma dissociação tão rigorosa, do quanto um tipo de violência pode influenciar o outro. Portanto, acreditando na vastidão do universo a ser devassado e julgando a concepção acima não suficiente para conceber a realidade como a vemos, estaremos nos embasando em outros autores e conceituações que melhor aprofundem o tema e com os quais possamos dialogar com maior identificação. Mas, em definitivo, os argumentos decisivos que provarão não só a existência, mas também e principalmente os efeitos nefastos da violência simbólica serão fornecidos pelos depoimentos daqueles que, entrevistados no decorrer da pesquisa, serão um contraponto decisivo aos argumentos de Chesnais. Autores brasileiros buscam aprimorar o conceito de violência, considerando a população alvo, os jovens e o lugar social da instituição escolar. A literatura nacional contempla não apenas a violência física, mas inclui o acento na ética e na política e a preocupação em dar visibilidade a “violência simbólica”. Temos como exemplo Spósito, que encontra estreitas relações entre a violência e a falta de diálogo, a falta da capacidade de negociação. Assim, para essa autora, “violência é todo ato que implica a ruptura de um nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a possibilidade da relação social que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo conflito” (SPÓSITO, 1998, p. 60). Conforme Spósito, devemos reconhecer que a noção de violência encerra diversos níveis de significação, pois a definição de um ato como violento ou não, são apontadas por atores em condições históricas e culturais diversas. Esses atores podem eleger condutas que envolvem destruição e força, mas não poderiam deixar de considerar também, práticas mais sutis que se dão no espaço escolar, mecanismos de violência simbólica, já estudada por Bourdieu e Passeron (1975). A autora aponta as grandes alterações dos significados correntes na referência à violência escolar. Atitudes que eram consideradas transgressões usuais dos alunos às regras da escola, até então toleradas, pois não prejudicavam seu desenvolvimento, hoje podem ser classificadas como práticas de violência. Ao contrário, podem ser considerados fatos rotineiros pelos atores envolvidos, condutas violentas, envolvendo agressões físicas. Por isso, Spósito defende que devem ser investigados os aspectos que dizem respeito ao modo como são construídas pelos atores enredados a escola, as definições que designam e normalizam condutas, como violentas ou indisciplinadas, no âmbito da instituição escolar. Por outro lado, Chauí trabalha com um conceito amplo de violência e aponta cinco sentidos conferidos à palavra: 1. tudo o que abrange a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2. todo ato de força contra a espontaneidade, à vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3. todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4. todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5. consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror (CHAUÍ, 1998, pp. 33-34). De acordo com Chauí, podemos observar a violência em atos concretos de agressão, destruição e transgressão das regras e da ordem em vigor e também os estados de violência, estando esta oculta em estados sutis de uso da força. Não se trata mais de atitudes brutais, mas de uma circunstância que oprime, reprime, violenta gradualmente, às vezes de forma quase imperceptível. Guimarães (1985) destaca que a escola tem estado perdida no papel de educar para a cidadania. Para a autora, a escola-presídio não só reprime como exclui: No regime de uma sociedade disciplinar como a nossa, a punição ao discriminar os comportamentos dos indivíduos, passa a diferenciá-los, hierarquizá-los em termos de uma conformidade a ser seguida, ou seja, a punição não objetiva sancionar a infração, mas controlar, qualificar o indivíduo, não interessando o que ele fez, mas o que é, será ou possa ser (GUIMARÃES, 1985, p. 94). Continuando, a mesma autora acredita que a realidade escolar motiva o uso indiscriminado de agressões como alternativa para uma realidade tão opressora. A ausência de autonomia, o estabelecimento de modelos de gestão pedagógica sugeridos por instâncias superiores, a imposição dissimulada e o sistema de gratificações atribuídas às instituições que melhor cumprirem a proposta do Estado inviabilizam a organização da escola de acordo com suas especificidades, competindo a essas exigir de seus sujeitos a ordem e a adaptação às regras, sem ao menos refletir se tem atendido a comunidade em suas necessidades. Gostaríamos também de apontar uma outra especificidade de violência escolar com ênfase bastante moderna, embora o fenômeno seja por demais antigo, conhecida como Bullying. E aqui nos apoiamos em Cléo Fante para definição do termo: Bullying: palavra de origem inglesa, adotada em muitos países para definir o desejo consciente e deliberado de maltratar uma outra pessoa e colocá-la sob tensão; termo que conceitua os comportamentos agressivos e anti-sociais, utilizado pela literatura psicológica anglosaxônica nos estudos sobre o problema da violência escolar (FANTE, 2005, p. 27). Nesta prática observa-se a opressão intencional e repetitiva, sem motivação clara de alguns estudantes a outros, através de agressões físicas ou psicológicas, como por exemplo, por apelidos pejorativos, xingamentos, gozações, ofensas, indivíduos que buscam inferiorizar, ridicularizar, oprimir outrem. Ainda não há como avaliar quantitativamente, mas sem dúvida tal prática causa traumas ao psiquismo de suas vítimas. A esse respeito também, comenta Pinheiro ao descrever os tipos de violência sofridos pelas crianças em ambientes escolares: A violência nas escolas também assume a forma de brigas e atitudes intimidatórias de colegas [...] A intimidação está freqüentemente associada à discriminação de estudantes de famílias pobres, de grupos etnicamente marginalizados ou com características pessoais singulares (como, por exemplo, sua aparência ou alguma deficiência física ou mental). Na maioria dos casos, a intimidação é verbal, mas ela pode também envolver violência física (PINHEIRO, 2006, p. 17). Observamos o crescimento de uma violência discriminatória no cotidiano escolar, em que se julga e exclue os que não se enquadram nos padrões determinados socialmente. Jovens são excluídos por não terem as características físicas apropriadas segundo padrão determinado pela da mídia, ou por não possuírem os bens dos modismos de mercado, ou ainda por não apresentarem a suposta “evolução” intelectual necessária para o acompanhamento do diálogo do grupo. Preocupa-nos tal pensamento, uma vez que é propagada na escola a cultura da intolerância para com a diversidade, e tão raras vezes observamos a abertura de espaços para a discussão desta prática tão rotineira nesse ambiente. Para o desenvolvimento desta dissertação, nos apoiaremos no conceito de violência simbólica apontado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Fazemos essa opção porque esse conceito trata de aspectos amplos desse fenômeno. Ainda que complexo, nos permite o desvelar de uma tendência à violência escolar, muitas vezes nem sequer percebida e tão pouco comentada, porém reveladora de enorme prejuízo à formação psicológica, emocional e sócio-educacional do indivíduo vitimizado. 2. A contribuição de Pierre Bourdieu A violência é muito mais sutil e profunda. (KRISHNAMURTI) A sociedade de um modo geral está cercada por diversas formas de violência, familiar, social, midiática, escolar (cf. Pinheiro, 2006). É ela o objeto de nossa preocupação e na qual esse trabalho se justifica. A violência na escola não é só física, intelectual ou econômica; há nela um tipo de violência velada, a violência ideológica, que tem como propósito a indução de valores de uma classe social sobre outra; é aquela que tem pouca visibilidade, mas que ocupa praticamente todos os espaços. A essa violência que se faz de forma dissimulada, principalmente pela ação pedagógica, chamamos de violência simbólica. O conceito de violência simbólica que empregamos tem por base o pensamento de Pierre Bourdieu. Buscando localizar o surgimento da teoria da violência simbólica defendida por este autor em um momento histórico específico, lembraremos um pouco do contexto em que a idéia se desenvolveu. As “teorias não–críticas”, segundo denominação de Saviani, reconhecidas como Pedagogia Tradicional, Pedagogia Nova e Pedagogia Tecnicista, concebiam a marginalidade como um desvio, cabendo à escola prover meios para corrigi-lo, bem como as injustiças (2006, pp. 15-16). Tais teorias tiveram dificuldades de cumprir seus objetivos porque consideravam somente a influência da escola sobre a sociedade, mas não os mecanismos sociais que interferem na escola. A proposta de universalização do saber, por exemplo, não foi cumprida até hoje. Nesse contexto, surgiram novos grupos a fim de discutir e repensar a educação. Entre eles, Ivan Illich com o texto Sociedade sem escolas (1970), indicando a necessidade da “desescolarização” da sociedade (1970, p. 87), pois o que ele observou é que a escola colaborava com a institucionalização do poder na sociedade. Para Illich (1970 apud ARANHA, 1989, p. 123), a escola exige das crianças freqüência obrigatória, a obediência cega e atitude servil; dizendo prepará-las para o mundo, corta os contatos com ele. De fato, para Illich, a escola não é lugar de criança, pois a violenta. Illich aponta quatro diferentes abordagens que permitem ao educando na sociedade “desescolarizada” ter acesso aos recursos educacionais: serviço de consultas a objetos educacionais em laboratórios, bibliotecas, museus, teatros ou até mesmo nas fábricas; intercâmbio de habilidades que permitem às pessoas oferecer seus serviços de acordo com suas aptidões; encontro de colegas que possibilita a reunião de parceiros de acordo com os interesses; serviço de consultas a educadores em geral com a finalidade de orientação e aconselhamento (ILLICH, 1976, p. 132). Segundo Aranha, o pensamento de Illich sofreu críticas por fazer objeto de suas ponderações somente a escola tradicional, não levando em consideração as contribuições progressistas posteriores. E também por se referir somente à dimensão individualista do homem, sem a análise dos conflitos sociais e da característica vigorosa que a instituição escolar pode assumir, possibilitando a expressão da personalidade e impedindo a dispersão dos pequenos grupos na sociedade (1989, pp. 125-126). As “teorias crítico-reprodutivistas”, de acordo com Saviani, postulam a necessidade de se compreender a educação a partir dos seus condicionantes sociais. Elas reconhecem a dependência da educação em relação à sociedade, concluindo ainda que a escola desempenha o papel de “reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista” (2006, p. 16). As teorias críticoreprodutivistas que mais se destacaram foram “teoria do sistema de ensino como violência simbólica”, proposta por Bourdieu e Passeron; “teoria da escola como aparelho ideológico de Estado (AIE)”, apontada por Louis Althusser; “teoria da escola dualista” de Roger Establet e Christian Baudelot. Na reflexão que fazemos da teoria apontada por Althusser a escola é instrumento de violência, pois em sua análise da reprodução das condições de produção, este autor aponta os Aparelhos Repressivos de Estado, representados pelo governo, exército, polícia, tribunais, mas dá maior ênfase aos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Entre estes, diz ser a escola o “instrumento mais acabado de reprodução das relações de produção de tipo capitalista” (SAVIANI, 2006, p. 23). Para Althusser, as instituições escolares transmitem às crianças de todas as classes sociais saberes enredados na ideologia dominante. E embora acredite que a escola pode ser local da luta de classes, o autor defende que o AIE escolar aspira a impossibilidade do pensar próprio e da autonomia da classe dominada. Na “teoria da escola dualista” a escola também pode ser considerada como instrumento de violência, uma vez que se defende como existentes apenas dois modelos de instituições com fins específicos de reprodução do saber de acordo com a classe social em que o indivíduo está inserido: se pertencente a burguesia (secundária superior) ou ao proletariado (primária profissional). Para Establet e Baudelot a escola contribui para a formação da força do trabalho, recalca os ideais do proletariado e difundi a ideologia da burguesia. Sem desconsiderar reprodutivistas” destacamos as influências como opção das demais “teorias de aprofundamento críticopara o desenvolvimento deste trabalho a primeira: “teoria do sistema de ensino como violência simbólica”, com a qual manteremos um diálogo mais amplo. Bourdieu usou o conceito de violência simbólica para descrever o processo pelo qual a classe dominante economicamente impõe sua cultura e interesses aos dominados. Segundo ele, ocorre a internalização desses referenciais nos subalternos, que reconhecem a necessidade desta dominação se colocando em um papel subordinado e passivo. Este autor, juntamente com o sociólogo JeanClaude Passeron, partem do princípio de que a cultura, ou o sistema simbólico, é arbitrário, uma vez que não se assenta numa realidade dada como natural. A esse respeito comentam: A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como sistema simbólico é arbitrária na medida em que a estrutura e as funções dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna à “natureza das coisas” ou a uma “natureza humana” (BOURDIEU e PASSERON, 1975, p. 23). O sistema simbólico de uma determinada cultura é uma construção social e sua manutenção é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade, através da interiorização da cultura por todos os seus membros. A violência simbólica se expressa na imposição dissimulada, com a interiorização da cultura dominante, reproduzindo as relações do mundo. O dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe como vítima deste processo. Considera a situação natural e inevitável e, assim, procura conformar-se. Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força (BOURDIEU, 1975, p. 19). A violência simbólica, por não utilizar os meios da violência direta, seja física ou armada, torna-se mais difícil de ser percebida ou mesmo categorizada e combatida. Ela é sentida, mas não detectada com clareza e, muitas vezes, prescreve-se como mão invisível agindo sobre a sociedade. Porém, suas conseqüências são evidentemente desastrosas, em especial para a formação de uma sociedade justa e igualitária. A sociedade legitima este tipo de violência seja por descaso, concessão ou mesmo incentivo feito pela veiculação de informações através da mídia, sendo admitida também na educação de certos padrões de comportamentos que devem ser seguidos, os quais trazem em si atitudes que podem ser consideradas como violentas à dignidade do ser humano não respeitando sua liberdade de escolha. O discurso capitalista tem em grande parte conduzido essa forma de violência, uma vez que se tornou responsável pela nova lógica social, “que tem levado a sociedade contemporânea a um extravasamento constante: excesso de objetos, excesso de lixo, excesso de modalidades de gozo” (MRECH, 2004, p. 1). As considerações de Gombin nos levam a acreditar que, numa sociedade capitalista, à produção alienada se junta o consumo alienado. Já não é tanto o produtor separado do seu produto como o consumidor separado do seu consumo, pois de acordo com o autor “o consumidor tornou-se consumidor de ilusões” (GOMBIN, 1972, p. 82). Segundo Bourdieu e Passeron, “toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural” (1975, p. 20). Para esses autores, a violência simbólica ocorre toda vez que se impõe um significado como legítimo e verdadeiro. Em relação ao contexto escolar, podemos dizer que quando se ensina algo, sem explicar quais as relações de poder da sociedade que determinaram sua validade, está se praticando uma “delinqüência pedagógica”, isto é, se comete uma violência do ponto de vista simbólico. Bourdieu afirma que a violência dos adolescentes, que se poderia crer em ruptura com a ordem social e, em particular, com a escola, é apenas a reprodução conformista das violências sofridas. O autor propõe uma “lei de conservação da violência” (2001, p. 274), que é, em última análise, “o produto da violência interna das estruturas econômicas e dos mecanismos sociais revezados pela violência ativa dos homens” (idem). A violência exercida pelos jovens e pelos fracos é, para ele, um agente da reprodução social, se detendo nos limites do universo imediato sem combater as estruturas de dominação. A proposta de Bourdieu e Passeron (1975) aponta para uma nova perspectiva, contrária ao pensamento funcionalista que se atribuía ao papel da escola, pois os autores identificam que a escola está longe de ofertar igualdade de oportunidades, sobretudo, o processo educacional, ou a ação pedagógica. Pois a escola age como agente de reprodução e legitimação das desigualdades sociais. A educação perdeu seu papel na transformação da sociedade para ser uma colaboradora nas injustiças sociais, que de maneira dissimulada trabalha para a manutenção da desigualdade social e do pensamento de que as diferenças jazem do próprio aluno e não do sistema. O conceito de violência simbólica de Bourdieu rompe com as concepções da ação pedagógica não violenta, neutra. A violência física é tratada nos meios jurídicos, a violência simbólica encontra sua legitimação nos currículos escolares, que asseguram a perpetuação da cultura da classe dominante, uma vez que o sujeito é impedido de elaborar sentidos e significados, pois estes já estão prontos para serem assimilados. O exercício de ensinar, a ação pedagógica está longe de ser neutra, pois carrega em si, de maneira sutil, a preponderância do dominante sobre o dominado, do que instrui sobre o que é instruído, pois as próprias relações de poder legitimam as divisões de classes, nas quais técnicas punitivas e cruéis na ação pedagógica são substituídas pela violência simbólica. A desigualdade na escolarização reproduz e determina as desigualdades nas relações do mundo do trabalho, pois àqueles que melhor dominam os conteúdos da cultura geral, “arbitrária”, caberão os melhores empregos, e àqueles que têm mais dificuldades para absorver tais conteúdos, cabem os subempregos, ou até mesmo o desemprego. Para Bourdieu, o indivíduo que possui capital cultural tem infinitamente mais chance de conseguir êxito escolar, pois o currículo da escola se constitui num verdadeiro julgamento sobre o aluno. A violência simbólica está “infiltrada” em todos os espaços da sociedade. Podemos identificá-la tanto na desregulamentação das estruturas básicas do setor econômico e social, como por exemplo: alimentação, moradia, educação, segurança, lazer etc., quanto na estrutura que trata da formação política e cultural do sujeito, ou seja, aquela que prepara o indivíduo para atuar no contexto social, deixando-o intervir nas decisões, realizando escolhas acertadas na construção da sociedade. A violência simbólica pode ser exercida em diferentes esferas da sociedade: o Estado, a mídia, a escola, entre outras. O Estado age, por exemplo, ao propor leis que evidenciam os educandos que não obtiveram os avanços necessários para prosseguirem nas séries seguintes e foram obrigados a repetirem a série, ou melhor, o ciclo em um só ano. Esses alunos são matriculados em “classes especiais”, denominadas “Recuperação de Ciclo”, e, dessa forma, todos são postos em uma única sala diferenciada e assim, conseqüentemente, ficam tachados dentro da escola como incapazes, repetentes, desinteressados. A mídia manifesta a violência simbólica ao impor a indústria cultural, que segundo Adorno e Horkheimer (1985), caracteriza-se por levar o indivíduo à ilusão sobre sua liberdade de escolha e, devido às estratégias dissimuladas, torna-o incapaz de perceber esta trajetória como violência. A ação da mídia por um lado massifica a cultura popular e por outro restringe cada vez mais o acesso à cultura própria do indivíduo, bem como defende como certa a construída pela classe dominante. A mídia age como veículo de transmissão de violência ao instigar sensações que geram audiência à programação, com efeito mais estético que cultural. A imagem é capaz de tornar bonito algo feio, atraente algo repugnante; o esteticismo tem sido o novo paradigma. Quanto aos conteúdos violentos, há uma veiculação intensiva pela mídia e isso tem acarretado, segundo Costa, outro fenômeno que é tão grave quanto à própria violência, “a banalização da violência” (1986, p. 50), ou seja, as pessoas se familiarizam gradativamente com tais episódios e reagem como se a violência fosse algo “natural” do ser humano, parte da sua natureza. Quanto à educação, ela está no centro desta discussão. Teoricamente, através da educação o indivíduo pode se tornar capaz de distinguir quando está sendo vítima da violência simbólica e, assim, tornar-se um ator social que possa confrontar e até impedir sua legitimação. Entretanto, a realidade que encontramos na escola pesquisada mostra outros aspectos e contextos. Devido à realidade sócio-econômica presente, os pais são impelidos a aumentarem suas horas de trabalho e, assim, distanciam-se cada vez mais do papel de educar seus próprios filhos, minimizando o tempo de dedicação e diálogo com estes e reduzindo a idade que entregam seus filhos à escola. Mas, a escola que encontramos, infelizmente, ao invés de cumprir seu papel na formação de cidadãos, muito tem contribuído para a legitimação do poder pela classe dominante, uma vez que não viabiliza em seu espaço momentos para discussão da sua prática e sua função na sociedade. Bourdieu e Passeron (1975) avaliam a ação pedagógica como forma de violência simbólica, pois contribuem para a reprodução das estruturas de poder. A autoridade pedagógica que se estabelece por vários anos faz com que o sujeito interiorize os princípios da classe dominante de tal forma que, mesmo não existindo mais a ação pedagógica em sua vida, ele atue como se ela existisse. Então, essa cultura “arbitrária” passa a fazer parte da vida do indivíduo como processo natural. Os autores incutem um cunho de violência ao trabalho do educador, uma vez que ao invés de oferecer igualdades de possibilidades, oferece um arbítrio de regras, normas, conceitos, conteúdos, preconceitos, cujo objetivo é o de consolidar e perpetuar a cultura dominante. Pensando-se na escola pública brasileira, percebemos a falta de preocupação desta com a origem e realidade dos seus educandos nos mais diversos aspectos, como os valores culturais, sociais, econômicos, familiares, e acaba por tentar lhes transmitir o "ensino padrão", aquele que tem como interesse a legitimação do poder para poucos. Na escola, geralmente presenciamos atitudes carregadas de preconceitos em relação aos diferentes processos de aprendizagem, exigindo uma (inexistente) uniformidade, o cotidiano pleno de urgências burocráticas, o discurso não praticável, os rótulos sugeridos por diferentes programas educacionais, na realidade distante tanto de alunos quanto de professores, também são espaços onde a violência simbólica pode (re)produzir-se, pois se esconde atrás de discursos democráticos, de metodologias inovadoras, de propostas para igualdade e mudanças radicais na comunidade e de soluções para os problemas sociaispolíticos-econômicos. A violência simbólica, então, instala-se nos não-documentos da escola. Não é algo oficializado nos discursos, explícito e por isso pode manter-se durante gerações, sem que as pessoas envolvidas percebam-se vítimas de tal violência, mas isso não significa que não levem consigo conseqüências nefastas destas agressões. Ao optarmos pela violência simbólica de Bourdieu como referência ao nosso trabalho não deixamos de considerar as críticas realizadas a esse autor e suas interpretações sobre o fenômeno da violência. A propósito, consideramos importante destacá-las, uma vez que nos desperta para as limitações já identificadas com as quais também podemos dialogar. Segundo Aranha, o radicalismo das teorias crítico-reprodutivistas leva a um pessimismo imobilista ao considerar a escola como reprodutora das desigualdades sociais, acreditando que somente se poderá agir a favor da igualdade no âmbito escolar quando não houver mais a exploração de classe. A autora faz uma crítica a Bourdieu e Passeron ao dizer que, se a classe dominante necessita impor através da escola seu poder e seus valores como legítimos, é porque existe uma resistência e capacidade de luta da classe dominada que não se submete assim tão passivamente àquilo que é imposto pelas classes dominantes (1989, p. 135). É exatamente essa capacidade de resistência e luta da classe dominada que gostaríamos de ressaltar, pois cremos em possibilidades de diálogos que venham contribuir na identificação, na percepção da violência escolar e na discussão de estratégias que possam contribuir para o enriquecimento das ações escolares frente a esta problemática. Para isso são necessários muitos esforços, e não de pessimismo e de desânimo. Além desta breve apresentação sobre os conceitos de violência escolar, temos como proposta para continuidade do trabalho a observação e reflexão do que acreditamos ser uma manifestação de violência simbólica praticada no ambiente escolar e determinada pelo Estado, a instalação no sistema de ensino público de São Paulo do projeto denominado “Recuperação de Ciclo”, que será melhor descrito e alvo de estudo mais aprofundado no capítulo seguinte. CAPÍTULO II – OS ASPECTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA E A CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA 1. A metodologia utilizada: a pesquisa participante Tivemos bastante cuidado e preocupação no processo de escolha da metodologia a ser utilizada, devido ao fato de ser o pesquisador um agente de contato direto com o objeto de pesquisa, como colega de trabalho dos professores pesquisados e educadora do grupo de estudantes. Procuramos uma metodologia que viesse atender nossas necessidades, por um lado, de atendimento ao rigor de uma pesquisa científica, por outro, com o olhar e sensibilidade perante o fato de sermos parte do objeto de pesquisa. Enfim, uma metodologia que contemplasse nossos objetivos, bem como, norteasse os caminhos mais seguros para elaboração das estratégias de trabalho. Os métodos científicos positivistas defendem a pesquisa com base no modelo procedimental das ciências naturais, que trata os fenômenos como objetos, defendendo a neutralidade, objetividade e o rigor. Nessa perspectiva toda pesquisa científica deveria adotar esse procedimento, mesmo que as das ciências humanas, pois produz o verdadeiro conhecimento, sem erros nem equívocos, não permite dúvidas às interpretações e não dá voz às subjetividades dos sujeitos. Muitos autores fazem uma crítica à objetividade “neutra” e impessoal do método positivista, entre eles Gramsci (1987 apud MARTINS, 2004), que descarta qualquer possibilidade de se ter no processo de construção do conhecimento a neutralidade e ainda destaca ser o trabalho científico afetado por percalços como a realidade econômica, social e política vivida pelo pesquisador, bem como também sua subjetividade. Brandão a esse respeito é também contrário à neutralidade do pesquisador. Ele declara, após a leitura em livros de teoria científica e de biografias de grandes pesquisadores: Me disseram que entre o astro e o telescópio e entre o vírus e o microscópio estão cientistas, isto é, estão pessoas treinadas para o que fazem, mas pessoas. Seres humanos que são olhos e áreas cerebrais únicas de percepção do que é visto. O telescópio multiplica o olhar, mas ainda é um olho humano que vê o que olha (BRANDÃO, 2003, pp. 3637). Como os autores, acreditamos que a totalidade que compõem a pesquisa científica inclui a realidade vivida e também a subjetividade do autor, e elas interferem no processo de produção do conhecimento. Mesmo que se almeje a neutralidade e por mais que o pesquisador tente se afastar do objeto de sua pesquisa, sua situação concreta e subjetividade interferem no processo do conhecimento. Ao participar desse fenômeno, cabe ao pesquisador o cuidado metodológico de registrar as informações que possam ajudar no processo de pesquisa, e o fato de estar ligado diretamente ao objeto deve ser tido não como entrave ao bom desenvolvimento do conhecimento, mas como um elemento facilitador dele. Assim sendo, adotamos como metodologia a ser utilizada na investigação a pesquisa participante, por acreditarmos que, através dela, é possível apreender o real significado do que ocorre no interior da escola, as redes de relação de poder e as formas de resistência que nela se passam, pois segundo Brandão: Enquanto um sujeito vivo, mas provisório da “minha pesquisa”, torna-se o companheiro de um compromisso cuja trajetória, traduzida em trabalho político e luta popular, obriga o pesquisador a repensar não só a posição de sua pesquisa, mas também a de sua própria pessoa (BRANDÃO, 1999 p. 13). Nessa ótica a pesquisa avança para além da ampliação do conhecimento cientifico e assume uma função social de contribuir com o grupo onde a investigação se desenvolveu. O pesquisador por fazer parte da realidade observada com a exploração do ambiente, com o enriquecimento de conteúdo propiciado pelo aprofundamento dos estudos já realizados, consegue ampliar a visão que outrora era limitada, repensa seu posicionamento e amplia sua condição de contribuir para aprimoramento da realidade apreendida. Portanto, optamos por esta metodologia, uma vez que considera vários métodos de pesquisa social, nos quais se estabelece uma estrutura ativa e participativa na obtenção de informações. E nela, continua o autor: Está inventada a pesquisa participante. Não porque – como querem tantos, tantas vezes – uma fração obediente de sujeitos populares participa subalternamente da pesquisa do pesquisador, mas porque uma pesquisa coletiva participa organicamente de momentos do trabalho de classe, quando ela precisa se reconhecer no conhecimento da ciência (BRANDÃO, 1999 p. 13). O sujeito de conhecimento não é formalmente desconhecido na pesquisa participante, é reconhecido como aquele que interage com o objeto mediante suas ações e motivações objetivas e subjetivas. Assim sendo, o conhecimento produzido nesse tipo de pesquisa tem também a finalidade de conscientizar o grupo a respeito de sua situação e implementar alguma ação que possibilite uma melhoria para os seus participantes. Sobre essa consideração nos fala André, em sua referência a pesquisa participante: Há, assim, um sentido político muito claro nessa concepção de pesquisa: partir de um problema definido pelo grupo, usar instrumentos e técnicas de pesquisa para conhecer esse problema e delinear um plano de ação que traga algum benefício para o grupo. Além disso, há uma preocupação em proporcionar a essas classes sociais um aprendizado de pesquisa da própria realidade para conhecê-la melhor e poder vir a atuar mais eficazmente sobre ela, transformando-a (ANDRÉ, 1995, p. 33). Destacamos dois objetivos com a realização dessa pesquisa: um de conhecimento, pelo qual se busca obter dos professores e estudantes suas visões acerca da violência escolar; outro prático, que pretende contribuir na discussão e sugestão de propostas contempladoras de ações da escola frente à violência em seu espaço. Foi aplicado um questionário com questões abertas para os professores com o propósito de: investigar suas visões sobre a violência no espaço escolar; analisar o tempo que trabalham com o projeto, bem como a razão que os motivou a admitir aulas nessa sala; a avaliação que fazem da montagem do projeto de recuperação de ciclo e sobre sua eficácia para a aprendizagem; sua percepção sobre o comportamento dos educandos desta sala, em especial; apontamentos de manifestações de violência na escola e neste grupo, bem como explicações para suas causas. Procuramos atingir esse objetivo com as respostas às seguintes perguntas: 1- Há quantos anos você dá aulas no projeto da RC II? O que o motivou a pegar aulas nessa sala? 2- Como você avalia a aglomeração desses alunos em uma única classe para a implementação de um trabalho diferenciado? 3- Como você vê a eficácia desse projeto para a aprendizagem dos alunos? 4- Como é o comportamento dos alunos dessa sala, comparando-a com outras que você trabalha? 5- Você identifica violência nessa sala? De quais tipos? 6- Quais as razões que você identifica para a existência de violência nessa sala, em específico? 7- Para você o que é violência? 8- O que você entende por violência escolar? 9- Na sua vivência de professor, que ato de violência grave já presenciou: a) Praticada pelo aluno? b) Sofrida pelo aluno? Para os estudantes foi aplicado um primeiro questionário com questões fechadas para investigação de seu perfil sócio-econômico. O referido questionário buscou avaliar se a condição econômica dos educandos pode ser considerada um dos fatores influenciadores de atitudes e manifestações de violência na escola, visto que este grupo é tido pela comunidade escolar como de difícil convivência e praticantes de atos violentos. Procuramos investigar seu perfil sócio-econômico com as seguintes perguntas: 1- Nome: ____________________________ Idade: _______ Sexo: _____ (sua identificação não é obrigatória) 2- Mora em casa: a) ( ) Própria b) ( ) Alugada 3- Mora com: a) ( ) pai e mãe b) ( ) só pai c) ( ) só mãe d) ( ) tios e) ( ) outros 4- Quantos moram na casa: a) ( ) 4 pessoas b) ( ) 5 pessoas c) ( ) 6 pessoas d) ( ) 7 pessoas e) ( ) Mais de 8 pessoas 5- Sua casa têm quantos cômodos: a) ( ) menos de três b) ( ) quatro c) ( ) cinco d) ( ) seis e) ( ) mais de seis cômodos 6- Contando o salário de todos que trabalham na casa, a renda da família é de aproximadamente: a) ( ) um salário mínimo b) ( ) dois salários c) ( ) três salários d) ( ) quatro salários e) ( ) mais de quatro salários * O valor do salário mínimo atualmente é de R$ 350,00 7- Você tem computador em casa? a) ( ) Sim b) ( ) Não 8- Na sua casa tem carro? a) ( ) Não b) ( ) Sim, um carro c) ( ) Sim, mais de um carro Em seguida, foi aplicado aos estudantes um segundo questionário com questões abertas com os propósitos também de: investigar suas visões sobre a violência no espaço escolar; a avaliação que fazem da montagem do projeto de recuperação de ciclo e sobre sua eficácia para sua aprendizagem; como se sentem em relação à sua reprova; sua percepção sobre seus comportamentos; apontamentos de manifestações de violência na escola, por e contra si mesmos, bem como explicações para suas causas; saber se já sofreram violência doméstica, para verificarmos se este é um dos fatores causadores da banalização da violência na escola e de sua prática cotidiana; observar sua percepção de violência contra si e se ao declará-la têm e como sido atendido. Usamos como instrumento as seguintes perguntas: 1- O que você acha de ter sido reprovado (a)? 2- Como se sente estudando em uma sala com pessoas que como você também foram reprovadas? 3- Após estudar um ano nessa sala, sente-se mais preparado (a) para no próximo ano cursar o Ensino Médio (Colegial)? 4- O que você entende por violência? 5- Já sofreu algum tipo de violência em casa? Qual? 6- Você acha que há violência na escola? Caso sim, quais os tipos de violência que acontecem nesta escola? 7- Você sofre ou sofreu violência aqui na escola? Em qual situação? 8- Quando sofreu a violência citada na questão anterior, você contou a seus pais ou professores? Se afirmativo, o que eles responderam? Tomaram alguma atitude? 9- Você acha que provoca algum tipo de violência na escola? Quando? Por favor, tente explicar por que faz isso. 10- Comente um caso de violência ocorrido na escola que mais chamou sua atenção? A intenção com os questionários foi de reunir diálogos que nos permita visualizar a interpretação dos sujeitos da pesquisa acerca da violência no meio escolar, como a percebem, suas causas e quais os reflexos que trazem para a prática cotidiana. Para tanto não nos preocupamos com a identificação destes na resposta as perguntas, pois procuramos incentivar um clima de liberdade que propiciasse lealdade e maior veracidade nas respostas. O levantamento de opinião realizado com os dois grupos, educandos e educadores, nos permite um confronto das percepções desses agentes e nos fornece uma oportunidade enriquecedora de observar a sincronia ou não de suas visões. Auxilia no entendimento do cotidiano de conflitos vivenciado por estes e a pensar alternativas que venham contribuir para o estreitamento das fronteiras que divergem suas idéias ou ao menos sensibilizar tais sujeitos acerca desta divergência. Na continuidade do trabalho buscaremos descrever e caracterizar a escola com a finalidade de identificação das especificidades da comunidade em que a pesquisa se desenvolveu. 2. A caracterização da escola A escola faz parte da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo. Está localizada num dos extremos da cidade, num bairro bastante populoso, composto de classe trabalhadora, com comércio diversificado inclusive um Shopping Center. A grande maioria da sua população é migrante de diversas regiões do Estado e de outros do Brasil, pessoas que vieram de cidades pequenas em busca de trabalho nas indústrias têxteis da região. O espaço físico da escola é amplo, comparada a outras da redondeza, com dezoito salas de aula, uma biblioteca, uma sala de informática, uma sala de vídeo, uma sala direcionada ao Projeto de Matemática (desenvolvido em parceria com a Unicamp), o qual não se pôde neste ano observar resultados, uma sala de professores, uma sala para as inspetoras, uma sala de direção e uma para a vicedireção, uma sala de coordenação, um consultório odontológico, com raro atendimento durante o ano, uma sala de arquivo, uma sala de materiais pedagógicos, dois banheiros destinados aos alunos e três designados aos funcionários. Possui ainda uma cozinha, cantina escolar e ampla secretaria, duas quadras, sendo uma coberta, com espaço arborizado entre estas e o pátio. Destacamos que na sua entrada fica a Secretaria, cuja porta com fechadura eletrônica é aberta pelos funcionários que ali trabalham no horário de atendimento ou para saída de grupos de alunos que foram dispensados mais cedo. Nesses momentos, por muitas vezes, saem estudantes não autorizados junto aos demais. A diretoria e a coordenação pedagógica se localizam próximas à entrada da escola e em seguida, após uma pequena escada e com saída para o pátio, encontram-se os três corredores de salas de aula, bastante afastadas da diretoria e da coordenação. Na entrada para os corredores existe uma grade, cujo cadeado fica com as inspetoras. A grade fica encostada no período de aulas, porém, é trancada no momento do recreio, para evitar, segundo a diretora, vandalismos com o patrimônio escolar e materiais dos alunos. No final de um dos corredores das salas de aula percebe-se um amontoado de carteiras, cadeiras e mesas quebradas. Nas classes a maioria das carteiras está com os tampos de madeira soltos e falta mobiliário, tendo os alunos, em todo o início das aulas que remanejar de outras salas. Na caracterização humano-gerencial a escola tem uma diretora designada, uma vice-diretora, duas coordenadoras pedagógicas, sendo uma para o período diurno e outra para o período noturno, uma secretária designada2, cinco agentes de organização escolar e cinco agentes de serviços escolares. Oferece atualmente o Ensino Fundamental (5ª a 8 ª Série), Ensino Médio no ______________ 2 Usa-se o termo “designado” para o funcionário que é afastado de seu cargo original para desempenhar uma nova função temporariamente, tal procedimento é realizado com amparo legal. diurno e noturno e EJA - Telessala (educação de jovens e adultos) com presença flexível, no período noturno. Atende neste ano de 2006 um total de 1644 alunos, de bairros adjacentes, com uma clientela diversificada oriunda de diversas regiões do Estado e também de outros estados. Sua distribuição é de 15 salas no período da manhã, 15 salas no período da tarde e 13 salas no período noturno. Criada em 1982 por necessidade da demanda de crianças em idade escolar, com o passar do tempo a escola tornou-se uma das maiores referências do bairro. A escolha da escola está relacionada ao trabalho nela realizado há quatro anos e nos ser possibilitado liberdade para a investigação e levantamento dos dados. Iniciamos a pesquisa em setembro de 2006, sendo na época a gestora designada pela Diretoria de Ensino de Americana, pois a diretora efetiva da escola encontrava-se em licença, fato que tem se repetido há alguns anos nesta instituição, sendo administrada sempre por diretores substitutos. Dessa forma, foi conversado com a diretora substituta, que têm uma experiência de 07 anos na vice-direção da escola. A ela foram expostos os objetivos, interesses e diretrizes da pesquisa a ser feita na unidade escolar e pedida à autorização para realização dos trabalhos. A diretora, com bastante interesse autorizou a investigação, bem como a identificação e a utilização de documentos necessários no decorrer do trabalho. É importante salientar que a maioria do corpo docente é efetiva na unidade escolar e demonstra satisfação em nela trabalhar: “a escola é boa, o grupo é unido, e os alunos, apesar do caos que se encontra a educação, aqui ainda são educados”, comenta um dos professores. Relacionando-se aos estudantes, percebemos que a grande maioria gosta de estudar na instituição e os pais aprovam o trabalho realizado pela escola. Tanto que nas reuniões de pais, percebe-se a presença de mais de 50 por cento deles, principalmente nas séries iniciais como 5ª e 6ª séries. Segundo a última investigação feita pelo sistema de avaliação externa (Saresp), aplicado em 2005, embora com resultado considerado baixo pela equipe escolar, principalmente no que se refere à Matemática, a escola ficou bem próxima da média estabelecida pela diretoria de ensino à qual pertence, como apresentado no relatório de desempenho geral das provas: Tabela 1 - Média dos Escores Verdadeiros em Leitura e Matemática da 5ª série do Ensino Fundamental a 3ª série do Ensino Médio Média dos escores verdadeiros Leitura Matemática Série Escola Diretoria Escola Diretoria 5ª (EF) 67,5 65,0 44,4 43,2 6ª (EF) 65,6 65,0 41,2 42,9 7ª (EF) 62,1 60,0 37,9 37,4 8ª (EF) 60,9 62,0 34,1 33,5 1ª (EM) 58,1 58,6 37,1 35,9 2ª (EM) 54,5 55,0 31,1 31,3 3ª (EM) 59,0 58,9 27,2 27,9 Fonte: Relatório geral enviado a escola, 2005. Escores Verdadeiros variam de 0 a 100. Segundo Saresp (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) de 2004, escore verdadeiro é uma estimativa do percentual de acertos supondo que os alunos da série tenham respondido a todas as questões das provas de todos os períodos (manhã, tarde, noite). Assim, o escore verdadeiro permite comparar os desempenhos dos alunos de uma série mesmo que eles tenham respondido a provas diferentes nos períodos. Ao ler a tabela podemos constatar o baixo resultado obtido pelos alunos na respectiva avaliação, fato que nos leva a pensar na baixa qualidade de ensino oferecida aos nossos jovens, principalmente nas séries finais da educação básica. Porém, não aprofundaremos tal questão, visto que a pesquisa por nós desenvolvida não contempla essa análise. De modo que indicamos tais resultados apenas com o intuito de esclarecimento, a fim de se conhecer outros ângulos da escola onde o trabalho se desenvolveu. E, para elucidar melhor sua realidade, apresentaremos também suas taxas de aprovação, reprovação e abandono, comparando-a com outras da mesma Diretoria de Ensino e, mais amplamente, da rede estadual: Tabela 2 – Taxas de Aprovação, Reprovação e Abandono por segmento de ensino Série Escola Diurno 5ª a Diretoria de Ensino Noturno Diurno Rede Estadual Noturno Diurno Noturno AP RP AB AP RP AB AP RP AB AP RP AB AP RP AB AP RP AB 93,8 2,4 3,8 - - - 92,3 5,6 2,1 60,9 19,7 19,4 89,8 7,7 2,5 64,8 18,9 16,3 8ª (EF) 1º ao 84,9 9,9 5,2 72,3 14,7 13,0 81,6 13,5 4,9 72,8 17,2 10,0 83,4 12,5 4,1 73,0 16,5 3º (EM) Fonte: Censo Escolar, MEC, 2004. Percebemos que na maioria das aulas os professores organizam os alunos em fileiras, buscando um melhor controle das crianças, e de acordo com a disciplina fazem um “mapa de classe”, que se constitui na determinação do lugar específico que cada alunos deve sentar, ficando este proibido e sujeito à punição caso se acomode em outro lugar que não o determinado pelo professor. Acreditamos que parte desta postura deve-se ao alto número de alunos por sala, dificultando um agrupamento diferente. De outro modo, esse procedimento se dá pela cultura recebida pelo próprio professor e a ausência na sua formação de uma discussão pedagógica que o fizesse refletir e construir outras possibilidades. Mas concordamos que no ato de se enfileirar as crianças, utilizar ameaças para se conseguir o tão esperado silêncio e suposta atenção, está embutida uma violência simbólica que marca a maneira de agir frente a outrem, tido como superior, cabendo-lhe somente o ouvir e respeitar. Segundo Foucault: Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Essa determinação de lugares fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também, de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (FOUCAULT, 1987, p. 126). Ao bater o sinal para o intervalo, os alunos, saem ansiosos de suas salas, parecem animados por abandonarem aquela posição e terem a permissão para conversar, gritar, cantar. Seus semblantes parecem mostrar uma alegria não observada lá dentro. 10,5 Apesar de ser uma escola com vasto espaço físico, percebe-se seu pouco aproveitamento. A sala de informática, com poucos computadores e alguns danificados, não encoraja o professor a usá-la com seus cerca de 38 alunos. Para ser utilizado o laboratório de Ciências precisa da antecipação da programação do professor, que deverá buscar os materiais que estarão guardados nos armários com chaves da direção, coordenação, pois a sala não tem a segurança necessária para abrigar peças tão caras. As aulas de Educação Física, que poderiam servir para, além de incentivar a preocupação com a saúde, animar os alunos, não é assim tão motivadora, pois a quadra encontra-se cheia de buracos e pedaços de ferro à mostra, fator que preocupa os docentes em relação ao bem estar dos jovens. Os pedidos de reparos e materiais são feitos, mas a devolutiva é muito lenta, quando não insuficiente. Neste ano foi realizado um diagnóstico da escola pela direção, para elaboração da proposta pedagógica em 2006. Destacaram-se com este levantamento os seguintes problemas a serem considerados: - dificuldade de aprendizagem e defasagem de conhecimentos nas séries iniciais; - abandono no Ensino Médio, principalmente noturno; - alto grau de criatividade dos alunos, mas dificuldade no entendimento crítico de leituras e redação de diferentes formas de texto; - afastamento de considerável número de pais que se preocupando principalmente com a luta pela sobrevivência, deixam à escola como item secundário na ordem de prioridades; - discussão junto à comunidade sobre o conceito de cidadania e ética para se elucidar problemas e conseguir parcerias; - necessidade de implantação de atividades, projetos que reforcem a visão de que a escola é um espaço de humanização das relações interpessoais. Segundo o diagnóstico e visando viabilizar o ideal pedagógico proposto pela escola, o referido documento aponta comprometimentos futuros, com metas estabelecidas a curto, médio e longo prazo, que se empenharão em otimizar as diretrizes que regem a proposta pedagógica, sendo elas: o estabelecimento de valores fundamentais para se viver em sociedade o “alicerce” da prática pedagógica; a comunidade escolar tendo como vértice norteador os princípios de igualdade, liberdade, respeito próprio e mútuo. Segundo questionário aplicado no início do ano de 2006, com a finalidade de organização do planejamento do ano letivo constatou-se que a maioria dos estudantes da escola é estabelecida por famílias tradicionais (pai e mãe), alguns, até que poucos, se comparando ao número de alunos que a escola atende, com dificuldades econômicas graves, mas a maioria possue razoáveis condições financeiras, que permitem a aquisição de materiais básicos para as aulas. Há também algumas famílias com dificuldades financeiras temporárias decorrentes do desemprego, estas são atendidas, em relação aos materiais escolares, com recursos da APM (Associação de Pais e Mestres), até que consigam trabalho. Diante de uma escola com tantos alunos fez-se necessário à delimitação de um grupo para a realização da pesquisa, visto que seria difícil a viabilização e análise dos resultados do trabalho com um grupo muito grande. Sendo assim, após longa reflexão escolhemos àqueles que serão os sujeitos da nossa pesquisa e estaremos detalhando os motivos que nos levaram a tal escolha, na parte que se segue neste capítulo. 3. A classe de Recuperação de Ciclo II A escolha dos objetivos da pesquisa incidiu sobre os professores e alunos da classe de recuperação de ciclo II, baseado no pressuposto de que seriam elementos fundamentais do processo educativo, que devido a um cotidiano de conflitos poderiam melhor elucidar a temática da violência na escola. O trabalho com este grupo de estudantes destaca-se como árduo em relação a outros grupos de igual série por evidenciar em um mesmo ambiente problemas que a escola não tem dado conta de resolver, tais como: o desinteresse dos estudantes com seu aprendizado; atitudes indisciplinares severas; ausência da participação dos pais na vida escolar de seus filhos. Enfim, uma comunidade que evidencia aquilo que a escola não atende e, demonstra firmemente sua atuação na reprodução de um sistema de violência simbólica que não questiona, nem sequer visualiza. De acordo com a Deliberação CEE nº 09/097 e a Indicação CEE nº 08/97 institui-se, no sistema de ensino do Estado de São Paulo, o regime de progressão continuada no ensino fundamental e sua divisão em ciclos, sendo o ciclo I, de primeira a quarta série, e o ciclo II, de quinta a oitava série. Para garantir atividades de reforço e de recuperação paralelas e contínuas ao longo do processo e, se necessárias, ao final de ciclo ou nível, conforme assegura o terceiro capítulo3 do Art. 3º, a SEE implantou para todo o estado o projeto de recuperação de ciclo. A classe de recuperação de ciclo é constituída por alunos retidos nos finais dos ciclos, ou seja, 4ª ou 8ª série. Esses estudantes são agrupados em uma mesma classe, em um número menor que a média das outras salas, cerca de vinte e cinco para a realização de uma ação exclusiva, que segundo a Secretaria de Educação tem como objetivo, através de um ano de trabalho diferenciado com programação específica, o atendimento às reais necessidades dos alunos, auxiliando-os na construção e retomada de habilidades e conteúdos não desenvolvidos durante o ciclo, possibilitando-os prosseguir satisfatoriamente os estudos. Todavia, após três anos de trabalho com a classe de Recuperação de Ciclo II (8ª série), ficamos avaliando o quanto realmente esse projeto preparava o aluno para o prosseguimento de seus estudos, visto que não pareciam demonstrar interesse pelo conteúdo apontado, pelas atividades propostas. Ao contrário, tratase de um grupo de difícil convivência, com inúmeros conflitos entre os próprios estudantes e destes para com os demais da equipe escolar, diversas advertências, suspensões, convocação de pais. Em conversas informais com os estudantes, estes declararam que não gostavam de estar nesta sala, pois eram evidenciados como repetentes e ____________ 3 Artigo 3º - O projeto educacional de implantação do regime de progressão continuada deverá especificar, entre, outros aspectos, mecanismos que assegurem: III – Atividades de reforço e de recuperação paralelas e continuas ao longo do processo e, se necessárias, ao final de ciclo ou nível. bagunceiros. Acreditavam ser os conteúdos desinteressantes, “atrasados” em relação a outras oitavas séries e que temiam não se sair bem no ensino médio por falta de preparo nesta sala, mas paradoxalmente concordavam com suas reprovas, pois tinham “zoado”4 o ano todo e mereciam ser punidos pelo mau comportamento. Um cotidiano desgastante se apresentava no trabalho com este grupo. Os responsáveis, ao serem convocados pela direção para solução de problemas, dificilmente davam retorno à escola e só apareciam quando os alunos eram ameaçados de não poderem mais entrar na aula. O momento de trabalhar com esta sala era receado pelos professores, segundo a observação de suas falas, pois não sabiam como seriam tratados. O dilema começava ao se chegar na sala, pois uma parte dos alunos não estava presente; alguns educadores optavam por ir buscá-los e os encontravam espalhados pelo pátio, pelas quadras da escola, ou então não os encontrava, quando alguns já tinham pulado o muro e se evadido da escola. Atendendo ao pedido do professor, eles vinham caminhando lentamente para a sala, paravam um pouco na porta, gritavam com outros colegas, que a esta altura, também tinham se espalhado pelo corredor e, por fim, o educador conseguia arrebanhálos. A aula, então, sempre começava com atraso e os conteúdos apresentados _______________ 4 Termo bastante utilizado pelos estudantes para designar um comportamento não condizente com o exigido pela instituição de ensino. Atitudes dotadas de brincadeiras entre colegas, e/ou atos de vandalismo contra o patrimônio, grosserias contra professores, funcionários e direção da escola, desprezo e recusa na realização das atividades propostas no cotidiano escolar. pareciam em nada os interessar. Eram inúmeras as conversas paralelas quando o professor os pedia que o ouvisse. Por muitas vezes, quando colaboravam no sentido de não se entreterem em conversas, a apatia tomava conta da situação, e vários não se importavam em desenvolver as atividades propostas e muito além, até dormiam debruçados nas carteiras. No intuito de elucidar a conjetura do trabalho desenvolvido pelo projeto não podemos lançar mão dos resultados finais do período letivo. Nos apropriamos desses resultados em comparação com o apresentado pelas outras 8ª séries, denominadas regulares, para que possamos desenvolver a percepção da dicotomia entre o resultado e a proposta da recuperação de ciclo II. Observe o exemplo: Tabela 3 – Resultado final do ano de 2006 Recuperação de Ciclo II Outras 8ªs séries Promovidos 46% 78,5% Promovidos parcialmente 4% 6,5% Retidos 21% 4% - 3,5% Transferidos 12,5% 6,5% Desistentes 16,5% 1% Total 100% 100% Retidos parcialmente Resultado fornecido pela diretora e retirado da Ata de Resultado Final de 2006. Na totalidade, a sala possui nove professores. Contribuíram com a pesquisa, respondendo ao questionário, cinco deles que lecionam na classe de recuperação de ciclo II. Todas do sexo feminino e com formação em nível superior, com experiência docente entre cinco e vinte anos. Duas formadas em Letras, uma em Educação Física, uma em Geografia e uma em Matemática; os professores das disciplinas de História, Inglês e Artes não devolveram o questionário e sempre alegavam não ter tempo para responder. A nona professora, da disciplina de Ciências, trata-se da pesquisadora. A maioria dos professores atendeu com interesse ao convite, mas houve por alguns a resistência em falar sobre seu trabalho e suas concepções, não respondendo ao questionário. Minayo considera que “o número de sujeitos é suficiente ao permitir uma certa reincidência das informações, porém não despreza informações ímpares cujo potencial explicativo tem que ser levado em conta” (1993, p. 102). Assim, participaram do estudo 5 professores e 14 alunos, número que consideramos suficiente por apresentar elementos que permitiram visualizar o alcance dos objetivos propostos. Aos alunos, quando explicado o propósito da pesquisa e pedido que respondessem aos questionários, aparentemente concordaram, a ponto de nos surpreendermos com tal prontidão. Mas depois de observarmos suas respostas ou a ausência delas, pudemos perceber que suas prontidões não estavam tão explícitas assim, mas devemos analisar que, por muitas vezes, no inculto do próprio silêncio, da ausência de respostas, há muitos dizeres, muitos pensares e a esse respeito não podemos deixar de refletir. A investigação com os estudantes nos pareceu mais difícil, se comparada com seus educadores, pois a impressão deixada é de dificuldade em pontuar suas colocações. Percebemos que até os mais despojados em sala almejavam auxílio e nos mostraram embaraço em se expor. A prática escolar se faz sem muitas perguntas ao que os estudantes pensam, coisa que já é mais comum nas reuniões com os professores, e talvez por essa ausência de interrogações, o cotidiano do estudante é dotado de não dizeres que vão sendo inconscientemente interiorizados, impedindo-o de falar quando solicitados. Uma vez contextualizada a escolha e descrição da metodologia utilizada, bem como a escola, seu histórico, situação geográfica, a caracterização do corpo docente e estudantes pesquisados, a especificidade do projeto de recuperação de ciclo II, resta-nos apresentar e analisar os dados coletados, o que será realizado no próximo capítulo. CAPÍTULO III – A PESQUISA SOBRE VIOLÊNCIA NUMA PRÁTICA ESCOLAR ESPECÍFICA 1. A coleta de dados Pode-se dizer que técnicas de coleta de dados se referem ao modo como se conseguem as informações com as quais acredita-se poder responder ao problema formulado sobre o tema de pesquisa (GROPPO e MARTINS, 2007, p. 40). Conforme apontado no capítulo anterior, a técnica de coleta de dados utilizada no trabalho foi a pesquisa participante. Ela é bastante pertinente, uma vez que a pesquisadora faz parte da prática escolar em específico e pode cumprir os objetivos previstos nesse tipo de pesquisa através do diálogo, conceber a devolutiva para a comunidade escolar das considerações feitas e conhecimentos adquiridos. Como apoio para a realização da pesquisa participante, utilizamos também a técnica de coleta de dados através de questionários, com questões abertas e fechadas, de acordo com a intencionalidade da investigação especificada anteriormente. 1.1. O perfil dos estudantes pesquisados Na medida em que estamos tratando de análise em pesquisa qualitativa, não devemos nos esquecer, apesar de mencionarmos uma fase distinta com a denominação de ‘análise’, que durante a fase de coleta de dados a análise já pode estar ocorrendo (MINAYO, 1994, p. 68). Os questionários foram aplicados aos estudantes no dia vinte e nove de novembro, depois do intervalo, e imediatamente após avaliação de Ciências. Tratava-se da semana de provas finais. Assim, optamos por aplicar os questionários nesta data porque, apesar das baixas notas e despreocupação de vários alunos na realização das mesmas, entregando as avaliações em branco, podíamos certamente contar com as freqüências nesses dias. Após explicação e pedido do pesquisador, os alunos responderam às perguntas. Em primeiro lugar ao questionário com questões abertas sobre o projeto de RCII e visão da violência, depois ao questionário com questões fechadas para levantamento das condições sócio-econômicas. É fundamental, porém, destacar que percebemos a pressa de alguns estudantes na resposta às questões, pois estavam ávidos para ir embora. Talvez este tenha sido um dos fatores que justificou a considerável quantidade de respostas “não sei”, “não entendo”, “sei lá”, ou deixadas em branco, o que constituiu um dificultador na interpretação das falas. No entanto, é com estas respostas passíveis de ausências de pensares que buscamos entender as percepções destes sujeitos sobre o tema. Mesmo com essa dificuldade, consideramos a metodologia válida, pois, como assegura Pádua: As perguntas “abertas”, por exigirem uma resposta pessoal, espontânea, do informante, trazem dados importantes para uma análise qualitativa, pois as alternativas de respostas não são todas previstas, como no caso das perguntas fechadas (PÁDUA, 1996, p. 67). Nossa primeira interpretação se deu no campo de análise das condições sócio-econômicas dos estudantes pesquisados. Buscamos, com tal análise, perceber se as condições econômicas, sociais e financeiras vêm corroborar ou não declarações que expressam estas condições como sendo a principal causa das práticas de violência. Quiroga Neto (1993), por exemplo, afirma que a violência, freqüentemente, está relacionada à pobreza e, sem discordar de que o aumento da pobreza e da miséria constitui fator importante para o crescimento da violência, observa que esta articulação tem gerado uma criminalização da pobreza, colocando segmentos sociais inteiros como suspeitos ou na mira de permanentes julgamentos prévios. Nessa perspectiva, a violência na escola cresceria como conseqüência das adversidades sócio-econômicas de sua clientela. A violência viria como reação à situação de exclusão, das condições de má alimentação, desemprego, precariedade nas condições de habitação, entre outros. Buscamos, então, com a verificação deste questionamento e do diálogo com outros indicadores, observar se a afirmativa acima está correta. Apresentamos estas constatações por meio de gráficos, a fim de facilitar a leitura dos dados: Moradia Outros 7% Alugada 29% Própria 64% Pessoas com quem mora Mãe 14% Tios 7% Pai e mãe 79% Moradores na casa 6 pessoas 7% 5 pessoas 43% 3 pessoas 14% 4 pessoas 36% Cômodos na casa Mais de 6 14% 6 cômodos 14% Menos de 3 14% 3 cômodos 7% 4 cômodos 22% 5 cômodos 29% Figura 1 De acordo com os dados fornecidos pela figura um, é possível destacar que 64% dos estudantes moram em casa própria, para uma média brasileira de 75% de acordo com dados do IBGE (Censo Demográfico de 2000). As famílias são compostas de pai e mãe, em 79% dos casos. A média de moradores na casa comparada com a do Brasil que é de 3,5 pessoas, segundo a mesma fonte, não é exagerada, visto que 50% dos pesquisados moram em três ou quatro pessoas na residência. Nas casas, em somente 21% não existe a média de divisão básica de um quarto, uma sala, uma cozinha e um banheiro; por sua vez, 57% dos estudantes têm uma moradia com cinco ou mais cômodos, permitindo-nos pensar numa média de dois quartos, em cada casa. Tais comparações levam-nos a crer que os estudantes não podem ser considerados marginalizados sócioeconomicamente. Renda total da casa 1 salário 14% Mais de 4 43% 2 salários 7% 3 salários 36% Computador em casa Não 36% Sim 64% Carros na casa Mais de 1 21% Não 43% 1 carro 36% Figura 2 Na figura dois, utilizamos itens que podem nos auxiliar no diagnóstico das condições sócio-econômicas dos sujeitos pesquisados, uma vez que apontam a renda total da casa e bens de consumo, adquiridos entre aqueles que possuem condições para tanto. O questionário nos possibilitou a constatação de que 79% dos estudantes têm uma renda em suas casas igual ou superior a três salários mínimos, enquanto o Boletim Dieese nos indica uma média na região sudeste em que apenas 62,2% da população ganha acima de dois salários mínimos e a média brasileira é de somente 49,9%. (Edição especial de maio de 2002). Um número elevado de estudantes são detentores dos bens de consumo apontados, como mostra o segundo gráfico da figura dois. Neste observamos que 64% dos estudantes possui computador em casa, número muito elevado quando comparado a outras pesquisas, como do IBGE, que declara que 15,3% da população brasileira dispunha em 2003 de acesso a computador em seus lares e 11,4% à Internet. No terceiro gráfico da figura dois, verificamos que 57% dos estudantes são possuidores de um carro ou mais por família, enquanto a média brasileira, segundo informações do IBGE (Censo Demográfico de 2000), é de 32,7%. Esses dados vêm corroborar na assertiva de que as condições deste grupo de estudantes está além da média estabelecida para as famílias brasileiras. Tendo como base as verificações obtidas pelo questionário, discordamos das idéias propostas por autores que defendem ser a principal causa da violência escolar as condições sócio-econômicas, e preferimos nos apoiar naqueles cujo pensamento vai além e torna mais abrangente esta problemática, como Cavasin e Arruda (1999), que afirmam ser enganoso pensar que a violência é um privilégio das classes populares. Sendo assim, nos parece que em relação às forças propulsoras da violência diferentes fatores atuam, tornando complexo percebermos onde ela começa e onde termina. 1.2. A visão dos educandos sobre a violência na vida escolar Nossas atividades são umas de (primário) é como se chamassem a gente de burros, sem falar (fala de um dos estudantes pesquisados). No questionário destinado aos estudantes, tivemos a participação de quatorze deles. Para não delongarmos demais a tabulação dos dados obtidos, optamos pelo agrupamento das respostas a cada pergunta em grupos de interpretação, organizando-as em tabelas, apresentando de um lado as respostas e justificativas e do outro o número de alunos que as responderam. Ao término de cada tabela, apontamos nossas considerações acerca das respostas dadas. Tabela 4 – Respostas à pergunta: “O que você acha de ter sido reprovado (a)?” Ruim, por perder tempo, fazer a série de novo, ver os colegas indo e ficar 6 para trás, ser motivo de gozações e perder a confiança dos pais. Justo, por faltar muito, por não estudar, não vir para escola. 3 Ruim, mas justo por ter parado de estudar, não ter prestado atenção, 2 “bobear”. Bom, por aprender coisas que não sabia, por ser melhor que passar sem 2 saber. Nada. 1 As respostas demonstram ser a reprovação, do ponto de vista dos estudantes, um fator de punição. Em sua maioria, por outro lado, concordaram ser ruim ter sido reprovado, mas justo, visto que não levaram “a sério” seus estudos. Somente dois dos pesquisados demonstraram preocupação com seu futuro aprendizado ao responderem ser bom ter sido reprovado para poder aprender coisas que não sabia, que é melhor não passar sem saber. Para elucidar essa temática acreditamos ser necessário o aprofundamento nos estudos acerca da reprovação, pois se trata de uma questão ainda controvertida na realidade escolar, que deveria ser debatida com mais vigor. Não nos delongamos neste estudo, pois tivemos a intenção, com esta pergunta, de apreender do grupo seus sentimentos e percepções sobre momento em que estavam vivendo. Ao nos defrontarmos com os dados da tabela, nas falas dos estudantes e suposta aceitação de sua reprova, não observamos nenhuma discussão do papel que a escola exerce, ficando a responsabilidade pela reprovação voltada somente aos educandos, ou por não terem estudado, ou por não terem freqüentado as aulas, ou mesmo por não terem se comprometido com a aprendizagem e, além disso, por não terem buscado alternativas para suas dificuldades. Notamos a ausência do questionamento à escola sobre sua função de educar, sua função social de preparar o cidadão para a vida, para o trabalho e o que nos parece mais grave, sua função de lidar com a diversidade cognitiva e cultural. Afinal, esses estudantes são diferentes, pois, não aceitaram as normas estabelecidas, os padrões exigidos. Assim, os dados nos mostram com nitidez a diversidade da natureza humana e a falta de competência para lidar com eles. É óbvio que, ao invés de auxiliá-los em seu desenvolvimento, torna-se evidentemente mais cômodo excluí-los, ou dizê-los não aptos, pois desta forma garantimos a continuidade da instituição como esta, não debatendo sua eficácia, seus propósitos, ações e continuamos hipocritamente levantando a bandeira da “escola para todos”. A fala dos estudantes nos leva a acreditar na prática da violência simbólica na escola, uma vez que a instituição consegue interiorizar nos seus educandos a total responsabilidade pelo seu fracasso, conforme definição dada por Charlot, já citado em outra oportunidade e que gostaríamos de reforçar: violência simbólica ou institucional: compreendida como a falta de sentido de permanecer na escola por tantos anos; o ensino como um desprazer, que obriga o jovem a aprender matérias e conteúdos alheios aos seus interesses; as imposições de uma sociedade que não sabe acolher os seus jovens no mercado de trabalho; a violência das relações de poder entre professores e alunos. Também o é a negação da identidade e satisfação profissional dos professores, a sua obrigação de suportar o absenteísmo e a indiferença dos alunos (CHARLOT 1997 apud ABRAMOVAY e RUA, 2002, p. 69). Tabela 5 – Respostas à pergunta: “Como se sente estudando em uma sala com pessoas que como você também foram reprovadas?” Normal, igual a todas as outras salas, por serem todos humanos. 6 Ruim, por estar os piores alunos juntos, muita bagunça, alguns interessados 4 sofrem a influência negativa dos outros e se rendem e juntam-se a eles, não devia ter sala só de repetentes. Bom, por ter nova oportunidade, experiência nova, por aprender o que não 3 foi aprendido. Não sabe. 1 Como observado nas respostas, considerável parte dos estudantes não gostava do agrupamento dessa maneira, e se sentem prejudicados em algum sentido, porém a maioria apontou ser normal estudar numa sala com estudantes também reprovados. No entanto, acreditamos na justificativa para tal normalidade que algo os incomodava, revelado ao dizer: “igual a todas as outras salas, todos são humanos”, nesse momento, muito mais que se identificaram como “iguais”, a declaração traz um discurso intrínseco que nos é dirigido como clamor, para percebermos que realmente, mesmo com suas diferenças, “eram iguais”, e que gostariam de ser tratados assim. Tabela 6 – Respostas à pergunta: “Após estudar um ano nesta sala, sente-se mais preparado (a) para no próximo ano cursar o Ensino Médio (Colegial)?” Não, pelas matérias serem diferentes das outras oitavas, por achar que não 8 adiantou nada, pois a bagunça era muito ruim e não dava para aprender muita coisa, pelas atividades serem de (primário) “é como se nos chamassem de burros”. Sim, por achar que merece passar, por mostrar que tem responsabilidade 5 para cursar o ensino médio. Nada. 1 Observamos aqui que grande maioria do grupo não se sente preparada para cursar o ensino médio, e não acredita na eficácia do ano de trabalho com o projeto para sua aprendizagem e continuidade dos estudos. Tabela 7 – Respostas à pergunta: “O que você entende por violência?” Algo errado, desumano, ruim, sem educação, péssima influência, não 9 resolve nada só piora. Nada. 2 Agressão moral e física. 1 Medo. 1 Em branco 1 Podemos extrair dessas respostas o caráter explícito da violência como a física, moral, a falta de educação. A maioria das respostas se limitou em descrever os sentimentos em relação à violência como algo de ruim, que não resolve nada. Talvez aquela que podemos interpretar como de ordem mais implícita, oculta, reveladora até de um caráter simbólico seja aquela resposta ao entendimento da violência como “medo”, pois acreditamos ter o medo um caráter subjetivo, construído minuciosamente ao longo do tempo e de um poder de ação tão devastador que pode, desde sufocar o grito de socorro da criança que se assusta à noite com o balançar da cortina de sua janela e pensa que é um monstro, até a omissão de uma jovem que é violentada pelo padrasto e não declara o fato a ninguém por medo de ser desprezada pela mãe, enfim, o medo nos possibilita o encontro com nossa subjetividade, com a limitação que por inúmeros fatores construímos em nós mesmos. Tabela 8 – Respostas à pergunta: “Já sofreu algum tipo de violência em casa? Qual?” Não. 13 Nenhuma que não merecesse. 1 Buscamos verificar com a questão se a violência sofrida em casa é uma das causadoras da banalização da violência escolar. Se levarmos em consideração as respostas obtidas concluiríamos que não, mas conhecedores da realidade de alguns estudantes ficamos intrigados com tais declarações, pois sabemos de sua condição: violência doméstica contra algumas mães, brigas, prisões de familiares, dependência de drogas, etc. Ficamos, então, preocupados novamente com o conceito e a percepção de violência que esses jovens têm e a nossa própria percepção, e com esta inquietação caminharemos até o final dessa dissertação. Nesse caminhar, buscaremos melhor elucidar e refletir sobre essas visões. Tabela 9 – Respostas à pergunta: “Você acha que há violência na escola? Caso sim, quais os tipos de violência que acontecem nesta escola?” Sim, através de brigas entre os alunos, ofensas a funcionários e direção, 7 palavrões, furtos. Não. 5 Sim, não violência corporal, mas de preconceito contra os alunos da 8ª A. 1 Tudo. 1 A maioria reconhece a existência de violência na escola, ocorrendo nas brigas entre os alunos, palavrões, furtos, ofensas a funcionários e direção, violências segundo suas próprias falas cometidas pelos alunos. Apenas um estudante destacou a violência contra si, referindo-se ao preconceito que sofre por fazer parte da série pesquisada; tal justificativa nos remete à violência em seu caráter oculto, dissimulado, simbólico. Tabela 10 – Respostas à pergunta: “Você sofre ou sofreu violência aqui na escola? Em qual situação?” Não. 11 Sim, através de brigas entre alunos. 2 Moral. 1 Apesar do envolvimento em constantes brigas, encaminhamentos à diretoria por atitudes de desrespeito a professores e funcionários, ameaças, agrupamento em sala, evidenciada como de alunos retidos, falta de perspectiva quanto à sua aprendizagem para ingresso no ensino médio, setenta e oito por cento dos alunos opinaram não sofrer violência na escola. Dois alegaram sofrer violência na forma física com outros estudantes e somente um nos disse da violação moral, mas não expôs a situação em específico. Tabela 11 – Respostas à pergunta: “Quando sofreu a violência citada na questão anterior, você contou a seus pais ou professores? Se afirmativo, o que eles responderam? Tomaram alguma atitude?” Não sofreram. 11 Sim, contou e recebeu a orientação para não provocar e os pais 2 conversaram com os responsáveis do outro envolvido. Não sei. 1 Podemos perceber com essas respostas que a maioria não quis fazer declarações ou acreditam ser os infortúnios ocorridos em seu cotidiano escolar, uma prática comum em seu meio, mas considerando-as como manifestações de violência. Tabela 12 – Respostas à pergunta: “Você acha que provoca algum tipo de violência na escola? Quando? Por favor, tente explicar por que faz isso.” Não. 8 Não sei. 3 Em branco 2 Sim para chamar a atenção. 1 A maioria dos estudantes respondeu não provocar nenhum tipo de violência na escola, porém não podemos desconsiderar àqueles que não responderam ou alegaram não saber, pois essas respostas nos revelam a dúvida destes quanto às suas próprias atitudes, bem como em relação à sua percepção da violência escolar, que por meio desse questionário talvez tenha sido posta em debate. Tabela 13 – Respostas à pergunta: “Comente um caso de violência ocorrido na escola que mais chamou sua atenção?” Não sabe, não se lembra. 6 Brigas entre alunos. 3 Professor agredindo aluno. 2 Em branco 2 Policial batendo em pessoa que não era da escola. 1 Ao observarmos que metade do grupo respondeu “não sei”, “não me lembro”. Pensamos em duas possibilidades para estas respostas, uma de recusa em delatar o fato por pressa, desinteresse; outra de caráter subjetivo, que nos remete ao ajuizamento da banalização da violência pelos educandos pesquisados, de forma que acreditem como violentas somente aquelas manifestações físicas brutais. Como estas, talvez, não tenham presenciado para não nos fornecer uma resposta simplista, sem maiores fatalidades, optaram por não responder. Quanto às respostas diferentes, percebemos a relevância dada somente à violência explícita praticada principalmente entre alunos e em dois exemplos de professores contra estudantes. 1.3. A visão dos educadores sobre a violência na vida escolar O questionário foi aplicado aos professores no dia vinte e um de dezembro, na sala dos professores da referida escola. Após reunião de encerramento do ano letivo, foram entregues as perguntas para que respondessem individualmente e nos devolvessem. Dos oito professores, cinco pediram para responder depois com a entrega no dia seguinte; destes, apenas dois devolveram o questionário respondido. Portanto, estamos utilizando para análise dos dados os cinco questionários dos professores que efetivamente responderam as questões. A seguir apresentaremos as questões propriamente ditas com a redação das respostas dos professores em tabelas e em seguida estaremos fazendo a análise e interpretação dessas respostas para melhor elucidar nossas considerações sobre os relatos. Para simplificar a identificação dos sujeitos, os nomeamos de 1 a 5, sendo fixa sua ordenação em cada pergunta. Tabela 14 – Respostas à pergunta: “Há quantos anos você dá aulas no projeto da RC II? O que o motivou a pegar aulas nessa sala?” Prof. Há dois anos, não tive motivo, fui praticamente obrigada a pegar as aulas. 1 Prof. Ministro aulas neste projeto há um ano, por atribuição da direção é que 2 peguei as aulas. Prof. Trabalhei somente este ano (2006). Nada me motivou, peguei porque não 3 tinha escolha, ou seja, fui obrigada a pegar aulas nessa sala. Prof. Trabalhei com o projeto da RC II em 2006. Escolhi esta sala porque pensei 4 em aliviar o trabalho da professora do ano anterior, pois uma das duas teria que pegar e como os alunos tinham já sido meus, peguei a sala. Prof. Trabalhei por 2 anos, no meu caso, não houve motivação, acredito que foi 5 uma rejeição dos demais professores da U.E., pois foi a única sala que sobrou na atribuição. Constatamos mediante as respostadas dadas o desestímulo dos professores em trabalhar com este grupo. Desde o início das aulas, na própria atribuição, esses profissionais não se mostram satisfeitos e certamente este estado deve ter interferido diretamente no dia-a-dia, no aspecto profissional do professor em sala de aula. Tabela 15 – Respostas à pergunta: “Como você avalia a aglomeração desses alunos em uma única classe para a implementação de um trabalho diferenciado?” Prof. Péssima, de pouco rendimento. 1 Prof. Esses alunos estando em uma única sala, dificultam muito o andamento 2 do projeto, pois eles não têm interesse em aprender. Prof. Não é bom, os próprios alunos se sentem excluídos e o material 3 diferenciado também não funciona, os que saírem dessa série para a seguinte, vão ter dificuldade de acompanhar os outros colegas que vieram da série regular, devido o material que foi trabalhado com eles. Prof. A progressão continuada tem seus pontos positivos, porém seu ponto 4 negativo está na aglomeração dos alunos com dificuldades em uma só sala dificultando o trabalho do professor, pois geralmente esses alunos são rebeldes e um influencia o outro. Prof. Um preconceito social, mas como recuperação em alguns casos, é até 5 viável. Os educadores apontam por meio dessas respostas a discordância na aglomeração desses alunos em uma única sala por diversos motivos, como acentuada indisciplina, influência negativa uns para com os outros, o fato de ao se sentirem discriminados, rebeldes, adotam atitudes para demarcar essa condição. Por meio desses relatos consideramos difícil e complexo a realização com qualidade do processo ensino-aprendizagem, e, principalmente julgamos esse ambiente pouco propício ao diálogo, ao estabelecimento do trabalho reflexivo, em que os estudantes possam ser e sentir-se não só receptores de conteúdos historicamente acumulados, mas também partícipes da sua própria aprendizagem. Tabela 16 – Respostas à pergunta: “Como você vê a eficácia desse projeto para a aprendizagem dos alunos?” Prof. Não vejo eficácia nesse projeto, pois os alunos sentem-se excluídos do 1 sistema. Prof. Poderia ser eficaz se fosse desenvolvido em todas as salas 2 normalmente intermediando com o conteúdo apropriado a cada série. Prof. Não funciona, não muda em nada a aprendizagem desses alunos, pelo 3 contrário, eles terão déficit de aprendizagem nas séries seguintes. Prof. Não vejo este projeto com eficácia, pois os conteúdos (em Matemática) 4 não têm uma seqüência muito boa, o que confunde os alunos além de apresentar uma forma de trabalho que não estão acostumados. Prof. Não acredito que seja eficaz, pois muitos deles criam uma barreira por 5 conta da discriminação, não levam tão a sério o aprendizado, se estivessem em uma outra sala dita “normal”, acredito que levariam mais a sério. Observamos aqui a crença de que o projeto não é eficaz para a aprendizagem dos alunos, uma vez que é aplicado somente nesta sala, o que os evidencia como diferentes, e também por apresentar uma defasagem em relação aos programas adotados para as outras séries. A fala dos educadores acentua como motivo para a reprovação desses alunos sua falta de interesse por aquilo que lhes era oferecido e não necessariamente por dificuldades, consideram suas capacidades cognitivas como suficientes, a reprovação se deu pelo descuido com sua própria aprendizagem. Essa falta de interesse nos remete ao pensamento do quanto a escola como está organizada atualmente, responde às perspectivas desses jovens. Responsabilizar somente aos estudantes pelo seu insucesso na escola é uma maneira ingênua de lidar com uma problemática muito mais ampla e complexa, que vai muito além do interior da sala de aula. Tabela 17 – Respostas à pergunta: “Como é o comportamento dos alunos dessa sala, comparando-a com outras que você trabalha?” Prof. Indisciplinados e agressivos. 1 Prof. Totalmente indisciplinados não querem ficar em sala de aula por não ter 2 interesse em aprender, mesmo com atividades diferenciadas. Prof. O comportamento deles é bem pior, eles não tem comprometimento com 3 os estudos, nem interesse e querem chamar a atenção de toda maneira possível, é onde eles aprontam barbaridades dentro e fora da sala de aula. Prof. São extremamente apáticos, desinteressados e violentos. Claro que em 4 ouras salas encontramos alunos assim, mas é um ou outro. Já na RC todos acabam ficando assim, já que um influencia o outro. Prof. Normal, mas como estão todos juntos eles se fortalecem nas suas 5 diferenças, a maioria não tem compromissos. O comportamento desses alunos é mais difícil que os de outras salas, isso fica claro por meio das respostas à pergunta. Nos parece certa a necessidade que o grupo tem de evidenciar-se naquilo em que se destacaram e foram classificados por toda comunidade escolar como indisciplinados, repetentes, rebeldes, difíceis de lidar e conviver em grupo. Tabela 18 – Respostas à pergunta: “Você identifica violência nessa sala? De quais tipos?” Prof. Sim, não respeitam a escola, professores e agridem-se mutuamente, 1 depredam as apostilas, pois elas trazem assuntos chatos, não condizente com a idade/ série. Prof. Sim, falta de respeito com professores e colegas, palavrões de baixo 2 calão, depredação de materiais e patrimônio público, agressão física entre eles e com alunos de outras salas. Prof. Sim. Agressões físicas e verbais. 3 Prof. Infelizmente existe todo tipo de violência nesta sala: física, psicológica, 4 moral, entre outras. Prof. Quando ocorreu em minhas aulas foram às violências verbais. 5 A maioria reconhece a existência de violência de diversas ordens que ocorrem nesta sala, durante o recreio, nas aulas, nos corredores, com agressões físicas ou verbalizadas, bem como pichações nas paredes, depredação do prédio e agressões aos professores, roubos, confronto de turmas, uso de drogas, falta de respeito no trato com o professor e colegas. Tabela 19 – Respostas à pergunta: “Quais as razões que você identifica para a existência de violência nessa sala, em específico?” Prof. O sentimento de exclusão, a falta de interesse para desenvolver as 1 atividades desse projeto. Prof. Por acharem que são rejeitados, por causa do projeto. 2 Prof. Problemas familiares e uso de drogas. 3 Prof. Não consigo entender porque os alunos agem dessa maneira, apesar de 4 alguns pais concordarem com o comportamento deles. Prof. Muitas vezes inicia com brincadeiras, onde no final um deles não aceita 5 a brincadeira. Problemas de rua que se resolve em sala de aula. Discriminação e como proteção se une, e se fortalecem. Os educadores responsabilizam boa parte destas atitudes como decorrência da sociedade agressiva em que vivemos. No entanto, concordam como sendo também responsáveis pelas manifestações de violência desse grupo à própria condição que foram submetidos pela escola, por meio de seu sistema de ensino, que os evidencia em seus aspectos negativos, no seu insucesso, adotando uma postura de discriminação. A esse respeito, comenta Guimarães: É evidente que os problemas familiares, econômicos, políticos e emocionais interferem no desenvolvimento desta violência, cotidiana, na escola, mas eu acredito na existência de uma violência específica gerada no interior da própria escola (GUIMARÃES, 1996, p. 68). Na escola, há um ocultamento, um descaso para lidar com esta questão, uma vez que não há denúncia ou registro, nem tomada de decisão para contornar esta situação. Tabela 20 – Respostas à pergunta: “Para você o que é violência?” Prof. A falta de respeito, os palavrões e as agressões que esses alunos 1 praticam em si. Prof. Todo ato feito com falta de respeito ao próximo. 2 Prof. Pessoa agitada, impulsiva que usa a força bruta, agressões físicas ou 3 verbais; explosiva. Prof. É agredir uma pessoa, não importa como. 4 Prof. É qualquer tipo de agressão física, moral, intelectual, social, sexual. 5 Não podemos verificar por meio das respostas dos educadores um acento na violência simbólica, senão na violência explícita, tendo um caráter de violência principalmente física ou verbal. A sutileza com que a violência pode se manifestar vem permeando as suas relações e trazendo diversas dificuldades para o alcance dos objetivos propostos no trabalho educativo e torna ainda maior a dificuldade quando a comunidade escolar não mantém seu olhar atento para essa violência implícita, velada. Tabela 21 – Respostas à pergunta: “O que você entende por violência escolar?” Prof. A falta de preservação do patrimônio, as drogas e a falta de respeito dos 1 alunos, por professores e funcionários. Prof. Todos os tipos de atitudes e palavras que ofendam o bem estar da 2 escola. Prof. Quando os alunos apresentam comportamentos agressivos, usam 3 expressões verbais também agressivas e vulgares, destroem o patrimônio escolar, e outros. Prof. Todo e qualquer desrespeito ao direito do próximo, agressões físicas, 4 verbais e psicológicas. Prof. Falta de limites, respeito e compromisso, tanto do alunado quanto de 5 sua família com a educação, professor, patrimônio, colegas, e o fato de estarem em uma sala de RCII já é uma violência, onde ele não é incluído e sim excluído socialmente. Na resposta acerca da visão dos professores quanto ao fenômeno da violência nas escolas, foram apresentados vários enfoques, que demonstram a amplitude e a complexidade do tema, não tendo sido visto de forma isolada, mas sim relacionado às várias questões, como de estrutura familiar e social. A violência na escola é apresentada como mais que uma ação de violentar fisicamente alguém, mas a reflexão acerca deste fenômeno ainda não esta proposta em seu cotidiano. Chamou-nos a atenção o fato de somente um dos educadores pesquisados ter reconhecido, nas atitudes agressivas dos alunos, uma reação à indiferença da escola quanto aos seus problemas, quanto ao não atendimento às suas expectativas, à sua inclusão em um grupo que, ao invés de resgatar sua autoestima e desejo de aprender, o exclui e desmotiva. Tabela 22 – Respostas à pergunta: “Na sua vivência de professor, que ato de violência grave já presenciou:” “a) Praticada pelo aluno?” Prof. A falta de ética de alguns alunos para com o professor, quando um 1 aluno disse que ia dar fim na vida de um professor. Prof. Murros em colegas, atirar as carteiras com uma pesada para o corredor, 2 ofensas verbais a professores e colegas, quebrarem carteiras, etc. Prof. Um aluno brigou com um colega de classe e atirou uma cadeira na 3 direção do mesmo. Prof. Apenas presenciei agressões verbais e psicológicas contra colegas e 4 contra professores. Prof. Vandalismo (patrimônio, veículos dos professores). 5 Nas manifestações de violência praticadas pelos alunos, os educadores destacaram as agressões físicas e verbais destes contra colegas e professores e também atos de vandalismo contra o patrimônio escolar e materiais dos estudantes, consolidando novamente seus pontos de vista direcionado ao caráter explícito da violência. Tabela 23 – Respostas à pergunta: “Na sua vivência de professor, que ato de violência grave já presenciou:” “b) Sofrida pelo aluno?” Prof. Quando alguns alunos bateram muito em outro aluno e o agredido teve 1 que pedir transferência de escola. Prof. Ofensas verbais e físicas. 2 Prof. Agressão física pelos colegas de classe. 3 Prof. Apenas agressões verbais e psicológicas. 4 Prof. Assédio sexual; Preconceito racial. 5 Buscamos com a questão verificar a visão e a sensibilidade dos educadores em relação às violências sofridas por seus alunos; saber de sua percepção acerca da caracterização de seus educandos enquanto vítimas da violência no espaço escolar e não somente causadores dela. Nessa perspectiva, observamos a prática da violência contra os estudantes, geridas principalmente pelos próprios estudantes. O conteúdo extraído por meio das falas dos professores sobre as manifestações de violência evidencia-nos que esse fenômeno desponta como elemento significativo nas relações humanas nas escolas, retratando que a não consideração da diversidade poderá impedir que essas instituições possam desenvolver verdadeiramente a sua função primordial, uma vez que diversas situações parecem não ser reconhecidas por todos como violência. Através da interpretação das falas dos educandos, apontadas nas tabelas de número 4 a 10 do capítulo III, concluímos que acentuam sua visão de violência escolar no caráter principalmente físico, “brigas” e, secundariamente, ofensa verbal, praticada especialmente entre os próprios alunos. Não nos foi possível observar a percepção desses jovens acerca da violência simbólica. Eles demonstram por meio de atitudes a não concordância com determinadas imposições, porém não conseguem sistematizar essas atitudes como respostas e acabam por validar estas posturas como inapropriadas. Apesar de não gostarem de ser evidenciados como diferentes dos outros, os educandos não vêem o agrupamento na sala de RCII como uma expressão de violência do sistema de ensino. As falas são contraditórias; ao mesmo tempo em que dizem ser “normal” estar nessa sala, alegam se sentir prejudicados em relação à aprendizagem exigida em outras classes. Não gostaram de terem sido reprovados, mas acreditam que tal medida é justa, pois reconhecem que foram negligentes com sua aprendizagem. Não compartilham a responsabilidade com a escola e seu sistema de ensino que também são negligentes, uma vez que não atendem a comunidade em seus anseios e necessidades, gerando apatia ou indiferença de seus educandos que não vêem a educação como agente facilitador de um futuro mais próspero e com garantia de condições sociais mínimas. Os educadores têm uma crítica sobre o fenômeno da violência nas escolas, considerando-a um fenômeno em expansão, reforçado pelas desigualdades sociais e pela desestrutura familiar, revelando-se na escola esse reflexo. Identificam a ocorrência de manifestações de violência, tais como brigas, xingamentos, ofensas, principalmente praticadas pelos estudantes entre si, para com os professores e o patrimônio, e somente em alguns momentos indicam a de caráter simbólico sem esclarecer com clareza suas interpretações sobre esta. Reconhecem a violência como dificultador das relações interpessoais e do desenvolvimento do processo ensino aprendizagem na escola. Apesar de não concordarem com o agrupamento dos alunos retidos em uma única sala, somente um dos pesquisados, conforme a tabela vinte e um, apontou ser a proposta de RCII uma manifestação de violência contra os estudantes. De maneira geral, não percebem com o projeto, a imposição da violência simbólica, dissimulada que tende e nesse caso em específico, consegue cegar suas vítimas, uma vez que estas se culpabilizam como as únicas responsáveis pelo seu insucesso. Observamos também que os currículos escolares não se preocupam em devassar a questão da violência e a escola vem assimilando, sem restrições, o padrão de vida coletivo, contribuindo assim para a formação de estudantes cada vez mais carentes de diálogo e de respeito à alteridade. Razão que justifica a urgência de diálogo e implementação de propostas que possam viabilizar o entendimento do panorama atual e pensar a educação para as futuras gerações. Em relação às estratégias ou saídas para o problema da violência nas escolas, destacamos a importância da realização de um trabalho sério por parte destas, que seja incluso em seu projeto político pedagógico e que contemple medidas para o desenvolvimento de habilidades, como a aptidão de resolver conflitos sem violência, reconhecendo que para trabalhar esta questão no âmbito escolar é necessário a participação coletiva na construção deste processo, de educandos, educadores, gestores, famílias, pois é um problema amplo e de solução complexa, que tem repercussões não só na área educacional, mas também para toda sociedade. De maneira que é relevante a parceria de todos na promoção de uma educação que objetive a superação da violência em suas mais diferentes formas. Na parte que se segue desta dissertação, elencamos algumas considerações a fim de elucidar o que constatamos, bem como sugerir caminhos futuros no trato a violência no ambiente escolar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditamos que para esse momento é muito importante retomarmos os objetivos aos quais nos propusemos no início deste trabalho, a fim de realizarmos uma reflexão sobre o processo que construímos, as discussões realizadas e as considerações que podemos enfatizar. Os objetivos propostos eram de investigação junto aos educandos e educadores de uma escola pública acerca das suas concepções de violência escolar, em específico da violência simbólica na escola e discorrer sobre as possibilidades que mesmo, dentro dos limites observados, possam contribuir no trato a essa problemática. A discussão foi proposta no capítulo II (investigação) e no capítulo III (interpretação). E, mesmo reconhecendo a incompletude e provisoriedade das conclusões do trabalho investigativo, gostaríamos de apontar algumas considerações, tendo como base a análise do conteúdo e dos dados levantados numa realidade escolar específica, bem como as reflexões que fomos realizando durante todo o processo de pesquisa. As observações nos permitem concluir e corroborar a nossa hipótese de ausência da percepção da violência simbólica na escola. Os segmentos que dela fazem parte, em específico os educadores, acreditam ser a violência praticada nesse espaço originária de questões sociais, estruturais e familiares; enquanto que os educandos afirmam ser gerada pela inconseqüência das atitudes daqueles que não se adequam às regras, sendo portanto a punição justificável. A interpretação simplista da violência instiga-nos, preocupa-nos, uma vez que não se tem analisado no espaço escolar a tão complexa relação que a violência tem com todos os segmentos que permeiam a sociedade: entre elas, não podemos ignorar a própria relação que se estabelece dentro da instituição escolar e seu sistema de ensino, que também são agentes difusores da violência. Não há uma percepção dos jovens e seus educadores acerca da violência simbólica no cotidiano escolar, especificamente no projeto de Recuperação de Ciclo II. Os sujeitos da pesquisa não concordam com a proposta de trabalho indicada por este projeto, mas não o apontam como uma expressão de violência praticada pelo Estado contra esses estudantes e seus educadores. A violência simbólica aplicada pelo Estado à instituição escolar através do projeto de Recuperação de Ciclo II age como mão invisível no cotidiano de seus jovens, uma vez que, ao invés de oferecer-lhes a oportunidade de recuperação de sua aprendizagem e apoio necessário para garantia de prosperidade futura, acaba por reafirmar seu insucesso, responsabilizando-o como único culpado pelo seu fracasso, enfatizado pela sua falta de esforço e ausência da evolução necessária para a continuidade dos estudos com destreza. O cotidiano burocrático, com as linhas gerais de ação pedagógica já definidas, impossibilita o exercício de autonomia das escolas e estas, por medo de ousarem e serem reprimidas ou por comodismo, acolhem tais propostas sem estabelecerem o mínimo de diálogo com sua comunidade e com os próprios sujeitos que dela fazem parte. A ausência de diálogo e reflexões acerca da violência escolar pela própria escola, e entendemos escola como toda comunidade que dela faz parte, tem estabelecido uma prática que corrobora a tese da violência simbólica. Podemos citar, por exemplo, que educadores responsabilizam os educandos, seus familiares e a sociedade pela violência; as famílias, por sua vez, acreditam cada vez menos na escola. Cria-se, então, nesse espaço, divisões de olhares em que cada um, para defender-se, acusa a outrem. A violência simbólica fica consolidada na instituição escolar, atendendo a interesses de segmentos da sociedade que lucram com o despreparo da escola em resolver suas problemáticas, em atender e assistir a comunidade em suas necessidades, uma vez, que ao invés de abrir-se para o diálogo, fecha-se, dividi opiniões e, assim, impede possibilidades de conjunções de ideais e organizações de alternativas que venham potencializar suas ações. Para a abordagem da violência na escola, confiamos ser o diálogo a melhor forma de tratá-la, pois dessa forma podemos despertar a reflexão e a discussão, indicando as possibilidades para a superação dessa grave situação. A abertura de espaços para diálogo com a participação dos diversos segmentos da escola, embora pareça uma alternativa simples e pueril, acreditamos ser a melhor forma de interlocução entre esses agentes, possibilitando a identificação do outro como ser de visões, de conceitos, de valores próprios, capaz de zelar pelo seu futuro e de toda comunidade escolar. Enfim, desenvolver-se dotado das aptidões necessárias para o reconhecimento de que por trás de um gesto, supostamente benéfico, pode existir uma ação tendenciosa a violentá-lo e tolher sua aptidão de desenvolvimento pleno. Sabedores do receio e insegurança dos educadores por não se sentirem suficientemente preparados para trabalhar com essa temática, destacamos também a necessidade de investimentos para a formação continuada, principalmente em serviço em que possa acontecer o processo contínuo de reflexão para a ação, na ação e sobre a ação, bem como a precisão de integração entre a escola, a família e a comunidade, apoio didático, profissional e institucional, para que se consolide a eficácia do trabalho. Reconhecemos que profundas e rápidas transformações dos valores na sociedade e outros fatores combinados influenciam a configuração do mundo atual. E, nessa conjuntura, acreditamos ser a escola, enquanto espaço de interação e formação humana, essencial para a superação da violência através de um trabalho crítico e político por parte de seus agentes, pois as construções das aspirações humanas são edificadas pelos indivíduos ao longo dos anos escolares, enquanto faz parte desse espaço, e acreditamos que a probabilidade maior também da superação da violência passa pela educação. Assim, concluímos esta dissertação, que não pretende esgotar a discussão sobre a violência na escola, mas suscitar novas reflexões ao seu entendimento e superação, contribuindo com os futuros colegas pesquisadores interessados por essa problemática, e principalmente, auxiliar as instituições escolares na discussão e implementação de propostas educativas que contemplem esta temática, visto que foi a prática escolar que nos instigou para realizarmos esse trabalho e a ela dedicamos tais registros. 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