BREVE EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
Há muito o país reclama a criação de legislação própria destinada à regular, de
forma multifacetada, em vida ou pos mortem, a administração de bens em benefício de
outrem, a proteção patrimonial, a prestação de garantias, a constituição de renda em
favor de terceiro, a segregação de bens destinada à execução de determinado
empreendimento, ou mesmo a destinação de recursos a entidades filantrópicas, ou sem
fins lucrativos, beneficiando determinada classe de pessoas, ou mesmo destinadas às
instituições científicas ou religiosas, enfim a diversos outros propósitos idealizados pelo
cidadão comum ao pretender conjugar um ou mais dos objetivos exemplificativamente
acima mencionados.
E o modelo deste instituto idealizado no presente anteprojeto seria através da
institucionalização da fidúcia que, conquanto com alguma influência do sistema do
common law, buscou inspiração na legislação francesa, pinçando pontos aqui e acolá
para serem incorporados ao nosso ordenamento jurídico através da nova legislação
reguladora da fidúcia em nosso país.
Na realidade, o anteprojeto contempla as normas gerais sobre a fidúcia com a
sistematização dos princípios gerais sobre a propriedade fiduciária e a afetação
patrimonial, aplicado, in casu, aos direitos e obrigações das partes envolvidas, seja do
fiduciante, do fiduciário, ou dos beneficiários.
O que se pretende com o presente anteprojeto é criar norma regulatória
específica para o novo instituto capaz de vincular determinados bens e direitos a uma
situação específica.
Não resta a menor dúvida de que a fidúcia, tal como concebida no anteprojeto,
pode gerar, num primeiro momento, certa perplexidade no mundo jurídico, causando
natural apreensão para os operadores do direito, ou mesmo àqueles que venham a se
tornar parte envolvida quando da sua instituição, por uma suposta colisão com outras
figuras jurídicas ou institutos já regulados na legislação ordinária, fazendo-se aqui
questão de ressalvar, desde logo, no seu artigo 1º, o não prejuízo às relações fiduciárias
específicas às quais, a novel legislação, se aplicará subsidiariamente..
Não obstante isso, entendemos que embora possam ter pontos de similaridade ou
convergência com algumas dessas figuras ou institutos, a fidúcia, tal como proposta,
não conflitará com as normas vigentes, devendo ter conformação própria exatamente
destinada a evitar interpretações errôneas quanto aos seus objetivos e propósitos.
Isso não significa dizer que alguns dos dispositivos constantes do anteprojeto
devam se manter divorciados da legislação vigente; muito pelo contrário, poderão e
deverão ser interpretados em consonância com as normas vigentes, inclusive utilizando
essas como aplicação subsidiária às aqui propostas, dentro da boa técnica legislativa
que, acreditamos, tenha sido empregada na elaboração do presente anteprojeto.
Não resta dúvida que existem, ou podem vir a existir, pontos de afinidade, dentre
outros, com a fundação (artigos 62/69 CC), representação (artigos 115/120 CC),
mandato (artigos 653/666 do CC), fideicomisso (artigos 1951/1960 CC), usufruto
(artigos 1390/1409), doação (artigos 538/554 CC), gestão de negócios (artigos
861/875), constituição de renda (artigos 803/813).
Quanto a natureza jurídica da fidúcia, surge sempre a dúvida se seria esta
instituída de forma unilateral, como ocorre com as fundações por exemplo, ou sob a
forma de contrato como é o caso das doações. No direito anglo saxônico. o trust, aqui
comparado com a fidúcia, é classificado como instituto do direito das coisas, muito
embora seja o nosso entendimento que dentro da sistemática romanística do nosso
direito a fidúcia deva ter natureza contratual.
Embora não seja pacífica a questão, o fato é que as partes envolvidas tornam-se
titulares de direito e sujeitas às obrigações no momento em que a fidúcia é criada,
importando, na grande maioria das vezes, em manifestações de vontades por elas
emitidas quando da instituição ou aceitação, sendo recomendável uma maior
flexibilidade e abrangência para que possa ser criado, ou mediante ato unilateral ou por
contrato, neste último caso já com o(s) beneficário(s) como parte no instrumento ou na
escritura pública, se essa for exigida como formalidade essencial à validade jurídica do
ato.
De toda a sorte, como a fidúcia poderá ser criada por testamento (artigo 3º, § 3º),
conforme previsto no anteprojeto, ela seria, neste caso pelo menos, instituída
unilateralmente, embora sujeito a aceitação como ocorre no caso da doação, cuja
natureza jurídica é contratual.
O anteprojeto trata também das hipóteses em que diante da ausência de
personalidade jurídica nas relações fiduciárias, como por exemplo nos casos dos
condomínios organizados para fins de investimentos, nas sociedades de natureza
mutualista ou em outras situações semelhantes, o administrador figure como
proprietário fiduciário, com plena capacidade judicial e de representação como ocorre
com a Massa Falida, o Espólio, o Condomínio Edilício.
Importante se ter em mente no estabelecimento da fidúcia a teoria da afetação
patrimonial, através da qual, no caso específico, o fiduciante transfere a propriedade
fiduciária de bens e direitos para o fiduciário, incumbindo a este administrá-los, tendo
em vista a consecução de propósitos específicos, sob condições pré-estabelecidas e a
destinação à determinadas pessoas, podendo o próprio fiduciário ser um desses
beneficiários.
Não temos dúvida quanto à importância da fidúcia como instrumento de
manifestação de desejo do cidadão, seja este em vida, ou como expressão de última
vontade, agregando e consolidando, em um só corpo legal, as diversas finalidades
pretendidas, à semelhança do que ocorre com o "trust".
Da mesma forma, acreditamos que a sua utilização poderá se constituir em uma
ferramenta eficaz no desenvolvimento do nosso mercado financeiro e de capitais,
permitindo uma serie de combinações para a realização de investimentos e proteção
patrimonial, observado ainda princípio da afetação de bens e direitos.
O anteprojeto preocupa-se também em criar mecanismos de defesa contra o uso
da fidúcia em caso de prática de fraude, inclusive no uso do instituto para o crime hoje
denominado de lavagem de dinheiro, prevendo severas sanções em tais situações.
Esses são, em linhas gerais, os motivos determinantes que justificam a criação
da fidúcia em nosso ordenamento jurídico, na certeza de que a sua regulação contribuirá
de forma decisiva para o aprimoramento nas relações entre os indivíduos.
O anteprojeto de lei apresentado procura obstinadamente a síntese e clareza ao
estabelecer as condições regulatórias para a sua plena utilização como eficaz
instrumento de circulação e distribuição de riqueza e destinada ao atendimento dos
múltiplos objetivos almejados pelo cidadão.
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Parecer do Dr. Gustavo Villela - Comissão de Direito Empresarial