II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] O TEXTO LITERÁRIO COMO OBJETO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL: A INTERTEXTUALIDADE PRESENTE NA MÚSICA “MONTE CASTELO”, DE RENATO RUSSO, POR MEIO DE TEXTOS LITERÁRIOS. Ellen Valotta Elias Borges (Mestranda – UNESP/ASSIS – CAPES) RESUMO: Considerando o texto na dualidade de sua concepção – objeto de significação e objeto de comunicação – este estudo pretende focar tanto os mecanismos internos quanto os fatores contextuais ou sócio-históricos presentes na construção de um texto. Para tanto, analisaremos a música “Monte Castelo”, de Renato Russo, cuja construção parte de textos literários escritos em épocas e por escritores diferentes (Soneto 11, de Luís Vaz de Camões, e Capítulo 13, de Coríntios). Desta forma, discutiremos como o contexto de produção e o contexto de recepção podem atuar na construção dos significados de um texto. Por fim, este estudo visa a verificar o uso do texto literário como objeto de comunicação na construção de textos existentes fora do cânone literário carregados de valores sociais. PALAVRAS-CHAVE: texto literário, contexto histórico-social, intertextualidade Introdução O conceito de texto passou por várias transformações ao longo das décadas. Na segunda metade dos anos 60 o texto era visto como uma entidade abstrata cujo sentido provinha de relações sintático-semânticas. Posteriormente, já na segunda metade da década de 70 houve uma grande influência da pragmática que chega para abrir novos horizontes, despertando o interesse pelos problemas da recepção. É após a expansão da pragmática que os estudiosos começam a se preocupar com a relação do texto e seu leitor, surgindo uma tentativa de renovar o estudo dos textos a partir da leitura. A escola de Constância é a primeira grande tentativa para renovar o estudo dos textos a partir da leitura. Esta abordagem alemã desloca a relação texto-autor para focalizar a relação texto-leitor. Dois grandes teóricos desta escola abordam o mesmo tema sob uma perspectiva diferente: Hans Robert Jauss trabalha com “a estética da recepção” enquanto W.Iser trabalha com a teoria do “leitor implícito”. A estética da recepção surge nos anos 1970 com o intuito de repensar a história literária. A teoria do leitor implícito data de 1976 e se volta para o efeito do 467 texto sobre o leitor particular para observar as reações do leitor no plano cognitivo durante os percursos impostos pelo texto. Em 1980 há uma incorporação nas pesquisas em Linguística textual, dos mecanismos, processamento processos, textual estratégias e pela de ordem construção dos cognitiva responsáveis sentidos (KOCH, pelo BENTES, CAVALCANTE, 2007, p.12). A linguística textual conforme se pode verificar em Marcuschi (1983, p.12-13, apud KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p.12) “trata o texto como um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas.” O texto Considerando o texto nosso objeto de estudo, é importante defini-lo para compreender os mecanismos utilizados para análise. Um texto pode ser analisado de duas formas diferentes: considerando a sua organização interna e estrutural ou considerando o seu contexto sócio-histórico. Em outras palavras, o texto pode ser definido como um objeto de significação, já que sua organização interna produz sentidos ou, ainda, pode estabelecer relações com os demais objetos culturais por estar inserido em uma sociedade, sendo definido como um objeto de comunicação. No entanto, um texto não existe por si só, ele cumpre uma função social, histórica e/ou literária a partir do momento que alguém o lê. Sua construção é feita por relações de interdependências: forma e conteúdo, leitor e texto, contexto de produção e contexto de recepção, palavras e sentidos, etc. A partir dos anos 90 há uma grande mudança trazida pelo sóciocognitivismo e pelo interacionismo bakhtiniano que consideram o texto um lugar de constituição e interação de sujeitos sociais. Desta forma, o texto é visto como um objeto heterogêneo construído por relações internas e externas (elementos históricos, sociais e culturais). Segundo Bakhtin “O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Por trás desse contato está um contato de personalidades e não de coisas (1986, p.162 apud KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p.16). Em razão deste princípio, integramos o conceito de intertextualidade trazido por Kristeva na década de 1960. Segundo Kristeva (1974, p.60), “qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção de um outro texto”. Embora o conceito de intertextualidade tenha nascido no interior da Teoria Literária, seu uso foi ampliado e é utilizado dentro de diferentes correntes teóricas 468 como Análise do Discurso, Linguística Antropológica, Linguística textual, Semiótica, por exemplo. Podemos encontrar pontos em comum dentro dessas diferentes teorias cujo objeto de estudo é ou está relacionado com o texto. Intertextualidade e interdiscursividade A intertextualidade é inerente à produção humana visto que o texto é um objeto cultural representado na sociedade por meio de filmes, músicas, anúncios, poemas, romances, entre outros meios, Desta forma, podemos considerar a relação entre os textos responsável pela reprodução e/ou formação do sentido no processo de produção e recepção textual. O homem sempre se refere a algo que já foi dito ou feito no processo de produção simbólica. Falar em autonomia de um texto é, a rigor, improcedente, uma vez que sua existência se concretiza a partir do momento que alguém o lê, o que depende do olhar de cada leitor que é livre para interpretar o texto, recriando leituras e produzindo novos significados. É o leitor em conjunto com suas formações sociais e ideológicas que realizará determinada interpretação. Cada texto constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída. A significação se dá no jogo de olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. A intertextualidade se dá, pois, tanto na produção como na recepção textual que ocorre dentro do universo sócio-cultural que todos participam: filmes que retomam filmes, obras de arte que dialogam com outras, propagandas que se utilizam do discurso artístico, músicas escritas com versos de poemas alheios, tudo isso são textos dialogando com outros textos. Podemos associar essas concepções ao estudo de Bakhtin sobre a inerente polifonia da linguagem, na medida em que todo discurso é composto de outros discursos, toda fala é habitada por vozes diversas. Na verdade, a intertextualidade, inerente à linguagem, torna-se explícita em todas as produções literárias que se valem de diferentes recursos intertextuais como, por exemplo, referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches. Em qualquer nível, a produção simbólica é, pois, sempre uma retomada de outras produções, perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores. A interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso 469 que ele manifesta. A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto. A interdiscursividade, ao contrário, é inerente à constituição do discurso, dado que um discurso discursa outros discursos. Nessa medida, podemos dizer, então, que o discurso é social, além de apresentar uma heterogeneidade constitutiva (MAINGUENEAU, 1987, p. 81-93, apud BARROS; FIORIN, 2003, p.33) Discutiremos a intertextualidade presentes na música Monte Castelo e sua relação com a interdiscursividade responsável pela produção do sentido no momento da produção textual por parte do autor e suas possíveis releituras no processo de recepção textual por parte de diferentes leitores inseridos em contextos culturais diferenciados pelo tempo e pelo espaço, além de considerar os elementos externos integrantes na constituição da música. O contexto histórico e o leitor Estudar as estruturas gramaticais com um fim em si mesmo é insuficiente para compreender a função de um texto, já que esta se relaciona diretamente com o leitor, responsável por desvendar o conteúdo por detrás de sua estrutura. Entretanto, o conteúdo é cheio de significados interpretativos que só serão concretizados dentro do contexto de recepção do leitor, o que envolve fatores ideológicos constituintes deste sujeito social, portador de uma visão de mundo e conhecimentos específicos, o que nos faz considerar o texto um universo aberto onde podemos descobrir infinitas interconexões. A implicação do leitor no universo textual pode adquirir formas muito diferentes dependendo da distância temporal entre leitor e obra. Quando a distância é muito grande, o leitor deve, primeiramente, reconstituir a situação histórica do texto para poder fazer uma leitura mais profunda, observando uma visão de mundo que não é a de seu universo cultural. A leitura está muito longe de possuir um sentido único e limitado. O texto literário é, por definição, polissêmico, é a pluralidade de vozes no decorrer da leitura que define o texto como literário. A ambiguidade presente na linguagem literária não permite uma posição definida a favor da interpretação literal ou retórica. O leitor nunca possui um sentido definido em relação a uma obra. Ele constrói sentidos a cada momento, a cada nova influência, a cada conhecimento novo. O sentido é criado a cada encontro do leitor com o livro. De acordo com Jouve (2002, p. 103), “é impossível esgotar totalmente uma obra literária. Cada indivíduo traz consigo, de acordo com sua leitura, um suplemento de sentido”. 470 A linguagem não pode fugir da ação do tempo sendo incapaz de manter imutáveis os significados atribuídos a determinadas palavras. As palavras não existem isoladas, o que as torna incapazes de possuir significados estáveis e limitados. Ao contrário, elas trazem consigo valores que lhes são atribuídos por sujeitos sociais e ideológicos. As palavras são habitadas por vozes distintas e quando são recebidas pelo leitor, elas trazem consigo a voz do outro. Qualquer palavra de determinado contexto provém de outro contexto, já marcado pela interpretação de outrem. O pensamento do leitor encontra apenas palavras já ocupadas. Harold Bloom fala de uma “angústia da influência” em que as vozes dos outros habitam o nosso discurso, que se torna, consequentemente, polivalente. É desta forma que um texto literário é construído, por vozes de outros sujeitos ideológicos que utilizam a literatura como um objeto social para transmitir discursos ideológicos por meio dos textos. As palavras se relacionam dentro de um mundo fictício para relatar, satirizar ou imitar a realidade. Durante o processo de leitura, o leitor tenta interpretar os significados das palavras, utilizando, para tanto, seu conhecimento de mundo. Contudo, a interpretação pode ser feita de distintas formas, dependendo da formação e do contexto de recepção daquele que a faz. Muitas interpretações podem ser feitas, mas nem todas são válidas. O que faz, então, uma interpretação ser válida e outra não? A validade de uma interpretação deve estar relacionada com a intenção do texto. Contudo, esta intenção pode ser percebida de diferentes formas dentro do universo ideológico de cada um. É por este motivo que nada pode ser desprezado dentro de um texto literário. É sua estrutura organizacional, suas escolhas lexicais e relações estabelecidas entre as palavras, além do conhecimento histórico e do contexto de produção que orientarão o leitor a fazer uma interpretação consciente, respeitando a coerência interna do texto. Conhecer a vida e o momento histórico do autor pode ampliar o panorama de compreensão do texto, mas não é suficiente para alcançar a sua intenção. É durante o processo de leitura e interpretação que o leitor deixa de ser um simples leitor e passa a atuar como um sujeito social. Na busca do equilíbrio de uma interpretação válida e coerente, este sujeito faz relações entre aquilo que lhe é oferecido pelo texto (forma) com aquilo que ele interpreta de acordo com sua formação ideológica (conteúdo). A partir de então, o leitor atento e crítico não constrói simplesmente significados por meio da estrutura que lhe é apresentada, ele se constrói como sujeito 471 social ao utilizar suas formações ideológicas no momento em que relaciona o fictício com o mundo real. É este fictício que o ajudará a desenvolver o seu intelectual, melhorando-se como sujeito social. A literatura tem a capacidade de transformar o leitor em um sujeito social a partir do momento que transforma sua leitura simples do dia a dia em uma leitura crítica e consciente, é por meio da leitura que as mentes se desenvolvem. Os textos literários Texto Bíblico: Coríntios 13 1 Coríntios 13 1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. 2. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. 3. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. 4. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. 5. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; 6. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; 7. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. 8. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; 9. Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; 10. Mas, quando vier o que é perfeito, 472 então o que o é em parte será aniquilado. 11. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. 12. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. 13. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor. O seguinte texto faz parte de um conjunto de textos bíblicos presentes no Novo textamento em Coríntios 13, dividido em 13 versículos. A enumeração dos versículos é diferente de todos os outros capítulos apresentados em Coríntios 1 e 2. Os números sempre colocados no começo de uma linha (nunca na continuação de uma linha como acontece normalmente nos outros capítulos) causa a impressão de mandamentos que devem ser seguidos nas seguintes ordens. O tema amor é apresentado como central dentro do texto. Ele é escrito em primeira pessoa do singular. O narrador começa o texto demonstrando a insignificância de se possuir tudo se não houver o amor. Os versículos 1, 2 e 3 são construídos por orações concessivas.Observe os trechos a seguir: 1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. 2. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. 3. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O tempo utilizado (pretérito imperfeito do subjuntivo) é responsável para causar o efeito de sentido de impossibilidade e suposição. Está claro que o narrador 473 não tem nada daquilo que se apresenta por orações concessivas e dificilmente terá (ele não fala a língua dos anjos, não tem o dom da profecia, não conhece todos os mistérios, não tem toda a fé, não vai entregar seu corpo para ser queimado, etc). O fato de não possuir nada é apresentado para relacionar a possibilidade (ainda que muito improvável) de conquistar tudo aquilo que parece impossível e ser esta realização algo irrelevante na ausência do amor. Somente o amor pode suprir todas as necessidades. Ele é supremo, sagrado e vital. O amor é tudo e tudo sem o amor é nada. A partir do versículo 4 até o versículo 8 o narrador começa a definir o que seria este amor para ele. Essas definições são apresentadas por meio de afirmativas e muitas negativas, como se fossem regras para serem ou não seguidas. Veja os seguintes trechos: 4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. 5 Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; 6 Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, 7 tudo suporta. 8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; Encontramos a presença de paradoxo como recurso linguístico para causar maior expressividade à mensagem, ao afirmar que o amor é sofredor, mas ao mesmo tempo é benigno, não folga com a injustiça, mas folga com a verdade, enfatizando a importância de definir o que é e o que não é o amor, segundo o ponto de vista do narrador. De acordo com as ideias presentes no texto, o amor é a perfeição. Sendo um texto bíblico, este tipo de amor pode ser uma comparação com Deus, pois, segundo a Bíblia, somente Deus é a perfeição. A superioridade atribuida ao amor é verificada em outra passagem ao compará-lo ao fato de “transportar montes”, que pode ser visto como um milagre dentro da biblia. Verifiquemos o trecho seguinte: “[...] ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria” Somente a pessoa que possui toda a fé do mundo é capaz de transportar montes. Ainda assim, a conquista desse milagre seria insignificante se não houvesse a 474 presença do amor. Verificamos, desta forma, a supremacia que o texto dá ao amor, como se ele fosse o próprio Deus. Todas estas características atribuídas ao amor pressupõem um sentimento perfeito e sagrado. Sendo o homem um ser imperfeito, cheio de falhas, desejos e diversos sentimentos contrários ao amor, podemos pressupor que este conceito de amor apresentado pelo texto 1 faz referência a um sentimento não humano, não carnal. Somente um ser angelical e/ou sagrado como Deus teria condições de apresentar um sentimento deste tipo que suporta tudo, que nunca falha. A obtenção deste sentimento no mundo terreno é apresentada de maneira utópica, o que nos remete a outra passagem bíblica que nos faz refletir sobre a felicidade não ser deste mundo (Ec: 6, 9). O texto é construído como se fosse um mandamento, como se por meio dele as pessoas tivessem consciência da importância de começar a buscar o amor desde já, ainda que sua conquista só pudesse ser concretizada na vida eterna e na presença de Deus. Soneto de Camões Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor? O soneto Amor é fogo que arde sem se ver, de Luís Vaz de Camões, trata das contradições do amor. Ainda que o tema seja o mesmo presente nos outros textos, aqui ele não possui uma definição clara. Ao mesmo tempo que ele é positivo também é negativo. O negativo pode ser representado pelas palavras fogo (inferno, corpo, carne), ferida, dor, solitário. Contudo, sempre há algo positivo para anular o negativo (Ainda que o fogo arde, não se vê, ainda que a ferida dói, não se sente, a dor desatina mas não dói). Quando há algo positivo, em seguida há algo negativo (contentamento descontente, ganha em se perder). O amor é este sentimento 475 inacabável de altos e baixos. Esta continuidade é representada pela palavra amor que é utilizada tanto para começar quanto para finalizar o soneto. As contradições do amor são utilizadas para acentuar o dualismo platônico entre matéria e espírito, negativo e positivo, pecado e pureza. Essa feição contraditória e o jogo de oposições aproximam Camões do Maneirismo e, no limite, do Barroco. Este soneto é uma tentativa de definir o amor. A impossibilidade desta definição é apresentada pelas contradições existentes entre os termos positivos e negativos. Este jogo estrutural realizado por paradoxos causa o efeito de complexidade do amor, um tema tratado por tantos outros textos, mas não mostrado na sua dualidade. A definição do amor o tornaria algo objetivo. Sua falta de definição o coloca no lugar de subjetividade e complexidade: ele pode ser tudo ou nada, bom ou ruim, positivo ou negativo, material ou espiritual. Na realidade, o soneto trata da impossibilidade de definir o amor e das incertezas e contrariedades deste sentimento. Há uma tentativa de definição no começo do soneto “Amor é...”, porém, todas as definições são impossibilitadas ao finalizar o soneto por um sinal de interrogação, demonstrando a dúvida e criando incertezas de tudo aquilo que foi definido anteriormente. A contrariedade do poema também é vista pela parte externa (estrutura) e interna (conteúdo). A parte externa representa a possibilidade enquanto a interna representa a impossibilidade. Ainda que o tema do amor seja algo impossível de se definir, é um tema possível de ser trabalhado dentro das normas de um soneto: versos decassílabos, com predomínio dos decassílabos heroicos (sexta e décima sílabas tônicas), rimas opostas nos quartetos (ABBA) e alternadas nos tercetos (CDC). A complexidade do amor é demonstrada pela complexidade da organização estrutural do soneto. As relações intertextuais Monte Castelo MONTE CASTELO Composição:Renato Russo Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... É só o amor, é só o amor 476 Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja Ou se envaidece... O amor é o fogo Que arde sem se ver É ferida que dói E não se sente É um contentamento Descontente É dor que desatina sem doer... Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... É um não querer Mais que bem querer É solitário andar Por entre a gente É um não contentar-se De contente É cuidar que se ganha Em se perder... É um estar-se preso Por vontade É servir a quem vence O vencedor É um ter com quem nos mata A lealdade Tão contrário a si É o mesmo amor... Estou acordado E todos dormem, todos dormem Todos dormem Agora vejo em parte Mas então veremos face a face É só o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade... Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor, eu nada seria... Monte Castelo é uma canção da banda brasileira de rock Legião Urbana, lançada no álbum As Quatro Estações em 1989. Composta por Renato Russo, a canção traz citações do poeta português Luís Vaz de Camões em seu soneto 11, além do capítulo 13 de Coríntios, livro da Bíblia. O tema do amor é tratado como uma ideia de verdade. É por meio dele que acontece o despertar para a realidade da vida. Esta realidade (verdade) trazida pelo amor não quer o mal, não sente inveja ou se envaidece. O narrador afirma esta verdade exposta pela letra ao afirmar que está acordado para a realidade enquanto todos dormem, o que pode ser visto em um dos poucos versos da música que utiliza 477 apenas palavras do autor (sem fazer referências ao texto de Camões ou ao texto bíblico): “Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem”. Ainda que o narrador da música seja o mesmo ao utilizar a 1ª pessoa do singular, a intertextualidade contida no texto nos remete à outro narrador ao fazer referência a um texto bíblico: “ainda que eu falasse a língua dos homens...”. O eu presente neste verso, não é o mesmo eu presenteno no verso “Estou acordado”. Todo texto traz valores e vozes presentes atrás de seu sentido. O primeiro eu nos remete à voz do apóstolo Paulo aos conríntios (povo que vivia em uma cidade da Grécia chamada Corinto). Renato Russo utiliza esta voz aceita como uma verdade consagrada pela Bíblia para afirmar a sua verdade enquanto homossexual. Desta forma, Renato Russo utiliza a voz de um narrador para criticar aqueles que criticam o seu tipo de amor, fazendo com que eles acordem para uma verdade exposta há muito tempo pela bíblia: o amor. Ao dizer que “todos dormem”, está fazendo uma metáfora para mostrar a negação da realidade presente na vida de todos. A música utiliza a intertextualidade para afirmar a importância do amor pelo texto bíblico e utiliza o soneto para mostrar as contrariedades existentes no amor. É interessante apontar que os únicos versos do soneto não utilizados na música foram o 12º (“Mas como causar pode seu favor”) e o 13º (“Nos corações humanos amizade”), o que poderia trazer o tema da amizade. Podemos deduzir, desta forma, que o amor tratado na canção não está relacionado ao tema de amizade, mas ao tema amoroso. O uso de um texto bíblico em uma música escrita por um roqueiro homossexual pode ser visto como uma crítica social e religiosa. Considerando que o álbum foi lançado em 1989 e Renato Russo tinha assumido publicamente sua homossexualidade em 1988, é inevitável não fazer relação ao tema. A supremacia do amor deve estar presente em qualquer situação. Amor é amor em qualquer lugar desde que seja verdadeiro. O amor de um homossexual não é menos importante que de outro amor. Por isso que o amor é um paradoxo. A sociedade considera o amor entre um homem e uma mulher, mas a letra da música mostra a contrariedade que há no amor: “tão contrário a si é o mesmo amor”. Ainda que o amor não é o que parece ser aos olhos dos outros, ele não deixa de ser amor. As pessoas só poderão ver a verdade do amor quando acordarem para uma vida sem preconceitos. O narrador afirma estar acordado para esta verdade enquanto todos dormem. Podemos encontrar o tema da hipocrisia: ainda que a verdade esteja presente, todos continuam dormindo para não vê-la, mas um dia todos deverão encará-la: “mas então veremos face a face”. Ele afirma uma verdade exposta pela 478 bíblia para requerer o direito da sua verdade. Para tanto, utiliza o texto de Camões para mostrar a contrariedade que pode estar presente no amor, que ele não é igual para todos e pode ser sentido de maneiras jamais pensadas. É possível imaginar uma ferida que dói e não se sente? O soneto afirma que sim. Da mesma forma é possível imaginar um amor entre pessoas do mesmo sexo. Não há razão para entender o amor, só há verdade e bondade. Enquanto o texto bíblico considera o amor algo perfeito, o texto de Camões o considera um paradoxo. A relação entre os dois textos resulta na construção de um terceiro texto: a música Monte Castelo. Esta nova construção produz sentidos diferentes ao ser escrita em outro contexto social. Considerações finais A sociedade utiliza a linguagem para expressar opiniões, fatos e situações de uma determinada época dentro de um contexto histórico-social específico com o intuito de causar alguma reação/conscientização no ouvinte (leitor). É através do processo de construção do significado que os participantes discursivos se tornam conscientes de quem são ao se envolverem e ao envolverem os outros no discurso em circunstâncias culturais, históricas e institucionais particulares. A leitura pode agir sob um único indivíduo ou sob uma sociedade. O leitor não vive isolado no espaço social, a experiência transmitida pela leitura desenvolve um papel na evolução global da sociedade. Desta forma, um texto pode transmitir valores dominantes de uma sociedade, legitimar novos valores, romper com valores tradicionais. O poder que a leitura tem de influenciar a mente humana é o mesmo que a mente humana tem de modificar uma sociedade. Renato Russo tenta demonstrar por meio de relações intertextuais a importância do amor sentido da forma mais verdadeira possível ainda que diferente do amor convencional ditado pela sociedade onde sua existência é recriminada se sentida por pessoas do mesmo sexo. Desta forma, o cantor consegue trazer para seu texto a importância do amor exposta no texto bíblico em conjunto com o paradoxo presente na essência deste sentimento exposto pelo soneto de Camões para criticar aqueles que não aceitam este tipo de amor. Contudo, a construção desses novos significados dependerá do leitor para sua concretização. Receber um texto não é algo que acontece de maneira passiva, o que vemos nos personagens são imagens que buscamos para consolidar imagens que temos de nós mesmos e dos outros no mundo real. O mundo da leitura possui múltiplas facetas: 479 influencia, cria, recria, constrói, destrói e nos permite redescobrirmos a nós mesmos em cada leitura diferente, seja de diferentes textos ou de um mesmo texto. Por meio da leitura o indivíduo amplia sua visão de mundo e desenvolve seu lado crítico. É este dinamismo presente na linguagem que proporciona uma integração da língua com a literatura. Dos vários conceitos discutidos sobre literatura, fixamos aquele que a considera capaz de humanizar, além de desenvolver o lado crítico e analítico do leitor. O ato de leitura inclui experiência, fantasia e necessidade. Todo leitor traz consigo experiência que o ajudará a compreender os sentidos apresentados em um texto. Porém, ao mergulhar no universo da leitura, o leitor se envolve com o autor, apoderando-se de pensamentos que não são seus, refletindo sobre ideias estabelecidas, avaliando a necessidade de reformulá-las ou confirmá-las, voltando para dentro de si próprio. A busca da compreensão cria no leitor expectativas que deverão ser confirmadas ou refutadas no decorrer da leitura. Durante este processo, o leitor sai de seu mundo real para entrar no mundo ficcional. Nesta viagem muitas descobertas serão feitas sobre o seu próprio eu. Ao se apossar de ideias que não são suas, o leitor tem a oportunidade de refletir sobre sua visão do mundo real, confirmando, modificando ou criando novos sentidos. Referências bibliográficas BORDINI, M.G; AGUIAR, V.T. Literatura: a formação do leitor: Alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988 FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: Bakhtin – outros conceitoschave, BRAIT, B. (Org.). São Paulo: Contexto, 2006. FIORIN, J.L. 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