"O sintoma é o que de mais real o
sujeito porta"
Maria Célia Andrade Oliveira
É a esta vítima comovedora que nós recebemos quando ela
vem a nós, quer dizer, é a este ser de nada que nossa tarefa
cotidiana é a de abrir novamente a via de seu sentido, em uma
fraternidade discreta, na medida em que somos sempre
demasiadamente desiguais.1
O que quer fazer aquele que se dirige a um psicanalista? Que compreenda
aquilo do que sofre e, na medida do possível, o alivie deste sofrimento? Mas sem
dúvida, inventariar os sintomas não é o procedimento que orienta o psicanalista.
Freud o indica no próprio título de um de seus trabalhos: "Inibição, Sintoma e Angústia" — escritos no singular.
E o que é realmente a angústia? Angústia, diz Freud, é algo que se sente, um
estado afetivo e como sentimento, tem caráter de desprazer, o que não é muito
óbvio. É freqüentemente acompanhado de sensações físicas referida ao coração
e órgãos respiratórios. Afirma que a angústia é função do ego. O ego é a verdadeira sede da angústia. A angústia é um estado afetivo e, como tal, só pode ser
sentida pelo ego. Até então, Freud acreditava que a angústia provocava o recalque e, desde já evidencia-se o contrário: a castração é que ocasiona a angústia.
Lacan retoma e continua: é a castração do Outro.
Importa ver a angústia tal como é manifestada na fala do sujeito angustiado.
É alguma coisa que não muito bem definida e o sujeito não encontra palavras
adequadas para descrevê-la: "Algo ruim", diz o sujeito, "é uma coisa estranha
que dá dentro de mim" (põe a mão o peito). É como se o sujeito angustiado visse
seu mundo desmoronar-se: ou melhor, pode-se dizer que há uma verdadeira
fuga dos signif icantes, amarrados numa estrutura de organização de linguagem.
Lacan retoma a topologia do nó borromeano para dizer que a angústia "é
uma emergência do real dentro do imaginário." Nessa relação imaginária, dual,
especular, insere-se um terceiro termo demarcadorde diferenças, criando-se com
isso um território de angústia. A angústia em si está ligada a uma perda, a uma
transformação do eu: uma relação dual que está próxima a desvanecer-se, e à
qual deve suceder algo mais que o sujeito não pode abordar sem uma vertigem.
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Pode-se dizer que aí está o registro e a natureza da angústia. Sempre que o real
(impossível de suportar) emerge no imaginário, o sujeito entra em angústia porque o seu ego {moi), unidade do sujeito alienado a si mesmo, não se sustenta nas
suas articulações e amarrações significantes. A angústia aparece como interrogante que surge desse colapso significante, apelação ao Outro e questionamento do sujeito.
É assim que o sujeito encontra esta primeira falha do significante em seu desejo — que de modo algum pode articular em palavras —, descoberto no dizer de
Lacan como metonímia de uma falta a ser. Ao surgir isto, quando o sujeito se enfrenta com sua demanda (sujeito obstaculizado na demanda), sobrevem na mensagem uma falha do Outro, garantia do sistema significante, por uma carência
de significantes: o Outro obstruído, alcançado como tal na angústia, na Spaltung
em que o sujeito se articula com o logos.
Pode-se avaliar a problemática do conceito de angústia se nos remetermos
aos conceitos de inibição e sintoma. Tais conceitos alcançam uma perspectiva
mais ampla com as contribuições de Lacan na releitura de Freud, ou melhor dizendo, no retorno aos textos freudianos, que era seu principal objetivo.
O conceito de inibição guarda uma estreita relação com função; segundo
Freud, inibição é nada mais nada menos, que uma redução de uma determinada
função. O sujeito inibido não desempenhará com desenvoltura o território funcional, pois, está afetado por uma causa específica: os potenciais inerentes ao desempenho normal e natural da dinâmica da função estarão bloqueados, diminuídos. Estas atividades específicas estão limitadas, barradas de serem realizadas
(simbolicamente), por estarem encerradas nas garras do imaginário: numa transação especular, onde estas funções são embaralhadas pela própria confusão
existente entre significante e significados. O sujeito renuncia, inibitoriamente aos
sentidos para evitar a geração de angústia de castração (morte).
Lacan, dentro de uma abordagem topológica do sujeito, articula que a inibição é uma emergência do imaginário dentro do simbólico: é sempre um trabalho
de corpo, onde uma função diminui; em alguma parte pára de intervir, por deficiência do simbólico, "buraco do simbólico". A inibição tem relação com o efeito
de parada que resulta de sua intrusão no simbólico: por uma razão qualquer o sujeito é tomado imaginariamente nas suas articulações simbólicas, perde suas
amarrações significantes, e permanece ancorado e aprisionado assim mesmo,
paralisado num território imaginário (relação dual, especular, de morte). Dá-se,
com isso, toda uma diminuição das possibilidades do sujeito de realizar de forma
satisfatória seus desejos/demanda.
O sintoma estaria mais além da inibição, na medida em que, segundo Freud,
uma inibição se submete a uma alteração inusitada. Ao contrário da inibição que
é uma restrição de funções do ego, o sintoma se situa fora, como um verdadeiro
corpo estranho ao eu. O sintoma fala do isso no eu, é o embaixador oficial do
isso, desemboca no eu.
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DO SINTOMA AO SINTHOMA
Dentro da perspectiva freudiana, o sintoma é visto como um signo e substituto de uma satisfação pulsional, sendo portanto conseqüência direta do recalque:
ou seja, o significante é substituído por outro significante (processo metaforonímico) e este primeiro significante é submetido às leis do recalque, caindo numa
cadeia de significantes inconscientes (recalque). Se o inconsciente é estruturado
como uma linguagem e o sujeito está inserido numa lógica do significante (o significante é o que representa o sujeito para outro significante), pode-se dizer que
o sujeito se apresenta na sua fala, ou melhor dizendo, se apresenta como falante
através de uma estrutura sintomática: inicialmente o sujeito (coisa ainda) recebe
do campo do Outro uma marca S, que a partir de uma amarração com S2 articula
uma possibilidade discursiva, um campo significante dentro deste vasto campo
do Outro, e partir daí é que vai poder encadear-se nesse campo e fazer amarração de significante para significante.
Esse momento de instalação significante do sujeito corresponderia à inscrição sintomática do falante num campo discursivo, ou seja, campo metafórico. O
sintoma é metáfora, nada mais que metáfora. É o que Lacan vai chamar Nomedo-Pai... que é pura metáfora. O sintoma é do Pai. Não há pois sintoma sem Pai, e
a incidência da metáfora paterna por seu caráter enigmático se faz traumático. O
sintoma diz; por isso é significante e se dirige a um Outro significante. Tem um caráter hieroglífico, de marca, pois é ele que perpetua o Nome do Pai.
Lacan diz que o sintoma é uma emergência do simbólico dentro do real. Ora,
o simbólico continua simbólico, mas sempre exercendo uma pressão dentro do
real. Deste modo, necessário se faz entender o simbólico em jogo constante no
intercâmbio analítico, tendo em conta o que nele encontramos como sua realidade essencial: assim se trata de sintomas, atos falhos e tudo que se inscreve. Tratase todavia e sempre de símbolos, e de símbolos muito especificamente na linguagem, que por conseguinte funcionam a partir de equivalência significante.
Lacan aborda este território freudiano através de uma nova via de pensamento onde o sujeito (S) está inscrito nos registros do real, do simbólico e do imaginário, cuja topologia está configurada na estrutura mesma do nó borromeano.
Estes três registros são muito distintos, e para Lacan são registros essenciais da
realidade humana. Sabemos hoje da importância que alcançou a inserção destes
três registros no discurso psicanalítico, no sentido de uma leitura mais precisa na
fala do sujeito da análise, pois o real, o simbólico e o imaginário são o enunciado
do que se opera efetivamente no discurso psicanalítico.
A teoria lacaniana (lógica do significante), nos coloca a problemática do sujeito em relação a estas três ordens: do imaginário (relação dual, especular, narcisista) ao simbólico (relação triádica), o real sempre impossível (enquanto realidade referente). Em si incognoscível, o real só nos importa a medida em que é reportado pelo homem. Efeito intersistêmico, é resultado da eficácia simbólica e só se
toma consciência dele ao recortá-lo, ao articulá-lo. Mas o real de nada depende
para ser. Ele é antes mesmo de ser nomeado, é tudo aquilo que resiste a simboli-
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zação. Diferentemente do simbólico e do imaginário, o real não é dialético. Ele se
basta e precede a todo e qualquer conhecimento.
Após esta abordagem dos conceitos de Inibição, Sintoma e Angústia, vamos
apresentar de uma maneira resumida o nó borromeano: estrutura topológica
dos três registros: simbólico, imaginário, real. A apresentação do nó, numa planificação, permite localizar topologicamente não somente a inibição, o sintoma e
angústia, como também outros conceitos importantes na teoria psicanalítica.
Lacan diz que o falante é estruturado como se os três registros se entrelaçassem normalmente, de maneira borromeana. A realidade do falante é constituída
por estes três registros, heterogêneos enquanto situação, porém amarrados homogeneamente dentro da lógica borromeana.
R-Real
S-Simbólico
I-Imaginário
a -Objeto causa de desejo; metonímico, lugar lógico da modulação dos três registros.
JA - Gozo do Outro: intervalo do Real e Imaginário (impossível como configuração).
J - Gozo fálico: intervalo do Simbólico com o Real (da ordem sintomática)
Sentido - intervalo do Simbólico com o Imaginário.
Por outro lado, o sintoma seria a carência de um simbólico para amarrar o
real e o imaginário, ou melhor dizendo, a falta de um simbólico "adequado" que
diga de maneira apaziguante o impossível do real. Enquanto este simbólico "nãochega", o sintoma ganha tempo estabelecendo, como afirmou Freud, "um compromisso", para que o sujeito, embora sofrendo, consiga levar sua vida. Mas este v
compromisso custa caro. Seu preço é a angústia.
A angústia é estrutural e estruturante; é a manifestação clínica frente a ver- ,
tente imaginária do objeto a. A intensidade de sua presença é indicador da apro- <
ximação da castração, pois, na castração que é simbólica, o objeto é imaginário.
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DO SINTOMA AO SINTHOMA
Lacan o definiu por-<p ou, se quiser, a angústia do falo não oferecer a significação
da diferença. A angústia é a interrogação deste ponto negro: Che Vuoi?, o que
ele quer de mim?
0 sujeito é o que o sintoma oculta. O sintoma é um bem do sujeito e um bem
para o sujeito. Ele só se constitui porque não havia outra maneira de o sujeito sobreviver a uma representação insuportável. O sintoma é uma saída, às vezes precária, mas a única que pode garantir uma certa ordem ao sujeito.
A psicanálise não visa a assintomatização do sujeito, pois, diferentemente da
medicina, sua tarefa primeira não é remover sintomas. Os sintomas jamais serão
eliminadosjá que é a própria divisão do sujeito que o produz. Freud já afirmara:
O neurótico curado tornou-se outro homem, embora no fundo, naturalmente
tenha permanecido o mesmo, ou seja, tornou-se o que se teria tornado na melhor das hipóteses, sob as condições mais favoráveis. Isso porém, já é muita coisa. Se os senhores passarem a ouvir atentamente tudo o que deve ser feito e
que os esforços são necessários para levar a cabo essa mudança aparentemente banal na vida mental de um homem, sem dúvida começarão a perceber a importância desta diferença em níveis psíquicos. 2
Num decorrer de uma análise o sujeito muda muito pouco, porém é um pouco que é muito.
Em 1976, no Seminário Le Sinthome, Lacan demonstra que além dos sintomas {symptômes), todo ser humano como sujeito se caracteriza pelo sintoma
(symptôme). Na história de cada um, o sintoma é a baliza de seu sofrimento e de
seu peregrinar tortuoso. Por isso mesmo, o synthome não pode ser analisado,
pois é a luz para que a análise seja possível.
Lacan, na sua Terceira Conferência de Roma, nos disse que o sentido do sintoma é o real; nós sabemos que o discurso do analista se apoia no real, mas o advento do real não depende do psicanalista em absoluto:
O que pedimos é que nos libere do real e do sintoma. Se triunfa, se essa demanda tem êxito podemos esperar tudo, ou seja, um retorno da verdadeira religião. A religião não é louca, todas as esperanças lhe servem, pode-se dizer: ela
as santifica. Porém, se a psicanálise tem êxito, se extinguira por ser somente
um sintoma esquecido. A verdade se esquece. Por conseguinte, tudo depende
de que o real insista. E para isso é necessário que a psicanálise fracasse...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. LACAN, J., "L'Agressivité in psychanalyse"(1948), In Écríts, Paris, Seuil, 1966, p.
124.
2. FREUD, S., "Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise"(1916-17), No. XXVII
"A Transferência", In Obras Completas Vol. XVI, Imago Editora, Rio de Janeiro,
1969, p. S08.
3. LACAN, J., Terceira Conferência de Roma", 1974, inédito.
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BIBLIOGRAFIA
FREUD, S., "Inibição, Sintoma e Angústia" In Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1969.
LACAN, J., Seminário, Le Sinthome, 1976, Inédito.
SAFOUAN, M., Angústia, Sintoma, Inibição. Campinas, S. P., Papirus Liv. e Editora,
1991.
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