UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA
Luciana Ribeiro Marques
HOMOSSEXUALIDADE:
uma análise do tema sob a luz da psicanálise
RIO DE JANEIRO
2008
LUCIANA RIBEIRO MARQUES
HOMOSSEXUALIDADE:
UMA ANÁLISE DO TEMA SOB A LUZ DA PSICANÁLISE
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em
Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga
de Almeida, como requisito parcial para obtenção do
Grau de Mestre. Área de concentração: Psicanálise e
Saúde.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Quinet
RIO DE JANEIRO
2008
M357h
Marques, Luciana Ribeiro, 1979- .
Homossexualidade : uma análise do tema sob a luz da psicanálise
/ Luciana Ribeiro Marques. – 2008.
113 f. ; 30 cm.
Digitado (original)
Dissertação (Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade) –
Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2008.
“Orientação: Prof. Dr. Antonio Quinet, curso de Psicanálise e Saúde”
1. Homossexualidade – História. 2. Homossexualidade – freudiana. 3.
Psicanálise – Discurso. I. Quinet, Antonio (orientador). II. Universidade
Veiga de Almeida. III. Título.
CDD 616.8917
LUCIANA RIBEIRO MARQUES
HOMOSSEXUALIDADE: UMA ANÁLISE DO TEMA SOB A LUZ DA
PSICANÁLISE
Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em
Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida, como requisito parcial para obtenção do Grau de
Mestre. Área de concentração: Psicanálise e Saúde.
Aprovada em 13 de Novembro de 2008
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Antonio Quinet – Orientador
Universidade Veiga de Almeida – UVA-RJ
Prof.ª Dra. Maria Anita Carneiro Ribeiro
Universidade Veiga de Almeida – UVA-RJ
Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador, professor Dr. Antonio Quinet, por suas precisas intervenções e
lapidações durante este trajeto.
Agradeço aos membros da banca, o professor Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge e à
professora Dra. Maria Anita Carneiro Ribeiro, pela disponibilidade e por suas contribuições
extremamente valiosas.
Agradeço, com menção especial, à professora Aline Drumonnd pelo incentivo entusiástico e
pela confiança depositada em mim desde o tempo da graduação.
Agradeço a minha família: ao meu marido pela paciência e companheirismo. A minha mãe e
irmãs que representam, para mim, o valor da família. Agradeço ao meu pai, fonte inesgotável
de sabedoria e segurança. Obrigada pelo carinho e pela transmissão de algo que não consigo
adjetivar.
“No campo aberto por Freud, restaure a sega cortante de
sua verdade; que reconduza a práxis original que ele
institui sob o nome de psicanálise ao dever que lhe
compete em nosso mundo; que, por uma crítica assídua,
denuncie os desvios e concessões que amortecem seu
progresso, degradando seu emprego.”
Lacan
RESUMO
O tema da homossexualidade vem ocupando diversos campos da ciência na tentativa de
desvendar as raízes da escolha homossexual. Situada entre o normal e o patológico pela
medicina psiquiatra oitocentista que compartilhava seu usufruto com o sistema eclesiástico e
político, a homossexualidade perdurou no campo da perversão sexual durante décadas: o
conjunto de comportamentos que desviavam do orgasmo por penetração genital entre um
homem e uma mulher era considerado anormal e deveria ser tratado com o intuito final de
cura. Freud, que para além da visão de sua época preocupava-se com o sujeito e seu
sofrimento, traçou um percurso durante toda sua obra a respeito da diversidade sexual do ser
humano; contudo, a lacuna que ainda hoje se apresenta como questão refere-se à escolha
homossexual, pois ao pensarmos a sexualidade não podemos deixar de pontuar que o sexual
não é redutível ao genital, assim como a anatomia não é o destino, já que não existe
complementaridade entre os sexos. Desta forma, é a partir da ruptura freudiana e dos
benefícios dessa herança, trazida a nós por Lacan, que pretendemos analisar o tema da
homossexualidade, abrindo espaço para novas reflexões a respeito da prática clínica que,
ainda hoje, leva alguns autores a falarem, em nome da psicanálise, abordando de forma
preconceituosa e sinonímica, homossexualidade e perversão.
Palavras-chave: Homossexualidade, perversão, psicanálise.
ABSTRACT
The issue of homosexuality has been occupying many fields of science in an attempt to
uncover the roots of the homosexual choice. Located between the normal and pathological
medicine by the eighteenth psychiatrist who shared their enjoyment with the cleric and
politician, the homosexuality continued in the field of sexual perversion for decades, where
the set of behaviors that diverted from genital orgasm between a man and a woman were
considered abnormal and should be treated with the main purpose of healing. Freud, who in
beyond to the vision of his epoch, worried about the subject and their suffering, set a course
through his work about the human sexual diversity; but, the gap that still presents itself as an
issue, refers to the homosexual choice, because when we think in the sexuality, we can’t let to
punctuate that, the sexual is not reducible to the genital and the anatomy is not the destination,
since there is complementarity between the sexes. This way, will be from the freudian rupture
and the benefits of inheritance, brought to us by Lacan, which we want to examine the issue
of homosexuality, opening space for new reflections about the clinical practice that, even
today, leads some authors to speak in the name of psychoanalysis, and addressing in a biased
and synonymy way, homosexuality and perversion.
Keywords: Homosexuality, perversion, psychoanalysis.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................
08
2
DO DISCURSO HISTÓRICO AO DISCURSO DA CIÊNCIA................
11
2.1
A HOMOSSEXUALIDADE ANTES DE FREUD.........................................
12
2.1.1
Pré-História – 1300 a.C..................................................................................
12
2.1.2
1300 a.C. – 100 a.C.........................................................................................
14
2.1.3
100 a.C. – 600 d.C...........................................................................................
16
2.1.4
600d.C. – 1550.................................................................................................
20
2.1.5
1550 – 1800......................................................................................................
25
2.2
A HOMOSSEXUALIDADE NA ÉPOCA DE FREUD..................................
30
2.2.1
1800 – 2000......................................................................................................
31
2.2.2
2000 – Discurso Atual.....................................................................................
39
3
A HOMOSSEXUALIDADE NA OBRA FREUDIANA.............................
45
3.1
A TEORIA DA BISSEXUALIDADE.............................................................
45
3.2
A RUPTURA FREUDIANA...........................................................................
53
3.3
MASCULINO/FEMININO..............................................................................
67
4
DESCONSTRUINDO
A
HOMOSSEXUALIDADE
ENQUANTO
PERVERSÃO.................................................................................................
73
4.1
A ESTRUTURA PERVERSA X PERVERSÃO POLIMORFA...................
73
4.2
A JOVEM HOMOSSEXUAL: NEUROSE OU PERVERSÃO?....................
81
4.3
UMA CRÍTICA AOS DESVIOS TEÓRICOS................................................
95
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 105
REFERÊNCIAS ............................................................................................ 109
APÊNDICE A – Curso de extensão: homossexualidade e perversão na
psicanálise........................................................................................................
115
8
1 INTRODUÇÃO
O que Freud, após 100 anos, pensaria a respeito da relação entre nossa sociedade atual e a
homossexualidade? Acreditamos que, enquanto analistas, faz parte de nosso dever tal
questionamento, pois, mesmo após a revolução sexual ocorrida durante o século XX, nos
deparamos com atitudes preconceituosas em relação aos sujeitos e suas escolhas dentro da
sociedade e do próprio campo psicanalítico.
Em 2003 – apenas quatro anos atrás –, presenciamos na Assembléia Legislativa do Rio de
Janeiro a votação para o Projeto de Lei (nº 717/2003) que defendia a idéia de tratamento com
intuito final de cura para os homossexuais. Um discurso que poderia ser pensado como um
retorno às idéias e aos ideais já superados da medicina psiquiátrica do século XIX acaba por
nos revelar o retrato de um pensamento preconceituoso que ainda emerge como questão atual.
Sabemos que Freud, sempre preocupado em traçar sua teoria sob uma perspectiva ética1,
derrubou barreiras e abriu caminhos para a psicanálise tratar o sujeito e seu sofrimento. No
entanto, verificamos a necessidade, ainda existente, de esclarecer questões da clínica
psicanalítica relacionadas à homossexualidade e, assim, instrumentar e auxiliar os
profissionais da área a sustentar o desejo do inconsciente.
Desta forma, em nosso primeiro capítulo, percorremos diferentes sociedades, nas mais
diversas épocas, a fim de tratar as questões da sexualidade, ao longo da história, até
chegarmos à moral sexual atual.
Iniciamos o percurso revelando o discurso anterior à influência do pensamento monoteísta, no
qual verificamos que as relações sexuais não se definiam pela anatomia e que, antes, eram
guiadas pelo acaso dos encontros, nos quais o amor, a amizade, o sexo e o prazer estavam
interligados.
Na seqüência, com a entrada do cristianismo em cena, o grande contraste entre as culturas
passa a ser evidenciado, pois, ao ser implantada uma moral sexual que realça o casamento e a
vida em família, o sexo-por-prazer transforma-se em sexo-para-procriação.
1
Ética do desejo.
9
Na época de Freud, nos deparamos com o discurso da ciência e sua união com a religião e a
política a fim de classificar a homossexualidade como perversão.
Embora Freud, para além da visão de sua época, viesse justamente apontar para a diversidade
sexual do ser humano, verificamos o surgimento, dentro da própria IPA, de uma normatização
da análise e do analista que contribuiu para o início de um discurso retroativo no tratamento
da sexualidade pela via do embate entre normal X patológico.
Deixemos que Freud explique:
A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antiguidade e a nossa decerto
reside em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao passo que
nós a colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a
enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a
atividade pulsional em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do
objeto. (FREUD, 1905, v. 7, p. 141)
Portanto, no segundo capítulo, apontando para um lugar bem distinto da moral social,
enfocamos o discurso freudiano e sua subversão quanto à concepção da sexualidade humana.
Apresentamos o sexual de forma plástica, não adaptativa e sem relação com o coito em si.
Para tal, seguimos passo a passo o desenvolvimento dos conceitos introduzidos por Freud,
partindo do estudo do desenvolvimento psicossexual do sujeito, privilegiando como respaldo
teórico sua tese da bissexualidade originária, seu conceito de pulsão e de escolha do desejo
inconsciente.
Com o intuito de retomar as bases da psicanálise, a partir dos conceitos reexaminados até
então, reservamos para o terceiro capítulo a tarefa de desconstrução do intrincamento, ainda
existente, para certos psicanalistas, entre homossexualidade e perversão, mostrando suas
incoerências e desvios em relação às concepções freudianas, tanto sobre a homossexualidade
quanto sobre a perversão.
Assim, afirmamos que estrutura perversa não significa perversidade, nem perversão polimorfa
e que, da mesma forma, nada sustenta a relação entre escolha de objeto e escolha de estrutura.
10
Para exemplificar, nos respaldamos na releitura do caso da jovem homossexual, enfocando
sua escolha de estrutura, sua escolha de posição sexuada e sua escolha de objeto, a fim de
apresentarmos a homossexualidade desvinculada de qualquer estrutura que a determine.
Em contraponto, estudamos Serge André com A impostura perversa, Philippe Julien em
Psicose, perversão, neurose, Charles Melman com Clínica psicanalítica: artigos e
conferências e Patrick Valas em Freud e a perversão, para pensarmos a sexualidade e a
diferença sexual apontada por tais autores e, assim, nos questionarmos sobre os indícios de
uma privilegiada leitura homofóbica do tema.
Sustentamos a homossexualidade a partir da posição tomada por Freud, em que o sujeito é
sexual e a homossexualidade é uma escolha psíquica inconsciente que passa a ser questão a
esclarecer, tanto quanto a heterossexualidade, pois a relação sexual, enquanto pré-determinada
entre pulsão e objeto, não existe.
A partir do discurso psicanalítico lacaniano, enfatizamos que o sexual não é redutível ao
genital, assim como a anatomia não é o destino, pois não existe complementaridade entre os
sexos, já que o inconsciente desconhece a biologia.
Desta forma, pontuamos que o retorno à moral sexual2 de antes de Freud, assinada por alguns
psicanalistas, cria uma falsa demanda de tratamento, pré-estabelecida a partir do conceito de
normalidade, que se reflete no imaginário social e influencia vários pais – como o da jovem
homossexual – a chegarem aos consultórios com demanda de cura para os filhos.
Em suma, à luz da psicanálise, viemos destacar a abordagem do tema da homossexualidade,
abrindo espaço para novas reflexões a respeito da prática clínica, marcando o abandono da
anatomia e inserindo a essencial problematização da diferença sexual e de sua relação com o
inconsciente. Logo, apontamos para uma psicanálise sem objetivo de mudança na escolha de
objeto e para uma clínica psicanalítica enquanto meio para o sujeito tomar posse das marcas
de seu inconsciente.
2
Restrições e proibições referentes à vida sexual do ser humano, que deve seguir o modelo do casamento
monogâmico com intuito final de procriação.
11
2 DO DISCURSO HISTÓRICO AO DISCURSO DA CIÊNCIA
Neste capítulo da dissertação, devido à necessidade de um tratamento fidedigno do material a
ser apresentado, venho logo de início ressaltar que minha contribuição pessoal ficará restrita à
seleção do material, assim como dos recortes, citações e retificações feitas pelos diversos
autores a respeito do tema, mantendo-me num processo de trabalho no qual o levantamento
dos dados em questão e a fundamentação teórica têm como base a pesquisa bibliográfica.
Assim, nosso principal objetivo neste primeiro momento é percorrer o lugar das atividades
homossexuais no âmbito mais vasto da existência humana, a fim de que possamos tratar as
questões da sexualidade ao longo da história, nas diferentes culturas, enfocando a mudança de
pensamento em cada sociedade sobre essa mesma prática, até chegarmos à moral sexual atual.
Como dizia o poeta e escritor Goethe, “a homossexualidade é tão antiga quanto a
humanidade” e, assim sendo, abordaremos o tema a fim de verificar mais claramente a
existência de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, nas diversas sociedades
estudadas, confirmando que a homossexualidade não surge em nossa sociedade
contemporânea, assim como as noções de sexo e sexualidade do ocidente não são
essencialmente partilhadas pelo resto do mundo.
Para tal, vale ressaltar que, embora o uso de nomenclaturas diferenciadas, para referir-se à
relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, tenha sido constante de acordo com as épocas,
culturas e discursos vigentes – sodomitas, invertidos, doentes mentais ou perversos –, nos
restringiremos aos termos “homossexual” e “homossexualidade” para abordarmos o tema,
baseando nossa escolha unicamente na derivação e definição resultante da formação da
palavra3.
Logo, visando um maior aproveitamento da progressão de nosso estudo durante os diversos
momentos da história, subdividiremos este capítulo, datando os períodos a serem tratados, e
assim, enfocando pensamentos e atitudes relativas a cada época.
3
Do grego: homo, igual; designa uma prática sexual entre pessoas do mesmo sexo.
12
2.1 A HOMOSSEXUALIDADE ANTES DE FREUD
Verificamos que, antes da influência do pensamento monoteísta no mundo, as relações
sexuais não se restringiam à anatomia. O contraste entre as culturas passa a ser evidenciado a
partir da entrada do cristianismo em cena, colocando o amor, o sexo e a procriação no mesmo
espaço: o casamento.
Ao se realçar a vida em família e a procriação enquanto razão suprema para a relação sexual,
o sexo-por-prazer transforma-se em sexo-para-procriação.
2.1.1 Pré-História - 1300 a.C.
Iniciaremos nosso percurso ressaltando o aspecto mais relevante do mundo anterior ao
advento da lei mosaica4. O fato é que poucas culturas demonstravam qualquer preocupação
significativa com as relações existentes entre pessoas do mesmo sexo.
Na maioria das religiões anteriores ao aparecimento do monoteísmo, os modelos de deuses e
deusas idolatrados apresentavam uma imagem de ambivalência sexual, uma espécie de norma
teológica bissexualizada, abundante em todas as atividades e variedades sexuais, com deuses
sexualmente ativos e devotos seguidores não só da crença religiosa, mas também do seu culto
e exercício.
Willian Naphy afirma que a leitura minuciosa das leis e dos costumes do Oriente Próximo5
leva os historiadores a concluir que:
A homossexualidade não é assim condenada em lado algum como licenciosidade,
imoralidade, doença social, nem como transgressora de qualquer lei humana ou
divina. (NAPHY, 2006, p. 23)
Na Índia, por exemplo, o politeísmo sobrevive até os dias de hoje, nas várias formas de
hinduísmo6. Os deuses da Índia, assim como na Grécia e em Roma, assumiam várias
aparências e grande disposição para amar e ter relações sexuais com vários indivíduos,
independente de seu sexo.
4
As leis que Deus outorgou aos israelitas através de Moisés, começando pelos Dez Mandamentos.
Compreende a região da Ásia, próximo ao mar mediterrâneo, incluindo: Iraque, Líbano, Palestina e Síria.
6
Cultura que abrange um conjunto de tradições não somente religiosas, com várias crenças, práticas, filosofias e
denominações.
5
13
Quanto a outras culturas da proximidade, embora haja poucos dados a respeito, encontram-se
vestígios de documentos que apontam para a mesma opinião geral sobre a homossexualidade.
Assim, Naphy nos chama atenção para um problema com que se depara qualquer pessoa que
decida estudar o sexo e a sexualidade em culturas não monoteístas:
O conceito que associa relações sexuais a uma ligação emocional – o amor – é
extremamente moderno. Ou seja, estar apaixonado por alguém, mesmo que seja do
mesmo sexo, não tem necessariamente influência sobre o fato de se poder casar com
uma outra pessoa e ter com ela herdeiros legítimos. (NAPHY, 2006, p. 32)
Naphy ainda acrescenta que esta mesma interpretação da atração emocional e sexual é
igualmente evidente no Extremo Oriente7. Assim, os cônjuges podiam amar e ter relações
sexuais com quem quisessem, desde que isso não interferisse de forma grave com a
procriação, a educação e a herança dos filhos.
Na China, especificamente, a obra literária mais antiga é uma compilação de poemas chamada
Shi Jing. Estes poemas sugerem que a beleza e o erotismo não tinham gênero específico. Os
homens sentiam-se atraídos sexualmente ou afetivamente por ambos os sexos. No entanto,
estas relações masculinas não excluíam as relações com mulheres, pois por norma os homens
casavam e tinham filhos, embora o casamento, como já ressaltamos, estivesse quase sempre
desligado do sentimento, do amor e do afeto.
Em geral, a maioria das culturas dessa época parecia aceitar que os homens pudessem ter
relações sexuais uns com os outros. Contudo, a posição passiva assumida no sexo anal
tornava, em algumas culturas, o homem menos homem depois disso. Essa norma, quando
assumida, só perdia significado se o parceiro passivo fosse adolescente8, o que nos faz pensar
numa certa característica pedagógica da relação.
Colin Spencer ratifica essa idéia e cita que, em algumas tribos estudadas neste período,
encontram-se diferentes mitos e rituais com relação à sexualidade, mas a maioria delas
baseava sua ideologia na inseminação homossexual ritualizada dos meninos.
7
Extremo Oriente ou Ásia Oriental é uma sub-região da Ásia composta pelos seguintes países: China, Japão,
Coréia do Norte e do Sul e Taiwan.
8
Entre 14 e 20 anos.
14
O autor nos descreve uma das tribos estudadas que mais reverenciava o esperma. Na Sambia,
localizada no interior da Nova Guiné (Papua), pensava-se que os meninos não conseguiriam
atingir a puberdade sem a produção de sêmen e acreditava-se que seus corpos não o
produziriam naturalmente. Spencer nos dá maiores detalhes:
Os sambias acreditavam que os meninos na puberdade tinham de ser alimentados
com sêmen, de modo que, desde os sete anos, eram separados das mães e viviam na
casa dos homens, onde tinham de evitar até mesmo o olhar das mulheres. Nesse
período, eles eram submetidos a rituais de iniciação sexual. No primeiro, aprendiam
a praticar felação com os homens ou meninos mais velhos, quando engoliam o
valioso sêmen. No estágio seguinte, os meninos trocavam os papéis e ensinavam a
felação aos novos iniciados, mais jovens do que eles. Quando um menino mostrava
sinais de maturidade sexual, fazia-se uma cerimônia, após a qual ele se juntava aos
homens e se tornava um caçador. Entre os sambias havia muita discussão em torno
dos diferentes sabores e texturas de sêmen e os meninos eram reverenciados pela
quantidade e qualidade de sêmen que podiam produzir. (SPENCER, 1999, p. 23)
Contudo, antes de prosseguirmos e passarmos para o próximo período, vale ressaltar que os
historiadores, ao tentarem estudar a história da homossexualidade na África, no Hemisfério
Ocidental e nas Américas desta época, depararam-se com um grande problema: não existiam
registros escritos. Para Naphy, a questão é obviamente problemática, pois na maioria dos
casos pouco ou nada se pode dizer sobre o período anterior à chegada dos europeus, que na
pretensão de justificar a exploração e a conquista dos povos, destruíram intencionalmente
todos os registros que encontraram, para então poderem reescrever e retratar os povos da pior
forma possível, argumentando livrá-los de suas vidas perversas e orientadas por Satanás, para
que pudessem começar do zero e convertê-los ao cristianismo e à prática sociocultural
européia.
2.1.2 1300 a.C. – 100 a.C.
Seguindo e acompanhando a passagem da história e a transição deste modelo, vamos agora
nos deparar com o início da influência do pensamento monoteísta, que surge com a idéia de
colocar o amor, o sexo e a procriação no mesmo espaço: o Casamento.
O judaísmo é o principal exemplo da propagação dessa nova moral apresentada
principalmente a partir da lei mosaica. Naphy nos lembra que os regulamentos mosaicos sobre
as atividades sexuais faziam da homossexualidade algo totalmente condenável, sendo a morte
decretada como castigo.
15
Aqui, nos questionamos a respeito da base ideológica desta moral, já que Colin Spencer nos
chama atenção para o Livro dos Mortos dos egípcios, no qual se considerava errado roubar,
cobiçar, mentir, cometer adultério e matar – pelo menos a metade dos pecados proibidos pelos
Dez Mandamentos revelados a Moiséis –, o que demonstrava um povo com valores éticos9 e
sentimento moral10, embora não reprovador da homossexualidade.
Desta forma, é importante enfatizarmos que, até então, nenhuma das civilizações arcaicas
proibia a homossexualidade e que, naquele momento, os judeus apareciam sozinhos na
condenação do sexo não procriador.
A cultura indiana, desta mesma época, entendia que o prazer encontra a sua finalidade em si
mesmo. A expressão mais conhecida da sexualidade em livro é, sem dúvida, o religioso Kama
Sutra, escrito por Vatsayana11, que descreve as variadas maneiras de se obter prazer através
do sexo, de vez que assim seriam conseguidos benefícios morais. Para a filosofia indiana, o
masculino e o feminino não são distinções de essência, mas categorias criadas pela sociedade
para definições de papéis.
Assim como na Índia, o modelo cultural chinês do mesmo período não excluía as relações
homossexuais, desde que isso não impedisse o cumprimento do dever de gerar descendentes.
Segundo Naphy, a antiga literatura chinesa, até mais do que a literatura clássica grega,
realçava e enaltecia as relações homossexuais como exemplos do amor romântico e afetivo,
embora o que se destacasse, na maioria dos contos, fosse a natureza interclassista do afeto
homossexual: algumas obras realçavam o poder do amor para superar o padrão culturalmente
aceito e normal de que o homem socialmente superior devia ser ativo enquanto seu favorito,
de classe mais baixa, passivo.
Em suma, o que os historiadores conseguiram vislumbrar dessa época indica que o amor e o
sexo não se encontravam necessariamente vinculados. Entretanto, acredito na importância de
9
Aqui, a ética pode ser interpretada como um termo genérico que designa aquilo que é freqüentemente descrito
como a “ciência da moralidade”; seu significado derivado do grego quer dizer “Morada da Alma”, isto é, algo
suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja
de modo absoluto.
10
Aqui, moral pode ser entendida como um conjunto de regras de conduta consideradas como válidas; ou seja,
regras estabelecidas e aceitas pelas comunidades humanas durante determinados períodos de tempo.
11
Filósofo indiano, que viveu entre os séculos IV e VI antes de Cristo.
16
finalizarmos o estudo desta época podendo pensar a respeito da exposição feita pelo
historiador Paul Veyne em 1979 e sua retificação sobre a noção geral da homossexualidade na
antiguidade:
Eu gostaria de dizer-lhes que nessa época feliz não existiam preconceitos contra os
homossexuais e que a civilização grega era mais liberal do que a nossa. Mas, se eu
dissesse isso, mentiria: os gregos não podiam ser tolerantes nem intolerantes para
com os homossexuais, pela simples razão de que não sabiam o que era a
homossexualidade. Não classificavam as condutas sexuais segundo o sexo, mas
segundo a classe social e as categorias de atividade ou de passividade. [...] Os
gregos tinham tantos preconceitos quanto nós, mas não tinham os mesmos
preconceitos que nós. (VEYNE apud ERIBON, 1996, p. 159)
2.1.3 100 a.C. – 600 d.C.
Veremos agora que este padrão “normal”, no qual amor e amizade permaneciam intimamente
ligados e muitas vezes envolviam indivíduos do mesmo sexo, só mudou nos séculos seguintes
ao nascimento da fé cristã. A partir daí, o politeísmo transforma-se em monoteísmo e o sexopor-prazer em sexo-para-procriação.
Quase todos os gregos desta época defendiam que o amor homossexual era intrínseco ao que
eles consideravam o melhor da civilização, um elemento muito importante de toda a cultura,
que colocava a ligação emocional em primeiro plano, baseada em laços de amizade e afeto,
sem exclusão dos aspectos sexuais.
Fato interessante é a relação entre os eleatas, famosos por suas proezas atléticas, sempre
vitoriosos nos jogos olímpicos e com expressiva paixão pela beleza masculina, que deixaram
representativa lembrança visual do amor entre os homens no seio do próprio templo olímpico.
O maior escultor grego, Fídia, escolheu um eleata, Pantarkes12, como amante e chegou a
representá-lo na base de sua mais notável escultura: a de Zeus sentado no Olimpo. Isto serve
pelo menos para nos lembrar que todos os participantes dos jogos olímpicos e todos os
adoradores e visitantes do templo de Zeus se deparavam com o explícito amor entre homens.
Outro exemplo citado por Willian Naphy é o amor entre os homens de Tebas13. Os tebanos
eram célebres por suas proezas militares. Segundo a lenda grega, o Batalhão Sagrado de
12
13
Jovem vencedor de lutas nos LXXXVI jogos olímpicos em 436 a.C..
Tebas foi uma cidade-estado grega.
17
Tebas era um exército de cento e cinqüenta pares de amantes homossexuais que lutava sob um
código que sustentava o êxito do batalhão e que foi descrito por Platão14:
Se houvesse maneira de conseguir que um estado ou um exército fosse constituído
apenas por amantes e seus amados, estes seriam os melhores governantes da sua
cidade, abstendo-se de toda e qualquer desonra. [...] Pois que amante não preferiria
ser visto por toda a humanidade a ser visto pelo amado no momento em que
abandonasse o seu posto ou pousasse as suas armas. [...] Ou quem abandonaria ou
trairia o seu amado no momento de perigo? (PLATÃO apud NAPHY, 2006, p. 56)
Assim, podemos notar que os gregos não consideravam a homossexualidade como um entrave
à boa ordem militar e que a civilização grega, em geral, não só tolerava como até
institucionalizava as relações homossexuais masculinas.
Em Atenas, especificamente, a homossexualidade encontrava-se intimamente ligada à
educação dos jovens e aos deveres de cidadão. As escolas de atletismo eram os principais
lugares de encontro; contudo, neste momento, o mero sexo já não era de maneira alguma uma
atividade simpática, sendo o simples prazer visto como indigno e vil.
De fato, durante toda a história pré-cristã, o amor homossexual masculino constitui um
elemento manifesto e público da civilização grega. Registros antigos contam de peças que
tratavam do amor entre os homens. No entanto, se observarmos cuidadosamente, podemos
detectar as conseqüências vindas desse tipo de relação. Como exemplo, podemos citar a peça
de Eurípides15 sobre a violação de Crisipo por Laio:
Na mitologia grega, Laio era filho de Lábdaco, rei de Tebas. Seu pai foi morto por bacantes
vingativas pela repressão ao culto a Dionísio. Como Laio ainda era criança, a regência de
Tebas foi entregue a Lico. Quando os tiranos Anfião e Zeto mataram o regente e tomaram o
poder na cidade, o príncipe foi exilado na Frígia, na corte do rei Pélope. Lá, enamorou-se de
Crisipo, filho de Pélope e príncipe-herdeiro do trono frígio. Para viver seu amor, Laio armou
um plano: ofereceu-se para escoltar o rapaz até os jogos de Neméia, dos quais ele iria
participar como atleta. Após as competições, em vez de retornar à Frígia, Laio raptou Crisipo
e fugiu para Tebas, onde pretendia recuperar o trono de seu pai. Furioso, Pélope perseguiu-os,
mas Crisipo, temendo a humilhação e a punição do pai, além de instigado por seus meioirmãos Atreu e Tiestes, cometeu suicídio atirando-se num poço. Por ter perdido o herdeiro,
14
15
Filósofo grego (428/27 a.C. - 347 a.C. ). Discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles.
Eurípides (485-406 a.C.), poeta trágico grego.
18
Pélope culpou Laio e lançou sobre ele uma maldição: se tivesse um filho, seria morto pelo
próprio e sua descendência sofreria conseqüências trágicas. Laio continuou vivendo em
Tebas, onde conheceu a jovem Jocasta (irmã do nobre Creonte) e se casou com ela. Após a
morte dos tiranos Anfião e Zeto, Laio foi chamado pelos cidadãos a assumir o trono e, assim,
a dinastia labdácida foi reconduzida ao poder. Por causa da maldição, tentou evitar ter filhos
e, quando nasceu o primogênito, mandou abandoná-lo no Monte Citerão. Mas o bebê acabou
recolhido por um pastor e batizado como Édipo. De acordo com a mitologia, a maldição de
Pélope, conhecida como “Maldição dos Labdácidas” (a dinastia tebana iniciada com
Lábdaco), foi concretizada quando o filho de Laio, Édipo, matou o pai e desposou a própria
mãe, Jocasta.
Laio foi apenas mais um dos vários personagens bissexuais da mitologia clássica que veio a
sofrer conseqüências por apossar-se de seu desejo.
Para Naphy, embora a ambivalência para com a homossexualidade já pudesse ser
evidenciada, a pura realidade é que apenas a cristianização forçada do império pelos romanos
conseguiu eliminar a prática, colocando a homossexualidade na lista de atitudes condenadas.
Por conseqüência da reação romana desta época ao homem passivo, a passividade passou a
significar muito mais do que apenas uma questão de gosto. Um romano passivo estaria
traindo a posição e o papel de todos os romanos. Até os próprios médicos romanos
consideravam o desejo de ser penetrado como uma patologia que podia ser diagnosticada:
uma classificação da homossexualidade como doença anterior à sua suposta invenção no
século XIX.
No entanto, foi a partir da influência do cristianismo na cultura romana durante os séculos II e
III d.C. que transformações importantes nas atitudes para com a sexualidade passaram a
ocorrer. Os imperadores e dirigentes eram cada vez mais não-romanos e a difusão do sistema
filosófico pagão vinha realçar a vida em família e as moderações do sexo.
Aqui, penso ser válido apontar que, segundo Didier Eribon, a “amizade” era um tema central
nas reflexões de Michel Foucault e a atenção que este dedicava ao tema concorria para
possibilitar uma ética concreta da existência, na qual a preocupação com o outro era, antes de
tudo, um “exercício” da vida cotidiana.
19
Assim, a fim de evocar a distinção entre a “política da amizade” e a “economia dos prazeres”,
Michel Foucault declara, em entrevista publicada no The Advocate em 1984, sua posição a
respeito dessa infeliz mudança de comportamento entre os indivíduos: “Desde a antiguidade,
durante séculos, a amizade foi um modo de relações sociais muito importante, no seio do qual
os homens dispunham de uma certa liberdade, de uma espécie de escolha, e que era ao mesmo
tempo intensamente afetivo”. (FOUCAULT apud ERIBON, 1996, p. 167) Dizendo-se
persuadido com o desaparecimento da amizade como relação social, apontava para a
constituição da homossexualidade como um problema sócio-político-médico, acrescentando:
“São um só e mesmo processo”. (FOUCAULT apud ERIBON, 1996, p. 167)
Acompanhando o pensamento de Foucault, não é de se espantar que, mesmo após os
imperadores adotarem o cristianismo, suas atitudes para com as relações entre pessoas do
mesmo sexo, apesar de já não serem favoráveis, permanecessem bastante ambíguas. Uma
prova disto é que os imperadores cristãos de Roma continuaram a cobrar imposto sobre a
prostituição masculina legal até o século VI d.C.; ou seja, dois séculos depois da conversão
oficial do império.
Para demonstrar o contraste de ideologias no mundo, nesta mesma época, verificamos a Índia
e sua idéia de um terceiro sexo. Os indianos defendiam a idéia de três tipos de desejo: o
masculino, o feminino e o do terceiro sexo, sendo este último o mais forte. Qualquer pessoa,
independente de sua biologia, podia sentir qualquer um ou todos os tipos de desejo.
Segundo Naphy, em vez de tentarem encontrar uma interpretação puramente física para as
diferenças de sexo, sexualidade e gênero, os pensadores jainistas admitiram a hipótese de dois
fatores que se inter-relacionavam: o sexo biológico e a sexualidade psicológica. A sexualidade
não era então defendida em termos de órgãos genitais, mas sim por seu objeto. Desta forma, a
sexualidade masculina desejava a mulher, a sexualidade feminina desejava o homem e a
terceira natureza desejava ambos. Assim, a pessoa do terceiro gênero era considerada
hiperlibidinosa.
Em última análise, os pensadores jainistas concluíram que a sexualidade e a escolha do objeto
sexual estavam separados do sexo biológico ou dos papéis de homem e mulher na sociedade;
e que, acima de tudo, sentir-se atraído pelo mesmo sexo era uma questão completamente
20
independente da biologia, da construção social, da natureza e da cultura. A idéia central é que
nada prevê ou origina a homossexualidade; ela simplesmente existe.
A situação na China dessa época também demonstrava que, na maioria dos casos, os
imperadores chineses eram manifestamente polissexuais e, assim como a história romana e
seus militares, a história chinesa antiga está repleta de imperadores guerreiros que combatiam
ao lado dos seus favoritos.
É importante apontar que, ainda no final deste período, mesmo na Europa, a ambigüidade
entre o comportamento vigente e o processo de imposição da nova moral demonstra que o
amor, a amizade, o sexo e o prazer estavam interligados, ao passo que o casamento era, na
maioria dos casos, um negócio combinado com fim específico de procriação.
Contudo, a propagação do cristianismo e o grande impulso que este obteve com o
reconhecimento imperial começavam a exercer a sua influência. O cristianismo tinha a
aspiração de difundir suas crenças e, assim, adquirir também o peso e a força da lei. No
entanto, como veremos, essa conversão não foi nem pacífica, nem instantânea ou completa.
O fundamental é que possamos perceber que o cristianismo desenvolveu as suas idéias sobre
o sexo no contexto do mundo pagão greco-romano, partindo de uma tradição judaica que
considerava a procriação como razão suprema para o sexo.
2.1.4 600 d.C. – 1550
O aspecto que podemos destacar como mais importante na interação do cristianismo com a
cultura pagã diz respeito a este período. Foi nesta época que paganismo e cristianismo
coexistiram e que as idéias sobre o sexo, o corpo e a natureza se formaram e vieram inspirar e
moldar o pensamento cristão da Idade Média16 aos nossos dias.
Após três séculos de cristianismo oficial e forçado, a homossexualidade ainda subsistia nos
escalões sociais, políticos e religiosos mais elevados.
16
A Idade Média ou Idade Medieval foi um período intermédio numa divisão esquemática da História da Europa
em quatro “eras”, a saber: a Idade Antiga, a Idade Média, a Idade Moderna e a Idade Contemporânea.
21
Paralelamente, o Islã17 irrompeu no panorama mediterrâneo em finais do século VII e início
do século VIII, expulsando a autoridade romano-bizantina18 de grande parte do Médio Oriente
e Norte da África. Com um rígido código moral, pouco se distinguia do cristianismo ou do
judaísmo no que se refere ao sexo e às atividades sexuais em geral.
Desta
forma,
para
compreendermos
os
desenvolvimentos
relacionados
com
a
homossexualidade, devemos analisar a propagação das opiniões sobre o sexo de um modo
mais geral.
Como já vimos, o grande legado da igreja primitiva nesta matéria foi o relevo dado à
procriação como fim supremo do sexo. Assim, a homossexualidade não estava em primeiro
lugar na lista de pecados, mas junto de todos os outros tipos de atos sexuais não ligados à
procriação, desde a masturbação até o adultério.
No entanto, a situação começou efetivamente a mudar no século XII, quando a igreja católica
resolve despertar um maior e mais específico interesse pelas questões da sexualidade. Tinha
como objetos a atividade sexual dos padres e a necessidade de ampliar o celibato; quanto aos
leigos que se desviassem da norma, deveriam enfrentar a excomunhão e a exclusão social.
Philippe Ariès nos exemplifica a visão da época citando o chamado “Círculo de Dante”19, que
é o testemunho de um escritor que assimilou dos filósofos do século XII e XIII a concepção
do mundo de Deus, da natureza e do homem:
Para Dante, o círculo está repleto de violência, mas, como a força se exerce contra
três pessoas, está dividido e construído em três divisões circundantes. Pode-se fazer
violência contra Deus, a si mesmo e ao próximo:
1-Violência contra o próximo: os homicidas, ladrões e salteadores;
2-Violência contra si próprio e contra seus bens: os suicidas e os dissipadores;
3-Violência contra Deus (a mais grave): pode-se cometer violência contra a
divindade ao negá-la em seu coração e blasfemando contra ela. É o primeiro caso,
não dos incrédulos, nem dos idólatras, e sim dos blasfemadores. O segundo caso é o
de “Sodoma e Cahors”, isto é, dos sodomitas e dos usuários (os habitantes de
Cahors). Uns e outros estão colocados quase no mesmo plano – cada qual, a seu
modo, desprezou a bondade de Deus e a natureza. Esse é seu crime; entretanto o dos
sodomitas é considerado menos grave que o dos usuários. (ARIÈS; BÉJIN, 1987, p.
90)
17
É uma religião monoteísta que surgiu na Península Arábica no século VII, baseada nos ensinamentos
religiosos do profeta Muhammad (Maomé) e numa escritura sagrada, o Alcorão. A religião é conhecida ainda
por islamismo. Cerca de duzentos anos após o seu nascimento na Arábia, o Islã já se tinha difundido em todo
o Médio Oriente, no Norte da África e na Península Ibérica, bem como na direção das antigas Pérsia e Índia.
18
O Império Bizantino sucedeu ao Império Romano (cerca de 395) como o império e reinado dominante do Mar
Mediterrâneo; sob Justiniano I, considerado o último grande imperador romano.
19
Dante Degli Alighieri (1265-1321), é considerado pelos italianos seu maior poeta.
22
Cada vez mais se vislumbrava uma tendência para aglomerar indiscriminadamente práticas e
grupos como os heréticos20, os judeus e os homossexuais numa categoria distinta e
ameaçadora.
Na época que antecedeu à Peste Negra21 (1350), registrou-se um acréscimo de leis
eclesiásticas que visavam especificamente a homossexualidade, cada vez mais associada a
movimentos heréticos. Posteriormente a essa peste, os europeus tentavam explicar por que
razão Deus os castigara de modo tão horrível e a conclusão revelava que o pecado era a causa
da fome, da peste, da guerra e de quase todas as outras catástrofes.
Então, os judeus não eram apenas não cristãos; os homossexuais não eram apenas
fornicadores e os adúlteros e os hereges já não eram apenas irmãos desencaminhados. Os três
grupos tornaram-se a maior ameaça para a sociedade, a causa de todos os males e problemas.
A solução era a erradicação e, conseqüentemente, a Igreja e o Estado começaram a dar um
maior destaque à fé e à prática religiosa.
Contudo, com o despovoamento da Europa em conseqüência da peste, lançou-se para o
primeiro plano a procriação de filhos legítimos. Eram necessários futuros trabalhadores –
crianças – para revigorar a sociedade e foi desta forma que os pregadores fizeram o povo
compreender o caráter pecaminoso das atividades das prostitutas e dos homossexuais.
A integridade moral e o dever civil tornaram-se questões de maior relevância para o Estado.
Florença22, por exemplo, tomou várias medidas, incluindo, em 1432, a criação dos “Ufficiali
di Notte” – agentes da noite –, que controlaram a homossexualidade durante os setenta anos
de perseguição municipal. Entre 1432 e 1502, o Estado florentino incriminou mais de
dezessete mil homens homossexuais – duzentos e quarenta por ano, quase cinco por semana –
numa população de quarenta mil habitantes.
20
Pessoas que seguem doutrinas contrárias às impostas pela igreja.
Peste Negra é a designação por que ficou conhecida, durante a Idade Média, a peste bubônica, pandemia que
assolou a Europa durante o século XIV e dizimou em torno de 25 a 75 milhões de pessoas. A doença é
transmitida ao ser humano através das pulgas dos ratos-pretos ou outros roedores.
22
Florença, localizada na Itália, é considerada o berço do Renascimento Italiano. Tem origem num antigo
povoado etrusco. Acredita-se que essa instalação ocorreu entre 1200-700 a.C.. A cidade foi governada pela
família Médici desde o início do século XV até meados do século XVIII.
21
23
Assim, as conseqüências da peste acabaram por incutir na mentalidade popular uma ligação
entre catástrofes e determinados grupos de pessoas, não sendo de se admirar que as reações
aos atos homossexuais houvessem se tornado cada vez mais violentas, tendo eles de ser pronta
e severamente castigados, de forma exemplar e visível.
Em contrapartida, nesta mesma época, o mundo arábico-islâmico dos califas23 assistiu a um
dos maiores florescimentos da literatura, da arte e da ciência da história – uma era de requinte
e inspiração capaz de rivalizar em todos os campos com a Renascença européia24.
Interessante pensarmos que a nova moral sexual continuava em expansão e já se encontrava
no seio da cultura islâmica, apontando novamente para a ambigüidade existente no seio da
própria cultura.
Assim, a explicação fornecida por Naphy para tal discrepância aponta para o fato de que,
enquanto o cristianismo adotava a posição de que a homossexualidade era um “pecado contra
a natureza”, o pensamento islâmico exprimia algo completamente diferente e contraditório,
reconhecendo que a atração de um homem por outro homem era perfeitamente natural,
embora, ao mesmo tempo, reprovasse qualquer ato que pudesse resultar dessa mesma atração.
Para tornar o contraste ainda mais evidente, o autor acrescenta: “A atração por pessoas do
mesmo sexo [era] considerada natural; ceder a uma tentação natural [como a sodomia, o
vinho, o adultério] não [podia] fazer do indivíduo anormal – apenas pecaminoso”. (NAPHY,
2006, p.121)
Infelizmente, os historiadores não têm a mesma quantidade de informações sobre a África da
mesma época. Tal como para as épocas anteriores, os historiadores consideram quase
impossível falar do continente africano. No entanto, esta época testemunhou o aumento dos
contatos e do comércio entre o Islã, a Arábia e a costa oriental da África, que acabou por
conduzir à conversão ao islamismo de alguns povos, sobretudo na Somália e ao longo do
Quênia. Alguns africanos, embasados neste fato, afirmam hoje que foram, exclusivamente,
23
A palavra "califa" significa literalmente "Sucessor do Profeta". Esse título foi usado por Abu Bakr, o sogro de
Maomé, quando ele o sucedeu como líder da Ummah, ou comunidade do Islã, em 632.
24
O Renascimento (ou Renascença) foi um movimento cultural e simultaneamente um período da história
européia considerado como marcando o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.
24
esses contatos com os mulçumanos que levaram à introdução de práticas homossexuais nas
sociedades indígenas.
Tentando refutar esta posição, os historiadores apontam para o fato de que várias sociedades
africanas têm indivíduos ligados à magia, à religião e ao espiritual com comportamentos
transexuais. Por exemplo, entre o povo Cuanhamas de Angola, muitos chefes espirituais
vestem roupas de mulher, fazem trabalho “feminino” e até se tornam “esposas” de homens
que, certamente, teriam outras esposas do sexo biológico feminino.
Na sociedade Zulu25, também é possível observar médiuns que se vestem como mulheres. Na
verdade, o médium – pessoa que permite aos mortos transmitir conselhos aos vivos – é
considerado um ser feminino, embora possa ser na realidade um homem vestido de mulher.
Nesta construção, ele é chamado de “Chefe das Mulheres” e reconhecido como mulher
enquanto desempenha as funções de médium.
Assim, o que pretendemos destacar destes exemplos é que os seres humanos, quando querem,
são capazes de reconstruir o gênero e a biologia de um modo que, simplesmente, ignora a
realidade biológica, ela própria uma idéia subjetiva e socialmente construída.
Entretanto, não foi isso o que ocorreu quando os europeus começaram a olhar para as culturas
que haviam “descoberto” nas Américas e se depararam com idéias e práticas que
consideravam bárbaras e demoníacas: o sacrifício humano, o canibalismo ritual, a poligamia,
a homossexualidade institucionalizada e a nudez desavergonhada. Assim, baseados em suas
crenças, os cristãos europeus concluíram que aqueles novos povos eram dominados por
Satanás, sendo fundamental que essa gente se convertesse ao cristianismo, mesmo que sob
ameaça e persuasão, para que então pudesse ser separada de seu passado.
Logo a doença e a brutalidade ignorante destruíram os povos do Novo Mundo e a ideologia e
a teologia obliteraram as suas histórias.
Nesse ponto de nosso escrito, acreditamos já ter material suficiente para pensarmos as
diversas construções examinadas. Observem que dois dos deuses mais poderosos do panteão
25
Os zulus são um povo do sul da África que vive em territórios atualmente correspondentes à África do Sul,
Lesoto, Suazilândia, Zimbábue e Moçambique.
25
hindu – o deus da guerra e o deus da sabedoria – são fruto de uma procriação não
heterossexual. Enquanto isso, os deuses da Grécia e de Roma se reproduziam através de
partenogênese; ou seja, eram gerados por um único deus – como Atenas, gerada por Zeus. E,
por fim, observem também o cristianismo, que produziu Jesus por encarnação, sem qualquer
ato sexual.
Desta forma, pode-se entender que são essas imagens e histórias que acabam emprestando
para cada cultura uma certa atitude para com as relações homossexuais.
2.1.5 1550 – 1800
O século XVI ficou conhecido por ser uma “Idade de Ouro” para os moralistas interessados
em controlar os comportamentos dos vizinhos, ao mesmo tempo que desastroso para uma
estrutura eclesiástica que tentava ser unificada.
Willian Naphy nos chama atenção para o antes e o durante do período da Reforma26, quando
outro movimento se desenvolveu: o humanismo renascentista27. A importância dada à
recuperação do mundo clássico, com toda a sua sofisticação e civilização, contribuiu para
incutir no mundo, desde a Reforma até o Iluminismo28, um sentimento diferente.
A arte italiana celebrava a figura masculina de uma maneira nunca vista desde a Grécia
clássica. As grandes obras da literatura clássica foram recuperadas e traduzidas para as
línguas nativas da Europa. Os poetas celebravam o amor entre homens e as sensibilidades dos
antigos, incluindo o seu gosto pela forma masculina e por jovens adolescentes, que passaram
a penetrar na consciência cultural da Europa. Enfim, entre a utilização do sexo como arma
confessional por parte da Reforma e o interesse do humanismo pelo amor viril, as relações
entre os homens eram, cada vez mais, objeto de atenção.
26
A Reforma Protestante foi um movimento que começou no século XVI com uma série de tentativas de
reformar a Igreja Católica Romana. Esse movimento resultou na divisão da Igreja do Ocidente entre os
“católicos romanos” de um lado e os “reformados” ou “protestantes” de outro.
27
Movimento intelectual de valorização da Antiguidade Clássica.
28
O Iluminismo ou Esclarecimento foi um movimento intelectual surgido na segunda metade do século XVIII (o
chamado "século das luzes") que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo. Foi um
dos movimentos impulsionadores do capitalismo e da sociedade moderna.
26
Entretanto, vale ressaltar que o comportamento da realeza permanecia quase sempre livre de
censura e por muitas vezes ditava a moda da época, o que permitiu que outros tivessem
relações homossexuais. Exemplos interessantes deste tipo de comportamento são os casos de
Ricardo I, Coração de Leão, e de Henrique III da França, que ficaram famosos, sobretudo,
pelas suas relações com os seus “mignons” (queridos, mimosos).
Propondo fazer uma cuidadosa e breve análise deste momento nas cortes, Willian Naphy
conclui que os estereótipos atuais não se adaptam de modo nenhum aos modelos do início da
época moderna; isto é, as cortes ainda não idealizavam um estereótipo do homossexual. E
acrescenta:
Os tribunais da época não revelavam qualquer prova de que os atos sodomíticos
fossem tratados apenas como atos isolados. Na maior parte dos casos, queriam saber
se o réu tinha tido sexo com uma mulher ou gerado filhos. Também presumiam que
poderia ter existido algum contato com italianos; isto é, com a cultura renascentista
italiana que imitava o estilo clássico. Além disso, pressupunham que anteriores atos
de sodomia constituíam prova de uma preferência por esse comportamento. Por
outras palavras, os juízes pareciam acreditar de fato que algumas pessoas tinham
“apetites” que as faziam pender para um sexo ou para o outro. É, no entanto, claro
que também achavam que a cedência a esses apetites era, sobretudo, uma questão de
vontade e de hábito. (NAPHY, 2006, p. 144-145)
Assim, durante a maior parte do século XVII, registra-se uma grande ambivalência para com
os homossexuais. Parecia instalar-se uma tentativa de retorno ao período que antecede à
introdução das representações cristãs.
No entanto, já no final do século, a situação começava novamente a mudar. No início do
século XVIII, grandes metrópoles como Londres e Paris davam atenção cada vez maior à
moral pública, pois tudo passava a ser considerado como um possível movimento para
promover o “vício”.
Embora o ambiente estivesse mudando drasticamente, o comportamento homossexual não
desaparecia e estes homens passavam a ser cada vez mais considerados, pelos outros e por si
mesmos, como pertencendo a uma categoria bastante à parte.
O homossexual do início do século XIX herdou uma espécie de maldição, sendo a um só
tempo um anormal e um perverso. Philippe Ariès nos chama atenção para o fato de que a
Igreja estava pronta para reconhecer a anomalia física que fazia do homossexual um homemmulher, um homem anormal e sempre efeminado. E acrescenta:
27
Não podemos nos esquecer de que essa primeira etapa da formação de uma
homossexualidade autônoma se dá sob o signo da efeminação. [...] A medicina,
desde o final do século XVIII, tomou emprestada a concepção clerical da
homossexualidade e esta se tornou uma doença, ou melhor, uma enfermidade que
um exame clínico podia diagnosticar. [...] No interior do velho mundo marginal das
prostitutas, das mulheres fáceis, emergia uma espécie coerente, homogênea, com
suas características físicas originais. Os médicos haviam aprendido a detectar o
homossexual, o qual, entretanto, se escondia. O exame do ânus ou do pênis bastava
para desmascará-los. Apresentavam deformidades específicas, como os judeus
circuncidados. Constituíam uma espécie de etnia, ainda que suas características
específicas fossem adquiridas pelo uso, mais do que determinadas pelo nascimento.
O diagnóstico médico ficava entre duas evidências: uma física, a dos estigmas do
vício; e a outra, moral, que impelia ao vício e apresentava o perigo de poder
contaminar elementos sadios. (ARIÈS; BÉJIN, 1987, p. 81)
Como exemplo desse tipo de pensamento, Willian Naphy cita Marquês de Sade29 num
comentário que apelava para uma atitude mais tolerante e ao mesmo tempo expressava a
rejeição à acusação de “antinatural” levantada contra a homossexualidade masculina: “Não
será evidente que esta é uma classe de homens diferentes dos outros, mas também criados
pela natureza?”. (SADE apud NAPHY, 2006, p. 151)
E assim nos questionamos: será que também já não teria passado da hora de nos perguntarmos
a respeito das mulheres como uma classe que sequer foi mencionada?
Roudinesco aponta para o fato de que, a partir das representações cristãs vigentes, centradas
na potência paterna, não poderíamos esperar que houvesse um lugar para se pensar a mulher,
quanto mais um eventual desejo feminino. E acrescenta:
A ordem da procriação deve respeitar a ordem do mundo. Penetrada pelo homem
deitado sobre ela, a mulher ocupa seu verdadeiro lugar. Porém, se a posição se
inverter, a ordem do mundo se verá pervertida. Apenas a imagem do homem
cavalgando a mulher e penetrando sua carne é reputada conforme à norma.
(ROUDINESCO, 2003, p. 24)
Naphy ratifica essa idéia e nos esclarece que, embora pouco se saiba a respeito da
homossexualidade feminina antes do século XVIII, existem alguns indícios de épocas
anteriores que sugerem que no século XVII havia uma crescente preocupação com a atividade
sexual das mulheres e com o conhecimento cada vez maior que elas tinham do corpo e do
sexo através da literatura científica, clássica e, em especial, dos romances e dos escritos
eróticos.
29
Donatien Alphonse François de Sade foi um aristocrata francês e escritor marcado pela pornografia e pelo
desprezo dos valores religiosos e morais. A obra de Sade serviu de base para a Psychopathia sexualis de
Kraft-Ebing, que classificou as parafilias e incluiu nelas o sadismo.
28
Na realidade, as sociedades, juízes e indivíduos, enfrentavam uma série de dificuldades para
lidar com os atos homossexuais femininos. Primeiro porque não sabiam que crime estava
sendo praticado, já que a homossexualidade – sodomia por definição da época – implicava
penetração, e segundo porque uma sociedade dominada pelo homem não tinha como
verdadeiramente saber ou controlar o que as mulheres faziam em casa entre si ou com suas
criadas.
Segundo Naphy, isso pode explicar a razão do aumento da preocupação com a mulher em
meados do século XVIII, coincidindo com o agravamento da censura e com a expurgação de
obras clássicas, às quais elas tinham acesso. O autor nos descreve um dos primeiros códigos a
fazer menção ao ato homossexual feminino que ajuda a melhor perceber esse problema:
Em 1270, um código francês estabelecia, estranhamente, que um homem declarado
culpado de sodomia deve perder os testículos e se o praticar uma segunda vez deve
perder o membro, e se o praticar uma terceira vez, deve ser queimado. O mesmo
código dizia que uma mulher que tem relações sexuais com outra mulher perderá o
seu membro na primeira e na segunda vez, devendo ser queimada na terceira vez.
(NAPHY, 2006, p. 152)
Assim, a homossexualidade feminina já não se restringia a uma fantasia masculina; era uma
realidade que, para as mulheres que exprimiam seus desejos, resultava em punição.
À medida que as atitudes começavam a mudar e a homossexualidade feminina se tornava
cada vez mais visível, mais mulheres apareciam nos registros criminosos e eram condenadas.
É importante termos em mente que isso não sugere um aumento da atividade, mas, antes, uma
alteração na predisposição da sociedade para discutir o comportamento das mulheres em
público.
Desta forma, assiste-se no século XVIII a uma maior abertura da homossexualidade feminina
por parte das camadas superiores da sociedade. Não que fosse aceita ou aprovada, pois
suscitava comentários com tendências para censurar. Assim, em 1650, Cristina da Suécia
(1626-89), subia ao trono como “rei”, recusando-se a casar com seu primo Carlos Gustavo X
e vestindo-se quase sempre como homem. Da mesma forma, abundavam os boatos das
tendências homossexuais das rainhas Maria II (1662-94) e Ana da Inglaterra (1665-1714). Por
fim, acusações semelhantes foram feitas a Maria Antonieta da França (1755-93).
29
Se agora formos olhar para além da Europa, podemos encontrar diversos fatores que parecem
ter conduzido o mundo para o século XIX. Na maioria dos lugares, ainda subsistiam as
tradicionais atitudes ambíguas para com a homossexualidade, embora a divulgação das idéias
judaico-cristãs-islâmicas sobre o sexo-para-procriação-apenas ganhasse maior alcance e
eficácia.
Neste mesmo período, os historiadores passaram a ter mais informações sobre o resto da
África. Segundo Willian Naphy, os contatos cada vez mais freqüentes entre africanos,
portugueses, holandeses e ingleses levaram muitos europeus a escrever sobre as sociedades e
culturas que encontravam.
Contudo, convém lembrar que, embora o início da era moderna possibilite um número cada
vez maior de informações pormenorizadas sobre a sociedade africana, entre 1450 e 1870 mais
de 10 milhões desses africanos foram transportados à força para as Américas como escravos,
levando consigo as suas culturas e, com o tempo, produzindo várias misturas de culturas afroamericanas nas suas novas terras. Assim, novas fontes aparecem para preencher também o
quadro do Novo Mundo e Naphy aponta para relatos datados de 1587 que falam de bordéis
tupis com prostitutos “berdache”30, além de informações que apontam para os homens
tupinambás do Brasil casados com esposas “berdache”.
No entanto, resta-nos um último comentário sobre a América e a sexualidade. Os europeus do
início da era moderna viviam com um conjunto de pressupostos sobre a “civilização” que
influenciava profundamente a visão que tinham dos outros povos. Os indivíduos – do Novo
Mundo, África e outras regiões – que usavam pouca roupa eram vistos não só como bárbaros,
mas também como licenciosos. Os europeus acreditavam também que o contato com esses
povos – ou mesmo viver em climas tropicais “luxuriantes” – podia corromper até os mais
resistentes dos cristãos europeus. Assim, as elites britânicas tinham uma idéia das suas
colônias do Novo Mundo como depravadas e depravadoras, contestando, sobretudo os
apetites e os costumes sexuais das sociedades coloniais.
Desta forma, embora pouco se possa dizer, e ainda com poucas certezas, Naphy acredita não
restar a menor dúvida de que as afirmações feitas por alguns de que a homossexualidade é
30
Homens que se vestiam e se comportavam como mulheres.
30
totalmente estranha à África e de que era desconhecida antes dos contatos com o Islã e a
Europa são completamente falsas.
Assim, finalizando mais este período da história, apontaremos para a análise do Japão e para
as tentativas de conversão pelos missionários cristãos. Verifica-se que suas tentativas
frustradas eram justificadas pelo “vício” das relações homossexuais ali existentes. Eles
pregavam contra a homossexualidade, num esforço de convencer os seus anfitriões samurais a
repudiá-la. Contudo, depressa descobriram que o resultado era muitas vezes a sua exclusão
das terras do senhor da guerra ou simplesmente a zombaria perante as suas opiniões bizarras.
Na última década do século XVI, uma minoria significativa de japoneses, ainda que menos de
cinco por cento, já havia se convertido à fé cristã. Os governantes e seus samurais mostravamse cada vez mais preocupados com a influência das idéias “estrangeiras” sobre a sua cultura.
Assim, tais missionários acabaram por receber ordens para abandonar o país e, em 1637, uma
grande perseguição resultou na chacina da maioria dos cristãos japoneses. Depois disso, o
Japão fechou-se ao contato com o exterior até o século XIX.
2.2 A HOMOSSEXUALIDADE NA ÉPOCA DE FREUD
Com o apogeu do domínio do mundo pelo pensamento cristão europeu, ciência, religião e
política se uniram a fim de classificar a homossexualidade como perversão. Enquanto alguns
se envolviam em discussões sobre a descriminalização da homossexualidade, outros tentavam
descobrir sua causa para erradicá-la na fonte.
Embora Freud viesse apontar para a diversidade sexual do ser humano – a partir do desejo
inconsciente –, verificaremos o surgimento de um movimento, dentro da própria IPA, para a
normatização da análise e do analista, que contribuiu para o início de um discurso retroativo
no tratamento da sexualidade pela via do normal X patológico.
Tal conduta irá refletir no imaginário social, pois alguns psicanalistas preconceituosos criam
uma falsa demanda de tratamento que leva as próprias sociedades a renegarem suas histórias e
atribuírem à homossexualidade uma polêmica contra o “outro”.
31
2.2.1 1800 – 2000
O Século das Luzes, embora uma época de esperada tolerância e liberdade pessoal, foi, na
realidade, uma época de escravatura. A história da homossexualidade no Ocidente cristão se
deu, de certo modo, como uma história de enormes mudanças e contrastes, pois a maioria dos
governantes e das elites da Europa resolveu olhar para os excessos e violências dos anos
seguintes à Revolução Francesa e concluir que o liberalismo era o problema.
Assim, essa época assinala o apogeu do domínio do mundo pela Europa e a seqüela deixada
pela naturalização dos valores burgueses deste século em quase todas as culturas. Quer pelo
ministro da Administração Interna, quer pelo homem comum na rua, os homossexuais eram
odiados e atacados como nunca.
Contudo, é evidente que esta não era a representação do cenário completo, pois o século XIX
é bem conhecido por duas coisas: os valores vitorianos e a hipocrisia vitoriana.
Naphy afirma que, de fato, a prostituição proliferava na Inglaterra e incluía bordéis que
serviam a homens com preferência por outros homens, sobretudo jovens. Em contrapartida,
entre 1800 e 1834, oitenta homens foram enforcados no país por sodomia (mais de dois por
ano). Em 1828, o caos instalou-se quando a lei de Peel31 – aprovada em emenda única,
ambígua e imprecisa – veio descrever uma nova definição do crime, diminuindo o ônus da
prova e facilitando a condenação:
Qualquer homem [nota-se que o lesbianismo não é referido ou criminalizado] que,
em público ou privado, pratique, ou participe, ou favoreça ou tente favorecer a
prática por qualquer homem de qualquer ato contrário ao pudor com outro homem
será culpado de contravenção grave, e punido, à discrição do tribunal, com prisão
até dois anos, com ou sem trabalhos forçados. (NAPHY, 2006, p. 215, Grifo nosso)
Assim, o autor nos lembra que, anteriormente, a Coroa tinha de provar a penetração e a
ejaculação para que houvesse uma condenação. Em seguida passou a exigir apenas “provas
claras” da existência de penetração. Agora, bastava provar o “ato contrário ao pudor” – o que
quer que isso fosse! Conseqüentemente, entre 1836 e 1856, mais duzentos homens foram
enforcados (dez por ano).
31
Robert Peel (1788-1850), político britânico que ajudou a criar o conceito moderno da força policial do Reino
Unido.
32
Naphy então nos descreve detalhadamente o exemplo supremo e mais notório dos efeitos
dessa alteração da lei, citando o processo de Oscar Wilde (1854-1900):
Wilde era um grande dramaturgo, classicista e intelectual conhecido pela sua
agudeza de espírito. Apesar de ter casado em 1884 e gerado dois filhos, Wilde teve
também várias relações com homens durante as décadas de 80 e 90 do século XIX
até conhecer e se apaixonar, em 1892, por lorde Alfred Douglas (1870-1945) – filho
mais novo do marquês de Queensberry32. Os dois se conheceram quando Alfred
Douglas pediu a ajuda de Wilde para recuperar uma carta indiscreta que escrevera e
que estava a ser usada para chantageá-lo. Os homens iniciaram uma relação e
Douglas apresentou a Wilde o lado mais decadente do submundo homossexual de
Londres, onde ambos se dedicaram a satisfazer a sua predileção por jovens das
classes operárias. O envolvimento dos dois com um rapaz de 16 anos de idade, filho
de um coronel do exército, quase terminou num processo. O coronel acabou por
desistir após a advertência do advogado de que o filho também poderia ir para a
prisão. Este fato sublinha as conseqüências extremamente bizarras da redação
imprecisa da lei – o rapaz seria quase de certeza acusado de <<participar>> no
crime. [...] O desastre teve início em 1894 quando o pai de Alfred Douglas enviou
um bilhete ao filho e a Wilde acusando-os de manter uma “relação repugnante e
chocante”. [...] Depois de uma discussão acalorada na casa de Wilde, entre este e o
marquês, Douglas avisou ao pai que Wilde podia processá-lo por difamação. Wilde
finalmente resolveu afastar-se e acabar com uma relação que começava a tornar-se
demasiado perigosa – ele sentia-se um joguete numa guerra entre pai e filho. [...] O
marquês deixou então um cartão malicioso e insultuoso para Wilde no Clube
Albemarle, de que ambos eram sócios: “Para Oscar Wilde, que se faz passar por
Sodomita [sic]”. Finalmente Wilde cansou-se e, espicaçado por Douglas, processou
o marquês por difamação. O resultado foi desastroso para Wilde – embora Douglas
saísse incólume, protegido pelo poder e condição do pai. [...] O primeiro dos três
julgamentos terminou quando Wilde desistiu da ação por difamação ao perceber que
os agentes do marquês tinham juntado provas suficientes para derrotá-lo. Wilde
tinha visto as provas que o marquês reunira e sabia que seria citado por sodomia
com pelo menos dez jovens identificados. Logo que esta ação civil terminou, Wilde
foi detido juntamente com Alfred Taylor33, que entregara uma caixa com os nomes e
as moradas dos jovens com quem Wilde havia estado. Apesar da inclinação de
Taylor para se vestir de mulher e partilhar os aposentos com uma série de jovens, o
júri não condenou qualquer dos homens. Foi então marcado outro julgamento, que
se centraria no “atentado ao pudor” e não na acusação mais técnica de sodomia –
penetração anal. No final desse julgamento, Wilde foi declarado culpado e
condenado a dois anos de trabalhos forçados. [...] Wilde não foi poupado. Definhou
na prisão e morreu um homem destroçado pouco depois da sua libertação. As suas
peças foram retiradas dos palcos e o seu nome eliminado das conversas da sociedade
elegante. O recado naquele fim de século era claro: os homossexuais podiam ser, e
seriam, presos e destruídos em público. (NAPHY, 2006, p. 216-218, Grifo nosso)
Infelizmente, foi essa imagem negativa e de ódio pelo homossexual que as forças do
colonialismo europeu implantaram firmemente em todo o mundo.
Assim, enquanto uns se envolviam em discussões sobre a descriminalização da
homossexualidade, outros tentavam descobrir a sua causa para depois poder erradicá-la na
fonte. Como conseqüência, a homossexualidade, que na antiguidade era considerada uma
32
33
Marquês de Queensberry é um título escocês.
Filho rebelde de um abastado produtor de cacau, foi quem apresentou os rapazes com quem Wilde se
envolveu, no início de 1893.
33
forma suprema de amor, passa a ser encarada como um vício satânico pelo cristianismo para,
em seguida, ser classificada como uma perversão pela psiquiatria do século XIX.
Desta forma, caminham paralelamente as idéias eclesiásticas, preocupadas em indicar a
fronteira entre o natural – reprodução – e o antinatural, punindo aqueles que transgredissem os
mandamentos divinos, e o discurso da ciência, tratando de discernir o normal do patológico,
para então retirar qualquer possibilidade de escolha responsável por parte do sujeito.
Acompanhando o discurso da ciência, em 1860, o médico austro-húngaro Karoly Maria
Benkert (1824-1882) cria o termo homossexualidade para designar todas as formas de relação
carnal entre pessoas biologicamente pertencentes ao mesmo sexo. O mesmo define a
expressão, explicando seu pensamento: “Além do impulso sexual normal dos homens e das
mulheres, a Natureza, do seu modo soberano, dotou à nascença certos indivíduos masculinos
e femininos do impulso homossexual. [...] Esse impulso cria de antemão uma aversão direta
ao sexo oposto”. (BENKERT apud NAPHY, 2006, p. 220)
Por conseqüência, entre 1870 e 1910, o termo impôs-se progressivamente nesta acepção em
todos os países ocidentais, substituindo as antigas denominações que caracterizavam essa
forma de relacionamento conforme as épocas e as culturas. (ROUDINESCO; PLON, 1998)
De maneira geral, os cientistas do fim do século XIX passaram a se preocupar com a questão
da sexualidade como uma determinação fundamental da atividade humana e foi neste período
que então surgiu a “sexologia” ou “ciência do sexual” a partir dos trabalhos dos três pais
fundadores da doutrina: Krafft-Ebing, Albert Moll e Havelock Ellis.
Embora a base de seus estudos fosse a sexualidade, veremos que as idéias e as abordagens
utilizadas para tratar o tema apresentavam-se bastante divergentes.
Richard von Krafft-Ebing (1840-1902), psiquiatra austríaco, inicialmente expõe suas idéias
ratificando o discurso geral da época e, como os demais, considera a homossexualidade como
uma tara ou uma degeneração que caracterizava uma “espécie” sempre reprovada. Em 1886,
publicou sua conhecida obra Psychopathia Sexualis, que foi traduzida no mundo inteiro.
Nesta obra, o autor faz uma descrição, a partir de seus casos, de todas as formas possíveis de
perversão sexual, numa espécie de catálogo. (ROUDINESCO; PLON, 1998)
34
De forma contrária, Havelock Ellis (1859-1939), médico e escritor inglês, era um
homossexual revoltado com os códigos morais da Inglaterra vitoriana. Aos dezesseis anos,
decidiu dedicar sua vida à análise da sexualidade humana, sendo com esse intuito que resolve
estudar medicina. Em 1890, começou a redação de sua grande obra Estudos de psicologia
sexual, publicada em Londres um ano depois do processo de Oscar Wilde. O primeiro volume
da obra era dedicado à “inversão sexual” e, de forma controversa, foi proibido na Inglaterra
porque defendia a tolerância. Assim, Ellis viu-se obrigado a publicar os outros volumes nos
Estados Unidos. (ROUDINESCO; PLON, 1998)
Albert Moll (1862-1939), médico alemão, com um pensamento mais próximo de Ellis do que
de Krafft-Ebing, tornou-se conhecido no mundo inteiro em 1899, quando publicou seu livro
sobre hipnose. No entanto, ao contrário da maioria de seus antecessores, publica em 1897 a
obra Libido sexual, incluindo as perversões sexuais no mesmo campo da sexualidade dita
normal, marcando, assim, uma nova e importante etapa na história da sexologia.
(ROUDINESCO; PLON, 1998)
Também em 1897 surge o movimento alemão de defesa dos direitos dos homossexuais, a
primeira tentativa organizada por homossexuais para conseguir proteção legal e a
descriminalização. Denominado Comitê Científico Humanitário, tem como seu fundador o
médico psiquiatra alemão Magnus Hirschfeld (1868-1935), um dos grandes especialistas em
doenças nervosas. Seu objetivo era militar por uma melhor compreensão dos fenômenos da
sexualidade, principalmente a partir da reforma da legislação alemã que, nessa época,
considerava os homossexuais como sodomitas depravados e, logo, privados dos direitos mais
elementares. (ROUDINESCO; PLON, 1998)
De forma geral, a maioria dos sexólogos do fim do século XIX, desde Krafft-Ebing até
Magnus Hirschfeld, abordou esse tema misturando estreitamente a bissexualidade, a
homossexualidade, o hermafroditismo e os fenômenos do travestismo. Na realidade, a
sexologia, tal como a criminologia, inventou seu vocabulário, a fim de adotar uma definição
“científica” para certas práticas sexuais ditas patológicas.
35
Assim, enquanto Hirschfeld defendia sua idéia sobre o “sexo intermediário”, Ellis retratava o
“inatismo natural da homossexualidade”, Carl Heinrich Ulrichs34 popularizava o termo
“uranismo” para sustentar que a homossexualidade era uma anomalia hereditária que produzia
uma “alma de mulher num corpo de homem” e Carl Westphal35 dava seu apoio à teoria
congênita da homossexualidade, afirmando a existência de um “terceiro sexo”.
(ROUDINESCO;
PLON, 1998)
Percebemos, portanto, que a terminologia passou por múltiplas variações e a nosologia
apresentava-se bastante flexível. No entanto, a legislação foi diferente conforme os países.
Nesta época, Freud, como clínico, tratava de suas pacientes – na maioria, mulheres burguesas
vienenses, qualificadas como “doentes dos nervos” – a partir do método da hipnose,
aprendido com Charcot. Desde o início, sua preocupação era tratá-las e curá-las, aliviando
seus sofrimentos psíquicos.
Progressivamente, Freud abandona a hipnose, substituindo-a pelo método da associação livre
e enfim criando a psicanálise.
Assim, a partir dos estudos sobre a histeria, com os sintomas e queixas trazidos por suas
pacientes, Freud pôde reconhecer a existência de um núcleo sexual pelo qual construiria as
bases de sua teoria sobre a etiologia sexual das neuroses.
Suas teorias acabam, gradativamente, ganhando espaço no mundo e, em 1910, temendo o
anti-semitismo, Freud decide “desjudaizar” a psicanálise, criando com Ferenczi uma
associação internacional com o intuito de unir os grupos psicanalíticos dos diversos países,
expandindo o movimento e as inovadoras idéias a respeito da sexualidade humana.
Decerto, Freud nunca teve a intenção de restringir a psicanálise a um campo específico da
ciência; no entanto, em 1921, a International Psychoanalytical Association (IPA)36, através de
uma decisão tomada no seio de seu “Comitê Secreto”, passou a proibir definitivamente que a
profissão de psicanalista fosse exercida por homossexuais. A partir daí, a associação acabou
34
Advogado e teólogo alemão (1826-1895).
Neurologista alemão (1833-1890).
36
Até 1933 o nome da associação era escrito em alemão: Internationale Psychoanalytische Vereinigung (IPV).
35
36
transformando-se numa organização centralizada e dotada de regras de formação e
normatização da análise e dos analistas que, cada vez mais, se afastava do conjunto de
conhecimentos fundamentais de Sigmund Freud. (ROUDINESCO; PLON, 1998)
Aqui, não poderíamos deixar de questionar: a experiência de análise não seria o único
requisito para a formação de um analista e para sua prática clínica? É nosso dever ressaltar o
visível início da contribuição do discurso psicanalítico para a construção da moral sexual atual
que, ainda hoje, reflete certos grupos que, de forma retrógrada, interpretam e abordam o
sujeito e sua sexualidade pela via do normal X patológico.
Desta forma, no intuito de verificarmos o que acontece com o discurso psiquiátrico vigente,
veremos como algumas teorias sustentadas por outros cientistas, como no caso de Hirschfeld,
também acabaram sendo mal interpretadas e transferidas para o campo da cura, iniciando-se
uma série de tentativas, sem êxito, de transformação do comportamento homossexual no
mundo.
Durante a maior parte do século XX, ciência, religião e política juntaram-se para aviltar e
perseguir os homossexuais e as atividades homossexuais. As “teorias” foram várias, desde a
hipnose e a castração até às terapias aversivas e reparativas. O objetivo era alterar as
preferências e os desejos individuais para que estes obedecessem às normas culturalmente
construídas da sociedade.
O tratamento que Naphy nos revela como comumente utilizado para a disfunção sexual era a
lobotomia. Na Alemanha Ocidental, as lobotomias de homossexuais só terminaram em 1979.
Na Noruega, as vítimas de lobotomia – duas mil e quinhentas pessoas – acabaram por receber
indenizações, mas dezoito das primeiras trinta e cinco operações foram fatais. Na Suécia,
mais de três mil pessoas foram lobotomizadas e na Dinamarca o número ascendeu às três mil
e quinhentas, sendo a última lobotomia realizada em 1981. Por fim, nos Estados Unidos, o
número de indivíduos lobotomizados – homens e mulheres – por disfunções sexuais de várias
ordens ultrapassou as dezenas de milhares. (NAPHY, 2006, p. 222)
Dessa forma, não podemos passar pelo século XX sem nos determos no auge das idéias sobre
o aperfeiçoamento da raça humana, que, notoriamente, foi mais uma das receitas explosivas
criada pelos homofóbicos. Assim, analisaremos agora o que a junção desta visão da
37
homossexualidade com as idéias emergentes sobre a pureza racial e o eugenismo37 no início
deste século conseguiu como conseqüência desastrosa.
Segundo Naphy, a maioria das investigações indica que mais de vinte mil homossexuais
masculinos foram mortos em campos de concentração pelos nazistas. Como no tempo do
império e da república de Weimar38 os homossexuais haviam conseguido alguma proteção, e
assim acabaram sendo cadastrados num departamento do Estado para serem protegidos contra
a discriminação, a tarefa dos nazistas veio a se tornar muito mais fácil: Eles simplesmente
revogaram as proteções da lei e depois serviram-se dos cadastros, efetuando o maior número
possível de prisões.
Então, em 1937 o triângulo rosa foi usado pela primeira vez nos campos de concentração
nazistas, indicando quais homens haviam sido capturados por práticas homossexuais. Na
realidade, todos os capturados pelos nazistas recebiam algum emblema em suas roupas. Os
judeus, por exemplo, recebiam um emblema amarelo, enquanto as mulheres reconhecidas
como “anti-sociais” (inclusive, mas não apenas lésbicas) recebiam o triângulo preto, os
ciganos recebiam um emblema castanho, e etc.
Apenas na última metade do século XX foi possível verificar mudanças rápidas e importantes.
Em 28 de junho de 1969, detetives à paisana entram no bar “Stonewall”, no bairro Greenwich
Village, em Nova York, e expulsam cerca de duzentos fregueses que lá estavam. Ao se
retirarem do bar com os detentos, encontraram uma multidão irritada, que, indignada com a
freqüência das barbarias, resolve, unida, mostrar sua força e começa a atirar pedras e garrafas
neles. Os policiais se esconderam dentro do bar até a chegada de reforços. O tumulto envolve
a polícia e cerca de quatrocentos manifestantes. Assim, os distúrbios de “Stonewall” dão
origem ao “Gay Power” (poder gay) e marcam o início do protesto público contra a
discriminação de homossexuais. A data 28 de junho passa, desde então, a ser considerada “o
dia do orgulho gay”.
37
Termo criado por Francis Galton (1822-1911), que o definiu como o “estudo dos agentes sob o controle social
que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”.
38
No final da Primeira Guerra Mundial, instaurou-se na Alemanha a República de Weimar, tendo como sistema
de governo o modelo parlamentarista democrático.
38
Podemos verificar que “Stonewall” foi uma espécie de grito de independência, um grito de
revolta que pode ser pontuado como um dos momentos mais marcantes na história da
homossexualidade, juntamente com o processo de Oscar Wilde.
Dando seqüência às importantes mudanças, vale destacar que, em 1974, a homossexualidade
passa a ser reconhecida como uma forma de sexualidade entre outras, a ponto de não mais
figurar no catálogo de perversões do “Terceiro Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Distúrbios Mentais” (DSM III), editado em 1987 pela American Psychiatric Association
(APA). (ROUDINESCO; PLON, 1998)
Por sua vez, em 1981, o Conselho da Europa emitiu uma resolução exortando os países
membros da Comunidade Européia à descriminalização da homossexualidade e à instituição
de direitos iguais. A Carta dos Direitos Humanos da União Européia proíbe claramente a
discriminação baseada na preferência ou orientação sexual. Entretanto, Naphy ressalta que
vários grupos – sobretudo religiosos – receberam isenções semelhantes às dispensas sobre
igualdade de oportunidades que permitem que a Igreja católica continue a discriminar
mulheres em cargos de chefia e poder até os dias de hoje.
A partir dos anos 90, surge a “Teoria Queer”, um novo movimento que se apresenta como um
posicionamento político radical que se diferenciava da visão assumida na sociedade dos
Estados Unidos. Segundo Guacira Lopes Louro, a “teoria queer” veio questionar os binômios
da identidade e, principalmente, as idéias liberais referentes à autonomia do indivíduo e o
conceito de comunidade com base no princípio da uniformidade. Como movimento, desafia o
significado pejorativo da palavra “queer”, que significa estranho, esquisito, efeminado e
bicha. Assim, inverte o sentido negativo do termo e contribui para afirmar os direitos das
diferentes opções sexuais. Logo, tal teoria se propõe a romper com os espaços fixos de
identidade, apontando para uma sexualidade que não possui significados a priori. (LOURO,
2004)
Por fim, em 1991, a Organização Mundial de Saúde (OMS) também passa a desconsiderar a
homossexualidade como doença.
Contudo, embora pareça visível que vários países assistiram a grandes mudanças, não
podemos nos deixar enganar! Mesmo após a revolução sexual ocorrida durante o século XX,
ainda podemos perceber uma posição conservadora, retrógrada e desviante no tratamento do
39
tema quando nos deparamos com atitudes preconceituosas em relação aos sujeitos
homossexuais dentro do próprio campo psicanalítico.
2.2.2 2000 – Discurso atual
A partir de todas as informações até aqui recolhidas, não seria de se espantar que a base
ideológica desse tipo de crença em relação aos homossexuais se mantivesse de alguma forma
até os dias de hoje.
Vale citar que, em 2004, um artigo publicado na revista científica Endocrinology ressalta
Charles Roselli, da Universidade de Saúde e Ciências de Oregon, e sua pesquisa sobre a
homossexualidade entre ovinos. O cientista americano examinou durante cinco anos os
cérebros de ovelhas e carneiros para determinar possíveis fatores fisiológicos que expliquem
por que cerca de 8% dos machos buscam relações quase que exclusivamente homossexuais. O
estudo, declarou Roselli na época, “tem implicações mais amplas para a compreensão do
desenvolvimento e controle da motivação sexual e a seleção de parceiros em todas as espécies
de mamíferos, inclusive o homem”. Assim, a polêmica só aumentou, chegando ao auge em
dezembro de 2006, quando o jornal The Sunday Times publicou um artigo afirmando que
Roselli atuou com sucesso para curar a homossexualidade dos carneiros com tratamentos de
hormônios e que os críticos temem que a pesquisa abra caminho para gerar humanos que não
sejam homossexuais. Agora, Roselli luta contra as suspeitas de que seu trabalho pretende
modificar
o
comportamento
sexual
dos
humanos.
(CIENTISTA
ESTUDA
HOMOSSEXUALIDADE OVINA E ENFRENTA ACUSAÇÕES, 2007)
Do mesmo modo, aqui no Brasil, onde igualmente há 30 anos os psicólogos, psiquiatras e
psicanalistas não consideram a homossexualidade como doença – ou pelo menos não
deveriam considerar –, encontramos comportamentos excêntricos na atitude de alguns autointitulados “Psicólogos de Cristo”, que agem contra o código de ética profissional e fazem
uma mistura já conhecida entre ciência e religião.
40
Um exemplo notório desse tipo de pensamento foi o Projeto de Lei n° 717 de 200339 que
tramitava na Assembléia Legislativa do Rio e previa um programa de auxílio do governo a
pessoas que “voluntariamente optarem pela mudança da homossexualidade para a
heterossexualidade”.
Assim, consideramos válida de nota a excelente resposta dirigida por Antonio Quinet40 a esse
grupo de “profissionais” – que continua tratando a homossexualidade como doença,
perversão, perturbação ou desvio do desejo sexual normal – e que se encontra em texto
publicado no Jornal O Globo de 15 de novembro de 2004:
[...] Que tipo de tratamento seria proposto senão um tratamento moral, de correção
da consciência, na tentativa de amordaçar a pulsão? Eletrochoque? Internação?
Leitura da Bíblia? Lavagem cerebral? Microcirurgia? Impregnação medicamentosa?
Ou métodos comportamentais – no melhor estilo do tratamento exposto no filme
Laranja Mecânica de Kubrick – em que se mostraria uma imagem do mesmo sexo
acompanhado de punição e uma do sexo oposto junto a uma recompensa? Uma
dorzinha ali, um docinho aqui e pronto. [...] Se homem e mulher se completassem,
como a chave e a fechadura, não existiria problema sexual nenhum, pois cada um se
satisfaria plenamente com sua cada uma. E todos viveriam felizes para sempre. O
que a psicanálise nos ensina, a partir das práticas sexuais, é que não há
complementaridade sexual em nenhum sentido. [...] Ademais, todos os seres
humanos, segundo Freud, são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual
e na realidade o fizeram em seu inconsciente. “As ligações libidinais com pessoas
do mesmo sexo desempenham um papel tão importante quanto ligações idênticas
com o sexo oposto. Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual
exclusivo do homem por mulheres também constitui um problema que precisa ser
elucidado”. Pois bem, começa-se com a oferta de correção dos homossexuais
subvencionada pelo estado, parte-se à busca dos voluntários, o vizinho repara no
jeito estranho de seu filho ou nas brincadeiras de menino de sua filha e cobra dos
genitores um tratamento quando não avisa diretamente o Posto de Saúde, a
comunidade religiosa se reúne e faz uma lista dos necessitados de tratamento. Aí
começam a ser “tratados” todos os que não se enquadram na sexualidade religiosa e
vão assim entrando na Casa Verde (cf “O alienista” de Machado de Assis) os
homossexuais, adúlteros, os masturbadores, os voyeristas (de praia, de revistas, de
Internet), os exibicionistas, os sádicos, os masoquistas, os fetichistas de pé, de
cabelo, de pelos, de corpo sarado. [...] Ao ser posto em prática, esse projeto
discriminador e melancolizante só irá aumentar para muitos a dor de existir, o autoódio, a desesperança, o desamparo e “a angústia, atroz e prepotente, enterrará no
crânio uma bandeira preta”. (Goethe) Isso é maneira de promover o bem-estar?
(QUINET, 2004)
Infelizmente, ainda hoje, os homossexuais não gozam do direito de não serem discriminados e
o pior é que não são só os cidadãos religiosos encharcados pela fé judaico-cristã-islâmica que
39
Relator: Deputado Domingos Brazão – Projeto de Lei Nº 717/2003, do Deputado Edino Fonseca, que “Cria no
âmbito do Estado do Rio de Janeiro o programa de auxílio às pessoas que voluntariamente optarem pela
mudança da homossexualidade ou de sua orientação sexual da homossexualidade para heterossexualidade e
dá outras providências". (edital da 26ª reunião ordinária da Comissão de Constituição e Justiça realizada em
02/12/2003).
40
Psicanalista, formado em medicina psiquiátrica pela UFRJ. Foi professor assistente do Departamento de
Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), onde posteriormente defendeu sua tese de doutorado.
41
apresentam movimentos retrógrados e contraditórios, nos quais a homossexualidade vem
representar o significante maior do princípio da exclusão pelo fato de andar na mão contrária
da instituição do casamento e da filiação. Vemos, claramente, o discurso da ciência
enveredando por este mesmo princípio etnocêntrico, no qual a anatomia traça a diferença e o
destino do sujeito.
O que será que ocorre nos dias atuais para que os homossexuais ainda sejam classificados por
adjetivos do passado como sodomitas, invertidos ou perversos? Por que será que ainda
encontramos como ponto fundamental o discurso da diferença justificando a discrepância dos
discursos atuais? Talvez, seguindo o pensamento de Jacques Derrida, consigamos elucidar tais
questões.
Em diálogo estabelecido entre o filósofo e a psicanalista Elizabeth Roudinesco no livro De
que amanhã_, verificamos uma saída possível para o sujeito e sua integração tal como é e não
tal como os outros desejariam que fosse.
Esta saída surge da preocupação mencionada por Derrida quanto ao conceito de diferença,
considerado a partir da simples oposição. Assim, o autor introduz uma nova forma de
pensamento que toma como base a “différance” (com “a”): “O que a différance tem de
universalizável em vista das diferenças é que ela permite pensar o processo de diferenciação
para além de qualquer espécie de limites”. (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 33) E
acrescenta:
A différance não é uma distinção, uma essência ou uma oposição, mas um
movimento de espaçamento. [...] Daí uma certa inscrição do mesmo, que não é o
idêntico, como différance. [...] Eu insisto, a différance não é uma oposição,
tampouco uma oposição dialética: é uma reafirmação do mesmo, uma economia do
mesmo em sua relação com o outro, sem que seja necessário, para que ela exista,
congelá-la, ou fixá-la numa distinção ou num sistema de oposições duais.
(DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 34)
A relevância se dá ao pensarmos a noção de “différance” enquanto existente em si mesma, em
relação à singularidade do sujeito, abolindo o imaginário da minoria que reflete a diferença
em relação a alguma coisa, a algum grupo; pois, nessa perspectiva, acreditamos que a questão
poderia se dar por encerrada. Contudo, o que ainda presenciamos foge de qualquer
possibilidade de questionamento sobre a fixação e a repetição dos conceitos impostos ao
longo dos tempos.
42
Um recente exemplo é a história (baseada em fato real) do casal nova-iorquino de pingüins
gays, retratada em 2006, num livro infantil disponível na biblioteca da pequena escola
“Shiloh”, de Illinois, que causou polêmica nos Estados Unidos. Revoltados, os pais dos alunos
estavam preocupados com a influência do casal de pingüins machos que criava um filhote
vindo de um ovo fertilizado como se fosse seu. Queixando-se do tom homossexual contido no
livro, alguns pais alegaram que suas crianças não estavam prontas para lidar com tais tópicos
e pediam que os livros fossem restringidos à seção de adultos. (PINGÜINS GAYS
REVOLTAM PAIS DE ILLINOIS, 2006) Ironicamente, em 1962, Illinois foi o primeiro
estado dos EUA a se “conscientizar” e remover a proibição de práticas homossexuais de seu
código criminal.
Enquanto isso, na Inglaterra, inaugura-se um projeto piloto que inclui na agenda escolar temas
homossexuais com histórias como King & King, sobre um príncipe homossexual, e a própria
And tango makes three, sobre os dois pingüins machos que já citamos. O moderno método de
ensino está em curso em várias escolas do país e, a partir dos quatro anos de idade, as crianças
começam a aprender sobre relacionamentos entre o mesmo sexo. O programa tem o apoio do
Ministério da Educação e a posição do governo britânico é de prevenção, para que nenhuma
criança sofra intimidação por ter pais homossexuais. (PINGÜINS GAYS REVOLTAM PAIS
DE ILLINOIS, 2006)
Em contrapartida, vemos o governo polonês tentando fazer do tema um tabu. A disputa
ganhou as ruas de Varsóvia em 18 de março de 2007 com o grito de professores em defesa do
diálogo homossexual nas escolas e em protesto contra a política escolar atual. Estes exigiram
a renúncia do Ministro da Educação, Romam Giertych, líder do partido homofóbico de
direita, Liga Ultra-Católica das famílias polonesas. Acusado de incentivar a intolerância
sexual, Giertych prepara um projeto de lei para banir o que chama de “propaganda
homossexual nas escolas” e ganhar poderes para demitir professores gays ou outras pessoas
que “promovam” a homossexualidade em qualquer instituição acadêmica. Uma vez que a
maioria das autoridades é adepta de políticas discriminatórias, a homofobia passa a ser fato
comum nesse país profundamente católico e berço do ex-papa João Paulo II, onde a voz do
movimento homossexual acaba por ficar sufocada. (POLÔNIA REVIVE UM PASSADO
INGLÊS, 2007)
43
Outro exemplo atual e bem claro desse tipo de pensamento retrógrado foi a tentativa dos
cristãos de Tobago de boicotar a apresentação do cantor Elton John no “Playmouth Jazz
Festival”, no fim de abril de 2007. A alegação de alguns líderes cristãos da ilha caribenha foi:
“Sentimos que isso pode ter um impacto social negativo. Há alguns que podem não ter certeza
da própria homossexualidade e alguém tem que ter cuidado sobre como isso pode criar
impressões em mentes impressionadas”; ou seja, por ser Elton John homossexual, poderia
influenciar diretamente os jovens em suas futuras escolhas sexuais. (CRISTÃOS DE
TOBAGO PEDEM BOICOTE A ELTON JOHN POR ELE SER GAY, 2007)
Assim, Roudinesco nos aponta o que acredita ser o verdadeiro motivo que leva o desejo de
normatividade das antigas minorias a semear, ainda hoje, problemas que imaginariamente
parecem ameaçar de decomposição a sociedade que nega a diferença entre os sexos. A autora
esclarece:
Excluídos da família, os homossexuais de outrora eram ao menos reconhecíveis,
identificáveis, marcados e estigmatizados. Integrados, tornam-se simplesmente mais
perigosos, uma vez que menos visíveis. [...] Sem ordem paterna, sem lei simbólica, a
família mutilada seria, dizem, pervertida em sua própria função de célula de base da
sociedade. [...] Monoparental, homoparental, recomposta, desconstruída, clonada,
gerada artificialmente, atacada do interior por pretensos negadores da diferença
entre os sexos, ela não seria mais capaz de transmitir seus próprios valores.
(ROUDINESCO, 2003, p. 10)
A realidade, porém, é que este preconceito tem levado a que muitas sociedades reneguem a
sua história, inventando, por exemplo, um Alexandre Magno que só teve relações com
mulheres, ou governantes indianos, imperadores chineses, feiticeiros norte-americanos e
africanos que, de igual modo, foram exclusivamente heterossexuais.
Se fizermos um retrocesso e acompanharmos o pensamento de Philippe Ariès a respeito da
variação da noção de homossexualidade, concordaremos que a hipótese da antiguidade sem a
existência de homossexuais é no mínimo ridícula. Embora tentem sugerir a idéia de que a
homossexualidade é uma invenção, o autor nos recorda do necessário discernimento na
abordagem do tema – impregnado por uma moral sexual rigorosa e implantada – ao citar Paul
Veyne e sua ressalva quanto à distinção existente entre a noção atual de homossexualidade e a
noção da antiguidade: “A antiguidade clássica não apresentava uma homossexualidade oposta
a uma heterossexualidade, mas uma bissexualidade cujas manifestações pareciam
comandadas pelo acaso dos encontros e não por determinismos biológicos”. (VEYNE apud
ARIÈS, 1987, p. 80)
44
Logo, o que até agora podemos concluir é que a tendência da sociedade atual acaba nos
levando a pensar a história da homossexualidade como parte cada vez mais integrante de
polêmicas contra o “outro”.
Desta forma, seria interessante nos questionarmos: o que Freud, após 100 anos, pensaria a
respeito da relação existente entre nossa sociedade atual e a homossexualidade? Ou pior, o
que pensaria a respeito da discrepância existente nos “discursos psicanalíticos”?
Verificamos que, por um lado, a psicanálise fala da homossexualidade pelo viés do sujeito do
inconsciente, que é responsável por suas escolhas e decisões. Por outro, vemos uma
(re)interpretação da homossexualidade na qual a pulsão pode reconhecer a anatomia e assim
facilitar o intuito de cura a partir da mudança de um objeto do mesmo sexo para um do sexo
oposto.
Roudinesco, ratificando nossa idéia, aponta claramente para a existência de duas posições
atuais a respeito da homossexualidade: “Por um lado, os dogmáticos permanecem ligados a
um modelo congelado e, por outro, os modernos se apresentam sensíveis às transformações
induzidas pelos próprios sujeitos”. (ROUDINESCO, 2003, p.51) Assim, situando-se ao lado
dos modernos, a autora enfatiza:
A partir do momento em que uma nova realidade toma corpo, em que ela existe, a
psicanálise – como, aliás, qualquer outra disciplina – deve pensá-la, interpretá-la e
levá-la em conta, e não condená-la, pois isso significa excluí-la ou negá-la, e,
portanto, a transformar uma disciplina em código de deontologia e a fazer de seus
praticantes censores ou promotores. (ROUDINESCO, 2003, p. 51)
Assim, o que seria primeiramente pensado como um retorno às idéias e aos ideais já
superados da medicina psiquiátrica do século XIX parece apresentar-se como um retrato do
pensamento preconceituoso que ainda emerge como questão atual, reforçado não só pela
Igreja, mas principalmente por psicanalistas congelados, que criam uma falsa demanda de
tratamento.
Por fim, seguindo a preocupação deixada por Freud ao tentar traçar sua teoria sob uma
perspectiva ética, derrubando barreiras e abrindo caminhos para a psicanálise tratar o sujeito e
seu sofrimento, acreditamos na necessidade existente, ainda nos dias de hoje, de esclarecer
questões da clínica psicanalítica relacionadas à homossexualidade e, assim, instrumentar e
auxiliar os profissionais da área a sustentar o sujeito do inconsciente.
45
3 A HOMOSSEXUALIDADE NA OBRA FREUDIANA
A partir da inconsistência notada no campo da ciência ao tratar da homossexualidade, vista
sob uma ótica estática, situada entre o normal e o patológico, sem considerar o sujeito e seu
inconsciente, acreditamos na necessidade de rever o conceito, através da diversidade sexual
apontada por Freud na construção da psicanálise.
Freud, para além da visão de sua época, preocupava-se com o sujeito e seu sofrimento,
tentando apagar as marcas deixadas pelas ciências médicas na sociedade. Contudo, falar de
homossexualidade em sua obra apresenta-se como tarefa árdua.
Partindo do estudo do desenvolvimento psicossexual do sujeito, Freud traça um percurso a
respeito da homossexualidade como questão a esclarecer, utilizando como respaldo sua teoria
da bissexualidade, da pulsão e do desejo inconsciente.
Desta forma, pretendemos analisar cuidadosamente o percurso freudiano, a fim de elucidar o
tema da homossexualidade, abrindo espaço para novas reflexões a respeito da prática clínica,
marcando o abandono da anatomia e inserindo a essencial problematização da diferença
sexual e de sua relação com o inconsciente.
3.1 A TEORIA DA BISSEXUALIDADE
A bissexualidade é um termo proveniente do darwinismo e da embriologia. Antes disso,
qualquer menção a respeito do tema estava relacionado ao curioso mito relativo à origem do
homem41 descrito por Aristófanes no Banquete de Platão, no qual o ser humano, dividido em
duas metades, dirigia sua vida para o ilusório encontro de sua “alma gêmea”.
O interessante deste mito é que o ser andrógino (homem/mulher) era o único que designava o
sexo composto ou heterossexual, como nos referimos atualmente.
41
A natureza humana era dotada de órgãos duplos e dividida em três espécies: masculino, feminino e andrógino
(metade feminino, metade masculino). Devido aos corpos robustos e ao excesso de coragem, que inspiroulhes audácia, os humanos resolveram subir ao céu e atacar os deuses. Como castigo, foram divididos e cada
uma das metades pôs-se a procurar a outra. Assim, a espécie masculina procurava seu outro homem; a espécie
feminina procurava sua outra mulher e a espécie andrógina procurava seu sexo oposto.
46
Em 1871, Charles Darwin42 (1809-1882) define a bissexualidade segundo as perspectivas da
ciência biológica da época e publica A descendência do homem, disseminando um novo olhar
para o tema. Foi a partir desta publicação que Darwin adotou uma terminologia adequada para
o estudo da sexualidade humana e introduziu a idéia de que a bissexualidade não era apenas
um mito, mas uma realidade da natureza. Assim, dissemina por completo seu conceito de
seleção sexual, explicando a evolução da cultura humana e as diferenças entre os sexos.
(ROUDINESCO; PLON, 1998)
Conseqüentemente, no fim do século XIX, os sexólogos passaram a adotar o termo e a
designá-lo como uma predisposição biológica dotada de componentes masculinos e
femininos. Freud, por sua vez, influenciado pelos ensinamentos do médico e zoólogo alemão,
Carl Clauss (1835-1899) e de seu amigo, também médico, Wilhelm Fliess (1858-1928), passa
a adotar a tese da bissexualidade.
Entre 1885 e 1895, Freud ocupa-se com a construção de sua teoria sobre a etiologia sexual das
neuroses e, em 1896, faz da bissexualidade um conceito motor do recalque. Assim, seu
interesse acaba voltando-se para a maneira como cada um recalca ou não os caracteres do
outro sexo.
Neste momento, Freud, ainda bastante influenciado pelas idéias de periodicidade e
bissexualidade biológica, defendidas por Fliess, acreditava que o recalque partia da
feminilidade e se voltava contra a virilidade:
O que falta explicar é por que as experiências sexuais, que, na época em que eram
atuais, geraram prazer, passam, quando são lembradas numa fase diferente, a gerar
desprazer em algumas pessoas e, em outras, a persistir como compulsão. No
primeiro caso, é evidente que elas devem estar liberando, numa época posterior, um
desprazer que não foi liberado de início. Também precisamos delinear a derivação
das diferentes épocas, psicológicas e sexuais. Você me explicou estas últimas como
sendo múltiplos especiais do ciclo feminino de 28 dias. A fim de explicar por que o
resultado [da experiência sexual prematura] às vezes é a perversão e, às vezes, a
neurose, valho-me da bissexualidade de todos os seres humanos. Num ser
puramente masculino, haveria um excesso de liberação masculina também nas duas
barreiras sexuais – isto é, seria gerado prazer e, em conseqüência, perversão; nos
seres exclusivamente femininos haveria, nessas ocasiões, um excesso de substâncias
causadoras de desprazer. Nas primeiras fases, as liberações seriam paralelas, isto é,
produziriam um excesso normal de prazer. Isso explicaria a preferência das pessoas
verdadeiramente femininas pelas neuroses de defesa. Desse modo, a natureza
intelectual dos seres humanos masculinos estaria confirmada com base na teoria que
você propôs. (FREUD, 1896, v.1, p. 286)
42
Naturalista britânico que alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da evolução e
propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural e sexual (o indivíduo é
determinado pelo ambiente e pela hereditariedade).
47
E o autor acrescenta:
Cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de
perversão por parte do sedutor, e mais e mais me parece que a hereditariedade é a
sedução pelo pai. Assim, surge uma alternância entre as gerações:
1ª geração: Perversão.
2ª geração: Histeria e conseqüente esterilidade. Por vezes, há uma metamorfose
dentro de um mesmo indivíduo: pervertido durante a idade do vigor e, depois,
passado um período de angústia, histérico. Por conseguinte, histeria não é
sexualidade repudiada, mas, antes, perversão repudiada. (FREUD, 1896, v.1, p.
287)
Embora possamos testemunhar que o tema da bissexualidade tenha atravessado a maior parte
dos diálogos entre Freud e Fliess, foi justamente a divergência vinda a partir da abordagem
deste tema que acabou acarretando o rompimento entre os dois. O ponto crucial se deu
quando Freud abandonou sua teoria da sedução – igualmente descrita na carta 52 – e retomou
o conceito de bissexualidade para designar uma disposição psíquica inconsciente, própria de
toda subjetividade humana.
Amparado pela formulação edipiana e enfatizando o conceito de fantasia, passa então a
rejeitar todas as teses sexológicas, quando em 1905, no texto Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, refere-se à bissexualidade como fundamento da homossexualidade. Freud é
enfático:
A doutrina da bissexualidade foi exprimida em sua mais crua forma por um portavoz dos invertidos masculinos: “um cérebro feminino num corpo masculino”.
Entretanto, ignoramos quais seriam as características de um “cérebro feminino”. A
substituição do problema psicológico pelo anatômico é tão inútil quanto
injustificada. (FREUD, 1905, v. 7, p. 135)
Assim, o autor define a homossexualidade como uma escolha sexual derivada da existência,
em todo sujeito, de uma bissexualidade originária, universal da sexualidade humana,
contradizendo definitivamente qualquer concepção do sexo biológico como prevalente aos
processos psíquicos ligados ao recalque. Ou seja, a relação estabelecida por Freud entre o
recalque e a predisposição bissexual é, neste momento, a base para a explicação da
homossexualidade.
Contudo, o conceito de pulsão, introduzido pela primeira vez nos Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, foi o grande possibilitador da sustentação de Freud a respeito da
bissexualidade como disposição psicológica responsável pelas diferentes escolhas de objeto.
O autor esclarece:
48
Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação
entre a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados
anormais nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas
uma solda, que corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do
quadro normal, em que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos
instruídos a afrouxar o vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o
objeto. É provável que, de início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e
tampouco deve ela sua origem aos encantos deste. (FREUD, 1905, v. 7, p. 140)
Desta forma, Freud afirma que, desde que se familiarizou com a noção de bissexualidade,
passou a considerá-la como o fator decisivo: sem levá-la em conta, dificilmente se poderia
chegar a uma compreensão das manifestações sexuais de forma efetiva no homem e na
mulher, já que será a partir desta base conceitual que o autor fornecerá uma explicação para o
comparecimento da corrente homossexual latente ou manifesta nos neuróticos.
Em 1908, no texto Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, Freud decide
fazer um novo exame da relação entre fantasias e sintomas. Embora tenha percebido, desde
1897, a importância das fantasias como base dos sintomas histéricos, foi neste texto que
decidiu nos indicar a necessidade de estarmos preparados para encontrar no tratamento
psicanalítico sintomas com significado bissexual. Freud assinala:
A natureza bissexual dos sintomas histéricos, que pode ser demonstrada em
numerosos casos, constitui uma interessante confirmação da minha concepção de
que, na análise dos psiconeuróticos, se evidencia de modo especialmente claro a
pressuposta exigência de uma disposição bissexual inata no homem. Uma situação
exatamente análoga ocorre no mesmo campo quando uma pessoa que se masturba
tenta em suas fantasias conscientes ter tanto os sentimentos do homem quanto os da
mulher na situação por ela concebida. Encontraremos outros correlatos em certos
ataques histéricos nos quais o paciente desempenha simultaneamente ambos os
papéis na fantasia sexual subjacente. Em um caso que observei, por exemplo, a
paciente pressionava o vestido contra o corpo com uma das mãos (como mulher),
enquanto tentava arrancá-lo com a outra (como homem). Essa simultaneidade de
atos contraditórios serve, em grande parte, para obscurecer a situação, que por outro
lado é tão plasticamente retratada no ataque, estando assim em condições de ocultar
a fantasia inconsciente que está em ação. (FREUD, 1908, v. 9, p. 154)
Assim, Freud mostra a profunda concatenação entre o sintoma e a fantasia, apontando para o
fato de que o sintoma é o derivado último de uma longa cadeia que se produz de uma fantasia
inconsciente, chamando atenção para o fato de que a sexualidade, sob a via da bissexualidade,
revela nas fantasias histéricas duas faces que assinalam a onipresença do componente
bissexual na neurose em geral.
Em seqüência, um ano depois, na análise do Homem dos ratos, Freud descobre um elo entre a
bissexualidade e a ambivalência afetiva, que até então lhe parecia obscuro. Logo na primeira
49
sessão, através de um ato falho do paciente, Freud detecta uma moção homossexual
predominante que, ao longo do tratamento, aparece como uma demanda amorosa que compete
com o desprezo ao pai.
Algum tempo depois, o autor consegue inserir a ambivalência afetiva originária, descoberta a
partir do Homem dos ratos (1909), no mito da formação do complexo nuclear do sujeito,
descrito no texto Totem e tabu (1913).
De forma simplificada, verificamos neste mito que a comunidade de irmãos atravessa dois
estágios distintos: no primeiro, os irmãos são excluídos pelo pai; as mulheres e os bens lhes
são negados. O assassinato do pai abre a possibilidade da divisão e distribuição dos bens, das
mulheres e do poder. Passagem que pressupõe a elaboração da ambivalência afetiva, ou seja,
uma transformação econômica da bissexualidade originária. No primeiro estágio, a frustração
imposta pelo pai e a dependência de seus favores os colocam, em relação a ele, numa situação
polarizada – bissexual – extremada entre amor e ódio. Esta é compensada pelas relações de
troca-troca entre os irmãos; a bissexualidade é atuada como nos jogos perversos polimorfos –
de troca-troca – da infância ou nos estados extremos de confinamento na prisão. Já o vazio
instaurado no segundo período, após o assassinato, é atravessado no luto, na culpa e nas
saudades do pai morto. O contrato social na nova sociedade requer a sublimação, permitindo
aos sujeitos conformarem-se aos ideais legados pelo pai morto. Porém o ponto principal é que
a atuação homossexual do primeiro estágio, sob a cobertura de certa proteção da mãe, sofre
uma grande concessão narcísica. A moção homossexual transforma-se em uma identificação
horizontal entre os irmãos, em torno do legado e lei paternos. Nasce, no lugar da
bissexualidade, o sentimento social que, segundo Freud, é a conseqüência, pela identificação,
da definição e ingresso do sujeito em uma nova ordem, como membro da série constituída sob
a égide da lei e legado paternos. (DELOUYA, 2003)
A partir de então, Freud dá maior ênfase ao fato da ocorrência universal da bissexualidade e
introduz no texto História de uma neurose infantil (1918 [1914]) uma ligeira alteração na
teoria do recalque:
Pareceria palpavelmente óbvio que a repressão e a formação da neurose haviam-se
originado do conflito entre as tendências masculina e feminina, ou seja, da
bissexualidade. Essa visão da situação, no entanto, é incompleta. [...] Na verdade, os
conflitos entre a sexualidade e as tendências morais do ego são muito mais comuns
do que aqueles que se situam dentro da esfera da sexualidade; mas, no presente caso,
falta um conflito moral dessa natureza. Insistir que a bissexualidade é a força
50
motivadora que leva à repressão é assumir uma visão por demais estreita; ao passo
que se afirmamos o mesmo do conflito entre o ego e as tendências sexuais (isto é, a
libido) estaremos cobrindo todos os casos possíveis. (FREUD, 1918 [1914], v. 17, p.
116)
Ratificando tal idéia, em 1920, Freud refaz o alerta, já dado anteriormente, quanto à
concepção demasiado simples da natureza e da gênese da homossexualidade utilizada pelas
demais ciências, afirmando, em A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher,
que devemos manter em mente a bissexualidade universal dos seres humanos a partir da ótica
psicanalítica:
A psicanálise possui uma base comum com a biologia, ao pressupor uma
bissexualidade original nos seres humanos (tal como nos animais). Mas a psicanálise
não pode elucidar a natureza intrínseca daquilo que, na fraseologia convencional ou
biológica, é denominado de “masculino” e “feminino”: ela simplesmente toma os
dois conceitos e faz deles a base de seu trabalho. [...] Seria prematuro, ou exagero
prejudicial, se, nessa fase, cedêssemos a esperanças de uma “terapia” da inversão
que pudesse ser geralmente aplicada. (FREUD, 1920, v. 18, p. 183)
A nosso ver, após a reformulação do dualismo pulsional, o trabalho que melhor irá elucidar as
lacunas referentes ao terreno da bissexualidade, até então exposta, será O ego e o id, escrito
em 1923.
Neste texto, Freud aponta para o problema existente a partir de dois fatores: o caráter
triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo. A tese da
libido única, de essência masculina, acaba criando uma dissimetria entre a organização
edipiana feminina e a masculina.
Segundo suas observações, o complexo está ligado à fase fálica da sexualidade infantil,
aparecendo quando o menino, apaixonado pela mãe, deseja possuí-la, colocando-se como
rival do pai, antes admirado. Contudo, a grande questão se coloca quando Freud pontua que o
menino adota, igualmente, a posição inversa; ou seja, uma ternura para com o pai e uma
hostilidade para com a mãe, apontando para um Édipo “invertido” que ocorre ao mesmo
tempo que o Édipo.
Assim, essas duas posições, classificadas como positiva e negativa perante cada genitor,
constituem agora o que Freud irá chamar de Édipo completo, no qual resumidamente
podemos dizer que o menino sai do Édipo através da angústia de castração, reconhecendo na
figura paterna um obstáculo para a realização de seu desejo, abandonando o investimento
51
feito na mãe e passando para uma identificação com o pai; enquanto a menina ingressa nele
pela descoberta da castração e pela inveja do pênis.
Desta forma, o complexo de Édipo se manifesta na menina através do desejo de ter um filho
do pai, fazendo com que, ao contrário do menino, ela se desligue da mãe e tome o pai como
objeto de amor.
De fato, já é sabido que, segundo o modelo anaclítico, a mãe é tomada como o primeiro
objeto de ambos; contudo, reconhecemos agora que não há qualquer paralelo entre o Édipo
feminino e o Édipo masculino. Freud explica:
Pareceria, portanto, que em ambos os sexos a força relativa das disposições sexuais
masculina e feminina é o que determina se o desfecho da situação edipiana será uma
identificação com o pai ou com a mãe. Esta é uma das maneiras pelas quais a
bissexualidade é responsável pelas vicissitudes subseqüentes do complexo de Édipo.
[...] Um estudo mais aprofundado geralmente revela o complexo de Édipo mais
completo, o qual é dúplice, positivo e negativo, e devido à bissexualidade
originalmente presente na criança. [...] É este elemento complicador introduzido
pela bissexualidade que torna tão difícil obter uma visão clara dos fatos em
vinculação com as primitivas escolhas de objeto e identificações, e ainda mais difícil
descrevê-las inteligivelmente. Pode mesmo acontecer que a ambivalência
demonstrada nas relações com os pais deva ser atribuída inteiramente à
bissexualidade e que ela não se desenvolva, como representei acima, a partir da
identificação em conseqüência da rivalidade. Em minha opinião, é aconselhável, em
geral, e muito especialmente no que concerne aos neuróticos, presumir a existência
do complexo de Édipo completo. (FREUD, 1923, v. 19, p. 45-46)
Portanto, o Édipo é programado hereditariamente e então vinculado pelo inconsciente dos pais
que permeia o ambiente e a cultura; ou seja, o Édipo é de ordem simbólica e, assim, instaura o
valor simbólico do falo: os investimentos e identificações com os pais se agrupam em um
conflito que faz com que o pênis adquira um valor narcísico e que as diferenças sexuais se
ressignifiquem numa nova configuração psíquica, ditada pelas diferenças anatômicas, no auge
do complexo de castração.
Em suma, lidar com o Édipo é processar e perlaborar a bissexualidade originária, crucial e
determinante para o destino do Édipo enquanto dissolução e formação de seu herdeiro: o
superego.
Aqui, acreditamos na importância de pensarmos a respeito do interdito no complexo de
Édipo: as questões “Quem sou eu?” e “O que me falta?” não estariam referidas à interpretação
que o bebê dá – a partir da fantasia – ao “Che vuoi?”. Ou seja, a relação incestuosa não seria
52
com o Outro incorporado na mãe? Logo, o interdito do pai não estaria direcionado justamente
para esse capricho materno, independente da biologia do filho?
Pensamos que sim, pois a nosso ver o Nome-do-Pai é o mediatizador e relativizador desse
discurso, possibilitando à criança uma escolha inconsciente a partir do desejo do Outro.
Portanto, quem sou eu no desejo do Outro é independente do pênis ou da vagina e o que está
em xeque é o desejo de fusão, o desejo de “um”.
Contudo, deixemos por um instante a questão em suspenso para retornarmos ao objetivo
proposto de acompanhar a seqüência do pensamento freudiano a respeito da bissexualidade.
Será em Dostoievski e o parricídio (1928 [1927]) que Freud nos demonstrará, de maneira
simples e completa, o que até então vinha descrevendo sobre o vínculo existente entre
complexo de Édipo, complexo de castração e recalque:
Acreditamos que o que aqui descrevemos são processos normais, o destino normal
do chamado “complexo de Édipo”; não obstante, exige uma importante
amplificação. Uma outra complicação surge quando o fator constitucional que
denominamos de bissexualidade se acha, comparativamente, fortemente
desenvolvido numa criança, porque então, sob a ameaça à masculinidade do menino,
por meio da castração, sua inclinação é fortalecida a divergir no sentido da
feminilidade, a colocar-se no lugar da mãe e a assumir o papel desta como objeto do
amor do pai. Mas o temor à castração torna essa solução também impossível. O
menino entende que também deve submeter-se à castração, se deseja ser amado pelo
pai como se fosse uma mulher. Dessa maneira, ambos os impulsos, o ódio pelo pai e
o amor pelo pai, experimentam repressão. (FREUD, 1928 [1927], v. 21 p. 189)
E na menina? Será em Sexualidade feminina (1931) que Freud irá nos acrescentar, de forma
mais clara e conclusiva, seu pensamento a respeito da influência da bissexualidade originária
nas mulheres:
Antes de tudo, não pode haver dúvida de que a bissexualidade, presente, conforme
acreditamos, na disposição inata dos seres humanos, vem para o primeiro plano
muito mais claramente nas mulheres do que nos homens. Um homem, afinal de
contas, possui apenas uma zona sexual principal, um só órgão sexual, ao passo que a
mulher tem duas: a vagina, ou seja, o órgão genital propriamente dito, e o clitóris,
análogo ao órgão masculino. Acreditamos que estamos justificados em supor que,
por muitos anos, a vagina é virtualmente inexistente e, possivelmente, não produz
sensações até a puberdade. [...] Nas mulheres, portanto, as principais ocorrências
genitais da infância devem ocorrer em relação ao clitóris. Sua vida sexual é
regularmente dividida em duas fases, a primeira das quais possui um caráter
masculino, ao passo que apenas a segunda é especificamente feminina. Assim, no
desenvolvimento feminino, há um processo de transição de uma fase para a outra,
do qual nada existe de análogo no homem. (FREUD, 1931, v. 21, p. 236)
Por fim, em 1937, no texto Análise terminável e interminável, o autor faz sua última
referência à questão da bissexualidade e sua relação com o recalque, apontando para o
53
despropósito de uma possível constituição biológica como base para o sujeito recalcar a
representação do sexo contrário.
Freud deixa, de uma vez por todas, evidenciado que a “inveja do pênis” na mulher e a luta
contra a “atitude feminina/passiva” de um homem para com outro homem revelam apenas
uma atitude puramente psicológica para com o que a psicanálise nomeou de “complexo de
castração”.
Desta forma, tomando os sujeitos que escolhem como objetos sexuais pessoas do próprio
sexo, bem com do sexo oposto, apresenta-se insustentável qualquer hipótese baseada no fato
de que, a partir de premissas biológicas, o sujeito, segundo seu sexo anatômico, possa recalcar
as moções pulsionais do sexo oposto como que ancorado numa certeza sobre o sexo que
alicerça todos os processos mentais referentes à sexualidade.
Freud é enfático:
É bem sabido que em todos os períodos houve, como ainda há, pessoas que podem
tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo
oposto, sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de
bissexuais e aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa sobre elas. Viemos a
saber, contudo, que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se
distribui, quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos
os sexos. (FREUD, 1937, v. 23, p. 260)
Logo, gostaríamos de reforçar que, a partir da bissexualidade, o fato de o sujeito escolher um
ou outro caminho, resultante do que até agora foi exposto, não fará, de maneira alguma, com
que a possibilidade oposta à escolhida desapareça. Pelo contrário, precisamos compreender, a
partir de uma ótica dinâmica, que o caminho oposto será direcionado ao inconsciente e, desta
forma, poderá aflorar em qualquer momento da vida do sujeito, a partir do fundamento do
“retorno do recalcado”.
3.2 A RUPTURA FREUDIANA
A bem de verdade, Freud, inicialmente43, também considerava o sujeito homossexual como
um sujeito perverso. No entanto, esta definição derivava da grande influência do vocabulário
43
Influenciado pelos sexólogos da época, ao retomar o termo “perversão”, Freud, inicialmente, conservou a idéia
de desvio sexual em relação a uma norma. Ver Desvios com respeito ao alvo sexual (p. 141-142) em Três
54
sexual da época, que considerava o conjunto de comportamentos que desviavam do orgasmo
por penetração genital entre um homem e uma mulher como perversão.
A questão da sexualidade está presente em seus escritos desde os Estudos sobre a histeria
(1893-1895) e, por sua vez, o que até então sustentava seu discurso era a teoria do trauma
infantil, vindo de uma experiência de sedução sexual real que acarretava um caráter
traumático na criança, a ponto de ser recalcado e então, posteriormente, transformado num
núcleo patogênico.
A teoria da sedução – “um erro quase fatal”, dirá Freud – foi então substituída pela
formulação edipiana, na qual se enfatizava o papel da fantasia e da sexualidade infantil.
Em 1897, Freud escreve a Fliess: “Não acredito mais em minha neurótica”. (FREUD, 1897, v.
1, p. 309) E acrescenta:
Os contínuos desapontamentos em minhas tentativas de fazer minha análise chegar a
uma conclusão real, a debandada das pessoas que, durante algum tempo, eu parecia
estar compreendendo com muita segurança, a ausência dos êxitos completos com
que eu havia contado, a possibilidade de explicar os êxitos parciais de outras
maneiras, segundo critérios comuns – este foi o primeiro grupo [de motivos].
Depois, veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não
excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido – a constatação da
inesperada freqüência da histeria, na qual o mesmo fator determinante é
invariavelmente estabelecido, embora, afinal, uma dimensão tão difundida da
perversão em relação às crianças não seja muito provável. (A perversão teria de ser
incomensuravelmente mais freqüente do que a histeria, de vez que a doença só
aparece quando há uma acumulação de eventos e quando sobrevém um fator que
enfraquece a defesa). Depois, [...] a descoberta comprovada de que, no inconsciente,
não há indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a
verdade e a ficção que é catexizada com o afeto. (FREUD, 1897, v. 1, p. 310)
De fato, Freud ainda não dispunha de uma tese concreta sobre o inconsciente e sobre a
sexualidade; contudo, em 1900, no texto A interpretação dos sonhos, será introduzido o
discurso do desejo, calcado no conceito de inconsciente, que, então, abrirá portas para o
desenvolvimento das variáveis na sexualidade humana.
Aqui, se dá a primeira grande ruptura na moral sexual vigente, pois o que até então os préfreudianos chamavam de destino passa a ser designado por Freud como escolha inconsciente.
ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905): “As perversões são transgressões anatômicas quanto às regiões
do corpo destinadas à união sexual, ou demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual, que
normalmente seriam atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual final.” (p.142)
55
Por conseqüência, a partir de 1905, com a introdução do conceito de pulsão e a ampla
significação que tal conceito concede à questão do inconsciente, Freud desliga-se da sexologia
e volta seu interesse para a compreensão das causas da homossexualidade. Assim, no texto
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), iremos finalmente nos deparar com
elementos indispensáveis para a noção de sexualidade, tal como defendida por Freud.
Como já vimos, as teorias existentes, até então, sustentavam-se na noção de instinto, pela qual
a partir de um padrão fixo de conduta determina-se o objeto e o objetivo do sujeito com a
função de reprodução e preservação da espécie.
Neste momento, não se falava em prazer e tudo o que fugisse da completude “divina” entre
um homem e uma mulher era considerado um comportamento perverso, desviante da norma e
do objetivo maior da sociedade.
Desta forma, Freud rompe definitivamente com a medicina psiquiátrica vigente e avança
teoricamente no trato do sexual, desvinculando-se do preconceito imaginário da época e
introduzindo as idéias de bissexualidade, pulsão, sexualidade infantil e disposição perversopolimorfa.
Logo, o inconsciente e a pulsão, referidos à falta de objeto, apontam para a fantasia enquanto
articulador entre linguagem e sexualidade: o sujeito é sexual e a homossexualidade é uma
escolha psíquica inconsciente que passa a ser questão a esclarecer, tanto quanto a
heterossexualidade, pois a relação sexual, enquanto pré-determinada entre pulsão e objeto,
não existe.
Portanto, seguiremos passo a passo o desenvolvimento dos conceitos introduzidos por Freud,
com o intuito maior de fundamentar o caráter revolucionário da sexualidade freudiana,
demonstrando que, ao contrário da religião, da ciência e de certos analistas44, o homem e a
mulher não foram feitos, necessariamente, um para o outro.
44
Discurso vindo de uma leitura da homossexualidade a partir da perversão: Serge André com A impostura
perversa; Philippe Julien em Psicose, perversão, neurose; Patrick Valas com Freud e a perversão e Charles
Melman com Clínica psicanalítica: artigos e conferências.
56
Considerando o discurso da pulsão como o primeiro eixo diferenciador do pensamento até
então vigente, retomaremos este conceito e introduziremos a diferença fundamental
estabelecida por Freud quanto ao que se refere ao instinto. O autor afirma que a grande
divergência está no fato de que há uma plasticidade pulsional, na qual o objetivo é a satisfação
e, por sua vez, o objeto é o que há de mais variável.
Nitidamente percebemos que certas condutas, antes consideradas perversas, deixam de sê-la
se tomarmos o conceito de pulsão como referência. É justamente este o ponto crucial, o qual
Freud desenvolve no primeiro dos Três ensaios, demonstrando sua superação quanto à noção
de sexualidade.
Até 1910, Freud referia-se à homossexualidade como inversão45; no entanto, é válido lembrar
que, entre 1905 e 1924, houve quatro edições dos Três ensaios e na realidade, como veremos,
o autor introduziu, em cada uma delas, modificações referentes ao aperfeiçoamento de sua
própria doutrina.
Iniciaremos com As aberrações sexuais, texto no qual já notamos, desde o título, uma
indicação do estranho, do patológico, do avesso do normal. Talvez, para alguns, possa parecer
que Freud estivesse tratando de novas denominações para o até então considerado
comportamento perverso. No entanto, o que o autor faz é precisamente o contrário. Ele se
utiliza do sentido dessas palavras para transcender o saber da ciência, já vigente no senso
comum, e, assim, introduzir uma nova configuração, a partir da ótica psicanalítica.
Acreditamos que este é o grande corte dado por Freud:
Devo destacar, como característica desse meu trabalho, sua deliberada dependência
da investigação biológica. Evitei cuidadosamente introduzir expectativas científicas
provenientes da biologia sexual geral, ou da biologia das espécies animais em
particular, no estudo da função sexual do ser humano que nos é possibilitado pela
técnica da psicanálise. A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode apurar
sobre a biologia da vida sexual humana com os meios acessíveis à investigação
psicológica; era-me lícito assinalar os pontos de contato e concordância resultantes
dessa investigação, mas não havia por que me desconcertar com o fato de o método
psicanalítico, em muitos pontos importantes, levar a opiniões e resultados
consideravelmente diversos dos de base meramente biológica. (FREUD, 1905, v. 7,
p. 125)
45
No livro dedicado a Leonardo da Vinci, Freud renuncia ao termo “inversão” e passa a utilizar
“homossexualidade”.
57
A partir de um novo diálogo com o campo da ciência, efetuado através do inconsciente e da
pulsão, Freud assinala suas novas concepções de forma clara, dedicando à homossexualidade
um estatuto diferente daquele das aberrações. Fazendo referência à pulsão e aos possíveis
desvios em relação ao objeto sexual, o autor retira a possibilidade de qualquer caráter de
degenerescência aplicado à homossexualidade e adverte:
A opinião popular faz para si representações bem definidas da natureza e das
características dessa pulsão sexual. Ela estaria ausente na infância, far-se-ia sentir na
época e em conexão com o processo de maturação da puberdade, seria exteriorizada
nas manifestações de atração irresistível que um sexo exerce sobre o outro, e seu
objetivo seria a união sexual, ou pelo menos os atos que levassem nessa direção.
Mas temos plena razão para ver nesses dados uma imagem muito infiel da realidade;
olhando-os mais de perto, constata-se que estão repletos de erros, imprecisões e
conclusões apressadas. (FREUD, 1905, v. 7, p. 128)
Na seqüência, em 1908, com o texto Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna,
Freud enfatiza que, em uma série de pessoas, o desenvolvimento que vai do auto-erotismo ao
amor objetal, com o objetivo de união dos genitais, não se realiza de forma perfeita e
completa. Como resultado desses “distúrbios” de desenvolvimento, o autor sugere dois tipos
de desvios da sexualidade “normal”, ou, como ele mesmo descreve, da sexualidade que é útil
à civilização:
Em primeiro lugar (deixando de lado os indivíduos cuja pulsão sexual é exagerada
ou que resiste à inibição) estão diversas variedades de pervertidos, nos quais uma
fixação infantil a um objetivo sexual preliminar impediu o estabelecimento da
primazia da função reprodutora, e os homossexuais ou invertidos, nos quais, de
maneira ainda não compreendida, o objetivo sexual foi defletido do sexo oposto. Se
os efeitos nocivos desses dois gêneros de distúrbios do desenvolvimento são
menores do que seria de esperar, tal se deve justamente à complexa constituição da
pulsão sexual, que possibilita à vida sexual do indivíduo atingir uma forma final útil,
mesmo que um ou mais componentes da pulsão tenham sido alijados do seu
desenvolvimento. A constituição das pessoas que sofrem de inversão – os
homossexuais – distingue-se amiúde pela especial aptidão de sua pulsão sexual para
a sublimação cultural. (FREUD, 1908, v. 9, p. 175-176)
Um ano depois, Freud comunica a Jung46 seu interesse pela vida de Leonardo Da Vinci e mais
particularmente por sua pulsão de saber, a qual lhe parecia a própria substituição de uma
homossexualidade. Pouco depois, lançou-se ao trabalho, publicando seu texto em maio de
1910.
Apesar da dificuldade encontrada para provar a verdade dessa hipótese, segundo o autor, o
poderoso instinto de pesquisa e a atrofia da vida sexual de Leonardo (restrita ao que
poderíamos chamar de homossexualidade ideal [sublimada]) pareciam derivar do fato de que,
46
Carta de 17 de outubro de 1909.
58
depois de sua curiosidade ter sido ativada, na infância, a serviço de interesses sexuais, ele
tenha conseguido sublimar a maior parte da sua libido em sua ânsia pela pesquisa.
Contudo, ao tomar a fantasia infantil de Leonardo, na qual o abutre é o representante do
conteúdo real de sua lembrança, Freud questiona o porquê desse conteúdo ter se transformado
em uma situação homossexual; ou seja, por que a mãe, que amamenta, foi transformada num
abutre que põe a sua cauda dentro da boca da criança?
A resposta lhe parece simples: “Já tivemos ocasião de mostrar que, de acordo com as
freqüentes substituições de que se serve a linguagem, a “cauda” do abutre deve, com toda
certeza, significar o genital masculino, um pênis”. (FREUD, 1910, v. 9, p. 100) E acrescenta:
Quando nos lembramos da probabilidade histórica de Leonardo ter-se comportado
em sua vida como uma pessoa emocionalmente homossexual, ocorre-nos perguntar
se esta fantasia não indicaria a existência de uma relação causal entre as relações
infantis de Leonardo com a mãe e sua posterior homossexualidade manifesta, ainda
que ideal [sublimada]. Não nos atreveríamos a inferir qualquer conexão dessa
natureza da reminiscência confusa de Leonardo se não soubéssemos, pelos estudos
psicanalíticos de pacientes homossexuais, que tal ligação existe de fato e é, na
verdade, condição intrínseca e necessária. (FREUD, 1910, v. 9, p. 104-105)
Assim, o autor conclui que, nos casos de homossexualidade masculina, os indivíduos tinham
uma ligação erótica muito intensa com a mãe durante o primeiro período da infância, até o
momento em que este amor não poderia mais continuar a se desenvolver conscientemente e
acaba por sucumbir ao recalque. Tal ligação haveria sido despertada pelo excesso de ternura
por parte da própria mãe, levando Freud a considerar a hipótese de que a presença de um pai
forte asseguraria no filho a escolha correta de objeto, ou seja, uma pessoa do sexo oposto.
Em resumo, o menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu lugar, identifica-se com
ela e toma a si próprio como um modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu
amor. Desse modo, ele se transforma num homossexual. Freud explica:
O que de fato aconteceu foi um retorno ao auto-erotismo, pois os meninos que ele
agora ama à medida que cresce são, apenas, figuras substitutivas e lembranças de si
próprio durante sua infância – meninos que ele ama da maneira que sua mãe o
amava quando era ele uma criança. Encontram seus objetos de amor segundo o
modelo do narcisismo, pois Narciso, segundo a lenda grega, era um jovem que
preferia sua própria imagem a qualquer outra, e foi assim transformado na bela flor
do mesmo nome. Considerações psicológicas mais profundas justificam a afirmativa
de que um homem que assim se torna homossexual permanece inconscientemente
fixado à imagem mnêmica de sua mãe. Reprimindo seu amor à sua mãe, conserva-o
em seu inconsciente e daí por diante permanece-lhe fiel. (FREUD, 1910, v. 9, p.
106)
59
Entretanto, embora a resposta aos questionamentos levantados pareça ter sido dada, o autor
adverte:
Estamos longe de querer exagerar a importância dessas explicações sobre a gênese
psíquica da homossexualidade. É óbvio que elas discordam completamente das
teorias adotadas pelos defensores dos homossexuais, mas sabemos também que não
são bastante claras para chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema.
Aquilo que, por motivos práticos, é geralmente chamado de homossexualidade
poderá ser o resultante de uma variedade enorme de processos inibitórios
psicossexuais; o processo particular que destacamos é, talvez, apenas um entre
muitos outros e talvez corresponda a um único tipo de “homossexualidade”.
Devemos também admitir que o número de casos de homossexualismo deste tipo,
em que podemos reconhecer as causas determinantes assinaladas por nós, é bem
maior do que aqueles em que ele de fato se concretiza. Portanto, nós também não
podemos negar a influência exercida por fatores constitucionais desconhecidos, aos
quais geralmente se atribui toda a homossexualidade. Não teríamos tido motivo
algum para entrar na gênese psíquica da forma de homossexualidade que estudamos
se não houvesse um forte pressentimento de que Leonardo, cuja fantasia sobre o
abutre foi o nosso ponto de partida, fosse, na verdade, um homossexual exatamente
desse tipo. (FREUD, 1910, v. 9, p. 107)
Assim, Freud acrescenta, em 1910, uma nota aos Três ensaios que atribui à homossexualidade
um certo caráter “adquirido”, em contraposição ao, até então, considerado unicamente “inato”
da sexualidade humana, acrescentando à diversidade de seus aspectos a influência das
diferentes culturas e estágios de civilização:
A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antiguidade e a nossa
decerto reside em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao
passo que nós a colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se
dispunham a enobrecer com ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós
menosprezamos a atividade pulsional em si e só permitimos que seja
desculpada pelos méritos do objeto. (FREUD, 1905, v. 7, p. 141, Grifo nosso)
Contudo, foi quando o autor pôde verdadeiramente reconhecer a valiosa importância da
bissexualidade, passando a utilizá-la mais firmemente como recurso, que pôde também
acrescentar em sua obra a manifestação necessária para apagar qualquer resíduo deixado por
falta de esclarecimento conceitual:
A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de separar os
homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular. Ao
estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta,
ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto
homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. [...] A psicanálise
considera, antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do
objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal
como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é
a base originária da qual, mediante a restrição num sentido ou no outro,
desenvolvem-se tanto o tipo normal como o tipo invertido. No sentido psicanalítico,
portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um
problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa
atribuir a uma atração de base química. (FREUD, 1905, v. 7, p. 137-138)
60
Essa curiosa relação entre as variações sexuais e a escala que vai da saúde à perturbação
mental dá o que pensar, pois somente em raríssimos casos, dirá Freud, o objeto sexual,
enquanto alvo desejado da pulsão sexual, restringe-se a sua genitália; ela se propaga, antes,
por todo o seu corpo e tende a abranger todas as sensações provenientes do objeto sexual.
Dessa forma, não podemos reconhecer no processo sexual “normal” os rudimentos daquilo
que levaria às aberrações descritas como perversão?
Será ao fim da primeira parte do texto que então poderemos verificar a importante
contribuição para o conhecimento da pulsão sexual vinda da investigação psicanalítica dos
“psiconeuróticos”, nos quais os sintomas aparecem como substitutos de uma série de
processos, desejos e aspirações investidos de afeto, aos quais, mediante o recalcamento, negase a descarga através de uma atividade psíquica passível de consciência. Freud explica:
Boa parte da oposição contra estas minhas teses se esclarece pelo fato de que a
sexualidade, da qual derivo os sintomas psiconeuróticos, é considerada coincidente
com a pulsão sexual normal. Só que a psicanálise ensina ainda mais. Ela mostra que
de modo algum os sintomas surgem apenas à custa da chamada pulsão sexual
normal (pelo menos não de maneira exclusiva ou predominante), mas que
representam a expressão convertida de pulsões que seriam designadas de perversas
(no sentido mais lato) se pudessem expressar-se diretamente, sem desvio pela
consciência, em propósitos da fantasia e em ações. Portanto, os sintomas se formam,
em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o
negativo da perversão. (FREUD, 1905, v. 7, p. 157)
Assim, ao demonstrar que as moções perversas são formadoras de sintomas na neurose, Freud
desfaz qualquer possibilidade de abordagem da homossexualidade enquanto anormalidade e
leva-nos ao entendimento de que a perversão não é uma particularidade rara e, antes, deve
fazer parte da constituição que passa por normal. Portanto, somos dirigidos à segunda parte do
livro, na qual o autor trata da sexualidade infantil, sustentando que, em psicanálise, genital é
diferente de sexual, expondo a matriz da teoria da libido e, assim, elucidando as variações da
sexualidade, do complexo de castração, a idéia da inveja do pênis e, por fim, a gênese da
noção de estádio.
O componente central desta parte do texto é a organização da sexualidade infantil a partir da
disposição perverso-polimorfa. Freud demonstra que as atividades infantis são fontes de
prazer e auto-erotismo, as quais não conhecem lei nem proibição, levando em conta todos os
objetos e alvos possíveis para a satisfação.
61
Podemos pensar que, a partir da introdução desses novos conceitos, Freud marca, novamente,
uma ruptura na moral sexual vigente, pois a criança, até então negada como sujeito e
controlada pelos pais, passa a ser colocada em discurso.
Portanto, não seria justamente a recusa em reconhecer a sexualidade infantil uma forma
eficiente de negarmos os nossos próprios impulsos sexuais infantis? Certamente, e foi por este
viés que Freud apontou para os “esquecimentos” na vida adulta como manifestações da
própria infância perversa do sujeito.
Inicialmente, o autor introduziu o conceito de auto-erotismo para designar um estado original
da sexualidade infantil no qual a pulsão sexual encontra satisfação sem recorrer a um objeto
externo; ou seja, a excitação está ligada a uma zona erógena.
Contudo, tal designação requer cuidadoso entendimento, pois ao nascer o bebê se apóia numa
função somática vital – a amamentação do lactente – na qual há uma fonte, uma direção e um
objeto específico. Estamos falando de instinto, de ingestão de leite para satisfazer a fome,
ligada à conservação da vida.
Aqui, deve ficar claro que o objeto do instinto é o alimento, enquanto o objeto da pulsão é o
seio materno. Apenas quando esse objeto é abandonado podemos considerar o auto-erotismo.
Deixemos que Freud esclareça:
A primeira e mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno (ou em
seus substitutos) – há de tê-la familiarizado com esse prazer. Diríamos que os lábios
da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo
cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. A princípio, a
satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A
atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à
preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. [...] A necessidade de
repetir a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento.
[...] A criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas prefere uma parte
de sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente do
mundo externo, que ela ainda não consegue dominar, e porque desse modo ela se
proporciona como que uma segunda zona erógena. (FREUD, 1905, v. 7, p. 171)
Assim, as zonas erógenas são fontes das pulsões parciais que nos indicam uma organização
pré-genital, referindo-se a uma organização anterior ao primado genital com função
reprodutora.
62
Sem dúvida, encontramos novamente a preponderância da anatomia no contexto de uma
futura completude para fins específicos. Contudo, já não seria evidente que o objeto
psicanalítico é um objeto fantasmático, pelo qual o desejo não se dirige para o real? Sim, e de
forma resumida, o que o autor destaca neste momento é que somente podemos falar em
sexualidade humana enquanto registro psíquico que na origem nos trouxe uma satisfação que
em seguida foi perdida. Ou seja, há um traço mnêmico, em todo sujeito, que o impulsiona
para o reencontro com esta primeira experiência de satisfação. Desta forma, as fantasias que
produzem o desejo do sujeito estão representadas nesta perda do primeiro objeto de
satisfação, que jamais será encontrado e constituirá, como conseqüência, um sujeito faltoso.
Como verificamos com Lacan, o conceito de objeto a ou objeto causa do desejo aponta para a
existência da dimensão real que, ao mesmo tempo que revela uma falta originária, revela a
falta que move nosso desejo. Ou seja, o sujeito, enquanto ser de linguagem, é causado por um
objeto que é faltoso por natureza, sendo a fantasia a encobridora imaginária, responsável pela
relação desejante do sujeito com o objeto a: como numa espécie de possibilidade de um
suposto reencontro, recortando a falta e apresentando algo que seria capaz de tamponá-la.
Contudo, embora defensiva, a fantasia não é totalmente eficaz, pois, se a fantasia é o suporte
do desejo, isso significa que o desejo é falta.
Portanto, enquanto a necessidade é uma tensão de ordem biológica que encontra sua
satisfação em um objeto específico e real, o desejo, denominado por Freud de desejo
inconsciente, só pode ser pensado na relação com o desejo do Outro que aponta para a falta e
implica uma relação com o fantasma; ou seja, a estrutura do desejo está implicada nessa
inacessibilidade do objeto, fazendo com que o desejo sempre exista.
Decerto, o autor ainda estava distante de uma concepção mais esclarecedora a respeito do que
deveria ser entendido como uma “organização genital completa”; contudo, será a partir de sua
visão a respeito da fase fálica como uma fase dominada pelo complexo de castração e
correspondente ao declínio do Édipo que conseguiremos perceber por que a oposição entre os
sexos é descrita por Freud através da distinção fálico-castrado.
63
Em 1914, no ensaio sobre o narcisismo, o autor estabelece uma distinção entre dois tipos de
escolha do sujeito: anaclítico e narcísico.
O tipo de escolha anaclítico caracteriza-se pelo fato de a escolha de objeto de amor recair
sobre pessoas que reproduzam o modelo das figuras parentais, podendo incidir sobre a mulher
que alimenta ou o homem que protege. Em contrapartida, o tipo de escolha narcísico,
caracterizado por Freud, sobretudo, a partir da observação de homossexuais, toma como
modelo a própria pessoa; isto é, o objeto é escolhido segundo a imagem e a semelhança do
próprio indivíduo, que pode amar o que ele próprio é, o que foi, o que gostaria de ser, ou,
ainda, alguém que foi uma vez parte dele mesmo.
Desta forma, Freud verifica que o sujeito não pode ser classificado segundo seu objeto de
escolha e que, na verdade, o que ocorre é uma mistura de ambos em cada indivíduo:
Não concluímos, contudo, que os seres humanos se acham divididos em dois grupos
acentuadamente diferenciados, conforme sua escolha objetal se coadune com o tipo
anaclítico ou o narcisista; pelo contrário, presumimos que ambos os tipos de escolha
objetal estão abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um
ou por outro. Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais –
ele próprio e a mulher que cuida dele – e ao fazê-lo estamos postulando a existência
de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode manifestar-se de
forma dominante em sua escolha objetal. (FREUD, 1914, v. 14, p. 95)
E acrescenta:
O amor objetal completo do tipo de ligação é, propriamente falando, característico
do indivíduo do sexo masculino. Ele exibe a acentuada supervalorização sexual que
se origina, sem dúvida, do narcisismo original da criança, correspondendo assim a
uma transferência desse narcisismo para o objeto sexual. Essa supervalorização
sexual é a origem do estado peculiar de uma pessoa apaixonada, um estado que
sugere uma compulsão neurótica, cuja origem pode, portanto, ser encontrada num
empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto amoroso. Já com o
tipo feminino mais freqüentemente encontrado, provavelmente o mais puro e o mais
verdadeiro, o mesmo não ocorre. Com o começo da puberdade, o amadurecimento
dos órgãos sexuais femininos, até então em estado de latência, parece ocasionar a
intensificação do narcisismo original, e isso é desfavorável para o desenvolvimento
de uma verdadeira escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual.
(FREUD, 1914, v. 14, p. 95)
Agora, podemos melhor perceber a base conceitual utilizada por Freud para analisar o caso da
Jovem homossexual em 1920. Após recebê-la para tratamento, sem demanda – algo que não
pode deixar de ser apontado como um grande equívoco –, chega à conclusão de que sua
escolha de objeto teve por origem uma fixação infantil na mãe e uma posterior decepção com
o pai.
64
Ou seja, embora Freud sustentasse a crença das múltiplas causalidades da homossexualidade e
da incapacidade de oferecer ao sujeito um outro objeto que o abasteça de prazer tal qual o
objeto renunciado, permanecia afirmando que o comportamento da jovem, diante do objeto de
amor, apontava para uma frustração com seu pai – por ter dado um filho à mãe – e um
conseqüente deslocamento de seu interesse para mulheres maduras.
Freud nos dá a seguinte explicação:
No exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo
de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se
profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo
de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer.
Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente
odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do
pai e dos homens. Passando esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminilidade
e procurou outro objetivo para sua libido. (FREUD, 1920, v. 17, p. 169)
Neste momento, parece-nos que o respaldo teórico freudiano restringe-se à doutrina do Édipo
e sua saída via complexo de masculinidade, que se expande para uma generalização
conceitual da escolha homossexual na mulher como um movimento da libido em direção ao
objeto, assim como acredita ocorrer no indivíduo masculino, no qual o amor objetal completo
é do tipo anaclítico.
Ao acompanharmos o desenvolvimento freudiano sobre o tema, encontramos, um ano mais
tarde, em Psicologia das massas e análise do eu (1921), o autor afirmando que a
homossexualidade masculina sobrevém, depois da puberdade, nos casos em que se instaurou
na infância um vínculo intenso entre filho e mãe.
Aqui, o destaque vai para o fato de que, ao invés de renunciar à mãe, o filho identifica-se com
ela e transforma-se nela, procurando objetos capazes de substituir seu eu, aos quais ele possa
amar como foi amado pela mãe; isto é, a escolha objetal ocorre a partir do tipo narcísico47.
Será então que a fixação na mãe após o período da puberdade é o determinante maior da
homossexualidade no homem e na mulher? Devemos ter cuidado, pois o conceito de fixação
descrito por Freud não deve ser entendido como uma parada patológica no desenvolvimento
sexual do sujeito, no qual a escolha objetal narcísica reforçaria tal fato frente à etapa posterior
da heterossexualidade. A noção de narcisismo enquanto libido investida no eu faz parte da
47
De certa forma, esta descrição da homossexualidade fica explicitada desde o texto sobre Leonardo Da Vinci.
65
constituição do sujeito enquanto imagem e, portanto, também está presente na escolha de
objeto heterossexual.
Entenderemos melhor a base do pensamento freudiano se retornarmos para o terceiro capítulo
dos Três ensaios, no qual o autor dedica-se à análise das transformações da puberdade,
enfatizando o primado da zona genital.
De início, tentando articular a perspectiva biológica com a psicológica, Freud menciona:
O ponto de partida e o alvo final do processo de desenvolvimento aqui descrito são
claros a nossos olhos. As transições intermediárias ainda nos são obscuras em
muitos aspectos; teremos de deixar subsistir nelas mais de um enigma. Escolheu-se
o que mais se destaca nos processos da puberdade como o que constitui sua
essência: o crescimento manifesto da genitália externa, que exibira, durante o
período de latência da infância, uma relativa inibição. Ao mesmo tempo, o
desenvolvimento dos genitais internos avançou o bastante para que eles possam
descarregar produtos sexuais ou, conforme o caso, recebê-los para promover a
formação de um novo ser vivo. Assim ficou pronto um aparelho altamente
complexo, à espera do momento em que será utilizado. (FREUD, 1905, v. 7, p. 197)
A que aparelho “altamente complexo” Freud se refere? Refere-se ao genital e à possibilidade
da união sexual entre um homem e uma mulher como auge do desenvolvimento do sujeito?
Decerto que não, pois não seria justamente a pulsão a responsável por tal disjunção
psicofísica, através da qual a divisão produzida pelo inconsciente provoca também uma
divisão no campo subjetivo e assim constitui o sujeito como dividido – base tão essencial para
a psicanálise?
Lembremos da carta dirigida por Freud a Fliess em 1899: “Bissexualidade! [...] Estou-me
acostumando a encarar todo ato sexual como um acontecimento entre quatro pessoas”.
(FREUD, 1899, v. 19, p. 46) Aqui, nos aparece de forma evidenciada a base de todo o
pensamento freudiano que lhe serve de respaldo na busca de conceitos que possam dar conta
de sua verdade.
No entanto, não podemos nos esquecer de que a tríade Édipo/Castração/Narcisismo
representava para Freud o único guia da identificação X escolha de objeto, que recai sobre a
homossexualidade. Da mesma forma, não podemos restringir os conceitos até aqui expostos a
meros indicadores de patologia, já que os homossexuais nunca foram considerados por Freud
como possuidores de características especiais.
66
Como já vimos no subcapítulo anterior, a bissexualidade intervém de duas maneiras no
destino do complexo de Édipo. Primeiramente, a propósito da identificação final com o pai ou
com a mãe, o que, para o autor, depende da força relativa, em ambos os sexos, da
predisposição sexual masculina ou feminina, e, em segundo lugar, a forma positiva ou
negativa assumida pela estrutura relacional ambivalente com o pai e com a mãe no chamado
“complexo de Édipo completo”.
Deixemos que Freud explique:
Juntamente com a demolição do complexo de Édipo, a catexia objetal da mãe, por
parte do menino, deve ser abandonada. O seu lugar pode ser preenchido por uma de
duas coisas: uma identificação com a mãe ou uma intensificação de sua
identificação com o pai. Estamos acostumados a encarar o último resultado como o
mais normal; ele permite que a relação afetuosa com a mãe seja, em certa medida,
mantida. Dessa maneira, a dissolução do complexo de Édipo consolidaria a
masculinidade no caráter de um menino. De maneira precisamente análoga, o
desfecho da atitude edipiana numa menininha pode ser uma intensificação de sua
identificação com a mãe (ou a instalação de tal identificação pela primeira vez) –
resultado que fixará o caráter feminino da criança. (FREUD, 1923, v. 19, p. 45)
Desta forma, a maneira pela qual a bissexualidade é responsável pelas vicissitudes
subseqüentes ao complexo de Édipo está relacionada ao fato de que, em ambos os sexos, a
força relativa à disposição sexual masculina e feminina determinará a identificação com o pai
ou com a mãe. E o autor acrescenta:
Na dissolução do complexo de Édipo, as quatro tendências em que ele consiste
agrupar-se-ão de maneira a produzir uma identificação paterna e uma identificação
materna. A identificação paterna preservará a relação de objeto com a mãe, que
pertencia ao complexo positivo, e, ao mesmo tempo, substituirá a relação de objeto
com o pai, que pertencia ao complexo invertido; o mesmo será verdade, mutatis
mutandis, quanto à identificação materna. A intensidade relativa das duas
identificações em qualquer indivíduo refletirá a preponderância nele de uma ou
outra das duas disposições sexuais. (FREUD, 1923, v. 19, p. 46)
Será que então podemos acreditar que seu maior objetivo era simplesmente restringir o sujeito
ao apoio de suas identificações para então nomear uma “identidade homossexual”?
Definitivamente não, pois o complexo de Édipo completo e, por conseqüência, a dissolução
do Édipo não deve ser entendida como um modelo que subdivide as saídas normais das saídas
anormais, mas unicamente em termos de possibilidades oferecidas na neurose. O próprio
autor nos adverte:
Com respeito às manifestações auto-eróticas e masturbatórias da sexualidade, poderse-ia formular a tese de que a sexualidade das meninas tem um caráter inteiramente
masculino. A rigor, se soubéssemos dar aos conceitos de “masculino” e
“feminino” um conteúdo mais preciso, seria possível defender a alegação de
que a libido é, regular e normativamente, de natureza masculina, quer ocorra
no homem ou na mulher, e abstraindo seu objeto, seja este homem ou mulher.
(FREUD, 1905, v. 7, p. 207, Grifo nosso)
67
Assim, em 1935, veremos de forma clara Freud afirmando o lugar da psicanálise frente à
homossexualidade. Ao responder à carta de uma mãe norte-americana que se queixava do
filho homossexual, o autor marca definitivamente sua posição contrária a qualquer tentativa
inútil de transformação de um homossexual em um heterossexual:
A homossexualidade não é uma vantagem, evidentemente, mas nada há nela de que
se deva ter vergonha: não é um vício nem um aviltamento, nem se pode qualificá-la
de doença; nós a consideramos uma variação da função sexual provocada por uma
suspensão do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos sumamente respeitáveis,
nos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, e dentre eles encontramos
alguns de nossos maiores homens. (FREUD apud ROUDINESCO; PLON, 1998, p.
353)
Logo, esta era a mensagem que gostaríamos de deixar por agora, pois, certamente, a teoria
freudiana foi suficiente para abordar a homossexualidade sob uma perspectiva ética e menos
preconceituosa.
Contudo, se até hoje presenciamos uma concepção teórica que insiste em reduzir o sujeito ao
sexo biológico e à (re)orientação sexual, parece-nos que, na verdade, o fato se dá por
verificarmos uma leitura demasiado simplista, por parte de alguns analistas que,
comprometidos com o pensamento psiquiátrico oitocentista, fazem da homossexualidade em
Freud algo sempre “justificado” pela perversão.
Enfim, é justamente por podermos reconhecer um sujeito de desejo, com uma dinâmica
inconsciente capaz de inúmeras posições subjetivas, que não nos parece nada adequado
restringir a homossexualidade a meras posições identificatórias. Portanto, acreditamos na
necessidade de continuarmos acompanhando a elaboração freudiana a respeito do masculino e
do feminino, a fim de juntamente esclarecer a dicotomia ativo/passivo e o que será então
desdobrado como componente psíquico do homem e da mulher.
3.3 MASCULINO/FEMININO
Freud sempre se preocupou em deixar claro que os conceitos de “masculino” e “feminino”
figuram entre os mais confusos conceitos da ciência por acabarem decompostos em, pelo
menos, três sentidos distintos: ora se emprega o sentido “atividade” e “passividade”, ora o
sentido biológico e ainda o sentido sociológico.
68
Segundo o autor, o primeiro desses três sentidos é o essencial para a psicanálise, e isso se
deve ao fato de que a libido é masculina, pois a pulsão é sempre ativa, mesmo quando
estabelece para si um alvo passivo.
Já o sentido biológico talvez seja o conceito que admita a maior clareza de definição, pois o
masculino e o feminino caracterizam-se pela presença de espermatozóides e óvulos,
respectivamente, e pelas funções decorrentes deles. Assim, a atividade, juntamente com suas
manifestações – desenvolvimento muscular, agressividade e maior intensidade de libido –,
costuma representar o que seria entendido como a masculinidade biológica. Aqui, Freud nos
adverte que temos uma associação, no mínimo, desnecessária, pois não é nenhuma novidade o
fato de que existem espécies animais em que essas propriedades correspondem, antes, à
fêmea.
Dando seqüência, o terceiro sentido, o sociológico, extrai seu conteúdo da observação dos
indivíduos existentes na realidade, demonstrando que, no que concerne ao ser humano, a
masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico, nem
no sentido biológico. Em suma, o que a sociologia defende é que cada pessoa exibe uma
mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda
uma conjunção de atividade e passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter
dependerem dos biológicos, quanto no caso de independerem deles.
Contudo, o que até hoje constitui a popular identidade sexual do sujeito continua muito bem
amparado pela anatomia. Ser homem ou ser mulher encontra sua resposta no ter pênis ou ter
vagina.
Retornando a Freud, que de certa forma também se respaldou na biologia para tentar
esclarecer a distinção anatômica entre os sexos, baseando-se no complexo de Édipo e no
complexo de castração para referir-se à presença ou ausência do pênis como marco referencial
de uma posterior posição subjetiva, verificamos que, de forma análoga, o autor não
desconhece na sexualidade algo que independe da biologia. O próprio conceito de pulsão,
atrelado ao “complexo do próximo”, pode nos demonstrar que desde os primórdios da
infância, o bebê, ao condicionar sua sobrevivência à mãe, está, na realidade, restringindo sua
existência à presença do desejo do Outro primordial e, assim, conferindo plasticidade à
constituição de seu corpo na relação com esse desejo.
69
Esta questão nos leva a refletir que: se o desejo do sujeito e o corpo biológico do sujeito não
estão intimamente relacionados, isso se dá pela plasticidade pulsional, a qual tem como único
objetivo a satisfação. Desta forma, podemos considerar que a pulsão não reconhece a
anatomia do corpo e que o desejo se dá independente desta.
Assim, se prosseguirmos nesta linha de raciocínio, poderemos verificar que a escolha de
objeto não tem nenhuma relação com a anatomia do sujeito e muito menos com a escolha de
posição sexuada na partilha dos sexos. Ou seja, com um homem biológico (posse do pênis)
que se situa ou se reconhece como homem enquanto sua posição sexuada tem como
possibilidade de escolha um homem biológico ou uma mulher biológica para ocupar o lugar
de seu desejo de satisfação enquanto objeto de amor. Então, não temos nenhuma relação que
resulte de uma posição feminina ou masculina definida a partir do sexo biológico de seu
objeto de escolha.
Deixemos claro que, da mesma forma, se substituirmos no exemplo a palavra homem pela
palavra mulher, chegaremos à mesma conclusão.
É a partir daí que pretendemos definir, de forma mais clara, o que deve ser entendido como
homem/mulher, atividade/passividade e feminino/masculino, sob a ótica psicanalítica.
Sabemos que, até o momento, o que pudemos vislumbrar da teoria freudiana nos aponta para
uma imbricação entre mulher – maternidade – feminilidade. Contudo, com o reconhecimento
do desejo inconsciente, da plasticidade pulsional, da bissexualidade originária, da fantasia e
da falta constitutiva do sujeito, não podemos nos satisfazer com o apoio anatômico enquanto
suporte do pênis/falo como o único responsável pela subjetividade e pela posição do sujeito
enquanto ser de escolhas.
Façamos um retrocesso: por que o falo – com seu valor simbólico – é equivalente ao pênis –
com sua característica anatômica? Este é o ponto que nos parece causar um dos principais
equívocos trazidos por alguns pós-freudianos quando confundem o suporte da diferença
fálico/castrado na relação parental – claramente descrita por Freud – e a função dos genitores
na procriação – derivada do modelo fálico/posse do genital.
70
Certamente, nas sociedades patriarcais, o falo enquanto marca da falta foi transformado em
símbolo de poder e completude: o homem, enquanto possuidor de um pênis, é também
possuidor do falo.
Talvez, aqui, já seja o momento de esclarecermos uma distinção fundamental para possibilitar
nosso desenvolvimento seguinte. Sabemos que nos textos freudianos corremos o risco de não
percebermos, claramente, a distância existente entre o símbolo e sua encarnação imaginária.
No entanto, temos que ter em mente que a anatomia é o suporte imaginário presente na
fantasia e que esta não deve ser confundida com o estatuto simbólico das funções e das
posições de desejo em relação ao significante fálico.
Portanto, ninguém é possuidor do falo, já que este é da ordem do simbólico, da incompletude
fundamental do ser humano e jamais poderá ser reduzido ao órgão sexual masculino.
Desta forma, a interpretação que o bebê dá – a partir da fantasia e independente de seu sexo
biológico – para a questão “quem sou eu no desejo do Outro” só será mediatizada a partir do
interdito paterno que viabiliza ao sujeito uma relativização desse discurso – desejo de “um”
vindo da demanda materna –, possibilitando uma posterior escolha inconsciente à criança que
poderá, então, construir uma imagem correspondente ao que supõe ser homem ou mulher.
Logo, o conceito de fantasia, mais uma vez, nos demonstra que a realidade psíquica não
possui um correspondente representado na diferença anatômica, pois, se assim fosse, ter pênis
ou ter vagina nos protegeria da questão “o que o Outro quer de mim”.
Voltemos então para a procura de um fundamento que nos permita distinguir as posições
masculina e feminina.
Já nos parece bastante repetitivo o fato de que a libido é de natureza masculina e, portanto,
ativa; da mesma maneira que também entendemos que, sob a primazia do falo, não há
diferença entre os sexos no inconsciente. Contudo, permanecem duas questões: o que
realmente significa dizer que a libido é masculina? E, após o declínio do Édipo, com o
reconhecimento que a criança passa a fazer da diferença anatômica entre os sexos, ocorre no
inconsciente um equivalente reconhecimento da diferença anatômica, necessário para a futura
escolha de seu objeto?
71
Deixemos claro: ao falarmos de atividade, estamos nos referindo a uma maior quantidade de
libido investida no objeto. Em contraposição, ao falarmos de passividade, apontamos para
uma maior quantidade de libido investida no eu. Assim, podemos começar a concluir que a
libido masculina, no homem ou na mulher, representa um movimento de maior investimento
no objeto, independente de este ser homem ou mulher.
Lembremos que o percurso feito através das concepções freudianas até o momento nos indica
que a feminilidade é um dos destinos do Édipo e que ela se opõe ao destino via complexo de
masculinidade ou inibição sexual. Isso nos indica que a feminilidade é uma forma narcísica de
amar, na qual a libido é investida no eu? Por conseqüência, tanto os homens como as
mulheres acabam dispondo de uma posição pulsional feminina e masculina?
Acreditamos que, se a libido, em si, é ativa, o feminino e o masculino, enquanto pulsionais,
estão sempre presentes em diferentes medidas no homem e na mulher. Ou seja, ao tratarmos
de uma concepção dinâmica, ora nos mobilizamos em direção ao objeto e ora nos fazemos
objeto para o outro.
Sob esse prisma, a busca pela satisfação pulsional em uma ou outra posição será sempre um
movimento de caráter ativo, pois, mesmo se tratando de um gozo da posição passiva, é de
uma passividade ativamente produzida que se trata.
Nesse sentido, deixa de existir a anatomia que privilegiava a mulher feminina e passiva em
oposição ao homem masculino e ativo, passando a operar uma dinâmica pulsional circulante
entre as posições, sem nenhuma restrição quanto ao sexo biológico que ocupará tal lugar em
determinado momento.
Desta forma, conseguimos identificar a total distinção entre órgão genital e significante.
Deixemos que Freud explique:
Denominamos a força motriz da vida sexual de “libido”. A vida sexual é dominada
pela polaridade masculino-feminino; assim, insinua-se a idéia de considerarmos a
relação da libido com essa antítese. Não seria surpreendente se se verificasse ter
cada sexualidade a sua libido especial, apropriada para si, de forma que um tipo de
libido perseguiria as finalidades de uma vida sexual masculina e um outro tipo, as
finalidades de uma vida sexual feminina. Mas nada disso procede. Existe apenas
uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À
libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo. Se, consoante a convencional
equação “atividade e masculinidade”, nos inclinamos a qualificá-la como masculina,
devemos não esquecer que ela também engloba tendências com uma finalidade
72
passiva. Mesmo assim, a justaposição “libido feminina” não tem qualquer
justificação. [...] Assim, atribuímos à feminilidade maior quantidade de narcisismo.
[...] Ser amada é uma necessidade mais forte que amar. (FREUD, 1933 [1932], v.
22, p. 130-131)
Embora, para alguns, até aqui, pudesse parecer que Freud ainda oscilasse em sua formulação a
respeito do falo e de sua representação, devemos concordar que, após a citação acima, todo o
caminho anteriormente apontado pelo autor se concretiza, fundamentando as considerações
que separam o biológico e o subjetivo nas escolhas sexuais, pois não há uma naturalidade
desejante que corresponda à anatomia diferencial dos corpos. Além do mais, ao
reexaminarmos a questão, pensando com Lacan a partir das “Fórmulas da sexuação”
apresentadas no Seminário 20 - Mais, ainda - observaremos que o destaque dado pelo autor
ratifica que na escolha do sexo não devemos confundir a escolha da posição sexuada, dentro
da partilha dos sexos, com a escolha do objeto enquanto possibilidade de desejar um homem
ou uma mulher; e, desta forma, tudo que sai do esquema da dita normalidade é, justamente, a
sexualidade que permeia o sujeito da escolha.
Portanto, no presente trabalho, definiremos de forma restrita – para que não ocorram dúvidas
posteriores – os seguintes adjetivos: os termos “Homem” e “Mulher” serão designados
unicamente pela anatomia – pênis ou vagina. A “Atividade” e a “Passividade” serão tratadas
segundo a maior quantidade de libido investida no objeto ou, respectivamente, a maior
quantidade de libido investida no eu. Por fim, o “Masculino” e o “Feminino” estarão
relacionados à dinâmica pulsional, pela qual o sujeito se posiciona perante o desejo e os
objetos, escolhendo ora o movimento de amar e ora o de ser amado.
Logo, podemos concluir que um indivíduo, homem ou mulher biológico (pênis/vagina),
independente de sua escolha de posição sexuada – enquanto interpretação do desejo do Outro
– como homem ou mulher, sempre terá uma libido ativa como força motriz de sua vida
sexual, desvinculada de sua finalidade pulsional – enquanto dinâmica – ter um maior objetivo
masculino/amar ou feminino/ser amado por um objeto biologicamente definido como homem
ou mulher.
Em suma, temos agora a possibilidade de verdadeiramente diferenciar a escolha do sujeito e a
escolha de objeto, posicionando a homossexualidade como mais uma possibilidade de
encontro, a partir das múltiplas escolhas do sujeito.
73
4
DESCONSTRUINDO
A
HOMOSSEXUALIDADE
ENQUANTO PERVERSÃO
Neste último capítulo, faremos um relançamento da base da psicanálise, a partir dos conceitos
reexaminados até então, a fim de abrirmos caminho, com minucioso olhar, para os pontos
fundamentais que alicerçam e desconstroem qualquer possibilidade de exclusivo
intrincamento entre homossexualidade e perversão.
Assim, examinaremos o conceito de perversão segundo a orientação freudiana e lacaniana
para então apresentarmos a homossexualidade desvinculada de qualquer estrutura que a
determine; ou seja, afirmando a existência da homossexualidade neurótica, perversa e
psicótica.
A partir da releitura do caso da jovem homossexual, revisaremos a definição de sua estrutura
clínica para, por fim, apontarmos para leituras homofóbicas que autores contemporâneos
fazem de maneira antipsicanalítica, utilizando-se de estereótipos explicativos que não se
sustentam universalmente e que, por conseqüência, levam ao confuso enlace entre estrutura
perversa e perversão polimorfa.
4.1 A ESTRUTURA PERVERSA X PERVERSÃO POLIMORFA
Como verificamos até aqui, todo o percurso de Freud caminha para uma desconstrução da
psicologização baseada no normal X patológico. No entanto, verificamos também que a
religião, a ciência e a moral sexual fazem crer que a reprodução é o objetivo do sexo,
determinando a anatomia como destino, pelo que tudo que escapa a esse esquema de
completude pode ser considerado anomalia.
O termo perversão, utilizado de forma generalista, designa práticas sexuais proscritas do
social: a partir de uma norma moral, o perverso seria aquele que não a respeitaria. Contudo, a
sexualidade humana não é outorgada pelo biológico e através da teoria psicanalítica
74
verificaremos que ela se constrói por mecanismos de defesa específicos que podem nos levar
ao entendimento da escolha48 da estrutura.
Desta forma, iniciaremos nossa reflexão a partir do conceito de perversão desenvolvido por
Freud, no qual Três ensaios sobre a teoria da sexualidade é, novamente, o eixo vinculador
para o entendimento da questão da estrutura perversa enquanto o que vamos chamar de
perversão propriamente dita.
Como já assinalado, o estudo feito por Freud dos sexólogos da época, que faziam inventários
a respeito das “anomalias sexuais”, nos quais a perversão era basicamente aquilo que se
desviava do encontro dos genitais para a procriação, é desmistificado quando o autor, de
forma absolutamente original, apresenta a sexualidade de forma plástica, não adaptativa e sem
relação com o coito em si:
É natural que os médicos, que inicialmente estudaram as perversões em exemplos
bem marcados e em condições especiais, tenham-se inclinado a adjudicar-lhes o
caráter de um sinal de degeneração ou doença, tal como havia ocorrido com a
inversão. Não obstante, é ainda mais fácil descartar tal opinião no presente caso. A
experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo as
menos graves dentre elas, é um componente que raramente falta na vida sexual das
pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade. Quando as
circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais podem substituir durante
um bom tempo o alvo sexual normal por uma dessas perversões, ou arranjar-lhe um
lugar ao lado dele. Em nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual
normal que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si só, para
mostrar quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra perversão. (FREUD,
1905, v. 7, p. 152, Grifo nosso)
Neste texto, Freud apresenta o conceito de perversão como a permanência, na vida adulta, de
características perverso-polimorfas, típicas da sexualidade infantil; ou seja, toda a superfície e
todos orifícios do corpo que possibilitam à criança a oportunidade de experimentar sua
perversidade polimorfa no interior da sexualidade dita normal, ao longo do desenvolvimento,
retornam como objetos eróticos (prazer preliminar) no ato sexual adulto:
A propagação do interesse sexual para outras partes do corpo, com todas as suas
variações, em princípio nada nos oferece de novo; nada acrescenta ao conhecimento
da pulsão sexual, que nisso não faz senão proclamar sua intenção de se apoderar do
objeto sexual em todos os sentidos. (FREUD, 1905, v. 7, p. 144)
48
A “escolha da neurose”, descrita por Freud em 9 de dezembro de 1899 (Carta 125), aponta para o fato de que
até a estrutura subjetiva é responsabilidade do sujeito (neurose, psicose, perversão).
75
Portanto, foi colocando a criança em seu lugar de sujeito sexual que Freud pôde demonstrar as
inúmeras práticas que ela experimenta ao longo de seu desenvolvimento e que, até então,
estavam classificadas nos manuais patológicos como perversão. O autor acrescenta:
Ao demonstrar as moções perversas enquanto formadoras de sintomas nas
psiconeuroses, aumentamos extraordinariamente o número de seres humanos que
poderiam ser considerados perversos. [...] Assim, a extraordinária difusão das
perversões força-nos a supor que tampouco a predisposição às perversões é uma
particularidade rara, mas deve, antes, fazer parte da constituição que passa por
normal. (FREUD, 1905, v. 7, p. 162)
A partir daí, as perversões passam a estar relacionadas com a sexualidade de todos, na qual a
parcialidade da pulsão nunca é inteiramente superada, restringindo o diagnóstico do que
poderia ser entendido como perversão propriamente dita: “Quando há nela as características
de exclusividade e fixação, então nos vemos autorizados, na maioria das vezes, a julgá-la
como um sintoma patológico”. (FREUD, 1905, v. 7, p. 153)
Contudo, por que a perversão, ainda hoje, é sinônimo do ato de desviar? Por que a perversão
traz a designação de uma norma moral que não considera a dimensão do desejo sexual?
Vimos que em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Freud expôs o fato de que a
disposição sexual constitucional da criança é tão variada que merece ser chamada de
“perversa polimorfa”, para em seguida, a partir de sua concepção do recalcamento,
acrescentar a este fato a disposição do chamado comportamento normal da função sexual que
brota dessa variação, concluindo que:
Através da referência aos caracteres infantis da sexualidade pude estabelecer um
vínculo simples entre a saúde, a perversão e a neurose. A normalidade mostrou ser
fruto do recalcamento de certas pulsões parciais e certos componentes das
disposições infantis, bem como da subordinação dos demais à primazia das zonas
genitais a serviço da função reprodutora; as perversões correspondem a perturbações
dessa síntese através do desenvolvimento preponderante e compulsivo de algumas
das pulsões parciais, e a neurose remonta a um recalcamento excessivo das
aspirações libidinais. Visto que quase todas as pulsões perversas da disposição
infantil são comprováveis como forças formadoras de sintomas na neurose, embora
se encontrem nela em estado de recalcamento, pude descrever a neurose como o
“negativo” da perversão. (FREUD, 1905, v. 7, p. 263)
No entanto, mesmo após a demonstração de Freud a respeito da sexualidade como um
conjunto de práticas e estimulações das zonas erógenas espalhadas pelo corpo, nos
deparamos, dentro do próprio campo psicanalítico, com um discurso preconceituoso que
associa estrutura perversa, homossexualidade e perversão polimorfa, levando a idéias préconcebidas do que seria normal.
76
Se a sexualidade é sempre perturbadora quando é testemunha de um desejo, podemos nos
questionar: o que será que é entendido como normal na clínica psicanalítica? A moral sexual?
Ou a opinião do próprio analista?
A partir do desejo sexual, submetido às leis da linguagem, que encontra como vicissitude o
rompimento da norma, levando a experiência do desejo a seus limites, só poderemos insistir
em tratar a perversão a partir do discurso psicanalítico, sem que nossa elaboração acarrete
mais uma resposta moralista, através do reconhecimento da estrutura que cabe ao modo de
funcionamento psíquico destes sujeitos.
Assim, a perversão, enquanto expressão da perversão polimorfa, não trata de estrutura e será
em 1927, no texto sobre o Fetichismo, que veremos o movimento de Freud para definir e
restringir tal conceito.
O primeiro estudo de Freud sobre o fetichismo encontra-se nos Três ensaios. Nessa primeira
descrição o autor não vai muito além de sustentar que a escolha de um fetiche constitui um
efeito posterior de alguma impressão sexual recebida na primeira infância. Contudo, logo
depois, em 1910, Freud acrescenta em nota de rodapé sua primeira afirmativa de que o fetiche
representa o pênis que falta à mulher, e é sobre esse tema que o autor irá se debruçar no texto
sobre o fetichismo.
Suas observações o levam a apontar para o fato de que, embora a escolha objetal do sujeito
possa ser dominada por um fetiche, este raramente é sentido como sintoma ou sofrimento;
pelo contrário, tais sujeitos costumam mostrar-se satisfeitos com a escolha. Mas como ocorre
a escolha do fetiche? Deixemos que Freud explique:
Ao enunciar agora que o fetiche é um substituto para o pênis, decerto criarei um
desapontamento, de maneira que me apresso a acrescentar que não é um substituto
para qualquer pênis ocasional, e sim para um pênis específico e muito especial, que
foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso
equivale a dizer que normalmente deveria ter sido abandonado; o fetiche, porém, se
destina exatamente a preservá-lo da extinção. Para expressá-lo de modo mais
simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho
outrora acreditou e que – por razões que nos são familiares – não deseja abandonar!
(FREUD, 1927, v. 21, p. 155)
Portanto, ao se recusar a tomar conhecimento do fato de que a mulher não tem pênis – ou,
mais precisamente, de que a mãe não tem pênis – por acarretar a hipótese de que esta foi
77
castrada e por conseqüência seu próprio pênis também corre perigo, o sujeito, por precaução,
prefere desmentir essa idéia.
Aqui, acreditamos na suma importância de distinguir a recusa do afeto enquanto recalque no
neurótico da recusa da idéia de castração enquanto desmentido na perversão, pois, embora o
autor ainda não fale de estrutura neste artigo, dá indícios de que na situação da recusa da idéia
a percepção não é inteiramente apagada e, pelo contrário, permanece precisando de uma ação
enérgica para manter tal recusa, colocando alguma coisa como substituto da falta. Desta
forma, tanto a recusa da idéia quanto a afirmação da castração encontram caminho na
construção do próprio fetiche; ou seja, o sujeito afirma a castração ao recusá-la.
Logo, o mecanismo de defesa do perverso é o desmentido e o fetiche é o que mantém a recusa
da castração, pois o perverso é aquele que sabe da castração, mas mesmo assim...
Desmentido? Por que não falar em renegação ou denegação? Façamos uma necessária pausa
para melhor abordarmos o emprego de diferentes termos utilizados para denominar o
mecanismo de defesa da estrutura perversa, pois o termo desmentido – utilizado por nós –
nem sempre é aceito ou igualmente referenciado por todos.
Se perpetrarmos um rápido levantamento, constataremos que os termos renegação e
denegação muitas vezes são utilizados como sinônimos do mecanismo de desmentir. Da
mesma forma, averiguamos que, em alguns dicionários de psicanálise, o conceito de
desmentido encontra-se descrito como renegação.
Parece-nos que o equívoco se dá pelo fato de ambos os termos terem surgido – em épocas
próximas – para referenciar mecanismos de defesa utilizados pelo sujeito. No entanto, deve-se
esclarecer que o termo “Verneinung” (denegação ou negação) foi utilizado por Freud, em
1925, para apontar – a partir de uma explicação metapsicológica – como o recalcado é
reconhecido de maneira negativa pelo sujeito; de outra forma, lançando mão do termo
“Verleugnung” (renegação), em 1927, o autor vem alvitrar uma nova idéia para um
mecanismo de defesa que seria específico do perverso.
Contudo, tanto a tradução de “Verneinung” quanto a tradução de “Verleugnung” acabaram
por suscitar numerosas polêmicas.
78
O fato é que, em 1934, o termo “Verneinung” foi traduzido pelo psicanalista Henri Hoesli por
negação (négation). Em 1956, o filósofo Jean Hyppolite preferiu traduzir o mesmo termo por
denegação (dénégation) e, em 1967, Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis atribuíram o
termo denegação à “Verneinung” e recusa à “Verleugnung”.
Contudo, foi o psicanalista francês Guy Rosolato quem propôs traduzir “Verleugnung” por
desmentido (désaveu) e, assim, melhor caracterizar, no campo psicanalítico, a dupla operação
– reconhecimento e recusa – típica da estrutura perversa e que, até então, havia sido
comumente confundida com o conceito de denegação. (ROUDINESCO; PLON, 1998)
Agora, podemos nos debruçar na seguinte questão: o que resulta do ato de desmentir? Se
partirmos do princípio de que o ego de uma criança encontra-se influenciado pela exigência
pulsional de satisfação até ser surpreendido por uma experiência que lhe aponta um perigo
real vindo desta satisfação, podemos concluir que, a partir de então, passa a existir um
conflito entre a exigência pulsional e a proibição por parte da realidade, em função da qual o
ego deve decidir o que fazer.
Segundo Freud em A divisão do ego no processo de defesa, o ego pode ceder à satisfação da
pulsão reconhecendo o perigo real ou conservar a satisfação, rejeitando a realidade.
Entretanto, a criança não exclui um ou outro, mas toma ambos os cursos simultaneamente:
Ela responde ao conflito por duas reações contrárias, ambas válidas e eficazes. Por
um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a realidade e recusa-se a
aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo alento, reconhece o perigo da
realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico e
subseqüentemente tenta desfazer-se do medo. Deve-se confessar que se trata de uma
solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na disputa obtêm sua
cota: permite-se que a pulsão conserve sua satisfação e mostra-se um respeito
apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e
esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no ego, a qual nunca se cura, mas
aumenta à medida que o tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito
persistem como ponto central de uma divisão (splitting) do ego. (FREUD, 1940
[1938], v. 23, p. 293)
Em geral, o resultado do susto da castração acarreta a escolha entre ceder frente à ameaça e
obedecer à proibição, abandonando no todo ou em parte a satisfação pulsional. Todavia, no
caso da perversão, encontramos outra escolha.
Ao criar um substituto para o pênis faltoso na mulher, um fetiche, o sujeito recusa a realidade
poupando seu próprio pênis; ou seja, ele não acredita na ameaça que lhe foi feita por não
79
reconhecer que as mulheres sejam castradas e é esse comportamento que chama a atenção de
Freud como sendo um afastamento da realidade, ainda que diferente da psicose:
O menino não contradisse simplesmente suas percepções, e alucinou um pênis onde
nada havia a ser visto; ele não fez mais do que um deslocamento de valor –
transferiu a importância do pênis para outra parte do corpo, procedimento em que
foi auxiliado pelo mecanismo de regressão (de uma maneira que não precisa ser
explicada aqui). Esse deslocamento, é verdade, relacionou-se apenas ao corpo
feminino; com referência a seu próprio pênis, nada se modificou. Essa maneira de
lidar com a realidade, que quase merece ser descrita como astuta, foi decisiva
quanto ao comportamento prático do menino. (FREUD, 1940 [1938], v. 23, p. 295)
Embora o presente artigo, por alguma razão inexplicada, tenha sido deixado inacabado pelo
autor, ele retomou o tema, um pouco mais tarde, em Esboço de psicanálise, finalizando suas
considerações a respeito da estrutura perversa.
Será no capítulo VIII, intitulado O aparelho psíquico e o mundo externo, que veremos Freud
utilizar o termo “estrutura” para definir o que até então vinha formulando sobre fetiche e
perversão.
Iniciaremos com a seguinte citação:
Já vimos como o fraco e imaturo ego, no primeiro período da infância, é
permanentemente prejudicado pelas tensões a que é submetido em seus esforços de
desviar os perigos que são peculiares a esse período da vida. As crianças são
protegidas contra os perigos que as ameaçam do mundo externo pela solicitude dos
pais; pagam esta segurança com um temor de perda de amor que as deixaria
desamparadas face aos perigos do mundo externo. Este fator exerce influência
decisiva no resultado do conflito quando um menino se encontra na situação do
complexo de Édipo, no qual a ameaça ao seu narcisismo representada pelo perigo da
castração, reforçado desde fontes primevas, se apossa dele. Impulsionada pela
operação combinada dessas duas influências, o perigo real e presente e o perigo
relembrado com sua base filogenética, a criança embarca em suas tentativas de
defesa – recalque – que são momentaneamente eficazes, mas que, todavia, se tornam
psicologicamente inadequadas quando a reanimação posterior da vida sexual traz
reforço às exigências pulsionais que haviam sido repudiadas no passado. (FREUD,
1940 [1938], v. 23, p. 213-214)
Como sabemos, o ego deve sua origem e características à sua relação com o mundo externo e,
desta forma, podemos presumir que os estados patológicos estão relacionados com o
afrouxamento do ego em sua relação com o mundo externo que, por conseqüência, gera uma
aproximação dele com o id. Contudo, também sabemos que essa cisão do ego pode ser
encontrada em muitas outras situações em que o ego se defronta com a necessidade de
construir uma defesa, incluindo o caso do recalque na neurose.
80
Assim, a questão está nos diferentes mecanismos de cisão do ego. Deixemos que Freud
esclareça:
O ponto de vista que postula que em todas as psicoses há uma divisão do ego
(splitting of the ego) não poderia chamar tanta atenção se não se revelasse passível
de aplicação a outros estados mais semelhantes às neuroses e, finalmente, às
próprias neuroses. Esta anormalidade, que pode ser englobada entre as perversões,
baseia-se, como é bem sabido, em o paciente (que é quase sempre do sexo
masculino) não reconhecer o fato de que as mulheres não possuem pênis – fato que
lhe é extremamente indesejável, visto tratar-se de uma prova da possibilidade de ele
próprio ser castrado. Nega, portanto, a sua própria percepção sensorial, que lhe
mostrou que falta um pênis aos genitais femininos, e aferra-se à convicção contrária.
A percepção negada, contudo, não fica inteiramente sem influência, pois, apesar de
tudo, ele não tem a coragem de afirmar que realmente viu um pênis. Em vez disso, o
paciente apodera-se de alguma outra coisa – uma parte do corpo ou algum outro
objeto – e lhe atribui o papel do pênis sem o qual não pode passar. Trata-se
geralmente de algo que ele realmente viu no momento em que viu os genitais
femininos, ou então é algo que pode apropriadamente servir como substituto
simbólico do pênis. (FREUD, 1940 [1938], v. 23, p. 216)
Portanto, a criação do fetiche tenta destruir a prova da castração, evitando o temor desta, pois,
ao recusar sua percepção, o sujeito já está reconhecendo a falta e é desta forma que nos
referimos à cisão do ego, na qual as duas atitudes persistem lado a lado sem se influenciarem.
Mas ainda permanece a questão: se o ego, com freqüência, se desvia de exigências aflitivas do
mundo externo, recusando a percepção, como distinguir o mecanismo utilizado pelo sujeito
para tal desligamento da realidade?
É, na verdade, uma característica universal das neuroses que estejam presentes na
vida mental do indivíduo, em relação a algum comportamento particular, duas
atitudes diferentes, mutuamente contrárias e independentes uma da outra. No caso
das neuroses, entretanto, uma dessas atitudes pertence ao ego e a contrária, que é
recalcada, pertence ao id. A diferença entre este caso e o outro [examinado no
parágrafo anterior] é essencialmente uma diferença topográfica ou estrutural, e nem
sempre é fácil decidir, num caso individual, com qual das duas possibilidades se está
lidando. Elas possuem, contudo, a seguinte importante característica em comum.
Seja o que for que o ego faça em seus esforços de defesa, procure ele negar uma
parte do mundo externo real ou busque rejeitar uma exigência pulsional oriunda do
mundo interno, o seu sucesso nunca é completo e irrestrito. O resultado sempre
reside em duas atitudes contrárias, das quais a derrotada, a mais fraca, não menos
que a outra, conduz a complicações psíquicas. (FREUD, 1940 [1938], v. 23, p. 217218)
Em suma, podemos concluir que na psicose o sujeito foraclui a realidade de forma completa e
eficaz, enquanto que no caso do recalque na neurose e do desmentido na perversão o
desligamento do ego em relação à realidade do mundo externo nunca alcança êxito completo.
Contudo, embora permaneça claro que a perversão – tal como a homossexualidade – ainda
aparece como uma estrutura irrigada de preconceitos, pretendemos retificar esta idéia,
81
afirmando que nosso objetivo vai na contramão do juízo de valores. Não viemos desvendar
este errôneo intrincamento com o objetivo de assegurar que a homossexualidade não é má e,
portanto, não é perversão. Pelo contrário, aspiramos ao entendimento da homossexualidade
enquanto trans-clínica e à separação de atributos e adjetivos quando nós, analistas,
referenciamos conceitos psicanalíticos.
Logo, estrutura perversa não quer dizer perversidade, nem perversão polimorfa e, da mesma
forma, nada sustenta a relação entre escolha de objeto e escolha de estrutura; ou melhor
dizendo, entre homossexualidade e perversão, já que o que é perversão, segundo a psicanálise,
é o desmentido da castração.
4.2 A JOVEM HOMOSSEXUAL: NEUROSE OU PERVERSÃO?
Desde a publicação do caso da jovem homossexual, em 1920, nos deparamos com uma série
de questões que permanecem em aberto. Embora o caso seja bastante conhecido e trabalhado
por diversos autores, constatamos uma redução da homossexualidade feminina que aponta
para o complexo de masculinidade, tentando provar a existência da estrutura perversa na
mulher ou simplesmente empurrando-a para uma histeria na qual o amor pelo pai e o segredo
da feminilidade encontram-se no cerne da questão.
De fato, a homossexualidade feminina representa uma especificidade na prática analítica que
Freud fez questão de apontar. O autor esclarece que, embora esta não fosse menos freqüente
que a masculina, havia, até então, sido negligenciada por diversos campos da ciência,
inclusive pela própria psicanálise.
Contudo, como já assinalado nos capítulos anteriores, não devemos nos contentar com a
possibilidade de toda a questão da jovem acabar no seu posicionamento assumido em relação
à fase fálica, como se, a partir do sexo biológico dos genitores, a identificação com o mesmo
sexo e o amor pelo sexo oposto fosse capaz de alcançar uma futura escolha de objeto
heterossexual.
Desta forma, vamos nos dedicar a apontar os fatores que se apresentam como relevantes para
aqueles que insistem em tratar a jovem enquanto perversa, para que, a partir disso, possamos
82
rever o caso, tentando capturar, justamente, as entrelinhas de seu discurso com Freud, a fim de
melhor posicionar suas escolhas, pois, como já é sabido, a escolha da dama como objeto é
uma coisa, sua escolha de posição sexuada é outra e, da mesma forma, não são essas escolhas
que irão determinar a dita estrutura perversa da jovem.
Relembrando o caso, verificamos que a jovem vienense chega a Freud, levada por seus pais,
em virtude de gostar de uma mulher e conseqüentemente tentar suicídio. Aflitos com a
situação e encarando a mesma como “degenerada”, os pais acreditavam que Freud fosse o
único capaz de fazer com que a jovem retornasse a um estado “normal”.
Assim, o autor inicia o relato do caso descrevendo que a paciente em si não sofria de nada e
nem mesmo se queixava de sua condição, o que já nos aponta para a diferença entre o desejo
do sujeito e o desejo de terceiros como aspecto desfavorável da situação de análise em que os
pais visam à cura com a remoção da importuna “inversão”, enquanto o próprio sujeito não
demanda e não sofre de conflito interno.
A partir de então, utilizaremos o mesmo procedimento empregado por Freud no decorrer de
sua obra. Vamos inserir, como artifício, um suposto leitor que identifique a homossexualidade
da jovem atrelada à estrutura perversa, para que assim possamos dialogar e apontar uma série
de outras saídas para o caso, incluindo nossa proposta de neurose obsessiva.
Justamente por não se tratar de um caso clínico, em que a paciente se encontrava em análise,
ficamos mais à vontade para transitar nos recortes fornecidos, os quais podemos denominar de
“Entrevistas preliminares”, embora o próprio autor não tenha chegado a qualquer diagnóstico
para uma possível direção de tratamento da jovem.
A questão é: deve-se curar o desejo do sujeito? Qual o desejo considerado correto? Já de
início devemos apontar para o erro técnico cometido por Freud ao aceitar a jovem em análise
em lugar de seu pai que, no entanto, era o único a demandá-la.
Vejamos o que o próprio autor nos assiná-la:
Ela não procurou enganar-me dizendo sentir alguma necessidade urgente de libertarse de seu homossexualismo. Pelo contrário, disse ser incapaz de imaginar outra
maneira de enamorar-se, mas acrescentou que, por amor aos pais, auxiliaria
honestamente no esforço terapêutico, de vez que lhe doía muito ser-lhes a causa
de tanto pesar. (FREUD, 1920, v. 18, p. 164, Grifo nosso)
83
E acrescenta:
A análise prosseguiu quase sem sinais de resistência, a paciente participando
ativamente com o seu intelecto, embora emocionalmente bastante tranqüila. [...] A
impressão que se tinha de sua análise não era diferente da que se tem de um
tratamento hipnótico, em que a resistência, da mesma maneira, se retirou para certa
linha limítrofe, além da qual mostra ser inconquistável. A resistência com muita
freqüência emprega táticas semelhantes, táticas russas, como se poderia chamálas, em casos de neuroses obsessivas. Em conseqüência, durante certo tempo, esses
casos apresentam os mais claros resultados e permitem uma profunda compreensão
interna (insight) da causa dos sintomas. Dentro em pouco, porém, começa-se a
imaginar como um progresso tão acentuado na compreensão analítica pode estar
desacompanhado até mesmo da mais ligeira mudança nas compulsões e inibições do
paciente, até que por fim se percebe que tudo quanto foi realizado está sujeito a
uma reserva mental de dúvida e que por trás dessa barreira protetora a
neurose pode sentir-se segura. (FREUD, 1920, v. 18, p. 174-175, Grifo nosso)
Este primeiro ponto já pode ser pensado como um facilitador para nosso leitor que toma a
jovem como perversa. Decerto que o perverso, na maioria dos casos, não demanda análise, já
que seu objeto fetiche imaginário consegue tamponar seu sofrimento de uma forma que,
comparada ao do neurótico, podemos chamar de eficaz. Entretanto, este não é o único
requisito para tal diagnóstico, já que muitos sujeitos não apresentam sofrimento quanto as
suas escolhas de objeto e, pelo contrário, chegam até a enfrentar as regras ditadas pela moral
sexual, em prol da sustentação de seu desejo.
Contudo, para Freud, a história sexual da jovem é o que permite a explicação para a sua
posterior escolha de objeto e, de forma concisa, o autor relata que na infância a moça passou
pela atitude “normal” característica do complexo de Édipo feminino, sem lembrança de
quaisquer traumas sexuais, renunciando ao desejo incestuoso pelo pai e adotando a
feminilidade.
Na seqüência, quando estava com aproximadamente cinco anos, começara a substituir seu pai
pelo irmão mais velho e a comparação entre a diferença existente nos órgãos genitais do
irmão e os seus acarretou-lhe fortes impressões.
Com aproximadamente seis anos, nasce seu segundo irmão (fato que não influencia seu
desenvolvimento). Aos treze ou quatorze anos, brota uma afeição terna para com um menino
de menos de três anos de idade que freqüentava o “play”.
Aqui, apresentam-se algumas novas questões: que tipo de interesse a jovem tinha pelo
menino? Tratava-se do desejo da jovem de ser mãe e ter um filho? Não será possível que seu
84
interesse fosse, na realidade, pela mãe49 da criança? A única coisa que podemos afirmar é que
a jovem nunca havia se interessado por homens; entretanto, o fato destacado por Freud referese aos dezesseis anos da moça e ao concomitante nascimento de seu terceiro irmão.
Segundo o autor, em pouco tempo, a moça desloca seu interesse para mulheres maduras,
porém de aparência jovem:
No exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo
de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se
profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo
de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer.
Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente
odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do
pai e dos homens. Passando esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminilidade
e procurou outro objetivo para sua libido. (FREUD, 1920, v. 18, p. 169)
Desta forma, nosso leitor, inadvertidamente, julgaria que a referência vivida inicialmente pela
jovem, de uma maneira inocente, ao objeto imaginário sofre uma crise devido à intervenção
do objeto real – a criança dada pelo pai à mãe –, conduzindo a jovem à frustração: é neste
momento que se produz a tal inversão.
A impossibilidade de atingir o objeto de desejo traduz-se por uma reversão da posição
subjetiva: a jovem passa a identificar-se com o objeto numa regressão narcísica, modificando
sua posição sexual – exprimindo seu ressentimento com relação ao pai.
Entretanto, devemos pontuar que, a todo o momento, Freud nos relembra da importância do
fator bissexual universal dos seres humanos, explicando que em todos nós encontramos
oscilações da libido entre objetos masculinos e femininos no decorrer da vida e que a presença
de um “fator especial” é o que irá favorecer um lado ou outro.
Portanto, podemos pensar que, quando o terceiro irmão da jovem nasceu, esta já estava
madura e com desejos próprios – como bem assinala Freud – e, desta forma, somos levados a
rever e questionar sua relação com seus pais.
Segundo Freud, o pai da jovem era um homem sério, conceituado e rígido para com os filhos.
Ao descobrir a homossexualidade da moça, ficara enfurecido e determinado a combatê-la por
49
Freud descreve que, em conseqüência do apego da jovem pelo menino, gerou-se uma amizade duradoura entre
elas.
85
todos os meios em seu poder. Passando a encarar a mesma como degenerada, lhe faz todos os
tipos de ameaça até que, por fim, a encaminha a Freud, aguardando para tomar sua mais forte
medida: um casamento.
Por sua vez, a mãe da moça – uma mulher jovem que sofrera durante alguns anos de
problemas neuróticos – não tomava a homossexualidade da filha de forma tão trágica quanto
o pai. Ao contrário, desfrutara da confiança da jovem, chegando a ser sua confidente por certo
tempo.
Freud nos adverte que, embora a jovem sentisse afeição pela mãe, tinha poucos motivos para
isso, já que esta, ainda moça, via na filha uma competidora inconveniente, favorecendo os
filhos homens em detrimento dela e limitando qualquer relação entre a jovem e o pai.
Seguindo a descrição do autor, encontramos um ganho secundário em jogo nessa dialética
familiar. Primeiramente, quando a jovem, em sua nova posição, deixa os homens para a mãe,
ela tenta, de certa forma, retirar essa antipatia que a mãe demonstra para com ela e cria então
a possibilidade de essa mãe amá-la, já que não mais se encontra no papel de rival. Por outro
lado, compreende como pode ferir e vingar-se do pai.
Logo, sua relação com a mãe, que fora ambivalente desde o início, facilitou que a jovem
revivesse seu primitivo amor por ela. Tal fato lhe foi (para a mãe) de grande agrado, já que
esta entendia a retirada da filha como um favor, enquanto que, diferentemente, o pai,
enfurecido, entendia a homossexualidade da filha como uma vingança deliberada contra ele.
Vingança ou rivalidade? O fato é que ansiar pelo amor de sua mãe é tão compreensível quanto
tomar o pai como ideal.
Renunciando a sua feminilidade, a jovem adquire de forma reativa uma homossexualidade
quando dirige sua libido para a mãe como objeto de amor e adota uma posição de desafio em
relação ao pai. Logo, Freud entende que a dama é um substituto da mãe e que, ao amar como
um homem50, a jovem se encarrega de tirá-la da condição sexualmente indigna em que se
encontra.
50
Contribuições à psicologia do amor I (1910).
86
Novamente, tal colocação leva nosso leitor a reforçar a teoria da dama fetichizada como
comprovação da perversão da jovem, pois, a partir da idéia de que a dama possui atributos
femininos – ancorados numa fixação primária da jovem na mãe – e atributos viris –
características do irmão mais velho –, alguns autores concluem que a dama nada mais é do
que uma mãe fetichizada.
Contudo, caro leitor, se a perversão tem como respaldo a fixação primária, qual seria a
diferença para com a neurose? Não haveria Édipo nem castração? E o objeto fetiche
imaginário seria alguma característica do irmão? Algum traço real? Façamos um paralelo com
a visão pela qual Lacan esboça os estádios que levam à inversão da jovem, para então
pensarmos em como isso se desencadeou. Por que uma relação ambivalente com a mãe e uma
rivalidade com o pai?
De forma resumida, observamos que o autor nos aponta que, quando a jovem está na
puberdade, a equivalência pênis imaginário/criança a instaura como mãe imaginária com
referência ao pai como função simbólica – aquele que pode dar o falo –, o pai potente,
registrado de forma inconsciente, depois do declínio do Édipo. É neste estádio que Lacan diz
se produzir o momento que denominou fatal, quando o pai intervém no real para dar uma
criança à mãe, fazendo com que a jovem, que se mantinha numa relação imaginária com a
criança, se depare com uma criança real. Frustrada, transforma a equação e sua relação com o
pai – antes situada na ordem simbólica – passa para uma relação imaginária.
Observamos que, nesta época, Lacan situa a perversão a partir de uma relação imaginária e
aponta ser a mãe quem tira da filha a atenção do pai e introduz o elemento da frustração real,
determinante na formação da dita constelação perversa; ou seja, a dimensão do pai imaginário
é o fator prevalente no qual o autor destaca a perversão da jovem:
Podemos distinguir cinco tempos nos fenômenos principais da instauração desta
perversão – o fato de que a consideremos como fundamental ou adquirida pouco
importa. Nesta ocasião, sabemos quando ela foi indicada, depois estabelecida, e
depois precipitada, temos todas as suas molas e temos seu ponto de partida. Esta é
uma perversão constituída tardiamente, o que não quer dizer que não tivesse suas
premissas em fenômenos primordiais. (LACAN, 1957, p. 123)
Portanto, vemos que a explicação dada pelo autor para a jovem homossexual é amparada por
amar como um homem, por se identificar à função do pai e escolher a dama como objeto de
87
amor em substituição da criança. A dama real, com o mais-além – o pênis simbólico –,
preenche o que inicialmente encontrava-se no nível imaginário.
Segundo Lacan, instaura-se uma outra relação imaginária que a jovem completa como pode:
Essa relação é marcada pelo fato de que aquilo que estava articulado de maneira
latente no nível do grande Outro começa a se articular de maneira imaginária, à
maneira da perversão, e é, aliás, por essa razão e não por outra que isso vai resultar
numa perversão. A moça se identifica com o pai e assume o papel deste. Torna-se
ela mesma o pai imaginário. Ela também conserva seu pênis e agarra-se a um objeto
que ela não tem, ao qual é preciso, necessariamente, que ela dê este algo que ela não
tem. (LACAN, 1957, p. 131)
Assim, tomando a neurose como o negativo da perversão, Lacan finaliza suas constatações a
respeito da jovem, no Seminário 4, comparando-a com o caso Dora e, embora saibamos do
surpreendente salto que Lacan dará na abordagem deste caso entre o Seminário 4 e o
Seminário 10 – melhor especificando, o conceito de objeto a –, será a partir dessas
observações que nos esforçaremos para avançar no sentido contrário, desconstruindo a dita
perversão e, então, introduzindo uma nova hipótese estrutural para a jovem.
A questão para Lacan é que Dora é uma histérica com um pai impotente, enquanto a jovem,
tratada como perversa, sabe da potência de seu pai. Para Lacan, enquanto Dora admite ser
amada por seu pai, para além da Sra. K, justamente por não saber onde se situar, exprimindo
em seus sintomas a interrogação sobre o que é ser mulher, a jovem reconhece que seu pai
escolheu sua mãe por esta lhe conferir mais vantagens e reage, demonstrando ao pai como se
pode amar alguém pelo que não tem, pois sabe que o pênis simbólico está em seu pai. Assim,
mantém seu desejo pelo falo paterno, através de uma relação imaginária com a dama.
Portanto, vemos que até este momento, em Lacan, a dita perversão da jovem consiste em
velar a falta com um substituto – o filho como imagem fálica – e, ao se identificar com o pai,
ela dá à dama o que não tem; ou seja, houve uma troca, um deslizamento, quando o pai
simbólico instaura o lugar da frustração do objeto real – a criança – e a jovem identifica-se
com aquele que poderia dá-lo, mas recusou-se – o pai imaginário –, fazendo então o luto do
objeto perdido. Assim, nosso leitor da jovem perversa se respalda no fato de que esta vela a
falta fálica na dama pelo dom da criança como imagem fálica.
Aqui, vale apontarmos para algo surpreendente, pois Lacan, ao falar de perversão, está
baseando-se apenas no plano imaginário. O autor situa o diagnóstico de perversão,
88
unicamente, pela passagem do plano simbólico ao plano imaginário. E então nos
perguntamos: será que essa definição caracteriza uma estrutura? Não é o próprio Lacan quem
coloca que o modelo da perversão é o fetichismo? Não é ele também quem coloca que o
mecanismo de defesa da perversão é o desmentido? Verificamos que, em nenhum momento,
tais características aparecem neste caso e, da mesma forma, ressaltamos que, quando se trata
da simples passagem do plano simbólico para o plano imaginário, qualquer sujeito –
psicótico, neurótico e perverso – pode fazer uma identificação com o outro sexo.
Devemos lembrar ao nosso leitor que o plano imaginário não define estrutura e que a
passagem da jovem de uma relação no plano simbólico para o plano imaginário – no qual
ocorrem identificação e rivalidade – apenas serve para nos mostrar o aspecto fenomênico da
coisa. Quantas mulheres não passam por isso?
Façamos então um retrocesso no caso e pensemos o seguinte: a partir da bissexualidade do
sujeito, o fato é que os desejos das crianças dos dois sexos sempre têm uma dupla visada, a
fim de obter todos os privilégios de que, supostamente, cada pai é dotado. Logo, o desejo de
possuir o pai do mesmo sexo é tão poderoso quanto o desejo de ser o pai do sexo oposto.
Aqui, não se trata ou restringe-se à diferença sexual: ou seja, enquanto a diferença dos sexos
não intervir como tal, os dois pais são identicamente fálicos e é esse poder que constitui a
base do narcisismo do sujeito, independente de seu sexo.
Portanto, o sujeito, por um lado, se identifica subjetivamente com o ideal e, por outro, sua
identificação objetal é com o falo imaginário da mãe. Quando então ocorre o reconhecimento
da diferença dos sexos e a descoberta de que a mãe não tem o falo, as particularidades do
Édipo feminino surgem e é a partir desta premissa que vamos rever o caso da jovem.
Não nos parece nada razoável restringirmos duas possibilidades de saída do Édipo feminino
pelas quais a maternidade estaria relacionada com a histeria e a homossexualidade com a
perversão. Além do mais, já está mais do que claro a existência da neurose obsessiva na
mulher, assim como a existência de variedades possíveis de posições subjetivas e sintomáticas
ligadas a desejos e comportamentos manifestos da homossexualidade.
89
Desta forma, recuaremos quanto ao desenvolvimento da possível perversão da jovem –
justamente por não termos identificado qualquer apontamento que se refira ou comprove o
desmentido da castração – e passaremos a focar a dinâmica familiar, voltando nossa atenção
para a relação de rivalidade da jovem com seu pai, pela qual, a partir da premissa, postulada
por Freud, de que a neurose obsessiva era uma religião privada daremos os primeiros passos
para o entendimento do porquê de a jovem enfurecê-lo (o pai).
Pensemos que, na religião, o pecador é o retrato do fiel; ou seja, para ser fiel o sujeito tem que
ser pecador, pois a perfeição está em Deus e este fiel, dividido pela lei, não tem como
respeitá-la inteiramente.
Se na neurose obsessiva o sujeito estabelece uma relação bastante estreita entre o imaginário e
o simbólico e se tomarmos as duplas vertentes relacionadas com o pai, verificaremos que é a
partir do pai imaginário – o imaginário do pai no sujeito – que funciona a dialética de
rivalidade e idealização por onde a jovem terá acesso à identificação com este.
É o pai imaginário, o pai da horda, gozador e onipotente, que inspira o temor – o mestre
absoluto responsável pela interdição do gozo – e que, a partir de sua morte (de seu
assassinato), faz com que esse gozo seja proibido.
Entretanto, Lacan nos adverte que é o pai simbólico que será tido como o representante da
autoridade da lei – esse pai que se sustenta para-além da mãe –, aquele que realmente ocupa o
lugar do Outro devido ao modo privilegiado de sua presença, que Lacan denomina de
“presença no desejo da mãe”.
Portanto, esse objeto primordial, que de início pertence ao sujeito, passa para um objeto
perdido, através da intervenção do pai que afirma para o sujeito um Outro que sempre teve
direito de gozar da mãe.
Deste modo, a solução parcial que o(a) obsessivo(a) encontra é fazer coincidir, de alguma
maneira, o pai imaginário e o pai simbólico, tentando fazer, do pai morto, o pai terrível,
gozador e sempre vivo, dando ao pai morto a exclusividade do gozo e mantendo o seu próprio
desejo impossível – o que é revelado na dificuldade fundamental de sua relação com o Outro
que ocupa o lugar no qual o significante ordena o desejo.
90
Isso é justamente o que verificaremos, mais adiante, quando examinarmos as escolhas de
objeto da jovem: primeiramente as jovens mães e, por fim, a dama.
Até o momento, percebemos então que os efeitos das primeiras identificações, efetuadas na
mais tenra infância, serão duradouras e tal fato nos conduz ao aprofundamento do complexo
de Édipo mais completo na jovem, no qual Freud nos revela uma dupla vertente – positiva e
negativa – devido à bissexualidade originalmente presente na criança, na qual a identificação
e a escolha objetal produzem atitudes ambivalentes de amor e hostilidade com o pai e com a
mãe que acabam por dificultar suas primitivas escolhas, assim como dificultam descrevê-las
inteligivelmente. O autor acrescenta: “Pode mesmo acontecer que a ambivalência
demonstrada nas relações com os pais deva ser atribuída inteiramente à bissexualidade”.
(FREUD, 1923, v. 19, p. 46)
Contudo, embora tenha sido o próprio Freud quem nos forneceu material para tal hipótese,
parece-nos que ele mesmo não conseguiu – naquele momento – vislumbrar que, da mesma
forma que a homossexualidade masculina aponta para uma série de possibilidades nos
diversos caminhos edípicos, a homossexualidade feminina também o faz. Talvez, por este
motivo, o autor tenha se restringido ao nascimento do irmão caçula como precursor da futura
escolha de objeto da jovem. Futura? O que sabemos é que a jovem, na adolescência, havia se
interessado por uma criança de três anos, porém nunca houve qualquer interesse por homens
ou jovens de sua idade.
Então, se pensarmos a questão da decepção e partirmos da premissa de que toda criança se
desaponta ao abandonar seu objeto incestuoso primário, não nos parece nada circunstancial
que o desapontamento sofrido pela jovem fosse o fator preponderante que viesse restringir sua
escolha de objeto. No entanto, vejamos o que Freud tem a nos dizer sobre tal desapontamento:
Como, porém, devemos compreender o fato de ter sido precisamente o nascimento
de uma criança, chegada à família extemporaneamente, que a levou a aplicar sua
ternura apaixonada à mulher que dera à luz essa criança, isto é, à sua própria mãe, e
expressar esse sentimento para com um substituto materno? De tudo quanto
sabemos seria de esperarmos exatamente o oposto. [...] A explicação é a seguinte:
no exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo
de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se
profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo
de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer.
Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente
odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do
pai e dos homens. Passado esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminilidade e
procurou outro objetivo para sua libido. (FREUD, 1920, v. 18, p. 168-169)
91
Entretanto, se em todos nós ocorre uma oscilação da libido entre objetos masculinos e
femininos no decorrer da vida, seria prudente afirmarmos que a escolha do objeto do mesmo
sexo era o único destino para a jovem? Não é evidente que possibilidades bem diferentes
poderiam ter emergido? E ainda, será que podemos afirmar que sua escolha de objeto se deu
neste momento?
Retornando a Freud, verificamos que, para o autor, esta também era a questão que permanecia
em aberto:
Ansiar, desde o começo, por uma mãe mais bondosa fora inteiramente
compreensível, contudo difícil de entender é a razão por que deveria ter-se
inflamado exatamente naquela ocasião e sob a forma de uma paixão consumidora.
(FREUD, 1920, v. 18, p. 169)
Desta forma, devemos primeiramente lembrar que, para cada sujeito, a concepção do objeto
de desejo se dá na concorrência com um terceiro. No caso da jovem, podemos pensar que seu
irmão caçula reaparece como esse terceiro que a faz reviver a interdição ao objeto de amor
que antes sofrera pelo pai. Esse pequeno outro é agora o possuidor do objeto causa do
fantasma, usufruindo deste objeto que a jovem supõe dar um gozo absoluto e perfeito, como
se estivesse roubando o objeto que ela acreditava que poderia satisfazê-la, passando ela então
para uma relação de inveja, ciúme e concorrência com esse irmão.
Bem, se até este momento a jovem encontrava-se identificada com a mãe e tomava o pai
como objeto de amor – como nos propõe Freud –, é com a revivência, agora consciente, de
sua primeira interdição ao suposto gozo absoluto que as coisas mudam de figura; ou seja, será
a partir da fantasia de um prolongado desamparo na infância e da rememoração de sua
hostilidade com seu primeiro rival – o pai que a priva de seu objeto de amor – que a jovem
passa a identificar-se com este pela via da ambigüidade – suprimindo seu desejo de matá-lo.
Logo, retomando a idéia exposta por Freud em Psicologia das massas e análise do eu,
podemos entender o porquê de a jovem primeiramente se identificar com o pai para então
poder amá-lo; ou seja, há uma regressão da relação do amor para a identificação. Assim, as
duas correntes – hostil e amorosa – ligadas ao pai são solucionadas pela via da identificação e
a mãe é novamente tomada como objeto de amor.
92
Portanto, o que confere valor a esta cena é a tendência do sujeito a reordenar seus elementos
de forma a compensar e retificar as faltas que estão em sua origem, caracterizando na jovem
obsessiva a subjetivação forçada da falta.
No entanto, para observarmos como isso se dá, nos direcionaremos para a análise da relação
da jovem com a dama.
Primeiramente, devemos ter em mente que sua ligação com a dama constituía apenas a
seqüência de um sentimento que, mesmo antes do nascimento do irmão caçula, a jovem
passara a demonstrar por outros membros de seu próprio sexo e que – da mesma forma que
com a dama – já despertara a ira de seu pai.
Isso desmontaria a vinda do terceiro irmão como causa precipitadora – denominada por Freud
– da homossexualidade da jovem? Acreditamos que não, pois não se trata da causa
fundamental, mas de uma causa que desencadeia o sintoma enquanto escolha já feita
anteriormente.
Sabemos que inicialmente a jovem interessava-se por mulheres maduras, porém de aparência
jovem – mulheres mães entre 30 e 35 anos –, com comportamentos especialmente rígidos, as
quais encontrava durante férias de verão ou no círculo familiar da cidade.
O fato é que, tanto em sua ligação com a dama, quanto com as outras mulheres, sua relação
nunca havia passado da companhia destas ou de alguns beijos e abraços amistosos: em suas
escolhas,
nunca
se
tratara
de
mulheres
que
tivessem
qualquer
reputação
por
homossexualidade ou que pudessem ter-lhe oferecido alguma perspectiva de satisfação
homossexual. Pelo contrário, ilogicamente rejeitara sem hesitar os avanços condescendentes
feitos por uma amiga, esta sim homossexual.
Embora a jovem afirmasse sua adoração pela dama, Freud nos revela que de modo algum lhe
faltava senso de “decência” e “propriedade”, já que, por ser uma jovem bem educada e
recatada, encarava como antiestéticas as satisfações grosseiramente sensuais.
Assim, contentava-se com suas raras oportunidades de encontrar-se com a bem-amada,
verificando seus hábitos, prontificando-se a esperar por ela durante horas para que pudesse lhe
93
entregar presentes ou flores, sem se dar conta de que este interesse único acabara por engolfar
todos os outros em sua mente.
Segundo Freud, a jovem não se preocupava mais com os estudos e não se interessava por
funções sociais ou prazeres de moça, aproveitando o pequeno favor que a dama lhe conferia
ao permitir que a acompanhasse e beijasse sua mão.
Tal fato nos traz outra questão, peculiar na mulher obsessiva, que, de forma contrária à
histérica – que busca o falo no outro –, tenta ser o próprio falo, esforçando-se para ocupar um
lugar de preferência no desejo do outro.
Mais um fator interessante e destacado por Freud é a alegria despertada na jovem quando esta
ouvia elogiarem a bela-dama, ao passo que qualquer reconhecimento de sua própria beleza
não lhe significava absolutamente nada. Esta característica – que também caminha no sentido
oposto ao da mulher histérica51 – nos faz pensar que, para a jovem, seu próprio corpo, aos
seus olhos, padecia de um excesso, carregando sua beleza como se fosse mais um fardo que a
impedisse de passar despercebida.
Então, podemos verificar que a jovem, ao desenvolver uma adoração sentimental por
mulheres, se ocupa destas relações impossíveis, experimentando poucas das sensações de
amor e, como nos assinala Freud, sem perceber o que, de fato, constituía a preliminar
necessária ao desencadeamento dessa tormenta mental.
Assim, a jovem se engajava num circuito do qual não podia sair e cuja finalidade lhe
escapava, mantendo seu desejo impossível.
Será que o que Freud chama de tormenta mental não poderia ser entendido como uma
ruminação? Ruminação mental que encontramos como sintoma obsessivo? Um pensamento
em curto-circuito que não sai dele mesmo e que caracteriza essa obsessão amorosa?
51
A histérica precisa que sua beleza seja sempre reconstruída sob a visão do outro que lhe dará orientação sobre
o que corrigir, já que seu corpo é tomado por uma falta.
94
De fato, o que mais chamava a atenção de Freud era seu comportamento para com seu objeto
amoroso, no qual apresentava a humilde e sublime supervalorização, renunciando a toda
satisfação narcisista e privilegiando o ser a amante e não a amada:
[...] sua castidade genital, se se pode usar essa expressão, permanecera intacta.
Quanto à demi-mondaine que despertava suas mais recentes e, de longe, mais
intensas emoções, ela sempre a tratara friamente e nunca lhe fora permitido qualquer
favor maior do que beijar-lhe a mão. Provavelmente ela transformava a necessidade
em virtude, quando insistia na pureza de seu amor e em sua repulsão física à idéia de
qualquer relação sexual. Mas pode ser que não se achasse inteiramente enganada ao
gabar-se de sua maravilhosa bem-amada, que, sendo de boa família como era, e
forçada à presente situação apenas devido a circunstâncias familiares adversas,
havia conservado, a despeito de sua situação atual, muita nobreza de caráter.
(FREUD, 1920, v. 18, p. 164)
Aqui, somos imediatamente provocados por uma certa possibilidade de comparação com o
caso do Homem dos ratos ao lembrarmos que a mulher que ele amava funcionava como uma
criatura santa, não como uma futura mãe, mas como uma criatura santa que está sempre à
distância, por quem ele faz sacrifícios, funcionando para ele como uma divindade feminina
que revela duas representações de uma mesma instância: viril e feminina. Desta forma, o
Homem dos ratos – assim como a jovem – se satisfazia em venerar sua dama, não precisando
ter relações sexuais com ela e sem nada lhe pedir.
Lembrando o que Freud52 nos revela a respeito das poderosas formações reativas do eu na
neurose obsessiva e da conseqüente luta contra a sexualidade – que será levada adiante sob
princípios éticos –, verificamos que o eu acaba bastante restrito, procurando satisfação
principalmente por intermédio dos sintomas que assinalam o triunfo da combinação
proibição/satisfação.
Embasados nesta descrição, somos levados a pensar que, se a definição de amor para Lacan é
dar o que não se tem, a jovem se pôs inteiramente neste lugar; ou seja, dentro da dialética do
senhor e do escravo, vemos que a jovem, ao colocar a dama no lugar do senhor, fica à
disposição dessa dama, como uma escrava, uma serva.
É por este motivo que a jovem exprime seu amor platônico, colocando-se a serviço da dama
na forma de um amor cortês que visa a não satisfação.
52
Inibição, sintoma e angústia (1926).
95
Enfim, podemos então perceber que, se o desejo é uma defesa contra o gozo, ou melhor, se o
desejo é precisamente o nome dessa barreira que o significante faz ao gozo, pareceu mais fácil
para a jovem proteger-se do desejo do que do gozo, tornando seu desejo impossível nos
destinos de uma escolha objetal homossexual já efetuada.
Não desenvolveremos os demais pontos da neurose obsessiva, deixando as características
também encontradas no enigma do suicídio e de sua posterior entrada em análise para uma
futura oportunidade, pois nosso objetivo maior, no presente trabalho, consiste em demonstrar
o quanto se apresenta problemático colocarmos a jovem dentro da estrutura clínica da
perversão.
Logo, ao verificarmos que o mistério da homossexualidade não é tão simples quanto
comumente se retrata e que, apesar do levantamento do processo psíquico percorrido pela
jovem até a homossexualidade, nunca poderemos reconhecer a cadeia de causas ou as
premissas – pois jamais nos levarão ao resultado final –, o que vale enfatizar, mais do que o
tipo clínico – histérica ou obsessiva –, é que o presente caso é o de uma neurose, de uma
jovem neurótica com uma escolha de objeto homossexual. E, se ainda assim insistirmos em
falar de perversão, será, unicamente, pelo movimento da jovem de perverter a moral sexual
ditada pela época: um casamento com intuito final de procriação.
4.3 UMA CRÍTICA AOS DESVIOS TEÓRICOS
Como se pôde observar até o momento, o trato da perversão se transformou ao longo dos
séculos, variando de acordo com o discurso médico psiquiátrico vigente, compartilhando seu
usufruto com o sistema eclesiástico e político, que sintetizava uma série de comportamentos
humanos que deveriam se enquadrar no discurso da patologia geral, em oposição ao sistema
moral.
Sabemos também que a medicina só apresentou interesse pelo problema da perversão em
meados do século XIX – a partir do estudo da homossexualidade, que teve como precedente
as sínteses de Krafft-Ebing e H. Ellis.
96
Contudo, como podemos falar de uma ciência que joga perpetuamente um jogo duplo com
pretensão de instaurar o moralismo?
As publicações feitas por Freud constituem a ruptura decisiva na elaboração desse saber e é a
partir do benefício dessa herança que pretendemos relançar críticas a respeito dos
preconceitos obscurantistas encontrados, ainda hoje, no discurso psicanalítico.
Com base no intrincamento entre homossexualidade e perversão, selecionamos os estudos de
Patrick Valas com Freud e a perversão, Philippe Julien em Psicose, perversão, neurose,
Serge André em A impostura perversa e Charles Melman com Clínica psicanalítica: artigos e
conferências; a fim de pensarmos a respeito da sexualidade e da diferença sexual apontada
por tais autores e assim nos questionarmos sobre os indícios de uma leitura homofóbica a
respeito do tema.
Iniciaremos com Patrick Valas e seu extenso e pouco proveitoso estudo sobre a perversão na
obra de Freud.
O autor, que relata ter seguido passo a passo a ordem cronológica dos textos freudianos,
tentando constituir a base da definição da perversão, parece-nos não ter percebido a evolução
da teoria e, após esse exaustivo trabalho, acabou por lançar mais um livro que privilegia o
intrincamento sinonímico entre homossexualidade e perversão.
O que Valas afirma é que, desde 1910, com o texto sobre Leonardo Da Vinci, Freud nos
permite reconhecer um denominador comum para a perversão: a feminilização do sujeito por
identificação à mãe fálica em sua recusa de castração. Desta forma, o horror e a recusa da
castração são considerados como dados comuns para todas as perversões que, segundo o
autor, Freud enumera: “Aquelas que estão ligadas a uma fixação da libido numa fase muito
precoce, como o voyerismo, o exibicionismo e o fetichismo, mas também aquelas que se
constituem mais tardiamente, como a homossexualidade”. (VALAS, 1990, p. 110) E
acrescenta:
No homossexual masculino, a recusa em renunciar ao pênis no seu objeto sexual é
determinada a partir do fato de que as partes genitais da mulher, quando mais tarde
são percebidas e consideradas inúteis, evocam essa ameaça, e por essa razão
provocam no homossexual horror e desprazer. Temos aí a razão determinante da
escolha de objeto. (VALLAS, 1990, p. 111)
97
Ora, Freud já havia articulado de forma suficiente – como demonstramos no decorrer de nosso
trabalho – que a escolha da estrutura não tem relação alguma com a escolha de objeto. Da
mesma forma, não encontramos em Leonardo o desmentido, a clivagem do eu, nem o fetiche.
Então, o que será que foi feito com a informação fornecida por Freud a respeito da neurose
obsessiva e da sublimação, enquanto possível destino da pulsão, de Leonardo?
Parece-nos que Valas é mais um autor que prefere fixar-se na anatomia enquanto traço que
permite definir seu entendimento da perversão:
O objeto é escolhido em função da relação do sujeito com a castração, cuja sorte é
decidida na dialética edipiana. Quando a castração é desmentida, o objeto é marcado
pelo traço deste desmentido: mãe fálica, à qual se substitui a mulher falicizada pelo
fetiche, ou então o próprio objeto é portador do pênis falicizado, ele é um duplo
narcísico do sujeito homossexual. (VALAS, 1990, p. 112)
Assim, constatamos que o desmentido da castração – próprio da estrutura clínica da perversão
– é substituído por um discurso que, utilizando o imaginário do corpo, identifica o pênis real
do objeto escolhido pelo sujeito como sustentação da homossexualidade masculina enquanto
perversa.
No entanto, devemos ressaltar que não existem regras, pois, como sabemos, a
homossexualidade masculina pode ser determinada, por exemplo, pela posição fantasmática
do sujeito em relação ao pai e, da mesma forma, não é possível considerar essa concepção
generalista para a homossexualidade feminina.
Dando seqüência, verificaremos que Philippe Julien é mais ambicioso, pois propõe um gênero
para cada perversão; dentre as quais inclui as homossexualidades masculinas e femininas. O
autor, a partir do esquema desenvolvido por Lacan a respeito da função do véu, resolve criar
dois novos gráficos para representar seu entendimento das diferentes perversões.
Partindo da descrição de Lacan a respeito do véu como o que esconde e designa a falta que
está para além do objeto, projetando a imagem do que o sujeito coloca para esconder esse
nada, o autor, neste primeiro gráfico, dispõe as perversões, nas quais o sujeito coloca diante
dele a projeção da imagem fálica e, assim, defende a idéia de que, da mesma forma que o
fetichismo, o masoquismo e o voyerismo, a homossexualidade feminina deve ser considerada
uma estrutura perversa, já que vela a falta fálica do objeto escolhido.
98
FETICHISMO
MASOQUISMO
SUJEITO
VOYERISMO
OBJETO .....................................NADA
HOMOSSEXUALIDADE
FEMININA
VÉU
GRÁFICO 1: DIANTE DO VÉU
O autor utiliza, tão somente, o caso da jovem homossexual, descrito por Freud, para sustentar
a idéia de que toda mulher, com uma escolha de objeto homossexual, está fadada a fazer uma
escolha de estrutura perversa. Seu argumento é que a homossexualidade feminina deve ser
considerada perversão devido à identificação com o pai imaginário e à conseguinte posse do
pênis, também imaginário, que será dado ao objeto para velar sua falta. Ora, parece que Julien
não reconhece a identificação com o pai como algo banal na histeria.
O fato de uma mulher amar alguém que não tem pênis não significa – como quer o autor –
que ela não aceita a diferença dos sexos.
Está certo que Lacan diz que o falo é um
significante impuro, mas isso não significa que ele se confunde com o pênis. Parece que, para
Julien, não é possível pensar o falo desvinculado do órgão sexual masculino, pois o que
justifica a estrutura perversa, para o autor, está reduzido ao mecanismo utilizado pelo sujeito
para encobrir a falta no outro, desconsiderando, por exemplo, o fato de a criança neurótica se
colocar para a mãe como um objeto fálico, justamente na tentativa de ser o falo que a mãe não
tem.
No gráfico seguinte, de forma inversa ao quadro anterior, o autor aborda o sujeito que se
identifica com a mãe – no lugar da mãe – e o fetiche – como falo imaginário – situando-se
atrás do véu.
Segundo o autor e sua concepção da homossexualidade masculina enquanto perversão, o que
ocorre é uma repetição do mesmo gozo por inversão, já que o sujeito se coloca no lugar da
mãe e escolhe objetos que ele possa identificar a si próprio. Revivendo a cena infantil, o
99
sujeito perpetua esse gozo, gozando de um objeto semelhante ao que ele foi e, então,
demonstra que há narcisismo quanto à escolha de objeto.
TRANSVESTISMO
SADISMO
EXIBICIONISMO
SUJEITO
OBJETO –-------------------- NADA
HOMOSSEXUALIDADE
MASCULINA
VÉU
GRÁFICO 2: ATRÁS DO VÉU
No entendimento de Julien, o sujeito, identificado com a mãe, vai buscar seu falo num outro,
revelando, nesta linha de abordagem da homossexualidade masculina, a necessidade do
sujeito de exigir do parceiro que ele “mostre que ele tem”. (JULIEN, 2002, p. 117)
Aqui, verificamos que o autor acaba caindo em algo completamente superado na teoria
freudiana pelo próprio Freud, que é a diferença entre escolha narcísica e escolha de objeto.
Visto como encontramos, novamente, a abordagem do pênis real dentro do discurso
psicanalítico, podemos perceber que, apesar de toda teorização psicanalítica disposta a nós
por Freud e Lacan, as categorias psíquicas permanecem confusas para alguns dos analistas da
atualidade e a perversão permanece sendo referenciada como base subjetiva do
comportamento homossexual.
Da mesma forma, observamos que ainda se encontra à margem o desenvolvimento feito por
Freud a respeito do complexo de Édipo completo, que demonstra a insuficiência da afirmação
de que a homossexualidade depende da resolução deste, já que, da mesma maneira, existem
várias formas pelas quais isso pode ocorrer, inclusive na heterossexualidade.
100
A homossexualidade é trans-clínica, já que comparece como modalidade do sexual. Assim,
seria mais prudente que esses autores pensassem a escolha inconsciente resultante do
complexo de Édipo a partir da escolha da estrutura: neurose, psicose ou perversão.
Passando agora para o terceiro caso de distorção teórica selecionado, abordaremos o trabalho
desenvolvido por Serge André e sua distinção da homossexualidade feminina: a maneira
histérica e a maneira perversa.
A homossexualidade feminina histérica é por ele considerada como uma simples fuga da
redução à categoria de objeto sexual oferecido ao homem; ou seja, uma “pseudohomossexualidade”, já que seu interesse é pela questão da feminilidade. De forma análoga,
defende que a homossexualidade feminina perversa é o único e verdadeiro retrato do que
poderíamos denominar de “perversão propriamente dita”.
De forma resumida o autor relata o caso de Violette para exemplificar a homossexualidade
feminina, no qual a fantasia tinha uma estrutura tipicamente masculina e sua inversão sexual
estava inscrita na elaboração desta. Ela desejava uma mulher exatamente como um homem
desejaria, na medida em que ela pudesse ser desvalorizada e rebaixada à categoria de
prostituta. Acrescenta ainda que Violette tinha pouco apreço pelo amor e buscava ser
reconhecida por “ter” o falo:
O que significa que, em sua estrutura, a mulher era fetichizada da mesma maneira
que pode sê-lo na fantasia do fetichista perverso. Por isso é que, em seu caso, a
fantasia era, direta e explicitamente, uma fantasia sexual, e não uma fantasia
amorosa. (ANDRÉ, 1995, p. 95)
Vê-se que o conceito de fetiche, descrito por André, desconsidera o fato de a mulher, ou de
qualquer parceiro sexual no lugar do falo, não caracterizar a perversão fetichista.
Segundo o autor, tratava-se apenas de comprovar que ela (Violette) era provida de alguma
coisa melhor que o pênis e, portanto, de que era mais potente do que o “macho”, sendo o
homem seu principal rival:
Ela se paramentava, aliás, com todos os traços manifestos desse rival: vestia-se e se
penteava como um homem, bebia, praguejava e falava como um homem,
interessava-se pela pornografia etc. Eu chegaria até a dizer que ela pensava como
um homem, se essa expressão pudesse ter um sentido seguro. Mas essa identificação
com os traços masculinos (e paternos) ainda não dava conta, realmente, de sua
posição. Também sucede freqüentemente à histérica “fazer-se de homem” e guardar
do pai alguns traços específicos, que ela porta, por sua vez, como sintomas. Para
apreender com precisão a posição adotada por Violette, há que reconhecer que essa
101
posição não era simplesmente masculina, mas era, ou pelo menos pretendia ser,
mais-do-que-masculina. Violette se apresentava, não como um homem, mas como
um super-homem. (ANDRÉ, 1995, p. 95)
Assim, André acredita que Violette confirmava, ao mesmo tempo, a castração do homem e
sua própria não-castração, projetando a existência de um falo no lugar da vagina para
desmenti-la.
Fica claro que o autor entende o complexo de masculinidade, descrito por Freud, como uma
necessidade de ser homem, implicando uma imitação que nos parece bastante equivocada, já
que o pênis não é o falo e sim uma figuração possível, um suporte imaginário do mesmo, que
desvincula qualquer necessidade de “ser homem” para representá-lo como tendo-o ou como
sendo-o para um outro. Decerto que André também não leva em conta a divisão do sujeito
entre ser homem ou mulher, tampouco o bancar o homem da posição histérica.
No entendimento do autor, a perversão de Violette não está relacionada apenas com o sexo
feminino, mas também, e principalmente, com o sexo masculino, já que esta tinha que
sustentar não apenas que a mulher – ou mais exatamente, a mãe – não era castrada,
atribuindo-lhe – como também faz o homem perverso – um falo imaginário, mas tinha ainda
que sustentar que o próprio homem, para ser realmente homem, deveria ser impossível de
castrar:
Isso não assimilava Violette à posição da histérica, que se faz esteio do pai
impotente. É que se Violette se situava no campo do falo, não era simplesmente
por sê-lo ou por trazer suas insígnias, mas também por tê-lo, e, como uma diferença
suplementar, esse falo não era o do pai, e sim o falo mais potente que ela atribuía
à mãe. Munida desse falo imaginário, ela não se identificava realmente com o
homem, mas antes o substituía e, desse modo, comprovava que era possível desejar
sem sofrer a detumescência. (ANDRÉ, 1995, p. 98, Grifo nosso)
A relação entre mulheres acaba atrelada a uma armadilha cultural que implica pensar uma
delas ocupando a posição feminina enquanto a outra ocupa a posição masculina. Assim,
parece-nos que a direção do desejo para um objeto homo ou heterossexual passa a ser
suficiente para que tais autores possam definir o grau de saúde ou patologia que o caracteriza.
De forma muito parecida – mas talvez despercebida –, verificamos no texto de Charles
Melman afirmações que apontam para uma mesma homogeneização do sujeito homossexual
diante de sua perversão.
102
Logo após afirmar que a prática psicanalítica descobre uma grande diversidade de disposições
inconscientes e que o discurso amoroso do homossexual em nada se distingue dos outros, o
autor modifica seu discurso e, de forma antagônica, faz um levantamento de concepções
possíveis referentes ao estilo de vida destinado para esses sujeitos:
A perversão é vivida de modos muito diferentes: bem aceita por alguns, que podem
associar a ela publicamente um ativismo proselitista, é percebida dolorosamente por
outros, que a dissimulam com vergonha e não cedem a ela senão após longas e
extenuantes lutas íntimas. [...] Com mais freqüência, as relações se estabelecem
entre parceiros de breves encontros e são sem futuro; acontece, contudo, que nasçam
idílios apaixonados, até mesmo que se estabeleça uma espécie de conforto conjugal.
(MELMAN, 2000, p. 95)
Assim, Melman conclui que, nos casos de relação homossexual duradouras, o casal está
fadado à seguinte experiência:
[...] As relações sexuais são freqüentemente marcadas por uma monotonia
exclusiva: fellatio (contato orogenital), sodomia (contato anogenital), porém
freqüentemente pudor do intercâmbio, limitado a carícias recíprocas ou a uma
masturbação mútua. Não é raro, aliás, que um dos parceiros demonstre uma repulsa
por toda consumação sexual, até mesmo o que se poderia chamar de uma autêntica
frigidez. A criatividade do imaginário é, nesse domínio, limitada; é habitual que
os protagonistas garantam de modo estável no casal os papéis tradicionais da
masculinidade e da feminilidade. (MELMAN, 2000, p. 96, Grifo nosso)
Deparamo-nos com uma homogeneização do sujeito que, sob esta ótica, passa a ter uma
específica forma de satisfação sexual, segundo uma lista de comportamentos possíveis.
O autor, que toma a homossexualidade como um modo de expressão da perversão, afirma que,
embora o objeto de amor seja principalmente determinado por seu sexo, na maioria das vezes
ele também está fixado segundo a escala de idades, privilegiando a criança ou o adolescente
(pedofilia), o homem maduro ou até mesmo o idoso; e acrescenta que, além disso, a
homossexualidade ainda revela aspectos médico-legais que não podem ser esquecidos, tais
como a prostituição, o transvestismo e o transexualismo.
Contudo, se a questão fosse apenas um retrocesso ao pensamento eclesiástico/médico/político
de meados do século XIX, poderíamos simplesmente citá-los como mais um, dentre tantos
outros da história, que tentam afirmar a anatomia como destino. No entanto, vemos aqui algo
mais sério: em nome da psicanálise apresenta-se uma releitura que sequer parece ter levado em
conta a obra realizada por Lacan a partir de Freud.
103
Por fim, para culminar, citaremos Jacques-Alain Miller com a Repartitória sexual e sua idéia
de abordagem anatômica dos sexos, a partir do que o autor denomina de uma estrutura
deduzida do “ter”, tema final que melhor desenvolveremos numa próxima oportunidade, mas
que não poderíamos deixar de expor como pertencente ao grupo de psicanalistas que
distorcem conceitos fundamentais da teoria:
A diferença que encenamos aqui está no nível do ter, precisamente do pênis
real – eis a diferença – uma vez que ele pertence a um dos parceiros, e não ao outro.
Nós o escrevemos para pôr as idéias no lugar, opondo simplesmente o mais e o
menos, o existe e o não existe. [...] Observemos que, quando nos pautamos nessa
experiência, nós nos referimos ao ter, e que é um ter cavilhado com o corpo. A
referência ao corpo, aqui, não se pode eliminar. (MILLER, 1998, p. 4, Grifo nosso)
E, não satisfeito, o autor completa a afirmação:
Percebe-se isso quando se lê, por exemplo, no texto de Lacan A significação do
falo..., pg. 694 dos Escritos, uma frase como esta – eu a modifico apenas para
reduzi-la, comprimi-la – A mulher encontra o significante de seu desejo no corpo do
homem. Mesmo se Lacan, nessa frase, nos introduz o falo como significante do
desejo, por mais significante que ele seja, ele indica que está localizado no corpo
sexuado. É precisamente disso que não se extraiu todas as conseqüências nesse
escrito. (MILLER, 1998, p.4)
Pretendemos continuar nosso estudo baseados nas contribuições de Lacan sobre esta questão,
enfocando as “Fórmulas da sexuação”, nas quais o autor aponta, de uma forma radical, para a
diferenciação entre posição sexuada e biotipo homem ou mulher.
Mas, desde já, não poderíamos deixar de indicar como Miller, se dizendo lacaniano, em seu
texto Uma repartitória sexual, reduz esse estudo de Lacan a uma mera psicologização da vida
sexual de homens e mulheres.
Logo, podemos perceber que um ato considerado perverso ainda leva muitos psicanalistas a
diagnosticarem perversão através do que por eles é visto como perversidade, desconsiderando
o desmentido da castração enquanto recusa do sujeito em reconhecer que falta alguma coisa ao
Outro.
Enfim, seguindo o conselho de Lacan, quando nos diz que uma das funções da Escola é fazer a
crítica dos desvios teóricos (LACAN, 2003), venho apontar para o fato de encontrarmos aqui
psicanalistas que se outorgam o direito de falar para médicos e que têm o apoio de uma série
de outros psicanalistas que, da mesma forma, distorcendo a base conceitual da psicanálise,
restringem-se a classificar sintomas, de maneira que caibam em um manual, de onde o
104
princípio regente de suas atitudes passa a ser decorá-lo e de onde o dispositivo da cura não
convida a falar do lugar da subjetividade, mas sim do lugar do DSM 1, 2, 3, 4 e assim por
diante.
105
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo de todo nosso percurso, acabamos retraçando as maneiras como a
homossexualidade foi abordada ao longo dos tempos e nos diversos discursos – religioso,
político e científico – para que então pudéssemos chegar ao discurso psicanalítico e assim
perceber o quanto a função do saber se confunde com funções ideológicas que não nos
remetem a outro lugar senão à história cultural regida pela norma moral.
Partindo do discurso histórico, pudemos averiguar que as relações sexuais não se restringiam
à anatomia até a entrada em cena do discurso eclesiástico e sua parceria com o sistema
político e científico. A partir de então, a procriação passa a ser a razão suprema da relação
sexual e o sexo-por-prazer transforma-se em sexo-para-procriação-apenas. Imediatamente, a
sexualidade passa a ser tratada pela via do normal X patológico.
Baseados nesta premissa, vimos o discurso médico a partir de um lugar considerado científico
– o lugar da verdade –, instaurando uma moral que não deve em nada à moral religiosa,
fornecendo à sociedade respostas ilusórias que provêm de uma oculta obrigação histórica –
regida pelo poder eclesiástico e político – de normatização e unificação de comportamentos.
Da mesma forma, tendo como alvo as reflexões sobre a questão referente à “inversão sexual”,
verificamos a força da sexologia ao classificar diversos tipos de perversos baseada
unicamente em variantes da sexualidade consideradas anormais e que só serviram para
estigmatizar os sujeitos e fazê-los, até os dias de hoje, sofrer as máculas destes julgamentos.
Assim, nossa civilização – muito bem respaldada por especialistas sempre prontos a responder
perguntas sem respostas – aceita satisfazer seus desejos através de uma construção imaginária
garantida, pela qual a ciência se autoriza distinguir o que é perverso e o que não é, já que
acredita saber tudo sobre o comportamento sexual.
Foi Freud quem veio revolucionar a concepção de sexualidade humana e pôde, a partir da
ética da psicanálise, apontar para um lugar bem distinto da moral social e quem, ao ser o
primeiro a teorizar sobre a sexualidade infantil e, por conseqüência, a demonstrar – a partir da
noção de fantasia – que a realidade psíquica não era da mesma natureza que a realidade
106
material fez da perversão uma das modalidades da sexualidade e um tipo de relação do sujeito
com a castração; ou seja, uma estrutura clínica – ao lado da neurose e da psicose – que vai
mais além do discurso sobre a norma e a normalidade, des-hierarquizando e despatologizando
toda e qualquer forma de sexualidade.
Contudo, o próprio discurso freudiano, que inicialmente apresentou-se subversivo e
escandaloso, posteriormente, com a dissipação das Escolas e de seus discípulos, acabou
restaurando um moralismo em que o acesso ao estádio genital garantia uma função normativa
na qual a cultura parece ter sempre necessidade de se apoiar e que, a partir do mesmo
princípio, serviu para justificar a proibição do acesso à profissão para psicanalistas
homossexuais.
Assim, enquanto alguns psicanalistas recusavam-se a reconhecer que a psicanálise estava
instalando-se rapidamente num conformismo moral e social, outros muitos tinham em mente
que a homossexualidade – assim como abordada por Freud – não era um problema que a
psicanálise deveria desvendar, muito menos uma patologia que deveria ser curada.
Desta forma, marcamos o lugar da psicanálise, que caminha no sentido contrário ao da
normatização da sexualidade: a partir da ética do desejo, o sujeito é sexual e independente das
estereotipias apresentadas pelo mundo social; embora o social gere – em alguns casos –
sofrimento para o sujeito, chegando até a “modificar” seu comportamento, ele não é capaz de
alterar seu desejo.
Assim, partindo do dever da psicanálise de oferecer à cultura saídas para lidar com o malestar, Freud vem apontar para o fato de não haver uma naturalidade desejante correspondente
à anatomia diferencial dos corpos, afirmando que não há nenhuma articulação entre o
biológico e o subjetivo nas escolhas do sujeito.
A partir dos conceitos de inconsciente e pulsão, Freud apresenta sua teoria da sexualidade e
faz um corte epistemológico em relação aos estudos da época. Desvinculando sexual e genital,
Freud desmistifica a diferença anatômica dos sexos enquanto algo harmoniosamente
complementar e rompe com as bases referenciais do que era considerado normal e patológico.
107
O fato é que, ao afirmar que o alvo da pulsão é a satisfação, o autor, ao mesmo tempo,
reafirma a não complementaridade dos sexos e demonstra que o objeto da pulsão é o que há
de mais variável. Portanto, embora a pulsão tente alcançar a satisfação por meio do objeto,
não existe “O objeto” e, por sua vez, há uma possibilidade indefinida de substituições de
objeto.
A sexualidade humana adequada à pretensa atração natural entre os sexos não corresponde à
realidade e a dificuldade em entender a homossexualidade enquanto desejos e práticas que
podem aparecer em qualquer momento da vida do sujeito, assim como em qualquer estrutura
psíquica – já que são essas as formas em que a sexualidade humana se manifesta –, parece ser
uma dificuldade da ordem da homofobia.
Aliás, a escolha heterossexual é considerada normal por mera convenção, pois a
homossexualidade tem tantas razões e trajetórias quanto a heterossexualidade; com a
diferença de que esta última não aparece como questão a ser esclarecida.
Todavia, ainda que a homossexualidade esteja desvinculada de qualquer estrutura que a
determine, permanece a constatação de muitos psicanalistas que diagnosticam perversão
através do que, por eles, é visto como perversidade, desconsiderando o desmentido da
castração enquanto recusa do sujeito a reconhecer que falta alguma coisa ao Outro.
Não obstante, termos acompanhado o progresso social conseguido com o esforço dos
movimentos homossexuais quando, em 1974, a homossexualidade deixou de ser considerada
doença mental, em 1987 foi retirada da categoria de perversão e em 1991 deixou de
configurar doença pela OMS; ainda hoje, há um retrocesso por parte de alguns psicanalistas
que se deixam contaminar pela moral sexual e pelo mesmo discurso que julga e estigmatiza o
sujeito a partir de critérios comportamentais que excluem qualquer referência à subjetividade.
Enfim, devemos questionar, a partir do contexto atual – desvinculado da ordem da procriação
– o porquê de ainda vivermos submetidos a uma lógica social disciplinar que abole a
diferença e suprime o desejo do sujeito.
Da mesma forma, permanece como reflexão se o deslocamento da homossexualidade
enquanto perversão para uma escolha de objeto dentre as variedades possíveis na sexualidade
108
humana também ajudaria a conferir um novo lugar para todas as outras práticas sexuais
consideradas anormais, pois, embora tenha sido claramente abordado que a natureza do
mecanismo inconsciente que define a estrutura perversa – como distinta da neurose e da
psicose – seja o desmentido da castração, ainda presenciamos uma sociedade pervertida por
um ideal cientificista que julga toda uma população.
Porém, sem poder resolver todas essas questões, acabamos limitando-nos ao questionamento
da articulação da perversão com a homossexualidade e deixando para abordar outras formas
de manifestação da sexualidade, consideradas perversas, em uma posterior oportunidade de
exposição.
Logo, o que por fim consideramos necessário ser destacado como enfoque do presente
trabalho é o dever da psicanálise de mostrar que esse dito saber sexual unificado pela ciência,
na realidade, se reduz a um mero determinismo social, já que os vários aspectos da
sexualidade jamais constituirão uma teorização global do comportamento sexual humano.
109
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APÊNDICE A – Curso de extensão: homossexualidade e
perversão na psicanálise
O tema da homossexualidade vem ocupando diversos campos da ciência na tentativa de
desvendar as raízes da escolha homossexual. Situada entre o normal e o patológico pela
medicina psiquiatra oitocentista que compartilhava seu usufruto com o sistema eclesiástico e
político, a homossexualidade perdurou no campo da perversão sexual durante décadas, onde o
conjunto de comportamentos que desviavam do orgasmo por penetração genital entre um
homem e uma mulher eram considerados anormais e deveriam ser tratados com o intuito final
de cura. Desta forma, será a partir da ruptura freudiana e dos benefícios dessa herança, trazida
a nós por Lacan, que pretendemos analisar o tema da homossexualidade, discernindo estrutura
perversa de perversidade e perversão polimorfa, abrindo espaço para novas reflexões a
respeito da prática clínica que, ainda hoje, leva alguns a falarem em nome da psicanálise,
abordando de forma preconceituosa e sinonímica, homossexualidade e perversão.
Inscrições até 23/12/08
Local: UVA – Campus Tijuca
Público Alvo: Psicólogos, Psicanalistas e Educadores.
Período: De 03/01/09 a 31/01/09 – Sábado, das 9:00 às 12:00h
Programa (15 horas):
1- Breve história da ciência do sexual – A sexologia – Os manuais do comportamento sexual
2- Normal X Patológico – A ruptura freudiana – A teoria da sexualidade
3- Sexualidade Infantil – Pulsão – Desejo – Bissexualidade – Homossexualidade
4- Estrutura Perversa – Fetichismo – Desmentido
5- Perversão Polimorfa – Perversidade – Perversão – Desvios teóricos
Certificado:
Terá direito a certificado os alunos que satisfatoriamente preencherem os quesitos de
freqüência e aproveitamento.