Bio-opinião A Biotecnologia e a Sociedade: os dilemas da utilização das Plantas Geneticamente Modificadas Pedro Fevereiro Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa I.T.Q.B. – Instituto de Tecnologia Química e Biológica, UNL - Oeiras Bastonário da Ordem dos Biólogos A controvérsia sobre a utilização das Plantas Geneticamente Modificadas (PGM) tem servido de pano de fundo, em conjunto com uma série de polémicas sobre a Ciência e as suas aplicações, para questionar a aplicação do conhecimento científico. Esta questão é sobrelevada quando se refere à manipulação do património genético dos seres vivos, tido por alguns como uma espécie de santuário intocável, repositório da “essência” dos seres vivos. A polémica desenrola-se num tempo em que o pósmodernismo, associado ao relativismo radical pretende considerar o conhecimento científico como um conjunto de crenças com valor idêntico a outro conjunto qualquer (como se astronomia e astrologia, por exemplo, tivessem o mesmo valor e a mesma qualidade intrínseca). Esta perspectiva confronta-se com uma perspectiva racionalista, onde a construção de um conhecimento relacionista mas precisável, e a sua aplicação, são o garante do desenvolvimento das sociedades modernas. A resposta da sociedade a estas controvérsias é complexa, misturando-se nela perspectivas individuais e colectivas, de índole sócio/afectivo/cultural, científica, política, económica, ética e religiosa, numa amálgama de ideias e sentimentos que raramente permitem conclusões razoáveis ou consensos entre diferentes pessoas/grupos. Como diz Alexandre Quintanilha, dividimo-nos maioritariamente em dois grupos: os que consideram o planeta uma estrutura robusta, capaz de recuperar face aos “desvarios” (da nossa e de outras espécies); e os que o consideram uma estrutura sensível, que sucumbirá aos devaneios da espécie humana, caso esta não compreenda a fragilidade do ambiente em que vive, sobretudo quando o seu número continua a crescer de uma forma desproporcionada relativamente aos recursos disponíveis. Existem também dois outros grupos possíveis: o daqueles que acreditam que a Ciência (o conhecimento científico) permitirá ajudar a ultrapassar o dilema da capacidade da espécie humana sobreviver, de uma forma equilibrada (“sustentada” como se diz agora) no meio ambiente que é o bioma terrestre (aqueles que acreditam no primado da ciência); e aqueles que preferem recorrer à sensibilidade e à precaução como forma de encontrar soluções para o nosso devir (o primado da percepção). Sou adepto da primeira opção. 18 Boletim de Biotecnologia Penso assim que devemos continuar a procurar aumentar o nosso conhecimento em todas as vertentes. Sem limitações. A resposta às dificuldades só pode ser “mais conhecimento” e não “proiba-se a investigação”. Diferente perspectiva tenho no que toca à aplicação do conhecimento. É aí que a “bondade” do conhecimento construído se exprime. E tenho por certo que em qualquer situação o conhecimento pode ser utilizado para o “bem” ou para o “mal”. Cabe assim à sociedade controlar a forma como o conhecimento é aplicado. Neste processo de gestão, tem capital relevância a avaliação do risco da utilização dos conhecimentos. Este tem sido utilizado para assustar, mais do que para gerir. Todas as actividades humanas comportam um risco (que não se resume à identificação da perigosidade de um processo). E é impossível garantir, em qualquer situação, o “não risco”. É também impossível garantir em absoluto que uma nova tecnologia não se revelará de alguma forma perigosa, após dez anos de utilização. No entanto, parece-me razoável pensar que as novas tecnologias são em si mais limpas, mais adequadas e menos perigosas do que as que usámos durante o último milénio. E que, devidamente utilizadas, nos transportarão para um mundo melhor. A discussão acerca da utilização PGMs continua a evoluir na sociedade portuguesa através de um conjunto de equívocos que aqui se enunciam. Por os enunciar não se estará a indicar qualquer solução para a problemática, mas a tentar contribuir para um debate (que alguns dizem inexistente…) que implica qualidade, precisão, conhecimento e senso comum. Características que parecem arredadas dos principais intervenientes deste caso. Intervenientes que agem ainda na perspectiva do paradigma do mercado e da economia. A forma como as Associações de Defesa do Ambiente e de Defesa do Consumidor assumiram a discussão desta problemática constitui um dos equívocos sérios nesta questão. Primeiro assumiram uma atitude de repulsa primária e preconceituosa (lembrem-se as declarações do activista da Quercus na televisão quando da chegada de um barco transportando PGMs: “o milho transgénico transporta vírus e bactérias”), passando depois para a emissão de mensagens referindo a perigosidade destas plantas para a saúde humana (afirmando que já teriam existido casos de morte provocadas por ingestão de PGMs em 1988 - o que é totalmente falso, pois estas os primeiros produtos apareceram no mercado apenas em 1995), as quais dão origem a perguntas como esta: “será que se eu comer PGMs os meus filhos nascem transgénicos?” (esta questão foi recentemente colocada num seminário sobre o tema). A resposta é não Bio-opinião (evidentemente) mas é extraordinária a formulação da pergunta. As organizações não governamentais deveriam ter a noção de que o seu papel fundamental não pode passar pela hipoteca da sua credibilidade. A veracidade das mensagens que emitem tem que ser inequívoca e não parece justificável que, mesmo com finalidades benignas, se propaguem notícias falsas e alarmistas. De resto, a falta de credibilidade neste assunto atinge já uma das maiores organizações mundiais, a Greenpeace. Esta fez um acordo com a Monsanto (a multinacional líder da produção de PGMs) e o Co-operative Bank UK para a promoção de um cartão de crédito - o “Biocard” produzido com bio-plástico proveniente de plantas transgénicas. Por cada conta aberta a Greenpeace recebia 10 libras e continuaria a receber ¼ de libra por cada 100 libras gastas com este cartão…. A forma como os meios de comunicação “tomaram conta” deste assunto, utilizando-o de uma forma sensacionalista para fazer vender o seu produto, constitui um segundo equívoco. A comunicação social tem sido capaz de mobilizar algum do debate em torno deste assunto. No entanto, a escolha (com que critério?) dos actores a que dá voz, o pouco cuidado que dá (em geral) à precisão no tratamento da parte científica das questões e sobretudo os títulos que utiliza - “comida Frankenstein” ou “Transgénicos Roleta Russa” faz parecer que a sociedade portuguesa está “a saque” e que este tipo de produtos foram colocados no mercado para propositadamente prejudicar os consumidores. As entrevistas a responsáveis de empresas produtoras de PGMs, ou a investigadores experimentado nesta matéria são em número reduzido e interpretadas negativamente. Em contra-partida, foi publicado um artigo na revista do semanário “Expresso” onde uma jornalista, sem conhecimentos suficientes, se permite retomar questões “requentadas” nomeadamente resultados erróneos de experiências mal conduzidas e reconhecidamente inutilizáveis na avaliação das consequências da utilização das PGMs (referem-se aqui as “experiências” realizadas na Escócia com ratos alimentados com batatas transgénicas e a mortalidade verificada na borboleta Monarca por ingestão de pólen de milho transgénico). Em alguns casos as questões levantadas são totalmente falsas, como afirmar que “potencialmente os transgénicos aumentam as alergias e as resistências a certos antibióticos”. multinacionais sobrevivem no paradigma da globalização do mercado e da economia e tendem a desdenhar qualquer outra perspectiva. Foram de resto elas as primeiras responsáveis pelo nível de alarmismo criado em redor das PGMs, obrigando a que o seu licenciamento fosse de tal forma exigente que as pequenas e médias empresas não tivessem possibilidade de cumprir com todos os requisitos (alguns deles sem qualquer sentido), por falta de meios técnicos e financeiros. Com esta estratégia dominaram o mercado é certo, mas criaram uma onda de choque que actualmente os atinge directamente e que põe em risco todo o investimento que efectuaram. As empresas foram incapazes, até agora, de tornar claro que se preocuparam em avaliar as consequências para o ambiente da utilização das PGMs. Não o fizeram porque consideraram que apenas as questões custo-benefício (face às técnicas agronómicas tradicionais) fossem suficientes para convencer a sociedade. Se, por um lado, não o foram capazes de demonstrar, confiaram, por outro lado, que a investigação estatal fizesse parte do trabalho (menos gastos para as empresas…) e investisse na avaliação dos riscos. Provavelmente não acreditaram na crise do financiamento da investigação do Estado. As empresas não foram capazes de provar ao grande público que esta tecnologia tem potencialidade para produzir outros produtos que não os que reduzem os gastos com a produção, permitindo apenas um maior lucro. As potencialidades relativas, por exemplo, ao melhoramento da qualidade dos alimentos não são evidentes para a sociedade em geral e as empresas não demonstraram empenho ou investimento claro nesta vertente. As empresas também não foram capazes de esclarecer o público relativamente à sua estratégia face à propriedade intelectual, e ao não se demarcarem da polémica do patenteamento de genes (por exemplo), definindo com clareza e com equilíbrio a sua opção, criaram um sentimento genuíno de repulsa que atinge todo o tipo de desenvolvimento tecnológico nesta área. Um pouco menos de arrogância (e um pouco mais de estudo) permitiriam chegar a conclusões mais equilibradas e a uma melhor informação do público relativamente a estas matérias. Justifica-se assim a questão seguinte: a quem está a comunicação social a servir neste assunto? E porquê? Se é justificável recusar a política das multinacionais relativamente a esta questão, é ridículo questionar a utilidade das PGMs, afirmando que são o garante da monopolização do mercado. A monopolização do mercado de sementes já existe. Os agricultores estão dependentes da produção de sementes híbridas, que garantem uma produtividade competitiva. Qualquer pessoa com conhecimentos em biologia sabe que os agricultores não podem guardar as sementes resultantes da destes híbridos, pois devido às leis da genética, a geração seguinte não terá as características dos seus progenitores. A engenharia genética e as PGMs não vêem trazer nada de novo neste campo. O terceiro equívoco reside na estratégia adoptada pelas empresas que dominam este mercado. As grandes A forma como os investigadores portugueses se envolveram nesta discussão constituiu um quarto Boletim de Biotecnologia 19 Bio-opinião equívoco a considerar. Os investigadores têm dividido a sua intervenção entre a defesa da tecnologia das PGMs e a não comunicação com o público em geral. Ambas as atitudes são equívocas. Como investigador torna-se impossível garantir a total segurança de qualquer tecnologia (a própria experiência diária prova que nenhuma tecnologia é cem por cento segura). A assunção pública de que não se sabe tudo sobre este (e outros assuntos) será a melhor forma de garantir a confiança do público. Mas é também fundamental garantir aquilo de que se sabe. E neste caso o problema é a explicação dos processos biológicos e seus efeitos para públicos pouco conhecedores. Os investigadores têm que ter paciência e obrigarem-se a explicar ao grande público (correndo o risco de simplificar) quais os fenómenos envolvidos nestes processos e quais as suas possíveis consequências. Não é aceitável que os investigadores continuem a viver num mundo à parte da sociedade, apenas porque lidam com fenómenos complexos. A dependência cada vez maior do conhecimento especializado para a tomada de decisões implica que o investigador seja capaz de comunicar e de aceitar ser questionado e confrontado com as suas opções e certezas. O quinto equívoco é a política assumida pelo governo português nesta matéria. O governo entregou a “tutela” desta problemática a quatro ministérios, não criando qualquer mecanismo efectivo para abordar, de uma forma adequada, esta questão. Acresce que qualquer dos ministérios tem fugido como “diabo da cruz” a este assunto. A razão parece simples: não existem conhecimentos técnicos suficientes em qualquer dos organismos do Estado para permitir abordar de forma coerente este assunto. Particularmente penosas têm sido as actuações dos Ministérios da Saúde e do Ambiente. O primeiro foi incapaz, até ao momento, de emitir uma posição relativamente à perigosidade para a saúde humana das PGMs. O segundo é incapaz de estabelecer uma estratégia que permita dar respostas às questões levantadas relativamente às consequências para o ambiente da utilização das PGMs. Às questões como a possibilidade de transferência horizontal de genes, ao aparecimento de infestantes resistentes a herbicidas, à perda de biodiversidade, entre outras, Ministério do Ambiente disse nada. O Governo português não parece entretanto disponível para ouvir as diferentes partes com intervenção nesta questão, e os mecanismos encontrados para permitir um apoio técnico, científico e político (como a Comissão inter-ministerial criada para o efeito), são inoperantes e ineficazes (sem menosprezo pelos seus membros). Com que bases vai o Governo tomar decisões nesta matéria? Através da tensão criada pelos diferentes grupos intervenientes? Ou simplesmente porque outros países já decidiram e temos que “estar com a Europa”? Nada do que foi escrito atrás permite resolver a questão: são ou não seguras as PGMs? A resposta só pode ser: depende. Com a tecnologia disponível é perfeitamente possível a criação de PGMs que sirvam para produzir um genocídio (e quando se proibir a utilização da tecnologia, quem controla todos os laboratórios e empresas com capacidade para desenvolver e colocar no mercado esta tecnologia?). As questões colocadas na Europa relativas à utilização de PGMs são muito mais de natureza sócio-política e económica do que genuínas questões de segurança da saúde humana e do ambiente. Se em vez de abertamente se aplaudir e divulgar a destruição de campos experimentais (onde será possível obter respostas cientificamente credíveis às dúvidas existentes) se apoiarem iniciativas que permitam o estudo sério das consequências da utilização desta tecnologia será progressivamente possível separar o trigo do joio. Uma Análise Crítica da Argumentação a Favor dos Organismos Geneticamente Modificados Sou formado em Biologia, e fui durante alguns anos Humberto D. Rosa Rosa Prof. Auxiliar, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa Assessor para o Ambiente, Gabinete do Primeiro Ministro [email protected] dirigente de organizações profissionais de biólogos. Este percurso fez-me desde cedo bem consciente das enormes potencialidades científicas, económicas e sociais da 20 Boletim de Biotecnologia biologia molecular e da engenharia genética, as quais estão hoje amplamente documentadas. A minha actividade sequente e actual de assessoria ambiental deume igualmente uma maior consciência dos riscos inerentes à libertação de organismos geneticamente modificados (OGMs) no ambiente, bem como do risco de rejeição social desse tipo de desenvolvimento biotecnológico. Estes antecedentes não me dotaram de qualquer interesse ou empenho pessoal na promoção ou despromoção da biotecnologia, que não seja o de a ver singrar naquilo que tenha de positivo e não no que tenha de negativo.