A difícil passagem para o mundo dos brancos
Ainda vigora o julgamento de Florestan Fernandes segundo o qual os negros foram
barrados na cena histórica nacional
Leonardo Trevisan
O que é mais efetivo para a democracia racial brasileira: um casal negro no anúncio para
vender apartamentos de alto luxo, ou a imposição de cotas raciais na USP, a melhor
universidade pública do País? É curioso, mas Florestan Fernandes, professor aposentado
pelo regime militar, deputado pelo PT, que conheceu o sindicalista Lula dizendo: “não me
ajoelho para o deus operário”, que passou a vida combatendo o mito da democracia
racial brasileira, provavelmente responderia a pergunta sobre apartamentos ou cotas
discutindo sua premissa. Será que entrar nos melhores lugares dos brancos resolve o
problema dos negros no Brasil?
Aliás, tratar dessa dúvida foi o que fez Florestan no livro de 1972, O Negro no Mundo dos
Brancos (Global, 315 págs., R$ 45). Três décadas e tanto depois, pouca coisa se moveu
nessa situação. Por exemplo, os dados do IBGE de 1960 sobre a porcentagem de
estudantes negros nos cursos universitários de elite são praticamente os mesmos de
hoje. No livro, Florestan reconhecia que sua maior preocupação era pôr em evidência o
“sentido global e as conseqüências fatais do ajustamento” do negro e do mulato à
sociedade brasileira. Antes de atingir a democracia, o negro e o mulato têm de “aceitar a
padronização e a uniformização” e, então “eles se perdem como raça e como raça
portadora de cultura”. A imagem de Florestan é forte e objetiva: as portas do mundo dos
brancos “não são intransponíveis”, mas para atravessá-las os negros passam por um
processo de “branqueamento”; nele “unidade nacional, civilização moderna e dominação
dos setores privilegiados dos brancos” estão misturados e darão as cartas do jogo.
É preciso cautela para entender o que queria dizer Florestan com essa imagem. Embora
parcela da população negra participe, até em número considerável, das “conquistas do
progresso” não se pode afirmar, como garantia o ex-professor da USP, que eles
compartilhem “coletivamente das correntes de mobilidade social vertical da sociedade de
classes”. Ele reconhecia que essa conclusão contrariava o que se costumava dizer sobre
democracia racial e ponderava: é que se confundem padrões de tolerância, imperativos
no decoro social com “igualdade racial propriamente dita”. Com rigor científico, via
estatísticas do IBGE, Florestan mostrava que negros e mulatos estavam longe de
participar de oportunidades ocupacionais em condições de igualdade com o branco.
Depois de décadas, o que mudou? Há meses, a mesma fonte, o IBGE, mostrou as
diferenças salariais entre brancos e negros, com idêntica escolaridade.
No Brasil, na opinião de Florestan, o negro não entrou no mundo dos brancos. Foi o
branco que construiu, na visão dele, o mito de que o negro entrou no seu mundo, por
meio do “preconceito de não ter preconceito”, a base do mito da democracia racial
brasileira. A atitude dos brasileiros diante do “preconceito de cor” é de considerá-lo
ultrajante (para quem o sofre) e degradante (para os que praticam). O autor do clássico
Integração do Negro na Sociedade de Classes (esgotado) notou que essa polarização de
atitudes é fruto do ethos católico e está tão forte, no presente, pelo modo como se
desagregou a sociedade tradicional. No passado, a escravidão minava os mores cristãos
por pedir aos católicos uma visão de mundo cristã, o lado de uma prática adversa “às
obrigações ideais do católico”. Mesmo com o fim da sociedade tradicional, o branco
continuou exibindo severa consciência de sua responsabilidade na degradação do negro,
ao mesmo tempo em que encontrava grande dificuldade em converter em realidade o
ideal de fraternidade cristão católico que professava. Era, no dizer de Florestan, uma
típica “acomodação contraditória”, construindo uma moral reativa que gera o
“preconceito de não ter preconceito”. Ao contrário do branco reconhecidamente racista, a
ideologia racial dominante no Brasil é construída por “subterfúgios”. Nesse quadro,
questão racial é vista a partir do risco da imitação, da influência externa (“inovação
estranha ao caráter brasileiro”), ou pior, do “complexo do negro”.
No mundo do trabalho, a questão da raça assumiu outras características. Por exemplo, a
imigração européia, acelerada no final do século 19, coincidindo com a Abolição, teve
papel essencial no modo de inclusão do negro na sociedade de classes. O maior problema
do negro recém-liberto estava na incapacidade da sociedade nacional de criar economia
capitalista expansiva capaz de absorver o ex-escravo. Como perdia a competição com o
imigrante livre, o negro se converteu na expressão de Florestan em “resíduo racial”.
Perdeu a condição social que tinha no regime da escravidão e se transformou na
categoria mais baixa da “população pobre”, exatamente quando alguns estratos dessa
população participavam das novas oportunidades do trabalho livre. Nesse quadro formase um monopólio das melhores possibilidades pelos brancos. A imagem mais significativa
de Florestan é que a revolução burguesa barrou o negro da cena histórica brasileira.
Na grande acomodação contraditória que vive a chamada democracia racial brasileira, o
cidadão consciente reclama e exige que negros não tenham só o papel de serviçal na
novela das oito, mas não aceita sequer participar do debate sobre cotas raciais no
trabalho ou na universidade por considerar a iniciativa um racismo às avessas. A questão
não está no fato de cotas representarem boa ou má solução (um outro problema), mas
na forma que toma o debate, monotonamente repetitiva da “acomodação contraditória”
que Florestan percebeu nos anos 60.
É possível também criticar Florestan, como muita gente fez nos últimos anos. Enfim, os
negros libertos não agiam apenas passivamente, na lógica da sobrevivência e nada mais.
Muitas vezes enfrentaram a sociedade que os excluía. O importante, no entanto, está na
percepção do professor sobre a “reposição do preconceito” mesmo quando a ordem
histórica que o gerou já acabou. Na verdade, isso é o que mais incomoda: a
interpretação de Florestan sobre o mito da democracia racial brasileira permanece atual,
depois de tantos anos. Era exatamente o que ele não queria.
Perfil
FLORESTAN FERNANDES: Professor marxista da USP, ele criou uma trajetória
singular na sociologia brasileira e militou em movimentos contra as injustiças
sociais. Perseguido pela ditadura militar, Florestan (1920-1995) estudou a
realidade social do País e consolidou a sociologia crítica com obras
fundamentais, entre elas Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (1968) e
A Revolução Burguesa no Brasil (1975).
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