1 Florestan Fernandes, o pensador militante* Roberto Amaral Estou aqui para louvar Florestan Fernandes, não para chorá-lo, porque não se deplora a morte de quem fez de sua vida um legado de amor ao próximo, aos humilhados e ofendidos de nossa sociedade, aos excluídos da cidadania, da liberdade e da esperança. Poderia dizer que aqui estou para honrar o sábio, pois sábio era o mestre Florestan, professor de todos nós: professor de sociologia, professor de educação, professor de socialismo, professor de brasilidade, professor de marxismo, professor de comunismo, de revolução social, de militância; mas, acima de tudo, professor de vida, de dignidade, de entrega ao compromisso histórico de salvar a Pátria e redimir seu povo. Poderia dizer que aqui estou para, em nome de meu Partido e dos socialistas, honrar a ausência do mais eminente dos pensadores de esquerda, do parlamentar socialista, do amigo valente, do companheiro afável, simples como os bons, altivo e indômito como só podem ser os homens de bem. Poderia dizer que aqui estamos para honrar esse homem raro que fez da tragédia biológica o ânimo de sua guerra sem quartel contra a tragédia social criada pela exploração do homem pelo homem. Poderia dizer que aqui estamos, emocionados como agora, para homenagear esse grande brasileiro que ficará conosco na presença de seus livros e de seus discípulos, porque, se o militante se foi, ficarão sua vida, seu exemplo, sua lição de vida e morte iluminando nossa tarefa de caminhantes, fazendo definitivas as sendas que nos abriu ao longo de seu magistério. Mas estou aqui para honrar o intelectual do povo Florestan Fernandes. Honrá-lo como pensador, mas honrá-lo pelas suas ações. Venho falar de um amigo inesquecível, soldado leal de todas as causas da Pátria e de seu povo, cuja dor sentia, como ferro em brasa; sofria, e esse sofrimento fazia explodir nele toda sua indignação, indignação do intelectual que rejeitando o confortável papel de espectador descomprometido da história, foi sempre, e até o último estertor, agente de sua alteração, de seu progresso. Quero acentuar que Florestan, sociólogo, mestre da USP, jamais encarou o fato social com a pretensa isenção científica das academias, porque jamais renunciou ao ético e à ação; carregava consigo o peso das dores do ser humano, das injustiças que incidem sobre seu povo, mas nunca as aceitou como fenômeno natural ou destino traçado pelos deuses. Por isso, cientista, foi antes de tudo um revolucionário, porque a injustiça social, que tanto o injuriava, tinha sua fonte no regime de classes, produto da acumulação da mais-valia, fruto da exploração do homem pelo homem. E pouco lhe importava se dentro dele mesmo outra tragédia, essa sim incontornável, o consumisse, todo dia, toda hora, todo minuto. Venho, pois, falar do militante Florestan Fernandes, militante da revolução social, militante do socialismo, da liberdade e do comunismo. Em alguns casos, o bem que os homens fazem perdura depois deles. E que bem foi esse que nos deixa esse grande homem? Falarei de seu papel fundamental como intelectual militante, aquele pensador que não apenas supera suas condições de classe e se faz porta-voz dos interesses dos pobres, dos excluídos, dos operários e dos camponeses, dos sem-teto e dos sem-terra, dos sem-escola, dos sem* Discurso pronunciado em Recife, 16 de novembro de 1995, na Homenagem a Florestan Fernandes pelo Partido Socialista Brasileiro, por ocasião da instalação de seu V Congresso Nacional. 2 saúde, dos sem-futuro, dos sem-esperança, mas que também se compromete com o processo revolucionário, como teórico e homem de ação. Na verdade, Florestan jamais conciliou, no sentido de harmonizar, pôr em igual peso, produção teórica e prática política. A produção teórica, conquanto que inexcedível, foi sempre uma serva da militância. Por isso mesmo, se era certamente o mais lúcido e profícuo pensador da esquerda brasileira, certamente foi o combatente, o filósofo, o pensador, o homem de idéias, o teórico que mais fundo penetrou na militância. Sua sociologia, trocando os gabinetes universitários, pretensamente assépticos, pela promiscuidade das ruas, tanto quanto sua filosofia, sua formulação política, são extraídas da história concreta da sua vida de excluído desde cedo, brasileiro que desde cedo e na própria existência conheceu, antes do conceito teórico, a dura realidade da luta de classes. Permanentemente em dia com seu tempo, definia-se diante da realidade e definir-se para ele era alinhar-se ao lado dos oprimidos. Sua filosofia está impregnada da consciência da tragédia social construída por um país governado de forma monstruosa, o país rico de ricos muito ricos, entretanto poucos, pouquíssimos, e lotado de famintos, de desempregados, de multidões de párias que perambulam pelos campos e pelas cidades de Norte a Sul, crianças, jovens, meninas e meninos, mulheres e homens, velhos e doentes. Mais da metade da população. Pois sua história existe por si, mas também timbrada por ele, por sua existência, pelo papel que decidiu exercer no mundo, podendo ser outro. Muito cedo Florestan compreendeu, e levou esse entendimento até às últimas conseqüências, que mais importante do que pensar a história é rever a história, é modificar a história, é fazer a história, é refazer a história, é não aceitar a ordem natural da história manipulada pela hegemonia de classes. Por isso ele encarna a melhor tradição do intelectual marxista, porque o intelectual engajado é um ator da história, no caso de Florestan, um ator em busca da revolução social, porque seu papel não é lamentar a injustiça social, é salvar os injustiçados, destruindo as estruturas capitalistas que os produzem. Por isso, militante, seu pensamento é feito fato, fato decorrente da necessidade de uma definição permanente. Ele nos perguntava sempre: "De que lado estamos?", pergunta a que talvez não possam responder, sem crise de consciência, muitos companheiros comunistas e marxistas, socialistas e marxólogos de outras lutas... Conclamava Florestan, como se escrevesse para muitos de seus ex-discípulos: "A atualidade de Marx não reside nas obras que escreveu, mas no apelo para estudar e reinterpretar o concreto como totalidade histórica e descobrir nele a natureza da revolução. Atualidade significa ‘ir além’, seguindo os mesmos princípios e métodos interpretativos. Se sobrevivem as crises de longa duração e se persiste o clamor rancoroso dos que sofrem os dilemas sociais, a ordem está condenada. Generaliza-se o saber de que na civilização vigente fica a gênese das iniqüidades, das psicoses e do padrão de desumanização da pessoa. As duas alternativas são a decadência inevitável ou o socialismo. De que lado nos situamos? Deixar que a civilização mais rica da humanidade pereça miseravelmente ou levar avante os processos de renovação sem limites que ela contém, sob a égide do socialismo revolucionário?"1. De que lado estamos? Do teu lado, Florestan. Por isso, para Florestan Fernandes, é insuficiente a categoria de intelectual orgânico, em contraposição ao intelectual institucional, aquele que contempla a realidade e se consola com ela, e, prático, pragmático, oportunista, dono da verdade, nos fala do alto de sua cátedra: não podemos bater de frente contra a realidade, nós não podemos ser contra a História... Ora, nosso dever de socialistas é exatamente contrariar a realidade, mudar a História! Pobres espíritos... São os modernistas, modernosos, e moderneiros de sempre, quase sempre bem sucedidos. São os mesmos que na França, como o sabido Laval, e no mundo, nos primeiros 1 As citações de Florestan Fernandes foram retiradas de 'Revolução, um fantasma que não foi esconjurado' in Crítica Marxista. Vol 1, N. 2. Brasiliense, São Paulo. 1995; A integração do negro na sociedade de classes. Ed. Dominus. São Paulo, 1975 e Significado do protesto negro. Ed. Cortez, São Paulo, 1989. 3 anos da guerra, criticavam os maquis de todas as naturezas pois esses revolucionários, ou ‘dinossauros’ diriam hoje, teimavam em enfrentar a maravilha da modernidade nazista que em só seis anos transformara a Alemanha arrasada de Versailles na maior potência do mundo, tão forte, tão desenvolvida e tão moderna que podia desafiar o mundo! Eram os pragmáticos do futuro governo colaboracionista de Vichy, aparentes vencedores de momento, definitivos derrotados pela história da resistência; eram, seriam os que, em 64, não podiam entender que resistíssemos à realidade militar, que também se anunciou como moderna; eram os que, nos idos de 70, não podiam aceitar que combatéssemos, como podíamos combater, o 'milagre econômico' que tentava abafar os gemidos dos torturados, dos assassinados, dos procurados e dos ‘desaparecidos’eufemismo que a imprensa grafou para ocultar o crime de assassinato.. São os mesmos que hoje nos chamam de retardatários, porque rapidamente aderiram ao cantochão da modernidade neoliberal, que, em nome de um desenvolvimento que não surgiu ainda, e se surgir, só surgirá para poucos exploradores, aumenta a pobreza e a concentração de renda. Citam Marx, esquecidos de que o autor de O Capital, ao se deparar com a Revolução Industrial, não se encantou com a modernidade capitalista: denunciou a exploração do homem pelo homem, e, em face da fome e da miséria, indicou para a humanidade a alternativa do socialismo nos termos do Manifesto Comunista de 1848, cujas teses fundamentais permanecem de pé, como de pé permanece a crítica ética básica àquele regime cuja riqueza de poucos depende da exploração de muitos. Não basta entender a realidade, compreender o processo histórico: é preciso fazer a revolução, e ela se faz no combate diário ao capitalismo. Nossa tarefa é alterar o futuro. O revolucionário vê antes de todos o que está por vir, isto é, o futuro que está sendo construído pelas forças hegemônicas na sociedade; pensa, formula o que deveria ser, e faz com que este seu projeto, ou utopia, ocorra. A utopia, nas mãos do revolucionário, se transforma em realidade. Este é um dos legados de Florestan que há pouco nos advertia: "Ou o intelectual se empenha no fortalecimento do movimento socialista, ou ele voltará a ser joguete nas mãos das forças da conservação da ordem". Ora esse texto, desgraçadamente premonitório, estava a descrever, antevendo, a migração de tantos intelectuais, muitos seus ex-alunos, para as tetas aconchegantes do statu quo. Refiro-me à sua denúncia dos intelectuais desligados da prática, cujo primeiro impulso é, palavras suas, "salvar a pele, para não sacrificar a consciência...", transmigrando para o conservadorismo, sem resistência, sem luta, contribuindo para a instrumentalização da social democracia como mão esquerda da burguesia. E, assim, legitimando sua traição. Esse processo, se a ele não soubermos reagir, pode levar à destruição não só de nossos partidos como opções socialistas, mas, principalmente, como opção revolucionária. Uma das formas de reagir é já retomar a leitura de Florestan e divulgar seu pensamento. Florestan, permanentemente revolucionário, se poderia compreender, e compreendia, não aceitava e denunciava e nos ensinava a denunciar o falso progressismo do comunista que em nome da revolução se confunde com a social democracia, e do marxista que em nome da renovação filosófica aceita como suas as categorias do liberalismo. Nesse abandono afoito está certamente uma das raízes da crise de identidade da esquerda brasileira de hoje, quando, pensando que está fazendo autocrítica, recorrente, atrasada, faz de si a crítica da direita. Um outro de seus legados é a resistência revolucionária. Quando, entre os intelectuais de esquerda, entre os partidos de esquerda, entre os socialistas, o recuo ideológico, tático e estratégico parecia ser a norma, sua voz indômita se erguia para retomar as bases do comunismo revolucionário, denunciando o adesismo, o colaboracionismo, o pretenso evolucionismo de uma transição pacífica que só numa concepção religiosa ou mágica poderia assegurar a marcha inelutável do capitalismo para o socialismo. Advertia ele: "De uma perspectiva macrossociológica a revolução é mais importante que a estabilidade social, vistas como assuntos específicos. (...) Não existiria, porém, 'evolução social da humanidade', ignorando-se mudanças sociais abruptas, provenientes de invasões, difusão cultural e mudanças sociais que adaptassem a ordem a inovações que conduziam à reforma social e à revolução". Completa ele: "Nesse passo revela-se a atualidade do marxismo e a necessidade do socialismo revolucionário militante". Militância, e agora atingimos a terceira categoria essencial do pensamento de Florestan, que tem 4 como base a radicalidade, a começar pela radicalidade do rompimento com toda e qualquer manifestação da dominação de classe, que em nossos países tende a reforçar a estabilidade e a prolongar a ordem social. Radicalidade que significa, a um só tempo, a retomada das bases do socialismo clássico e o rompimento com a social democracia e o combate militante ao capitalismo. O alvo de nossa crítica é tanto à autocrítica sem fim de uma esquerda com sentimento de culpa, quanto à adesão ao sistema, por uma esquerda pusilâmine; um e outro são o aplainado caminho dos que desistem de enfrentar a radicalidade. Nossa prática deve ser a crítica ao capitalismo como instrumento de opressão e exploração do homem pelo homem, incompatível com a dignidade do ser humano até quando é vitorioso. Nosso dever é a militância diária e diuturna do socialismo. Porque essa terra jamais foi risonha ou franca. Nossa verdadeira história foi escrita com muito sangue do povo trabalhador. A colonização se fez a ferro e fogo, ao preço do genocídio das nações indígenas e às custas do escravismo negro, da barbárie, da sevícia e do pelourinho, da fome e da morte por inanição do braço africano. Braço que, ao contrário do que procura ensinar a historiografia oficial, jamais aceitou sem resistência a escravidão. Aí está a longa trajetória dos quilombos dos quais o mais importante deles, Palmares, data dos meados do século XVII, dando, já tão cedo, a mostra da grande capacidade de organização das populações negras, pois o quilombo era essencialmente um movimento coletivo de massa. No quase final desses 500 anos de exploração e depredação, da natureza, do meio-ambiente, do povo, da nação, do País, do povo nativo e do povo escravizado, contemplando, passados 300 anos, os momentos heróicos de Porto Calvo, o heroísmo de Zumbi, a primeira manifestação revolucionária de nosso povo, nós nos reencontramos com Florestan Fernandes, com sua obra sociológica, militante, a nos ensinar como o povo emerge nessa história contada pelos vencedores. Em sua obra fundamental (A integração do negro na sociedade de classes), Florestan mostra como o processo de desenvolvimento capitalista foi também um processo de exclusão racial que impôs ao negro brasileiro mais dominação, mais pobreza. Trazendo o debate sobre o negro do terreno da cultura para o da produção da vida material, desmistifica a ideologia dos intelectuais da classe dominante sobre a 'democracia racial' brasileira. Neste sentido, denuncia a Abolição, que Rui Barbosa chamou de ato atroz e irônico, como momento de exploração extrema e cruel, entregando o liberto à devastação pelo regime de classes. O regime escravagista não preparara o escravo, portanto o liberto, para agir plenamente como 'trabalhador livre' ou como 'empresário' e o desenvolvimento capitalista entrega-o à competição com o imigrante europeu, a quem estavam reservadas as melhores oportunidades de trabalho livre e independente. Quando se dá o desenvolvimento econômico urbano, as posições estratégicas da economia artesanal e do pequeno comércio já estavam monopolizadas pelos brancos. Os negros tinham de disputar eternamente as oportunidades residuais com os componentes marginais do sistema, com os que 'não serviam, para outra coisa'. Por que essas considerações? Para, em momento tão oportuno, e revelador da atualidade de Florestan, lembrá-lo quando nos dizia que a raça tem de ser absorvida pelo conflito de classe, e é isto fundamentalmente que quero afirmar, repetindo Florestan, para quem, se o negro e o mulato quiserem defender sua posição em termos estritamente raciais, eles correrão o risco do isolamento, da auto-segregação e do esvaziamento da sua posição de força. Ao contrário, o negro será fermento revolucionário na sociedade brasileira na medida em que conseguir levar o protesto racial para dentro da luta de classes, porque, nesta sociedade duplamente discriminadora, pelo regime de classes e pelo racismo, a pobreza tem cor. Ao concluir esta homenagem, quero trazer para esta pensação um outro militante da revolução social na América Latina, também um homem sereno, inquietado e martirizado pela impossibilidade de conviver com a miséria dos excluídos, o revolucionário cujo despreendimento pessoal, desapego à vida e amor ao próximo quase místico, coragem, valentia e destemor quase-temerário, jamais o fez esquecer a ternura dos humanistas. Refiro-me a Ernesto 'Che' Guevara, a cuja biografia, a cujo exemplo, a cuja lição de morte e vida Flortestan devotava a mais justa admiração. Releio 'Che' Guevara, radical como Florestan, a nos falar nos valores 5 filosóficos do socialismo, valores que a muitos podem parecer subjetivos, mas sem os quais não se fará e não se construirá o novo homem, e sem esse novo homem não será possível construir o socialismo, ainda que se possa fazer uma revolução social. Talvez por aí se encontre uma das muitas vias para a compreensão da crise do Leste Europeu, e talvez ainda neste 'Che’ possa estar, dramaticamente, uma advertência para aqueles países que estão procurando salvar-se da crise do socialismo sem se voltar para a radicalidade socialista, mas, ao contrário, fazendo concessões ao capitalismo, no que ele tem de pior, a sua tábua de valores, ou não-valores. É preciso ler e ouvir Guevara: "O Socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, porém ao mesmo tempo lutamos contra a alienação. Um dos objetivos fundamentais do marxismo é fazer desaparecer o lucro, o fator lucro individual. Marx se preocupava tanto dos fatos econômicos como de sua tradução na mente. Ele chamava a isso 'um fato de consciência'. Se o comunismo descuida dos fatos de consciência, pode ser um método de repartição, porém deixa de ser uma moral revolucionária"2. Para Ernesto 'Che' Guevara o marxista deveria ser "o melhor, o mais cabal, o mais completo dos seres humanos (...) um militante de um partido que vive e vibra em contato com as massas, um orientador". Florestan, era esse marxista. Por isso, digamos com 'Che’, como certamente terá pensado Florestan: "Em qualquer lugar em que nos surpreenda a morte, bem-vinda seja ela, sempre que nosso grito de guerra haja chegado até um ouvido receptivo e outra mão se estenda para empunhar nossas armas...". (16 de novembro de 1995) 2 Os textos de Ernesto 'Che' Guevara foram retirados de Ariet, María del Carmen. Che pensamiento político. Editora Política, La Habana, 1993