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TECENDO OUTRAS HISTÓRIAS: A PARTE DAS MULHERES EM A ODISSEIA
DE PENÉLOPE, DE MARGARET ATWOOD
Luiz Manoel da Silva Oliveira (UFSJ)
A escritora canadense contemporânea Margaret Atwood tem-se firmado no
mundo das letras, da cultura e do ativismo social, político e ambiental como uma das
vozes mais ativas, não somente nas fronteiras canadenses, mas também em nível de
reputação mundial. Muito disso se dá em função da sua rica produção literária, que lida
com vertentes difusas e multifacetadas, que também parecem servir, por assim dizer, de
“combustível” não somente para realizações na esfera artística e literária, onde já
contabiliza mais de trinta livros publicados no momento, mas também para as suas
atuações para além da esfera literária, como membro ativo e influente da Anistia
Internacional, por exemplo. Considerando-se as vertentes nas quais se desdobram as
estratégias narrativas, temáticas e gêneros com que normalmente lida, podemos destacar
o sobrenatural, o gótico, a ficção científica, as distopias, a metaficção historiográfica, a
mitologia, a ecologia, as questões femininas e de gênero (em seus amplos espectros), as
discussões coloniais, pós-coloniais e neocoloniais (incluídas aí suas imbricações), assim
como as teorias identitárias e feministas.
Dentre as obras de autoria de Atwood que ilustram algumas das temáticas
retromencionadas, podem ser relacionadas: The Journals of Susanna Moodie (1970),
Surfacing (1972), The Handmaid`s Tale (1986), Cat`s Eye (1988), The Robber Bride
(1993), Alias Grace (1996), The Blind Assassin (2000), The Penelopiad (2005) e The
Year of the Flood (2009). Em meio à ostensiva gama de tópicos e abordagens que tais
obras abarcam, é possível perceber um fio condutor quase que onipresente em muitos
dos escritos atwoodianos: o ímpeto de representar literariamente não somente o nãolugar, a ausência, o apagamento, a perda, a negatividade, o silenciamento, a opressão e a
objetificação que o patriarcado instituído na nossa e em diversas sociedades passadas
tem legado às mulheres, em geral, mas também – e principalmente – a necessidade
premente de igualmente se fazerem representar no discurso literário os processos de
agência, subjetificação e de empoderamento femininos, de certa forma anuladores dos
escolhos que agrilhoavam as mulheres de forma impiedosa no passado.
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Assim, para já começar a fazer jus à “parte das mulheres”, conforme se lê no
título, propomos aqui algumas reflexões acerca do potencial de desconstrução do
sistema de opressão das mulheres na sociedade grega antiga, uma das mais
androcêntricas do nosso passado ocidental, através de algumas interpretações da novela
atwoodiana The Penelopiad (2005). De início, vale ressaltar que essa obra teve a
publicação liberada simultaneamente em nível mundial para 33 editoras, que a
publicaram em 28 idiomas, e que a mesma tem sido adaptada para o teatro, como, por
exemplo, é prova disso a versão teatral co-produzida pelo National Arts Center, de
Ottawa, e a Royal Shakespearean Company, com exibições no Swan Theater, em
Stratford-upon-Avon e no próprio National Arts Center, durante o verão e o outono de
2007, por um elenco totalmente feminino dirigido por Josette Bushell-Mingo. Outra
informação relevante é que logo após sua publicação, a obra atingiu status de best-seller
no Canadá: primeiro lugar, segundo a revista semanal canadense Maclean`s; e segundo
lugar, conforme noticiado na época pelo jornal canadense The Globe and Mail. Porém,
o mesmo sucesso de vendas e recepção por parte do público não ocorreu no mercado
estadunidense.
Arriscando agora os primeiros passos pela via da crítica e da teoria, podemos
afirmar que a obra original, A Odisseia (2006), de Homero, por ser um dos escritos
clássicos canônicos fundadores da tradição literária ocidental, não foge do que tem
acontecido com as representações ficcionais das mulheres e seus papeis na maioria das
produções literárias posteriores: reserva-lhes, igualmente, contornos quase que
invariavelmente calcados na alegação da suposta inferioridade feminina com relação aos
homens, como que refletindo fielmente esse “lugar-comum” nas sociedades patriarcais
ocidentais e orientais, nas mais diferentes partes do mundo e em inúmeros períodos da
história humana (Andermahr, 1997).
Um elemento norteador das nossas interpretações aqui é que as imbricações e
cruzamentos de críticas e teorias literárias, feministas, culturais, históricas e das
estéticas da pós-modernidade têm servido tanto para informar as possibilidades de
análise desses novos tipos de escritas ficcionais da contemporaneidade (encampadores
de traços de outros gêneros literários diferentes do romance e da novela, por exemplo),
assim como para subsidiar as novas reconfigurações identitárias e papeis femininos que
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se têm fartamente observado na produção ficcional, – principalmente quando produzida
por mulheres escritoras e com o fito de superar a opressão patriarcal - , nesta nossa
época de dinamismo, indeterminação e fluidez, conforme têm enfatizado teóricas e
teóricos como Luce Irigaray (1985), Sarah Mills (1996), Patricia Waugh (1998) e
Thomas Bonnici & Lúcia Osana Zolin (2009). Esta dupla função dos cruzamentos das
críticas e teorias culturais e literárias da contemporaneidade mostra-se útil para a
presente proposta de interpretações de A Odisséia de Penélope, uma concisa e
impressionantemente bem elaborada reescritura de vários episódios do clássico grego A
Odisséia, de Homero, concebida pelo crivo jocoso, sarcástico, sábio e causticamente
desconstrutor de uma nova Penélope, que não é mais aquela esposa irremediavelmente
paciente, confiável e fiel dos áureos tempos do Helenismo Clássico, virtuosamente
cantada pela verve de um improvável (único) Homero, mas antes uma personalidade
feminina empoderada e revigorada (Oliveira, 2009), que, nas palavras de Sigrid Renaux,
é uma Penélope que é “simultaneamente uma figura épica e mítica, porém também pósmoderna, que reflete sobre suas alteridades” (Renaux, 2007/2009, p. 205), e cuja nova
história (e a de Odisseu, Telêmaco, Helena de Tróia e das suas ex-escravas) ela mesma
reconta.
A versão portuguesa do livro, com a qual estamos trabalhando, tem 159
páginas e se divide em 29 capítulos relativamente curtos. Neles, a escritora utiliza-se de
um recurso inovador que não somente torna evidente a intromissão da voz autoral no
corpo da narrativa, já que inclui dados “extratextuais” que vão iluminar as estratégias e
os sentidos possíveis da mesma, como também enriquece as suas camadas polifônicas,
verdadeiramente problematizando os conflitos, as tramas e as versões que compõem a
narrativa. Temos um bom exemplo disso na “Introdução”, em que a narradora já faz
uma sinopse da Odisséia homérica, sugerindo que vai questionar versões de fatos
tradicionalmente aceitas como válidas e únicas, o que já prepara o leitor para a
desconstrução e a reavaliação de fatos e versões concebidas pelo novo olhar da exmulher de Odisseu e das suas antigas doze escravas. Torna-se bastante pertinente
destacar aqui o que é relatado no final dessa Introdução, quando Atwood afirma que a
razão do enforcamento das escravas e o propósito verdadeiro de Penélope sempre lhe
causaram desconforto no livro original, a ponto de sempre ter vivido “assombrada” por
essas questões que para ela ficaram silenciadas e sem solução. Assim, decide transmitir
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essa inquietação para essa nova Penélope que floresce da sua reescritura de episódios da
obra clássica no século XXI, oferecendo-se, assim, novos contornos interpretativos.
Já na parte “Fontes”, depois do último capítulo, a autora diretamente dá conta
das fontes bibliográficas que utilizou, assim como em “Agradecimentos”, ela cita
muitas pessoas que contribuíram das mais diferentes formas para a realização da obra.
Tudo isto é muito emblemático, por carrear a noção de que Margaret Atwood quer
partilhar a autoria do livro com todas as personalidades ali mencionadas, de modo que o
leitor é levado a concluir que a existência em si da obra literária foi possível graças à
atuação de muitas vozes e do ímpeto criativo de vários escritores e escritoras, ou seja,
assim como se pode dizer que a polifonia impera na narrativa do livro, a sua concepção
caracterizar-se-ia por ser de fato “multiautoral”.
Assim, iniciando a breve menção a algumas obras e situações que dão conta da
problemática envolvendo as mulheres na Antiguidade Grega (que jogarão um pouco de
luz nas condições da Penélope homérica), assim como de algumas concepções atinentes
a alguns aspectos das teorias e críticas contemporâneas (que, mais à frente, informarão
as possíveis releituras das ações da protagonista e dos sentidos do livro que se
oferecerão), optamos por destacar o que Will Durant (2001) relata acerca das
concepções injustas e preconceituosas que a sociedade ocidental desenvolveu sobre a
vida de Safo, por exemplo. Ele ressalta que ela era uma jovem de rara beleza que tinha o
refinamento da ternura, da delicadeza e do talento artístico. Casando-se aos vinte anos
com um rico mercador, logo veio a enviuvar. Vendo-se sem parceiro, Safo abriu a
primeira escola de aperfeiçoamento para mulheres de que se tem notícia, ensinando-lhes
poesia, música e dança. Apaixonando-se por uma de suas alunas, Átis, Safo quase
enlouquece quando esta aceita os galanteios de um rapaz. Durant ainda frisa que a
censura efetivada pela masculinidade judaicocristã da posteridade “vingou-se de Safo
divulgando ou inventando a história de que ela morrera de um amor não correspondido
por um homem...” (Durant, 2001, p. 92). O autor ainda destaca que as mulheres que se
dedicavam à prostituição se tornaram numerosas, e as de classe mais elevada
(“hetairai”, ou “companheiras”) procuravam se instruir para divertir patronos cultos,
discutindo literatura, arte ou filosofia. Entretanto, um “obstáculo” na vida dessas
cortesãs eram os belos rapazes importados por mercadores para serem vendidos como
concubinos e depois escravos a homens gregos que pudessem pagar por eles. Na
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sociedade ateniense, por exemplo, em que a lei proibia relações homossexuais, mas em
que a opinião pública as tolerava (pelo receio de excesso populacional, como Aristóteles
isso justificava), o sucesso dessas mulheres ficava muito dificultado. Ou seja, o tom
excessivamente masculino da sociedade excluía as mulheres até mesmo da esfera do
amor, ficando inferida a prevalência do seu papel de procriadora, quando o assunto era
amor e sexualidade. Em função disso, os homens casados raramente encontravam
parceria intelectual no lar, pois, a deficiência e a “escassez da educação entre as
mulheres criaram um abismo entre os sexos, e os homens buscavam em outro lugar os
encantos que não haviam permitido que as suas esposas adquirissem”. Assim, o lar de
um homem grego não era um castelo, “mas um dormitório” (Durant, 2001, p. 106), o
que já nos dá a noção de que a esfera da agência, da subjetividade e do poder era
eminentemente masculina e encontrava-se (não raras vezes) bem longe de casa,
enquanto que o espaço da opressão, da objetificação e do apagamento era território
feminino e circunscrevia-se aos limites domésticos.
Para ratificar ainda mais essas concepções negativas acerca da mulher, Thomas
Bonnici (2007, pp. 26, 206 e 207) lembra-nos que Aristóteles reconhecia a supremacia
do homem sobre a mulher, e que o (a) escravo (a) era absolutamente irrelevante para
ele. Assim, a fêmea teria status de “mulher” se ela não fosse escrava e, uma vez que o
conceito fundamental das argumentações aristotélicas privilegiava a masculinidade,
possuir uma identidade classista (“homem” = cidadão livre; “mulher” = esposa do
cidadão livre) conferia o direito de se ter uma identidade de gênero. Desse modo, “os
escravos e as escravas não têm gênero, porque seu sexo não é importante” (p. 26).
Bonnici ainda ressalta que na visão de Platão “a virtude do homem é ser capaz de bem
dirigir o estado, enquanto a virtude da mulher faz com que administre bem a casa, cuide
da família, e sempre obedeça ao marido” (p. 206).
Ainda a esse respeito, Pierre Vidal-Naquet (2002), afirma que “a cidade grega
era um ‘clube de homens’, o que quer dizer que as mulheres estavam excluídas”, e que
as mulheres eram muito pouco mencionadas ou numerosas na Ilíada, mesmo em se
considerando o fato de que “a guerra fora desencadeada pelo rapto de Helena e de seus
tesouros e que pudesse ser interrompida a qualquer momento se os troianos decidissem
devolver a jovem grega” (Vidal-Naquet, 2002, p. 39). Quanto a algumas referências
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femininas em A Odisséia, Vidal-Naquet diz que as circunstâncias se dão “como se o
mundo feminino fosse duplamente acolhedor e perigoso: as sereias são cantoras
destrutivas; Caríbdis e Cila, monstros femininos, destroem ou devoram os que se
aproximam demais; todavia, quanto à Penélope, ele afirma que durante quase toda a
narrativa, “desde o início do poema, Penélope é diferenciada da mulher adúltera, aquela
que tomou um amante na ausência do marido e que, quando do retorno deste último, faz
com que ele seja assassinado” (Vidal-Naquet, 2002, p. 81), numa clara alusão à
Climnestra, a esposa maldita de Agamêmnon.
Ainda nos referindo a duas outras mulheres gregas, uma mitológica e a outra
uma emblemática figura histórica, temos a ilustração de como as estratégias patriarcais
de opressão feminina não mudaram muito com a transição da Antiguidade Grega para o
período do Cristianismo nascente. Enfim, a referência é respectivamente à Filomela e à
Hipácia de Alexandria (c. 370 -415 d.C.). A primeira é protagonista de várias versões do
mito que narra a sua desdita, por ter sido estuprada por seu cunhado Tereu, rei da
Trácia, aprisionada e obrigada a se silenciar, por ter a língua cortada por ele. Não
obstante, teceu um tapete e nele gravou a história do seu ultraje, encaminhando-o à
rainha Procne, sua irmã. Segue-se que as duas, consorciadas, matam o próprio filho e
sobrinho e servem sua carne a Tereu, pois ferir um homem com a morte da sua
descendência masculina – ainda mais em se tratando de um rei – era o que de fato
poderia atingi-lo. Tereu enfurece-se e passa a persegui-las. É este o momento em que os
deuses olímpicos apiedam-se dos três e os transformam em pássaros. Surge daí, em
algumas versões, que Filomela teria recuperado sua voz e que teria se transformado no
rouxinol, que, ao cantar bela e melancolicamente, mais não estaria fazendo que recontar
eternamente a sua triste e trágica história.
Hipácia de Alexandria foi uma mulher de capacidades fenomenais, para quem
a posteridade patriarcal ocidental soube engendrar um apagamento rigoroso, já que são
pouquíssimas as menções a ela própria e aos seus vários sucessos. Filha do renomado
filósofo, astrônomo e matemático Teon, Hipácia foi a última grande cientista de
Alexandria. Versou-se no estudo da matemática, filosofia, lógica, religiões, poesia,
artes, oratória e retórica, vindo a se tornar uma referência muito conhecida e respeitada
na história da matemática, por ter tido uma reputação acadêmica reconhecida entre
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muitos dos sábios que eram seus contemporâneos, com quem mantinha contato intenso
e a quem ajuda a solucionar problemas matemáticos que eram verdadeiros enigmas para
eles. Aos 30 anos, tornou-se diretora da Academia de Alexandria. Diz-se ainda dela que
teria sido a inventora de instrumentos para a astronomia. No entanto, por ser mulher,
intelectual, “pagã” e livre pensadora, numa época de radicalismo cristão, Hipácia foi
brutalmente assassinada por fanáticos religiosos que tentavam se apoderar de centros
importantes da época. Uma vez que o Cristianismo estava recém-oficializado no
Império Romano, o Bispo Cirilo (chefe religioso de Alexandria) dispôs-se a destruir
todos os pagãos e todos os seus escritos. Assim, Hipácia foi levada para dentro de uma
igreja e torturada, tendo sua carne arrancada do corpo e suas vísceras ainda latejantes
atiradas ao fogo. Ironicamente, o “patriarca” de Alexandria foi canonizado no século
XIX e se tornou “São Cirilo”, supostamente por esse ímpeto “piedoso” de propagar o
Cristianismo, em seus primórdios, através da perseguição implacável de “hereges” e
judeus.
Em suma, quaisquer que sejam os vieses de consideração das mulheres gregas
antigas (sejam elas míticas ou históricas), as visões são negativas e mantenedoras de
idealizações sufocantes de virtudes exageradas ou de vícios inomináveis, condições que
se perpetuaram no mundo ocidental e se tornaram objeto de crítica ácida das teorias
feministas. Tomando o destino de cruel de Hipácia, não seria preciso mencionar que as
idealizações que se lançaram sobre a figura das mulheres na nossa sociedade
judaicocristã não reservaram papeis muito mais promissores para elas.
Contra esse estado de coisas, Patrícia Waugh afirma que o “feminismo pode
ser amplamente definido como um movimento político cujos objetivos principais têm
uma natureza emancipatória” em relação à opressão das mulheres (1998, p. 177) e que
contra a ideia de subjetividade enquanto uma essência existente no âmago de cada
indivíduo como algo único, fixo e coerente, o Pós-Estruturalismo propõe uma nova
forma de subjetividade precária, contraditória, em processo e constantemente
reconstituída de forma discursiva toda vez que nós pensamos ou falamos (Waugh, 1998,
p. 179). Estas palavras de Patrícia Waugh relembram de certo modo o que Patrícia
Yaeger afirma sobre o romance contemporâneo, que muito bem se aplicam à novela de
Atwood: “O romance é uma forma multivocal, que abre para as mulheres escritoras uma
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oportunidade de obstruir práticas discursivas que constituem os pressupostos patriarcais
do cotidiano” (Yager, 1988, p. 31). Nesse contexto, vale ressaltar ainda as palavras de
Rita Felski não somente acerca do pragmatismo do feminismo estadunidense, mas
também sobre a contribuição fundamental que essa vertente teórica tem dado para a
interpretação do texto literário contemporâneo:
O feminismo norteamericano tem servido para lembrar aos críticos que a literatura
não se refere unicamente a si própria, ou aos processos metafóricos e metonímicos,
mas está profundamente imbricada com as relações sociais reais, reveladoras das
maquinações da ideologia patriarcal através das suas representações de gênero e
das relações femininas e masculinas (Felski, 1989, p. 29).
E, enfim, dados os pressupostos críticos, históricos e teóricos recém-abordados,
podemos partir para algumas interpretações da novela de Atwood e da performance da
sua protagonista. Na verdade, após vagar por bem mais que dois milênios na morada
das almas virtuosas da Casa de Hades (os Campos Elíseos), a consorte de Odisseu
reconhece-se amadurecida e possuidora de uma percepção altamente crítica e irônica
dos fatos, como ela própria frisa no início do Capítulo 1: “Agora que morri, sei de tudo”
(Atwood, 2005, p. 15). Essa nova condição de não componente do mundo dos vivos lhe
confere a agência, a autonomia e a sabedoria indispensáveis para desmantelar as versões
das histórias e dos episódios tidos como “verdadeiros” em A Odisséia, como ela própria
afirma:
Já que estou morta – já que atingi o estado desossado, deslabiado, despeitado -,
aprendi coisas que preferia desconhecer, como ocorre quando alguém escuta
debaixo da janela ou abre cartas alheias. (...) Aqui todos chegam com um saco
igual aos usados para guardar os ventos, mas todos os sacos estão cheios de
palavras – palavras que a pessoa disse, palavras que ouviu, palavras que foram
ditas a seu respeito. Alguns sacos são muito pequenos; outros, grandes; o meu tem
tamanho razoável, mas boa parte das palavras se refere a meu distinto marido. Ele
me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos. Ele
se safava de todas, outra de suas especialidades: safar-se. (...) Ele sempre foi
muito convincente. Muita gente acreditava que sua versão dos acontecimentos era
verdadeira, com talvez mais, talvez menos, alguns assassinatos, algumas lindas
mulheres seduzidas e vagos monstros de um olho só. Até eu acreditava nele, de
vez em quando. Sabia que era ardiloso e mentia, mas não imaginava que fosse
capaz de me enganar e de me contar mentiras. Não fui fiel? Não esperei, e esperei,
e esperei, apesar da tentação – quase compulsão – de desistir? E o que me restou,
quando a versão oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para
fustigar outras mulheres. Por que não podiam todas ser tão circunspectas,
confiáveis e sofredoras como eu? Era essa a abordagem que adotavam os
cantores, os rapsodos. Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos
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ouvidos de vocês – sim, nos de vocês! Mas, quando tento gritar, pareço uma
coruja (Atwood, 2005, p. 15-16).
Como claramente se percebe nas palavras de Penélope acima, ela imprime uma
grande dose de desconstrução, ceticismo, humor e ironia ao dar conta das suas versões
dos fatos. Nesse processo, ela mesma se desconstrói e se fragmenta, usando seu novo
discurso de um modo ideologicamente autopromissor (Mills, 1997) como uma alma do
Hades, a partir de um “estado desossado, deslabiado, despeitado”, para depois abordar
os “sacos de palavras” com que as almas chegavam àquele lugar, como um mote para
dizer que as palavras do seu “distinto marido” (pura ironia) sempre foram falaciosas, a
despeito de a posteridade as ter reputado como veiculadoras de “verdades”, uma vez que
teriam sido enunciadas por um dos maiores ícones patriarcais da Grécia Antiga. Seguese a isso que Penélope quer assumir sua voz de protesto através de um grito, para que as
outras mulheres não sigam o seu exemplo de docilidade imbecilizante; porém, por ser
“desossada” e “deslabiada”, ela também não tem boca nem corpo, e seu grito só chega
aos ouvidos das mulheres do mundo físico pela narrativa de Atwood.
Enfim, através dessa citação emblemática constante nas duas primeiras páginas
do primeiro capítulo, já se tem uma parca ideia do que ainda está por vir nas demais 144
páginas do livro. De fato, Atwood carnavaliza, ironiza e desconstrói as convenções
épicas, mesclando-as com gêneros narrativos múltiplos e criando uma atmosfera
propícia para dar voz às escravas (que tinham sido enforcadas em A Odisséia por
Odisseu e seu filho Telêmaco por terem se deitado com os pretendentes de Penélope –
mesmo que tivessem feito isso para retardar as investidas sexuais deles sobre a sua
senhora) e à Penélope, que então reconta a sua história desde o seu nascimento até o
retorno de Odisseu, assim como a das malfadadas escravas. O mais interessante de tudo
é que todas essas vozes femininas falam com a absoluta liberdade conferida pela
condição de serem espíritos narrando e reavaliando fatos e versões de fatos
hipoteticamente ocorridos há cerca de três milênios. Em meio a todo esse
engendramento narrativo de ruptura com padrões fixos e tradicionais, destaca-se o
grande toque inusitado desse livro: as escravas formam um Coro, como se a novela
fosse uma peça teatral grega antiga. Assim, as escravas tornam evidente a sua conquista
de agência, verbalizando e denunciando a sua anterior condição de objetificação e de
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identidade em falta, juntando a sua voz à de Penélope, declamando, dançando e
cantando, para desconstruir, julgar e condenar o herói épico Odisseu, em pleno século
XXI.
Toda essa configuração polifônica origina uma estrutura muito original em que
as histórias e assuntos atinentes às mulheres são postos em evidência de uma tal
maneira que todos os outros episódios de A Odisséia são secundarizados. Desse modo,
inúmeros tópicos são referidos: a) a sacralizada aura patriarcal e heróica de Odisseu cai
por terra, assim como os seus feitos e aventuras são minimizados, ironizados e, até
mesmo, ridicularizados; b) as escravas verbalizam contundentemente seus desejos de
vingança e reparação, além de assumirem sua voz para contar a sua trágica história e a
das suas origens; c) a cumplicidade absoluta entre Penélope as suas fiéis escravas, desde
a época em que existiam no mundo material, é tornada pública, revelando-se versões
novas e insuspeitadas de episódios envolvendo ela própria e as suas servas; d) A rotina
do Hades é apresentada por Penélope, que enfatiza as vantagens e desvantagens de se
viver lá, assim como apresenta as suas visões críticas e desafiadoras do modo como os
homens tratavam as mulheres, usando o significativo exemplo do próprio marido e do
filho; e) Penélope desconstrói e questiona as reais motivações do seu casamento com
Odisseu (pois a mulher era tida como uma commodity, visto que o sentido da palavra
grega para casamento era “empréstimo”, segundo Peter N. Stearns [2007, p. 50]); f)
Penélope ironiza o relacionamento com os seus pais, assim como revela a rivalidade e a
animosidade que confessa terem sempre existido entre ela e a sua prima Helena. Em
suma, muitos dos episódios e versões tradicionais que compõem A Odisseia são
esquadrinhados por Penélope e as doze escravas, num genuíno e muito divertido
processo de revisão, permeado por um constante desafio à tradicional estrutura do
romance/novela, que normalmente não se “mistura” com a poesia, com a fala do coro
(que é típico do teatro – gênero dramático), nem tampouco com canções, ou sequer
admite que partes intituladas “Introdução”, “Fontes”, “Agradecimentos”, ou até mesmo
epígrafes posicionadas antes de um insólito “Sumário” se imbriquem e se confundam
com os capítulos de um romance ou de uma novela tradicionais, que usualmente contêm
texto exclusivamente em prosa.
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Torna-se digno de nota destacar que toda essa reescritura de episódios da obra
clássica grega que Atwood realiza é levada a efeito de uma forma, por assim dizer,
“salpicada” de elementos humorísticos fundamentais ao processo de desconstrução
necessário para desestabilizar as versões antigas de episódios de A Odisséia,
principalmente aqueles que dão conta do que teria acontecido com Penélope e as
escravas. Como exemplo disso, no Capítulo 26, tem lugar o “julgamento” de Odisseu
em uma corte de justiça do século XXI, que é prosaicamente gravado em vídeo pelas
escravas. Estão presentes nesse julgamento um advogado de defesa, um juiz, as
escravas, Penélope, as Eríneas e a própria Palas Atenéia, que é instada a socorrer
Odisseu (como acontecia em A Odisséia, quando o herói estava em perigo), por meio da
evocação do seu advogado de defesa. Trata-se de um capítulo em que a inventividade e
o talento de Atwood produzem efeitos singularmente humorísticos, principalmente em
seu desfecho, quando o magistrado contemporâneo percebe-se atônito ao perder
completamente o controle da ordem e da disciplina do tribunal. A cena é
particularmente interessante porque, além do verdadeiro pandemônio que se instala no
julgamento, Atwood parece revestir a narrativa de certa dose dos elementos do que
chamamos de realismo mágico (Chamberlain, 1986), uma vez que um ambiente factual
e sério do século XXI (uma corte de justiça) é tomado por seres sobrenaturais (Odisseu,
Penélope, as escravas) e divindades mitológicas (Palas Atenéia e as Eríneas). A
confusão causada por esses elementos e a súbita aparição da deusa grega parecem levar
o juiz ao desespero, tendo que pedir que Palas cubra o seu seio e se desarme, largando a
sua lança, antes que todos desapareçam numa nuvem de fumaça, como a seguinte e
hilariante passagem do livro tão bem ilustra:
Advogado de Defesa: Convoco a grande Palas Atena de olhos cinzentos, imortal
filha de Zeus, para defender os direitos de propriedade de um homem, amo e
senhor de sua casa, para que leve embora o espírito de meu cliente numa nuvem!
Juiz: Mas o que está acontecendo? Ordem! Ordem! Estamos numa corte de justiça
do século XXI! Vocês, desçam já do teto! Parem de latir e sibilar! Senhora, cubra o
seio e largue essa lança. O que é essa nuvem? Chamem a polícia! Onde está o
acusado? Para onde foi todo mundo? (ATWOOD, 2005, pp. 145-146).
Enfim, A Odisséia de Penélope é um livro muito bem concebido e elaborado,
do ponto de vista das estéticas da pós-modernidade, mercê da sua capacidade de desafio
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tanto dos pressupostos patriarcais, quanto das formas tradicionais de se escrever um
romance ou uma novela. Além disso, suas temáticas sérias são abordadas de uma forma
humorística; porém, muito longe de se imaginar que isto posicione o romance numa
suposta zona de artificialidade e superficialidade, tem-se a firme noção de várias das
intenções revisionistas de elementos da nossa sociedade, do nosso cânone literário e da
nossa cultura, que Atwood tenta inscrever numa esfera mais positiva e desveladora de
“outras verdades”, mormente no que se refere aos papeis contemporâneos da mulher e
às suas crescentes conquistas para resistir à “totalidade”, no sentido essencialista do
termo (Lyotard,1979), condição indispensável para o indivíduo que está em busca da
sua voz, agência e identidade na contemporaneidade.
Referências bibliográficas:
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BONNICI, Thomas. Teoria e Crítica Literária Feminista – Conceitos Fundamentais.
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