Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana 1 A . Oswaldo Sevá Filho 2 =========================================================== Explicação necessária: Em 1995 e 96, fui assistente do perito judicial professor Miguel de Simoni, que instruía uma Ação Civil Pública aberta por um Procurador Federal do Trabalho, e acatada por uma Juíza do Trabalho, Doutora Telma, em Paulínia, S.P., cuja finalidade era obrigar a Refinaria do Planalto, Replan, a maior da Petrobrás, a contratar pessoal para repor o efetivo de suas equipes de operação e de manutenção. Trabalhamos intensamente durante um ano e meio, ele mesmo, o outro assistente Doutor Marcos Sabino, da Procuradoria Regional do Trabalho, 15ª Região, e eu, na condição de assessor do Sindicato dos Petroleiros. Prof.Miguel de Simoni, Perito da Ação Civil Publica, entrevistando Coordenador de oficina de manutenção da Replan , 1995. 1 Original publicado no livro: PORTO, Marcelo Firpo de S. E BARTHOLO, Roberto (orgs) “SENTIDOS DO TRABALHO HUMANO – Miguel de Simoni Presença Inspiração”. pp.235-254 , E-Papers Serv. Editoriais, COPPE, FIOCRUZ, 2005. Re –editado pelo autor em 2012, com fotos do autor, para fins de down load na pagina HTTP://www.ifch.unicamp.br/profseva 2 Ex-professor da UFRJ, no curso de Engenharia industrial da Escola de Engenharia e do programa de Engenharia de Produção da Coppe, ex-professor da UFPb, foi assessor sindical nas áreas de segurança do trabalho, meio ambiente e saúde do trabalhador entre os anos de 1991 e 2001. Atualmente professor do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica, Unicamp. Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Ao final, tínhamos a sensação nítida de que – enquanto os trabalhadores, sob pressão cada vez maior da gerência, refinavam petróleo, os engenheiros e dirigentes da empresa escondiam ou tentavam esconder problemas graves, e nós três, os peritos, é que refinávamos a perícia. Com anuência, cumplicidade e até a torcida favorável de muitos petroleiros da Replan e petroleiros das empreiteiras, consolidávamos argumentos e propostas para solidificar a possível opção judicial pela recomposição das equipes na refinaria. O professor Miguel preparou meticulosamente seu parecer, entregue à Justiça do Trabalho em fins de 1996. Afinal apenas em dezembro de 1999 foi conhecida a sentença da ACP, favorável Sabemos que isto se explica em boa parte por meio dessa circunstância profissional (de ter sido ele o perito e o autor do laudo pericial) e de uma particular convergência entre o perito e o juiz, além de uma parceria inusitada de algum modo intermediada pelo próprio perito, incluindo alguns dirigentes sindicais, uma boa parte dos petroleiros abordados pela perícia, e os assessores técnicos do Sindipetro e do Procurador. Sinais de fogo no costado de um tanque de óleo cru; incêndio ao longo da canaleta com água de drenagem, iniciado por faísca de lixadeira operada por trabalhador terceirizado, acidente ocorrido em 1992, Replan Em seguida ao despacho, ao invés de cumprir as obrigações constantes da ACP, a Petrobrás recorreu, e, parece ter revertido a pena, na instância do TRT em São Paulo. De tudo, ficaram nos acordos coletivos, até hoje, cláusulas de contratação de efetivos Petrobrás, operadores e técnicos de manutenção, para reconstituição de grupos de turno. Em 2002, com atraso de algumas semanas, o boletim do Sindipetro Campinas e Paulínia, deu uma nota curta sobre o falecimento, no Rio de Janeiro, do amigo Miguel de Simoni. 2 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Esse artigo trata a atividade de perícia em uma refinaria de modo teórico e histórico – já que são eventos de dez anos atrás; vai além, incorporando como um registro científico, (etnográfico e antropológico), o fato dessa perícia ser decorrente de uma iniciativa sindical consistente, e o fato de ter sido feita, do modo como foi feita, pelo professor Miguel e seus assistentes. Vista da área administrativa com as chaminés e torres das unidades de destilação de óleo cru e de craqueamento catilitico de gasóleo; as chaminés fumaceando mais escuro indicam anormalidade operacional. Replan, 1995. I -Relações entre as ações gerenciais, os trabalhadores petroleiros e os riscos. No Brasil, as primeiras refinarias de petróleo foram instaladas nos anos 1930 e 40; e as que atualmente funcionam foram construídas nos anos 1970 e 1980. A maneira de trabalhar, os tipos de tarefas e de funções, o modo de operar as instalações petrolíferas veio se modificando bastante em poucas décadas, – e não apenas por meio do aperfeiçoamento da aparelhagem de informação sobre as variáveis de processo e pelos novos modos de comando das instalações, no local e à distância. 3 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Novos artefatos e sistemas, em muitos casos, foram acrescentados em instalações cuja lógica produtiva não sofreu alterações, mas cujas dimensões físicas foram sendo ampliadas e diversificadas. Também se alteraram algumas e se criaram outras tecnologias de prospecção, de extração e beneficiamento de óleo e de gás, algumas técnicas de navegação, atividades inéditas de mergulho comercial e de operação de robôs submarinos. Destacam-se ainda as modificações e inovações nos procedimentos de fabricação e tratamento de derivados - por exemplo, os reciclos de frações pesadas do óleo cru, tipo Fluid Cathalytic Cracking do gasóleo, tipo Delayed Coking para os resíduos ultraviscosos, os tratamentos de óleo diesel e querosene com uso de hidrogênio produzido por reforma do gás metano. Foram notáveis também alguns acréscimos nas plantas originais de utilidades industriais, como a instalação de turbinas a gás, o aproveitamento de gases residuais de craqueamento em caldeiras de recuperação, como o tratamento de algumas emissões (um caso de introdução de precipitador eletrostático antes da chaminé de uma caldeira, na refinaria de Cubatão, SP; alguns casos de plantas de recuperação de enxofre contido em gases ácidos residuais) e como o “tratamento” de resíduos, nos casos de “land farming” para a decomposição das borras oleosas. Aumentando-se a complexidade das cadeias produtivas, e multiplicando-se as interdependências entre as partes de um terminal, de uma refinaria, de uma rede de dutos – é inegável que são diversificados os tipos de riscos e crescem as possibilidades de seqüências acidentais. Isto porque o envelhecimento das instalações, mesmo com o acréscimo de novos artefatos e sistemas, provavelmente faz aumentar a ocorrência de eventos de risco relevante e de acidentes de grandes proporções. Contra os aspectos chocantes de tal realidade, a boa imagem é construída pelas empresas petrolíferas, e a Petrobrás dá sempre o tom nesta música: a inovação tecnológica (computadores e salas de controle 4 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 centralizado, ligadas por fibra ótica aos equipamentos de fabricação) seria uma garantia de sucesso e de produtividade. E...“naturalmente”, assim, sem maiores explicações, as inovações mais as certificações cartoriais (tipo série Iso) seriam garantias de segurança do trabalho e até mesmo de qualidade ambiental. É claro que, formalmente, a Petrobrás e algumas empresas grandes têm suas equipes de segurança e meio ambiente, as “Asemas” e “Susemas”; por outro lado, entretanto, é conhecida a redução da efetividade e até da autonomia de trabalho das CIPAs - Comissões Internas de Prevenção de Acidentes, e das OCEs - Organização para Controle de Emergência,. A prontidão e competência de CIPAs e OCEs dependem de muitas horas e repetições de treinamentos e simulações de combate a fogo e a vazamentos; e isto depende de uma escala mais adequada de horários e turnos de trabalho. Enfim, muita coisa neste campo depende essencialmente das chamadas relações industriais: política de pessoal e de treinamento específico nas atividades e nos problemas da indústria petrolífera, e também depende das relações políticas no “chão de fábrica”, e das relações com os sindicatos e os sindicalistas. É o que veremos. II- As questões de acidentes, riscos e poluição como preocupação sindical Durante mais de nove anos, de setembro de 1992 a março de 2000, tive a oportunidade de participar em eventos profissionais, reuniões empresariais, de sindicatos de trabalhadores, (e alguns encontros paritários e tri-partites com a presença de órgãos públicos), tendo acesso em várias ocasiões, aos locais de trabalho, e à leitura e consulta de documentos e dados primários. 5 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Isto se deu enquanto eu assessorava, a convite, o sindicato dos petroleiros de Campinas e Paulínia, depois, os demais sindicatos do Estado de São Paulo, 3 e, num curto período em 1997, o sindicato do Norte Fluminense e a FUP - Federação Única dos Petroleiros, do campo da CUT. Anos após o término dessas atividades, fui convidado a relatar num congresso acadêmico, pela 1ª. vez, a experiência de assessorar os sindicatos de petroleiros nas áreas de ambiente, saúde, segurança do trabalho, energia. 4 O “petróleo, suas empresas, seus trabalhadores” não são um assunto qualquer como objeto de interesse acadêmico, isto pela simples constatação de que os fluxos e estoques de petróleo cru, de gás e dos combustíveis e petroquímicos derivados integram definitivamente a pauta da opinião pública, em todos os países. Muitos cidadãos sabem da estreita correlação entre o petróleo e as guerras nos territórios em cujo subsolo ficam as maiores reservas e também, lá onde passam ou são projetados os maiores oleodutos e gasodutos. Muitos se preocupam, enquanto usuários, comerciantes, consumidores, com a qualidade, os preços, o abastecimento e até mesmo com a chamada “auto-suficiência” do país em matéria de combustíveis. Nas ocasiões de greves dos petroleiros e dos acidentes industriais (chamados de “ecológicos” por causa de suas conseqüências mais chamativas), é reforçada no público a imagem de um setor vulnerável e traiçoeiro, que pode nos estrangular [a escassez, o preço alto] e nos matar [o incêndio, a explosão]. 3 Eram outros quatro Sindipetros: em São José dos Campos; em Mauá; em São Paulo, Barueri, Suzano, Guarulhos e Guararema; em Santos, Cubatão e São Sebastião. Atualmente, dois ou três deles estão unificados, com vistas a formar um único Sindicato estadual. 4 Alguns trechos a seguir foram extraídos do texto SEVÁ Fo. , “Meio Ambiente, Energia e Condições de Trabalho no Brasil. Estudo retrospectivo 1991 - 2001 sobre algumas iniciativas sindicais” . Conferência proferida no IV Biennial International Workshop “Advances in Energy Studies: Ecology – energy issues in Latin América”, organizado pela Faculdade de Engenharia Agrícola, FEA / Unicamp, Campinas, 15 – 19 de junho de 2004. 6 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 No Brasil, este é um “grande assunto”, pois a Petrobrás é um império que quase todos conhecem, muitos admiram, outros se queixam. Temos que suportar diariamente a sua campanha publicitária e ideológica incessante; sua ação política é pesada, poderosa. O monopólio e sua quebra, as jazidas e os mercados brasileiros estão no foco da disputa entre a Petrobrás e algumas das empresas mais poderosas do mundo, há mais de meio século. Para um estudioso, fica mais difícil neutralizar e enxergar através desta “cortina de fumaça”. Sabíamos que era difícil, quase impossível acompanhar o quê se passava no conjunto de todos os assalariados e nos segmentos dos contratados das numerosas empresas do chamado incorretamente “setor” petrolífero. Ano apos ano, dia apos dia, noite após noite, os “flares” da Replan, tochas de segurança com mais de 100 m de altura queimam o excesso de gases residuais, por causa do desbalanceamento permanente e variável entre geração e utilização de correntes gasosas entre as várias plantas industriais. As fotos são de abril de 2008, tiradas de aguns km de distancia, no município de Paulínia. 7 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Na época da perícia na Replan, ali trabalhavam quase 1.500 pessoas, enquanto a dimensão demográfica total dos assalariados e contratados da indústria petrolífera no país, contando também suas famílias, era de um milhão e meio a dois milhões de pessoas, da ordem de um por cento da população brasileira. 5 Nas regiões e cidades petrolíferas, nos municípios com instalações da Petrobrás, este emprego direto ou indireto e toda a movimentação de renda decorrente - são hoje fatores dominantes nas sociedades locais. A “chegada” do surto petrolífero deslocou, diminuiu ou até desarticulou outras atividades que antes caracterizavam tais regiões. Aumentou muito a demanda local por vários tipos novos de serviços; os royalties pagos pela Petrobrás mais os montantes de ICMS e ISS recolhidos, compunham e ainda compõem uma parte substancial, quase todo em alguns casos, do orçamento municipal em São Sebastião, Cubatão, Paulínia, São José dos Campos, Guararema em SP, em Macaé e Rio das Ostras, Duque de Caxias, Angra dos Reis, no RJ; Betim e Ibirité, em MG, Canoas, RS, Araucária, PR, Madre de Deus e Candeias, BA, e outras em SE, AL, RN, CE, e Coari, no Amazonas. Desde os anos 1980, a convivência cumulativa com a poluição e os riscos das atividades marca a vida atual nestas cidades e regiões. Trabalhadores se feriam, adoeciam, morriam; os sindicatos de certo modo, não tiveram como minimizar tais problemas e sua repercussão pública. Em dezembro de 1992, a Comissão de Meio 5 -*- mais de quarenta mil empregados da corporação PETROBRÁS (44.247 em agosto de 1996), atuando na Exploração, Produção, Transportes de óleo , gás e derivados por dutos e por embarcações (FRONAPE), e no Processamento Industrial nas refinarias e UPGNs. - e quase vinte e cinco mil aposentados vinculados à mesma massa salarial e previdenciária; -*-- mais de cem mil, talvez cento e cinqüenta mil empregados de centenas de empresas operadoras, especializadas e empreiteiras contratadas e sub-contratadas da Petrobrás . -*-mais de trezentos mil empregados das empresas transportadoras e distribuidoras de derivados , incluindo-se as engarrafadoras (cilindros e botijões de propano / butano, mistura conhecida como GLP ou gás de cozinha) e dos postos e estações de armazenagem e abastecimento de combustíveis por todo o país. 8 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Ambiente da Assembléia Legislativa de SP, então presidida pelo deputado Ivan Valente (Partido dos Trabalhadores) promoveu uma sessão inédita, convocando para depor simultaneamente representantes da Petrobrás e dos Sindicatos de Petroleiros sobre episódios freqüentes de acidentes de trabalho, de acidentes industriais e de agravamento da poluição nas refinarias e nos terminais. Desde então, a movimentação veio crescendo e a realidade das ameaças também. Na mesma década de 1990, sindicatos de trabalhadores e federações setoriais importantes no campo da CUT e da Força Sindical obtiveram a sua participação na internalização de algumas convenções da OIT e no acompanhamento de algumas NRs - Normas Regulamentadoras (emitidas pelo Ministério do Trabalho); uma conquista nem sempre contemplada com a atenção devida das próprias direções sindicais.6 Foram muitos os episódios em que se envolveram a Petrobrás e suas contratadas, os sindicatos, a Justiça do trabalho e o Ministério Publico; fiz uma seleção deles, ocorridos apenas nas refinarias de SP, resumidos no quadro sinótico a seguir. Eventos marcantes na iniciativa sindical e dos poderes públicos contra riscos e poluição nas refinarias de SP na década de 1990 Na refinaria Revap, em São José dos Campos, SP * Em 1991, a Câmara Municipal de São José dos Campos, SP aprovou projeto de iniciativa da vereadora Amélia Naomi, instalando uma Comissão Especial de Investigação sobre os problemas de acidentes e poluição na refinaria Revap; ao final dos trabalhos, esta CEI encaminhou suas próprias denúncias ao Ministério Publico Estadual. * Um Inquérito Civil público foi aberto pelo Ministério Público do Estado de SP, em 1994 por uma Promotora da Comarca de São José dos Campos, Dra. Silvia Maximo Ribeiro, contra a Refinaria REVAP, tendo sido realizados por equipes da Fundacentro - Ministério do Trabalho, dois extensos levantamentos, em 1997, sobre os riscos de acidentes e ambientais na refinaria e outro, recém concluído sobre as correlações entre o numero de trabalhadores e os riscos de acidentes. 6 Uma das exceções – quando uma parte da direção sindical decidiu confiar em intercâmbios com a DRT e a Fundacentro em SP, durante os anos 1990 - foi a participação de trabalhadores e cipeiros na implantação da NR-7, que especificava a confecção e divulgação dos mapas de risco por locais de trabalho nas empresas, e com a presença de dirigentes sindicais e a divulgação das informações técnicas no processo de implantação da NR13, que tratava dos procedimentos de inspeção de segurança e manutenção de caldeiras e de vasos de pressão 9 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Na refinaria Replan, em Paulínia, SP * Em janeiro de 1993, um incêndio num tanque de armazenamento de óleo diesel na Replan, a maior de todas as refinarias, durou quase 24 h, provocando grande rastro de poluição do ar em Campinas e outras cidades da região, episódio no qual a ação dos brigadistas da Replan e bombeiros locais demandou um grande reforço em homens e equipamentos vindos das refinarias de Cubatão e de São José dos Campos. * Em janeiro de 1994, houve uma explosão num compartimento de uma caldeira de grande porte (capacidade de 100 toneladas de vapor /hora, com queima complementar de Monóxido de Carbono coletado no reator de uma das unidades de craqueamento catalítico de gasóleo) a qual destruiu o conjunto de pré-aquecedor de água, que desabou de quase cinco metros de altura; deixando bastante avariada a caixa de ar principal da caldeira, deformadas várias tubulações internas da fornalha e a base da chaminé metálica; sem vítimas fatais. * Por causa de episódios agudos de poluição, de uma partida intempestiva de uma unidade de craqueamento após a parada de manutenção, e do lançamento sistemático de excesso de amônia no rio Atibaia, quatro ações de Crime Ambiental foram abertas contra a Petrobrás, logo após a vigência da lei 9605, em 1998. Na seqüência foi celebrado um Termo de Ajustamento de Conduta ambiental entre a Replan, o MPE e a agência ambiental estadual, Cetesb, que vigora até hoje, mas apenas parcialmente implantado. * Em 1995 e 96, foi acolhida pela Justiça do Trabalho e instruída uma Ação Civil Pública, sobre a política de pessoal e os riscos de acidentes na refinaria Replan. Essa Ação continha uma liminar que obrigava a abertura imediata de concurso para contratação de 235 operadores e técnicos, com o objetivo de recompor equipes e melhorar a segurança da refinaria. A liminar foi negada, mas o mérito da ação foi aceito e ela foi instruída, em caráter inédito, pela Junta de Conciliação e Julgamento de Paulínia.7. * Em fins de 1999, o Ministério Público do Trabalho que havia proposto em 1994, a ação em conjunto com o Sindicato de petroleiros obteve ganho de causa; em 2004, uma parte desse ganho estava ainda sendo objeto de negociação por ocasião do acordo coletivo de trabalho da categoria dos petroleiros “oficiais” (da Petrobrás). Na refinaria RPBC, em Cubatão, SP. * Em Cubatão, na RPBC, uma Ação movida na Justiça Estadual pelo Promotor Público da Comarca (Ministério Público do Estado de SP) teve em dezembro de 1993, um despacho favorável do Juiz em primeira instância , obrigando, por motivos de risco operacional a Petrobrás a recompor o número de operadores das equipes da unidade de gasolina de aviação UGAV, da refinaria RPBC; que recorreu na instância superior e obteve um acórdão favorável em meados de 1996. * Nesta época, o mesmo Promotor Dr. Geraldo Rangel fazia nova investigação para apurar responsabilidades de uma nuvem tóxica contendo gases de enxofre, liberada na Estação de Tratamento de Efluentes da Refinaria e que provocou seqüelas na cidade durante um dia e meio. 7 . (RELATADO NA COMUNICAÇÃO APRESENTADA EM UM CONGRESSO DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO, VER SEVÁ E GIL, 1996). 10 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 III - Na refinaria Replan, antecedentes da Ação Civil Pública inédita A Refinaria do Planalto inaugurada em 1972 após uma construção em tempo recorde ostenta, a maior “bitola” de processamento de petróleo cru dentre todas as refinarias no país: 50 mil m3, cerca de 300 mil barris / dia processados em duas plantas de destilação e uma de craqueamento catalítico de gasóleo. Em 1992 iniciouse um grande ciclo de ampliações industriais na Replan, praticamente ininterrupto até hoje, as plantas de destilação sofrendo “revamps” até a faixa atual de mais de 60 mil m3/dia, com mais uma planta de craqueamento de gasóleo, uma nova planta de coqueamento retardado de resíduos viscosos operando em 1997 e outra atualmente em fase de conclusão; uma nova fábrica de hidrogênio a partir de gás natural, para uso em plantas de tratamento de derivados, agora em fase de duplicação. A política de pessoal da direção da Petrobrás tornou-se, nos anos 1990 especialmente agressiva em relação à defesa sindical dos direitos dos trabalhadores, e repressiva, para contrabalançar a importância política crescente do sindicalismo cutista, e também para facilitar a entrada das doutrinas da “reengenharia” e da “qualidade total”, no chão de fábrica e no escritório. 11 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana 12 Oswaldo Sevá 2005 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 A disposição gerencial junto com a “herança” militaresca das camadas superiores da empresa vieram a agravar a situação de riscos na refinaria. Neste quadro tenebroso, a iniciativa sindical foi fundamental para que o Ministério Público do Trabalho acatasse as denúncias e encaminhasse o problema. O Sindipetro de Campinas e Paulínia municiou-se do registro das ocorrências de risco, exercitou métodos de avaliação (árvores de causas, comparações de referências de pesquisa), compôs um dossiê com descrição minuciosa e com referências técnicas de tipo acadêmico, para apresentar à Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª. Região em meados de 1992.8 Em janeiro de 1993, o incêndio no tanque de Óleo Diesel confirmou o aumento do risco na área; mas foi somente em janeiro de 1994 – com o susto geral da explosão da caldeira de CO em pleno horário administrativo – que a PRT formulou petição à Justiça do Trabalho abrindo (em “litis consortis” com o Sindipetro) uma Ação Civil Pública com uma liminar que obrigava a empresa à “imediata contratação de pessoal próprio, em número de duzentos e trinta e cinco (235) trabalhadores, necessário à minimização dos riscos da atividade, de molde a atingir o número mínimo de trabalhadores, por turno, em cada planta e setor, consoante a proposta sindical adiante reproduzida, baseada em estudos técnicos e em pesquisa realizada entre os operadores e demais funcionários da Replan e após mais de 07 anos de discussões com a estatal”. 8 O dossiê foi preparado em 1992, por dois dirigentes sindicais: Antonio CARRARA, atualmente presidente da FUP, e Wilson VITORIO, e dois assessores, o engenheiro de segurança Norton MARTORELLO e o médico do trabalho José Carlos LOPES. O Procurador nomeou então uma comissão tripartite (empresa / sindicato / Ministério do Trabalho) para averiguar se “teriam os acidentes ocorridos, tendo como causa a redução de pessoal e/ou a contratação de empreiteiras sem as devidas condições técnicas?” Claro que os trabalhos desta comissão foram dificultados pela própria empresa, que justamente procurava negar qualquer correlação entre política de pessoal - inovações técnicas - e - riscos (SEVÁ, 1992). 13 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 A liminar evidentemente não foi atendida, mas a Juíza da JCJ de Paulínia acatou o mérito da ação e mandou instruir. Solicitou às partes a indicação de peritos, e o Sindipetro indicou uma lista de nomes de fora do Estado de SP, com pesquisadores universitários das áreas de Engenharia de Produção, Medicina do Trabalho e Ergonomia Industrial. E dentre estes, a Juíza escolheu no final de 1994, professor Miguel de Simoni, da Coppe/UFRJ para iniciar sua perícia. Pelo lado dos proponentes da ACP, os assistentes do perito eram o Dr Marcos Sabino, médico, pela Procuradoria Regional do Trabalho, e o autor desse artigo, pelo lado do Sindipetro. A Juíza exigiu das partes que fizessem um acordo operacional, pelo qual, a cada rodada de perícia agendada pelo professor Miguel com os seus assistentes, o Sindipetro cobriria os custos de hospedagem e transporte local do perito, enquanto a Replan cobriria os custos das suas passagens aéreas (RJ a Campinas e volta), e da remuneração do perito – que não aceitou formalmente ser remunerado considerando que havia sido convocado pelo poder público, e que os dias e horas dispendidos estariam incluídos em seu tempo de trabalho numa universidade pública, a UFRJ. Na Replan, o setor de Segurança e Meio ambiente, conhecido como ASEMA, era encabeçado pelos engenheiros Jorge Mercanti e Benedito Cardella; na CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes estava o engenheiro Nelson Choueri Jr. Deveriam ser esses os “assistentes” da perícia pelo lado da Replan, ou os seus contrapontos à equipe do perito, e de fato, em algumas ocasiões assim ocorreu. 14 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Sentado à esquerda, de óculos, o médico da PRT, dr. Marcos Sabino; de costas, o prof Miguel de Simoni ; à direita, Coordenador de turno da CO-5 IV - Retrospectiva da perícia “no campo e no painel”; algumas avaliações imediatas Foram oito etapas de perícia feita no “chão de fábrica” e por meio de reuniões dentro da refinaria, com intervalos de um a dois meses entre cada uma, desde Julho de 1995 até setembro de 1996.9 Cada etapa durava dois ou três dias úteis, incluindo sempre a presença na área no turno das 8 às 16 h; várias vezes no turno das 16 às 24 h. e duas vezes no turno de zero hora até as oito da manhã. 9 O professor Miguel veio do RJ outras vezes além dessas, numa delas para encontrar a Juíza e discutir o método da perícia, veio e voltou incógnito, só me contou semanas depois; noutra, veio por sua conta sem informar à Replan e se reuniu com trabalhadores e dirigentes sindicais na sede do Sindipetro. E nesse meio tempo, continuou dando suas aulas e terminou e defendeu sua tese de doutorado em Engenharia de Produção na Coppe/UFRJ, orientado pelo professor Roberto Bartholo. 15 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Numa delas, o perito estava sozinho com os operadores e o coordenador de turno, sem a companhia de seus assistentes e a Replan também não tinha ninguém escalado para representá-la. A refinaria sem anomalias, madrugada tranqüila, todos livres para se informar, evento raríssimo. Nas primeiras etapas, estivemos na Superintendência para o ritual de praxe. Por trás da diplomacia, vigorava o discurso “blindado” da gerência, que inicialmente não reconhecia a competência da Justiça do Trabalho para decisões sobre contratação, efetivos, equipes, turnos, carga de trabalho,etc. Logo de início o perito avisou a Superintendência que apresentaria uma lista de vinte quesitos relacionados com os dados sobre a mão de obra, os regimes de trabalho, a carga de trabalho e a lotação de pessoas por setor e por função, com os tempos de campanha operacional e as atividades e programações das paradas dos equipamentos principais. Na segunda etapa, houve uma grande reunião com quase quinze pessoas do chamado “grupo 1”, os gerentes de plantas. Sempre que os engenheiros e gerentes verbalmente começavam a contar vantagens e afirmar que tudo era do bom e do melhor, o professor Miguel mandava anotar e passava um memorando para a superintendência, solicitando que lhe fossem mostradas ou cedidas cópias dos tais estudos internacionais, feitos “com bases científicas, para a redução de pessoal”; dos estudos e procedimentos de inter- travamentos e de controle avançado em torres de destilação e de craqueamento. Exigiu também que lhe dessem de modo desagregado os dados dos recrutamentos de operadores fetos em 1987 e 1993; e que exibissem os programas e os resultados da certificação de técnicos e operadores. E quando diziam, para esvaziar o sentido da ACP, que já haviam tomado a decisão de aumentar quadros para repor aposentados e novas unidades, ele exigia que lhe mostrassem a ata ou resolução da superintendência contendo tais medidas. 16 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Ao longo dos meses, fomos descobrindo a maior refinaria do país, percorrendo o “campo” e o “painel” em cada setor, conversando com petroleiros da Petrobrás e com os contratados de empresas especializadas, e com os peões das empreiteiras de obras e de serviços. Parando na análise das fotos aéreas, das plantas, dos diagramas técnicos, fomos destrinchando a perícia nas torres de destilação (PDES), de craqueamento (PCRAQ), e no Centro de Controle Integrado –CCI, que estava sendo então implantado; as várias salas locais de controle anteriormente existentes, estavam migrando sucessivamente para aquele “bunker” todo fechado, escuro, cheio de câmaras e antenas... Um dos maiores canteiros de obras na época, dentro da refinaria, era a construção e montagem metálica da nova unidade de Coqueamento Retardado (UCRCoque ou U-980); o parque de bombas e o oleoduto Osbra estavam recém – terminados, iniciando a fase operacional, para transportar óleo diesel para o norte de SP, o Triangulo mineiro, GO e DF. Fomos lá conferir a coexistência de sistemas técnicos “up to date” com procedimentos impensáveis como válvulas pesadas manobradas manualmente ao ar livre, trajetos dos operadores feitos de bicicleta pedalando quilômetros dentro do parque de tanques, e ao longo das tubovias. 17 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Poucos meses depois de iniciar a operação, em 1997, a nova unidade de coqueamento retardado de resíduos ultraviscosos teve um acidente grave, embora sem vitimas: um dos seus vasos de reação sofreu um golpe de vácuo e ficou inteiramente destruído. Foto cedida pelo Sindipetro Campinas e Paulínia. 18 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana 19 Oswaldo Sevá 2005 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana 20 Oswaldo Sevá 2005 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 No parque de bombas do oleoduto Osbra, o prof. Miguel e o medico dr. Sabino encostados no carro; ao fundo, operador saindo de bicicleta “para o campo”. Mais de uma vez, estivemos no campo e nas salas de controle da casa de força CAFOR (usina termelétrica e circuito de vapor), e do circuito de água e efluentes (ETA e ETDI). Ali acompanhamos a execução das permissões de serviço do pessoal das empreiteiras, estudamos com detalhe a situação de uma delas (Tecmil) atuando com grande peso na Estação de Tratamento de Despejos Industriais. Consideramos esse um caso típico de terceirização de riscos em uma atividade de importância crucial no ciclo produtivo. O perito conseguiu que, numa dessas missões, fosse a juíza em pessoa verificar a situação vivida pelos que trabalhavam na ETDI. Ficou patente a justeza da prioridade assumida pela perícia - estimar a carga de trabalho que é permanente, relacionada com o andamento e qualidade da produção e das utilidades, e que está sendo terceirizada, - bem como estimar a carga adicional de trabalho dos operadores e supervisores por conta da emissão, a cada início de turno, das 21 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 numerosas permissões de trabalhos na área (P.Ts) e das subseqüentes liberações de equipamentos e dos trechos que passaram pela manutenção. 22 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 As fotos foram feitas numa das visitas à ETDI- somente um operador é da Petrobrás (jaleco verde) e colocou a máscara quando percebeu que estavam sendo feitas fotos. Naquele momento, a ETDI estava “atolada”, havendo excesso de matéria oleosa em locais indevidos, obrigando a muito trabalho extra, em ambientes ainda mais insalubres do que habitualmente. Demos espacial atenção às atividades técnicas nas oficinas de Manutenção Elétrica e Mecânica, e as de Instrumentação, que consideramos como definidoras do patamar geral de riscos na indústria, pois ali se joga com a maior ou menor confiabilidade da automação que estava sendo implantada com açodamento e imperícia. No caso, uma empreiteira (Sigmatronic) estava com nove pessoas na área, fazendo o mesmo serviço do pessoal próprio da Petrobrás: consertando e calibrando válvulas de controle, transmissores, manômetros e pressostatos, visores de nível, termômetros. Informaram que em 1993, haviam entrado doze novos, dos quais seis saíram dois anos depois; em resumo, dos anteriores trinta técnicos instrumentistas da Replan, na execução mesmo só restavam treze. Isto para cuidar mais de 10 mil instrumentos destes tipos em toda refinaria! A norma preventiva de instrumentos estava regulamentada (S 7123), mas defasada, por exemplo, durante três anos, não atualizaram a ficha de dados de cada equipamento, quando trocava a peça, mudava de fabricante e não corrigia a ficha. Disseram-nos que dos instrumentos de teste, muitos não têm calibração; e que falta aquisição de instrumento padrão para calibrar certos instrumentos, inclusive “exigem isto das empreiteiras, está certo, mas não tem disponível para o próprio equipamento da empresa”. 23 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Em todos os locais, sistematicamente, o professor Miguel começava explicando que estava ali a serviço da Juíza do Trabalho, e começava perguntando sobre as atividades principais da jornada, olhava os livros de ocorrências e de passagem de grupo, ou então, o “livro do Cotur”. (coordenador de turno). A demanda do perito estava viabilizada pelo caráter oficial da perícia, e isto era lastreado socialmente no fato da ACP ter sido uma vitória do sindicato. Porém, sem o carisma e a presença de espírito do professor Miguel, não seria construída, junto com a lista, a confiança mútua entre peritos, operadores e técnicos. 24 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 A simples presença testemunhal de gente de fora, e ainda mais, peritos, trazia a impressão de uma fiscalização. Sendo o perito quem era, a missão se modificou; não fiscalizávamos, mas, enquanto ele era um Ouvidor-mor e seu próprio secretário, eu fazia as fotos e uns croquis na prancheta, tirava os dados das placas de identificação e TAGs dos equipamentos, e o assessor médico ajudava na parte especifica de condições do posto e da jornada, injúrias, atendimento, afastamento, etc...Um momento alto da perícia foi a presença dos peritos em reunião extraordinária da CIPA, completa e mais alguns suplentes, a qual, segundo o seu presidente, foi a melhor de todas as sessões dos últimos anos. O simples fato de denúncias e “causos” levados por cipeiros irem parar no relatório do perito ou dos assistentes do Sindicato e do Procurador já punha os gerentes em alerta. V. Aprendizado dos peritos sobre o trabalho petroleiro periciado O professor Miguel elaborou o seu laudo pericial de modo manuscrito, com sua caligrafia de professor de primário (que ele foi por vários anos) e assim o entregou, bem diagramado, com cerca de 40 páginas, incluindo uma extensa lista de documentos coletados e analisados e um “dossiê” fotográfico com uma seleção de quinze fotos dentre as mais de trezentas que fiz lá dentro. 25 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana 26 Oswaldo Sevá 2005 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 No seu laudo, argumentou como sabia, baseado na intensa perícia, citando uns poucos autores técnicos, foi curto e grosso nas contas de pessoal, acabou defendendo a contratação de mais de 130 pessoas, a maior parte operadores e outra parte, técnicos de manutenção; os números arrumados em tabelas que foram sendo construídas e preenchidas durante a perícia, nas várias seções e oficinas da refinaria. Embora ele não tenha colocado isto no parecer, imaginamos que pairava no céu avermelhado de Paulínia um “dedo de Deus”. Nós o havíamos comprovado quando nos deixaram andando sem guarda - costas nem olheiros pelo longo caminho de uma Casa de controle do Setrae até a CCI e daí até a garagem da ASEMA. Durante aquela meia hora de caminhada, numa tarde fria, sabíamos de uma emergência se desenrolando na FCC, onde uns poucos homens usavam apenas a arma do seu conhecimento para domar o desarranjo das máquinas, dos instrumentos, e para adaptar-se à guerra de poder lá dentro. Esse “dedo” – que nada tem a ver com a mão do mercado- pode ser o conhecimento e a aptidão coletivos, que numa indústria de alto risco, jogam um papel fundamental em todos os ciclos e fases da produção e na segurança. Parte dos “fundos” da gleba da Replan, com os tanques de cru, as unidades de coqueamento e de enxofre, os “flares” . Foto aérea de 2004, cedida pela ONG ambientalista Sodemap, de Piracicaba. 27 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Aprendemos que a continuidade e coerência das operações industriais depende crucialmente da transmissão / troca incessante de informações e da checagem de instruções entre 1) os grupos que se revezam em turnos, 2) os grupos que só trabalham em horário comercial, e 3) os grupos que executam tarefas auxiliares e de manutenção em simultâneo com a atividade principal; e destes, entre o pessoal próprio, e o pessoal das terceirizadas, e quanto existe, o pessoal das quarteirizadas10. Neste contexto, algumas outras circunstâncias influem muito no patamar de ameaças e na eclosão e desenrolar dos eventos de risco: a) A proporção de Homens-hora contratados pelas empresas maiores, muitas vezes repassadas para terceiras e quartas empresas, era em 1996 muito maior do que nos anos 70 e 80; b) a coexistência de pessoal próprio e pessoal contratado na mesma área produtiva e atuando em fases conexas do processo certamente multiplica os focos de riscos, e aumenta as dificuldades de prevenção. c) Quando se reduzem sensivelmente (e às vezes basta reduzir uma pessoa no grupo) os tamanhos das equipes que trabalham em turno de revezamento, cada equipe trabalha sob carga maior; na refinaria periciada, freqüentemente aumentavam as dobras de turno, as horas-extras, os períodos mal dormidos de “sobreaviso”...tudo o que é contra - indicado para a saúde humana, e para o bom andamento de funções que exigem muita atenção e calma, para a capacidade de pilotagem de incidentes e de anormalidades. 10 Temas tratados com bastante detalhe no livro de FERREIRA e IGUTI, 95; e no artigo de SEVÁ e GIL, 96. 28 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 d) As atividades de formação prática e “no posto de trabalho” vinham sendo reduzidas, e ao mesmo tempo eram abreviados os prazos e os critérios para as certificações profissionais; foram sendo simplificados e facilitados os ritos de admissão de operadores e de técnicos em postos de responsabilidade operacional e na liberação de serviços; havia indicações fortes de que as memórias técnicas estariam se desmantelando, sendo perdidas. e) Era fato de domínio público nas empresas petrolíferas, que várias normas de segurança e garantias trabalhistas e contratuais eram desrespeitadas de forma sistemática; e que as despesas de manutenção técnica, muitas vezes compulsórias, vinham sendo postergadas e amputadas (sob alegação de redução de custos em “setores que não agregam valor” à mercadoria final desta indústria - combustíveis e derivados de petróleo e de gás natural). Uma das conseqüências de tudo isto – devidamente informada no laudo do perito é que os indicadores de freqüência e de gravidade de Acidentes de Trabalho computados pela Replan vinham apontando queda nos números anuais relativos ao pessoal próprio Petrobrás e aumento para o pessoal de empresas contratadas.11. Ali aprendemos, que antes de tudo, deve-se conferir a eficácia dos procedimentos de preenchimento de comunicações de acidentes, e examinar com rigor a documentação das decisões médicas ou outras sobre o afastamento dos trabalhadores e funcionários por causa de acidentes e de doenças de origem ocupacional. 11 Temas tratados com bastante detalhe no livro das médicas Leda FERREIRA e Aparecida IGUTI, feito em 1995, relatando uma aplicação do método da Análise Coletiva do Trabalho, feita pela Fundacentro com pessoal da Refinaria de Cubatão e dos terminais da Alemoa e de São Sebastião. No caso da Replan, está também detalhado o mesmo assunto na comunicação que fiz num grupo do Enegep, junto com assessora da mesma secretaria de Saúde, Segurança e Ambiente do Sindipetro Campinas (SEVÁ e GIL, 96). 29 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Pudemos verificar que nos casos em que o trabalhador era de uma firma contratada, o processo formal do risco e dos direitos de suas vitimas é muito precário e fica sujeito a negligências, e a omissões e até falsificações criminosas. 30 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 ...................................................... Atualizando o artigo para o ano de 2005, registro uma outra triste conclusão – além de não termos mais o professor Miguel entre nós nesse mundo - : desde então a defesa dos direitos dos trabalhadores e do ambiente vitimados pela ameaça industrial e pelo desmando gerencial, teve que enfrentar obstáculos e incompreensões crescentes. Mesmo nos casos em que Ministérios Públicos e Justiça do Trabalho acertam a iniciativa, atingem uma pequena parte do problema. A preocupação acadêmica dominante é alienada, diante da gravidade e da disseminação dos riscos. Os cursos e os congressos profissionais anulam ou tratam com desprezo os sujeitos humanos do processo. Nos estudos energéticos e de engenharia em geral, não há eletricitários, petroleiros, mineiros de carvão, canavieiros, carvoeiros, nem os seus sindicatos! É o que caracteriza as áreas de Energia e de Meio Ambiente, e também a Engenharia de Produção - da qual fomos, o professor Miguel, eu e alguns dos autores de outros capítulos deste livro, um grupo de pioneiros, quase missionários e quase hereges. Pois sim, humanistas, e até socialistas... apesar de engenheiros! É lamentável que os nossos estudantes de graduação e de pós-graduação não estejam sendo formados com a lucidez e a prioridade requeridas para enfrentar um dos mais cruciais dramas do presente e do futuro da humanidade e do planeta. Sem falar na raridade, quase ausência, atualmente, dos nobres sentidos do fraterno e do sagrado, que tanto o professor Miguel nos ensinou. 31 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Na mesma ETDI, em visita que fiz com alunos da FEM/Unicamp , em 2006, dez anos depois...o mesmo episódio de “atolamento” com operários trabalhando em condições adversas para tentar minimizar o problema e retomar a “normalidade”. 32 Refinando a perícia: o trabalho, o saber, a condição humana Oswaldo Sevá 2005 Bibliografia relacionada ao assunto do artigo Barbosa, Rosana M. e Sevá Filho, A. 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