O DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO DAS FAMÍLIAS ATINGIDAS PELA UHE DE ESTREITO NA PERSPECTIVA DAS REDES SOCIOTÉCNICAS Valdir Aquino Zitzke Professor Adjunto I Curso de Geografia – Campus de Porto Nacional Universidade federal do Tocantins Pesquisa com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Os deslocamentos populacionais causados pela construção de empreendimentos hidrelétricos constituem um tipo especial dentro daqueles gerados pelas obras públicas de grande escala. Neste sentido, é preciso considerá-los como parte de um todo complexo formado por múltiplos componentes, diretos e indiretos, inscritos num contexto no qual serão estabelecidas conexões e encaixes, deslocar outras atividades e produtos, carrear recursos, alinhar atores e prende-los a uma rede. É o caso da Usina Hidrelétrica de Estreito, localizada no rio Tocantins, na divisa dos estados do Tocantins e Maranhão, onde este fenômeno inscreve-se como um dos conflitos que emergiram durante o processo da construção da rede sociotécnica e se constituiu numa das arenas de negociação, envolvendo diferentes atores sociais. Esses conflitos ocorreram em torno do controle sobre os recursos e potenciais naturais existentes e, ao mesmo tempo, também em torno da justa e adequada compensação pelos danos e inconvenientes suportados pelas famílias atingidas antes, durante e após a inundação das áreas que habitavam. A presente pesquisa tem como objetivo compreender a construção da rede sociotécnica da produção da energia elétrica da UHE de Estreito e as formas de compensação e deslocamento compulsório das famílias atingidas. A idéia básica é uma pesquisa documental sobre a concepção e formulação de Planos de Deslocamento das populações e pesquisa de campo. Os resultados esperados poderão contribuir a compreensão da complexidade do deslocamento compulsório em outras regiões hidrográficas brasileiras, enquanto um drama social para as famílias residentes em outras regiões hidrográficas. Introdução Neste artigo, os Projetos de Grande Escala (PGE), como as hidrelétricas, são entendidos como uma original e complexa inter-relação entre variáveis sociais, econômicas, técnicas, demográficas, ecológicas e políticas, abalizadas pelo „gigantismo‟, a diversidade de ações e resultados, e a rigorosidade do parcelamento temporal do projeto (RIBEIRO, 1987). Desenvolver uma inovação tecnológica, como uma hidrelétrica, requer mais do que produzir um determinado item, neste caso a energia elétrica. É preciso criar um contexto no qual serão estabelecidas conexões e encaixes, deslocar outras atividades e produtos, carrear recursos, alinhar atores e prende-los a uma rede. É o caso da Usina Hidrelétrica do Estreito, construída no rio Tocantins entre os estados do Tocantins e Maranhão. Todavia, mesmo que a hidrelétrica tenha se tornado uma rede com articulações em todos os níveis, ela ainda é considerada uma atividade nova no estado e o empreendedor precisa estar na defensiva, dar provas da sua viabilidade e buscar legitimidade, indicando que está em processo de consolidação. A consecução de um PGE, enquanto complexo de edificações, tende a ser descrita nos relatórios e documentos técnicos, como Estudos de Impactos Ambientais, Relatórios de Impactos Ambientais e Planos Básicos Ambientais, como um conjunto de ações como desocupação e esvaziamento da área afetada ou remanejamento, transferências e remoção, ou, ainda, relocação, remanejamento e reassentamento das populações atingidas. No contexto das famílias atingidas pela UHE do Estreito predominam famílias praticantes de uma agricultura de subsistência e um extrativismo artesanal, desprovidos de qualquer integração com o mercado e o deslocamento é apresentado a elas como uma oportunidade ímpar de modernização e inserção no mercado. Podemos identificar neste processo uma série de esforços e a configuração de um cenário favorável para a construção da rede sociotécnica da produção de energia elétrica, entre eles a elaboração de projetos e planilhas contendo dados estatísticos e técnicos, a produção e circulação de documentos técnicos e recursos e o deslocamento de técnicos, peritos e grupos sociais. Em alguns momentos foi necessária a tomada de decisões técnicas a partir de uma leitura da sociedade, traduzida e representada em diagnósticos (Diagnóstico Sócio-Ambiental das Populações da Área de Influência do Reservatório, Diagnóstico da Bacia do Araguaia-Tocantins), estudos (Estudos de Localização dos Reassentamentos Rurais, Estudos de Impactos Ambientais) e planos (Planos Básicos Ambientais). Outros fatos foram, também, importantes, como o treinamento de técnicos, contratação de assessorias e consultorias de peritos; a instalação de setores produtores de mão-de-obra, transporte e equipamentos; elaboração e divulgação de um discurso do conceito e conteúdo da proposta de desenvolvimento do empreendimento. Pretendemos analisar o processo de deslocamento compulsório da população rural que foi atingida pela construção da Usina Hidrelétrica de Estreito, no rio Tocantins, entre os estados do Tocantins e Maranhão. Para isso analisaremos o processo de construção da rede sociotécnica do empreendimento a partir da definição e caracterização dos diferentes atores envolvidos no processo de implantação da hidrelétrica. A problemática central está voltada para os diferentes conflitos, negociações e alianças realizadas entre os diferentes atores e as mudanças sócioeconômicas e culturais decorrentes desse contexto, enfatizando o processo de deslocamento das famílias. Argumentamos que o desenvolvimento tecnológico tem contribuído para o discurso da construção de “um modelo de produção de energia elétrica para o Brasil1”. A entrada desse fato novo e a intenção da “racionalização” da produção de energia elétrica no lugar inverteram a ordem local estabelecida, onde o capital associado à técnica iniciou um processo de alteração da dinâmica das relações socioambientais construídas nos lugares. Experiências em deslocamentos compulsórios A crescente intervenção dos Estados Nacionais no planejamento de múltiplos aspectos das complexas sociedades contemporâneas, assim como as dimensões cada vez maiores das obras de infra-estrutura para a satisfação das demandas energéticas da sociedade tem originado fenômenos sociais que apresentam características muito especiais. Esses fenômenos recebem diferentes denominações, variando sua utilização segundo a destinação preconizada para a população e a modalidade de intervenção dos diferentes atores responsáveis: desocupação, esvaziamento, remanejamento, transferência, remoção, relocação, relocalização, reassentamento, deslocamento. São processos originados por decisões de organismos multilaterais instrumentalizados por esses mesmos organismos ou seus agentes. Desenvolvemos este questionamento a partir do enfoque orientado aos atores (LONG, 1992), que propõe que os atores sociais locais, tanto indivíduos, organizações e etc., sempre negociam ativamente nos processos de seu próprio desenvolvimento, mesmo que este desenvolvimento seja mobilizado por forças externas as comunidades locais. Pelas suas dimensões, os empreendimentos hidrelétricos envolvem um número significativo de atores sociais, destacandose, entre eles, as populações diretamente atingidas, as populações locais e regionais residentes nas áreas para onde os atingidos serão reassentados, as instituições financeiras e implementadoras nacionais ou internacionais, a corporação consorciada responsável pela execução do empreendimento, as empresas de consultoria e as instâncias governamentais e administrativas. Seguindo o argumento de Long (1992) podemos ir além da escala do entorno imediato, e superar certas limitações das abordagens acima mencionadas, na medida em que se sintoniza com correntes da teoria social contemporânea que, justamente, questionam abordagens que assumem uma perspectiva macro-social exclusivamente, em lugar de mostrar as complexas interações entre o global e o local, o que se faz necessário num mundo cada vez mais globalizado. Ao mesmo 1 Ver, neste sentido, a página do empreendedor na net www.investco.com.br. tempo, consideramos que a proposta de Long nos permite identificar as relações de poder econômico e político que existem entre os diferentes atores e que, de alguma forma afetam suas interações com o ambiente. Estes atores conformam um sistema de interações complexo, aberto a negociações e conflitos de diversos tipos e sujeitos a distorções, presentes em todo processo de comunicação onde os interesses em jogo e os sistemas de codificação das mensagens estão longe de serem homogêneas. Estes estudos, ao considerar os impactos sociais como fatos decorrentes de uma ação externa ao lugar, desconsideram os atores sociais locais como agentes no processo, colocando-os como sujeitos aos fatos, incapazes de uma ação e, portanto, excluídos do processo social, decorrendo, a partir desse ponto de vista, a impossibilidade de esses grupos, a partir do reassentamento, superarem as dificuldades e programarem uma proposta de desenvolvimento rural (HAESBAERT, 2001). É neste cenário que a teoria do ator-rede pode emergir como uma possibilidade de análise onde a noção de rede, composta de séries heterogêneas de elementos animados e inanimados, conectados e agenciados, se refere a fluxos, circulações, alianças e movimentos em vez de remeter a uma entidade fixa. No interior desta teoria, é importante considerar a tecnologia como sendo a sociedade feita para durar e a sociedade não pode ser entendida sem suas ferramentas e instrumentos técnicos. Assim, para Callon e Latour não são só as pessoas que constituem a sociedade. Eles não apenas outorgam o poder de agência aos atores não-humanos como, também, redistribuem a agência entre as diferentes entidades, redefinindo, a partir daí, a agência como uma propriedade da associação entre entidades. Em resumo, advertiram que a sociedade e a natureza são os resultados de práticas nas quais nem todos os atores são humanos. Neste sentido, é preciso considerar que os deslocamentos das populações atingidas constituem uma parte de um todo complexo formado por múltiplos componentes, diretos e indiretos, do projeto global onde a reorganização social deve ser entendida como o resultado de uma prática contínua, através da qual os diferentes atores, durante o processo de interação social, vão laborando regras para coordenar atividades. O deslocamento da população residente nas áreas necessárias à implantação de um empreendimento hidrelétrico se constitui no ponto nevrálgico das negociações entre essa população e as diversas empresas encarregadas pelo empreendimento, constituindo-se nas arenas de negociação, transformando-se no alvo de observação e crítica de diversos setores representativos da sociedade e dos próprios implementadores e/ou financiadores do empreendimento. O objetivo do deslocamento dessa população não é em seu próprio benefício, mas uma pré-condição para a realização da hidrelétrica, cujos principais benefícios são para pessoas residentes em outros lugares. O caráter compulsório do deslocamento faz com que não se dê atenção devida aos problemas da população atingida, contribuindo para a ocultação dos problemas decorrentes. É dada maior atenção ao deslocamento de populações dentro dos projetos previstos para o cumprimento do cronograma fixado: ao contrário, só são atendidas quando emergem crises e conflitos. Independente da opção de deslocamento populacional, este processo modifica o entorno social que condiciona a rede de relações sociais e o sistema de circulação e obtenção de recursos, implicando numa crise de identidade e um trauma, provocando desorientação, apatia e anomia, e impondo às pessoas um processo de adaptação que gera incertezas sobre o seu futuro e, também, uma sensação de impotência e desamparo (SUAREZ, FRANCO & COHEN, 1984). Estudar a formação da rede sociotécnica da produção de energia elétrica na Amazônia Legal, enquanto conjunto complexo e múltiplo de pesquisadores, cientistas, técnicos das agências financiadoras e das empreiteiras, empresários, membros da sociedade que, direta ou indiretamente, influenciam na elaboração dos problemas é reconhecer que a noção de rede refere-se a fluxos, circulações, alianças, movimentos, em vez de remeter a uma entidade fixa. Uma rede de atores não é redutível a um único ator nem a uma rede; ela é composta de séries heterogêneas de elementos animados e inanimados, conectados e agenciados. Se, por um lado, a rede de atores não pode ser diferenciada da tradicional categoria sociológica de ator, que exclui qualquer componente não-humano, por outro, também não pode ser confundido com um tipo de vínculo que une de modo previsível elemento estável e perfeitamente definido, uma vez que as entidades das quais ela é composta, sejam elas naturais ou sociais, podem, a qualquer momento, redefinir sua identidade e suas múltiplas relações, trazendo novos elementos (CALLON, 1986). O contexto histórico-social das famílias atingidas As áreas rurais no Brasil, onde os empreendimentos hidrelétricos são implantados, especialmente as áreas ribeirinhas, são caracterizadas por uma elevada densidade populacional com baixo poder tecnológico nem sempre visível ao primeiro olhar. Este fato se tornou determinante no processo de tradução do Consórcio CESTE: produzir energia elétrica atendendo os princípios da legislação ambiental e promovendo o desenvolvimento regional envolvendo as populações locais, fato este que ainda não aconteceu, em função da falta da construção de um consenso com o reconhecimento dos interesses divergentes que não foram considerados e incorporados no processo de negociação. Em relação à necessidade do consenso, a Comissão Mundial de Barragens, criada em 1997 com o objetivo de avaliar as barragens construídas no mundo, elaborou, a partir do consenso, o Relatório Final “Barragens e Desenvolvimento – uma nova estrutura para o processo de decisão”, a partir da participação de diferentes atores sociais envolvidos na questão: indústria de equipamentos, representantes de governos, acadêmicos, ambientalistas, movimentos sociais. O fato é que para a construção de um consenso é necessário um tempo maior para a decisão, dificultando a aceitação pelos demais atores envolvidos quando os interesses do empreendedor exigem decisões mais rápidas. Além disso, a decisão da construção da UHE de Estreito, inserida no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC – 2007-2010), atendeu aos interesses do setor elétrico e se deu no centro urbano-político do país, distante da realidade local onde a UHE foi implantada. O consenso não foi construído porque predominou o discurso desenvolvimentista e a exposição de um possível aumento dos riscos de déficit de energia, onde qualquer insistência das famílias atingidas no reconhecimento dos seus direitos e interesses foi vista como uma ação contrária ao desejo de uma grande maioria que quer e precisa de energia, representada pelo governo federal. Para o empreendedor, as famílias foram encaradas como um problema a ser resolvido para a instalação da UHE, e é por isso que a perspectiva de reconhecer os atingidos como cidadão foi negada. A construção da UHE de Estreito reforçou o discurso da “nova roupagem” do discurso desenvolvimentista de um grupo de atores sociais públicos (técnicos do governo do estado do Tocantins) e privados (técnicos do empreendimento) no sentido de resolver as disparidades regionais e impulsionar o desenvolvimento e o crescimento econômico. Nesta ótica, predominou o pensamento conservador de que a agricultura de subsistência, praticada pela população rural atingida pela UHE deveria ser substituída por outra forma de produção, via capacitação técnica, e inseridas num modelo de desenvolvimento. Um ponto que dificultou a criação do consenso é o conjunto das características sociais destas famílias, que não eram como aquelas da região sul do país, na bacia do rio Uruguai, que deram origem, pelas suas lutas, ao Movimento do Atingidos por Barragens, tipicamente agricultoras. Ao contrário, desenvolviam diversas atividades, onde a agricultura representava apenas uma delas: faziam o extrativismo vegetal, a partir dos frutos do cerrado, localizadas às margens do rio Tocantins e seus contribuintes, como a bacaba, o buriti, a mangaba; desenvolviam a pesca artesanal com redes, anzóis e a ceva, variando as espécies capturadas ao longo do ano; produziam artesanalmente a farinha de mandioca; desempenhavam atividades assalariadas como diaristas em grandes e médias propriedades e participavam de garimpos, mesmo que eventualmente. A atividade agrícola caracterizava-se pela criação de pequenos animais, como galinhas e porcos, e a agricultura de vazante se localizada às margens dos cursos d‟água, áreas naturalmente adubadas pelo rio nas épocas de cheias, quando ali depositavam grandes quantidades de matéria orgânica que servia de base para a produção. Por estas características, as famílias atingidas pelo empreendimento constituem, de acordo com Porto e Siqueira (1997), uma categoria empírica construída pelos seus próprios atores sociais a partir dos dois conceitos matrizes: campesinato e pequena produção e o que os diferencia das demais categorias familiares no campo deve-se ao fato de serem frutos de políticas de compensação ambiental de um projeto de grande escala. Para a compreensão do processo de apropriação e uso do território, é necessário definir alguns conceitos. A palavra „território‟ deriva do latim terra e torium, significando terra pertencente a alguém. O sentido de pertencer a um território está diretamente relacionado à sua apropriação e não apenas à propriedade da terra (CORRÊA, 1994). Este conceito deve estar ligado à idéia de domínio ou de gestão de determinada área, isto é, à idéia de poder, sendo, desta forma, o espaço territorializado, apropriado, seja de forma concreta ou de forma abstrata, por exemplo, pela representação (DALLABRIDA, 1999). O processo de produção do espaço propicia a passagem do espaço ao território na medida em que aquele é transformado e balizado por redes e fluxos que aí se instalam (rodovias, circuitos comerciais e bancários, linhas de transmissão de energia, hidrovias). Nesta pesquisa, o drama social imposto às famílias materializou-se na ameaça de um processo de des-territorialização em função da territorialização de novas relações entre sociedade e natureza e entre elementos técnicos dessa mesma sociedade. A entrada desse fato novo e a intenção de „um modelo sustentável de produção de energia‟ no lugar inverteram a ordem local estabelecida. Já o conceito de territorialidade relaciona-se a tudo aquilo que se encontra num território, ou o processo subjetivo de conscientização da população de fazer parte de um território (CORRÊA, 1994). No momento em que um dado território se expande pelo espaço não ocupado, ou ocorre uma (re) ordenação dos territórios, como, por exemplo, a partir da implantação de um PGE, criam-se novas formas de territorialidades a partir dos processos de desterritorialidade (ANDRADE, 1994). Projetos de desenvolvimento regional ou de integração nacional, como as hidrelétricas, desencadeiam processos de reconstrução e apropriação do território, o que implica numa nova ordenação territorial. Esta é entendida, neste estudo como a projeção, no território, através da ocupação e uso, dos interesses, das racionalidades econômicas, das políticas e dos valores sociais, econômicos, culturais e ambientais de uma sociedade referenciada local, regional e mundialmente (DALLABRIDA, 1999). A territorialização de um PGE, enquanto projeto de desenvolvimento regional, ao prever a des-territorialização dos grupos sociais, não promove o desenvolvimento, mas a exclusão, e este é um elemento estranho ao conceito de desenvolvimento. A implantação de empreendimentos do setor elétrico na Amazônia Legal diminui as oportunidades de autonomia dos atores locais e desarticula a estrutura político-administrativa a partir da instalação do poder maior, possuidor de uma nova lógica e estrutura de poder, e de tentar fortalecer uma rede sociotécnica, conformando um território sob a jurisdição do novo empreendimento, com uma lógica setorial, excluindo o local/regional de sua pauta, abstraindo benefícios e socializando custos. O sentido de pertencimento e de identidade regional define a territorialidade regional, que pode levar à transformação do território a partir da adoção coletiva de um projeto de desenvolvimento que apresente uma racionalidade própria, na medida em que os atores regionais possuam uma forte consciência de territorialidade. Neste sentido, como toda percepção da realidade é um instrumento de poder, a reorganização de um território, como os reassentamentos rurais, pode ser tanto instrumento de poder para os atores locais responsáveis pela proposta de desenvolvimento quanto para a própria dominação do território quando proposta sem a participação dos grupos sociais, no caso, as famílias reassentadas (DALLABRIDA, 1999). A emergência da rede sociotécnica da energia elétrica O incentivo à produção de energia na bacia dos rios Araguaia e Tocantins começou na década de 1990, num contexto influenciado por quatro fatores: a reorientação do setor elétrico brasileiro, a conclusão de diversos estudos de potencialidade hidrelétrica das bacias hidrográficas brasileiras e a legislação sobre os recursos hídricos e EIA/RIMA. Vale lembrar que os estudos do potencial hidrelétrico da bacia do Araguaia–Tocantins foram iniciados na década de 1970 e finalizados na de 1980, servindo de base para os debates em torno da atividade de produção de energia no estado. Assim, no início do século XXI, a UHE passou a representar uma razoável possibilidade de empregos para a população local e regional (Tocantins, Maranhão, Goiás e Bahia), adquirindo uma significativa importância econômica na região da Amazônia Legal. Mas para que isso acontecesse foi necessária a organização de um contexto propício, como a organização de um marco legal, exigindo várias ações, como: a negociação com o órgão licenciador para agilizar o licenciamento do empreendimento; a adequação do projeto da UHE para o local de sua localização; a organização de dados em planilhas para os diferentes momentos da obra; a definição do canteiro de obras e de identificação de locais de empréstimo de aterros; a elaboração e circulação de documentos e textos para divulgação nos meios de comunicação; o deslocamento de diferentes técnicos para o empreendimento; a colaboração de organizações não governamentais locais e regionais para acompanhar as obras e participar do desenvolvimento de alguns Planos Básicos Ambientais, como o de educação ambiental; e a atração e alojamento de trabalhadores da região para o canteiro de obras, além de muitas outras ações para o desenvolvimento e implantação do aproveitamento hidrelétrico. No centro de processo de implantação e busca de legitimação do empreendimento encontramos a noção de tradução o reconhecimento de que os atores individuais e coletivos, humanos e não- humanos, trabalham constantemente para traduzir suas linguagens, seus problemas, suas identidades ou seus interesses nos dos outros. E é através do processo de tradução que o mundo se constrói e se desconstrói, se estabiliza e se desestabiliza e, por isso, as identidades dos atores são situações permanentemente colocadas nos conflitos que se desenvolvem (CALLON, 1986). Contrários às rígidas noções sociológicas de sistema ou de função, Callon e Latour nos convidam a seguir os atores nas suas múltiplas atividades de tradução, além dos limites dos conceitos de sistema e função, redefinindo, inclusive, a estas separações. Nesta perspectiva, a lista dos atores pertinentes (indivíduos, grupo ou objetos), assim como suas propriedades nunca são dadas de uma só vez. As cadeias de tradução são, então, trabalhadas por diferentes atividades, destacando-se, entre elas, as estratégias concorrentes, as confrontações de força, o trabalho de mobilização, elaboração de dispositivos de interesse com a finalidade de organizar alianças e associações entre atores e a emergência de representantes destas associações (HERNÁNDEZ, 2003). Traduzir é então, desarticular objetivos, interesses ou, também, desarticular dispositivos, seres humanos, disfarces ou inscrições (Callon, 1986). Pesquisadores da ciência e técnica, como Callon (1986), Law (1984) e Rip (1992) empregaram o termo rede a partir de diferentes enfoques. Uma das abordagens mais aceita e difundida é a noção do ator-rede. O termo propõe que todo objeto técnico-científico é o resultado da mistura de entidades humanas e naturais, mas que atua socialmente com as características de um ator situado entre dinâmicas sociais e leis naturais graças às possibilidades instrumentadas de ambas. A noção de rede propõe a apreensão da estabilização das relações entre humanos e nãohumanos, que estão em constante mudança e, portanto, nunca definitivas. Nesta análise, a estabilização da formas de vida social precisa ser considerada como um ponto de chegada e não um ponto de partida. A rede supõe um trabalho prévio de colocar em equivalência os recursos heterogêneos, tornando-os mensuráveis e permitindo-lhes funcionarem juntos. Para Latour (1989), a solidez das alianças constitutivas das redes depende, sobretudo, do número de aliados mobilizados e das associações realizadas. Ainda, para este autor, os conceitos de rede e de tradução oferecem uma possibilidade para superar a oposição macro/micro, evidenciando os processos pelos quais os micro-atores estruturam, globalizando e instrumentalizando sua ação, aos macro-atores ou, inversamente, pelos quais entidades são desconstruídas e localizadas (LATOUR, 1994). O termo rede, enquanto um conjunto de relações entre pontos e nós e com certa independência relativa é usada no sentido de apontar para os recursos que são concentrados em alguns lugares e que estão ligados a outros, incorporando, portanto, a noção de poder. O termo rede também é usado enquanto um conceito centralizador que envolve todas as formas de relação entre atores, entidades e artefatos, possibilitando evidenciar de que forma o natural e o social estão interrelacionados e explicar como o mundo é feito e refeito. A compreensão deste processo exige um olhar mais atento sobre a forma como as relações entre os atores são estabelecidas e compreender como elas são mantidas através do tempo e do espaço, uma vez que as redes são resultantes destas duas operações simultâneas (DORIGON, 1997), e são constituídas de materiais heterogêneos (textos/discursos, tecnologia, entidades naturais e os seres humanos) utilizados pelos atores nela envolvidos para controlar e envolver os demais atores, uma espécie de „cola‟ que une os atores nestas redes. O propósito da análise de redes é mostrar como elas são construídas e o alcance dos seus efeitos e, nesse sentido, o que se apresenta como social é parcialmente técnico e o que parece ser técnico é parcialmente social. Nesta pesquisa foi preciso considerar a existência de dois principais conjuntos de redes interagindo: as redes verticais, que se referem à maneira como a UHE vêm sendo incorporada dentro de uma abordagem setorial do desenvolvimento, e as redes horizontais, que envolvem diferentes contextos, desde o processo de re-organização urbana de municípios, remanejamento das populações atingidas pelo empreendimento, a constituição de equipamentos de infra-estrutura, e a proposta de desenvolvimento local e regional. As redes verticais, mais recentemente, têm sido analisadas através da teoria do ator-rede, que envolve associações heterogêneas e os mecanismos de sua transformação ou consolidação. Todos os envolvidos numa determinada situação social precisam ser considerados como agentes sociais, não só indivíduos, mas também instituições, cada um com sua percepção própria da situação, suas perspectivas de mudança social e suas estratégias e modos de vida (LONG, 1992, 1997, 2001; PRESTON, 1996). Cada ator social possui sua interpretação, percepção, versão da sua realidade de acordo com as suas experiências e vivências, sua cultura e sua formação e isto permite estudos sobre o problema dos deslocamentos involuntários, uma vez que os atores que interferem são os mais diversos. Esta perspectiva permite enfocar os processos de construção de conhecimento e de poder nos cenários e interfaces de contestação e negociação, perceber a re-configuração de relações sociais e valores nas práticas e discursos (LONG, 1997) e, além disso, permite conhecer situações de mudanças sociais em sociedades complexas, utilizando-se do conceito de realidades múltiplas para isso. É preciso considerar que o conceito de ator não é o mesmo para os diferentes pesquisadores que trabalham nesta perspectiva. Para Callon (1986), por exemplo, ator é qualquer entidade capaz de associar elementos textuais, humanos, não-humanos e dinheiro. Um grupo de cientistas sociais ingleses, desenvolvidos na década de noventa, liderado por Philiph Lowe2, os quais fizeram uma associação entre a abordagem construtivista e a sociologia da ciência, de Callon e Latour: a Teoria do Ator-Rede (TAR). Essa teoria tem permitido a muitos pesquisadores certa liberdade de manobra ante a separação equivocada entre dados sociais e 2 Lowe (1992); Lowe et all (1997); Clark & Lowe (1992). técnicos. Com a noção de ator-rede os pesquisadores das ciências e técnicas obtiveram uma liberdade semelhante à dos demais cientistas e engenheiros. Eis aqui o aporte para o método (HERNÁNDEZ, 2003). Um estudo capaz de ilustrar a aplicação da metodologia do ator-rede é a análise realizada por Michel Callon (1986), sobre a experiência de construção de um veículo elétrico (VEL) na França, nos anos setenta, onde Callon desenvolveu alguns os principais conceitos da Teoria do Ator-Rede (TAR): ator-mundo, tradução e ator-rede. São esses conceitos, de acordo com o autor, que permitem compreender a forma como os cientistas e técnicos reconstroem e combinam, simultaneamente, os contextos sociais e naturais sobre os quais eles atuam, possibilitando o entendimento da noção de ator e de estrutura social e por que o termo sócio-técnico constitui uma palavra única. Para Callon (1986), os termos ator-rede e ator-mundo são duas dimensões do mesmo fenômeno, onde este enfatiza o modo como os mundos são construídos em torno das entidades que os criam, e aquele enfatiza que eles têm uma estrutura, e que esta é passível de mudar. De acordo com Law (1992), uma característica da TAR é que ela, quase sempre, aborda seus trabalhos de forma empírica e daí se pode concluir que a tradução é algo contingente, local e variável, permitindo algumas generalizações: 1) alguns materiais são mais duráveis que outros, propiciando-lhes manter seu modelo relacional por mais tempo, contribuindo para dar uma maior estabilidade à rede (durabilidade do material está em relação a sua posição na rede e não pela sua natureza intrínseca); 2) durabilidade significa organizar através do tempo e mobilidade é organizar através do espaço. Para o mesmo autor, agir à distância significa controlar eventos, pessoas e lugares trazendo para casa esses eventos, pessoas e lugares, necessitando, para isso, que os materiais que constituem uma rede precisam ter as seguintes características: devem ser tão móveis a ponto de serem levados e trazidos de volta; tão estáveis para que possam ser movidos para outros lugares sem sofrer distorção, corrupção ou deterioração, e, tão combináveis que qualquer que seja a substância de que são feitos possam ser agregados, acumulados e embaralhados como um maço de cartas. É esta característica que permite a um centro funcionar como centro de tradução, operando sobre materiais representativos como censos, medições, relatórios. Agora, a noção de ator-rede, para Law (1999), aponta duas dimensões do mesmo fenômeno, como partículas e ondas, no qual a realização do social é um tipo de circulação, um viajar indefinido. Neste caso, ator não determina agência, assim como rede não determina estrutura, contanto que um ator social é sempre uma rede, um “ator-rede”, ou seja, um indivíduo só conta socialmente como um produto oriundo de uma rede de materiais heterogêneos em interação. Por outro lado, a noção de ator-rede contribui na descrição da extensão, da complexidade e da heterogeneidade do ator-mundo através dos processos de simplificação e justaposição. Considerando que todo ator é uma rede que está unida a outras redes e assim por diante, supõese que a realidade de um ator é uma complexidade indefinida, inviabilizando a descrição de um ator. Foi no início do século XXI que o empreendedor e o governo federal, juntamente com os interesses dos governos dos estados do Tocantins e Maranhão, definiram quais os principais atores que deveriam ser mobilizados para o desenvolvimento da UHE do Estreito: secretarias estaduais, prefeituras e secretarias municipais afetadas diretamente pelo empreendimento, meios de comunicação, empresários locais, sociedade local, agências nacionais. À primeira vista, o Consórcio CESTE e o governo federal podem aparecer ao mesmo tempo como ator-mundo, mas na verdade, é o Consórcio CESTE que mobiliza o próprio governo federal e os estaduais, bem como seus técnicos, e traduz os seus interesses. Pouco antes da implantação do canteiro de obras, os interesses de cada um deles foram traduzidos como sendo a concretização dos objetivos do ator-mundo, ou seja, a implantação da UHE de Estreito e a produção de energia. Os objetivos do empreendimento já estavam definidos como sendo a produção de energia elétrica a baixo custo, ampliação da demanda de energia para as regiões sul e sudeste e aumento da oferta de empregos no estado, mas, para que a tradução obtivesse sucesso, os diferentes atores precisavam ser convencidos de que a opção por um dado sistema de produção de energia elétrica, como o que estava sendo apresentado – a UHE de Estreito – era indispensável para a sua existência e desenvolvimento. Os atores deveriam passar pelo que na TAR é denominado de „pontos obrigatórios de passagem‟ (CALLON, 1986a; 1986b). O principal ponto obrigatório de passagem foi definido pelo empreendedor como sendo a produção de energia elétrica limpa e a baixo custo, atendendo aos requisitos da legislação ambiental, dentro do discurso do desenvolvimento e integração da região norte. Os técnicos do empreendimento passaram a atuar como porta-vozes da produção de energia elétrica pela UHE de Estreito, estabelecendo as identidades dos atores, os seus propósitos e papéis. Muito embora existisse uma diversidade de entidades envolvidas, como os atores humanos e não-humanos (como os equipamentos e componentes da UHE e das empreiteiras contratadas para a obra e dos recursos naturais, como o rio e suas margens e elementos que lhes são associados – fauna e flora), os conhecimentos sobre a natureza e a sociedade, os conhecimentos científicos e os artefatos técnicos, os tradutores, ao estabelecerem os objetivos para a produção da energia elétrica, demarcaram algumas poucas entidades, através das quais as outras deveriam ser mobilizadas. Entre estas entidades estavam as agencias de desenvolvimento rural dos estados e as instituições e organizações não-governamentais contratadas para o desenvolvimento dos Planos Básicos Ambientais. Também foram definidos os seguintes atores que deveriam ser mobilizados: os técnicos e pesquisadores do governo dos estados, a população rural atingida diretamente pelo empreendimento, e um ator não-humano, o rio Tocantins, na forma de recursos hídricos, muitas vezes tratado em termos de bacia hidrográfica. O interesse por este recurso, a partir dos estudos de sua potencialidade hidrelétrica, já estava em processo de materialização na forma de outras usinas hidrelétricas já construídas no seu leito, como a UHE do Lajeado, a UHE de Peixe e a UHE de São Salvador. O interesse do empreendedor era contribuir com o discurso de que as UHEs se constituíam num modelo ideal de produção de energia e, para isso, precisava incorporar o empreendimento no cotidiano da sociedade regional. Isto se deu através dos meios de comunicação, como TV, jornal e mídia eletrônica. Qualquer uma das entidades e atores mobilizados pelo ator-mundo poderia apresentar rupturas ou recusar as funções que lhes foram dadas, pois não haviam, ainda, sido testadas, podendo ser traduzidas de modos diferentes por outras entidades. Mas as relações entre entidades e atores podem mudar em função dos avanços tecnológicos ou mudanças sociais e econômicas, alterando um obstáculo num recurso. O principal obstáculo verificado por nós, nesta pesquisa é o conflito entre a população atingida e o ator-mundo, afetando diretamente a conclusão do sistema de produção de energia elétrica: as famílias ribeirinhas, residentes na área diretamente afetada pelo empreendimento, recusam-se a serem envolvidas na rede e sair do seu local de moradia, enquanto o empreendedor precisa „esvaziar‟ a área, ou seja, realizar um deslocamento compulsório destas famílias. O êxito da rede se dará num processo de negociação em arenas de disputa e a partir do processo indenizatório das famílias em condições consideradas por elas como as mais justas. A utilização do rio Tocantins em nenhum momento se constituiu num obstáculo para o empreendedor, estando disponível e abundante para ser transformado em lago. Resumindo, a produção de energia elétrica pela UHE de Estreito acontecerá a partir do ajuste entre atores heterogêneos que estão se ajustando, assumindo papéis específicos, e articulados com objetos e entidades que estão sendo mobilizados. O argumento em torno do desenvolvimento tecnológico, nesse processo, cumpriu um papel central de fio condutor e de agregação dos atores sociais. O Consórcio CESTE, constituído para coordenar a construção da UHE, a partir desse argumento, identifica-se como portador de um “novo modelo de produção de energia elétrica e promotor do desenvolvimento regional” e seu êxito estará na relação direta da tradução dos interesses dos outros atores, conseguindo, em torno de tal argumento, a legitimidade para a sua mobilização e conseguindo construir uma rede não só de caráter social, mas também, técnica. O Consórcio CESTE definiu quem faria o quê na implantação da UHE: as atribuições dos prefeitos e vereadores na aprovação de normativas e legislações; planos de inserção das famílias atingidas nas economias locais e regionais com base no discurso da sustentabilidade aos órgãos estaduais de desenvolvimento rural e de meio ambiente; pesquisas as universidades regionais; entre outras. Definiu, assim, papéis e funções para a construção da UHE, num mundo pensado por ele. Mas, além dos atores humanos, envolveu, também, atores não-humanos, como os acumuladores de eletricidade, os circuitos elétricos, as turbinas, entre tantos outros. Assim, a UHE de Estreito, como inovação técnica, precisa ser percebida como o produto da configuração de complexos elementos heterogêneos e associados. É possível descrever o seu conteúdo e a sua dimensão através da noção de ator-mundo, pois é este quem faz as ligações e associações de uma inovação técnica ou de um conhecimento científico, sendo este tão durável quanto durável for às associações que o formou e tão extensos quanto for o ator-mundo que fez estas ligações. O CESTE tem o papel de tradutor e porta-voz da UHE de Estreito, na medida em que atribui aos demais atores os papéis e as funções a desempenhar e projetos a executar. Traduzir, portanto, é esboçar um cenário, distribuir papéis e funções, é “falar pelos demais” a partir da sua própria linguagem, de forma semelhante a do político que fala em nome do povo. Latour (1994), explica que traduzir não expressa a mudança de um vocabulário para outro. Traduzir significa deslocar, desviar a rota, inventar, mediar e criar ligações que não existiam antes e que, em alguma medida modificam dois elementos ou agentes. Traduzir, portanto, é um esforço, uma tentativa, que pode ser alcançada ou não. A problematização é a maneira como um ator busca se tornar indispensável, definindo um problema de tal forma que esse conhecimento seja indispensável para a sua solução. Neste momento, também são relacionados os “pontos obrigatórios de passagem” (POP), através dos quais aqueles atores que aspiram ter futuro devem passar. Traduzir significa, assim, obrigar uma agência a consentir num desvio, a entender que, fora do ator-mundo através do qual a rede se organiza, adquirindo uma ordem, ela não tem qualquer possibilidade de sucesso. Para Marsden et al (1993), é nesta etapa que se busca atrair os demais atores para jogar nos seus termos e, assim, tentar criar uma rede estável de atores que seriam, quando necessário, suporte para as suas posições. Algumas agências podem, nesta etapa, representar obstáculos enquanto outras podem significar recursos, fato que pode ser alterado com a introdução de uma inovação tecnológica ou mudanças sociais ou políticas. A mobilização ou deslocamento, por fim, é a forma de fazer com que as agências aceitem como representativos os porta-vozes e certos pontos obrigatórios de passagem (POP). Callon (1986) esclarece que, para mobilizar ou deslocar, o ator-mundo precisa converter as agências em inscrições, como relatórios, memorandos, resultados de levantamentos, papers, gráficos, enviando-os para fora e recebê-los de volta. Mas não se trata de mobilizar somente pessoas, mas, também, materiais e dinheiro, elementos físicos e sociais, o que faz com que a tradução seja efetiva. Assim, o CESTE se constituiu no centro da tradução porque, além de tentar organizar e estruturar os movimentos tentou garantir esses movimentos por ter, seus centros de comunicações e modos de agregar através dos centros de pesquisas, locais para encontros, prédios, projetando o futuro da UHE através de exposições, eventos, investimentos, simpósios, pois um ator-mundo precisa acumular materiais que permaneçam duráveis. Callon (1986) resume o processo de tradução como sendo falar por alguém e ser indispensável. A UHE do Estreito como ator-mundo Em uma perspectiva radical, Latour (1994) aponta para a fusão do projeto técnico e do contexto. Por exemplo, para a produção de energia elétrica no Tocantins, foi necessário não apenas desenvolver o projeto de barramento e adquirir as turbinas e demais equipamentos, mas também atender às diversas legislações sobre o meio ambiente, conseguir o licenciamento ambiental (Licença Prévia Licença de Instalação) junto ao órgão licenciador, construir e divulgar um discurso de desenvolvimento regional capaz de seduzir a população para os benefícios do empreendimento, entre outros fatores. A UHE de Estreito pode ser analisada a partir do enfoque sociotécnico de Latour, sendo um espaço onde os aspectos técnicos e sociais se equivalem uma vez que concorrem num mesmo contexto de trocas de materiais e práticas coletivas. Para concretizar este projeto inovador, o empreendedor precisou estabelecer uma mediação recorrente entre as coisas e os atores, através de negociações. Necessitou de um ambiente híbrido, constituído por instituições legitimadas e esquemas técnicos articulados. Para Andrade (2004:95), “é nesse ambiente que os inovadores buscam impor novas lógicas e traduzir mecanismos de gestão em formas de conciliação entre interesses diversos”. Embora as redes verticais, representadas pela UHE enquanto ator-rede, assim como as horizontais, representadas pelos conflitos e mobilizações sociais esteja em processo de transformação, foi a ação estratégica do empreendedor que formulou a proposta inicial de indenização as famílias atingidas, mesmo que consideradas insatisfatórias pelos seus representantes, como o Movimento dos Atingidos por Barragens. Nestas redes verticais existe uma presença visível de agentes externos ao lugar (empreiteiras, construtoras, transportadoras, prestadores de serviços, técnicos, etc.) organização e produção tipicamente industrial, cuja origem encontra-se no setor elétrico nacional e internacional, imprimindo uma lógica de produção. Assim, essas redes verticais, agindo à distância, através do seu ator-mundo buscam fixar identidades e organizar o território para atender às suas necessidades de integração à economia nacional e internacional. A possibilidade de agir à distância, para Latour (1987) e Law (1986), constitui-se uma das propriedades centrais das redes. O conceito de redes de atores toma importância neste estudo, pois permite detectar simultaneamente o sentido, tanto das práticas sociais como da inovação tecnológica, representada pela UHE de Estreito, em imbricações complexas e dinâmicas. Esta idéia de inovação busca vincular a racionalidade das ações econômicas com a escolha das opções feitas pelos diferentes atores que conformam a rede sociotécnica. Os leigos, neste sentido, tanto quanto os técnicos, são essenciais para a prática inovativa, pois é também pela sua atuação que os projetos tecnológicos adquirem consistência e viabilidade. É importante registrar que muitos teóricos do ambientalismo, como Barry Commoner e Michel Bosquet só conseguem perceber o fenômeno técnico a partir dos seus efeitos visíveis em termos de diferentes impactos socioambientais, ou seja, reduzem rendimento técnico a seus efeitos mensuráveis. Nesta pesquisa, o EIA/RIMA da UHE de Estreito já apontava a partir da sua inserção no espaço regional, conflitos sociais e o deslocamento compulsório de famílias residentes na área diretamente afetada pelo empreendimento como um impacto negativo, ao mesmo tempo em que previa como positivo a inserção destas famílias em atividades produtivas a partir de planos de desenvolvimento dos reassentamentos. Dessa forma, o empreendedor construiu um ambiente de circulação de recursos e materiais que é anterior aos impactos do deslocamento compulsório, representando um contexto técnico, social e ambiental que merece uma avaliação específica. Quando se reduz os fenômenos técnicos aos efeitos perceptíveis e mensuráveis, perdem-se de vista as múltiplas relações sociotécnicas e ambientais presentes, os sistemas produtivos modernos e as diversas trajetórias tecnológicas possíveis. Apontar ou identificar o ator-mundo da produção de energia elétrica no contexto da região norte o estado do Tocantins são significa identificar apenas o seu tradutor, mas, também, compreender como ela foi planejada e organizada como uma rede sociotécnica. É o ator-mundo quem fala pelos demais, mobiliza a entidades de uma rede e define papéis e, neste processo, define-se a si mesma, visando produzir materiais que permaneçam duráveis. O ator-mundo resulta da configuração de um contexto sociotécnico e de muitas traduções e tentativas de traduções (FERT NETO e GUIVANT, 2002). No contexto estudado, o Consórcio CESTE aparece como o elemento “tradutor porta-voz” da produção de energia elétrica, constituindo-se no ator-mundo a partir do momento em que consegue agregar, associar e definir as identidades e os papéis dos demais atores. Entretanto, para considerarmos o Consórcio como o ator-mundo da produção de energia elétrica é preciso caracterizá-la como um ator-rede, heterogêneo, que se constitui numa organização e numa estrutura política, administrativa, técnica, material, ou seja, um ator que é uma rede em si mesmo. O Consórcio CESTE se constituiu no ator-mundo porque vem obtendo êxito na tradução dos diversos elementos heterogêneos numa rede articulada, através da sua coordenação efetiva do movimento e da localização desses elementos, dispondo de sua estrutura: produziu informações direcionadas aos meios de comunicação de massa, utilizando-se de amplos espaços nas programações locais; produziu e fez circular papers, informativos, folders; produziu, centralizou e distribuiu dados estatísticos, relatórios e perícia; dispunha de técnicos, carros, mapas, imagens de satélites, computadores, internet; dispunha de legitimidade política, contatos e representantes em diversos círculos do poder; reunia diversas pessoas e diferentes públicos em eventos promocionais e muitos outros elementos que lhe permitiram tornar-se o ator-rede organizador da produção de energia elétrica no Tocantins, ou seja, ser o ator-mundo na constituição da rede sociotécnica, porque a arena política sustentou o processo de tradução num lugar reconhecível e sob seu controle (FERT NETO e GUIVANT, 2002). Considerações finais O empreendedor, enquanto ator-mundo assumiu uma visão que cobria os interesses não só dele próprio, mas, principalmente, das necessidades do governo federal na Amazônia Legal e o atormundo, o Consórcio CESTE, demonstrou, durante o processo de implantação da UHE e diante dos conflitos que aconteceram a sua força e a sua legitimidade para garantir o sucesso do empreendimento, através das relações estabelecidas com as principais instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais envolvidas neste processo, neutralizando as ações do MAB. Muito embora o ator-mundo tenha mobilizado diferentes atores sociais, observa-se a baixa capacidade de organização social e de ação política das famílias e do MAB no sentido de mobilizar outros atores e negociar com eles as melhores alternativas para as suas vidas, considerando a compulsoriedade do deslocamento e a possibilidade da compensação ambiental. A opção escolhida pelo MAB, em todos os momentos de conflito, foi o ataque direto ao empreendedor, e isto, em grande parte, impediu que outros atores fossem mobilizados na busca da implementação daquelas ações nos reassentamentos. A leitura dos pressupostos teóricos e a opção pela Teoria do Ator-Rede (TAR), com as arenas de negociação, o processo de tradução, o ator-mundo e a rede sociotécnica, permitiram a compreensão e a leitura do contexto de estudo a partir das relações de poder, das mobilizações e das formas de participação. Com os resultados desta pesquisa, pretendemos contribuir para o debate e apontar novas perspectivas de análise e novas formas de entender e abordar os problemas socioambientais decorrentes da implantação de novos empreendimentos hidrelétricos. Referências bibliográficas ALMEIDA, A W. B. Os deslocamentos compulsórios de índios e camponeses e a ideologia do desenvolvimento. IN: MAGALHÃES, S. B., BRITO, R. de C. E CASTRO, E. R. de. (orgs). Energia na Amazônia. 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