PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)
A Negação da Negativa em um Palimpsesto de Propaganda: Conflitos entre
Liberdades em Expressões Sobre a Campanha de Carnaval da Skol em 20151
Ivan Paganotti2
Universidade de São Paulo
Resumo
A campanha de Carnaval da cerveja Skol foi alvo de reclamações em redes sociais: a
frase “Esqueci o ‘não’ em casa” foi acrescida de “e trouxe o nunca”, uma crítica ao
que foi visto como um incentivo da cerveja ao comportamento irresponsável de seus
consumidores, passando por cima de limites legítimos em um momento (o Carnaval)
em que o abuso alcóolico atrela-se a incidentes violentos. A campanha foi retirada
pela empresa, apesar de denúncias do público no Conar terem sido arquivadas. O caso
é avaliado a partir dos mecanismos de responsabilização social, preconizados pela
economia política da comunicação, adotando a metodologia da análise de discurso
crítica. Entre os resultados encontrados, é possível apontar que o caso se insere em
rara contracorrente de conflitos de liberdade de expressão, em que essa liberdade se
choca não com direitos diferentes, mas com a própria liberdade de expressão – no
caso, a possibilidade de evitar dizer “não” e o poder de dizê-lo.
Palavras-chave: propaganda; censura; liberdade de expressão; ativismo; redes
sociais.
Introdução
Poucos dias antes do Carnaval de 2015, uma campanha publicitária da cerveja
Skol ocupou os avisos publicitários dos pontos de ônibus de São Paulo. Os
paulistanos ainda se acostumavam com o espaço reconquistado pela publicidade em
totens de vidro ao lado das novas paradas de transporte coletivo, após um banimento
desde a aprovação da Lei Cidade Limpa em 2007, que vetava propagandas em
espaços públicos e que varreu a publicidade antes onipresente no horizonte da
metrópole. Entretanto, mais polêmico do que a cobertura transparente de vidro desses
1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 11 – “Comunicação, consumo e cidadania: políticas de
reconhecimento, redes e movimentos sociais”, do 5º Encontro de GTs – Comunicon, realizado nos dias
5, 6 e 7 de outubro de 2015.
2 Pesquisador do “Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura” (Obcom/USP) e
do grupo de estudos Midiato/ECA-USP, doutor, com bolsa Capes, em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo (USP), docente do Digicorp/ECA-USP. E-mail: [email protected]
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pontos de ônibus – que falhava em proteger os pedestres do sol quente no meio do
deserto de asfalto em pleno verão – era o conteúdo de algumas dessas mensagens.
Coladas ao lado de quem esperava o ônibus, essas propagandas eram um convite à
destruição criativa de quem sofria com o atraso do transporte, com o calor e, acima de
tudo, com mensagens consideradas ofensivas. Uma publicitária e uma jornalista,
incomodadas com essa campanha da Skol, decidiram acrescentar à sugestiva
mensagem da cervejaria seu recado pessoal, acrescentando com fita isolante sua
manifestação que subvertia e criticava a propaganda (ver Imagem 1):
Imagem 1. Fotos publicadas no Facebook de Pri Ferrari. Fonte: https://www.facebook.com/photo.php?
fbid=10203399818310543&set=p.10203399818310543&type=1&theater
A mensagem original da Skol, que indicava que “Esqueci o ‘não’ em casa”,
sugeria que o ‘não’ seria um entrave à liberdade e à diversão e que, por isso, deveria
ser deixado para trás para quem quiser se divertir com essa cerveja. Um dos
elementos visuais dessa campanha trazia o símbolo da cerveja, uma flecha amarela
fazendo uma curva ao seu redor, ao lado da letra N maiúscula, simulando o botão ON,
utilizado em diversos utensílios eletrônicos para ligá-los. Com o jogo entre “ON”
[ligar, em inglês] e “não” [em inglês, “NO”], é possível interpretar que a cerveja
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pretende ser identificada como o contrário do “não”, negando-o e representando-se
como seu reverso.
Entretanto, no cartaz a frase “Esqueci o ‘não’ em casa” foi acrescida, em
intervenção com fita isolante, de “e trouxe o nunca”, em uma crítica ao que foi visto
como um incentivo da cerveja ao comportamento irresponsável de seus consumidores,
passando por cima de limites legítimos em um momento particular (o Carnaval) em
que o abuso alcóolico atrela-se a incidentes violentos, como acidentes de trânsito,
violência, abuso sexual e problemas de saúde decorrentes da ingestão dessa substância
em excesso. Essa era a crítica sugerida no texto que acompanha as fotografias
realizadas pela publicitária Pri Ferrari e pela jornalista Mila Alves e difundidas no
Instagram e Facebook (Imagem 1). O próprio cartaz atacado pela dupla trazia uma
contradição que poderia também ter sido melhor explorada: em pequenas letras em
faixa branca, a mensagem obrigatória “Se for dirigir, não beba” – que segue a
resolução do CONAR nº01/08 referente ao anexo A de seu código (CONAR, 2015, p.
16) – na lateral superior direita do cartaz, colidia frontalmente com o abandono do
“não” proposto pela campanha, em uma sugestão que, se for levada ao pé da letra,
poderia indicar que a recusa à direção sob influência do álcool poderia também ser
deixada para trás.
Em poucas horas, com a explosão de milhares de compartilhamentos,
comentários e “curtidas”, os responsáveis pela aprovação da campanha da Skol
entrarem em contato com a publicitária que difundiu suas críticas nas redes sociais
com promessas de remover a campanha polêmica. Em nota oficial, o conselho de
administração da Ambev, produtora da Skol, informou que substituiria o diretor de
marketing da empresa e que pretendia remover a campanha inadequada em respeito
ao alerta dos críticos:
As peças em questão fazem parte da nossa campanha "Viva RedONdo", que
tem como mote aceitar os convites da vida e aproveitar os bons momentos.
No entanto, fomos alertados nas redes sociais que parte de nossa
comunicação poderia resultar em um entendimento dúbio. E, por respeito à
diversidade de opiniões, substituiremos as frases atuais por mensagens mais
claras e positivas, que transmitam o mesmo conceito. Repudiamos todo e
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qualquer ato de violência seja física ou emocional e reiteramos o nosso
compromisso com o consumo responsável. Agradecemos a todos os
comentários. (Ambev apud G1, 2015)
Em lugar da campanha rechaçada, novas mensagens supostamente mais
responsáveis foram apresentadas durante o Carnaval. Repetindo o formato – com a
única supressão do slogan “Viva RedOndo”, presente na mensagem original e
abandonado na versão final – os novos cartazes trocavam o conteúdo para sugerir que
“Quando um não quer, o outro vai dançar” e, se “Tomou bota? Vai atrás. Do trio.”,
frisando que “Neste Carnaval, respeite” (Imagem 2):
Imagem 2. Novas propagandas apresentadas pela Skol no Carnaval 2015 após críticas. FONTE: Meio
& Mensagem (2015).
Ainda seria possível questionar por que somente “neste” Carnaval seria exigido
respeito; talvez seja uma ironia implícita ou inadvertida que lembra o quanto esse tom
condescendente e moderado é uma exceção nas campanhas etílicas e carnavalescas,
para não mencionar a rara resposta imediata à crítica do público. Entretanto, esse caso
representa outra exceção ainda mais intrigante: não se trata de um confronto entre a
liberdade de expressão e outros direitos, mas um raro conflito entre liberdades de
expressão. Esse artigo pretende avaliar como esse caso se insere em rara
contracorrente de conflitos de liberdade de expressão, em que essa liberdade se choca
não com outros direitos da personalidade de caráteres distintos, mas com a própria
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liberdade de expressão – no caso, a possibilidade de evitar dizer “não” e o poder de
dizê-lo. Para isso, será adotada a metodologia da análise de discurso crítica
(FAIRCLOUGH, 2003) para avaliar como tensões sociais são demarcadas
discursivamente, revelando princípios ideológicos que fundamentam os pressupostos
das mensagens avaliadas. A análise permite compreender por que as denúncias do
público foram imediatamente acolhidas pela própria empresa, mas rejeitadas
posteriormente pelo órgão de autorregulação publicitária, que ecoou sua tendência
mais liberal nas decisões que tratam de denúncias sobre o uso da sexualidade para
promover o consumo. A aplicação da autorregulação em contraponto à demanda
pública e à resposta da empresa sugere, assim, uma tensões nesses mecanismos de
responsabilização social – a “accountability”, conceito central da ética contemporânea
e, particularmente, da teoria da economia política da comunicação de McQuail (2005)
– desses agentes privados e coletivos.
Palimpsesto publicitário: escrita “sobre” mensagem, entre crítica e censura
Além de um direito coletivo, público e necessário para a interação social, a
liberdade de expressão também faz parte dos direitos da personalidade com os quais
frequentemente entra em rota de colisão. Assim, procura-se proteger a criação
intelectual, que veicula parte da identidade do autor em sua obra, da mesma forma
como se protege a honra, a intimidade, o segredo e a imagem dos indivíduos
(BITTAR, 1989). É frequente, assim, a necessidade de ponderar os direitos em
conflito, ou determinar qual deve prevalecer na colisão entre diferentes direitos
fundamentais – como o direito à imagem, à honra, à privacidade, à informação e a
liberdade de expressão (GODOY, 2008, p. 2). Mattos (2005) alerta que muitas vezes a
liberdade de expressão artística ou comunicativa acaba sendo cerceada para a
proteção desses outros direitos em conflitos judiciais. Esses casos refletem a
recorrente divergência entre duas propostas que pretendem equilibrar diferentes
direitos que, para sua proteção, exigem o controle da liberdade de expressão: por um
lado, alguns juristas defendem o sacrifício da expressão, que deve “ceder lugar” para
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a proteção da imagem de indivíduos ou da moral coletiva (MENDES, 1994, p.300);
por outro, há os que argumentam a favor da ponderação que proteja a expressão, pois
o direito à informação é justamente o “fundamento para o exercício de outras
liberdades” (BARROSO, 2001, p.40).
Entretanto, a tensão entre a propaganda da Skol e suas críticas pode ser
considerada uma rara exceção a essa tendência, pois não envolve um conflito da
liberdade de expressão com outros direitos da personalidade diferentes – ou seja,
conflitos interpessoais – mas sim uma tensão entre liberdades de expressão – e,
portanto, um conflito interno e próprio da expressão livre. As duas expressões em
colisão podem ser sintetizadas a partir das perspectivas de seus formuladores: de um
lado, a campanha publicitária da cerveja pretende difundir sua mensagem que sugere
aos seus consumidores esquecer o “não” em casa; de outro, há a liberdade de
expressão de quem se recusa a abdicar da possibilidade de continuar a negar o que
(não) desejar. Ou seja, estamos diante de um aparente paradoxo libertário: a liberdade
de sugerir que não se diga não e a liberdade de recusar essa sugestão. Mas, para além
dessa leitura superficial, é possível superar essa aparência contradição ao ter em
mente que ambas as formulações podem conviver simultaneamente – é possível
sugerir um não ao mesmo tempo em que é possível negá-lo.
Da mesma forma, esse caso mostra como a liberdade de expressão encontra-se
tensionada entre a crítica e sua proibição. A intervenção da publicitária e da jornalista
nas redes sociais não pretendia, em um primeiro momento, demandar a proibição da
campanha, visto que procuravam “escrever sobre” (como um comentário, um grafite
temporário) a campanha, mas sem rasurá-la. Após a crítica da dupla original, novas
respostas mais radicais surgiram entre comentários mais exaltados. Em resposta à
reportagem publicada no site F5 sobre a substituição da campanha pela Skol
(MARTINHO, 2015), o internauta identificado como “Biloca”, sugere: “campanha de
péssimo gosto como o produto que tenta vender. boicote já!”. Além da ameaça de
perder consumidores em potencial – o que pode explicar a reação da cervejaria,
receosa de prejuízo justamente em um dos períodos de maior consumo de seus
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produtos, no Carnaval – denúncias de grupos de consumidores foram encaminhadas
ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que podia
advertir a empresa, demandar alterações na campanha ou até sua supressão. Assim, a
empresa optou pela já mencionada autocrítica e consequente autocensura.
O que nasceu como um comentário ao redor da campanha acabou por promover
sua remoção e substituição. A trajetória desse caso lembra, nesse sentido, um
palimpsesto: um novo texto escrito sobre a superfície de outro anterior, por vezes
removendo as camadas anteriores no processo em um novo uso do suporte.
Entretanto, essa técnica milenar aqui revela a ambiguidade da escrita “sobre” uma
mensagem: pode ser entendida como um comentário crítico que acompanha o texto
original ao seu lado, sem removê-lo, como foi o caso da fita adesiva colada no cartaz
da Skol abaixo da sua mensagem e das fotografias compartilhadas pela rede; pode ser
também a substituição, alteração ou supressão da mensagem original por novas
mensagens, como ameaçado pelas denúncias no Conar e pela resposta dada pela Skol.
De um lado, encontramos a crítica pública, que se contrapõe sem rasurar, como
destacado pela própria autora da intervenção em um complemento ao seu post
original, “feita com fita isolante pois o objetivo não era destruir a infraestrutura do
outdoor, só a campanha” (Imagem 1). Do outro, apela-se à censura – e vale lembrar
que também o termo censura apresenta esses dois sentidos, tanto como um comentário
crítico que só repreende quanto a repressão de uma expressão.
As alternativas propostas para a resolução do caso também são reveladoras.
Contra a ameaça de boicote e as críticas do público, a Skol optou pela autocensura,
removendo ela mesma sua campanha polêmica antes mesmo que fosse instaurada a
denúncia no Conar. Essa retirada estratégica da companhia reforça, indiretamente, a
mediação do conflito entre atores privados (os consumidores e a empresa), mesmo no
espaço público das redes sociais, evitando o recurso à regulação coletiva, que
sobrepesaria direitos dos cidadãos, que superam em muito a simples relação privada
de clientela. Essa solução, veremos a seguir, também ecoa as origens desse
mecanismo de regulação em particular.
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Conar: controle entre o público e o privado
Evitar preventivamente a regulação pública, substituindo-a pela negociação
entre pares de soluções mais brandas está na gênese da entidade que concentra, no
Brasil, o poder de regular a publicidade. Uma estratégia para evitar a regulação estatal
e a censura prévia então existentes no final da ditadura militar, a autorregulação
publicitária foi proposta por profissionais e agências de publicidade inspirados em
modelos internacionais de códigos de éticas – particularmente no código britânico e
nas diretrizes da International Advertising Association. Frisando sua formulação
coletiva, o código em que se baseia a autorregulação foi aprovado durante o III
Congresso Brasileiro de Propaganda, em 1978, e colocado em prática no início dos
anos 1980, com a criação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
(Conar). O Conar garante o financiamento de suas atividades pela contribuição das
entidades publicitárias e seus afiliados, como agências, anunciantes e veículos de
comunicação. Entre os valores defendidos no preâmbulo do Código Brasileiro de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR, 2015), destacam-se a defesa da
honestidade e da verdade, o respeito às leis nacionais e à concorrência leal, a
responsabilidade social e a preocupação com a cadeia de produção e o fortalecimento
da confiança do público na atividade publicitária.
Para avaliar o respeito ao código, o Conar recebe denúncias de consumidores e
entidades da sociedade civil – como ocorreu no caso da campanha da Skol no
Carnaval de 2015 – do poder público ou dos próprios membros do Conar sobre
campanhas de publicidade que desrespeitem seu código. As denúncias são avaliadas
pelo seu Conselho de Ética, composto por membros voluntários e indicados pelas
entidades que fundaram o Conar (como as associações brasileiras das agências de
propaganda, dos anunciantes, de jornais, de emissoras de rádio e televisão e de
editores de revistas) – e também pelo convite de representantes da sociedade civil. Se
a denúncia for acolhida, os envolvidos podem apresentar sua defesa para que, após os
debates, um integrante do Conselho de Ética sugira o prosseguimento do processo.
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Além do arquivamento do processo sem sanções, é possível advertir o anunciante,
sugerir alterações ou correções, recomendar que os meios de comunicação suspendam
a divulgação do anúncio e/ou divulgar a posição crítica do Conar nos meios de
comunicação, caso ocorra o não acatamento das decisões adotadas. Por fim, um
parecer do relator é aprovado em votação pelo conselho – com possibilidade de
recursos.
As decisões do Conar tendem a ser debatidas publicamente por diversos meios
de comunicação, principalmente quando envolvem a ameaça de proibição de
campanhas polêmicas (SANTOS; CRUZ; MATOS; FERREIRA, 2012) ou a
intervenção de autoridades públicas ou órgãos do governo (LANA, 2013), com raras
decisões contestadas em seu histórico (SCHNEIDER, 2005). Apesar da grande
recepção pública, evidenciada pelas mais de 8 mil denúncias avaliadas desde sua
criação, Monteiro (2012, p. 4) critica a limitada participação dos consumidores e de
associações sociais sem ligação direta com os produtores midiáticos na formulação do
código e nas decisões do Conselho de Ética, sobrando somente o papel limitado de
oferecer denúncias, com poder restrito para participar de seu julgamento – uma crítica
comum em relação a outras agências de autorregulação publicitária pelo mundo
(HANS-BREDOW-INSTITUT, 2006, p. 180). Além da sub-representação de pontos
de vista além dos anunciantes, dos meios de comunicação e dos profissionais da
mídia, Mário e Falcão (2010, p. 5) também criticam o efeito colateral adverso da
proibição de campanhas, que acabam atraindo mais atenção do público justamente por
terem sido condenadas pelo Conar.
Em adição ao código interno, o Conar também fiscaliza a adequação das
campanhas a normas legais aprovadas pelo congresso nacional ou em decretos do
poder executivo, evidenciando os poderes complementares da autorregulação no
fortalecimento
e
fiscalização
de
preceitos
legais
adotados
por
entidades
governamentais e legislativas do Estado, como também acontece em diversos países
no que tange o controle publicitário (MELO, SOUSA, 2013, p. 218). Ainda assim,
além do código original, do final dos anos 1970, as decisões acumuladas pelo
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Conselho de Ética podem também ser utilizadas para balizar novas decisões – e são
consideradas pelas agências publicitárias no momento de confecção de suas
campanhas. Em alguns casos específicos, o Conselho de Ética pode cristalizar essa
jurisprudência na forma de súmulas, o que colabora para atualizar, aprimorar e sanar
questionamentos sobre o entendimento do código original. Além disso, o Conselho
Superior, eleito pelas entidades associadas, cria resoluções mandatórias que são
adicionadas ao código original – como a já mencionada obrigatoriedade de divulgar,
em propagandas de bebidas alcóolicas como a da Skol, mensagens como “Se for
dirigir, não beba”. As decisões, as súmulas e as resoluções caracterizam o poder de
formulação de normas e intervenção direta sobre expectativas de conduta por parte do
público e dos agentes comunicativos, o que, aliado ao poder de averiguação e
imposição de sanções, determina o poder regulador do Conar.
No caso da campanha da Skol denunciada em fevereiro de 2015, seu julgamento
só foi realizado dois meses depois, em abril, e a sugestão de alteração, proposta pelo
relator Arthur Amorim, representante dos profissionais de criação na entidade, foi
recusada pelo conselho de ética do Conar, que optou pelo arquivamento da
reclamação:
Ambev - Esqueci o não em casa
Grupo de consumidoras reclamou de publicidade em mídia exterior da Skol,
veiculada às vésperas do Carnaval, com a frase acima. Elas consideraram que
a peça publicitária podia implicar o estímulo ao abuso, constrangimento e
intervenção na liberdade de comportamento e autonomia de decisão, em
especial da mulher.
Em sua defesa, anunciante e agência informaram os contornos da campanha
em que a peça publicitária estava inserida e que propõe ao consumidor
"aceitar os convites que a vida faz". Negou a defesa a interpretação dada à
frase, lembrando que não há imagem no cartaz de quem pudesse estar
vocalizando-a, o que, por si só, já deveria afastar qualquer entendimento de
que haveria intenção de tratar de assuntos ligados a sexo. Pelo contrário,
argumenta a defesa, a peça publicitária reforça o poder de escolha das pessoas
sobre o que querem fazer. Informou ainda a defesa que foi feito contato com o
grupo de queixosas e, em respeito a elas, optou-se voluntariamente pela
retirada do anúncio.
O relator da representação sugeria a alteração, por considerar que a frase,
ainda que pertinente ao contexto da campanha, quando vista isoladamente
pode dar margem à interpretação que originou a reclamação. Seu voto, no
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entanto, foi vencido no Conselho de Ética pela recomendação de
arquivamento. O autor do voto vencedor argumentou que a frase não é dúbia,
não faz insinuações maliciosas, tampouco é feita como uma recomendação do
anunciante.3
Não era a primeira vez que a Skol ocupava a atenção do Conar: entre mais de
uma centena de casos localizados pela busca no site da entidade, a empresa foi
advertida pela propaganda de ovos de páscoa de cerveja em 20124 e de sorvete de
cerveja em 20135. Ao contrário da proteção do público infantil como alvo colateral
dessas duas campanhas anteriores, os membros do conselho de ética se alinharam, em
2015, à defesa da empresa, deixando de lado a recomendação do relator de alterar a
campanha, não encontrando na propaganda “insinuações maliciosas” denunciadas.
Essa interpretação mais liberal não é exceção nas decisões do Conar. No mesmo
mês de abril de 2015, dos 21 casos julgados, cinco reclamações tratavam da
sensualidade em marcas de cerveja (além da campanha da Skol, também as cervejas
Schin6, Itaipava e Conti Bier, essa última com duas reclamações, uma contra sua lata,
com desenhos de pin ups7, e outra contra o uso de mulheres com trajes sensuais em
sua propaganda televisiva8) – todos arquivados, com a única exceção da denúncia
contra a Itaipava, que foi proibida de mostrar em mídias abertas sem “mecanismo de
acesso seletivo” o vídeo de “um homem com água pela cintura que aparentemente
tem uma ereção ao ver, também mostrada à distância, uma jovem de biquíni” 9. Vale
destacar que outras duas reclamações também tratavam de bebidas alcóolicas – a
vodca Balalaika10 e o vinho Jurubeba Leão do Norte11 – e outras quatro denúncias
3 Representação 027/15. Disponível em: http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4082
4 Representação 073/12. Disponível em: http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=3133
5 Rep. 338/12. Disponível em: http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=3358
6 Eram criticadas as piadas de duplo sentido e machistas em campanha televisiva que aludia a nomes
de blocos de Carnaval. Representação nº 15/15. Disponível em:
http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4078
7 Rep. 28/15. Disponível em: http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4083
8 Rep. 4/15. Disponível em: http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4077
9 Rep. 22/15. Disponível em: http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4079
10 Rep. 24/15 – campanha sustada e advertida – http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4081
11 Rep. 14/15 – recomendação de alteração – http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4080
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envolviam casais nus em fotos de campanhas de boate 12, motel13, depilação14 e até
tapeçaria15, mostrando a preocupação da entidade com essa temática, ainda que as
últimas duas dessas denúncias tenham somente sido arquivadas.
Conclusão: liberdade de expressão, sem isenção de crítica
Dois meses após a trágica campanha da Skol que sugeria esquecer o “não” em
casa, a história voltou a se repetir de forma estranhamente familiar. No mesmo mês de
abril de 2015 em que o Conar arquivava a denúncia contra essa campanha no Brasil, o
público norte-americano se revoltava contra o rótulo da cerveja Bud Light – que é
produzida pela mesma corporação multinacional que fabrica a Skol, a AB Inbev – que
trazia a frase “The perfect beer for removing 'NO' from your vocabulary for the nigh”
[“A cerveja perfeita para remover o ‘NÃO’ de seu vocabulário nesta noite”, em
inglês]. Diversas mensagens no Twitter e em outras redes sociais traziam críticas do
público contra a falta de sensibilidade da empresa com o papel desempenhado pelo
álcool em casos de estupro, particularmente em um momento em que os Estados
Unidos discutiam abusos envolvendo jovens universitários sob influência de bebidas.
Uma das críticas, publicadas no Twitter em 28 de abril pela professora de história Jess
Banks16, afirmava que “If #BudLight removes consent from your vocabulary, let me
suggest that the first NO of the evening be to Bud Light” [“Se #BudLight retira o
consentimento de seu vocabulário, sugiro que o primeiro NÃO dessa noite seja para a
Bud Light”, em inglês]. Em resposta na mesma rede social aos questionamentos da
repórter Kristina Monllos (2015) da AdWeek sobre a campanha da Bud Light, a
diretora de marketing Lisa Weser17, responsável pela promoção dessa cerveja,
desculpou-se. A mesma empresa, a mesma campanha, a mesma crítica... e,
12 Rep. 230/14 – campanha sustada e advertida – http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4073
13 Rep. 281/14 – campanha sustada e advertida – http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4074
14 Rep. 302/14 – arquivado – http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4076
15 Rep. 282/14 – arquivado – http://conar.org.br/processos/detcaso.php?id=4075
16 Disponível em: https://twitter.com/ProfBanks/status/593117881120006144
17 Disponível em: https://twitter.com/LisaWeser/status/593131284634832896
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obviamente, a mesma resposta: a produção desses rótulos foi interrompida após as
críticas (GLENZA, 2015).
Para ativistas empenhados na luta contra o abuso de direitos de minorias, pode
ser frustrante perceber a recorrência tão próxima do mesmo problema, ainda mais
quando se considera que esse não foi um erro isolado, visto que a embalagem, parte
de uma campanha do ano anterior, foi aprovada por uma série de profissionais antes
de chegar ao público (MICKLE, 2015). Ainda assim, uma vez que um usuário
apontou a interpretação polêmica, ficou difícil de negar essa conexão entre os abusos
sexuais e o consumo dessas bebidas alcóolicas – uma relação que tanto a Budweiser
quanto a Skol procuraram manter sob distância. Ainda assim, caberia questionar, por
outro lado, se as duas empresas não deveriam ter procurado questionar publicamente
as leituras sugeridas para suas campanhas, reforçando seu direito de livre expressão
criativa e também a liberdade interpretativa de outras leituras distintas. Curiosamente,
a Skol só cogitou essa estratégia em um ambiente segregado do clamor das redes
sociais, em sua defesa no espaço particularmente protegido do Conar, quando
inclusive conseguiu influenciar os conselheiros a votar contra a advertência proposta
pelo relator e arquivar a denúncia. Entretanto, negar críticas legítimas vindas do
público é algo que essas empresas evitam fazer no espaço aberto à contestação das
redes sociais – ainda que persistam em reproduzir as mesmas lógicas que causaram
esses conflitos discursivos em particular. Talvez isso decorra de uma estratégia
corporativa para evitar a colisão direta com consumidores em espaços de difícil
controle, como as redes sociais. Ou, talvez, as empresas estejam aprendendo – do jeito
difícil, pela tentativa e erro – de que os espaços em que podiam monologar,
controlando os sentidos atribuídos aos seus produtos, encontram-se cada vez mais
restritos devido à abertura de novos pontos-de-vista, que antes não eram
contemplados. Se antes a potência de seus canais sufocava as vozes de seu público,
agora são os seus cartazes que são rasurados e subvertidos – nesses novos
palimpsestos em rede, as mensagens divergentes podem se inscrever sobre as imagens
que se pretendiam hegemônicas. Com isso, os interesses privados encontram-se
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constantemente sob o risco da crítica pública. Afinal, a liberdade de expressão não
pode ser livre da crítica.
Referências
BARBOSA, Marina. “'Esqueci o Não' da Skol sai de cena, mas cai na mira do Conar”. Folha
de S. Paulo, 13/02/2015.
BARROSO, Luis Roberto. “Colisão entre liberdade de expressão e direitos da personalidade.
Critérios de ponderação. Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da
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A Negação da Negativa em um Palimpsesto de