Fonoaudiologia em Saúde Mental: um fonoaudiólogo no
cuidado com crianças em situação de sofrimento mental
Autores: JOSÉ MARCOS DA SILVA
Palavras chaves: fonoaudiologia, atenção à saúde, saúde coletiva.
Introdução
Na infância, as demandas por atendimento em saúde, surgem através de
mensageiros que vão além do grupo familiar. São instituições que se tornam
interlocutores e apontam os desvios1. Por isso, as crianças foram, historicamente,
consideradas como carentes, abandonadas, pervertidas, anormais, excepcionais,
em situação de risco pessoal e social2.
Nessa perspectiva, confinavam e excluíam as crianças do convívio familiar e
predominavam os enfoques corretivo-repressivo e assistencialista3. São abordagens
que se aproximavam da cultura manicomial ou do grande enclausuramento que
refletiu a violação de direitos humanos, exclusão, vigilância, punição e medicalização
dos corpos4, 5.
Em resistência ao modelo manicomial, surge a proposta antimanicomial, que
se orienta pela desconstução dos muros, da cultura e do arcabouço conceitual que
sustentou a política de exclusão. O Movimento Nacional de Luta Antimanicomial,
favoreceu a construção da atenção à criança e ao adolescente no campo da saúde
mental, por meio de uma política nacional.
O presente resumo apresentar uma experiência de inserção fonoaudiológica
no campo da saúde mental. Trata-se de uma intervenção familiar denominada
“Homens que Cuidam de Crianças” que tem a proposta de contribuir para a
valorização da masculinidade, da paternidade e da promoção de relações
equânimes entre gêneros no que tange ao cuidado com as crianças em situação de
sofrimento mental e distúrbios da comunicação humana.
Objetivos
Contribuir para a discussão sobre ações fonoaudiológicas em saúde mental a
partir de ideias que se articulem e materializem contribuições criativas da
fonoaudiologia em suas diversas especialidades para o trabalho interdisciplinar em
equipes multiprofissionais para a saúde coletiva.
Método
Adotou-se a narrativa etnografica como método para apresentar os caminhos
para a inserção na saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS) que pode ser
num Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi), local em que há um
modo de trabalho diferente do que vivenciam os fonoaudiólogos em outros
dispositivos das linhas de cuidado em saúde do SUS.
A atuação em saúde mental está atravessada por: práticas interdisciplinares
de equipe multiprofissional; pelo matriciamento; pela concepção de cuidado por
projeto terapêutico singular (PTS) e projeto terapêutico comunitário (PTC); pela
interação de clínicas médicas, pela clínica pscológica, por práticas de cuidado em
enfermagem, por estratégias da assistência social, da terapia ocupacional, por
trocas em interconsultas; pela reunião clínica como espaço virtuoso para a tomada
de decisão sobre diagnóstico e terapias; pela reunião técnica como espaço técnicopolítico que sustenta o trabalho em saúde; por ser técnico de referência (TR) na
produção de vínculos e no exercício da responsabilidade sanitária; pela supervisão
clínica como concepção de práticas orientadas pelo permanente cuidado e
fortalecimento das equipes; pela pluralidade de métodos como necessária e
indissociável da atenção psicossocial infanto-juvenil.
As reuniões clínicas são momentos de discussão de casos trazidos pelos
técnicos de referência (TR). Os TR são profissionais que, a partir da qualidade do
vínculo com as crianças e famílias, tornam-se responsáveis por conduzir o cuidado e
as propostas que compõem o PTS. Dessa forma, identificam as demandas sociais,
as dinâmicas familiares e comunitárias, sendo a referência para todas as questões
relativas à criança.
A ideia de formar um grupo de homens surge nas discussões dos casos, em
que comecei a me sentir afetado e incomodado, com as colocações relacionadas ao
papel da masculinidade na vida das crianças. Todos os casos fracassados
mantinham forte relação com a ausência do pai.
Outro incomodo era o fato de a equipe ser constituída exclusivamente por
mulheres. Qualquer defesa em relação aos homens, parecia iniciar um debate que
poderia ser interpretado como uma defesa pessoal, masculina, machista. Mas, o que
eu queria dizer que não havia um espaço para a fala daqueles homens.
A área da saúde, contraditoriamente, apresenta-se como uma das áreas que
mais reforçam a responsabilidade feminina no cuidado com as crianças e afasta o
pai interessado em participar deste processo6, 7, 8.
É fato que culturalmente o cuidado sobre os crianças fora atribuído às
mulheres e que, de algum modo, isso resultou no esvaziamento da participação dos
homens nesse processo. Deste modo, admitir as possibilidades de um papel próprio
para o homem nas relações de cuidado, exige o repensar das relações sociais e de
poder que reforçam a desqualificação da figura paterna, sobrevalorizando as ações
maternas no trato com as crianças9.
Para Martins10, o debate sobre a paternidade vem ganhando espaço no a
partir de uma nova ótica dos estudos de gênero. Durante a década de 1960 - com a
efervescência dos movimentos feministas - os estudos orientavam suas análises
para os motivos estruturantes das desigualdades entre os sexos e para os
mecanismos de superação destas desigualdades pelas mulheres. Algumas
perspectivas mais simplistas limitavam-se a denunciar o papel do homem como
algoz, não procurando analisar a maneira como este se inseria em um contexto
social e, principalmente, na educação dos filhos.
A concepção do homem com algoz precisa ser enfrentada, principalmente
pelo reconhecimento da processualidade relacional e pelo conjunto de atribuições
que estavam socialmente associadas ao masculino e ao feminino.
A participação do homem na vida dos filhos traz repercussões positivas para
ambos. No entanto, o exercício da paternidade encontra dificuldades devido às
jornadas de trabalho a que muitos homens estão expostos, dificultando uma
participação efetiva8, 9
A UNICEF11 orienta que a participação dos homens na vida dos filhos
apresenta aspectos positivos, tanto para eles, quanto para a criança. Quando os
homens se envolvem nos cuidados dos filhos, desenvolvem emoções, receptividade,
empatia e compaixão, sentimentos estes fundamentalmente experimentados por
mulheres.
Quando o homem participa efetivamente, criam-se condições de bem-estar,
repercutindo no cuidado com as crianças. Dessa forma, oferece condições afetivas à
formação das identidades das crianças e à construção de relacionamentos
baseados na equidade de gênero, o que facilita futuras relações mais igualitárias7
É importante considerar que admitir a possibilidade de que os homens
possam desenvolver uma especificidade masculina no processo de educação dos
filhos, implica em desconstruir abordagens equivocadas que tratam o homem
sempre como o algoz na relação de paternidade, abrindo possibilidades para que
este possa ser protagonista nos processos de cuidado infantil10.
Outro aspecto importante é a alienação parental, muito comum quando casais
se separam e, na maioria das vezes, a guarda fica com as mulheres. Caracteriza-se
como uma espécie de afrontamento à figura do pai, como forma de vingança ou
mesmo expressão de desafetos relativos à vida em casal e do casal. Penso que a
figura do pai não deveria ser declinada por essas razões. Todos sabemos que nas
relações conjugais é esperado que alguém possa desistir da relação, sem que isso
represente desistência da paternidade/maternidade, ou das responsabilidades
afetivas com as crianças.
O vínculo construído entre um adulto e uma criança é fundamental para o
desenvolvimento e sobrevivência desta, já que, de algum modo, alguns sacrifícios o
adulto tem que realizar para prestar uma atenção à criança12.
Fortalecer o envolvimento dos homens com seus filhos pode ser um
importante mecanismo de prevenção da violência doméstica, bem como uma forma
de garantir a manutenção do vínculo com os filhos após a separação do casal13.
Depois de refletir sobre essas questões, surgiu a idéia de um grupo só de
homens. Sim, um grupo de homens que cuidam de crianças. A idéia foi sendo
compartilhada com as profissionais que foram dando sugestões como a de horário
em terceiro turno; de envolver não apenas os pais, mas irmãos, padrastos, avôs,
primos, namorados, noivos das mães.
O grupo reuni-se mensalmente, no horário das 19:00 as 21h . Utiliza-se da
terapia comunitária14. Esta, favorece o diálogo sobre a participação do homem no
cuidado, promovendo e incentivando o compartilhamento de experiências cotidianas
inerentes as relações com crianças que vivem em sofrimento mental e disturbios da
comunicação.
Resultados
O grupo Homens que Cuidam de Crianças, tornou-se uma oportunidade de
suporte,
que
instrumentaliza
os
homens
para
atuar
nas
questões
de
desenvolvimento infantil e valorização das relações com as crianças. Trata-se de
propiciar aos homens a segurança sobre eles mesmos, sobre suas habilidades no
cuidado com as crianças, aumentando a motivação para dedicar mais tempo a
elas15, 16.
A cada encontro surgem temas que tratam, desde situações envolvendo as
crianças, até sentimentos, emoções e sexualidade dos participantes. Os temas que
mais emergem nas discussões são referentes à educação das crianças, aos
preconceitos enfrentados, dúvidas sobre as medicações utilizadas, desejo de que a
criança venha a desenvolver a fala, diagnóstico médico, garantia dos direitos sociais,
opções de lazer para as crianças, culpabilização.
Evidencia-se o desejo de cuidar; referindo-se que buscam maior participação.
Mas, persistem em afirmar as mulheres como únicas protagonistas do cuidado.
Ademais, há relatos de melhoras em casos clínicos considerados fracassados. As
mulheres confirma melhora nas relações com os maridos/companheiros que
participaram dos encontros.
Conclusões
Não se pretendeu esgotar as possibilidades de atuação fonoaudiológica na
saúde mental. Contribui para a troca de experiência de como desenvolver práticas
criativas e que considere as singularidades de profissionais e dos campos de
práticas. A inserção da fonoaudiologia no campo em tela está em ampliação o que
aponta para o intercâmbio de vivências para a fertilização de novas formas de cuidar
da comunicação humana.
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