PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
DOUTORADO
ODONÉ SERRANO JÚNIOR
O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA:
EXIGIBILIDADE, UNIVERSALIZAÇÃO
E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O DESENVOLVIMENTO
CURITIBA
2011
Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
S487d
2011
Serrano Júnior, Odoné
O direito humano fundamental à moradia digna : exigibilidade,
universalização e políticas públicas para o desenvolvimento / Odoné Serrano
Júnior ; orientadora, Jussara Maria Leal de Meirelles. – 2011.
vii, 264 f. ; 30 cm
Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba,
2011
Bibliografia: 244-264
1. Direito à moradia. 2. Direitos humanos. 3. Direitos civis. 4. Política pública.
5. Brasil. Constituição (1988). I. Meirelles, Jussara Maria Leal de. II. Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito.
III. Título.
Doris 4. ed. – 341.6
ii
iii
Odoné Serrano Júnior
O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA:
EXIGIBILIDADE, UNIVERSALIZAÇÃO
E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O DESENVOLVIMENTO
Tese aprovada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Direito do
Programa de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná –
PUCPR, pela seguinte banca examinadora:
Profª Drª Jussara Maria Leal de Meirelles
Orientadora – PPGD PUCPR
Profª Drª Angela Cássia Costaldello
Convidada – UFPR
Prof. Dr. Gilberto Giacóia
Convidado – FEDNP
Prof. Dr. Antônio Carlos Efing
Membro – PPGD PUCPR
Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas
Membro – PPGD PUCPR
Curitiba, 07 de dezembro de 2011.
iv
Um trabalho de pesquisa de doutorado é sempre uma obra coletiva.
Os erros e insuficiências, eu assumo-os integralmente.
Quanto aos acertos, os méritos devem ser divididos entre muitos.
Primeiro a Deus, sempre presente em minha vida.
Aos meus pais, pela formação e exemplo de vida.
A minha esposa Ana Paula e aos meus filhos Pedro Henrique e Ana
Luísa, que foram os mais sacrificados no tempo de convivência.
Demais parentes e amigos, pela força, fé e estimulo.
Aos meus orientadores Luiz Edson Fachin e Jussara Maria Leal de
Meirelles, pela seriedade, rigor e lealdade.
Aos demais mestres-mentores nesta jornada de transformaçãoaprimoramento pessoal, especialmente, aos Professores Gilberto
Giacóia, Angela Costaldello, Antônio Carlos Efing, Fernando Antonio de
Carvalho Dantas, Fabiane Bessa, Wladimir Passos de Freitas, Cláudia
Barbosa, Flávia Piovesan, Melina Fachin, Katya Kozicki, Roberto Ferraz,
James Martins, Márcia Carla Pereira e Luiz Alberto Blanchet, pelas lições
que fizeram toda a diferença.
Aos colegas discentes do PPGD-PUCPR, companheiros de jornada que
muitas vezes se revelaram grandes mestres.
A Eva de Fátima Curelo, sólido pilar desse PPGD, e grande amiga.
Ao Ministério Público do Estado do Paraná, por fomentar esse estudo.
A Semíramis e Prof. Norberto, pela ajuda no résumé.
Aos despossuídos, desabrigados, excluídos e marginalizados, que são os
que mais precisam das políticas públicas para terem assegurado um
mínimo de dignidade e liberdade real e, para tanto, inclusive, uma
moradia digna.
v
RESUMO
Abordam-se os problemas da universalização e da exigibilidade
do direito humano à moradia digna ante a crise de efetividade na
contemporaneidade brasileira, notadamente junto às camadas mais
pobres da população, que são justamente aquelas que, para viverem
com um mínimo de dignidade, mais precisam das políticas públicas.
Reverter esse quadro de distanciamento das promessas constitucionais,
tornando a moradia digna uma realidade para todos os brasileiros é
desafio a ser enfrentado, inclusive no campo da reflexão teórica e
conceitua, buscando contribuir para uma melhor compreensão do
regime jurídico e da eficácia da proteção jurídica dessa situação
existencial inexorável ao respeito à dignidade humana. Defende-se a
universalização do direito à moradia digna como dimensão das mais
importantes do desenvolvimento socioambientalmente sustentável,
entendido como processo de melhoria da qualidade de vida, de
apropriação de direitos humanos fundamentais e de realização de
justiça distributiva. Para tanto, torna-se primordial o planejamento
estratégico e participativo de políticas públicas alinhadas com o projeto
de transformação progressiva da ordem econômica e social
contemplado na Constituição de 1988. E, no que toca à verificação da
exigibilidade de medidas estatais de proteção e promoção do direito à
moradia digna, explicita-se um método, baseado na técnica da
ponderação, na diferença estrutural entre regras e princípios
propugnada por Robert Alexy e na proteção imediata do mínimo
existencial.
PALAVRAS-CHAVES: Direito humano fundamental à moradia digna.
Exigibilidade. Universalização. Políticas públicas. Desenvolvimento
econômico e social. Mínimo Existencial. Controle das escolhas
orçamentárias.
vi
RÉSUMÉ
Cette thèse aborde les problèmes d'universalisation et de l'exigibilité du
droit humain au logement face à la crise de l'efficacité dans la
contemporainéité brésilienne, notamment en relation aux couches plus
pauvres de la population, qui sont précisément celles qui, pour vivre
avec un minimum de dignité, ont plus besoin de politiques publiques.
Inverser cette situation d’eloignement des promesses constitutionnels
et rendre l’áccès au logement une réalité pour tous les Brésiliens est le
défi auquel il faut faire face, notamment dans le domaine de la réflexion
théorique et conceptualisée, dans le but de contribuer à une meilleure
compréhension du cadre juridique et l'efficacité de la protection
juridique de cette situation existentielle inexorable au respect de la
dignité humaine. On défend l'universalisation du droit au logement
comme une des plus importantes dimensions du développement social
et environnement soutenable, compris comme le processus
d'amélioration de la qualité de vie, d’appropriation des droits
fondamentaux de l’Homme et de réalisation la justice distributive. Pour
parvenir à ce but, il devient primordiale la planification stratégique et
participatives des politiques publiques alignées avec la conceception de
la tranformation progressive de l'ordre économique et social envisagée
par la Constitution brésilienne de 1988. Et, en ce qui concerne la
vérification de la responsabilité de l'État et de l’exigililité de mesures
étatiques pour protéger et promouvoir le droit à un logement décent,
on explicite une méthode, basée sur la technique de la pondération et
sur la différence structurale entre les règles et principes préconisée par
Robert Alexis et qui contemple la protection immédiate du minimum
existentiel.
Mots clés : droit humain fondamental de l’Homme à un logement.
Exigibilité. Universalisation. Politiques publiques. Développement
économique et social. Minimum existentiel. Contrôle des choix
budgétaires.
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................... 1
1. MORADIA DIGNA COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL
1.1. POR QUE DIREITO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL?..................................11
1.2. DIREITO À MORADIA E DIGNIDADE HUMANA.................................................16
1.2.1. Moradia digna: bem jurídico indispensável à dignidade
humana..........................................................................................................16
1.2.2. Interdependência entre moradia e outros bens jurídicos essenciais à
dignidade humana.........................................................................................21
1.3. A PROTEÇÃO JURÍDICA DA MORADIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:
ENCONTRO DE DOIS CAMINHOS..............................................................................34
1.3.1. O caminho do Direito Público.............................................................34
1.3.2. O caminho do Direito Privado.............................................................42
1.3.3. A confluência na constitucionalização................................................48
1.4. A POSITIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA: DESDE
QUANDO?.........................................................................61
1.5. DAS CLASSIFICAÇÕES RÍGIDAS AO RECONHECIMENTO DA PLURALIDADE DE
CONTEÚDOS E FUNÇÕES...........................................................................................71
1.5.1. Classificação geracional ......................................................................71
1.5.2. Direitos, liberdades e garantias versus direitos econômicos, sociais e
culturais.........................................................................................................75
1.5.3. Classificações funcionais.....................................................................82
1.5.4. A pluralidade de conteúdos e funções do direito humano
fundamental à moradia digna......................................................................92
2. A UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA E AS
POLÍTICAS PÚBLICAS
2.1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS........................................................................................................97
2.2. MORADIA E DIREITO AO DESENVOLVIMENTO...............................................103
viii
2.3. PLANEJAMENTO DO DESENVOLVIMENTO, PARTICIPAÇÃO E POLÍTICAS DE
HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ........................................................................109
2.4. PLANEJAMENTO E ORÇAMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À
MORADIA ...........................................................................................120
2.5. O RISCO DE BLOQUEIO NEOLIBERAL À UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À
MORADIA DIGNA...................................................................................................137
2.6. BREVE RETROSPECTO DAS POLÍTICAS NACIONAIS DE HABITAÇÃO DE
INTERESSE SOCIAL......................................................................... 148
3. A EXIGIBILIDADE DE MEDIDAS ESTATAIS DE PROTEÇÃO OU
PROMOÇÃO DO DIREITO À MORADIA
3.1. EXIGIBILIDADE À LUZ DA DOUTRINA DO SUPORTE FÁTICO...........................173
3.2. EFETIVIDADE DO DIREITO À MORADIA, EFICÁCIA DA NORMA
CONSTITUCIONAL GARANTIDORA, ESCASSEZ E ESCOLHAS ALOCATIVAS.............194
3.3. RESERVA DO POSSÍVEL EXIGIBILIDADE DO DIREITO À MORADIA..................211
3.4. EXIGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL DO DIREITO À MORADIA.............222
CONCLUSÕES.........................................................................................240
BIBLIOGRAFIA....................................................................................... 244
ix
INTRODUÇÃO
Esse trabalho de pesquisa cuida da verificação da exigibilidade
das medidas de proteção ou promoção da moradia digna em face do
Poder Público, bem como da tarefa de universalizar esse direito
humano fundamental. Mas por que cuidar desse tema? Qual a sua
relevância na atualidade brasileira? A resposta encontra-se na grave
crise de efetividade junto às camadas mais pobres da população, que
são justamente aquelas que, para viverem com um mínimo de
dignidade, mais precisam das políticas públicas.
Quanto a déficit habitacional e inadequação das moradias, o
último levantamento oficial foi o realizado pela Fundação João Pinheiro
em parceria com Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das
Cidades”1, apontando para uma carência de 6,273 milhões de
domicílios, a maior parte dela concentrada nas famílias de baixa renda.
Também é bastante grave o diagnóstico acerca do número de
brasileiros que ocupam unidades habitacionais construídas em áreas de
risco de deslizamento, inundação e/ou proliferação de transmissores de
1
BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação; Fundação João Pinheiro,
Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional no Brasil 2007. Brasília: Ministério
das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação; Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro,
2009.
Disponível em http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-dehabitacao/biblioteca/publicacoes-e-artigos/DeficitHabitacional.zip/view,
conforme
pesquisa realizada em 23.08.2010, às 9h49, e "Indicadores de direito à moradia adequada"
- Desenvolvimento – Revista do IPEA, junho de 2009, p. 90-91. O levantamento do déficit
habitacional foi elaborado a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios – PNAD realizada no ano de 2005 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE. A atualização desta pesquisa, com aprimoramentos metodológicos, está
prevista para breve, estando no aguardo da disponibilização dos dados colhidos no Censo
de 2010.
1
doenças, a demandar providências urgentes para evitar tragédias como
as que ocorreram recentemente em várias regiões do país.2
Outro aspecto relevante é a segregação socioespacial, geradora
de mais pobreza e exclusão, que se reflete na forma atual de ocupação
do território das grandes metrópoles, cada vez mais divididas por muros
invisíveis, erguidos a partir do alto custo de morar em determinadas
2
Faz-se aqui, apenas para fins ilustrativos e para demonstrar a importância prática do tema
pesquisado, a apresentação de alguns fragmentos da realidade retirados de notícias de
jornal: Em Santa Catarina, em novembro de 2008, em razão das intensas chuvas que
causaram desmoronamento de muitos morros ocupados com habitações. Segundo a
Defesa Civil de Santa Catariana, até dezembro de 2008, 106 mortes foram confirmadas. E
para que não houvesse mais vítimas, 9.390 pessoas tiveram que sair de suas casas,
instalando-se em casas de parentes ou em alojamentos improvisados em escolas públicas,
ginásios, etc. Em janeiro de 2010, deslizamentos de terra em Ilha Grande (Praia do Bananal
e Morro Carioca), na região de Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro, causaram mais
vítimas fatais. Segundo a Defesa Civil, as mortes os chegaram ao número de 50. Os
desabamentos também fizeram 228 pessoas perderem as suas casas (Gazeta do Povo, 5 de
janeiro de 2010, p. 8). Em abril de 2010, novos desastres assolam o Rio de Janeiro em
decorrência de fortes chuvas, inundações e deslizamento de terra, deixando 231 mortos,
161 feridos, 60 desaparecidos e 5.000 desalojados. Situação paradigmática foi a que
ocorreu no Morro do Bumba, em Niterói, cujo desabamento matou 47 pessoas, soterradas.
O Morro do Bumba abrigava uma comunidade inteira, com casas, igreja, pizzaria, bares e
creche, apesar de estar sobre um lixão tóxico, desativado em 1986. A ocupação floresceu
com a contribuição de ações demagógicas de alguns governantes que, ao invés de
propiciarem o realojamento dos moradores para local adequado, acabaram incentivando as
ocupações nesse local condenado ao levarem bica d'água potável, energia elétrica, quadra
de esportes, e outras "melhorias", sempre acompanhadas de festas de inauguração, com
inequívoco propósito de promoção pessoal dos supostos benfeitores. Vide: Gazeta do Povo,
1º de junho de 2010, p. 7 – Morro do Bumba: MP aponta omissão da Prefeitura de Niterói;
Ruth de Aquino – Nossa Antena: "A omissão que mata" – Revista Época de 12 de abril de
2010, p. 30. Em junho de 2010, enchentes e enxurradas atingem 22 municípios de Alagoas,
deixando mais de 70 mil desabrigados e desalojados. O ano de 2011 inicia com novas
tragédias. Várias cidades no Estado de São Paulo sofrem com enchentes. As cidades
paulistas de Franco da Rocha e de Atibaia inundaram, causando muitos estragos. Na região
serrana do Estado do Rio de Janeiro, notadamente em Nova Friburgo, Teresópolis e
Petrópolis, computam-se no mínimo 841 mortes, 541 desaparecidos e 21,5 mil desalojados
e desabrigados, em razão dos desabamentos provocados em razão das fortes chuvas, não
obstante os inúmeros alertas de especialistas em clima e ocupação do solo sobre os riscos
do desmatamento e das construções em morros com solo arenoso e com topografia
íngreme. Após a tragédia, enfrenta-se um surto de leptospirose, transmitida pela urina dos
ratos e disseminada pelas águas da enchente.2 Por fim, com as águas de março, o litoral do
Paraná também é palco de tragédias em decorrência do excesso das chuvas que provocou
deslizamentos, morte de 3 pessoas, 2,5 mil pessoas desabrigadas, 10 mil desalojadas e um
total de 26 mil afetadas em Antonina e Morretes, onde 4 mil casas foram danificadas e 211
ficaram comprometidas, além do isolamento de várias áreas rurais (Ver: Gazeta do Povo, 19
de março de 2011, p. 6-8). E, de tempos em tempos, notícias como essas se repetem.
2
regiões.3
Nas palavras de Arlete Moysés Rodrigues, é
"suficiente observar qualquer cidade para verificar que há
grande diferenciação entre as características de moradia
dos bairros, tamanho dos lotes das construções, da
"conservação", de acabamento das casas, as ruas –
asfaltadas ou não -, a existência de iluminação, esgotos,
etc. para se ter uma noção da segregação espacial. Ao
mesmo tempo, há espaços na cidade com infra-estrutura e
outros sem. Há espaços densamente ocupados e outros
com rarefação de ocupação. Amplos espaços servidos de
infra-estrutura e outros com grande densidade de
ocupação, mas com rarefação de serviços. Isto significa que
a diversidade não se refere apenas ao tamanho e
características das casas e terrenos, mas à própria cidade".
“Esta diversidade não está relacionada a diferentes
tempos de ocupação, ou seja, não foram ocupadas em
tempos diferentes e "com o passar do tempo" serão
servidas por infra-estrutura de equipamentos e serviços
coletivos. Trata-se de uma variação no mesmo tempo e no
mesmo espaço. O computador é contemporâneo do
analfabetismo; a vela das usinas nucleares; as mansões das
favelas. Num mesmo espaço e ao mesmo tempo, a
segregação espacial é visível até para os observadores
menos atentos". 4
3
Raquel Rolnik aponta que a segregação sócio-espacial tem como marco histórico remoto
as primeiras políticas urbanas propriamente ditas, adotadas na Primeira República (18891930), mantendo o padrão de atender os interesses das elites proprietárias. De cunho
higienista, deflagradas em decorrência das frequentes epidemias como a febre amarela em
1892 e a gripe espanhola de 1918, num contexto urbano de precariedade ou inexistência
de sistemas de saneamento, de adensamento excessivo e de péssimas condições de
habitação aos trabalhadores pobres, as intervenções estatais no ambiente urbano tiveram
como tônica a demarcação de zoneamento para proibir a construção de cortiços e casas de
operários nas áreas centrais. Eis a primeira evidência do objetivo do Poder Público de
realizar a segregação socioespacial, de colocar os operários fora do perímetro central
(ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei, p. 35-36).
4
RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, p. 11-12.
3
Essas
diferenças
configuram
aquilo
que
Milton
Santos5
denominou de áreas luminosas e áreas opacas. As áreas luminosas são
aquelas bem servidas pelas redes de telecomunicação, transporte,
infraestrutura
urbana,
etc.,
onde
os
agentes
hegemônicos,
representados pela população mais rica e organizada ditam as regras, e
as áreas opacas aonde a modernização e as políticas públicas não
chegam, apesar de seus habitantes, na qualidade de trabalhadores,
participarem da lógica que move as metrópoles6.
Por sua vez, Rosa Moura e Clovis Ultramari salientam que esses
espaços opacos, as periferias, são a imagem da desordem, do
inacabado, do provisório: lá a regra é a da autoconstrução da moradia,
a falta de calçamento da rua, os esgotos a céu aberto, a ausência de
equipamentos sociais como escolas, postos de saúde, praças. 7
Na visão de Raquel Rolnik,
“O drama da multiplicação desses habitats precários,
inacabados e inseguros vêm à tona quando barracos
5
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo, p. 41-42.
Tomando por exemplo um Município da região metropolitana de Curitiba consegue-se
visualizar uma situação dramática que se repete em outras metrópoles. Cerca de 60% de
população de Almirante Tamandaré, cidade localizada a 15 quilômetros de Curitiba, estuda
ou trabalha na Capital e só volta para casa para dormir. A cidade dormitório é muito
precária, com ruas esburacadas, altos índices de violência, falta de saneamento, educação e
saúde, mantendo forte dependência dos recursos repassados pelo Governo Federal,
mormente das transferências do Fundo de Participação dos Municípios (36% do total das
receitas municipais). Metade dos proprietários de imóveis de Almirante Tamandaré não
paga o IPTU, a grande maioria porque não tem condições financeiras. Da receita total de R$
65 milhões, a arrecadação de IPTU representa apenas 2,92% (R$ 1,9 milhão). O Imposto
sobre Serviços, que também serve para medir a atividade econômica, participa com apenas
3,85% do total da arrecadação. Aproximadamente 22% da população sobrevivem com
apenas R$ 302,00 ao ano. A maior parte das residências é irregular. O índice de homicídios
é alto e os educacionais baixos. Observa-se, ainda, um aumento crescente da população
dessas cidades com altas taxas de pobreza e baixo índice de desenvolvimento humano,
tendo em vista, principalmente, o aumento do custo da moradia na Capital. Como, nessas
cidades ao entorno da metrópole há baixa atividade econômica, arrecadação tributária
limitada, persistindo a omissão na tomada de medidas de redistribuição de recursos e
oportunidades, as desigualdades tendem a se agravarem cada vez mais.
7
MOURA, Rosa; ULTRAMARI, Clovis. Periferias das cidades, p. 38 e 50.
6
4
desabam, em conseqüência de chuvas intensas, e quando
eclodem cries ambientais como o comprometimento de
áreas de recarga de mananciais em função de “ocupação
desordenada”.
Na ausência desses episódios, no entanto, parece
“natural” o apartheid que separou nossas cidades em
centros e em periferias. O “centro” é o ambiente dotado de
infraestrutura completa, onde estão concentrados o
comércio, os serviços e os equipamentos culturais; e onde
todas as residências de nossa diminuta classe média têm
escritura devidamente registrada em cartório. Já a
“periferia” é o lugar feito exclusivamente de moradias de
pobres, precárias, eternamente inacabadas e cujos
habitantes raramente têm documentos de propriedade
registrados.
São usuais, nos momentos em que voltam à mídia os
dramas da “periferia” e das “favelas”, as análises que
culpam o Estado por não ter planejado, por não ter
políticas habitacionais ou mesmo por ter “se ausentado”.
Entretanto é flagrante o quanto o planejamento, a política
habitacional e de gestão do solo urbano tem contribuído
para construir este modelo de exclusão territorial”.8
Além disso, como bem observa Luiz César Queiroz Ribeiro9, essa
segregação tem impactos corrosivos nas relações de reciprocidade
entre grupos e classes sociais, gerando reprodução da pobreza e
aumento da criminalidade violenta, com grande incidência de
homicídios, principalmente de jovens do sexo masculino10.
8
ROLNIK, Raquel. A construção de uma política fundiária e de planejamento urbano para
o país – avanços e desafios, p. 200-201.
9
RIBEIRO, Luiz César Queiroz. Dinâmica socioterritorial das metrópoles brasileiras, p. 223225.
10
Na Região Metropolitana de Curitiba, por exemplo, durante algum tempo tem perdurado
uma média de 20 homicídios por final de semana, a maioria de rapazes jovens, por
motivação fútil ou questões ligadas ao narcotráfico. No contexto internacional, o Brasil
5
Trata-se de um processo extremamente injusto e com efeitos
socioambientais danosos. Por isso, a segregação socioespacial das
cidades brasileiras é importante aspecto da moradia indigna que deve
ser objeto de maior atenção por parte das políticas de planejamento
urbano e de habitação.
Enfim, todos esses dados da realidade brasileira contemporânea
– déficit, inadequação, precariedade das habitações, segregação
socioespecial, revelam que há uma crise de efetividade no direito à
moradia, cuja reversão é desafio a ser enfrentado.
O avesso do Direito, o crônico problema habitacional, dimensão
dramática da pobreza e das desigualdades sociais, o distanciamento da
realidade atual das promessas constitucionais de uma sociedade justa,
livre e solidária11, justificam a investigação em tela.
E a contribuição que se pretende dar situa-se no campo da
reflexão teórica e conceitual, buscando aprimorar a compreensão, bem
como remover obstáculos a um melhor tratamento jurídico à moradia.
O campo de investigação escolhido guarda relação de pertinência
com as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, na medida em que trata
ocupa a sexta posição, tanto no total de homicídios quanto nos homicídios juvenis, entre os
100 países que apresentam dados à Organização Mundial da Saúde. Ver, a respeito,
matéria jornalística “Mapa da Violência”, Gazeta do Povo, 25 de fevereiro de 2011, p. 3-4. e
o documento divulgado pelo Ministério da Justiça e Instituto Sangari: WAISELFISZ, Julio
Jacobo. Mapa da Violência 2011: Os jovens do Brasil. São Paulo; Brasília: Instituto Sangari;
Ministério
da
Justiça,
2011
(Disponível
em:
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJEBAC1DBEITEMIDDD6FC83AAA9443839282FD58A54
74435PTBRNN.htm, acesso em 13.09.2011 às 14h07, e em www.mapadaviolencia.org.br,
acesso em 13.09.2011 às 14h16), com números alarmantes, apesar de reconhecida a
limitação decorrente de subregistros de ocorrências de casos de mortes violentas.
11
Ver, a respeito desse descompasso entre o projeto da Constituição de 1988 e a obra
edificada nesses mais de 20 anos de vigência, do distanciamento entre a proclamação
discursiva das boas intenções e efetivação da experiência, o texto de Luiz Edson FACHIN, A
Constituição nossa de cada dia. In: Jornal Carta Forense, abril de 2011, p. A 16.
6
de questões ligadas à proteção jurídica do ser humano em sua
dignidade, vislumbrando a moradia digna como uma situação
existencial, cuja universalização é uma das mais importantes dimensões
do desenvolvimento socioambientalmente sustentável.
Na busca do objetivo de contribuir para o aprimoramento da
compreensão desses aspectos do direito à moradia digna no Brasil
contemporâneo utilizou-se o método da análise crítica das fontes
normativas, com amparo em referenciais doutrinários selecionados.
A explicitação dos resultados dessa empreitada foi estruturada
em três capítulos: 1) moradia digna como direito humano fundamental;
2) universalização do direito à moradia e as políticas públicas e 3) a
exigibilidade de medidas estatais de proteção ou promoção do direito à
moradia.
O primeiro capítulo é dedicado à demonstração de que a
proteção jurídica da moradia digna é regida pelo estatuto dos direitos
humanos fundamentais, eis que trata de uma situação existencial,
convertida um bem jurídico indispensável à promoção e garantia da
dignidade da pessoa humana. Logo, moradia não pode ser reduzia a
uma mercadoria, à propriedade sobre um bem imóvel, acessível apenas
a quem pode pagar seu preço, devendo, sim, ser objeto de políticas
públicas tendentes à sua universalização.
Para essa demonstração, amalgamada em uma breve revisão do
estatuto jurídico dos direitos humanos fundamentais, foram adotadas
como referenciais teóricos principalmente as lições de André Ramos de
Carvalho, Angela Cassia Costaldello, Antônio Carlos Effing, Fábio Konder
Comparato, Flávia Piovesan, Gilberto Giacóia, Gustavo Tepedino, Ingo
Wolfgang Sarlet, José Afonso da Silva, José Antônio Peres Gediel e
7
Rosalice Fidalgo Pinheiro, Jussara Meirelles, Luiz Edson Fachin, Maria
Celina Bodin de Moraes, Nelson Saule Junior, Paulo Bonavides, Ricardo
Cesar Pereira Lira, Sidney Guerra, Virgílio Afonso da Silva, José Joaquim
Gomes Canotilho, José Carlos de Andrade Vieira, Jorge Miranda, Pedro
Pais de Vasconcelos, Vital Moreira, Antonio-Enrique Perez Luño e
Robert Alexy.
O segundo capítulo enfoca a importância das políticas públicas e
do
planejamento
estratégico
participativo
para
a
almejada
universalização do direito à moradia.
A abordagem desenvolvida partiu da premissa de que planejar e
executar transformações na ordem social e econômica, concretizando o
projeto emancipatório da Constituição de 1988, são atividades guiadas
pelo também humano e fundamental direito ao desenvolvimento
socioambientalmente sustentável. Ou seja, assegurar a todos o direito à
moradia digna é dimensão relevante desse processo de apropriação dos
direitos humanos que caracteriza o desenvolvimento visto neste prisma
de justiça social e respeito aos recursos naturais.
Defende-se, assim, que a universalização do direito à moradia
deve ser alcançada pela construção democrática de políticas públicas
que efetivamente contribuam para o empoderamento dos brasileiros
mais frágeis do ponto de vista socioeconômico, integrando-os na
cidadania.
Assim, no que diz respeito ao planejamento das políticas públicas
e à programação orçamentária da atuação estatal, é imprescindível que
não mais se ignore que a maior parte da população brasileira é pobre e
que, para se universalizar a moradia digna, esta não pode continuar a
ser tratada apenas como uma mercadoria. É preciso resgatar sua
8
dimensão de direito que tutela uma situação existencial imprescindível
à proteção da personalidade e da dignidade humana.
Nesta etapa, as reflexões se ampararam sobretudo nos marcos
teóricos Amartya Sen, Carlos Matus, Diogo de Figueiredo Moreira Neto,
Enrique Dussel, Eros Roberto Grau, Gilberto Bercovici, Gulherme
Amorim Campos da Silva, Helio Saul Mileski, Ignacy Sachs, James
Giacomoni, José Afonso da Silva, José Matias-Pereira, José Reinaldo de
Lima Lopes, Lafayete Josué Petter, Marcio Cammarosano, Maria Paula
Dallari Bucci, Nelson Saule Junior, Pedro Pontual, Ronald Dworkin,
Vanderlei Siraque.
No terceiro capítulo cuida-se da exigibilidade de medidas estatais
de proteção ou promoção do direito à moradia, explicitando-se um
método de verificação de omissão ou atuação insuficiente do Poder
Público baseado na técnica da ponderação, na diferença estrutural
entre regras e princípios propugnada por Robert Alexy, na teoria da
argumentação jurídica e na proteção imediato do mínimo existencial.
Buscou-se também verificar se a atual crise de efetividade do
direito à moradia digna, notadamente junto às pessoas que não podem
adquirir com suas economias próprias uma unidade habitacional em
lote urbanizado regular do ponto de vista jurídico e ambiental, decorre
ou não de um menor grau de eficácia da respectiva norma
constitucional garantidora.
Analisa-se,
também,
a
chamada
“reserva
do
possível”,
procurando compreender adequadamente seu significado, bem como a
influência que exerce na exigibilidade concreta do direito à moradia,
sobretudo no que diz respeito à tutela do mínimo existencial.
Nesta empreitada, serviram como bússola as lições de Alceu
9
Maurício Júnior, Amartya Sen, Ana Carolina Lopes Olsen, Ana Paula de
Barcellos, Cláudio Pereira de Souza Neto, Clèmerson Merlin Clève,
Daniel Sarmento, Eduardo Cambi, Flávio Galdino, Gilberto Bercovici,
Gustavo Amaral e Danielle Melo, John Rawls, José Casalta Nabais, José
Reinaldo de Lima Lopes, Osvaldo Canela Junior, Paulo Gilberto Cogo
Leivas, Regina Maria Macedo Nery Ferrari, Ricardo Lobo Torres e
Vicente de Paulo Barreto.
Fecha-se esse relatório de pesquisa com a apresentação sintética
das principais conclusões a que se chegou em cada capítulo,
conduzindo a conclusões gerais.
10
1. MORADIA DIGNA COMO DIREITO HUMANO
FUNDAMENTAL
1.1. POR QUE DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL?
O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito a qual termo
seria mais adequado para se referir ao direito à moradia digna, objeto
desse estudo: Direitos do homem? Direitos do cidadão? Direitos
humanos? Direitos fundamentais? Direitos humanos fundamentais? O
título do capítulo já traz a resposta quanto à opção terminológica
realiza. Resta, então, justificá-la.
Para tanto é preciso aclarar que a expressão direitos do homem é
a mais remota, tendo a Declaração francesa de 1789, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, como documento propagador. O
contraste "direitos do homem" versus "direitos do cidadão" mostra o
viés jusnaturalista, a indicar que os direitos do homem seriam direitos
naturais, inalienáveis, "do homem que preexiste à sociedade",
enquanto que os direitos do cidadão dizem respeito ao sujeito que faz
parte da sociedade política; os direitos positivados e garantidos pelo
ordenamento jurídico.
A expressão "Direitos humanos" tem na Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU, de 1948, sua fonte remota mais importante,
sendo a expressão preferida para indicar direitos protegidos no campo
do Direito Internacional, enquanto "direitos fundamentais" seriam os
direitos humanos que foram reconhecidos, positivados e protegidos por
um determinado Estado, no seu âmbito interno. Contudo, como a
expressão "direitos fundamentais" pode se tida como direitos previstos
11
e protegidos na Constituição, e nem todos esses dizem respeito à tutela
da pessoa, na qualidade de ser humano, optou-se neste trabalho pela
expressão "direitos humanos fundamentais" como a mais adequada.
Outra vantagem é que "direitos humanos fundamentais" indica
claramente que se trata de direitos inerentes ao ser humano (e não a
organizações, pessoas jurídicas), cuja fundamentalidade manifesta-se
em dois sentidos: primeiro por ser objeto de proteção jurídica em nível
constitucional, estando no topo da hierarquia normativa de um Estado
– e o trabalho em tela faz o recorte metodológico para focar na
proteção jurídica da moradia pelo Estado brasileiro contemporâneo e
no interior do território brasileiro; segundo, porque conceber a moradia
como um “direito humano fundamental” deixa claro que se trata de um
direito cujo objeto de tutela é uma necessidade essencial para a
dignidade da pessoa humana.12
A importância da positivação da moradia como um direito
humano fundamental é que, nesta qualidade, ele frui de um regime
jurídico que lhe assegura reforçada proteção jurídica porque, consoante
12
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos humanos fundamentais, p. 20; LUÑO,
Antonio-Enrique Perez, Los derechos fundamentales, p. 46-47; CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito Constitucional, p. 353-356; ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos
fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 11-15; SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos direitos fundamentais, p. 33-41. Nessa mesma trilha caminha José Afonso da
SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 178), para quem: “Direitos fundamentais
do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referi-se a
princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada
ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas
prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre
e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se
trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às
vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por
igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente
efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana.
Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou
direitos fundamentais.”
12
dispõe o § 1º do artigo 5º, do Texto Maior13, previstos em normas
constitucionais
intervenção
diretamente
do
legislador
aplicáveis,
independentemente
infraconstitucional,
e
imunes
da
à
abolição/revogação, até mesmo por emenda constitucional, em razão
de estarem amparadas pela cláusula pétrea do inciso IV, do § 4º, do
artigo 60 da Carta Magna.14
Os direitos fundamentais, por serem essenciais e indispensáveis à
proteção da dignidade humana, constituem a base lógica e axiológica
do ordenamento jurídico brasileiro. Por isto, eles possuem status
jurídico que privilegia sua proteção e eficácia.15 Significa dizer que o
regime jurídico a que estão sujeitos busca conferir, na prática, um maior
grau de proteção e efetivação. São fundamentais e, justamente por
isso, merecedores de prioritário respeito tanto pelos particulares como
também pelo Poder Público.
Contundente manifestação do status jurídico privilegiado dos
direitos fundamentais é estarem eles entre os princípios constitucionais
sensíveis, autorizando a medida extrema de intervenção da União em
um Estado ou no Distrito Federal para “assegurar a observância” dos
“direitos da pessoa humana” (artigo 34, VII, “b”, da Constituição da
República).
Em razão de sua força normativa potencializada, a proteção
constitucional da dignidade da pessoa humana, que emerge das normas
13
Constituição de 1988, artigo 5º. (...) § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata.
14
Constituição de 1988, artigo 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II – do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das
unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa dos seus
membros. (...) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir: (...) IV – os direitos e garantias individuais.
15
MARTINS NETO, João dos Passos. Direitos fundamentais: conceito, função e tipos, p. 79.
13
decorrentes do preâmbulo da Carta Magna, bem como do artigo 1º, III,
artigo 3º, III e artigo 5º, §§ 1º e 2º, como princípio fundamental da
República Federativa do Brasil, atua no plano da hermenêutica para
condicionar e conformar todo o tecido normativo.16
Tem-se, portanto, que os direitos fundamentais ocupam posição
preferencial, como expressamente se verifica da análise do artigo 5º, §
1º e do artigo 60, § 4º, IV, da Carta de 1988, por força do que todos
devem respeitá-los, tratá-los a sério.
Ocorre que, na prática, muitas vezes se esquece de que a
moradia é um direito humano fundamental. Trata-se a moradia como
se ela fosse apenas uma mercadoria, um bem acessível apenas àqueles
que têm condições financeiras de custear o seu preço. Daí a
importância do discurso jurídico fazer essa lembrança: moradia é direito
personalíssimo. É direito humano fundamental, acessível e garantida a
todos.
Por fim, cumpre esclarecer que o fato de se reconhecer que o
direito à moradia é um direito humano fundamental não significa que
se esteja diante de um direito absoluto, completamente imune a
restrições. Nenhum direito fundamental é absoluto, no sentido de ter
imunidade à restrição. As restrições fazem parte da dinâmica existência
dos direitos fundamentais, porque estes convivem dentro de um
sistema, devendo-se harmonizar com outros direitos, valores,
interesses ou bens juridicamente protegidos.
Ao dispor no § 1º do artigo 5º da Constituição da República que
“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata”, o objetivo do Ordenamento Jurídico não foi
16
TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento
brasileiro: sua eficácia nas relações privadas, p. 25-26.
14
afirmar o caráter absoluto e imune a restrição dos direitos
fundamentais. Assim, o direito fundamental à moradia pode entrar em
colisão com outros direitos fundamentais, ensejando restrições, a
exemplo do que ocorre com a necessidade de desocupação de áreas de
proteção ambiental, analisado por Ingo Sarlet.17.
Todavia, apesar de sujeito a restrições, o direito à moradia não
pode ser negado. Restrição não significa neutralização. Há sempre um
cerne, um núcleo irredutível: o mínimo existencial.
Assim, por exemplo, na efetivação de desocupação de área para
fins de atendimento ao valor ambiental, também constitucionalmente
protegido, dever-se-á verificar o motivo pelo qual aquelas pessoas e/ou
famílias estavam naquele local. Se as pessoas que ocupam área de
proteção ambiental pelo motivo de não terem outro lugar para morar,
isto é, quando o motivo da ocupação da área ambientalmente
protegida for a pobreza, deve o Poder Público assegurar o direito à
moradia digna em local adequado como expressão da garantia do
mínimo existencial.
Por fim, cumpre destacar, neste tópico, que a positivação de um
direito como direito fundamental não implica que o texto constitucional
baste por si só. A concretização ou realização de um direito
fundamental, ou sua efetiva proteção e promoção na prática depende
da estruturação e manutenção de órgãos e procedimentos e prestação
eficiente de serviços públicos, razão pela os direitos fundamentais,
notadamente no que diz respeito à sua função prestacional, positiva,
que exige condutas ativas do Poder Público, depende de políticas
públicas consistentes, ou seja, de que atuação estatal seja bem
17
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão
negativa (defensiva), p. 1037-1038.
15
planejada e conte com recursos financeiros compatíveis.
Nessa linha, a realização prática dos direitos fundamentais
depende muito das ações que serão tomadas nos espaços
democráticos, o que não prejudica que o Poder Judiciário desempenhe
algum papel no asseguramento do direito à moradia e no controle das
políticas
públicas
habitacionais,
até
porque
as
margens
de
discricionariedade do Poder Executivo e do Poder Legislativo são
bastante limitadas pelos princípios e regras constitucionais.
Nessa perspectiva, restam evidenciadas as razões pelas quais se
preferiu, neste trabalho, tratar a moradia como direito humano
fundamental. Segue-se, então, com a demonstração da imbricação
entre a moradia e a dignidade da pessoa humana.
1.2. DIREITO À MORADIA E DIGNIDADE HUMANA
1.2.1. Moradia digna: bem jurídico indispensável à
dignidade humana
A moradia é uma necessidade essencial para todo e qualquer ser
humano.
Dialogando com a filosofia e com a ética, encontra-se em Enrique
Dussel valioso aporte no sentido de que as necessidades humanas,
dentre as quais a de ter uma casa, fundamentam/legitimam uma ordem
normativa, impondo certos conteúdos indispensáveis e estabelecendo
limites intransponíveis ao exercício das liberdades. Nas palavras do
autor:
"A vida sobrenada, em sua precisa vulnerabilidade, dentro de certos
limites e exigindo certos conteúdos: se a temperatura da Terra sobe,
16
morremos de calor; se não podemos beber devido a um processo de
seca – como acontece aos povos subsaarianos – morremos de sede;
se não podemos alimentar-nos, morremos de fome; se nossa
comunidade é invadida por outra comunidade mais poderosa, somos
dominados (vivemos, mas em grau de alienação que vão desde uma
vida quase animal até a própria extinção, como no caso dos povos
indígenas depois da conquista da América). A vida humana impõe
limites, fundamenta normativamente uma ordem, tem exigências
próprias. Impõe também conteúdos: há necessidades de alimento,
casa, segurança, liberdade e soberania, valores e identidade cultural
(funções superiores do ser humano e que consistem os conteúdos
mais relevantes da vida humana). A vida humana é o modo de
realidade do ser ético."
18
A adequação da moradia é uma condicionante de uma vida digna,
estando ligada a aspectos materiais e imateriais. Dispor de um lugar
com certa exclusividade serve tanto como abrigo das intempéries e
proteção contra ataques de outros seres vivos, propiciando momentos
de paz e tranquilidade para o descanso do corpo e da alma, quanto para
assegurar um espaço próprio de intimidade/privacidade, imprescindível
para exercício de uma vida privada e/ou familiar, fazendo desse
ambiente um lar.19
Essa situação, reconhecida pelo ordenamento jurídico, faz da
moradia um bem extrapatrimonial, isto é um bem da personalidade20,
18
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, p. 131-132.
Como bem lembra Luiz Edson FACHIN (Teoria crítica do direito civil, p. 267), citando
Michelle Perrot: "A casa é, cada vez mais, o centro da existência, o lar oferece, num mundo
duro, um abrigo, uma proteção, um pouco de calor humano".
20
Segundo José Reinaldo de Lima LOPES (Cidadania e propriedade: perspectiva histórica
do direito à moradia, p. 131), o direito à moradia inclui o direito de ocupar um lugar no
espaço, assim como o direito às condições que tornam este espaço um lugar de moradia,
de tal sorte que morar constitui um existencial humano. Pertinente aqui também é a
passagem clássica de Adriano de Cupis (I diritti della personalità. Milano: Giuffrè, 1950, p.
18): "existem direitos sem os quais a personalidade restaria em uma atitude
completamente insatisfeita, privada de qualquer valor concreto; direitos desacompanhados
dos quais todos os outros direitos subjetivos perderiam qualquer interesse para o
indivíduo, a ponto de chegar-se a dizer que, se esses não existissem, a pessoa não seria
19
17
juridicamente protegido e promovido21. Percebe-se, então, a ligação da
proteção e promoção jurídica da moradia com a garantia e fomento da
dignidade da pessoa humana.
Luciano de Souza Godoy reconhece que não é fácil a
conceituação de dignidade da pessoa humana, todavia, nem mesmo se
necessita de uma conceituação precisa por se tratar de uma cláusula
geral destinada à proteção da pessoa e definidora de um direito da
personalidade de conteúdo aberto. As cláusulas gerais são conceitos
jurídicos abertos, são janelas, pontes e avenidas dos textos normativos,
permitindo o ingresso, no ordenamento jurídico de princípios
valorativos, standarts, máximas de conduta, arquétipos exemplares de
comportamento, de deveres de conduta não previstos tipificadamente
na legislação. Com a técnica do emprego das cláusulas gerais, evita-se a
rigidez e o envelhecimento do sistema, que passa a ser aberto,
transmitindo segurança a partir de uma facilidade de interpretação. 22
Neste prisma, diante da cláusula geral de proteção da dignidade
humana, tem-se que, para que possa viver dignamente e desenvolver
livremente sua personalidade23, todo o ser humano necessita de uma
mais a mesma" (FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional
da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 44).
21
Norberto BOBBIO (Da estrutura à função, p. 10-21) destaca que, ao lado das funções
tradicionais do Direito como ordenamento protetor-repressivo, os Estados
contemporâneos ocidentais, mormente após o segundo pós-guerra estão assumido cada
vez mais funções promocionais, mediante adoção de técnicas jurídicas de encorajamento
de ações desejadas. Ou seja, além de servir a manutenção do status quo, o Direito também
busca a transformação da realidade, na busca de um melhor padrão de justiça.
22
GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 48
e 10Ver também: COSTA, Judith Martins. O direito privado como um "sistema em
construção": as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro, p. 24-48.
23
Eroulths CORTIANO JÚNIOR, Jussara Maria Leal de MEIRELLES e Umberto PAULINI (Um
estudo sobre o ofuscamento da realidade, p. 37-39), destacam que, em respeito ao Texto
Constitucional de 1988, impõe-se a superação da compreensão que esgota a personalidade
como aptidão para que o sujeito figure como titular de direitos e obrigações. Com o
reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor central e unitário de todo o
18
moradia adequada.
Na visão de Luciano de Souza Godoy24, a moradia é uma
necessidade do indivíduo para desenvolver suas potencialidades no
campo pessoal, familiar, profissional e afetivo:
“Um indivíduo, para se desenvolver como pessoa, para nascer,
crescer, estudar, formar sua família, adoecer e morrer com
dignidade, necessita de um lar, de uma moradia, da sede física e
espacial onde irá viver. E o acesso a essa moradia (...) há de ser
patrocinada, tutelada e resguardada pelo Poder Púbico, incluindo
também as situações em que o próprio indivíduo não puder
implementá-lo por esforço próprio, isto é, com economias próprias”.
ordenamento jurídico (artigo 1º, III da Constituição), a personalidade não pode ser tomada
apenas como sinônimo de sujeito de direito, como reduto de poder do indivíduo, no âmbito
do qual é exercida a titularidade. Faz-se necessário, pois, apartar as categorias
personalidade (expressão da dignidade da pessoa humana) e subjetividade (capacidade de
ser sujeito de direitos e obrigações). A subjetividade jurídica está associada à faculdade de
figurar no sistema como centro de imputação de direitos e deveres, o que não é exclusivo
da pessoa humana, já que reconhecida às pessoas jurídicas e, em alguns casos, segundo
opções de política legislativa, até em favor de entes despersonalizados. Já a personalidade
é o valor característico da pessoa humana que atrai a disciplina jurídica própria das relações
existenciais. A pessoa é e vale. Com a escolha da dignidade da pessoa humana como
fundamento da República, estatui-se uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção
da pessoa e da vida humana, submetendo toda a atividade social, econômica e científica a
um novo critério de validade. Na mesma trilha, Rafael Garcia RODRIGUES (A pessoa e o ser
humano no novo Código Civil, p. 3), concluindo que a personalidade não se resume à
possibilidade de ser titular de direitos e obrigações, ou seja, ao conceito abstrato de pessoa
próprio do ideário oitocentista, importando no reconhecimento que tocam somente ao ser
humano, expressão da sua própria existência. Assim, a personalidade é vista como
expressão do ser humano, traduzido como valor objetivo, interesse central do
ordenamento e bem juridicamente relevante. Trata-se do reconhecimento da
personalidade como valor ético emanado do princípio da dignidade da pessoa humana e da
consideração pelo direito do ser humano em sua complexidade. De além-mar, Pedro Pais
de VASCONCELOS (Direito de personalidade, p. 6), salienta que a pessoa humana constitui
o fundamento ético-ontológico do Direito. Sem pessoas não existira Direito. O Direito existe
pelas pessoas e para as pessoas. A pessoa é autora e atora no Direito. Autora porque o cria
e constitui: organicamente na lei; interpessoalmente no contrato e no negócio;
institucionalmente na cultura e no costume jurídico. Atora porque apenas as pessoas agem
no Direito. As pessoas coletivas/jurídicas não passam de agrupamento de pessoas ou da
institucionalização de seus fins. As pessoas coletivas/jurídicas não têm um papel igual ao
das pessoas humanas, sendo apenas a elas análogas e instrumentais. São uma criação do
direito, que assim como as faz nascer, pode também extingui-las, conforme entender
conveniente, dentro de critério de razoabilidade e da eficácia. Já com as pessoas humanas
não, é impossível ao Direito negar-lhes a personalidade e a dignidade.
24
GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário,
prefácio e p. 48.
19
Por sua vez, Ana Alice de Carli25 destaca que, na verdade, a
moradia:
“consubstancia atributo essencial da personalidade, pois é no locus
doméstico que as pessoas desenvolvem seu caráter, dão seus
primeiros passos rumo ao processo de crescimento espiritual, físico e
intelectual. Enfim, é, primeiramente, no espaço do lar, concretizado
num teto com paredes, portas, janelas e banheiro, que o indivíduo se
sente protegido e seguro para iniciar o aprendizado da vida em
relação. Enfim, a capacidade de enfrentar o “mundo da vida” com
segurança, autoconfiança e dignidade pressupõe a existência de uma
moradia com qualidade”.
Logo, uma das dimensões da dignidade humana é a moradia, cuja
tutela também deve ser integral, quer no sentido de ser objeto de
atenção de todos os chamados “ramos” do Direito (Constitucional,
Penal,
Administrativo,
Tributário,
Financeiro,
Civil,
Econômico,
Ambiental, Urbanístico, etc.), quer significando que deve abranger não
apenas técnicas repressivas e de ressarcimento, mas também
mecanismos preventivos contra lesões à/perda da moradia e
promocionais do acesso e da melhoria das condições de moradia.
A interdependência entre a moradia com outros bens jurídicos
essenciais à dignidade da pessoa humana, explorada no próximo item,
reforça o amalgama de sua tutela jurídica ao regime dos direitos
humanos fundamentais.
25
CARLI, Ana Alice de. Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à
moradia, p. 11.
20
1.2.2. Interdependência entre moradia e outros bens
jurídicos essenciais à dignidade humana
Há uma relação de interdependência entre a moradia adequada e
outros bens juridicamente protegidos como direitos essenciais da
pessoa humana: a vida, a saúde, a integridade física e moral, a
intimidade, a liberdade, entre outros.
A moradia, nas suas diversas manifestações (ocupação/utilização
de um espaço com lastro em direito de propriedade, locação, concessão
de uso, mera posse, direito real de moradia, etc.), é um bem referente à
integridade física, psíquica e moral da pessoa, cujo respeito se dá pela
via do exercício do direito à moradia minimamente condigna e
adequada. 26
A proteção à moradia além da proteção do espaço em si em que
ela é exercida inclui também a proteção aos bens móveis necessários à
vida diária, já que eles integram o mínimo existencial, não se sujeitando
sequer à penhora, exprimindo a funcionalização das situações
patrimoniais às existenciais.
As condições nas quais se exerce a moradia podem implicar
violação da dignidade e de outros direitos que lhe são corolários, como
ocorre: nos casos das pessoas em situação de rua27, quando não se
26
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação, p. 154-164.
Anderson SCHREIBER (Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do
imóvel residencial do devedor solteiro, p. 81-83) coloca com precisão que "A nãohabitação ou habitação das ruas represente não apenas a perda da moradia, mas a perda
da própria condição de pessoa. De fato, todo indivíduo tende naturalmente a delimitar um
espaço próprio de ocupação que lhe possa servir de referência à própria identidade". O
autor menciona relatos de pesquisadores sobre o comportamento de pacientes de
determinado hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, sobre a constatação de práticas
frequentes de "apego físico a bens pessoais" e a "criação de espaços individuais nos quartos
coletivos e nas áreas de convívio comum", uma tentativa de retorno à condição de pessoa
representada pelo mundo da casa, ainda que simbólico, em face do que significa a ida ao
27
21
oferecem albergues adequados dentro de um conjunto de ações de
assistência social voltadas à emancipação do indivíduo; das pessoas que
habitam em lugares inadequados, perigosos e/ou insalubres, como
embaixo de viadutos, em morros com risco de desabamento, às
margens de cursos d´água sujeitos à inundação; ou, ainda, daqueles que
moram em cortiços ou outros tipos de habitação coletiva, privados de
um mínimo de privacidade para si e para seus familiares.
Diante de casos como estes, muito frequentes no Brasil
contemporâneo, é importante salientar que a razão de ser de uma
norma jurídica pode ser justamente a vigência de uma realidade
diversa. Uma realidade que não se aceita como correta e que, pela
função promocional do Direito, se busca transformar.
Neste aspecto, é pertinente a advertência de Cristiane Derani de
que a norma jurídica é formulada tendo em vista um determinado
estado da realidade social que ela pretende reforçar ou modificar.28 E,
no caso da realidade de déficit habitacional concentrado nas camadas
mais pobre da população, há um estado da realidade social que o
Direito procura transformar.
A moradia envolve os direitos à saúde e à integridade física e, em
casos extremos, o próprio direito à vida, afetados quando a pessoa não
tem acesso a uma morada que lhe assegure o atendimento de suas
necessidades básicas ou lhe assegure um mínimo de segurança porque
desprovida de saneamento básico (serviços de água, esgoto e limpeza
hospital psiquiátrico (passagem, muitas vezes sem volta, para a condição de indivíduo, dado
impessoal e indiferenciado do mundo da rua, em que não há lugar para a pessoa e em que
ninguém possui um nome próprio). Igualmente interessante e pertinente é a invocação da
psicologia e filosofia existencialista que, de há muito constatou que "ser" é
necessariamente "ser-no-mundo", "ser-em-algum-lugar", para lembrar que a própria
condição humana depende de um referencial espacial particular.
28
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico, p. 22.
22
urbana) e/ou por ser exercida em edificação precária, improvisada, mal
construída, sem estabilidade da estrutura física (materiais de baixa
qualidade e/ou falta de emprego das técnicas construtivas corretas
e/ou edificação em locais inadequados), ensejando graves riscos de
acidentes graves ou fatais ou de aquisição de doenças.
No plano da ética, mas com possibilidade de dar embasamento
substancial ao Direito e aos direitos, Enrique Dussel defende que a vida
é o princípio material universal que dá embasamento à moral."29 O
pensamento de Dussel, no plano jurídico, encontra ressonância no
princípio da dignidade da pessoa humana, cujo valor básico é o
proteger e propiciar uma vida boa, digna de ser vivida, para cada um e
para todos. Na colocação de Luiz Edson Fachin:
"É nessa linha, pois, que a vida deixa de ser apenas o primeiro e mais
fundamental direito tutelado pelo ordenamento jurídico para se
tornar condição essencial de possibilidade dos outros direitos.
Desenvolve-se aí a concepção da supremacia da vida e que, para ser
entendida como vida, necessariamente deve ser digna."30
A liberdade da pessoa humana também é afetada quando a
mesma não dispõe de um mínimo existencial, do qual faz parte uma
morada digna. Neste sentido, expõe Eliana Maria Barreiros Aina31 que:
"O ser humano, quando privado de suas necessidades básicas, fica
acuado, enfraquecido na sua liberdade de consciência e de ação. Sem
perspectiva de vida, de estabelecer projetos, ele se rende a qualquer
benesse imediatista, às vezes em troca de seus bens mais valiosos,
29
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, p. 143:
"Aquele que atua eticamente deve (como obrigação) produzir, reproduzir e
desenvolver auto-responsavelmente a vida concreta de cada sujeito humano, numa
comunidade de vida, a partir de uma "vida-boa" cultural e histórica (...) que se
compartilha pulsional e solidariamente, tendo como referência última toda a
humanidade.
30
FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina
dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 49.
31
AINA, Eliana Maria Barreiros. O fiador e o direito à moradia, p. 64.
23
como sua liberdade e seus direitos políticos, justamente, porque
esses, para os que não vivem com um mínimo de dignidade, não
apresenta um valor concreto".
Na mesma direção, Amartya Sen32 destaca que um imenso
número de pessoas em todo o mundo é vítima de várias formas de
privação de liberdade, como as decorrentes de fome coletivas,
subnutrição, falta de acesso a serviços de saúde, saneamento básico ou
água tratada, que as fazem passar a vida lutando contra uma morbidez
desnecessária e, com frequência sucumbindo à morte prematura.
Assim, a privação de liberdade pode surgir não só de violação do direito
ao voto ou de outros direitos políticos ou civis, mas de oportunidades
inadequadas que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que
gostariam, incluindo a ausência de oportunidades elementares como a
capacidade de escapar da morte prematura, morbidez evitável ou fome
involuntária.
Enfim, dessas observações se constata que a pobreza afeta a
liberdade, situando o indivíduo muito abaixo de qualquer definição
razoável de decência humana. E que a pobreza é um grande obstáculo
ao acesso a uma moradia adequada e, reflexamente, a um exercício
mais pleno da liberdade.
Daí a pertinência da lembrança de Ingo Wolfgang Sarlet33 de que
mesmos pensadores liberais, como Cass Sunstein, justificam um direito
a um mínimo existencial, com lastro não apenas no argumento de
pessoas sujeitas a condições de vida desesperadoras não vivem uma
boa vida, mas também a partir da premissa de que um regime
genuinamente democrático pressupõe certa independência e segurança
32
33
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 29-50.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 97.
24
de cada pessoa.
Por sua vez, Jacques Távora Alfonsin é enfático ao sustentar que
sem a satisfação das necessidades vitais – entre as quais a moradia –
não há como se considerar garantidos o direito à vida e à liberdade. O
homem morto ou ameaçado de morrer deixa de ser livre,
independentemente do contexto social no qual vive.34 Sem dúvida, o
direito à moradia está inserido nesse denominado mínimo existencial.
Daí a importância das ações de combate à miséria absoluta, fator
de uma morbidez precoce e evitável, chamadas de ações de
"empoderamentos". O empowerment demanda cidadãos ativos,
conscientes e mobilizados, bem como serviços públicos efetivos,
capazes de gerar desenvolvimento humano, transformar a vida e as
expectativas das pessoas, algo que vai muito além do aumento da
renda monetária porque envolve a inclusão social, política e econômica
de um enorme contingente de pessoas e, como resultado, um aumento
efetivo da liberdade real de cada uma delas. O rompimento com a
omissão e a indiferença para com o sofrimento alheio, fazendo vivo o
valor da solidariedade, é, sem dúvida, um grande desafio.35
Sob a ótica da garantia da liberdade pelo asseguramento de
condições existenciais mínimas, as condições reais de moradia podem
ser levadas em conta no diagnóstico, como meio estratégico de
34
ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso á terra como conteúdo de direitos humanos
fundamentais à alimentação e à moradia, p. 59-60. Aprofundando e provocando reflexão,
na esteira das provocações de Peter SINGER (Ética prática, p. 233-246), pode se colocar a
incômoda pergunta: até que ponto deixar morrer – inclusive por falta de condições de
acesso a uma moradia adequada – não equivale a matar? Incômoda porque faz lembrar a
omissão e a indiferença para com o sofrimento alheio.
35
A respeito do "empoderamento", conferir, entre outros: OAKLEY, Peter; CLAYTON
Andrew. Monitoramento e avaliação do empoderamento. São Paulo: Instituto Pólis, 2003,
e GREEN, Ducan. Da pobreza ao poder. São Paulo: Cortez: Oxfam Internacional, 2009. De
igual sorte, mostra-se pertinente as ações de empoderamento/emancipação por meio da
concessão de microcrédito tratadas em YUNUS, Muhammad. O banqueiro dos pobres.
25
enfrentamento do problema da exclusão36 e, também, como meta a ser
alcançada, na medida em que assegurar acesso à moradia adequada
importa em emancipação, em ganhos de liberdade. 37
Quanto a esse particular aspecto, a referência à Teoria da Justiça
de John Rawls38 mostra-se obrigatória. Rawls entende que em uma
sociedade pluralista, como se pretendem sejam as democracias
contemporâneas, a ideia de justiça precisa ser funcional, sendo assim
essencialmente política. E a ideia de justiça defendida por Rawls é
aquela de justiça como equidade (fairness), traduzida em dois
princípios: 1º) Cada pessoa terá igual direito à mais extensa liberdade
básica compatível com semelhante liberdade para as outras; 2º) As
desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas de tal modo
que: a) possa razoavelmente esperar-se que sejam vantajosas para
todos; b) sejam vinculadas a posições e cargos abertos a todos.
Assim, na perspectiva de Rawls, em uma sociedade ordenada
segundo padrões de equidade, as normas básicas de cooperação devem
ser compatíveis com a realização de múltiplos fins pessoais,
determinados pelos próprios indivíduos, reconhecidos como livres e
iguais. E, para a consecução de qualquer objetivo de vida em uma
sociedade pluralista, alguns bens primários devem ser garantidos
igualitariamente. Esses seriam as condições mínimas da igualdade e,
36
O que se dá pela constatação de que a colocação de uma pessoa em uma moradia
condigna, acompanhadas de outras ações de emancipação, facilita a sua inserção no
mercado formal de trabalho, abrindo-lhe novas oportunidades.
37
Na consecução do projeto solidarista previsto na Constituição, é importante destacar a
Emenda Constitucional n. 31, de 14 de dezembro de 200, que criou o Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza, regulamentado pela Lei Complementar n. 111, de 06 de julho de
2001, com a finalidade de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de
subsistência. Os recursos desse fundo destinam-se a ações suplementares de nutrição,
habitação, educação, saúde, reforço da renda familiar e outros projetos ou programas de
relevante interesse social, voltados à melhoria da qualidade de vida.
38
RAWLS, John. Uma teoria da justiça.
26
portanto, também da liberdade.39
É à busca desse mínimo de igualdade que o empoderamento
dedica-se. Por essa razão, a tese de Rawls tem muita importância em
Estados marcados pela intensa e injusta desigualdade social, como é o
caso do Brasil na atualidade, pois serve de embasamento para o
preenchimento substancial de categorias dogmáticas, dando direção à
interpretação jurídica de normas de tessitura aberta.
Nesta linha, não se pode olvidar que qualquer trabalho de
inclusão, de emancipação e empoderamento deve partir da provisão de
uma moradia digna. Não há como se fazer resgate social mantendo-se a
pessoa numa residência precária, improvisada, insalubre, com riscos de
desabamento, inundação, etc.
Por outro lado, assegurar um espaço adequado para um lar
familiar por si só não basta, devendo-se isto vir acompanhado de outras
ações estratégicas nas áreas de educação, saúde, assistência social,
capacitação para geração de renda própria, entre outras.
Outra
manifestação
da
interdependência
e
do
inter-
relacionamento entre os bens da personalidade se dá entre a moradia e
os direitos ao sossego, à privacidade e intimidade.
O sossego diz
respeito à necessidade que todo ser humano de repousar, de
descansar, o corpo e a alma. Daí a preocupação com os ruídos
excessivos ou cheiros suscetíveis de incomodar os moradores,
prejudicando-lhe a qualidade de vida, tirando-lhes a paz e a
tranquilidade.40
39
KUNTZ, Rolf. A redescoberta da igualdade como condição de justiça, p. 148-152.
Expõe claramente Waldir de Arruda Miranda CARNEIRO (Perturbações sonoras nas
edificações urbanas, p. 13- 20) que o sossego juridicamente protegido concerne ao estado
de quietação necessário ao descanso, repouso ou à concentração do homem comum.
Trata-se de ausência de ruídos ou vibrações que possam causar incômodo, interferindo no
40
27
Portanto, garantir moradia adequada é garantia um recinto de
paz e de tranquilidade. Quanto à privacidade ou intimidade pessoal e
familiar, a moradia assegura o segredo doméstico, isto é, das atitudes
íntimas da pessoa assumidas na sua habitação.41.
Como pontua Sérgio Iglesias Nunes de Souza, recanto de
isolamento físico e moral, é o lar o local onde cada ser humano pode
atuar de forma mais livre, exteriorizando suas atividades mais pessoais
e íntimas, como o descanso, o lazer doméstico, a leitura, a alimentação,
o sono, a higiene, etc.42 Daí o princípio segundo o qual la vie privée doit
être murée43, no sentido de que aspectos da intimidade devem ser
protegidos, sendo uma das facetas dessa proteção a inviolabilidade do
domicílio.44
trabalho ou descanso a que todos temos direito. Além de proteger o sossego dos
indivíduos, resguarda-se a saúde e a segurança. Ruídos que impedem o repouso acabam
por comprometer a saúde pela ausência de recuperação de energias, dentre outras coisas,
bem como a própria segurança do indivíduo, pela queda dos reflexos, diminuição da
capacidade de concentração e raciocínio em decorrência da falta do descanso necessário,
expondo-o a perigos na operação de máquinas e veículos, por exemplo. O
comprometimento do sono prejudica a recuperação da fadiga física, mental e nervosa. E o
problema não tem por causa apenas o ruído, podendo derivar de manutenção de água
empoçada propiciadora da proliferação de pernilongos ou emanações tóxicas, corrosivas ou
malcheirosas. Por fim, ruídos e vibrações excessivas podem ter impacto nas estruturas das
edificações, favorecendo desmoronamentos.
41
É por essa razão que razão que a Constituição enuncia em seu artigo 5º, inciso XI, que "a
casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar
socorro, ou durante o dia, por determinação judicial"
42
SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação, p. 204-206.
43
Em tradução livre: A vida privada deve estar murada, protegida, resguardada.
44
No âmbito da tutela penal, há o tipo do artigo 150 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de
dezembro de 1940 – Código Penal, para repressão da violação de domicílio. A fattispecie
(descrição típica da conduta proibida) é assim enunciada: "Entrar ou permanecer,
clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito,
em casa alheia ou em suas dependências". Esclarece o § 4º que a expressão casa
compreende: "I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação
coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou
atividade". Porém, a tutela penal por si só não basta, devendo o Estado, e inclusive o
Estado-Juiz proteger as pessoas, inclusive preventivamente, mediante provimentos da
jurisdição civil. Neste campo de proteção jurisdicional civil, as importantes contribuições de
Sérgio ARENHART, Tutela inibitória da vida privada.
28
Gilberto Giacóia, invocando os dizeres poéticos de Ferreira Gullar,
lembra que a casa é o reino, o reduto, o castelo de todo homem, que
precisa ser defendido contra o invasor despudorado, bem como lembra
que atualmente, as esferas da intimidade e da privacidade são muitas
vezes atingidas no cerne do que há de mais interno e personalíssimo, a
pretexto de se alcançar objetivos sociais.45
Na colocação de Paulo José da Costa Júnior, a intimidade
consubstancia-se não apenas em isolamento, mas resguardo das
interferências alheias, de não ser a pessoa importunada pela
curiosidade ou pela indiscrição de outrem, de poder desfrutar de sua
paz de espírito e ver respeitados os atributos de sua personalidade
frente aos outros indivíduos ou ao Estado. 46
Assim, mesmo sem adentrar nos problemas das novas ameaças à
intimidade em decorrência de novos aparelhos tecnológicos de
captação de áudio e imagens à distância, é fato que um grande número
de pessoas, especialmente as moradoras de favelas e cortiços, não
usufrui de condições mínimas de intimidade em razão da estrutura
precária e da localização de suas moradas, muito próximas umas às
outras, sem o isolamento visual e/ou acústico apropriado47 ou por não
45
GIACÓIA, Gilberto. Invasão da intimidade, p. 7.
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só, p. 25-26 e 14. Para o autor: "O
desejo de subtrair as nossas experiências íntimas ao controle do mundo exterior,
interiorizando-as, justifica-se pelo fato de nada mais ser que o corolário de nosso anseio
por uma personalidade independente. E ninguém ousará contestar que só uma
personalidade independente é capaz de aprofundar as experiências comunitárias. Porque o
significado dessas experiências emerge, com todo o seu peso e verdade, apenas quando
elas possam ser postas em confronto com as experiências interiores. (...) Ademais, a
privatividade, como solidão autêntica, é o único momento que nos oferece a possibilidade
de uma visualização crítica das relações sociais. Sem essa perspectiva crítica, a participação
de cada um no mecanismo de comunicabilidade social equivale a um nada".
47
Em respeito à privacidade, segurança, sossego e saúde dos vizinhos, a legislação
estabelece várias restrições ao uso de bem imóvel, como as previstas nos artigos 1277 e
1301 da Lei 10.402, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. Todavia, muitas dessas regras
46
29
se dispor de cômodos suficientes para todos os moradores.48
Percebe-se que ter uma moradia adequada não é simplesmente
dispor de um teto sobre quatro paredes. Consoante alerta Eliane
Adelina Pagani49, dispor de moradia adequada implica: ter um endereço
para ser localizado; acesso às redes de saneamento básico
(fornecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, drenagem,
coleta de lixo) que proporcionam saúde e higiene; acesso à energia
elétrica que proporciona conforto, conservação dos alimentos,
informação e comunicação; acesso ao sistema de saúde na prevenção e
tratamento de doenças; acesso à rede de transporte, que proporcional
o deslocamento para o trabalho, escola, cultura e lazer.
Enfim, dispor de uma moradia adequada é dispor de um lugar
integrado dentro de uma cidade.
Como saliente Angela Cassia Costaldello:
“A cidade é o espaço da existência plural, com a inacabável profusão
de grupos distintos, com toda espécie de relações humanas e
materiais e, na contemporaneidade vislumbra-se – pelo avanço do
exercício da cidadania e da busca pela vida digna – que o direito à
cidade passe a ser encarado como um direito fundamental. Se assim
entendido, a formulação encontra no texto da Constituição da
parecem não ter efetividade nas "cidades informais", porque esquecidas pelo Poder
Público, num país em que a maioria das unidades habitacionais está na "clandestinidade"
no sentido de estarem à margem das regras do Direito oficial, muitas vezes indiferentes às
necessidades da maioria das pessoas, tratadas como invisíveis porque despossuídas de
bens patrimoniais.
48
Como, por exemplo, se dá nas chamadas "meia-água", casas de um cômodo do só, muitas
delas habitadas por várias pessoas ou nas habitações coletivas, isto é, espaços ocupados
simultaneamente por várias famílias. Neste ponto, deve ser lembrado que, seguido os
círculos concêntricos vida íntima/vida privada/vida pública, mesmo dentro do lar e no
convívio com os seus, qualquer pessoa necessita de um espaço reservado para o exercício
de uma vida íntima, uma esfera que inclui aspectos pessoais de maior segredo, que a
pessoa nunca partilha ou quase nunca partilha com outras, ou que comunga apenas com
pessoas muitíssimo próximas (cf. VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direitos de personalidade,
p. 80). Esfera íntima essa que fica prejudicada ou até mesmo anulada quando não se tem
uma moradia adequada.
49
PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia, p. 220 e 116.
30
República Federativa do Brasil os baldrames necessários a traçar, ao
menos num primeiro momento, o espectro do direito à cidade.”50
Daí que o problema social da habitação não é resolvido com a
simples produção de unidades habitacionais, mas sim com a produção
de unidades habitacionais em local servido por infraestrutura e
serviços. Há necessidades de investimento sobre a terra para que ela se
torne, efetivamente, um pedaço da cidade e ofereça condições viáveis
de moradia. Daí a conexão entre o direito à moradia e o direito a
cidades sustentáveis, previsto no artigo 2º, inciso I, da Lei 10.257/2001,
denominada “Estatuto das Cidades”.51
Logo, a moradia se conecta com seu entorno próximo e remoto,
ou seja, com o que vem sendo denominado de direito à cidade na
dimensão de uma ocupação mais igualitária do espaço urbano, a exigir
esforços contínuos de reversão desse processo de apartheid
socioespacial característicos das "cidades partidas", de que nos fala
Zuemir Ventura, entre outros52. Para tanto, devem ser aproveitados ao
50
COSTALDELLO, Angela Cassia. A supremacia do interesse público e a cidade, p. 248.
Lei 10.257/2001 – Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as
seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras
gerações.
52
Segundo a constatação de Luiz Edson FACHIN (A cidade nuclear e o direito periférico, p.
107): "A formação da concentração urbana revela (de um modo geral) um núcleo
percorrido pelas principais artérias de sua própria dinâmica; diversamente, em seu entorno,
distanciando-se desse centro (aqui tomado na acepção plural, não reduzido a um único
conceito físico ou geográfico), forma-se um inchaço julgado periférico ou marginal. Nessa
ordem de idéias, é a atividade do governar, do reinar, que põe os interesses na órbita
central, excluindo ou remetendo para o entorno (para a vila, enfim) o que dela não faz
parte". Por seu turno, Zuemir VENTURA (Cidade partida) apresenta os interessantes relatos
das relações de vida entre os dois lados da cidade partida do Rio de Janeiro, resultado de
uma política não de mera separação, mas sim de verdadeira exclusão para os morros e
periferias dos cidadãos tidos como de segunda classe. O fenômeno carioca não é isolado.
Curitiba, reconhecida internacionalmente pela sua qualidade de vida e boas práticas de
51
31
máximo, sem prejuízo de outros, os instrumentos legais instituídos pela
Lei 10.257/2001 – Estatuto das Cidades, tais como os mecanismos de
gestão democrática participativa da política de desenvolvimento
urbano.
Nelson Saule Júnior e Maria Elena Rodrigues destacam a respeito
disso que:
"As cidades informais caracterizadas pelas áreas onde se localizam as
favelas, os loteamento populares irregulares e clandestinos nas
periferias urbanas, nas áreas declaradas de proteção ambiental, as
ocupações coletivas de área urbana, conjuntos habitacionais em
condições precárias ou abandonados, os cortiços e habitações
coletivas em condições precárias nas regiões centrais da cidade, são
situações concretas que evidenciam a necessidade de constituir uma
política urbana de promover a integração social e territorial da
população que vive nesses assentamentos urbanos."
Diante desse quadro, prosseguem referidos autores, o direito à
moradia e o direito a cidades sustentáveis, reconhecidos pelos sistemas
internacional e nacional de proteção dos direitos humanos são
fundamentos para a promoção de uma política urbana que tenha como
meta e prioridade a urbanização e regularização dos assentamentos
precários visando a melhorar as condições de vida mediante
implantação de rede de esgoto e tratamento dos resíduos, canalização
dos córregos, educação ambiental, recuperação e reposição de áreas
verdes, bem como a regularização fundiária visando a conferir uma
planejamento não foge a esse modelo excludente, eis que utiliza, ao invés dos morros
cariocas, o anel periférico, composto por vários municípios vizinhos, com graves
precariedades de estrutura urbana e de serviços básicos, transformadas em cidadesdormitórios para alojar a população carente, a maior parte dela sujeita a deslocamentos
diários para trabalharem na "Capital-modelo-de-planejamento-que-deu-certo" - imagem
superlativa construída artificialmente a partir de estratégias de city marketing. A respeito,
ver: GARCIA, Fernanda Ester Sánchez. Cidade espetáculo: política, planejamento e city
marketing e MOURA, Rosa; KORNIN, Thaís. A internacionalização da metrópole e os
direitos humanos.
32
segurança jurídica à população moradora desses assentamentos. 53
Consoante síntese de Eliane Maria Barreiros Aina:
"a moradia é um valor de conceito amplo que envolve a garantia de
um abrigo digno, salubre e que promova o bem-estar de seus
ocupantes, de forma a concretizar a existência com dignidade dos
indivíduos. Neste aspecto, encontra vertentes no direito à vida, no
direito à saúde, na proteção da família54, no direito ao meio
ambiente saudável, no acesso à propriedade, na renda mínima que
possa garantir efetivamente um lar, em uma ordem econômica justa
etc."55
Evidencia-se, pois, claramente a interdependência e o interrelacionamento do direito à moradia digna com outros direitos
essenciais da pessoa humana; que o conceito de moradia é muito mais
amplo e complexo do que o de "casa própria", não coincide e na
maioria das vezes transcende à noção de patrimônio.
Moradia é, ao mesmo tempo, local de refúgio da pessoa humana,
como também espaço para sua integração com a família, com a cidade
e com o mundo, com as demais pessoas, de forma que o indivíduo
possa encontrar condições concretas para exercer suas liberdades, sua
cidadania, sua dignidade, enfim, os pressupostos indispensáveis para
desenvolver plenamente as potencialidades da sua personalidade.
53
SAULE JÚNIOR, Nelson; RODRIGUES, Maria Elena. Direito à moradia, p. 115-116.
A rigor, nos dias de hoje melhor falarmos em proteção das famílias. Famílias no plural em
razão de uma ordem jurídica estruturada a partir da dignidade da pessoa humana não se
limitar a proteger (com ênfase nos aspectos patrimoniais) o modelo "tradicional" de família
matrimonial e patriarcal, mas todos os tipos de manifestação de uniões de vida, pautadas
no amor, constitutivas de um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade e
realização espiritual de seus membros, que também se manifestam nas uniões estáveis
entre homem e mulher ou entre pessoas do mesmo sexo ou até na criação e educação de
filhos socioafetivos não oriundos de uma descendência genética, passando pela
fraternidade socioafetiva, e assim por diante (exemplifica-se porque impossível abranger
todas as possibilidades existentes, que existiram ou que existiram de vida familiar). Nesta
leitura pluralista, o que o artigo 226 da Constituição do Brasil é que são as famílias, os
vários tipos de família, os múltiplos arranjos familiares que formam a base da sociedade.
55
AINA, Eliane Maria Barreiros. O fiador e o direito à moradia, p. 88.
54
33
1.3. A PROTEÇÃO JURÍDICA DA MORADIA NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO: ENCONTRO DE DOIS CAMINHOS
A proteção jurídica da moradia no Brasil contemporâneo é o
resultado do encontro de dois caminhos que por muito tempo seguiram
em
paralelo
por
consequência
da
summa
divisio56
Direito
Público/Direito Privado.
1.3.1. O caminho do Direito Público
No caminho do Direito Público, três momentos encontram-se
nitidamente caracterizados: o primeiro, da consagração dos direitos
individuais típicos do Estado Liberal; o segundo, do reconhecimento dos
direitos
sociais
e
o
terceiro,
da
internacionalização
e
constitucionalização dos direitos humanos fundamentais.
José Antônio Peres Gediel e Rosalice Fidalgo Pinheiro57 ensinam
que, diante da necessidade de estabelecer a independência da pessoa e
a intangibilidade dos direitos humanos, ensaiada pelo Renascimento,
veio a lume a afirmação do Direito Natural. Colocando a pessoa para
um momento anterior ao Estado e à sociedade, o jusnaturalismo obteve
o pressuposto basilar para a ideia de direitos inatos, superiores e
anteriores à sociedade e ao Estado. Assim, em contexto de
reivindicações políticas, inspirando-se nas doutrinas do Direito Natural,
é que foram dados os primeiros passos de afirmação dos direitos da
56
Em tradução livre: Divisão máxima, absoluta separação que constitui duas áreas
incomunicáveis.
57
GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às Constituições: Os
direitos fundamentais da personalidade, p. 63-64.
34
pessoa humana, na forma de direitos fundamentais proclamados pelas
declarações de direitos de independência norte-americana, em 1776, e
da Revolução Francesa, em 1789.
Durante o liberalismo, o Direito ocupava-se basicamente de
estipular garantias para que o domínio fosse exercitado sem ingerência
externa e que a transferência de riqueza pudesse ter livre curso
mediante a disciplina dos contratos.
Para Luiz Edson Fachin,
"os direitos fundamentais podem ter sua origem histórica em um
momento no qual se consolida uma ordem de idéias que enfatiza a
autonomia dos indivíduos frente ao Estado, com vistas a um
rompimento com a racionalidade que marcava o Estado absolutista.
Justificava-se a existência de direitos subjetivos a serem opostos
contra o poder estatal, que se colocava acima dos indivíduos, mas
que deveria sujeitar-se a limites." 58
No dizer de Gustavo Tepedino:
"A preocupação com a pessoa humana, surgida com as declarações
de direitos, a partir da necessidade de proteger o cidadão contra o
arbítrio do Estado totalitário, limitava-se, por isso mesmo, à tutela
conferida pelo direito público à integridade física e a outras garantias
políticas, não existindo nas relações de direito privado um sistema de
proteção fora dos limites dos tipos penais".59
Portanto, esse é o primeiro momento dos chamados direitos
58
FACHIN, Luiz Edson. Constituição e relações privadas, p. 237. Prossegue sua lição,
apontando que, nesse primeiro momento, os direitos fundamentais "eram exercidos contra
um ente que se colocava em posição de superioridade em relação aos titulares dos direitos,
a ele subordinado, mas que possuíam a garantia de um espaço de liberdade intangível
contra o Estado." (...) "Em tal contexto, os direitos fundamentais de primeira geração se
projetavam como liberdades públicas, no sentido de que eram exercidas frente ao Estado.
Constituíam, sobretudo, liberdades negativas, que implicavam deveres de omissão por
parte do Estado. Em outras palavras, as liberdades negativas são aí espaços de não
intervenção. É do exame dessas liberdades que se revela a edificação da clivagem público e
privado, uma vez que é precisamente no discurso dos direitos subjetivos que se
estabelecerá os limites de atuação do Estado".
59
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade..., p. 34.
35
humanos fundamentais que florescem no solo do Direito Público.
Porém, asseguradas a liberdade para estabelecimento de relações
jurídicas interprivadas, a individualidade em face da polis e a igualdade
formal, surgem no final do século XIX e no início do século XX vários
movimentos reivindicatórios, nos quais as doutrinas socialistas tiveram
grande repercussão.
Em um quadro de intensas desigualdades materiais, pobreza e
exclusão social, em razão do impacto da industrialização e dos grandes
problemas
sociais
e
econômicos
gerados,
as
necessidades
emancipatórias tornaram-se outras.60 Nesse contexto é que surge o
segundo momento dos direitos humanos fundamentais, timbrado pela
busca da igualdade material.
Os primeiros documentos históricos de referência dessa nova
etapa, contendo o discurso social da cidadania e emergência dos
direitos à atuação estatal de modo a garantir um mínimo necessário e
imprescindível para cada pessoa humana, são a Constituição mexicana
de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da
então República Soviética Russa de 1918 e a Constituição alemã de
Weimar de 191961, conformando um novo modelo de Estado, o Estado
Social, em contraste com o Estado Liberal até então vigente.
Em um movimento de acréscimo de funções, os direitos humanos
fundamentais apresentam, a partir de então, dupla dimensão: além da
60
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 55
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 139. José
Afonso da SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 160) refere-se ainda ao
Manifesto Comunista, elaborado por Marx e Engels e publicado em janeiro de 1848 como
plataforma da Liga Comunista, considerando-o o documento político mais importante na
crítica socialista ao regime liberal-burguês, posto que, a partir dele, essa critica
fundamentou-se em bases teóricas e em uma nova concepção da sociedade e do Estado,
provocando também o aparecimento de outras correntes e documentos, como as encíclicas
papais, a começar pela de Leão XII, Rerum Novarum, de 1891.
61
36
negativa (direito a não-interferência), a
positiva (prestacional).
Enquanto direitos de defesa (dimensão negativa), impõem deveres de
abstenção erga omnes.62 Seu conteúdo imediato é a resistência a uma
intervenção ou a exigência de que não haja intervenções por quem
quer que seja. Enquanto direitos prestacionais (dimensão positiva), eles
demandam a criação e estruturação de órgãos e procedimentos de
proteção e/ou promoção do estado de coisa almejado e, em alguns
casos, o fornecimento de bens ou serviços.
O terceiro momento é fruto do pós-guerra. Em razão dos
horrores produzidos pela Segunda Guerra Mundial, consolida-se um
novo humanismo, tendo com caminho escolhido a constitucionalização,
na seara interna de cada país, ao lado do direito internacional de
direitos humanos63. Eis uma demonstração eloquente do sofrimento
como matriz da compreensão do mundo e dos homens, consoante bem
colocado por Fábio Konder Comparato.64
A Carta italiana de 194765, a alemã (Lei Fundamental de Bonn) de
194966, a portuguesa de 197667 e a espanhola de 197868, fazem parte
desse movimento. Tais Estatutos tiveram marcante influência na
62
Tradução livre: universal, que vincula a todos.
Observa Flávia PIOVESAN (Direitos humanos e justiça internacional) que o direito
internacional dos direitos humanos se torna cada vez mais presente e atuante, quer no
sistema centralizado pela Organização das Nações Unidas, quer nos sistemas regionais
europeu, americano e africano.
64
COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos, p. 56.
65
A Constituição Italiana de 1947 proclama, entre os princípios fundamentais, que todos os
cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei.
66
A Lei Fundamental de Bonn enuncia em seu artigo 1º, I, que a dignidade do homem é
intangível; respeitá-la e protegê-la e obrigação de todos os poderes estatais.
67
A Constituição Portuguesa de 1976 estabelece em seu artigo 1º: "Portugal é uma
República soberana baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e na
vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária".
68
Em seu artigo 10, 1, reza que Constituição espanhola de 1978 que a dignidade da pessoa,
os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o
respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social.
63
37
elaboração da Constituição brasileira de 1988, que explicitou no seu
artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos
da República 69
No plano supranacional, o ser humano é colocado como o valor
mais importante a pautar os sistemas jurídicos internacionais e
nacionais.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada e
proclamada em 1948 pela ONU – Organização das Nações Unidas,
seguida pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelo
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos
de 1966, são os documentos que marcam o início dessa fase,
caracterizada pela busca da proteção e promoção da pessoa humana de
maneira integral e unitária.
Especificamente quanto ao direito à moradia, a sua previsão em
instrumentos de âmbito internacional tem como marco inicial a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, pela
Assembleia Geral da ONU – Organização das Nações Unidas, tendo o
Brasil como um dos seus signatários. Declaração essa que em seu artigo
25, § 1º, enuncia que
“toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si
e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
moradia, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”.
69
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana, p. 82-83. Ana Lucia de Lyra
TAVARES (A Constituição brasileira de 1988: Subsídios para os comparatistas), neste
particular aspecto, aponta a grande influência da Constituição portuguesa de 1976, da
Constituição espanhola de 1978, da Lei Fundamental alemã de 1946, além da Constituição
peruana de 1979 e dos textos internacionais como a Declaração dos Direitos do Homem de
1948 e dos Pactos Políticos e Sociais da ONU de 1966, na Constituinte 87/88 e na
Constituição brasileira de 1988, fruto de uma transição democrática sem ruptura
revolucionária e que procurou albergar as tendências do constitucionalismo democrático
social.
38
No Sistema Global de Proteção Internacional dos Direitos
Humanos capitaneado pela Organização das Nações Unidas, o principal
instrumento normativo que trata do direito à moradia, ratificado pelo
Brasil e por mais de 138 países, é o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 196670, que em seu artigo 11, § 1º,
se reconhece o direito de toda pessoa à moradia adequada e
comprometendo-se os Estados que dele tomaram parte a adotar as
medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito.
Obrigação esta cujo atendimento é monitorado pelo Comitê das Nações
Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Apesar de se trabalhar com instrumentos de soft law71,
adotando-se a sistemática da international accountability72, que se
opera por meio de apresentação de relatórios que são apreciados pelo
Comitê de Direitos Humanos além das comunicações interestatais em
que um Estado parte pode alegar que outro incorreu em violação dos
direitos humanos, tais mecanismos tem contribuído de forma
significativa para a promoção e proteção dos direitos humanos.73
Como bem coloca Sidney Guerra, a respeito do power of
embarrassement74, os constrangimentos gerados por uma condenação
política e moral na arena internacional criam uma via estratégica que
70
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, foi aprovado pelo
Congresso Nacional brasileiro, pelo Decreto Legislativo n. 226, de 1991, e pela Presidência
da República, pelo Decreto n. 591, de 1992.
71
Em tradução livre, normas leves, sem previsão de sanção coercitiva no caso de
descumprimento de seu preceito.
72
Em tradução livre: dever de transparência, de prestação de contas, para com a
comunidade internacional.
73
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 226-236.
74
Em tradução livre: poder de criar embaraço, constrangimento. Embora não exista sanção
no sentido jurídico, a condenação de um Estado no âmbito internacional pode ensejar
consequências no plano político, causando constrangimentos políticos e moral ao Estado
violador.
39
não pode ser desprezada para o fim de que os direitos humanos
venham a ser cada vez mais respeitados.75
Não se pode desconsiderar a força que têm a mera submissão de
um Estado ao monitoramento e ao controle da comunidade
internacional no que diz respeito a como são tratados, em seu
território, os direitos humanos. 76
No particular monitoramento das condições de moradia, a ONUHabitat tem desempenhando um papel relevante, recomendando
vários indicadores, vinculados à Meta n. 11 do 7º Objetivo de
Desenvolvimento do Milênio, com horizonte temporal para 2020, que é
de se alcançar uma melhora significativa na vida de pelos menos 100
milhões de habitantes de assentamentos precários, isto é, daqueles que
não têm acesso à água potável, esgotamento sanitário, segurança da
posse, durabilidade da moradia e/ou área suficientes para morar.77
75
GUERRA, Sidney. Direitos humanos na ordem jurídica internacional e seus reflexos na
ordem constitucional brasileira, p. 113..
76
Não obstante, é claro que o Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos ainda
pode ser aprimorado. Nesta linha, propõe Fábio Konder Comparato: “É indispensável
reforçar os poderes investigatórios da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas,
bem como criar, ao mesmo tempo, um tribunal internacional com ampla competência para
conhecer e julgar casos de violação desses direitos pelos Estados-Membros, nos moldes do
Estatuto de Roma de 1998, que instituiu o Tribunal Penal Internacional” (COMPARATO,
Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos, p. 541).
77
O Brasil, por exemplo, teve que responder em 2003, ao seguinte checklist (questionário) à
ONU-Habitat: 1. O país ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais? (Resposta: Sim) 2.a. A Constituição do país tem promovido a plena realização dos
direitos à moradia adequada? (Resposta: Sim) 2b. Se sim, menciona-se explictamente que
todas as pessoas fazem jus a este direito? (Resposta: Sim) 2.c. Se sim, menciona-se esse
direito a grupos específicos? (Resposta: Não) 2.d. Quais grupos específicos? (Resposta:
prejudicado) 3. Existe alguma legislação que afete diretamente o alcance do direito à
moradia? (Resposta: Sim). 4. A Constituição tem promovido o pleno e progressivo alcance
aplicado à moradia adequada? (Resposta: Sim). 5.a. Existem impedimentos para a
propriedade da terra pelas mulheres? (Resposta: Não). 5b. Existem impedimentos para a
propriedade de grupos específicos? (Resposta: Sim). 5.c. Quais grupos particulares?
(Resposta: Indígenas sob a tutela do Estado brasileiro). 6.a. Existem impedimentos para a
herança ou posse das terras às mulheres (Resposta: Não). 6.b. Existem impedimentos para
herança ou posse das terras a grupos específicos (Resposta: Sim). 6.c. Quais grupos
específicos? (Resposta: Indígenas sob a tutela do Estado brasileiro). (MORAIS, Maria da
40
Além do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, o Brasil também ratificou as Convenções sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), sobre os
Direitos das Crianças (1989), sobre o Estatuto dos Refugiados (1951),
sendo que todas elas reafirmam a censura de qualquer tipo de
discriminação – de gênero, raça (rectius, etnia), idade e nível
socioeconômico – com relação ao direito à moradia adequada.78
No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos – OEA, relacionamse diretamente com o direito à moradia, o artigo 1179 da Convenção
Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica80 e o
artigo 34, item k81 da Carta da Organização dos Estados Americanos82,
Piedade; GUIA, George Alex da; PAULA, Rubem de. Monitorando o direito à moradia no
Brasil (1992-2004), p. 235).
78
Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial",
artigo 5º, e, iii (ratificada pelo Brasil em 27.03.1968 e promulgada pelo Decreto 65.810, de
08.12.1969); Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher, artigo 14.2 (h) (ratificada pelo Brasil em 01.02.1984 e
promulgada pelo Decreto 4.377, de 13.09.2002); Convenção sobre os direitos das crianças,
artigo 27, item 1 e item 3 (ratificada pelo Brasil em 24.09.1990, aprovada pelo Decreto
Legislativo 28, de 14.09.1990 e promulgada pelo Decreto 99.710 de 21.11.90). Convenção
relativa ao Estatuto dos Refugiados, artigo 10 e artigo 21 (promulgado no Brasil pelo
Decreto 50.215, de 28.01.1961).
79
"Art. 11. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento da sua
dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida
privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas
ilegais à sua honra ou reputação.3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
ingerências ou tais ofensas".
80
Ratificado pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, tendo sido aprovado pelo Decreto
Legislativo de 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo Decreto 678 de 06 de novembro
de 1992.
81
“Art. 34. Os Estados membros convêm em que a igualdade de oportunidades, a
eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza e da renda, bem como a
plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento,
são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los convém
da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à consecução das seguintes metas
básicas: (...) k) habitação adequada para todos os setores da população(...)".
82
Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 63, de 07 de dezembro de 1949.
41
Explicitada a vereda do Direito Público, um dos caminhos que
levam à contemporânea proteção jurídica da moradia no âmbito do
Estado brasileiro, iluminado pela construção dogmática e positivação
dos direitos humanos fundamentais, cumpre abordar a outra senda,
que por muito tempo, em razão da summa divisio, teve que seguir em
paralelo: a rota dos direitos da personalidade, edificada no campo do
Direito Privado.
1.3.2. O caminho do Direito Privado
O início da edificação dos direitos atinentes à tutela da pessoa
humana, considerados essenciais à proteção de sua dignidade e
integridade, sob a denominação de direitos da personalidade, é
relativamente recente83, surgindo somente no século XIX, a partir da
elaboração das doutrinas francesa e alemã84.
83
Sem embargo daqueles que vislumbram uma proteção da personalidade na antiga actio
iniuriarum romana, ação contra a injúria que, no espírito prático dos romanos, abrangia
qualquer atentado à pessoa física ou moral do cidadão, hoje associado à tutela da
personalidade humana (TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento
civil-constitucional brasileiro, p. 26). Neste sentido, Rita de Cássia Curvo LEITE (Os direitos
da personalidade, p. 152), indica os ensinamentos do professor espanhol José Castan
Tobeñas, que defende que já em épocas antigas são encontradas manifestações, embora
isoladas, de proteção da personalidade individual, punindo-se, severamente, ofensas físicas
e morais, através das ações dike kakegoric dos gregos e da actio injuriarum dos romanos,
esta última prevista na Lex Duodecim Tabularum. Todavia, a consciência ôntica e ética do
homem como personalidade é algo desconhecido no mundo antigo greco-romano. Na
Antiguidade, sobretudo entre os gregos, a essência do homem encontrava-se na
humanitas, no ser político, no viver politicamente. O homem para a filosofia grega era um
animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer
ao Estado (MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 45). E, note-se, um
conceito de cidadania bastante restrito, pois excluía as mulheres, os escravos. Enfim,
cidadão era o chefe de família, que tinha terras e escravos, e, por isso, tempo para
participar da vida pública.
84
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código
Civil interpretado conforme a Constituição da República, p. 32-34. FACHIN, Luiz Edson.
42
Na observação de José Antônio Peres Gediel e Rosalice Fidalgo
Pinheiro85, a tutela setorizada pessoa não permitiu às codificações civis
a imediata transposição daquilo que já estava proclamado no âmbito do
Direito Público pelas grandes declarações de direitos. Levando em conta
que o Código Civil tinha o caráter de "Constituição do homem privado",
isso se revelou um problema porque, no âmbito do Direito Público, a
proteção à pessoa humana em face de atentados perpetrados por
particulares se dava exclusivamente ou quase que exclusivamente no
campo do Direito Penal, insuficiente, não só em razão de a resposta
penal limitar-se àquelas condutas que correspondesse com precisão aos
tipos criminais previamente estabelecidos pela legislação, mas também
porque, em se tratando de personalidade, o primordial não é punir
aviltamentos já consumados, mas, sobretudo, impedir ofensas.86
Inicialmente, a tutela do ser, através dos direitos da
personalidade, sofreu grandes resistências no campo do Direito
Privado. É que, na esteira do Código Napoleão, inspiradas pelo
liberalismo e pelo individualismo, as codificações civis do século XIX e
início do século XX, dentre as quais se insere o Código Civil brasileiro de
1916, foram formatadas para prestar primordialmente salvaguarda
patrimonial, tendo como instrumentos técnicos, desenvolvidos e
aprimorados pela Pandectista alemã, os conceitos operacionais de
relação jurídica e de direitos subjetivos. Esses conceitos operacionais
apresentam como ponto de ancoragem a noção abstrata de sujeitos de
Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da
personalidade no Código Civil brasileiro, p. 43.
85
GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às Constituições: Os
direitos fundamentais da personalidade, p. 64.
86
A mesma crítica de extemporaneidade da tutela penal é cabível em relação à tutela cível
pós-danos morais, mediante indenização em pecúnia, uma das primeiras respostas dadas
pelo Direito Privado para as ofensas à personalidade.
43
direitos supostamente iguais entre si e traduzem técnica forjada pela a
proteção do ter, garantindo a propriedade e a circulação de riquezas
materiais.87
Com efeito, consoante aponta Jussara Meirelles88, manifesta-se
translúcido que em
"um sistema assente na estrutura formal da relação jurídica, as
pessoa são consideradas sujeitos, não porque reconhecidas a sua
natureza humana e a sua dignidade, mas na medida em que a lei lhes
atribui faculdades ou obrigações de agir, delimitando o exercício de
poderes ou exigindo o cumprimento de deveres. (...) Importa
observar que essa inclusão da pessoa humana no conceito formal e
abstrato de sujeito da relação jurídica faz nivelá-la às pessoas
jurídicas as quais, face tão-somente a razões de ordem técnicacientífica, são também qualificadas de sujeitos de relações jurídicas".
Enfim, há um "claro desprestígio da pessoa humana, reduzida a
simples elemento da relação jurídica", sendo que, ademais, na
"concepção clássica do Direito Privado, a pessoa humana é valorizada
pelo que tem e não por sua dignidade como tal'."
Estruturadas as codificações civis para assegurar tutela ao
patrimônio e o trânsito de riquezas, com base na técnica da relação
jurídica que tinha por objeto um bem material, e estando reduza a
personalidade à mera capacidade jurídica (de figurar num dos polos da
relação
jurídica
substancial
tal
qual
a
pessoa
jurídica),
o
reconhecimento da categoria dos direitos da personalidade sofreu
grande resistência de duas frentes. De um lado a oposição atacava que
o discurso humanista era jusnaturalista e, a perspectiva inaugurada pela
87
Por isso, como bem apontado por Luiz Edson FACHIN (Constituição e relações privadas,
p. 243-244), mais cedo ou mais tarde, a abstração do sujeito, colocado como mero
elemento da relação jurídica, ao lado do objeto, do vínculo de atributividade e do fato
propulsor, colocado como elemento unificador do sistema, implicará um crise de
legitimação de um Direito que se afasta da realidade concreta, sem ter olhos para as
desigualdades concretas e para a exclusão daqueles que não se inserem no modelo jurídico
de proprietários.
88
MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira, p. 89-90 e 94-95.
44
Escola Histórica alemã e pelo positivismo jurídico oitocentista era
contra a toda e qualquer fundamentação metafísica no campo do
Direito. Por outro, vários juristas, com destaque para Savigny89 e
Jellinek90, compuseram a tese negativista dos direitos da personalidade,
sustentando, como argumento contrário, que haveria uma contradição
lógica em a pessoa ser, ao mesmo tempo, titular e objeto de um direito
subjetivo.91
Em face dessas críticas, para transpô-las, num primeiro momento
é retomado o conceito do ius in se ipsum.92 O direito à própria pessoa
foi o modo encontrado para acomodar dogmaticamente a tutela da
personalidade aos argumentos contrários. Por este olhar, a proteção
jurídica dos bens essenciais à pessoa humana enquanto tal não se daria
propriamente na forma de direitos subjetivos, mas como meros efeitos
reflexos do direito objetivo, o qual reagiria contra a injusta lesão a
determinados
aspectos
da
personalidade,
via
mecanismo
da
responsabilidade civil. 93
Essa construção teórica, com o claro propósito de driblar as
ofensivas dos negativistas, ainda confunde a personalidade como
capacidade para ser titular de relações jurídicas e a personalidade como
um conjunto de atributos à pessoa humana, objeto de proteção pelo
89
Savigny sustentava que a admissão dos direitos da personalidade levaria à legitimação do
suicídio ou à automutilação.
90
Jellinek objetou à adoção da categoria dos direitos da personalidade sob o argumento de
que a vida, a saúde, a honra não se enquadram na categoria do ter, mas do ser, o que os
tornariam incompatíveis com a noção de direitos subjetivos, predispostos à tutela das
relações patrimoniais.
91
GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às constituições, p.
64. TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional
brasileiro, p. 27. FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional
da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 44.
92
Em tradução livre: direito de dispor livremente de si.
93
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional
brasileiro, p. 29.
45
ordenamento jurídico.94
O segundo momento relevante desse processo de progressivo
reconhecimento dos direitos da personalidade enfrenta a crítica à
premissa das teorias negativistas mediante esclarecimento de que a
alegada contradição lógica de que o sujeito de direito não pode ser, ao
mesmo tempo, seu objeto, somente ocorre ao se considerar a
personalidade como subjetividade jurídica, isto é, como capacidade de
ter direitos e obrigações. Ao se tomar consciência de que personalidade
tem uma segunda dimensão - a de conjunto de atributos da pessoa
humana, inerentes e indispensáveis ao seu livre desenvolvimento e ao
resguardo da sua eminente dignidade – a crítica perde força.
Vista por este segundo ângulo, como um conjunto de atributos
essenciais, a personalidade é considerada como um valor, constituindose um bem jurídico em si mesmo, digno de tutela privilegiada, podendo,
sem qualquer incongruência lógica, ser objeto de direitos subjetivos
oponíveis erga omnes95: os direitos da personalidade.96
No campo teórico o problema estava resolvido. Cumpria, porém,
buscar o reconhecimento normativo à luz dos textos positivados.
Em França, na falta de uma referência expressa aos direitos da
personalidade no Código Napoleão, seus intérpretes buscaram o
reconhecimento normativo dessa figura no dispositivo do artigo 1.382,
referente à responsabilidade por atos ilícitos.
É claramente insuficiente essa tutela repressiva e patrimonial a
bens jurídicos atinentes à esfera do ser, cuja lesão não encontra
94
GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às constituições, p.
64.
95
Em tradução livre: em face de todos.
96
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional
brasileiro, p. 28-29.
46
equivalência exata no quantum da indenização, exercendo mera função
de lenitivo do sofrimento (satisfação compensatória) juntamente com
uma função punitiva do ofensor.97 Porém, dentro do contexto histórico,
ela representou um inegável avanço no sentido de contribuir para a
consolidação do reconhecimento dos direitos da personalidade.
Seguindo a linha francesa, na Alemanha, deu-se um passo além.
O BGB98 acolheu em seu § 823 a obrigação de indenizar nos casos de
lesão à vida, à integridade corporal, à saúde e à liberdade, com o que se
entenderam tipificados os direitos da personalidade à vida, à
integridade física, à saúde e à liberdade.
Na observação de José Antônio Peres Gediel e Rosalice Fidalgo
Pinheiro, esses esforços doutrinários para encontrar o objeto dos
direitos da personalidade fora de seu titular e de encerrar sua tutela na
responsabilidade civil demonstram a insuficiência da moldura do direito
subjetivo (técnica construída para os direitos patrimoniais) para
sustentar esses direitos.99
O terceiro momento relevante do processo de reconhecimento
da tutela jurídica à personalidade humana no campo do Direito Privado
se dá pela defesa de um direito geral da personalidade em um
ambiente de embates entre teorias pluralistas e monistas, e, por
consequência, entre a técnica da tipificação e a da cláusula geral.
O ponto frágil da adoção exclusiva da técnica da tipificação é o
reconhecimento de um número limitado de direitos da personalidade,
e, por conseguinte, dos bens tidos por essenciais à pessoa humana, que
pode ensejar uma proteção jurídica insuficiente, em razão dos avanços
97
REIS, Clayton. Avaliação do dano moral, p. 121-138.
Bürgerliches Gesetzbuch, Código Civil Alemão de 1900.
99
GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às constituições, p.
64-65.
98
47
da técnica e das formas de aviltamento da dignidade humana. Assim,
melhor é a adoção de um sistema dual, que conjugue a técnica de
proteção aos direitos legalmente tipificados (à vida, à integridade física,
à liberdade, ao nome, etc.) com um direito geral da personalidade.
Não se despreza a importância dos direitos típicos da
personalidade, porque eles, como bem colocado por Pedro Pais de
Vasconcelos,100 são formatados pelo legislador a partir das feridas que
são repetidamente infligidas à dignidade das pessoas, são as cicatrizes
dessas feridas, correspondendo a uma "memória do sistema". Sem se
conformar a essas ofensas, mais rotineiras, o legislador vai construindo
regimes específicos/típicos de defesa e de reação contra elas. Porém,
deve-se evitar que o método da tipicidade gere exclusões, deixando
sem tutela jurídica, todas as situações da vida que não se adaptem às
molduras disponíveis. Daí a importância de se complementar a tutela
típica com a técnica da cláusula geral.
Em um sistema de relacionamento harmônico entre direitos de
personalidade típicos e um direito geral (ou cláusula geral) de proteção
à dignidade da pessoa humana, os direitos tipificados não são
apresentados como numerus clausus (rol fechado/exaustivo), mas como
enumeração
exemplificativa (numerus apertus).
São
os
casos
paradigmáticos de tutela da personalidade, correspondente a situações
especialmente exemplares e elucidativas. As lacunas são colmatadas ou
preenchidas pelo direito geral, evitando que fiquem sem proteção as
novas lesões da personalidade que o avanço da técnica e a criatividade
100
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade, p. 65-66. Para este autor, há
um único direito da personalidade. Os chamados "direitos especiais da personalidade" não
seriam direitos subjetivos autônomos, mas poderes que integram o direito subjetivo da
personalidade. Todos esses poderes se agregariam num conjunto coerente, unificado pelo
fim comum de defesa da dignidade do seu titular (obra citada, p. 67).
48
da maldade humana propiciam.
1.3.3. A confluência na constitucionalização
O encontro do caminho do Direito Público e do Direito Privado se
dá a partir da inserção da tutela da pessoal humana em sede
constitucional.
Maria Celina Bodin de Moraes101 aponta que a Alemanha foi o
primeiro pais de tradição continental a seguir o caminho da
constitucionalização do Direito Civil por meio do papel desempenhado
por sua Corte Constitucional como guardiã dos direitos fundamentais
dos indivíduos contra agressões provenientes tanto do Poder Público
como de particulares.
Na órbita da jurisprudência germânica, merece referência o
considerado leading case sobre o tema, ocorrido em 1950: o Caso Lüth
(BVerGE 7, 198), em cuja decisão deixou o Tribunal assentado três
preceitos basilares, quais sejam: 1) que os direitos fundamentais não
valem apenas nas relações entre o Estado e o(s) cidadão(s), mas
também nas relações entre particulares, posto que são onipresentes
em todos os "ramos do Direito"; 2) que os direitos fundamentais têm a
estrutura de princípios, no sentido de que sua aplicação exige
ponderação com outros princípios com ele colidentes; 3) que é próprio
da estrutura normativa dos direitos fundamentais a propensão para
colidir, tendo esta colisão que ser solucionada pela via da
101
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico
e conteúdo normativo, p. 107-109
49
ponderação.102
Merece menção também o "Caso Springer/Blinkfüer", julgado em
26 de fevereiro de 1969 pelo Tribunal Constitucional alemão, que
também reconheceu que direito
fundamental garantido
pela
Constituição alemã aplica-se, por igual, às relações sociais e econômicas
públicas e privadas.103
A importância desses precedentes é o seu caráter de inovação.
Antes deles, entendia-se que uma lide entre particulares só poderia ser
resolvida pelo Direito Privado e, no âmbito deste, os direitos
fundamentais
não
tinham qualquer
importância.
Outrora, na
interpretação e aplicação de uma norma civilista, a Carta Magna não
desempenhava papel algum, destaca Maria Celina Bodin de Moraes.104
O encontro dos direitos da personalidade com os direitos
humanos fundamentais na Alemanha ocorreu para fortaleceu e
consolidar a construção jurisprudencial a respeito da coexistência de
um direito geral da personalidade com vários direitos especiais/típicos.
Tal edificação jurisprudencial mostrou-se imprescindível em razão do
BGB105 não prever um direito geral da personalidade, mas apenas as
disposições do § 12, sobre direito ao nome, e o § 823, sobre a
102
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 106-108; BARCELOS, Ana Paula de.
Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 84-85; CANARIS, Claus-Wilhelm. A
influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, p. 227;
MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, p. 75-77; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais, p. 61; STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos
fundamentais, p. 105, 139, 146-147; UBILLOS, Juan Maria Bilbao. ¿En qué medida vinculan
a los particulares los derechos fundamentales, p. 315).
103
MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, p. 83; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Aplicação dos direitos fundamentais
às relações privadas, p. 44.
104
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana, p. 107-109.
105
Bürgerliches Gesetzbuch, Código Civil Alemão de 1900.
50
responsabilidade civil emergente da lesão, dolosa ou negligente, à vida,
ao corpo, à saúde, à liberdade, à propriedade ou outro direito de uma
pessoa.
Assim, considerada apenas a legislação civil, se, por um lado, não
havia dúvida de que estavam legalmente tipificados os direitos à vida, à
integridade física, à liberdade e ao nome, de outro, não havia segurança
de que outros aspectos da personalidade estariam juridicamente
protegidos.
Então, no pós-guerra, com o advento da Grundgesetz – Lei
Fundamental de Bonn –
consagrando no seu § 1 do Texto
Constitucional, a dignidade das pessoas, e, no § 2, o livre
desenvolvimento da personalidade, tornou-se possível buscar a tutela
da pessoa humana com embasamento em normas constitucionais.
Assim, via conjugação dos mencionados preceitos constitucionais
com
os
que
já
constavam
no
BGB,
foi
se
construindo
jurisprudencialmente um sistema dual, reconhecendo-se um direito
geral da personalidade para além dos direitos típicos.
Neste sistema, o direito geral da personalidade é um direito-fonte
do qual irão se separando, novos direitos especiais, logo que se forem
tornando necessários.106
O reconhecimento de uma cláusula geral de proteção à
personalidade no Direito Alemão veio na esteira da discussão sobre a
incidência dos direitos fundamentais/normas constitucionais nas
relações entre particulares. Salienta-se, neste contexto, o debate entre
duas vertentes teóricas: a teoria da eficácia mediata (ou indireta) e a
teoria de eficácia imediata (ou direta).
106
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade, p. 61-62. GEDIEL, José Antônio
Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos Códigos às Constituições, p. 68.
51
A teoria da eficácia mediata (ou indireta) foi formulada
inicialmente por Güther Dürin, defendendo que a eficácia das normas
constitucionais nas relações entre particulares dependiam de
disposições da legislação infraconstitucional.
Já a teoria da eficácia imediata ou direta, formulada por Hans Carl
Nipperdey, e adotada pioneiramente pela 1ª Câmara do Tribunal
Federal do Trabalho da Alemanha, entendia que os direitos
fundamentais não visam somente garantir liberdades em face do
Estado, mas também estabelecer as bases essenciais da vida social,
incidindo nas relações entre particulares independentemente de
interpositio legislatoris; o alcance dessa eficácia seria determinado no
caso concreto, enquanto problema de colisão entre direitos
fundamentais, mediante a ponderação dos interesses ou interesses
constitucionalmente protegidos que estivessem em jogo.107
Prevaleceu, na Corte Constitucional alemã, a teoria da eficácia
imediata ou direta das normas constitucionais garantidoras dos direitos
fundamentais.
A jurisprudência italiana seguiu os passos da jurisprudência
alemã, reconhecendo também um direito geral da personalidade
também com lastro em normas constitucionais: as dos artigos 2º e 3º
da Constituição italiana de 1947 que proclamavam os direitos
invioláveis do homem e o pleno desenvolvimento da pessoa humana.108
Portugal adota também esse sistema dual, mas sem demandar
maior esforço de construção jurisprudencial ou necessidade de
invocação de normas constitucionais, vez que o Código Civil português
107
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 136-143 e
164-175.
108
GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos Códigos às Constituições,
p. 68.
52
trata de maneira expressa primeiro da tutela geral da personalidade
(artigo 70º) e, depois, dos direitos especiais de personalidade (artigos
72º a 80º).109 Não obstante, é possível o reforço da tutela da
personalidade com normas de mais elevado nível hierárquico, vez que o
Texto Constitucional português de 1976 prevê no seu artigo 1º que a
dignidade da pessoa humana é a base da República portuguesa,
empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o
que ganha reforço com o artigo 18 que estabelece que os preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
No Brasil, a ordem jurídica instaurada em 05 de outubro de 1988
apresenta o melhor arcabouço de textos normativos de sua história
para a proteção dos direitos da personalidade a partir desse sistema
dual – direitos típicos ao lado de um direito geral da personalidade.
Exemplificativamente, pode-se mencionar, como fonte de direitos
típicos, o artigo 5º, X, da Constituição, segundo o qual "são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado
o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação"; as disposições dos artigos 11 a 21 da Lei n. 10.406, de 10 de
janeiro de 2002 – Código Civil – enunciando proteção aos direitos à
109
VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade, p. 63. STJ 27.VI.95, BMJ 448,
378: I – A ordem jurídica portuguesa reconhece, designadamente através do artigo 70º do
Código Civil, o direito geral de personalidade, compreendendo, complexivamente, a
personalidade física e moral. – Além disso, quanto à aplicabilidade das normas/direitos
constitucionais nas relações privadas, a Constituição Portuguesa alberga dispositivo cujo
texto contribui muito para evitar controvérsias: o inciso 1 do artigo 18, que deixa claro que
os direitos, liberdades e garantias fundamentais vinculam o poder público e as entidades
privas, demonstrando inequivocamente a opção do ordenamento jurídico lusitano pela
eficácia direta e imediata dos preceitos constitucionais nas relações interprivadas
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 421-422 e 1204-1214;
MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, p. 122-125).
53
integridade física, ao nome, à honra, à imagem e à privacidade110, e,
funcionando como cláusula geral111 (ou direito geral) de proteção à
personalidade, embasada na interpretação sistemática a partir das
disposições do artigo 1º, III, artigo 3º e seus incisos, e artigo 5º, § 2º do
Texto Maior.
O ponto central é a proclamação da dignidade humana entre os
princípios fundamentais da Constituição brasileira de 1988.
Esclarecimento terminológico que precisa ser feito neste
momento da exposição diz respeito ao vários sentidos/significados que
pode ter a dicotomia regras/princípios, espécies normativas. A
explicação é importante porque o conteúdo do conceito de princípio e
de regra (e a distinção entre ambos) variam de acordo com os critérios
adotados, razão pela qual o intérprete deve prestar atenção para
perceber em que sentido os termos princípios e regras estão sendo
utilizados.
Etimologicamente, a palavra princípio vem do latim principium,
dando a ideia tanto de começo, início, origem, ponto de partida, como
de verdade primeira que serve de fundamento ou base para algo. No
campo do Direito, contudo, é adotada com vários significados,
conforme o critério seguido para distingui-la da palavra regra. A saber:
a) o da fundamentalidade: princípios são os mandamentos
nucleares do sistema jurídico e, por isso, as regras devem estar
110
Luciano de Souza GODOY critica o fato de o legislador ter deixado de dar um passo
adiante no Código Civil de 2002, fazendo a previsão dos direitos da personalidade por tipos,
deixando de prever a proteção da personalidade por meio de uma cláusula geral (O direito
à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 52). Não obstante, a ausência de uma
cláusula geral na legislação infraconstitucional não causa prejuízos ao se considerar que ela
está contemplada em norma de hierarquia normativa superior – o artigo 1º, III, da
Constituição – aplicável direta e imediatamente sobre todos os ramos do direito, inclusive
sobre os campos de incidência do Código Civil.
111
Cláusula geral que assegura maleabilidade/versatibilidade de aplicação a situações novas
e complexas não previstas tipificadamente pelo legislador.
54
em consonância com os princípios; nesse sentido, a doutrina de
Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a
lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico”112;
e de Antônio Carlos Efing:
“Dentro da atual racionalidade constitucional, princípio é
fundamento, núcleo de condensação de bens e valores
constitucionais, alicerce, base do sistema normativo, é fonte primeira
e maior, é diretriz de interpretação, é elemento integrador do
sistema jurídico, e o mais relevante, princípio é norma vinculante”.113
b) o do grau de generalidade e abstração: princípios são normas
com alta carga de abstração e generalidade; regras são normas
mais concretas e específicas;
c) o da hierarquia: o critério da hierarquia decorre do critério da
fundamentalidade: os princípios são considerados normas
superiores dentro do ordenamento jurídico em comparação com
as regras);
d) o estrutural segundo a teoria de Robert Alexy: princípios são
normas que prescrevem mandados de otimização, são
mandamentos de otimização, podendo o preceito ser cumprido
em diversos graus de intensidade, de acordo com as
possibilidades fáticas e jurídicas existentes; os princípios
identificando valores a serem preservados ou fins a serem
alcançados em graus variáveis, por isso, os princípios convivem de
maneira integrada, inter-relacionada e harmônica com outros
112
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 902.
EFING, Antônio Carlos; INOMATA, Adriana; ROCHA, Ana Cláudia Loyola da; BOURGES,
Fernanda Schuhli; DIEHL, Liliana Orth; SCATTOLIN, Rossana. O conceito de consumidor, p.
17.
113
55
princípios em sentido opostos, impondo limites recíprocos; já as
regras tem estrutura normativa mais concreta, na medida em que
especificam os atos que devem ser praticados para o
cumprimento adequado da norma, logo, as regras são
mandamentos definitivos que se aplicam por subsunção, no
modelo tudo-ou-nada (all-or-nothing). Como, no modelo de
Alexy, o critério para distinguir princípios e regras é estrutural,
sem levar em conta a fundamentalidade, nem a generalidade,
nem a abstração, tem-se que normas tradicionalmente
classificadas como princípios, como a anterioridade da lei penal,
seriam regras segundo o critério proposto pelo mencionado
jurista alemão.114
Ao se proclamar, no Texto Normativo Maior, a dignidade da
pessoa humana entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor
de supremo alicerce da ordem jurídica, tem-se que o valor da dignidade
e os direitos humanos fundamentais que lhe são corolários alcançam
todos os setores da ordem jurídica, vinculando não apenas as condutas
dos agentes públicos, no âmbito do Legislativo, do Executivo ou do
Judiciário, mas também os atores privados, em toda e qualquer de suas
relações intersubjetivas, merecedoras de proteção estatal se e na
medida em que atendam à cláusula geral de proteção à pessoa
humana.
No contexto em tela, a palavra princípio, para se referir à norma
jurídica constitucional de proteção geral à dignidade humana, é
empregada seguindo o critério da fundamentalidade e da hierarquia.
Quando do estudo da exigibilidade, a palavra princípio será usada no
sentido dado por Alexy, como mandamento de otimização, sendo que,
114
BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes. O conceito de princípio: uma questão de critério;
SILVA, Virgílio Afonso da Silva. A constitucionalização do Direito; SILVA, Virgílio Afonso da
Silva. Direitos fundamentais. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
56
na ocasião, será feito o pertinente alerta.
Seguindo no raciocínio, cumpre invocar Luiz Edson Fachin115, que
observa que a dignidade da pessoa humana, como princípio
fundamental, é um valor que foi edificado ao longo da evolução
histórica da humanidade. Contemporaneamente, a dignidade da pessoa
humana é compreendida como princípio fundamental do qual todos os
demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas. Sua
validade e eficácia, como norma que foi elevada acima das demais
regras e princípios não derivaram de algum direito ideal constituído
previamente ao ordenamento jurídico e que foi válido perenemente. Ao
contrário, decorreram da necessidade própria da integração e proteção
da dignidade humana nos sistemas normativos.
A Constituição brasileira enuncia em seu artigo 1º, III, como
princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a dignidade da
pessoa humana, estabelecendo uma cláusula geral de tutela à
personalidade. Interpretando o impacto da positivação desse princípio,
Gustavo Tepedino116 ensina que o indivíduo, elemento subjetivo basilar
e neutro deu lugar à pessoa humana, para cuja promoção se volta a
ordem jurídica como um todo. Em outro trabalho, argumentou referido
jurista que:
"A proteção constitucional da pessoa humana supera a setorização
da tutela jurídica. Não há mais razão plausível para se distinguir entre
os direitos humanos, no âmbito do direito público, e os chamados
direitos da personalidade, na órbita do direito privado, bem como a
tipificação de situações previamente estipuladas, nas quais pudesse
incidir o ordenamento. No que tange especificamente à proteção da
pessoa humana, mantém-se despercebida, as mais das vezes, pelos
civilistas, a cláusula geral de tutela fixada pela Constituição, nos arts.
115
FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina
dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 49.
116
TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana, p. 340-342.
57
1º, inc. III, 3º, inc. III, e 5º, § 2º, à qual se agrega o § 3º, recémintroduzido, no sentido de se promover a dignidade
independentemente dos confins do direito público e do direito
privado. Com efeito, a escolha da dignidade humana, como
fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de
erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das
desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º,
no sentido da não-exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo
que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados
pelo Texto Maior, configura verdadeira cláusula geral de tutela e
promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo
ordenamento." 117
A pessoa humana, portanto, e não mais o sujeito de direito
neutro, anônimo e titular de patrimônio, é que importa. O indivíduo
qualificado na concreta relação jurídica em se insere, de acordo com o
valor social da sua atividade, sendo protegido pelo ordenamento
jurídico segundo o grau de sua vulnerabilidade. Isso se dá por efeito da
dignidade da pessoa humana constituir cláusula geral remodeladora das
estruturas e da dogmática do Direito. Por conseguinte, opera-se a
funcionalização das situações jurídicas patrimoniais às existenciais,
realizando processo de verdadeira inclusão social, com a ascensão à
realidade normativa de interesses coletivos, direitos da personalidade e
renovadas situações jurídicas existenciais, desprovidas de titularidades
patrimoniais, independentemente destas ou mesmo em detrimento
destas.
Enfim, ao encontrarem-se os caminhos do Direito Público
(direitos humanos fundamentais) e do Direito Privado (direitos da
personalidade) no constitucionalismo do século XX e do século XXI,
consolida-se uma tutela integral da pessoa humana a partir do
117
TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento
jurídico brasileiro: sua eficácia nas relações privadas, p. 25-26.
58
reconhecimento da normatividade dos preceitos constitucionais que
dizem respeito aos direitos, liberdades e garantias fundamentais,
incidentes em todos os "ramos" ou "setores" do cenário jurídico, nas
relações Estado-cidadão ou nas relações interprivadas.
Superada a rígida divisão, o que se tem, em verdade, são dois
olhares, duas perspectivas sobre o mesmo fenômeno. Na observação
de Gustavo Tepedino, os direitos humanos, entendidos como direitos
essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando se deseja
proteção contra as arbitrariedades do Estado são, em princípio, os
mesmos da personalidade, porém sob o ângulo do Direito Privado, ou
seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente
aos atentados perpetrados por outras pessoas.118
Assim, o direito à moradia é caracterizado na atualidade tanto
como direito da personalidade e como direito humano fundamental,
posto que essencial para a proteção da própria existência física e, para
além dela, uma existência com um mínimo de dignidade.
Nessa direção, a colocação de Ingo Wolfgang Sarlet119 de que:
"sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família
contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e
privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um
mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá
assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por
vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física,
e, portanto, o seu direito à vida. Aliás, não é por outra razão que o
direito à moradia tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim
designados direitos de subsistência, como expressão mínima do
118
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional
brasileiro, p. 35. Ou, consoante assevera Luciano de Souza GODOY, Luciano de Souza (O
direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 55-56): "Em virtude da formulação
da ideia da cláusula geral de proteção da personalidade, hoje em dia, os direitos humanos
fundamentais tendem a ser considerados direitos da personalidade e vice-versa".
119
SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua
dimensão negativa (defensiva): Análise crítica à luz de alguns exemplos, p. 1025.
59
próprio direito à vida e, nesta perspectiva (bem como em função de
sua vinculação com a dignidade da pessoa humana) é sustentada a
sua inclusão no rol dos direitos da personalidade."
Portanto, resta demonstrado que, no âmbito do Direito Privado, a
proteção da moradia, juntamente com outros bens essenciais à
dignidade da pessoa humana, foi sendo paulatinamente construída
como direito da personalidade e, no campo do Direito Público, como
direito humano fundamental e que, atualmente, essas duas veredas se
reúnem120 como expressão de uma tutela integral da pessoa humana de
matriz constitucional121 que, do topo da hierarquia normativa, irradia
seus efeitos a todos os setores do ordenamento jurídico, cobrindo
todas as dimensões funcionais e todos os conteúdos que esse direito
possa apresentar em determinada situação concreta.
E é a partir dessa perspectiva que o direito humano fundamental
à moradia deve ser compreendido, protegido e fomentado.
120
Trata-se, em verdade, de dois olhares, de duas perspectivas sobre o mesmo fenômeno.
Consoante assevera Luciano de Souza GODOY (O direito à moradia e o contrato de mútuo
imobiliário, p. 55-56): "Em virtude da formulação da ideia da cláusula geral de proteção da
personalidade, hoje em dia, os direitos humanos fundamentais tendem a ser considerados
direitos da personalidade e vice-versa". Ou, na observação de Gustavo TEPEDINO (A tutela
da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 35), os direitos
humanos, entendidos como direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público,
quando se deseja proteção contra as arbitrariedades do Estado são, em princípio, os
mesmos da personalidade, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre
particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras
pessoas.
121
Na colocação de Rafael Garcia RODRIGUES (A pessoa e o ser humano no novo Código
Civil, p. 33), tem-se que com o reconhecimento da pessoa como valor central e unitário do
ordenamento jurídico, a tradicional dicotomia público/privado perde espaço, ampliando-se
a tutela da pessoa humana, extrapolando as relações entre indivíduo e Estado para alcançar
todas as relações privadas. É que a proteção do ser humano não é tarefa exclusiva do
Estado, senão de toda a sociedade e em todas as esferas de atuação do indivíduo.
60
1.4. A POSITIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À
MORADIA: DESDE QUANDO?
Não foi aprovado dispositivo que constava no anteprojeto de
Constituição versando expressamente do direito à moradia. Trata-se do
artigo 386 do anteprojeto de Constituição elaborado pela Comissão de
Estudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos, 1986), de seguinte
teor:
"É garantido a todos o direito, para si e para sua família, de moradia
digna e adequada, que lhe preserve a sua segurança, a intimidade
pessoal e familiar".
Diante da não inserção no Texto Maior promulgado em 05 de
outubro de 1988 do artigo 386 do anteprojeto da Comissão Afonso
Arinos surge a primeira indagação relevante: Seria esse um indicativo
de que a moradia não é foi contemplada como um direito humano
fundamental no Texto originário da nova Constituição brasileira? 122
Tal dúvida é potencializada com a edição da Emenda
Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, por força da qual o
direito à moradia foi expressamente elencado no artigo 6º, no rol dos
direitos sociais, ao lado da educação, da saúde, do trabalho, do lazer, da
segurança, da previdência social, da proteção à maternidade e à
infância e da assistência aos desamparados.
Ocorre que a proteção jurídica à moradia a partir do topo da
hierarquia normativa – a Constituição – não demanda a existência de
um dispositivo expresso específico. Isto porque proteger e promover o
acesso à moradia digna para todos é algo que se impõe ao Poder
Público e aos atores jurídicos privados em razão da República do Brasil
122
PANSIERI, Flávio. Do conteúdo à fundamentalidade do direito à moradia, p. 113.
61
estar assentada na dignidade da pessoa humana e ter por meta a
construção de uma sociedade justa, livre e solidária, como fica
claramente evidenciado pelo preâmbulo e pelos artigos 1º e 3º do
Texto Maior. Por outro lado, vários tratados internacionais sobre
direitos humanos dos quais o Brasil é parte contemplam explicitamente
referido direito. Portanto, não há como deixar de se considerar que
moradia, desde 05 de outubro de 1988, é um direito humano
fundamental.
A redação do § 2º do artigo 5º da Carta Magna é claríssima,
dissipando qualquer dúvida a respeito ao rezar que:
"Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte".
A Carta Magna, ao explicitar no artigo 1º, III, que a dignidade da
pessoa humana é alicerce supremo da ordem jurídica democrática
deixou claro que este princípio fundamental da República alcança todos
os setores da ordem jurídica, exigindo a tutela integral da pessoa
humana, superadora da dicotomia Direito Público e Direito Privado, e
que vá além da tipificação de situações previamente estipuladas nas
quais pudesse incidir o ordenamento jurídico.
Não são suficientes os mecanismos simplesmente repressivos ou
ressarcitórios, ancorados na técnica lesão-sanção123, impondo-se a
123
Até porque, tal tutela de direitos da personalidade, no momento patológico, configura
uma estranha patrimonialização de um bem jurídico existencial. A respeito, Sérgio Cruz
Arenhart, abonando-se em Michel Miaille, faz severas críticas a essa forma tradicional de
encarar os direitos da personalidade "patrimonializando-os". Nas suas palavras, isso
significa: "a superação do ser pelo ter (ou quando menos, sua equivalência). A essência da
pessoa humana é identificada com seu patrimônio. Trata-se de notória influência do
econômico sobre o social, sendo que a existência humana é caracterizada por sua
62
adoção de instrumentos de tutela preventiva e promocionais que
concretize a tábua axiológica eleita pelo constituinte que conferiu à
cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III) a condição de
fundamentos da República, além de adotar o princípio da igualdade
substancial (art. 3º, III) ao lado da isonomia formal (art. 5º) que
condiciona o enfrentamento e progressiva superação da pobreza e das
desigualdades. 124
Por essa perspectiva, não há como negar que a ordem jurídica
instituída em 05 de outubro de 1988, contempla a proteção jurídica da
moradia na qualidade de direito humano fundamental porque
imprescindível à satisfação das necessidades existenciais básicas para
uma vida com dignidade.
Nem poderia ser diferente, pois uma ordem jurídica que não
estivesse ancorada na proteção dos bens essenciais à personalidade
humana – e que, portanto, não dispensasse proteção jurídica à moradia
a partir das normas constitucionais - não poderia ser tida como
legítima. 125
Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos:
"A personalidade é a qualidade de ser pessoa. Esta qualidade tem
uma relevância jurídica crucial. Todo o Direito é construído a partir
dela e a seu propósito. Mais próxima ou mais remotamente, está
sempre a Pessoa, a pessoa humana, única e irrepetível, infungível,
capacidade de acumulação de riqueza – e onde a pior sanção que se concebe é a agressão
ao patrimônio alheio" (ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada, p. 6263).
124
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional
brasileiro, p. 52, 53 e 57.
125
Destaca Ingo Sarlet que, diante da indissociável relação entre a dignidade da pessoa e os
direitos fundamentais, mesmo nas ordens normativas em que a dignidade não mereceu
ainda referência expressa, não se pode concluir, só por isso, que ela não se faça presente
na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, estando implicitamente
reconhecida e assegurada na forma dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana
(SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 88).
63
irrecusável, inevitável. Não há Direito sem pessoas, sem pessoas
humanas, de carne e osso, com amor e ódio, alegria e tristeza, prazer
e dor, bondade e maldade, solidez e fragilidade, concepção e morte.
São elas o fundamento ontológico do Direito. Seria impossível que o
Direito não se ocupasse delas".
Mais do que fundamento ontológico, acrescenta-se que a pessoa
humana é fundamento axiológico do Direito, pois, como colocado por
José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz:
"ser e valor estão intimamente ligados, em síntese indissolúvel, eis
que o valor está, no caso, inserido no ser. O homem vale, tem a
excepcional e primacial dignidade de que estamos a falar, porque é. E
é inconcebível que um ser humano seja sem valer. Por isso mesmo, a
personalidade é uma noção insuscetível de gradações ou restrições.
A capacidade de direito, ao contrário, pode sofrer restrições ou
limitações por parte da ordem jurídica digna desse nome, sobre a
afirmação da fundamental dignidade de todos os seres humanos, daí
decorre evidente corolário de igualdade essencial entre todos os
homens".126
Além dos princípios e objetivos fundamentais da República
(preâmbulo, artigo 1º e artigo 3º), o Texto de 05 de outubro de 1988,
no artigo 7º, IV, ao tratar do salário mínimo, coloca a moradia entre as
necessidades básicas da pessoa humana, reconhecendo integrar as
condições materiais mínimas para uma vida com dignidade.127
De igual sorte, o inciso IX do artigo 23 da Constituição fixa como
competência administrativa comum da União, dos Estados, do Distrito
126
OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira Muniz. O Estado de
Direito e os direitos da personalidade, p. 16.
127
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 350. Por seu turno,
Carlos Ayres BRITTO (O humanismo como categoria constitucional, 98), pondera que o
inciso IV do artigo 7º da Constituição, "determinante de que o salário mínimo seja fixado
em ordem a atender aos seguintes itens de despesa do trabalhador e sua família: "moradia,
alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social",
designados como "necessidades vitais básicas" – "resultando óbvio que "necessidades vitais
básicas" não comportam desatendimento. Têm que ser supridas como o epicentro mesmo
da democracia social, por se tratar de lídima questão de honra humanista".
64
Federal e dos Municípios a promoção de programas de construção de
moradias e melhorias das condições habitacionais. Previsão esta que
vem ao lado daquelas atinentes à garantia do direito à saúde e à
educação, evidenciando que a moradia tem o mesmo status jurídico do
direito à saúde e do direito à educação, inequivocamente fundamentais
à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.
Também devem ser trazidos à baila os dispositivos do artigo 5º,
XXIII, do artigo 170, II e do artigo 182, § 2º, vinculando o exercício da
propriedade a uma função social, bem como a previsão constitucional
das usucapiões especiais urbanas (artigo 183) e rural (artigo 191),
ambas condicionadas à utilização do imóvel para fins de moradia.128
Expressando a proteção à moradia na sua dimensão funcional de
direito de defesa, isto é, contra interferências indevidas, a redação do
inciso XI do artigo 5º é bastante enfática ao enunciar que "a casa é asilo
inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial".
Há uma ligação hermenêutica fortíssima entre a garantia
constitucional da inviolabilidade do domicilio e o direito à moradia.
Neste prisma, Ricardo Cesar Pereira Lira129 argumenta que se todos são
iguais perante a lei (artigo 5º, caput, da Constituição) e se a casa é o
asilo inviolável do indivíduo (artigo 5º, XI, da Constituição), então é
evidente que todos têm direito a esse asilo e a essa inviolabilidade,
restando claro que o direito à moradia/à habitação é assegurado pela
128
Na visão de Ingo Sarlet, tais dispositivos apontam para a previsão, ao menos implícita da
moradia como um direito constitucionalmente protegido. (SARLET, Ingo Wolfgang. O direito
fundamental à moradia na Constituição, p. 150-151).
129
LIRA, Ricardo Cesar Pereira. Direito à habitação e direito de propriedade, p. 81.
65
Constituição.
A Carta Magna de 1988 também contempla a moradia na regra
do artigo 21, XX que outorga competência à União Federal para
"instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive
habitação", a demonstrar ser esse um tema de importância
fundamental para a tutela do Estado.
No âmbito rural, prevê o inciso VIII do artigo 187 da Constituição
de 1988 que a política agrícola será planejada e será executada levando
em conta "a habitação para o trabalhador rural".
E não é só: o artigo 47, § 3º, III, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias também é uma demonstração do valor
superior da moradia para a ordem jurídica brasileira, ao excluir o imóvel
que serve de moradia da contabilidade para fins de demonstração de
insuficiência de patrimônio para fazer jus ao benefício de exclusão da
correção monetária os débitos dos micros e pequenos empresários e
produtores rurais.
Por fim, tem-se o artigo 53, VI do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias que assegura uma preferência aos
combatentes da 2ª Guerra Mundial na aquisição da casa própria.
Por outro quadrante, incidem com força constitucional as normas
internacionais de direitos humanos atinentes à moradia a que o Brasil
se vinculou. Ensina Flávia Piovesan130 que, pelas regras do §§ 1º a 3º do
artigo 5º da Constituição do Brasil, reconhece-se a vigência automática
do Direito Internacional dos Direitos Humanos, cujos tratados, assim
que ratificados, irradiam efeitos tanto na ordem jurídica internacional e
interna, dispensando a edição de decretos de execução. A hierarquia
130
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 82-90.
66
constitucional dos tratados sobre direitos humanos decorre dos §§ 2º e
3º da Constituição.131
Neste prisma, há um grande manancial de textos normativos de
Direito Internacional prevendo proteção jurídica à moradia, que
colaboram para fundamentar a tutela jurídica desse bem fundamental à
personalidade humana pelo Estado brasileiro.
Pode-se começar esse inventário com a alusão ao artigo 17 do
Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos da Organização
das Nações Unidas - ONU132, prevendo a garantia contra interferências
arbitrárias no local de moradia. Enuncia o § 1º do referido artigo 17
que:
"ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em
sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação".
Em seguida, o § 2º estabelece que: "toda pessoa terá direito à
proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas".
No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos, da Organização dos Estados Americanos, existe dispositivo
equivalente, o artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos
– Pacto de San José da Costa Rica133 de seguinte teor:
"1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao
131
Por outro lado, se o conteúdo do tratado internacional não versar sobre direitos
humanos, há a exigência do aludido decreto, pois a incorporação não é automática, ante ao
silêncio constitucional. A hierarquia infraconstitucional dos demais tratados decorre do
artigo 102, III, b, da Constituição, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência
para julgar, mediante recurso extraordinário, "as causas decididas em única ou última
instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei
federal".
132
Ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de
1991 e promulgado pelo Decreto 592, de 06 de dezembro de 1992.
133
Ratificado pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, tendo sido aprovado pelo Decreto
Legislativo de 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo Decreto 678 de 06 de novembro
de 1992.
67
reconhecimento da sua dignidade.
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em
sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências
ou tais ofensas".
O artigo 11, § 1º, do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas134,
por seu turno, enuncia que:
"Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda
pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua
família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequada,
assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os
Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a
consecução desse direito (...)".
Merece também referência o artigo 34, item k da Carta da
Organização dos Estados Americanos135, proclamando que:
"Os Estados membros convém em que a igualdade de oportunidades,
a eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza
e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas
decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros,
objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los
convém da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à
consecução das seguintes metas básicas: (...) k) habitação adequada
para todos os setores da população(...)".
Portanto, por força da previsão do § 2º do artigo 5º da
Constituição de 1988, e diante dessas previsões de tratados
internacionais de direitos humanos a que o Brasil tomou parte136,
134
Ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de
1991 e promulgado pelo Decreto 592, de 06 de dezembro de 1992.
135
Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 63, de 07 de dezembro de 1949.
136
Há outros diplomas internacionais tratando sobre a proteção e promoção da moradia
em favor de determinados grupos vulneráveis que podem ter incidência em determinada
68
incorporadas
ao
ordenamento
jurídico
pátrio
como
normas
constitucionais, não há dúvida de que a moradia, desde 05 de outubro
de 1988, é tida como um direito humano fundamental.
Como o direito à moradia já era contemplado desde o início da
vigência do Pacto de 1988 como direito humano fundamental protegido
e promovido pelo Estado brasileiro, tem-se que a edição da Emenda
Constitucional n. 26/2000 veio apenas para não deixar qualquer
margem de dúvida acerca do status de direito constitucional à moradia.
Poder-se-ia argumentar que a positivação expressa do direito à
moradia no artigo 6º da Constituição seria uma estratégia simbólica,
com a intenção de amainar cobranças e pressões por uma atuação mais
marcante do Governo brasileiro em formular e implementar políticas
públicas que assegurem efetividade137 ao direito à moradia digna.
O uso meramente simbólico da legislação visa a dar a impressão
de que providências estão sendo tomadas pelo Poder Público. Utiliza-se
a Constituição como álibi, como fachada, para iludir, dissimular, e, com
isso, amainar as cobranças de movimentos sociais por providências
concretas em defesa, proteção e promoção de determinado direito
fundamental.
Não é esse o caso da Emenda Constitucional n. 26/2000 porque o
situação concreta, como a "Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas
de discriminação racial", artigo 5º, e, iii (ratificada pelo Brasil em 27.03.1968 e promulgada
pelo Decreto 65.810, de 08.12.1969); a "Convenção internacional sobre a eliminação de
todas as formas de discriminação contra a mulher, artigo 14.2 (h) (ratificada pelo Brasil em
01.02.1984 e promulgada pelo Decreto 4.377, de 13.09.2002); a "Convenção sobre os
direitos das crianças", artigo 27, item 1 e item 3 (ratificada pelo Brasil em 24.09.1990,
aprovada pelo Decreto Legislativo 28, de 14.09.1990 e promulgada pelo Decreto 99.710 de
21.11.90).
137
Distingue-se eficácia e efetividade de um direito. O estudo da eficácia é o estudo dos
efeitos normativos de um direito positivado. Já a análise da efetividade contempla se a
previsão normativa de um direito realiza-se ou não concretamente, isto é, no mundo dos
fatos.
69
símbolo – "a moradia" – por ela inserido no rol dos direitos sociais do
artigo 6º da Constituição trouxe um reforço à significação normativa, no
sentido de favorecer a implementação de medidas concretas em favor
da ampliação do acesso à moradia digna, mormente para as camadas
mais pobres da população, que não têm condições econômicas de
resolver por si suas necessidades habitacionais.
Ademais, estando a edição da Emenda Constitucional n. 26/2000
em um contexto de reivindicações por melhores políticas públicas na
área da moradia, notadamente da habitação social, tendo por alvo as
pessoas mais carentes, como bem explicitam Nelson Saule Júnior e
Maria Elena Rodriguez138, há chances concretas da inserção expressa da
moradia no rol dos direitos sociais do artigo 6º do Texto Maior servir a
fins emancipatórios, ao invés de reduzir-se a mero simulacro ou
estratagema de legislação simbólica139.
Em face do exposto, conclui-se que, se já era possível
compreender o direito à moradia digna como um direito previsto na
Constituição brasileira desde a sua promulgação (05.10.1998) 140, depois
do advento da Emenda Constitucional n. 26 é que não há mesmo mais
espaços para se refutar tal condição.
Enfim, a consagração do direito à moradia como um direito
humano fundamental resta explicitada. Portanto, a moradia digna deve
ser tratada como um direito ao qual são asseguradas proteção e força
138
SAULE JR, Nelson; RODRIGUEZ, Maria Elena. Direito à moradia, p. 110.
A respeito do uso da legislação constitucional como mero simulacro, destaca-se o
trabalho de Marcelo NEVES, A constitucionalização simbólica.
140
Em sentido contrário, por exemplo, Rui Geraldo Camargo Viana (O direito à moradia,
Revista de Direito Privado n. 2, p. 9, São Paulo: abr./jun. 2000) entende que o direito à
moradia não se mostrava existente antes da Emenda Constitucional n. 26, que veio a suprir
uma lacuna. (GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo
imobiliário, p. 37).
139
70
normativa reforçada ante a sua estreita ligação com a dignidade da
pessoa humana.
1.5. DAS CLASSIFICAÇÕES RÍGIDAS AO RECONHECIMENTO DA
PLURALIDADE DE CONTEÚDOS E FUNÇÕES
1.5.1. CLASSIFICAÇÃO GERACIONAL
Uma abordagem muito reiterada é aquela que classifica os
direitos humanos em gerações, isto é, como fases de um processo de
afirmação histórica desse direito. Tal proposta foi lançada pelo jurista
francês de origem checa, Karel Vasak, em conferência proferida no
Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, no ano
de 1979141, e que serviu de inspiração para a doutrina bastante
aclamada do constitucionalista cearense Paulo Bonavides.142
Neste prisma, a primeira geração englobaria os chamados direitos
da liberdade, com conteúdo de prestações negativas, nas quais o
Estado deve proteger a autonomia do indivíduo. São também chamados
de direitos de defesa, possuindo o caráter de distribuição de
competência entre o Estado e as pessoas humanas, e, assim, limitando
reciprocamente tais competências. Também são denominados de
direitos ou liberdades individuais. Essa primeira geração tem como
marco as revoluções liberais do século XVIII na Europa e Estados
141
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional,
p. 82: Cada geração foi associada, na Conferência proferida por Vasak, a um dos
componentes do dístico da Revolução Francesa: “liberté, egalité et fraternité” (VASAK,
Karel. For the Third Generation of Human Rights: The Rights of Solidarity”, Inaugural lecture,
Tenth Study Session, Internacional Institute of Human Rights, July 1979; VASAK, Karel. The
internacional dimension of human rights, vols. I e II. Paris: Unesco, 1982).
142
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 516-526.
71
Unidos, as quais visavam restringir o poder absoluto do monarca,
colocando limites à ação estatal. Traduzem o valor liberdade.143
A segunda geração dos direitos humanos fundamentais
representa a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um papel
mais ativo, além de mero fiscal das regras jurídicas. Em razão da
influência das doutrinas socialistas, passou-se a aceitar que a efetiva
concretização da liberdade e da igualdade demanda uma atuação mais
marcante do Estado na concretização daquilo que Celso Lafer
denominou de “direito de participação do bem-estar social”.
Nesse momento, são reconhecidos os direitos sociais, também de
titularidade individual e exercidos contra o Estado, como o direito à
saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros que
demandam
prestações
positivas
do
Poder
Público para
seu
atendimento, mediante a ampliação dos serviços públicos.
São também denominados direitos de igualdade por garantirem
às camadas mais pobres da sociedade a concretização das liberdades
abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos.
Esses direitos humanos de segunda geração seriam frutos das
lutas sociais na Europa e Américas, tendo como marcos a Constituição
mexicana de 1917, que regulou o direito ao trabalho e à previdência
social, a Constituição alemã de Weimar de 1919, que na sua segunda
parte estabelece os deveres do Estado na proteção dos direitos sociais,
e no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, que criou a
Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo direitos dos
trabalhadores.
143
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional,
p. 82-84. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 516-518.
72
No Brasil, os direitos de segunda geração são contemplados pela
primeira vez na Constituição de 1934.144
A terceira geração dos direitos fundamentais abarcaria aqueles
de titularidade coletiva, da comunidade, como o direito ao
desenvolvimento, à paz, o direito à autodeterminação dos povos, o
direito ao meio ambiente equilibrado. São, por isso, chamados de
direitos da solidariedade145.
Dentro dessa classificação rígida, o direito à moradia, em sua
dimensão prestacional, tendo por conteúdo medidas de proteção e
promoção exigíveis do Poder Público, seria um direito humano
fundamental de segunda geração, um direito social.
Ocorre que essa abordagem geracional é alvo de críticas por se
passível de transmitir erroneamente o caráter de sucessão de uma
geração de direitos por outro, quando o que ocorre é, ao contrário, um
processo de acumulação de direitos.146
144
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional,
p. 84-85. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 519. LAFER, Celso. A
reconstrução dos direitos humanos, p. 127.
145
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional,
p. 85. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 523-524. Paulo Bonavides,
arrimando-se na proposta de Vasak, defende ainda o nascimento de uma quarta geração
dos direitos humanos, resultante da globalização, que contemplaria o direito de
participação democrática (democracia direta), o direito à informação e o direito ao
pluralismo.
146
Como bem pontua Ana Maria D’Ávila LOPES (Os direitos fundamentais como limites ao
poder de legislar, p. 62), com o surgimento de uma nova “geração”, não há caducidade dos
direitos das gerações anteriores. O reconhecimento progressivo de novos direitos tem
caráter cumulativo, de complementação e não de alternância. Portanto, deve-se preferir o
termo “dimensão”, para não ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma
“geração” por outra posição, como bem observa Ingo Wolfgang SARLET (Eficácia dos
direitos fundamentais, p. 59-66).146 Na mesma linha, Flávia PIOVESAN (Temas de direitos
humanos, p. 36-437). Diante de tais colocações, o próprio Professor Paulo BONAVIDES
(Curso de Direito Constitucional, p. 516) que em sua obra emprega o termo “geração”,
admite que o vocábulo “dimensão” substitui aquele com vantagem lógica e qualitativa,
afirmando que os direitos de primeira geração (direitos individuais), os de segunda (direitos
sociais) e os da terceira (direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à
fraternidade) permanecem eficazes, são infra-estruturais; formam a pirâmide cujo ápice é o
73
Além disso, a classificação geracional estimula uma visão
fragmentada do universo dos direitos humanos, dando embasamento
para um tratamento diferenciado aos direitos de uma geração em
detrimento dos de outra, quer para legitimar abusos contra a liberdade,
quer para se aceitar imensas desigualdades no âmbito dos direitos
sociais147. Com efeito, é imprescindível se ter uma visão integral do
conjunto de direitos humanos, todos essenciais para uma vida humana
digna. Assim, a visão fragmentada das gerações deve ser afastada.
direito à democracia. Fazendo acerto terminológico, o presente trabalho, acolhendo a
orientação da doutrina acima mencionada, adota a expressão “dimensão” ao invés de
“geração”. Portanto, quando no texto aparecer a palavra “geração”, justificar-se-á seu
emprego por tratar-se de citação de autor que emprega tal terminologia. Por outro lado, há
que se destacar que o processo de reconhecimento dos direitos é de cunho dinâmico e
dialético, marcado por avanços, retrocessos e contradições, ressaltando a dimensão
histórica e relativa dos mesmos. As diversas dimensões marcam a evolução de um processo
de reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais revelando sua natureza
materialmente aberta e mutável, ainda que seja possível observar certa permanência e
uniformidade nesse campo, como ilustram os tradicionais exemplos do direito à vida, da
liberdade de locomoção e de pensamento, tão atuais nos dias de hoje quanto eram no
século XVIII, como bem aponta SARLET (Eficácia dos direitos fundamentais, p. 61). Outro
aspecto a ser considerado é que este processo evolutivo não se dá apenas pela positivação
de “novos” direitos no texto da Constituição, mas também por meio de atualização
hermenêutica que reconhece novos conteúdos e funções para alguns direitos já
tradicionais. Exemplo disso é o que está acontecendo com a proteção da liberdade, da
igualdade, da vida, da intimidade e de outros valores essenciais à dignidade da pessoa
humana, revitalizada em face de novas agressões decorrentes do crescente controle dos
indivíduos por meio dos recursos de informática (bancos de dados, redes de computadores,
registros informatizados de compra com cartão de crédito etc.), de novas técnicas de
investigação criminal (interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e de
correspondência etc.), das ameaças da poluição ambiental, dos avanços científicos (por
exemplo, a recente controvérsia em torno da fabricação de “clones humanos”, as questões
envolvendo as novas técnicas de fecundação artificial, mudança de sexo etc.) (SARLET,
Eficácia dos direitos fundamentais, p. 61).
147
Citando Antonio Augusto Cançado Trindade, André de Carvalho RAMOS (Teoria dos
direitos humanos na Ordem Internacional) afirma que a visão fragmentada ou geracional
dos direitos humanos serviria a justificar vários governos que, sob a bandeira de buscarem
promover direitos econômicos e sociais, minimizariam os direitos civis e políticos, ou, ao
contrário, embasariam postura de governos que sustentam a tese de que os direitos de
segunda geração não partilhariam do mesmo regime jurídico de direitos de primeira
geração, estando contemplado em normas meramente programáticas, de pouca
vinculação.
74
De igual sorte, merecem críticas a classificação dos direitos
humanos fundamentais que os aparta em dois grandes grupos: os
direitos, liberdades e garantias (ou direitos civis e políticos), de um lado,
e os direitos econômicos, sociais e culturais, de outro.
1.5.2. DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS VERSUS
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
Por forte influência da doutrina constitucionalista portuguesa em
terras brasileiras, são utilizadas por aqui com certa frequência as
expressões “direitos, liberdades e garantias” para tratar de posições
juridicamente protegidas a determinado cidadão em face do Estado na
qualidade de direitos fundamentais. Trata-se de uma classificação que
leva em conta pretensas diferenças na estrutura jurídica de cada uma
dessas categorias.
O significado da trilogia direitos, liberdades e garantias, usada no
Constituição lusitana de 1976148, é explicado por Canotilho e Vital
Moreira149, bem como por Jorge Miranda150 e por José Carlos Vieira de
Andrade151. A fonte da construção de sentido é a teoria dos estados de
148
A Constituição brasileira de 1988 não usou a terminologia “direitos, liberdades e
garantias versus direitos econômicos, sociais e culturais”, reunindo no Título II, denominado
“direitos e garantias fundamentais” os nomeados “direitos e deveres individuais e
coletivos” (Capítulo I), “direitos sociais” (Capítulo II), direitos e garantias decorrentes da
“nacionalidade” (Capítulo III), “direitos políticos” (Capítulo IV) e direitos e garantias dos
“partidos políticos” (Capítulo V). Porém, como se verá, o estudo da doutrina e do Direito
Positivo mostra-se útil porque já fornece pistas para a construção de uma classificação que,
ao levar em conta as funções, conteúdos e estruturas, dos diversos direitos humanos
fundamentais, em sua perspectiva de direitos subjetivos, esclareça as peculiaridades dos
respectivos regimes jurídicos a que estão submetidos cada uma das categorias.
149
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, p. 109-11.
150
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais,
p. 73-107.
151
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976, p. 186-212.
75
Georg Jellinek152, também denominada de doutrina dos direitos
subjetivos
públicos,
a
qual
teve
grande
acolhida
entre
os
constitucionalistas da Europa ocidental na segunda metade do século
passado. Trata-se de uma classificação de posições jurídicas do
indivíduo em face do Estado, em sucessivos estatutos jurídicos.
A primeira posição, na visão de Jellinek, seria a do status
subiectionis ou do estado passivo, em virtude da subordinação ao
Estado, já que uma personalidade absoluta do indivíduo, não
subordinada de maneira alguma à vontade do Estado seria uma
concepção incompatível com a natureza do Estado. Todavia, chamado a
desenvolver determinadas tarefas, o Estado também aparece limitado
na sua capacidade de agir, pois lhe incumbe reconhecer a
personalidade dos súditos, e a isso fica juridicamente obrigado por
força do seu próprio ordenamento jurídico. A relação entre o Estado e
cada pessoa surge como duas grandezas que se implicam
reciprocamente.
Assim, o desenvolvimento da personalidade individual diminui a
extensão do estado passivo e, com isso, também se reduz o campo de
autoridade do Estado.
Sendo a soberania estatal um poder juridicamente limitado, que
se exerce no interesse geral, aos membros do Estado, aos cidadãos, são
assegurados um status negativus ou status libertatis, uma esfera na
qual são livres do Estado, uma esfera que exclui o imperium estatal,
dentro da qual são prosseguidos fins estritamente individuais, privados.
Nessa dimensão estariam as posições jurídicas dos indivíduos em face
152
A teoria dos estados de Jellinek é adotada por Robert ALEXY (Teoria dos Direitos
Fundamentais, p. 254-275), jurista alemão muito prestigiado pelos constitucionalistas
lusitanos.
76
do Estado chamadas liberdade e, por meio delas, busca-se defender a
esfera jurídica dos cidadãos da intervenção ou agressão dos Poderes
Públicos. Por isso, são também chamadas de direitos da liberdade,
direitos negativos, direitos civis, liberdades individuais.
Seriam exemplos de liberdades o direito à vida, o direito à
integridade pessoal, o direito à liberdade e à segurança, o direito à
identidade, ao bom nome e à intimidade, o direito à inviolabilidade do
domicílio e da correspondência, o direito à liberdade de expressão e
informação, o direito à liberdade de consciência, religião e culto, o
direito de reunião e de associação, entre outros.
153
Já os direitos, nesta proposta de classificação seriam as posições
jurídicas ligadas ao status activus ou status civitatis do indivíduo, sendo
assim designados como direitos políticos, liberdades-participação,
direitos do cidadão, entre outros.
De acordo com a doutrina dos direitos subjetivos públicos de
Jellinek, a atividade do Estado, que deve ser desenvolvida no interesse
dos súditos, somente se torna possível por meio das ações dos
indivíduos, dos cidadãos. Quando o Estado reconhece ao indivíduo a
capacidade de agir por conta do Estado, promove-o a uma condição
mais elevada: a da cidadania ativa, com a qual o indivíduo fica
autorizado a exercer os chamados direitos políticos em sentido
estrito154.
Por fim, têm-se as garantias, assim entendidas a prerrogativa dos
cidadãos de exigir dos Poderes Públicos a proteção dos seus direitos,
bem como o reconhecimento dos meios processuais para tal
153
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais,
p. 83-84.
154
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais,
p. 84.
77
finalidade155, além das garantias do processo criminal, como a de não
ser considerado culpado senão após sentença condenatória criminal
transitada em julgado, a garantia do contraditório e da ampla defesa, o
direito ao habeas corpus, etc.
As garantias estariam relacionadas ao status positivus156, no qual
se dá o reconhecimento da capacidade jurídica do cidadão para
recorrer ao aparato estatal e utilizar as instituições estatais, ou seja,
quando se garante ao indivíduo prestações positivas157, notadamente
meios processuais para a defesa dos direitos e liberdades.
Em sede da doutrina brasileira, encontra-se em Ruy Barbosa, a
raiz mais remota da distinção entre direitos e garantias, lastreada na
separação das disposições meramente declaratórias, que são as que
imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, das disposições
assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder.
As disposições declaratórias instituiriam os direitos; as assecuratórias,
as garantias.158
A base da classificação de Ruy Barbosa para direitos e garantias é
semântica, calcada nos aspectos textuais dos diplomas normativos,
sendo que o próprio autor reconhece que muitas vezes ocorre de
juntar-se na mesma disposição constitucional ou legal a fixação da
garantia com a declaração de direito. Isso sem considerar que muitas
155
Neste sentido, José Afonso da SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 186)
traz a pertinente citação de Maurice Hauriou para destacar que não basta que um direito
seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo porque virão ocasiões em que será
discutido e violado. Tal afirmação, em temos recentes, ecoou na eloquência de Norberto
BOBBIO (A Era dos direitos, p. 24) ao salientar que o problema fundamental nos dias de
hoje não é fundamentar os direitos humanos, mas sim protegê-los com eficiência, um
problema muito mais do que filosófico, verdadeiramente político.
156
Em tradução livre: estado positivo.
157
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 263-264.
158
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 186. MORAES,
Alexandre de. Direito Constitucional, p. 33.
78
garantias são textualmente declaradas, além de direitos serem
declarados usando-se a fórmula assecuratória.159
A diferença entre direitos e garantias, portanto, não pode se
arrimar apenas nos aspectos semânticos, textuais, dos dispositivos
normativos, mas na dimensão funcional e, por conseguinte, na
estrutura e no conteúdo de determinada posição jurídica subjetiva
protegida. As peculiaridades normativas identificar-se-ão não a priori, à
luz de aspectos meramente textuais, mas no plano concreto, a partir da
constatação
de
qual
função
o
direito
fundamental
estará
desempenhando em determinada situação.
Nesta ótica, quando se fala em garantias, está se falando de uma
função instrumental, para a qual se estruturam meios, técnicas,
instrumentos ou procedimentos para impor o respeito e a exigibilidade
de um determinado direito. Assim, como salienta José Afonso da Silva,
nas seriam as garantias fins em si mesmas, mas instrumentos para a
tutela de um direito principal; estariam a serviço dos direitos humanos
fundamentais.160
Reconhecem Canotilho e Vital Moreira que a distinção entre cada
uma das categorias que compõe a trilogia dos direitos, liberdades e
garantias, além de pouco precisa, é irrelevante do ponto de vista das
consequências jurídicas, visto que, qualquer que seja a categoria, todos
os direitos fundamentais fruem do mesmo regime.161 Acrescenta-se o
159
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 186. Por exemplo: “é
assegurado o direito de resposta (art. 5º, V); “é assegurada... a prestação de assistência
religiosa (art. 5º, VII); “é garantido o direito de propriedade” (art. 5º, XXII); “é garantido o
direito de herança” (art. 5º, XXX).
160
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 189.
161
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, p. 111. A
diferença de regime jurídico se dá entre direitos, liberdade e garantias, previstos no Título II
da Constituição portuguesa, aos quais se assegura uma normatividade e força jurídica
79
argumento de que não haveria uma verdadeiro direito ou uma
liberdade sem a correspondente garantia (direito de proteção estatal e
os respectivos meios processuais).
O contraste dos direitos, liberdades e garantias se faz com os
direitos econômicos, sociais e culturais, previstos no Título III da
Constituição portuguesa de 1976, com os mesmos significados
adotados pelos Pactos Internacionais de Direitos Humanos das Nações
Unidas.
O Sistema Global de Proteção Internacional dos Direitos
Humanos, capitaneado pela Organização das Nações Unidas, utiliza uma
classificação que cinde os direitos humanos em direitos civis e políticos,
de um lado, e direitos econômicos, culturais e sociais, de outro.
Por direitos civis, neste contexto, são entendidos os direitos de
autonomia dos indivíduos contra interferências indevidas do Estado ou
de terceiros.
Os direitos políticos, por sua vez, seriam os direitos de
participação na elaboração das decisões políticas e na gestão da coisa
pública, a ser exercido diretamente ou por meio de representantes
periodicamente eleitos por meio de sufrágio igualitário e universal e por
voto secreto.
Os
direitos
econômicos
seriam
aqueles
relacionados
à
organização da vida econômica de um Estado, como o direito de
associação sindical com objetivo de promoção de interesses
econômicos da categoria, o direito de greve, o direito ao trabalho, entre
outros.
Os direitos sociais, nesta classificação, são os direitos tendentes a
reforçada em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais do Título III. (SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 218-219).
80
assegurar uma vida material minimamente digna, exigindo prestações
positiva do Estado em favor dos indivíduos que as necessitem.
E, por fim, os direitos culturais, entendidos como aqueles
relacionados à participação do indivíduo na vida cultural de uma
comunidade, bem como o direito à manutenção do patrimônio
histórico e cultural de uma comunidade, o qual concretiza a sua
identidade e memória.162
Visto por essa lente, o direito à moradia digna, com conteúdo de
direito prestacional em face do Estado, classificar-se-ia como um direito
social.
José Gomes Canotilho leciona que a classificação em tela não se
mostra precisa, posto que muitos direitos enumerados no rol dos
direitos econômicos, sociais e culturais têm natureza análoga aos
direitos, liberdades e garantias, como, por exemplo, a liberdade de
profissão, a liberdade sindical, o direito de propriedade privada, o
direito à livre iniciativa econômica. Por outro lado, alguns destinatários
destes direitos não seria apenas o Estado, mas a generalidade dos
cidadãos.163
Outro aspecto a ser considerado é que um mesmo dispositivo
normativo pode gerar diversas normas, podendo constituir um feixe de
posições juridicamente protegidas nas quais estão investidas o titular
dos respectivos direitos fundamentais.
Logo, a distinção entre norma e texto da norma164 erode qualquer
162
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional,
p. 89-92). A razão dessa clivagem, direitos civis e políticos de um lado, direitos econômicos,
sociais e culturais de outro, objeto de dois Pactos, é explicada por Flávia PIOVESAN
(Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 157-161).
163
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 378-379.
164
Os limites deste trabalho impede o aprofundamento de tão instigante e basilar
problema de Teoria Geral do Direito e/ou da Hermenêutica Jurídica. Porém, para os fins do
81
tentativa de classificação de direitos fundamentais a partir da análise
meramente semântica dos enunciados/dispositivos constitucionais.
Há que se reconhecer, ao contrário, que os direitos humanos
fundamentais, vistos em sua completude, são multifuncionais,
apresentam diferentes conteúdos, conforme a relação concreta em que
se inserirem. Daí a doutrina mais recente identificar a utilidade da
construção de categorias classificatórias sob o ângulo funcional.
1.5.3. CLASSIFICAÇÕES FUNCIONAIS
Maior precisão e utilidade prática guardam as classificações
funcionais.
Robert
Alexy,
por
sua
grande
influência
entre
os
constitucionalistas lusitanos e, por consequência, entre os brasileiros, é
um referencial importante neste campo. Sua proposta é a de que os
direitos fundamentais, na qualidade de direitos subjetivos, sejam
organizados em três categorias segundo o conteúdo e a função
desempenhada: 1) direitos a algo (abrangendo duas submodalidades:
1.1. direito a algo e 1.2. direito a ações positivas; 2) liberdades e 3)
competências.165
raciocínio aqui desenvolvido, basta salientar que a norma é o resultado da interpretação de
todo o ordenamento jurídico a partir das relações mantidas com as peculiaridades fáticas
do caso concreto a ser decidido. A norma não existe antes da interpretação/aplicação. É o
sentido/significado atribuído a todos os textos/dispositivos incidentes em determinada
situação fática juridicamente relevante. Para uma análise mais aprofundada da questão da
distinção entre texto e norma ver: MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. GRAU,
Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. FERRAZ, Sérgio
Valladão. Hermenêutica constitucional estruturante.
165
Anota Ingo Wolgang SARLET (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 169) que Robert
Alexy formula sua proposta partindo da distinção efetuada por Benthan entre rights to
services (direitos a serviços), liberties (liberdades) e powers (poderes, capacidade jurídica,
competência ou autorização).
82
Na qualidade de direito a algo, estariam englobados os direitos a
ações negativas e positivas do Estado e/ou de particulares, portanto, os
direitos de defesa e os direitos a prestações.
Os direitos de defesa abrangeriam os direitos a que não se
impeça, nem se dificulte determinadas ações do titular do direito; os
direitos a que não se afete determinadas características ou situações do
titular do direito (por exemplo, a inviolabilidade do domicílio); e os
direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do
titular do direito mediante derrogação das correspondentes normas
jurídicas.
Os direitos a ações positivas, por seu turno, abarcariam os
direitos que o cidadão tem contra o Estado a ações estatais positivas
que podem ser tanto de conteúdo fático como de conteúdo normativo.
De conteúdo fático quando o objeto for uma prestação material, como
o fornecimento de água potável, de ensino, de assistência médica, a
expedição de um documento; de conteúdo normativo quando
consubstanciar na edição de normas jurídicas, gerando, por isso, o
dever de legislar, regulamentar, julgar.
As liberdades, nessa classificação de Alexy, contemplam as
posições jurídicas que asseguram ao seu titular ser livre para fazer ou
não fazer algo porque não está impedido, nem obrigado a praticar uma
conduta. Neste prisma, as liberdades evidenciam-se como negação de
exigências e proibições.
Por fim, ter-se-iam as competências, que seriam os poderes
jurídicos ou capacidades jurídicas reconhecidas aos indivíduos, para
modificarem determinada situação jurídica, como são as capacidades
de contratar, fazer um testamento, contrair matrimônio, criar
83
associações, adquirir propriedade, votar, etc.
A visão de Alexy não é fragmentária nem reducionista. Engloba
todos os conteúdos, admitindo, assim, a multifuncionalidade dos
direitos fundamentais. Dependendo da situação eles se manifestarão
como direitos de defesa, direitos de proteção, liberdades e/ou
competências. 166
Nesta linha, José Carlos Vieira de Andrade realça que, no que diz
respeito à estrutura própria dos direitos fundamentais, há que tomar
em consideração o caráter complexo e multifacetado da maior parte
dos direitos subjetivos fundamentais, sendo
“frequentemente múltiplas as faculdades incluídas num direito
constitucionalmente consagrado, faculdades que têm objecto e
conteúdo distintos, que são oponíveis a destinatários diferentes,
determinam deveres de variado tipo e que podem ter até titulares
diversos.
Assim, num mesmo direito fundamental unitariamente
designado podemos encontrar combinados poderes de exigir um
comportamento negativo (das potências públicas) com poderes de
exigir ou de pretender prestações positivas, jurídicas ou materiais, ou
com poderes de produzir efeitos jurídicos na esfera de outrém,
poderes que têm muitas vezes recortes diferentes e aos quais
correspondem, conforme os casos, deveres de abstenção ou de nãointromissão, deveres de prestação ou de acção ou sujeições (deveres
de tolerar). Por outro lado, os sujeitos passivos dos direitos podem
ser, simultaneamente mas em medida diversa, o legislador, o
administrador, o poder judicial ou, em certos casos, entidades
privadas; tal como deparamos em certos direitos com faculdades ou
poderes que cabem a todos os indivíduos, a par de outros que
pertencem apenas aos que fazem parte de grupos específicos ou
serão mesmo próprios de entidades colectivas ou comunidades.
Quando se fala de um direito subjectivo fundamental não se
pode, pois, pensar “num singular poder ou pretensão jurídica
unidimensional ou unidireccional”, antes a representação mais
adequada é a de um feixe de faculdades ou poderes de tipo diferente
e diverso alcance, apontados em direções distintas”.167
166
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 193-253.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976, p. 188-189. Note-se que, não obstante não separar norma e texto da norma, nem
considerar que um mesmo texto possa configurar um feixe de normas prevendo direitos
167
84
Para Canotilho168, o reconhecimento de múltiplas dimensões e
funcionalidades
aos
direitos
fundamentais,
outrora
captadas
unilateralmente pelas diversas teorias (liberal, da ordem de valores,
institucional, social, democrático-funcional, socialista) oferece um
suporte constitucionalmente sustentável para um Estado Constitucional
de Direitos Fundamentais e para uma Sociedade Civil de Direitos
Fundamentais.
Gomes Canotilho acolheu a classificação desenvolvida por Alexy,
adaptando-a ao Direito Positivo português, que estabelece um regime
jurídico diferenciado para os direitos econômicos, sociais e culturais.
Assim, Canotilho subdivide a categoria “direitos a prestações”,
separando direitos originários a prestações e direitos derivados a
prestações. Os direitos prestacionais originários seriam depreendidos
diretamente da norma constitucional, não dependendo da atuação do
legislador para definir os seus conteúdos. Já os direitos prestacionais
derivados assegurariam aos cidadãos uma participação igual nas
prestações estatais de acordo com as capacidades existentes em
determinado momento da história, protegendo o núcleo essencial
subjetivos de variada estrutura, conteúdo e funções, encontra-se em Hans KELSEN (Teoria
Pura do Direito, p. 80-87 e Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 110-128) o
entendimento de que ter um direito subjetivo pode significar várias coisas, como: a) “não
ser proibido de” (não sofrer sanção por fazer ou não fazer algo); b) “não poder ser
impedido” (outrem pode ser punido por querer impedir a ação ou forçar a omissão do
titular do direito); c) “ter autorização para fazer algo” (liberdade garantida quando há
normas que abrem exceção a uma proibição geral); d) “o contraponto de uma obrigação
alheia ativa (fazer) ou passiva (não fazer ou tolerar que se faça)”; e) “autorização de
participar na produção do Direito” (direitos políticos); f) “direito de ação processual”
(direito de processar o sujeito passivo da relação jurídica buscando a aplicação da sanção).
168
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1302-1308.
85
desses direitos contra retrocessos.169
José Carlos de Andrade Vieira, por seu turno, igualmente
inspirado em Alexy e em Jellinek, classifica funcionalmente os direitos
fundamentais em direitos de defesa, direitos de participação e direitos
a prestações. Os direitos de defesa corresponderiam aos clássicos
direitos de liberdade, que impõem uma abstenção ao Estado, um dever
de não-interferência ou de não-intromissão, resguardando a autonomia
privada.
Os direitos a prestações exigem do Estado uma ação positiva a
fim de proteger os bens jurídicos ou promover um estado de coisa
desejado. Por fim, os direitos a participação seriam um híbrido de
direitos de defesa e direitos de prestação, compondo uma categoria
autônoma porque desempenhariam a função de garantir a participação
individual na vida política, mais concretamente na formação da vontade
política da comunidade.170
Andrade Vieira171 aponta que, por esse ângulo, verifica-se que a
clivagem principal existente dentro dos direitos fundamentais no
Direito Constitucional português, que os divide em direitos, liberdades e
garantias e os demais direitos econômicos, sociais e culturais ou,
abreviadamente, direitos sociais, não consegue ser rigorosa na sua
correspondência aos regimes jurídicos específicos.
Direitos a prestações não são apenas aqueles que consistem
exclusivamente em prestações de auxílio social. Direitos de liberdade e
169
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 447-449.
OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais, p. 51.
170
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976, p. 192-194.
171
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976, p. 197-205.
86
direitos de participação política contêm, igualmente, faculdades de
exigir ou pretender prestações estatais de proteção ou promoção, não
se subsumindo à hipótese de incidência do artigo 18 da Carta de
1976172, eis que sujeitos à realização gradual, progressiva, e sujeitos à
reserva do possível, em razão da escassez ou limitação dos recursos à
disposição do Estado para satisfazer as necessidades de todos os
cidadãos estando em causa opções quanto à alocação ou afetação
material desses recursos, determinadas pelo legislador ordinário ao
configurarem as políticas púbicas.
Paralelamente, há direitos enumerados no rol dos sociais (Título
III) que podem ter a estrutura de direitos de defesa, sujeitando-se ao
mesmo regime dos direitos, liberdades e garantias, conforme dispõe o
artigo 17 da Carta Constitucional, por lhes serem análogos.
Assim, conclui José Carlos Vieira de Andrade que há dois tipos
básicos de direitos fundamentais, consoante a determinação do
respectivo conteúdo e, por consequência, com diversa força jurídica: os
direitos de defesa e os direitos prestacionais. 173
Já adentrado na doutrina brasileira, merece menção a pioneira
classificação de Edilsom Pereira de Farias174, que organiza os direitos
fundamentais
em
direitos
fundamentais
de
defesa,
direitos
172
PORTUGAL, Constituição de 1976 (VII Revisão de 2005). Artigo 18º (Força jurídica) 1. Os
preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos,
liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as
restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm
de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a
extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
173
PORTUGAL, Constituição de 1976 (VII Revisão de 2005). Artigo 17º (Regime dos direitos,
liberdades e garantias) O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos
enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.
174
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos, p. 82-93.
87
fundamentais a prestação fáticas ou jurídicas e direitos de participação,
mostrando ter sofrido forte influência das construções de Jellinek,
Alexy, Canotilho e Vieira de Andrade.
Paulo Gustavo Gonet Branco175, por sua vez, também salienta que
os direitos fundamentais desempenham funções múltiplas na sociedade
e na ordem jurídica e essa diversidade de funções leva a que a estrutura
dos direitos fundamentais não seja unívoca. Assim, enxerga-se nos
direitos fundamentais, em sua dimensão subjetiva, o desempenho de
funções de direitos de defesa, direitos a prestação e de direitos de
participação.
Na condição de direitos de defesa, a função desempenhada é a
de impor ao Estado um dever de abstenção, um dever de nãointerferência, de não-intromissão no espaço de autodeterminação do
indivíduo. Sob esse aspecto, constituem normas de competência
negativa para os Poderes Públicos, jungindo o Estado a não estorvar o
exercício da liberdade do indivíduo, quer material, quer juridicamente.
Na qualidade de direito a prestação, os direitos fundamentais
exigem que o Estado aja para libertar os indivíduos das necessidades.
São, portanto, direito de promoção de um estado de coisas almejado.
Por fim, os direitos fundamentais de participação correspondem aos
direitos políticos, isto é, os direitos orientados a garantir a participação
dos cidadãos na formação da vontade do Estado.
Afora o plano de subjetivo, Paulo Branco partilha do
entendimento segundo o qual os direitos fundamentais possuem uma
dimensão objetiva, fazendo deles princípios básicos da ordem
constitucional, operando como limite do poder e como diretriz para a
175
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.
Curso de Direito Constitucional, p. 244-258.
88
ação estatal. Assim, os direitos fundamentais influem sobre todo o
ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de todos os
poderes constituídos. Dessa dimensão objetiva, derivam consequências
importantes, como a eficácia horizontal desses direitos, isto é, na esfera
privada, no âmbito das relações entre os particulares, bem como o
reconhecimento de um dever estatal de proteção contra agressões dos
próprios Poderes Públicos, provindas de particulares ou de outros
Estados.
Doutrinador brasileiro que também se inspirou nas teorias de
Jellinek, Alexy e Vieira de Andrade é Ingo Wolfgang Sarlet176, o qual
classifica tais direitos, segundo a funcionalidade, conteúdo e estrutura
normativa, em dois grandes grupos: os direitos fundamentais de defesa
e os direitos fundamentais a prestações.
No grupo dos direitos fundamentais de defesa da classificação de
Ingo Sarlet se vinculariam as liberdades civis reconhecidas desde o
Estado Liberal, integrantes do status negativus ou status libertatis, que
asseguram uma esfera protegida de autonomia privada, bem como as
liberdades sociais, as quais, seguindo na inspiração dada pela doutrina
de Jellinek, constituiriam um status negativus socialis ou status
libertatis socialis, a exemplo dos direitos de grave e da liberdade
sindical.
O grupo dos direitos fundamentais a prestações estaria subdivido
em direitos a prestação em sentido amplo e os direitos a prestação em
sentido estrito.
Os direitos a prestação em sentido amplo seriam compostos
pelas categorias direitos à proteção e direitos a participação em
176
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 185-226.
89
organização e em procedimento.
Sarlet entende por direitos à proteção, tomando por base a
doutrina de Robert Alexy177, aqueles que outorgam ao indivíduo o
poder de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de
terceiros em determinados bens pessoais. Os direitos à proteção foram
revelados ou desenvolvidos a partir do reconhecimento da perspectiva
objetiva dos direitos fundamentais. Em decorrência da aceitação da
ideia de que o Estado tem o dever geral de efetivação dos direitos
fundamentais, tem-se também que a ele incumbe zelar, inclusive em
caráter preventivo, pela proteção dos direitos fundamentais dos
indivíduos, não só contra ingerências indevidas por parte dos poderes
públicos, como também contra agressões provindas de particulares e
até mesmo de outros Estados. Um dever que implica a obrigação de
adotar medidas positivas visando garantir e proteger de forma efetiva a
fruição dos direitos fundamentais. 178
Os direitos a participação na organização e procedimento se
vinculariam a um status activus processualis179, contemplando meios
processuais adequados para a defesa ou realização dos direitos, bem
como as pertinentes estruturas organizacionais.180
Por fim, termina Ingo Sarlet sua classificação com os direitos a
177
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 450-469.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 210-211.
179
Em tradução livre: estado ativo processual. Aponta Ingo Wolfgang SARLET (A eficácia
dos direitos fundamentais, p. 212) que o status activus processualis, que se refere à
dimensão procedimental dos direitos fundamentais, podendo ser qualificada de um
autêntico devido processo legal (due process of law) dos direitos fundamentais, decorre de
uma releitura feita por Peter Häberle à teoria dos quatro status de Jellinek. No campo do
Direito Processual Civil, destaca-se o trabalho de Luiz Guilherme MARINONI (Técnica
Processual e Tutela dos Direitos, p. 154-157 e p. 165-244), que, à luz da Teoria da
Constituição e dos Direitos Fundamentais, vem defendendo que o juiz tem o dever de
conformar o procedimento, para adequado ao caso concreto, de modo a garantir
efetividade à prestação jurisdicional.
180
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 381.
178
90
prestações em sentido estrito, composto pelos direitos a prestações
materiais de cunho social, relacionadas ao status positivus libertatis, e
que se concretizam nas tarefas incumbidas ao Estado Social de Direito
de zelar por uma justa e adequada distribuição e redistribuição dos
bens existentes.
Wolfgang Sarlet181 reconhece que os direitos fundamentais não
se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos.
Transcendendo essa perspectiva subjetiva, eles constituem decisões
valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia
em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os
órgãos legislativos, judiciários e executivos. Assim, o primeiro
desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos
fundamentais seria a eficácia de fornecer impulsos e diretrizes para a
aplicação e interpretação do Direito infraconstitucional, apontando
para a necessidade de uma interpretação conforme os direitos
fundamentais. Dessa dimensão objetiva também derivaria a sua eficácia
horizontal, isto é, a irradiação de efeitos também nas relações privadas.
Enfim, da redescoberta da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos
fundamentais decorre a possibilidade de desenvolvimento de novos
conteúdos e funções aos direitos fundamentais a partir da relação
dinâmica e dialética entre norma jurídica e realidade.
181
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 157-171.
91
1.5.4. A PLURALIDADE DE CONTEÚDOS E FUNÇÕES DO
DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA
O direito humano fundamental à moradia também configura um
feixe de posições juridicamente protegidas, implicando direitos (e
correspondentes deveres) de cunho negativo (direitos de defesa) e
positivo (direitos a prestações).
Na função de defesa (dimensão negativa), o direito de moradia se
expressa com o conteúdo de deveres de abstenção erga omnes182. Essa
dimensão funcional concretiza-se nas normas que asseguram a
inviolabilidade do domicílio, no sentido de protegê-lo contra invasões
por agentes públicos e/ou particulares, como a constante do inciso XI
do artigo 5º da Constituição de 1988183.
Concretiza-se o direito à moradia, também, nesta dimensão
funcional defensiva, nas normas as que protegem contra penhora,
alienação voluntária, dação de pagamento, entre outros atos de
despojamento, os bens materiais utilizados para o exercício da moradia,
notadamente os imóveis utilizados como unidades habitacionais,
quando, no caso concreto, o proprietário não tiver condições
financeiras de acesso a outra residência por meio de locação, compra
de imóvel, pagamento de hospedagem, etc.184.
Expressam, igualmente, essa dimensão negativa (função de
defesa), as normas que protegem moradores contra despejos
182
Tradução livre: universal, em face de todos.
Constituição de 1988, art. 5º. (...) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela
podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
184
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Na dimensão defensiva de
inalienabilidade, o direito à moradia, como bem essencial da personalidade, protege o
patrimônio mínimo indispensável a uma existência digna.
183
92
arbitrários.
Quando essa dimensão negativa não for espontaneamente
observada, haverá necessidade de entrar em ação a dimensão positiva
do direito à moradia, também chamada de direito à proteção estatal,
de modo a assegurar a posição jurídica prevista pelo ordenamento em
favor do titular do direito.
Na dimensão positiva ou função prestacional, o direito à moradia
demanda a estruturação de órgãos e a edição de normas que
estabeleçam procedimentos de tutela e promoção do direito à moradia.
Demanda, em casos de necessidade, o fornecimento pelo Estado de
auxílio financeiro, a prestação de serviço público ou a entrega de bens
materiais, entre outras ações comissivas185. A dimensão positiva pode
ser subdividida nas categorias de direito à proteção estatal, de direito
promocional e de direito prestacional em sentido estrito.
Como direito à proteção estatal, o direito à moradia demanda
prestações de tutela contra danos potenciais, eminentes ou efetivos
oriundos de condutas ilegais ou abusivas de agentes público ou
privados. A proteção estatal há de ser prestada faticamente, mas com
lastro nas normas jurídicas, isto é, por meio de provimentos estatais
que interfiram na realidade concreta.
Esses provimentos, que se originam no âmbito das funções
administrativas ou jurisdicionais do Estado, pressupõem a estruturação
de um sistema complexo, de uma rede de proteção que envolve corpo
de bombeiro, defesa civil, polícias civil, militar e administrativa, Poder
Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros
organismos, imprescindíveis para dar efetividade à dimensão negativa
185
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão
negativa (defensiva), p. 1033.
93
(função defensiva) do direito à moradia nos casos de lesões ou
ameaças.
Na função promocional, o direito à moradia impõe-se ao Estado
deveres de fomentar, isto é, de facilitar lhe o acesso. Esse estímulo
estatal pode se operar mediante políticas de financiamentos a juros
reduzidos, de redução da carga tributária ou mesmo isenção fiscal de
algumas operações ligadas à cadeia econômica de fornecimento de
imóveis destinados à habitação, de instalação de infraestrutura urbana
de modo coerente com os planos de desenvolvimento das cidades.
A intervenção estatal, nesses casos, terá por metas baratear o
preço da terra urbana e dos materiais de construção; reduzir os custos
de edificar, reformar e/ou comprar unidades habitacionais; fazer com
que os valores de aluguéis residenciais praticados no mercado
imobiliário se tornem acessíveis às várias faixas econômicas da
população, notadamente às de menor poder aquisitivo.
Na função prestacional em sentido estrito, o direito à moradia se
materializa nos deveres estatais de fornecimento de alguma prestação
material concreta, que pode ser um bem ou um serviço público,
adjudicado individualmente ou oferecido coletivamente.
Essa proteção positiva do direito à moradia se realiza de diversas
formas, como a disponibilização de um abrigo às pessoas em situação
de rua ou desabrigadas em razões de catástrofes naturais ou outro tipo
de calamidade pública; o fornecimento de certa quantia em dinheiro a
pessoas necessitadas, incapazes de custearem por elas mesmas um
alojamento digno a titulo de subsídio ("auxílio-aluguel"); implantação e
manutenção de serviços públicos que melhore a qualidade das
condições de moradia em determinada área urbana, como os de
94
saneamento básico, de iluminação pública, de fornecimento de energia
elétrica, transporte coletivo; o fornecimento de assistência técnica e
jurídica a pessoas de baixa renda que irão autoconstruir suas moradias;
investimentos
em
regularização
fundiária
e
urbanização
de
assentamentos precários ou renovação urbana de bairros envelhecidos,
etc.
Resta, portanto, evidenciada a pluralidade de conteúdos e
funções do direito humano fundamental à moradia.
Em razão dessa multifuncionalidade, abre-se vários campos de
investigação relevantes e pertinentes na atualidade. Pode-se tratar, por
exemplo, a eficácia do direito à moradia em sua dimensão funcional de
direito de defesa na proteção do mínimo existencial (ou patrimônio
mínimo) do devedor solteiro ou do fiador contra atos de penhora e
alienação judicial para fins de execução de dívidas.186 Outras vertentes
186
Dedicaram-se a este campo, entre outros: AINA, Eliana Maria Barreiros. O fiador e o
direito à moradia: Direito fundamental à moradia frente à situação do fiador proprietário
de bem de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; CARLI, Ana Alice de. Bem de
família do fiador e o direito humano fundamental à moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009; CASTILHO, Ricardo dos Santos. A impenhorabilidade do bem de família do fiador no
contrato de locação: A inconstitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei n. 8.009/90. In:
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coordenadora). A outra face do Poder
Judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas, volume 1. Belo Horizonte: Del
Rey, 2005, p. 208-226; FACHIN, Luiz Edson Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2006; LONGO, Gabriel Souza. A inconstitucionalidade da penhora
do bem de família do fiador para a satisfação de crédito locatício. In: HIRONAKA, Giselda
Maria Fernandes Novaes (coordenadora). A outra face do Poder Judiciário: decisões
inovadoras e mudanças de paradigmas, volume 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 194207; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo; ISAGUIRRE, Katya. O direito à moradia e o STFR: um
estudo de caso acerca da impenhorabilidade do bem de família do fiador. In: TEPEDINO,
Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (organizadores). Diálogos sobre Direito Civil – volume II. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 131-163; SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à
moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e
possível eficácia. In: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (diretores).
Arquivos de Direitos Humanos n. 4. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 137-191; SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão negativa
(defensiva): Análise crítica a luz de alguns exemplos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de;
SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: Fundamento, judicialização e
direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 1019-1049; SCHREIBER,
95
de pesquisa seriam o diálogo entre o direito à moradia e a função social
da propriedade urbana187; a proteção do direito à moradia das pessoas
pobres instaladas em assentamentos irregulares consolidados, em face
da ameaça de despejos forçados188; a incidência do direito à moradia e a
proteção contra abusos nos reajustes de contratos de mútuo
(financiamento imobiliário)189, etc. Ou, o objeto da presente
investigação,
centrada
nos
problemas
da
exigibilidade
e
da
universalização do direito à moradia em sua dimensão positiva, com
conteúdo prestacional, a ser efetivado pelo Poder Público, com função
garantidora do mínimo existencial.
Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel
residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira Ramos; TEPEDINO,
Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; GEDIEL, José Antônio Peres; FACHIN, Luiz Edson;
MORAES, Maria Celina Bodin (organizadores). Diálogos sobre direito civil: Construindo a
racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar: 2002, p. 77-98.
187
Ao tema dedicaram-se, por exemplo: ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como
conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre:
Sergio Fabris, 2003; ALFONSIN, Jacques Távora. A função social da cidade e da propriedade
privada urbana como propriedades de funções. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio
(organizadores). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto das Cidades. Fórum,
2006, p. 41-79; LIRA, Ricardo Cesar Pereira. Direito à habitação e direito de propriedade.
In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro n. 6/7. Rio de
Janeiro: Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, 1998/1999; LOPES, José
Reinaldo de Lima. Cidadania e propriedade: perspectiva histórica do direito à moradia. In:
Revista de Direito Alternativo, 1993; PAGANI, Eliane Adelina. O direito de propriedade e o
direito à moradia: um diálogo comparativo entre o direito de propriedade urbana imóvel
e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
188
Podem-se arrolar, nesta seara, os trabalhos de: SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção
jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2004;
BARROSO, Lucas Abreu. Propriedade privada, justiça social e cidadania material. In:
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coordenadora). A outra face do Poder
Judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas, volume 2. Belo Horizonte: Del
Rey, 2007, p. 119-137, entre outros.
189
Dedicaram-se a esse campo investigatório, v.g., GODOY, Luciano de Souza. O direito à
moradia e o contrato de mútuo imobiliário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 e LEONARDO,
Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, p. 2003.
96
2. UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA
E AS POLÍTICAS PÚBLICAS
2.1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
HUMANOS FUNDAMENTAIS
Observa Thiago Lima Breus que as políticas públicas só
recentemente se tornaram uma categoria de interesse para os
operadores do Direito, motivado pela intensificação do pluralismo
social e pela emergência de reivindicações por novas formas de atuação
do Poder Público, atingindo áreas que antes estavam fora do âmbito da
política.190
Guilherme Amorim Campos da Silva explicita que a utilização da
expressão política pública é redundante, configurando um verdadeiro
pleonasmo, eis que qualquer política tende a ser pública, isto é, voltada
para uma realização social. Porém, o qualificativo se justifica para
salientar o fim social que se busca alcançar com o programa de ação,
isto é, com a política.191
Ronald Dworkin utiliza o termo política como padrão que
estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em
algum aspecto econômico, político ou social da comunidade. Relacionase, portanto, com uma meta ou finalidade coletiva.192
Eros Roberto Grau, por sua vez, salienta a importância das
políticas públicas para os operadores do Direito apontando que, na
atualidade, o Estado intervém na ordem social não mais exclusivamente
190
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional, p. 217.
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento, p. 103.
192
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 36.
191
97
como produtor do Direito e provedor de segurança. Desenvolveram-se
novas formas de atuação estatal, para o que o Estado atualmente faz
uso do Direito Positivo como instrumento de implementação de suas
políticas públicas.
Com efeito, o government by policies substitui e aprimora o
government by Law, eis que, o Estado contemporâneo, de cunho Social,
legitima-se, antes de tudo, pela realização de políticas, isto é, de
programas de ação.193
Maria Paula Dallari Bucci, pioneira na investigação desse novo
campo
do
conhecimento,
aprimorando
formulação
outrora
apresentada194, propõe que se entenda como política pública:
"o programa de ação governamental que resulta de um processo ou
conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral,
processo de planejamento, processo de governo, processo
orçamentário, processo legislativo, processo legislativo, processo
administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à
disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de
objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.”
E, mais, assevera que:
“Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de
objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva
de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em
que se espera o atingimento dos resultados".195
193
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, p. 26. O government by
policies (governo por meio de políticas públicas) é uma visão aprimorada do government by
law (governo por meio de leis). As políticas públicas, portanto, configura uma evolução,
assim como o governo baseado em leis foi em relação ao government by men (governo por
meio de homens, no qual a vontade do soberano prevalecia de maneira absoluta), anterior
ao constitucionalismo.
194
A primeira formulação apresentada por Maria Paula Dallari Bucci para o conceito de
políticas públicas era este: “Políticas públicas são programas de ação governamental
visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a
realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas
públicas são “metas coletivas conscientes” e, como tais, um problema de direito público,
em sentido lato” (Direito Administrativo e políticas públicas, p. 241).
195
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em Direito, p. 39.
98
Esse conceito permite: a) que se entende por política pública um
programa de ação governamental; b) que se visualizem os diversos
processos regulados pelos Direito que compõem uma política pública
(eleitoral, de planejamento, de governo, orçamentário, legislativo,
administrativo e judicial); c) a identificação da política como atividades
de coordenação dos meios à disposição do Estado e das atividades
privadas com o fim de realizar objetivos; d) salientar que o primeiro
passo da formulação de uma política público é a definição, por meio de
uma decisão política, dos objetivos socialmente relevantes a serem
alcançados; e) que se compreenda que uma política pública, além da
definição dos objetivos a serem alcançados, implica seleção de
prioridades, reserva de meios necessários à sua consecução e a
definição do intervalo de tempo em que se espera que os resultados
esperados sejam atingidos.
Atuação estatal por políticas públicas é concepção que dá conta
não apenas das chamadas liberdades públicas (na qualidade ou função
de direitos de defesa), mas, sobretudo, da efetivação dos direitos de
cunho prestacional (sociais ou individuais), os quais exigem um intenso
atuar comissivo dos órgãos públicos, a estruturação de órgãos e
procedimentos, dispêndio de recursos do erário.
É, portanto, o modelo mais adequado para a República do Brasil
da atualidade, a qual, à luz do Texto Constitucional, conforma-se não
como um Estado Liberal, de atuação mínima, mas sim como um Estado
Social Democrático de Direito, que atua196 de maneira intensa na área
196
Prefere-se o termo “atuar” ao invés de “intervir”, bastante usual nos textos jurídicos, de
modo a evitar a falsa ideia que quando o Estado “intervém” no campo do mercado, da
economia e das relações sociais interprivadas estaria se imiscuindo numa área que não é
99
econômica e social, regulando as relações, promovendo/fomentado o
desenvolvimento, dando proteção aos direitos fundamentais.
Como enfatiza Habermas, o Estado Social se fundamenta na
dialética entre a igualdade jurídica e as desigualdades reais. A tarefa do
Estado Social consiste em assegurar condições de vida sociais,
tecnológicas e ecológicas que permitam a todos, em condições de
igualdade de oportunidade, tirarem proveito dos direitos cívicos
igualmente distribuídos. 197 E, para cumprir com suas tarefas, o Estado
brasileiro, na qualidade de Estado Social de Direito, necessita de
políticas públicas.
A efetividade do direito à moradia, como se constata dos
conteúdos nas várias funções que ele pode assumir em determinada
situação concreta, depende diretamente das políticas públicas.
Demonstração bastante cabal dessa assertiva é o atual quadro de
déficit habitacional, bem como das péssimas condições de moradia em
que vivem as camadas mais pobres da população brasileira, indicando a
inadequação das políticas públicas habitacionais praticadas e,
sobretudo, a necessidade de uma atuação mais marcante do Poder
Público para enfrentar e superar esse dramático problema social.
Nessa trilha, traçando a vinculação entre a proteção e promoção
do direito à moradia e as política públicas, Márcio Cammarosano
enfatiza que:
“Falar em habitação, moradia, casa, lar, é falar em necessidade básica
do ser humano, que a Constituição assegura como direito social,
impondo-se ao legislador e ao administrador público dar-lhe
densidade normativa e implementar políticas que lhe assegurem a
dele, quando, na verdade, é próprio do Estado realizar esta atuação de modo a cumprir o
programa de desenvolvimento social estabelecido no Pacto Constitucional.
197
HABERMAS, Jürgen. Más allá del Estado nacional, p. 53.
100
mais plena eficácia”.198
Em sua dimensão de direito prestacional de caráter social, o
direito à moradia apresenta especificidades que precisam ser bem
compreendidas, de modo a se assegurar a máxima efetivação e o
máximo de fruição. Pertinente, portanto, é trazer a colação as
advertências de José Reinaldo de Lima Lopes, comparando semelhanças
entre o direito à educação e o direito à moradia:
“o direito à educação: é mais do que o direito de não ser excluído de
uma escola; é, de fato, o interesse de conseguir uma vaga e as
condições para estudar (ou seja, tempo livre, material escolar, etc.).
Ora, se a vaga não existe, se não existe o tempo livre, se não há
material escolar a baixo custo, como garantir juridicamente tal
direito? Como transformá-lo de um direito à não interferência
(permissão, dever de abstenção) em um direito à prestação (dever de
fazer, obrigação) de alguém? Paradigmaticamente a mesma coisa
ocorre com o direito à moradia: como transformar o direito à
propriedade (defesa de bens contra a injusta invasão ou apropriação
de terceiros e permissão para deter bens legitimamente adquiridos)
em direito à moradia (acesso à propriedade, ou à posse – pela
locação, por exemplo – de um local onde se estabelecer com a
família numa cidade)? De quem exigir tal acesso, contra quem
exercer seu direito e quem afinal está obrigado a que espécie de
prestação?”199
Uma importante diferença desses “novos direitos”, chamados de
“direitos sociais”, como observa José Reinaldo de Lima Lopes, é que,
muitas vezes eles demandam serviços públicos uti universi e não uti
singuli200, não remunerados diretamente pelos usuários, mas mantidos
198
CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos constitucionais do Estatuto das Cidades, p. 25.
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p. 127.
200
Serviços públicos uti universi são serviços públicos prestados à coletividade como um
todo, de maneira universal e indivisível, como, por exemplo, a iluminação pública, a
proteção das fronteiras nacionais, o calçamento, atendendo toda a coletividade,
satisfazendo indiscriminadamente toda a população, razão pela qual são remunerados
pelos impostos, eis que não há um usuários específico para pagar esses serviços por meio
199
101
por meio de imposto. Além disso, a prestação do serviço depende da
real existência dos meios. Daí as questões:
“não existindo escolas, hospitais e servidores capazes e em número
suficiente para prestar o serviço o que fazer? Prestá-lo a quem tiver
tido a oportunidade e a sorte de obter uma decisão judicial a
abandonar a imensa maioria à fila de espera? Seria isto viável de fato
e de direito, se o serviço público deve pautar-se pela sua
universalidade, impessoalidade e pelo atendimento a quem dele mais
precisar e cronologicamente anteceder os outros?”201
Percebe-se, a partir dessas considerações, que não se podem
tratar direitos prestacionais da mesma forma como se tratam os
direitos de defesa. Os instrumentos de concretização e de tutela são
outros, específicos para dar conta das especificidades do seu objeto.
Além disso, o que ocorre com os direitos sociais exercidos em
face do Estado é similar ao que ocorre com os direitos societários em
uma empresa. Um sócio tem direito ao lucro, isso é seu direito
subjetivo, mas esse direito só pode ser exercido em partilha, com
outros da mesma espécie, donde emerge a regra do rateio, da divisão
proporcional dos lucros e das perdas entre todos os sócios. A relação,
portanto, não é a de um contrato bilateral ou sinalagmático, mas de um
contrato plurilateral como o de uma sociedade empresarial. Com efeito,
os direitos sociais prestacionais dependem, para sua eficácia, de uma
de taxas ou tarifas; serviços públicos uti singuli, ao contrário, são serviços direcionados à
determinada pessoa, de maneira individualizada, como, por exemplo, os serviços
telefônicos, o fornecimento de água e energia elétrica a domicílios, que, por isso, podem
ser delas cobrados por meio de taxas (tributo) ou tarifas (preço público) (cf. MEIRELLES,
Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p. 314).
201
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p. 131. As mesmas
perplexidades suscitadas gerariam uma demanda judicial buscando a estruturação de uma
Delegacia de Polícia em determinada localidade, assolada por inúmeros crimes contra o
patrimônio. Logo, a questão está relacionada à dimensão funcional prestacional, que pode
estar presente nos clássicos direitos de primeira geração, não sendo exclusividade dos
direitos sociais.
102
ação concreta do Estado, dependem da execução concreta de políticas
públicas e da prestação de serviços públicos.202
Como é lembrado por José Reinaldo de Lima Lopes: “Sem os
planos, sem os orçamentos, nada de política pública pode ser
implementado.”203 Daí que, para enfrentar o desafio da efetivação dos
direitos sociais prestacionais, como é o caso da dimensão aqui tratada
do direito à moradia, é necessário compreender a complexidade das
políticas públicas, e, para que isso seja possível, imprescindível é trazer
para um lugar de destaque o regime jurídico do planejamento, não
apenas das contas públicas, mas do desenvolvimento nacional, regional
e local.
Essa compreensão parte da visualização da articulação entre a
necessidade de moradia digna como o também direito humano
fundamental ao desenvolvimento.
2.2. MORADIA E DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
É pertinente e oportuno fazer a articulação entre o direito à
moradia e o direito ao desenvolvimento em um contexto de
planejamento das atividades estatais, mormente levando-se em conta
que as atribuições ou competências dos órgãos legislativos para
elaborar planos para o desenvolvimento econômico e social, embora
previstas no Texto Constitucional, estão bastante esquecidas. Bem por
isso, tais competências legislativas precisam ser vivificadas por meio de
técnicas e práticas que ampliem a participação democrática na
elaboração de planos de políticas públicas de moradia de longo prazo e
202
203
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p 129-130.
LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p. 133.
103
coerentes com um projeto maior de desenvolvimento centrado na
justiça social e na dignidade da pessoa humana.
Na linha defendida por Enrique Dussel204, e aqui adotada, deve-se
entender por desenvolvimento aquele que realiza o princípio éticomaterial de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana de cada
sujeito em comunidade. Mas não uma simples vida, no sentido de
sobrevivência e sim uma vida plena, digna de ser vivida.
Princípio ético-material esse que foi albergado pela Constituição
de 1988, como se vê do seu preâmbulo e dos seus artigos 1º, 3º e 170,
entre outros.
Como adverte Josaphat Marinho:
“o desenvolvimento a que o indivíduo e a sociedade aspiram é um
estado de realização comum das pessoas, e não de exclusão de umas,
para favorecimento de outras. Pode dizer-se hoje, como Pierre Massé
escreveu em 1973, que o desenvolvimento “não é o crescimento
material, manifestação estatística do progresso, que busca o
aumento das coisas, mas ignora a valorização dos seres. É o
crescimento a serviço do homem. Não é a quantidade dos bens
produzidos ou criados, mas a qualidade da distribuição deles no meio
social, que caracteriza o desenvolvimento. Multiplicidade de bens,
sem divisão justa, ou sem possibilidade razoável de adquiri-los, não é
fator de paz social”.205
Ou ainda, compartilhando-se da visão de Amartya Sen, tem-se
que o desenvolvimento é o melhor caminho para tornar mais plena a
liberdade, eis que a privação material (pobreza) e a falta de acesso a
direitos sociais constituem grandes obstáculos ao exercício da
liberdade. Assim, nesta ótica, o desenvolvimento consiste na eliminação
de privações que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de
204
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade de globalização e da exclusão, p. 182184.
205
MARINHO, Josaphat. Constituição, desenvolvimento e modernidade, p. 87.
104
exercer, ponderadamente, sua condição de agente.
Porém, o desenvolvimento de que fala Amartya Sen não fica
restrito ao crescimento econômico, ao aumento da riqueza material
produzida. Se, de um lado, o crescimento econômico pode ajudar, eis
que possibilita ao Estado financiar a seguridade social e uma
intervenção social ativa, deve-se, por outro, investir na criação de
oportunidades sociais por meio de serviços como educação pública,
serviços de saúde e desenvolvimento de uma imprensa livre e ativa.
Isso porque “o objetivo do desenvolvimento relaciona-se à avaliação
das liberdades reais desfrutadas pelas pessoas”. Enfim, devem ser
removidas as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e
tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social
sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou
interferência excessiva de Estados repressivos.206
Na síntese de Lafayete Josué Petter:
“Adotado o conceito de liberdade no sentido de um poder de
atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua
felicidade, tudo o que impedir aquela possibilidade de coordenação
dos meios é contrária à liberdade. Por isso a visão histórica da
liberdade está associada a um processo dinâmico de liberação do
homem de vários obstáculos que se antepõem à realização de sua
personalidade”.207
O direito humano ao desenvolvimento foi, inclusive, enunciado
em Declaração da Organização das Nações Unidas, em 1986, da
seguinte forma:
“Art. 1º O direito ao desenvolvimento é um direito humano
inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos
estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social
206
207
SEN, Amartya. O desenvolvimento como liberdade, p. 10, 18 e 57-71.
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica, p. 85.
105
e cultural e político, a ele contribuir e desfrutar, no qual todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente
realizados”.
E o fenômeno do desenvolvimento, como bem coloca Jean Carlos
Dias pode ser acompanhado (monitorado) por meio do: a) crescimento
do bem-estar econômico; b) diminuição dos níveis de pobreza,
desemprego e desigualdade; c) melhoria das condições de saúde e
nutrição e educação e moradia e transporte, entre outros
indicadores.208
O fim do desenvolvimento, consoante destaca Lafayete Josué
Petter, ao analisar o conteúdo do artigo 170 da Constituição brasileira,
é propiciar existência digna a todos, é assegurar justiça social. Segundo
o autor, o capitalismo propicia o crescimento econômico, mas o
desenvolvimento econômico é aferido pela dignidade de existência de
todos, em um ambiente de justiça social. É possível um país crescer sem
se desenvolver, o que ocorre nos casos em que há má distribuição da
riqueza. Por isso, o aumento do bem-estar não pode se medido apenas
por meio de indicadores como o produto nacional e a renda per
capita209, dependendo também da verificação da diminuição dos níveis
de pobreza, do desemprego e da desigualdade, das condições de saúde,
nutrição, educação, moradia e transporte da população.210
A
Constituição
de
1988
alberga
o
desenvolvimento
socioambientalmente sustentável como objetivo da República. Trata-se
de uma visão humanista e ecológica do desenvolvimento que, na visão
208
DIAS, Jean Carlos. O direito humano ao desenvolvimento e o princípio tributário da
capacidade contributiva, p. 175.
209
Em tradução livre: renda por cabeça. Esse indicador representando a média obtida pela
divisão da expressão monetária da renda auferida pelo número de habitantes de
determinado território, Estado, País, região.
210
PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica, p. 88.
106
de Inacy Sachs, é aquele que coloca “o social no comando, o ecológico
enquanto restrição assumida e o econômico no seu papel
instrumental”.211
O grau de desenvolvimento deve ser aferido, sobretudo, pelas
condições materiais, culturais e ambientais de que uma população
dispõe para o seu bem-estar. Ou como expressa Cristiane Derani:
“qualidade de vida no ordenamento jurídico brasileiro apresenta
estes dois aspectos concomitantemente: o do nível de vida material e
o do bem-estar físico e espiritual. Uma sadia qualidade de vida
abrange esta globalidade, acatando o fato de que um mínimo
material é sempre necessário para o deleite espiritual”.212
Enfim, deve-se entender o desenvolvimento como um projeto
(uma norma) e, ao mesmo tempo, um caminho histórico de
democratização, de aprendizagem social e de libertação da opressão
material, o que supõe partilha equitativa dos bens, e a supressão de
todos os entraves que impedem seu desabrochar, na busca de uma
melhor situação. Servindo-se da síntese de Ignacy Sachs, trata-se o
desenvolvimento de um processo de apropriação dos direitos
humanos.213
Da constatação de que crescimento econômico não corresponde
necessariamente a desenvolvimento, vem-se complementando as
medições outrora feitas apenas com os números do produto nacional e
da renda per capita, por outros indicadores, como o índice de Gini que
avalia os níveis de distribuição ou concentração de renda, e o índice de
desenvolvimento humano – IDH, adotado pelo Programa de
211
SACHS, Ignacy. Em busca de novas estratégias de desenvolvimento, p. 44.
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico, p. 59.
213
SACHS, Ignacy. O desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos, p.
151.
212
107
Desenvolvimento das Nações Unidas. 214
As condições em que se exerce a moradia é fator relevante na
avaliação do nível de bem-estar material, cultural, ambiental e
espiritual das pessoas, afetando diretamente sua existência e sua
personalidade. Portanto, é aspecto que deve ser considerado nas
políticas públicas de desenvolvimento social.
Até porque toda a estratégia de resgate e emancipação social,
envolvendo um amplo e articulado leque de prestações estatais de
solidariedade, tais como ações de assistência, educação e saúde,
capacitação para o trabalho e geração de renda, deve ter como
primeiro e fundamental passo o de assegurar uma moradia
minimamente digna. Retirar dos locais insalubres, perigosos e
infamantes que, por falta de opção, servem de habitação e abrigo a
muitos miseráveis desse país mostra-se como a ação estratégica
número um de todo e qualquer plano consistente de desenvolvimento
sustentável.
214
Tais índices colocam o Brasil como um país com grandes contingentes de população
miserável, que vivem abaixo da linha de pobreza (quando a renda per capita é insuficiente
para a aquisição de uma cesta de produtos alimentares que supram o mínimo de calorias
recomendadas pela FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations (2.100
calorias), portanto, com graves desigualdades sociais, e, no grupo dos países de médio
desenvolvimento humano, ocupando a 69º posição, em contrates com o posto de 13ª
economia global. Ou seja, o Brasil é um país relativamente rico, mas ainda subdesenvolvido
e socialmente injusto no quesito da distribuição da riqueza e da renda. Para aprofundar o
estudo do índice de Gini e do IDH ver PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da
ordem econômica, p. 98-107. Tais indicadores demonstram que apesar do “milagre
econômico” verificado no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, em que economia
apresentou taxas de crescimento superiores aos 10% ao ano, elevadíssimas para os padrões
internacionais, “o bolo cresceu”, mas não foi “repartido” com justiça (PAULANI, Leda Maria;
BRAGA, Márcio Bobik, A nova contabilidade social. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 234).
108
2.3. PLANEJAMENTO DO DESENVOLVIMENTO, PARTICIPAÇÃO
E POLÍTICAS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL
O planejamento é essencial para o desenvolvimento e este, por
sua vez, é garantia de um melhor nível de vida coordenada com um
equilíbrio na distribuição de renda e de condições de vida mais
saudáveis. O planejamento coordena, racionaliza e dá unidade de fins à
atuação do Estado, diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou
casuística.
Por ser expressão da política geral do Estado, o plano deve estar
de acordo com a ideologia constitucionalmente adotada, deve estar
com ela comprometida axiologicamente, assim, deve buscar a
transformação do status quo econômico e social.
As políticas públicas envolvem um conjunto heterogêneo de
medidas. Uma política habitacional ou de moradia, por exemplo,
envolve a elaboração de leis programáticas como são as leis de
orçamento de despesas e receitas públicas, a definição de planos
diretores de cidades, de zoneamento, a definição de áreas de
preservação ambiental, a estruturação e manutenção de órgãos e
procedimentos,
a
edição
de
várias
leis,
regulamentos,
atos
administrativos e atos de execução material. Por isso, o êxito de
qualquer política pública depende de planejamento.
O planejamento de qualquer política setorial – como é o caso da
política de habitação – deve também estar articulado com os demais
planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento
109
(Constituição Federal, artigo 48, IV e artigo 58, § 2º, II e VI)215, de modo
a ganhar o máximo de eficiência.
Gilberto Amorim Campos da Silva destaca que o artigo 21, IX, da
Constituição determinou à União elaborar e executar planos nacionais e
regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico
e social. No inciso XX, do artigo 21 previu competência da União para
instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,
saneamento básico e transporte urbano. Nessa direção, a União pode,
conforme previsto no artigo 43, englobar regiões econômicas e sociais,
visando a promoção do desenvolvimento e à redução das desigualdades
regionais.216
O artigo 48, inciso IV, por seu turno, estabelece a competência do
Congresso Nacional para dispor sobre planos e programas nacionais,
regionais e setoriais de desenvolvimento.
Merece menção também o artigo 174, caput, da Carta Maior, que
dispõem
se
tratar
o
planejamento
econômico
de
atividade
determinante para o Poder Público, tendo o seu § 1º, previsto que as
diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional
equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e
regionais de desenvolvimento, é matéria de lei, portanto, questão a ser
tratada pelo Congresso Nacional.
215
BRASIL, Constituição da República, 1988, art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a
sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos artigos 49, 51
e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: (...) IV
– planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento. (...) Art. 58. O
Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas
na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato que resultar sua
criação. (...) § 2º. Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: (...) II –
realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; (...) VI – apreciar programas
de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir
parecer.
216
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento, p. 125.
110
Todavia, esses dispositivos que tratam do planejamento do
desenvolvimento andam bastante esquecidos, negligenciados. Daí a
importância de resgatá-los.
Em face da conexão do direito à moradia digna com o direito à
cidade sustentável, o papel dos Municípios nesta função de
planejamento é de elevado destaque, eis que a Constituição de 1988
estabelece em seu artigo 30, VIII, ser da competência municipal
“promover
(...)
adequado
ordenamento
territorial,
mediante
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do
solo urbano”.
A atividade de planejamento urbanístico é incumbência do Poder
Público. Embora a construção de habitações, o parcelamento do solo,
entre
outras
atividades
urbanísticas
devam
ser
deixadas
preferencialmente a carga dos particulares, o Poder Público sempre
deve intervir quando a ordem urbanística estiver ameaçada, como, por
exemplo, nos casos de ocupação desordenada do solo que provoca
colapso nos equipamentos públicos, aumento de criminalidade e
degradação ambiental.
Ao estabelecer regulações, por meio dos Planos Diretores, das
Leis de Uso e Ocupação do Solo, dos Códigos de Posturas e de Obras, da
legislação ambiental, entre outros diplomas, o Poder Público tem o
objetivo de garantir a sustentabilidade da cidade do ponto de vista
ambiental e a equidade do ponto de vista social, permitindo o acesso de
todos os cidadãos aos bens e serviços urbanos, às oportunidades
econômicas, educacionais, culturais, de lazer e de trabalho que a cidade
oferece. Afinal, as cidades existem justamente para isso: ampliar as
oportunidades de desenvolvimento dos cidadãos. Mas para isso
111
ocorrer, imprescindível será que o desenvolvimento urbano ocorra de
maneira planejada. A qualidade da moradia está diretamente
relacionada à qualidade da cidade na qual ela está inserida.
Enfim, o fundamental na ideia de planejamento é a perseguição
de fins que alterem a situação econômica e social vivida em
determinado momento. Trata-se de uma programação da atuação do
Estado voltada para o futuro.
Deste
modo,
consoante
destaca
Gilberto
Bercovici,
o
planejamento, embora tenha conteúdo técnico, é um processo
político.217
Porém, cabe aqui uma ressalva: apesar de político esse processo
sofre
a
incidência
de
normas
jurídicas,
notadamente
das
constitucionais, possibilitando, assim, o seu controle, inclusive pela via
jurisdicional.
Eros Roberto Grau ensina que o plano, produto da atividade de
planejamento, é um ato eminentemente político, que carrega em si a
marca do governo e da maioria que decidiu sobre a sua elaboração. É
um complexo de diversos atos, jurídicos e não jurídicos que se
entroncam entre si, formando um sistema que orienta a ação do Poder
Público e da sociedade em determinado período de tempo.218
José Afonso da Silva defende ser imprescindível que qualquer
entidade pública atue de maneira planejada nos serviços que presta,
nos investimentos que realiza, na forma como gerencia os recursos
públicos, na maneira como influi no desenvolvimento econômico e
social do país.219
217
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento, p. 69-70.
GRAU, Eros Roberto. Planejamento, plano e Direito, p. 91.
219
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico municipal, p. 135.
218
112
Assim, o planejamento estratégico220, como método, deve ser
utilizado em todos os setores das atividades do Poder Público. Logo,
também no âmbito das políticas habitacionais, de modo a articulá-las a
um projeto maior de desenvolvimento do País e, principalmente, de seu
povo.
Levando em conta que a democratização é uma dimensão
importante do desenvolvimento enquanto processo de apropriação dos
direitos humanos, o planejamento das transformações sociais na
direção de uma melhoria das condições de vida deve propiciar o
exercício dos direitos e deveres da cidadania.
O planejamento importa em responder às questões de o que fará
o Poder Público, onde, quando e de que maneira. Há uma relação direta
desse planejamento com a eficiência e a efetividade da ação estatal.
Além disso, a legitimidade tem como fonte a participação dos cidadãos
no processo de elaboração dos planos.
Considerando tais aspectos, tem-se que o enfrentamento
consistente dos problemas sociais da contemporaneidade brasileira e a
concretização progressiva do projeto de desenvolvimento previsto na
Constituição de 1988 demandam, sem sombra de dúvida, a adoção da
metodologia do planejamento estratégico participativo na formulação,
220
De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa estratégia é a arte de aplicar
com eficácia os recursos de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que
porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos (HOUAISS, Antônio;
VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 840). Por seu turno,
Roberto Kanaane, Rosane Segatin Keppke, Renato Aldarvis e Dorival Caldeira da Silva
lembram que “O planejamento estratégico contemporâneo tem origem militar. No
universo coorporativo são frequentes as citações da Arte da Guerra, de Sun Tzu. Credita-se
aos acadêmicos de Harvard o transplante metodológico para o setor privado e dali para o
setor público. O planejamento estratégico emergiu para enfrentar a competitividade
acirrada que foi deflagrada pela globalização. Esse fenômeno impactou não apenas as
empresas, mas também os governos.” (Gestão pública estratégica e a visão do futuro, p.
50).
113
implementação e controle das políticas públicas, inclusive na que se
refere à proteção e promoção do direito à moradia digna rumo à
almejada universalização.
Assim, na formulação das políticas que direta ou indiretamente
repercutam sobre o direito à moradia digna, há um grande desafio em
superar o baixo nível de interlocução entre o Poder Público e os
diversos segmentos da sociedade, notadamente os não ligados ao setor
do mercado imobiliário e da construção civil. É preciso dar voz e vez aos
usuários da cidade, simples moradores, cidadãos. Imprescindível,
portanto, aumentar os níveis de participação na formulação das
políticas. Afinal, como enfatiza Paulo Hamilton Siqueira Júnior, a
cidadania designa a participação do indivíduo nos negócios do Estado:
“Cidadão é aquele que participa da dinâmica estatal. No Estado
Democrático e Social de Direito essa atuação é exercida não apenas
pelo voto, mas os cidadãos participam da tomada das decisões acerca
dos temas de interesse público. No Estado contemporâneo, esse
interesse se realiza pelas políticas públicas”.
221
Um dos caminhos para se democratizar o planejamento estatal e,
por
consequência,
a
Administração
Pública,
são
as
práticas
participativas.
O chamado orçamento participativo atualmente é regra geral.
Experiências pioneiras realizadas em algumas cidades, como Vila VelhaES (no período de 1983-1986), Porto Alegre (a partir de 1989) e Belo
Horizonte (a partir de 1993)222 tornaram-se práticas obrigatórias para
todo e qualquer Município brasileiro graça às previsões da alínea f do
221
SIQUEIRA JR. Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos humanos
e cidadania, p. 251.
222
AVRITZER, Leonardo. O Orçamento Participativo: As Experiências de Porto Alegre e
Belo Horizonte, p. 19-20.
114
inciso III do artigo 4º e do artigo 44 da Lei 10.257/2001 – Estatuto das
Cidades223.
Além disso, prevê o artigo 48, parágrafo único da Lei de
Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de
2000, que a transparência da gestão fiscal será assegurada também
mediante incentivo à participação popular e realização de audiências
públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei
de diretrizes orçamentárias e orçamentos.
A abertura à participação de um número cada vez maior de
atores de todos os segmentos da sociedade, nesse caso, é assegurada
pela realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as
propostas de Planos de Políticas Públicas articuladas com as propostas
de Plano Plurianual, de Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei
Orçamentária Anual.
Neste prisma, a participação, via realização de consultas, debates
e audiências públicas, não há de ocorrer apenas na fase preliminar de
formatação das propostas do Poder Executivo de plano plurianual, de
lei de diretrizes orçamentárias e de lei orçamentária. Há que haver
participação também durante a tramitação do processo nos Poderes
Legislativos, para ouvir os segmentos afetados antes da apresentação
de emendas parlamentares, bem como na fase de execução
orçamentária, por meio de conselhos paritários de gestão do
orçamento público, tal qual sugere Vanderlei Siraque.224
223
Lei 10.257/2001 – Estatuto das Cidades – Art. 4º. Para os fins desta Lei, serão utilizados,
entre outros instrumentos: (....) f) gestão orçamentária participativa; (...). Art. 44. No
âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do
art. 4º desta lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as
propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual,
como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal”.
224
SIRAQUE, Vanderlei. Controle social da função administrativa do Estado, p. 116.
115
E mais: a prática participativa de planejamento de políticas
públicas e sua articulação ou integração com o processo orçamentário
não deve ficar restrita ao nível municipal da Federação, buscando-se
também nos Estados e na União democratizar cada vez mais esses
processos.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto ensina que o instituto das
audiências públicas (public hearings) tem origem nos países anglosaxões, ligando-se aos princípios basilares do devido processo legal (due
process of law), do qual emerge o direito do indivíduo ser ouvido em
matéria na qual esteja em jogo o seu interesse (right to a fair hearing)
como característica impostergável de uma ordem jurídica justa. Assim,
as audiências públicas têm por finalidade o balizamento das decisões a
respeito dos serviços e políticas públicas já existentes ou a criar, de
normas de ordenamento econômico, social ou de fomento público,
mediante coleta de opiniões e debate público.225
Trata-se, como aponta Leonardo Avritzer, de práticas que têm
grande potencial para melhorar a justiça social na distribuição de
recursos públicos, pois com elas se consegue dar maior atenção às
faixas de população de mais baixa renda, que são as que mais precisam
da atuação do Poder Público.226
Para Nelson Saule Júnior, o orçamento participativo tem o
significado de partilha de poder, pois
“não somente os técnicos da burocracia estatal e os governantes
tomam as decisões sobre a arrecadação e os gastos públicos, devido
a participação direta dos indivíduos, comunidade, movimentos
225
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política, p. 128-129.
AVRITZER, Leonardo. O orçamento participativo: As experiências de Porto Alegre e Belo
Horizonte.
226
116
sociais e organização da sociedade civil”.
227
Entende Pedro Pontual que o orçamento participativo é uma
prática que tem potencialidade enorme de transformar uma cultura
política arraigada que é profundamente elitista e autoritária,
expressando-se nas práticas de tutela, clientelismo, fisiologismo e
trocas de favores. Uma transformação que emerge da constituição de
uma cidadania ativa e responsável, da construção de novos espaços
públicos, do alargamento e aprofundamento do exercício da
democrática por meio de novas práticas de gestão da coisa pública.
Uma transformação que emerge de uma prática apta a “pedagogizar” o
conflito, no sentido almejado por Paulo Freire. 228
O orçamento participativo, de fato, tem inúmeras vantagens, vez
que possibilita: a) a construção de critérios objetivos e transparentes de
distribuição dos recursos públicos; b) a tomada de uma consciência
mais efetiva por maior número de pessoas das possibilidades e dos
limites dos recursos públicos; c) uma visão mais clara das atribuições de
cada uma das esferas de poder (entes federativos e poderes estatais);
d) o desvelamento dos mecanismos de funcionamento da máquina do
Estado e dos procedimentos de elaboração e execução orçamentária; e)
o aprendizado de que o conflito faz parte do processo de elaboração de
políticas públicas e de planejamento orçamentário e de que são
necessárias regras claras e democráticas para a disputa dos interesses e
para a negociação .
No plano simbólico, o orçamento participativo propicia um
227
SAULE JÚNIOR, Nelson. A participação dos cidadãos no controle da Administração
Pública.
228
PONTUAL, Pedro. Nova cultura política no orçamento participativo, p. 47.
117
sentimento de pertencimento, fazendo o cidadão valorizar os
investimentos e as ações estatais como algo que é seu, que ele
colaborou para realizar, participando da construção da decisão pública.
Além disso, a prática participativa promove a educação política
do povo; fomenta o controle social das políticas públicas; fortalece o
senso de solidariedade; desenvolve a capacidade de negociação de
conflitos, de hierarquização de prioridades e de construção de
consensos; permite que mais pessoas passem, paulatinamente, a
entender o modus operandi229 dos processos de tomada de decisões e
de gestão da coisa pública. Enfim, contribui efetivamente para o
empoderamento das classes mais frágeis da sociedade e sua integração
na cidadania.
Por outro lado, vem a calhar a advertência de Leonel Pires
Ohlweiler:
“O nível de democracia imprescindível para um autêntico conjunto
de políticas públicas certamente exige a construção de estratégias
capazes de expressarem as aspirações da comunidade, manifestadas
em debates e audiências públicas, mas que não se divorciem do
projeto de legitimidade constitucional formal e substancial. Com isto
quer-se dizer que a regra majoritária não é e não pode ser absoluta.
Existem limites até mesmo para os espaços de deliberação
participativa”.230
Na retomada dessa discussão, deve-se iniciar lembrando que a
atual concepção de planejamento, à luz da Constituição de 1988, que
estabelece que o Brasil é uma República Democrática e um Estado
Social de Direito, exige que a dimensão técnica dialogue com a
dimensão política, que a programação das atividades estatais ocorra
dentro de uma metodologia democrática e participativa. Consoante
229
230
Tradução livre: funcionamento; maneira ou modo de operar.
OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional, p. 336.
118
adverte Tania Bacelar Araújo:
“O planejamento não pode ser entendido como uma atividade
técnica de organização do processo decisório (ênfase da razão
técnica). Na concepção contemporânea, o planejamento é visto
como um processo de negociação e decisão política, envolvendo
diferentes atores e grupos sociais, portadores de interesses diversos
e capacidade de influenciação e poder também distintos (Matus,
1989). O processo de planejamento organiza o círculo decisório, que
é alimentado e fundamentado por recursos e instrumentos técnicos e
organizacionais, mas seu caráter é essencialmente político. No
planejamento governamental, o Estado é ator estratégico da
implementação de um projeto dominante e um locus importante da
luta social. O processo de planejamento incorpora as decisões que
resultam da negociação técnico-política. Essa concepção do
planejamento tem uma importância fundamental na estruturação do
sistema institucional encarregado de produzir planos, programas e
projetos. Ela impede a reprodução da experiência de livros-planos,
meras declarações de intenções, produtos de elaboração
tecnocráticas, sem força nem patrocínio político.”231
No plano do direito à moradia, é importante que a integração
planejamento-orçamento não mais ignore que a maior parte da
população urbana brasileira é pobre, tem baixíssima renda e pouca ou
nenhuma capacidade de investir em um bem extremamente caro como
é uma unidade habitacional construída em terreno urbanizado. Daí
porque moradia não pode ser tratada exclusivamente como uma
mercadoria.
Quando não há planejamento, ou quando esse planejamento
excluir essa significativa parcela da população, ela terá que resolver por
231
ARAÚJO, Tania Bacelar. Planejamento regional e relações intergovernamentais, p. 476.
Klaus FREY (A dimensão político democrática das teorias de desenvolvimento sustentável
e suas implicações para a gestão local, p. 7-12) lembra que, em sentido contrário à
abordagem política de participação democrática, há aqueles que defendem uma visão
tecnocrática e autoritária de planejamento, sustentando que o povo não dispõe de
maturidade e capacidades suficientes para tomar decisões prudentes em um processo
complexo como é o de planejar o desenvolvimento.
119
si só sua necessidade de moradia, produzindo habitações de forma
autoconstruída nos espaços que sobram da cidade, ou seja, nos espaços
não ocupados pelos mercados formais, como as beiras de córregos, as
encostas, as áreas de preservação ambiental ou de risco ou insalubres,
com resultados socioambientais desastrosos.
Portanto, é preciso levar a sério as diretrizes estabelecidas na
Constituição de 1988 e as linhas gerais nela estabelecida para que
sejam elaboradas e executadas políticas públicas consistentes, aptas a
conduzir o país a um processo de desenvolvimento que elimine a
pobreza, redistribua riquezas e oportunidades, reduza desigualdades e
ofereça a todos as condições mínimas de uma vida digna. Enfim, para
que a moradia digna, mais do que um direito enunciado, torne-se algo
efetivamente usufruído por todos os brasileiros, concretize-se de uma
vez por todas no cotidiano nacional, aproximando-se cada vez mais o
ideal do texto da realidade.
2.4. PLANEJAMENTO E ORÇAMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS E DIREITO À MORADIA
Deve-se levar em conta que as políticas públicas de proteção e
promoção dos direitos tornam-se estritamente retóricos, esvaziados de
sentido prático, se não tiverem o adequado suporte financeiro. Assim,
entender o regime jurídico do orçamento público é indispensável para
que se possa garanti-lo pelos controles democráticos, inclusive o
jurisdicional, se necessário.
Contudo, a efetivação do programa constitucional, que perpassa
o enfrentamento dos problemas habitacionais brasileiros, demanda que
120
não se caia no vício de reduzir o planejamento da ação estatal ao
processo orçamentário.
E mais, para que os planos estejam de acordo com a realidade e
tenha condições de “sair do papel” e concretizar-se na vida das pessoas,
imprescindível a integração entre planejamento estratégico e processo
orçamentário participativo, sendo este um dos nós górdios do problema
da falta de efetividade do direito à moradia digna no Brasil.
Salienta-se, entretanto, que
o
planejamento
das
políticas
públicas, dentre elas a habitacional, vai além do processo orçamentário.
O planejamento das políticas públicas envolve a elaboração de
leis programáticas como são as leis que tratam do orçamento das
receitas e despesas públicas. Porém, o planejamento das políticas
públicas é muito mais do que o orçamento público. O orçamento
público é a simples previsão de gastos, que pode ocorrer ou não. O
orçamento é apenas uma forma de coordenar mais racionalmente os
gastos públicos.
É que o orçamento público, no Brasil, por não ter caráter
vinculativo, torna-se mera previsão e autorização de gastos públicos.
Trata-se de leis programáticas, de mera programação da receita e da
despesa pública, que autoriza, mas não obriga o Poder Público a realizar
os gastos nele previstos e autorizados.
Ao contrário, o planejamento de uma política pública fixa
diretrizes para a atuação do Estado. É o planejamento que define os
objetivos a serem atingidos pelo Poder Público, e quantifica metas,
sendo assim, pressuposto ou condição de possibilidade para o exercício
dos controles, não só quanto ao desvio de poder, mas, sobretudo, no
121
que diz respeito às omissões232.
Por isso é que se torna necessário fomentar uma cultura de
planejamento por meio de lei. Uma lei que defina um plano de política
pública, explicitando objetivos e metas a serem obrigatoriamente
alcançados em determinado período de tempo.
Ainda que se possa fazer planejamento apenas no âmbito da
Administração Pública, imprescindível que ele seja elaborado no âmbito
do Parlamento para tornar-se política de Estado, e não de apenas uma
gestão governamental. Impende também que, ao contrário das leis
orçamentárias, as leis contemplando planos estratégicos não
contemplem apenas autorizações para gastos e realização de atividades
públicas, mas tenham sim caráter vinculativo quanto ao alcance das
metas.
Por um lado, o planejamento não pode ser reduzido à
orçamentação, por outro, é claro que o planejamento deve estar
vinculado ao orçamento. Sem previsão de recursos financeiros, o plano
não sai do papel, torna-se peça meramente retórica. O que se salienta
aqui é o empecilho à concretização do programa constitucional de
desenvolvimento, inclusão e emancipação, colocado pelo mau vezo de
reduzir o planejamento ao orçamento. E é justamente a falta de um
planejamento consistente (inclusive com previsão de recursos
orçamentários) de uma política nacional de habitação um dos grandes
fatores da atual crise de efetividade do direito à moradia.
Com efeito, a questão transcende a eficácia da norma
constitucional que consagra o direito humano fundamental à moradia.
Não é a falta ou pouca eficácia da norma constitucional a responsável
232
Omissão no sentido de não fazer o deveria ser feito, portanto, um conceito normativo,
ligado à tutela contra a inércia ou proteção insuficiente de um direito.
122
pela atual crise de efetividade do direito à moradia, mas sim o déficit de
efetivação do programa constitucional. Um desafio que pode ser
enfrentado de maneira mais consistente com o auxílio do ferramental
metodológico do planejamento estratégico.
Referencial importante nesta seara é o chamado Planejamento
Estratégico Situacional, divulgado no Brasil no final dos anos 80 e início
dos anos 90, por Carlos Matus233, e que se propõe a trabalhar com
problemas, oportunidades e ameaças, identificando-se suas causas,
seus sintomas e suas consequências.
Um dos grandes méritos do método do Planejamento Estratégico
Situacional de Carlos Matus é que a abordagem da realidade por
problemas permite o diálogo e a participação com os setores da
sociedade que sofrem os efeitos dos problemas concretos a serem
enfrentados, aproximando a dimensão técnica e a dimensão política do
planejamento.
Com base na teoria dos jogos234, esta metodologia propugna que
também sejam feitas análises sobre as possíveis interações que atores
sociais, por força de seus interesses, terão para com ações estratégicas
planejadas. Em suma, defende-se o planejamento a partir de uma
abordagem sempre situacional, isto é, situada em determinado
contexto concreto e focada em problemas que devem ser
233
Economista chileno, Carlos Matus foi Ministro do Governo Allende (1973). Criou a
Fundação Altadir, com sede na Venezuela para dirigir o método do Planejamento
Estratégico Situacional e capacitar dirigentes. Ministrou vários cursos no Brasil nos anos 90.
234
A teoria dos jogos leva em conta as ações de natureza estratégica, que são aquelas que
buscando a realização de um determinado interesse. A análise é feita na dinâmica das
interações, identificando as tendências de comportamento consoante as informações
disponíveis a cada jogador nas diversas rodadas. Para aprofundar sobre a teoria dos jogos e
suas aplicações nas análises econômicas do Direito, ver: FIANI, Ronaldo. Teoria dos jogos.
RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI JUNIOR, Irineu. Teoria Geral dos contratos:
Contratos empresarias e análise econômica, p. 108-114.
123
enfrentados.235
Ensina Francisco Antônio Cavalcanti que o pressuposto básico
para o êxito no planejamento estratégico e na sua implementação é a
legitimidade, e está é garantia pela participação. Uma participação
qualificada que garanta o máximo possível de informação a todos os
atores. Escolia igualmente que:
“O modelo básico de planejamento estratégico compõe-se de
estágios claramente delineados, que envolvem a definição de
propósitos da organização, a definição de seus princípios, o
diagnóstico das realidades ambientais, a escolha das estratégias, a
fixação dos objetivos e a concepção das ações. (...) A rigor, ao plano
estratégico subordinam-se o plano tático, correspondente às metas e
às ações, e o plano operacional, expresso nas agendas de trabalho
para a implementação dessas ações”.236
Por seu turno, mas na mesma direção, José Matias-Pereira
sustenta que:
“Facilitar a solução de problemas pela ação catalisadora aplicada a
toda comunidade através do planejamento estratégico, baseado na
previsão do que vai acontecer, é um bom caminho a ser seguido pelo
237
governo.”
José Afonso da Silva238, considera o processo de planejamento
como a definição de objetivos determinados em função de uma
realidade e da manifestação de uma população, a preparação dos
meios para atingi-los, o controle de sua aplicação e a avaliação dos
resultados obtidos. Na ótica do autor, desdobra-se o processo de
planejamento nas seguintes etapas:
235
MATUS, Carlos. Política, planejamento, governo.
CAVALCANTI, Francisco Antônio. Planejamento estratégico participativo, p. 97 e 163.
237
MATIAS-PEREIRA, José. Finanças públicas, p. 258.
238
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro, p. 142-144.
236
124
I – Estudos preliminares: que levantam dados e avaliam de forma
sumária a situação e os problemas a serem enfrentados;
II – Diagnóstico: que pesquisa e analisa em profundidade os
problemas selecionados na etapa anterior, identifica as variáveis
que devem ser consideradas para as soluções desses problemas e
prevê suas perspectivas de evolução. O diagnóstico busca
responder às seguintes perguntas: Quais são os problemas
existentes? Quais as necessidades a atender? Que tipos de
atuação devem ser desenvolvidos? Portanto, o diagnóstico
corresponde a uma análise da situação visando coligir dados
informativos para estabelecer as diretrizes das mudanças que se
quer implementar. Envolve, portanto, uma análise retrospectiva
da situação existente, buscando suas causas, bem como uma
análise projetiva, em que serão salientados os meios necessários
que deverão ser utilizados para a solução dos problemas
verificados, bem como em que serão estruturados os programas
e os projetos destinados a alcançar os objetivos escolhidos;
III – Plano de diretrizes: no qual se estabelece uma política para as
soluções dos problemas escolhidos, definem-se metas, faz-se a
seleção dos meios, fixam-se as diretrizes para a atuação estatal; e
IV – Instrumentação do plano: que compreende a elaboração dos
instrumentos de atuação, de acordo com as diretrizes
selecionadas, e identifica as medidas capazes de atingir os
objetivos escolhidos. É o plano propriamente dito, com relatórios,
mapas, quadros, propostas de transformação, previsão dos
recursos técnicos, humanos e financeiros necessários à
implementação do plano a curto, médio e longo prazos.
Na síntese de José Matias-Pereira, embora se perceba algumas
pequenas diferenças de nomeclatura e na separação das etapas,
conforme a metodologia adotada, em essência, o processo de
125
planejamento estratégico envolve as seguintes atividades: a) a análise
da situação interna e externa; b) o diagnóstico ou identificação das
questões mais importantes à frente da organização; c) a definição da
sua missão fundamental; d) a articulação de seus objetivos básicos; e) a
criação de uma visão do sucesso almejado; f) o desenvolvimento de
uma estratégia para realizar a visão e os objetivos definidos; g) a
elaboração de um calendário para executar a estratégia e h) a
mensuração e avaliação dos resultados alcançados.239
A metodologia do planejamento estratégico resta incorporada no
processo orçamentário com o advento do chamado “orçamentoprograma”. O que não pode ocorrer é cair-se no vício de reduzir o
planejamento a simples elaboração das peças orçamentárias.
Destaca Fabiano Garcia Core que todo e qualquer sistema
orçamentário compreende o desempenho de três funções básicas: a de
planejamento, a de gerência e a de controle das ações estatais,
estruturando-se de acordo com ênfase dada a cada uma dessas
funções.240
A vinculação necessária entre o planejamento das políticas
públicas e o orçamento público, põe em relevo a função planejamento,
típica do chamado orçamento de desempenho ou orçamentoprograma, que é aquele que apresenta os propósitos e objetivos para
os quais os créditos orçamentários se fazem necessários; é o orçamento
que apresenta os custos dos programas propostos para atingir aqueles
objetivos; é o orçamento que apresenta indicadores para que se meçam
as realizações e os trabalhos levado a efeito por cada um dos
programas propostos. Enfim, é um sistema que privilegia a função de
239
240
MATIAS-PEREIRA, José. Finanças públicas, p. 258.
CORE, Fabiano Garcia. Reformas orçamentárias no Brasil, p. 1.
126
planejamento estratégico.
Os conceitos de orçamento-programa e planejamento estratégico
da ação governamental foram bastante difundidos nos anos 60, por
manuais e seminários patrocinados pela Organização das Nações
Unidas, com destaque para o “Manual de Orçamento por Programas e
Realizações”, publicado em 1962, parte das iniciativas para fomentar o
desenvolvimento dos países economicamente pobres.
A introdução oficial deste instrumento no Brasil ocorre com a Lei
4.320, de 17 de março de 1964, que incorpora várias disposições dos
manuais das Nações Unidas sobre orçamento por programas e
realizações. 241
Seguindo as recomendações dos manuais das Nações Unidas,
bem como se valendo das experiências positivas do Governo dos
Estados Unidos, o artigo 2º da Lei 4.320/64 estabeleceu que:
“A Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e da despesa
de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa
de trabalho do governo, obedecidos os princípios da unidade,
universalidade e anualidade”.
Atualmente, o regime jurídico do orçamento público está, em sua
base, estabelecido na Constituição de 1988, notadamente nos artigos
165 a 169, além dos artigos 70 a 75 (normas sobre o controle da
execução orçamentária), do artigo 99 (orçamento do Poder Judiciário) e
artigo 31 (a fiscalização orçamentária nos Municípios), na Lei 4.320/64,
recepcionada com força de Lei Complementar, e na Lei Complementar
101/2000.
241
A Lei 4.320/64 é produto de várias colaborações. Remonta ao anteprojeto elaborado em
agosto de 1949 durante a 3ª Conferência da Contabilidade Pública e Assuntos Fazendários
que se fundiu com outro, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Conselho Técnico
de Economia e Finanças, em 1957.
127
Em seu regramento jurídico contemporâneo, o orçamento
público está inserido no contexto das atividades de planejamento da
ação estatal, isto é, na concepção das políticas públicas, importando em
responder às questões de o que o Poder Público irá fazer, onde, quando
e como. A técnica de planejamento desmembra-se nas etapas de
diagnóstico, programação, execução e controle, avaliação e revisão.242
A linguagem orçamentária é essencialmente contábil. O elemento
básico de expressão do orçamento são contas, por meio das quais se
antecipa,
por
projeção,
as
receitas
e
despesas
(orçamento
propriamente dito), se registra as operações financeiras de receitas e
despesas (execução orçamentária) e se demonstra os resultados dessas
operações e da situação patrimonial (balanços e relatórios).
Não obstante a linguagem contábil do orçamento, que salienta
sua dimensão técnica, é importante lembrar que tanto as receitas
tributárias, como as despesas públicas são fruto de decisões políticas,
muitas delas já tomada no plano constitucional, muitas outras deixadas
em aberto para o campo da Política e da Democracia cotidianas.
Nessa linha, Eduardo de Lima Caldas aponta que o orçamento
público:
“não é uma mera listagem de números e valores de significado
apenas contábil, embora muitas vezes seja apresentado numa forma
técnica muito complexa, o que dificulta o conhecimento e a
apropriação do seu conteúdo por parte de grupos organizados da
sociedade. O acesso a essas informações permite à população
intervir na disputa por recursos voltados à melhoria das suas
condições de vida. Quando as reivindicações de um segmento da
sociedade são publicamente incorporadas ao orçamento, estas
deixam de ser entendidas como um favor e adquirem o caráter de
242
SIRAQUE, Vanderlei. Controle social da função administrativa do Estado, p. 151.
128
direito.”
243
Destacando o processo de negociação política que perpassa a
elaboração do orçamento público, Paulo Romeiro afirma que:
“o orçamento elaborado pelo Executivo é negociado com os
diferentes setores sociais representados no Legislativo. Estes
expressam os interesses de seus representados, apresentando
emendas à peça orçamentária que busquem atender suas demandas.
Um dos palcos privilegiados para essa negociação é a Comissão do
Orçamento, presente nos três níveis do Poder Legislativo. (...) Os
parlamentares também podem decidir o destino dos chamados
créditos especiais ou suplementares. São recursos que, em virtude do
processo de discussão no Legislativo, ficam sem as despesas
correspondentes, seja em decorrência de veto, emenda ou rejeição
do projeto de lei orçamentária e que poderão ser utilizados mediante
autorização legislativa prévia e específica”. 244
Assim, acompanhar o direcionamento de recursos e reivindicar
sua aplicação em determinada área de atuação do Estado é uma forma
de verificar se há ou não comprometimento das gestões públicas em
reduzir as desigualdades e buscar efetivação dos direitos sociais, dentre
os quais o direito à moradia digna.
Hélio Saul Mileski, por sua vez, põe em relevo que o orçamento
público exerce grande influência na vida de cada cidadão, na medida
em que:
“É por meio do orçamento público que o Estado pode proceder a
uma redistribuição de renda, aumentando ou reduzindo a carga
tributária. É pelo orçamento público que o Estado diz se vai colocar
uma lâmpada no último poste, da última rua, da última vila da
periferia, ou se vai construir um palácio ou uma usina elétrica”.245
243
CALDAS, Eduardo de Lima. Apresentação e acompanhamento do orçamento público do
município de São Paulo no período recente, p. 9-10.
244
ROMEIRO, Paulo. O controle social do orçamento público, p. 14-15.
245
MILESKI, Hélio Saul. O controle da gestão pública, p. 45.
129
O que fazer? Onde? Quando? Como? Com quais meios? Em
suma, o processo de planejamento, de formulação de políticas públicas,
que se integra com o processo orçamentário, e se concretiza na sua
execução, visa responder a essas perguntas. Nesta linha, enfatiza James
Giacomoni que
“hoje o orçamento deve ser visto como parte de um sistema maior,
integrado por planos e programas de onde saem as definições e os
elementos que vão possibilitar a própria elaboração
orçamentária”.246
No regramento da Constituição de 1988, a compatibilização entre
o planejamento das políticas públicas e sistema orçamentário se
desdobra em três instrumentos sob a forma de leis e que devem estar
entre si articulados: o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. Tudo conforme disposto nos
artigos 165, 166 e 167 do Texto Maior.
O Plano Plurianual estabelece o planejamento global da ação
governamental de longo prazo. Trata-se de um plano de trabalho no
qual se busca responder à seguinte questão: Nos próximos quatro anos,
o que será feito pelo Poder Público, além de manter aquilo que já
funciona?
Como
plano
de
expansão
e
aprimoramento
da
ação
governamental, tem período de vigência intergovernamental (vigora do
segundo ano de determinado mandato do Chefe do Poder Executivo e
se estende até o primeiro ano da próxima gestão) visando garantir a
continuidade de diversos programas.247
246
GIACOMONI, James. Orçamento público, p. 206.
CALDAS, Eduardo de Lima. Apresentação e acompanhamento do orçamento público do
Município de São Paulo no período recente, p. 11. No mesmo sentido, LIMA, Edilberto
247
130
Para Ricardo Lobo Torres,
“O plano plurianual tem por objetivo estabelecer os programas e as
metas governamentais de longo prazo. É planejamento conjuntural
para a promoção do desenvolvimento econômico, do equilíbrio entre
as diversas regiões do País e da estabilidade econômica”.248
Escolia, por sua vez, Gilberto Bercovici que, o plano plurianual,
introduzido pelo artigo 165, I e § 1º, da Constituição brasileira de 1988,
tem por fundamento o encadeamento entre as ações anuais de
governo, previstas no orçamento anual com um horizonte de tempo
maior, necessário para um planejamento efetivo.249
Dispõe o § 1º do artigo 167 da Constituição que nenhum
investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá
ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, prevendo que o
ordenador da despesa que não cumprir esse preceito será
responsabilizado. Alterações na lei orçamentária anual somente
poderão ser aprovadas se compatíveis com o Plano Plurianual (artigo
166, § 3º). Além disso, reza o § 4º do artigo 165 da Constituição que o
custeio de todos os programas nacionais, regionais e setoriais previstos
na Constituição – como é o caso dos programas nacionais de
urbanização e/ou habitação social - deve se compatibilizar com o plano
plurianual.
Para estabelecer uma conexão entre os instrumentos de
Carlos Pontes; MIRANDA, Rogério Boueri. O processo orçamentário brasileiro, p. 323: “O
PPA é um instrumento de planejamento a médio prazo e deve estabelecer as diretrizes para
as despesas de capital e para as de duração continuada. Tem duração de quatro anos,
revisado anualmente. A vigência é do segundo ano do mandato do presidente da República
até o primeiro ano do mandato do presidente que o suceder. A vigência entre dois
governos foi estabelecida com o intuito de tentar evitar solução de continuidade entre as
ações governamentais quando da mudança de governo”.
248
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 172.
249
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento, p. 80.
131
planejamento, o Plano Plurianual deve ser detalhado em um plano de
metas para cada ano. Este plano de metas anual chama-se Lei de
Diretrizes Orçamentárias porque define as normas gerais para a
elaboração da Lei Orçamentária Anual, além de estabelecer as metas
compatíveis com o Plano Plurianual a serem atingidas no ano vindouro
mediante a execução da Lei Orçamentária Anual. Portanto, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias é uma “ponte” entre o Plano Plurianual e a Lei
Orçamentária Anual.
De acordo com a cátedra de Ricardo Lobo Torres250:
“A lei de diretrizes é, em suma, um plano prévio, fundado em
considerações econômicas e sociais, para a ulterior elaboração da
proposta orçamentária do Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52,
XIII), do Judiciário (art. 99, § 1º) e do Ministério Público (art. 127, §
3º).” 251
Hely Lopes Meirelles252 ensina que a lei de diretrizes
orçamentárias deve estabelecer as metas e prioridade da Administração
para o exercício financeiro subsequente, orientar a elaboração da lei
orçamentária anual, dispor sobre as alterações na legislação tributária e
ser aprovada até o final do primeiro semestre de cada ano (CF, art. 165,
§ 2º). A Lei de Diretrizes Orçamentárias também deve estabelecer a
política das agências financeiras de fomento (CF, artigo 165, § 2º). Há
possibilidade
de
emendas
ao
projeto
de
Lei
de
Diretrizes
Orçamentárias, desde compatíveis com o plano plurianual (CF, artigo
166, § 4º).
A Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2000, conhecida
como “Lei de Responsabilidade Fiscal”, no seu artigo 4º, § 1º, previu
250
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 174-175.
Referências feitas ao Texto Constitucional.
252
Meirelles, Hely Lopes. Direito Municipal brasileiro, p. 249.
251
132
uma nova função para a Lei de Diretrizes Orçamentárias, a de
planejamento trienal. Daí se prever o instrumento do Anexo de Metas
Fiscais, que deve integrar o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias.
No Anexo de Metas Fiscais serão estabelecidas metas anuais, relativas a
receitas, despesas, resultados nominal e primário253 e montante da
dívida pública, para o exercício a que se referir a Lei de Diretrizes
Orçamentárias e para os dois seguintes.
Por fim, tem-se a Lei Orçamentária Anual, elaborada segundo a
Lei de Diretrizes Orçamentárias, constituindo o orçamento público
stricto sensu254, eis que prevê as receitas e fixa as despesas de um ano
de governo.
Aprovada a Lei Orçamentária Anual, esta é publicada no Diário
Oficial. A partir de então o Poder Executivo tem até trinta dias para
estabelecer a programação financeira e o cronograma de execução
mensal de desembolsos (artigo 8º da Lei Complementar 101/2000)255.
É imprescindível que haja um vínculo entre o planejamento
estratégico, o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei
orçamentária anual (orçamento-programa). Inclusive, nesse sentido, é a
redação expressa do § 4º do artigo 165256 e do artigo 167, I257, da
Constituição da República e do artigo 40, § 1º do Estatuto das Cidades,
253
Resultado primário é a diferença entre receitas e despesas, excluído tudo o que diga
respeito a juros e a principal da dívida, tanto pagos quanto recebidos. Resultado nominal é
a diferente entre todas as receitas arrecadadas e todas as despesas empenhadas.
254
Em tradução livre: em sentido estrito.
255
BRASIL. Lei Complementar 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal – Art. 8º. Até 30
(trinta) dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de
diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do inciso I do artigo 4º, o Poder
Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma mensal de desembolso.
256
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 165. (...) § 4º. Os planos e programas nacionais,
regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o
plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.
257
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 167. São vedados: I – o início de programas ou
projetos não incluídos na lei orçamentária anual; (...).
133
Lei 10.257/2001:
“Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 1º. O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento
municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e
o orçamento anual incorporar as diretrizes e prioridades nele
contidas.”
Planejamento e processo orçamentário são duas dimensões que
se complementam. Sem previsão de recursos, os planos não têm
condições de sair do papel, tornam-se peças meramente retóricas,
simbólicas, demagógicas, de fachada.
Por outro lado, orçamento sem planejamento corre o risco de
torna-se peça de ficção, posto que sua natureza jurídica é meramente a
de ato autorizativo.
A lei orçamentária autoriza, mas não obriga o Poder Público à
realização de gastos públicos, a fazer os investimentos nela
contemplados. Deste modo, é o plano, previsto em lei, contemplando
metas vinculativas, isto é, resultados concretos que deverão ser
obrigatoriamente alcançadas, que assegura efetividade da promoção e
proteção de determinado direito social por meio de políticas públicas,
além de viabilizar o controle social por meio do monitoramento dos
respectivos indicadores.
Observa-se, uma tendência de redução do planejamento estatal à
elaboração dos planos plurianuais e leis orçamentárias, olvidando-se da
necessidade de se construir democraticamente, com a participação da
sociedade e dos seus representantes no Poder Legislativo, um projeto
mais amplo de desenvolvimento socioambientalmente sustentável, tido
como a política das políticas públicas, isto é, como a principal política
134
pública, responsável pela conformação e harmonização de todas as
políticas públicas, regionais, locais e setoriais. Na síntese de Gilberto
Bercovici:
“A partir da década de 1980, o planejamento foi totalmente
abandonado pelo Estado. A atuação estatal caracteriza-se, desde
então, como desprovida de uma diretriz global para o
desenvolvimento nacional. A política econômica limitou-se à gestão
de curtíssimo prazo dos vários “planos” de estabilização econômica.
Deste modo, o Poder Público foi incapaz de implementar políticas
públicas coerentes, com superposição e implementação apenas
parcial de diversos planos ao mesmo tempo”258
A falta de cumprimento pelo Poder Legislativo da obrigação,
prevista no § 1º do artigo 174 da Constituição de 1988259, de editar
legislação fixando diretrizes e bases para o planejamento do
desenvolvimento nacional, é deveras sintomática da pouca importância
que vem sendo dada à função, ao poder-dever, de o Poder Público
planejar estrategicamente o desenvolvimento econômico e social do
Brasil. 260
Há, pois, na contemporaneidade, uma crise na função estatal de
planejamento, uma crise que irradia seus efeitos no campo do direito à
moradia digna, e que está a demonstrar a premência de se retomar a
discussão do tema e de fazê-lo retornar à agenda política nacional.
258
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento, p. 76.
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 174. (...) § 4º. A lei estabelecerá as diretrizes e bases
do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e
compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
260
Exemplo bastante elucidativo da redução do planejamento ao orçamento foi o Plano
Brasil em Ação do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que se assemelha
estruturalmente às primeiras experiências de planificação dos gastos estatais no Brasil,
desenvolvidas pelo DASP – Departamento Administrativo do Estado Novo, durante o Estado
Novo (o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional de 1939 e o
Plano de Obras e Equipamentos de 1943). Ou seja, documentos que se limitam à propostas
orçamentárias, sem garantir efetivamente os recursos necessários para a concretização do
plano, nem fixam objetivos e metas a serem obrigatoriamente atingidos pela atuação do
Estado.
259
135
Daí a importância de se resgatar a prática do planejamento no
setor público brasileiro. Um planejamento que seja feito de forma
democrática, com participação do Poder Legislativo e com intensa
participação também dos diversos segmentos da sociedade civil.
Um planejamento que seja fruto da democratização do processo
político, da imposição do melhor argumento no processo comunicativo
de formação de opinião e na criação de uma esfera pública, sustentada
pela sociedade civil, que se torne a força motriz para a promoção do
desenvolvimento sustentável.261
Por fim, e não menos importante, um planejamento cujo
resultado se revista da forma de lei, prevendo metas a serem
obrigatoriamente alcançadas pelos Governos, na medida em que
consubstancie Políticas de Estado.
Levando em conta que moradia é um direito humano
fundamental e que o acesso a unidades habitacionais estruturalmente
seguras e salubres, situadas em áreas com infraestrutura, saneamento
ambiental, mobilidade, transporte coletivo, equipamentos e serviços
urbanos e sociais, precisa ser universalizado. Enfrentar esse grande
desafio demanda, sem dúvida, que as políticas públicas pertinentes
resultem de um bom planejamento estratégico e de uma constante
mobilização cívica que neutralize os riscos de bloqueio neoliberação à
efetivação dos direitos humanos fundamentais que dependem da
atuação do Poder Público.
261
FREY, Klaus. A dimensão político-democrática nas teorias de desenvolvimento
sustentável e suas implicações para a gestão local, p. 17.
136
2.5. O RISCO DE BLOQUEIO NEOLIBERAL À UNIVERSALIZAÇÃO
DO DIREITO À MORADIA DIGNA
O neoliberalismo, presente na cena política mundial a partir do
final da década de 1980 é, caracterizado, na síntese de Enzo Bello, como
um movimento que apresenta fortes críticas ao Estado, aponta para o
desaparecimento da sua responsabilidade social, revelando uma
verdadeira cultura de “Estadofobia”, pregando, portando, uma
reorganização estrutural do aparato burocrático estatal, mediante
reformas e desestatização.262
O ideário neoliberal se fez presente no Brasil, tendo como um
diploma de grande expressão a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei
Complementar n. 101/2000, a qual, segundo a análise de Gilberto
Bercovici e Luís Fernando Massonetto, coroa um processo iniciado nos
anos 1970.263
Com a crise econômica mundial da década de 1970, várias
reformas foram realizadas para alterar o padrão de financiamento do
Estado brasileiro, até então pautado na emissão de moeda, geradora de
inflação.264
Entre essas reformas, destaca-se a criação, pelo Decreto n.
262
BELLO, Enzo. Cidadania e direitos sociais no Brasil, p. 191.
BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição Dirigente Invertida.
264
A estruturação financeira do Estado brasileiro, durante o regime militar, expressava-se
em quatro peças orçamentárias distintas: 1) o Orçamento Geral da União, que era o
orçamento fiscal, sendo essa a única peça orçamentária aprovada formalmente pelo
Congresso Nacional; 2) o Orçamento da Previdência Social, definido e implementado
apenas no âmbito do Executivo; 3) o Orçamento das Empresas Estatais, também elaborado
e executado exclusivamente pelo Executivo, e 4) o Orçamento Monetário, peça em que
eram fixadas as metas quantitativas das duas autoridades monetárias: o Banco Central e o
Banco do Brasil e que era manipulado pela conta-movimento do Banco do Brasil, criada em
março de 1965, e que, na prática, representava emissão de moeda pelo Tesouro Nacional
para financiamento do déficit público, que era camuflado e, por isso, não constava do
Orçamento Geral da União.
263
137
84.128, de 29 de outubro de 1979, da Secretaria de Controle das
Empresas Estatais. Com a redemocratização, motivado pela profunda
crise econômica herdada pela Nova República, o processo de
reestruturação financeira acelera. Em 1986 é criada a Secretaria do
Tesouro Nacional, que passa a administrar os fundos e programas de
fomentos até então gerenciados pelo Banco Central. Em 31 de janeiro
de 1986, o Conselho Monetário Nacional, por força do Voto n. 45/86,
congela o saldo da conta-movimento do Banco do Brasil, encerrando,
na prática suas atividades.
Com o Plano Bresser, de 1987, editado pelos Decretos 94.443 e
94.444, ambos de 12 de junho de 1987, e pelo Decreto-Lei n. 2376, de
25 de novembro de 1987, a gestão da dívida pública sai da esfera de
competências do Banco Central e passa para o Ministério da Fazenda.
Além disso, o Banco Central deixa de ser financiador do Tesouro
Nacional, bem como são extintas suas funções de fomento.
A Constituição de 1988265 consolidou a unificação monetária e
orçamentária, ampliando a participação do Poder Legislativo na
elaboração, aprovação e execução do orçamento, além de se aumentar
a transparência dos gastos públicos.
Durante a década de 1990, ocorrem a privatização dos bancos
estaduais e a consolidação da autoridade monetária centralizada no
Banco Central.
Por fim, tem-se no ano 2000 a edição da Lei de Responsabilidade
265
Apontam BERCOVICI e MASSONETTO que as origens da ordem financeira da Constituição
de 1988 estão na estruturação econômico-financeira da ditadura militar, iniciada com o
Plano de Ação Econômica do Governo, elaborado por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de
Bulhões, em 1964, que resultou, por exemplo, na criação do Banco Central do Brasil, pela
Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, como órgão de defesa da moeda nacional, função
essa compartilhada com o Banco do Brasil, além de algumas funções de fomento
econômico.
138
Fiscal (Lei Complementar n. 101) que coroa um processo iniciado na
década de 1970.
A face perigosa desse processo de reestruturação das finanças
públicas, buscando o equilíbrio das contas públicas, tendo como norte a
geração de superávits para pagamento da dívida pública, é o
esgotamento, ou redução drástica, da capacidade de intervenção do
Estado na área econômica e social.
Busca-se, de maneira drástica, garantir-se o pagamento da dívida
financeira, e se esquece da enorme dívida social, concentrada na
grande parcela pobre e marginalizada da população.
Diminui-se consideravelmente a capacidade do Estado brasileiro
de realizar na prática o programa de desenvolvimento previsto na
Constituição de 1988.
Por isso, Gilberto Bercovici e Luís Fernando Massonetto alertam
para os riscos de bloqueio à realização dos direitos sociais e ao
programa de desenvolvimento previsto na Constituição de 1988, em
decorrência das tendências liberais percebidas a partir das últimas
décadas do século XX, que implicam no fenômeno da “Constituição
dirigente invertida”
Se no segundo pós-guerra emergiram Constituições de Estados
Sociais, cujos orçamentos apresentam a característica fundamental de
garantir direitos e a prestação de serviços públicos para a maioria da
população, a partir dos anos 1970, com a financeirização do
capitalismo, e com o desenvolvimento tecnológico chegando a um nível
que passa dispensar a força de trabalho humana, o sistema capitalista
não vê mais serventia em um fundo público com a função de assegurar,
por meio de direitos sociais e serviços públicos, a reprodução da força
139
de trabalho. Assim, começam as investidas para que o fundo público
sirva para garantir a remuneração do próprio capital.
É daí que, a partir da década de 1980, alçam-se a retórica do
controle do déficit público, vinculada ao discurso neoliberal de repúdio
ao Estado, não obstante esses discursos viessem acompanhados do
paradoxal aumento dos gastos públicos em razão de despesas com a
política monetária, especialmente para custeio das altas taxas de juros.
Ou seja, o déficit público que era defendido por autores como John
Maynard Keynes e Michal Kalecki para propiciar pleno emprego, com as
políticas do neoliberalismo, passa a ter nova função: garantir a
remuneração para o capital.
A crise do setor público torna-se mais graves nos países
periféricos como o Brasil, cujos recursos são insuficientes para
financiamento público da acumulação de capital.
Seguindo as tendências neoliberais, o orçamento público passa a
ser utilizado para estabilizar o valor real dos ativos das classes
proprietárias, isto é, para garantir o investimento privado, em
detrimento dos direitos sociais e dos serviços públicos voltados para a
população mais desfavorecida.
Assim, o orçamento-programa, dada a primazia assegurada à
política de estabilização monetária e a garantia do custo da moeda.
Política essa definida pelo Banco Central e pelo Conselho de Política
Monetária – COPOM, à margem do Congresso Nacional, corre o risco de
não cumprir com sua função promocional do desenvolvimento. Daí que
a implementação da ordem econômica e da ordem social prevista na
Constituição de 1988 ficam restritas as sobras orçamentárias e
financeiras do Estado.
140
Ou seja, na síntese de Bercovici e Massonetto: a Constituição
financeira de 1988 restará “blindada” com os rigores da Lei de
Responsabilidade Fiscal. Como, então, buscar as metas da ordem
econômica e social previstas no Texto Maior: o busca do pleno
emprego, a redução das desigualdades regionais e sociais, o
asseguramento a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social (artigo 170)?
Leitura similar dos riscos do projeto neoliberal é feita por Valter
Fernandes da Cunha Filho266. A ideia condutora do seu argumento é que
as questões levantadas pelas relações de produção (economia) têm um
relativo predomínio sobre as opções políticas.
Assim, entre a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, quando
o Estado renasceu como Social, ou seja, como o provedor e o
implementador dos direitos sociais (habitação, transporte, educação,
lazer, saúde, etc.), estava, em verdade, ao fornecer tais bens e serviços
essenciais, possibilitando que sobrasse mais dinheiro para o trabalhador
tornar-se consumidor de bens manufaturados. Estava elevando a
demanda efetiva, fazendo, por conseguinte, que as empresas
produzissem mais. Estava o Estado gerando um ciclo virtuoso
responsável pelo boom econômico da “era de ouro” do capitalismo
mundial.
Sendo o Estado dependente dos impostos, ele assume a tarefa de
guardião do crescimento econômico, visto como aumento da produção
e do consumo em massa. Ora, se os empresários não conseguem
vender seus produtos, o Estado então gasta em obras públicas e
contrata mais pessoal para que seja elevada a demanda agregada, bem
266
CUNHA FILHO, Valter Fernandes da. Estado, Direito e Economia: Uma visão realista
acerca dos dilemas da efetivação dos direitos sociais nas democracias contemporâneas.
141
como fornece certos serviços essenciais, como medicina socializada,
educação gratuita e universal, previdência social, seguro-desemprego e
outros subsídios para que sobre dinheiro para o trabalhador consumir
produtos industrializados, elevando a demanda efetiva.
Ocorre que, com o aumento do contingente de pessoas que
usufruem de direitos sociais, grande parte da população deixa de ter a
manutenção da sua vida condicionada à venda de sua força de trabalho,
isto é, deixam de ter que trabalhar para sobreviver. Daí o paradoxo: o
Estado, na tentativa de salvar o capitalismo da crise acabou por criar
práticas comprovadamente anticapitalistas.
Como o Estado, em um regime capitalista, não tem nenhuma
capacidade de geração de valor, dependendo dos impostos, pagos a
partir do nível de acumulação privada realizada nas unidades de
produção de mercadorias, o Estado Social começa a entrar em crise.
Crise essa que se acentua com as exigências de melhorias dos serviços
públicos e ampliação dos números de beneficiários, que passam a
pressionar cada vez mais o orçamento fiscal do Poder Público. Afinal, os
direitos sociais são caros, implicam em custos financeiros, recursos
esses que são escassos. E em torno desses recursos há uma pluralidade
de agentes interessados, requerendo do Estado políticas que satisfaçam
suas reivindicações. Então, o Estado vê-se obrigado a selecionar quem
será atendido, privilegiando aqueles de quem o setor público mais
depende para financiar o seu custeio.
Frente a essa crise na fonte de financiamento, emerge, a partir do
final da década de 1988, a reação neoliberal, inspirados pelas políticas
adotadas por Margareth Thatcher na Inglaterra e por Ronald Reagan
nos Estados Unidos. A crise latino-americana passa a ser vista com mais
142
seriedade em um contexto de globalização. Aplica-se, então, o
receituário do Consenso de Washington para combater o “populismo
econômico” que promovia o endividamento público e a intervenção
estatal excessiva. Os remédios propugnados seriam ajuste fiscal,
desregulamentação, privatizações, cortes de gastos sociais, diminuição
do tamanho e das atividades do Estado. Tudo para reativar a atividade
econômica das empresas privadas.
O
contraponto
é
que
o
Estado
precisa
legitimar-se
democraticamente e, assim, assegurado os interesses dos capitalistas
que asseguram o seu financiamento, ele tende a retornar em suas
prestações sociais.
Daí concluir Valter Fernandes da Cunha Filho, a partir dessas
evidências, que os direitos sociais não podem avançar muito na
economia capitalista, em que o Estado, impedido de violar os direitos
de propriedade, é também impedido de organizar a produção privada
de modo a facilitar a distribuição dos recursos entre os membros da
sociedade. É que, para recuperar a capacidade de gastar na área social,
o Estado necessita cuidar primeiro da prosperidade das empresas
privadas. Essa é a razão pela qual sempre será um desafio fazer com
que a esfera política prevaleça sobre a econômica. Por isso, propugna
referido autor que as análises sobre a efetividade dos direitos sociais e
das políticas públicas não se apartem de uma teoria do Estado que
possibilite uma articulação realista entre Estado, Direito e Economia.267
267
Propondo fazer essa articulação entre Estado, Direito e Economia, destacam-se, entre
outros, os seguintes estudos: COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Direito & Economia.
Tradução de Luis Marcos Sander e Francisco Araújo da Costa. 5ª ed. Porto Alegre:
Bookman, 2010; PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercado.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI JUNIOR, Irineu.
Teoria Geral dos Contratos: Contratos empresarias e análise econômica. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009.
143
Contudo, considerar a importância da análise econômica no
campo jurídico não implica render-se aos preceitos de maximização da
eficiência econômica, ou ter uma leitura fatalista da realidade e do
futuro (do tipo “as coisas são o que são, e sempre serão assim”).
Em um contexto de desenvolvimento centrado na justiça social e
na dignidade da pessoa humana e que coloca o respeito ao meio
ambiente como uma restrição assumida, o econômico deve manter-se
no seu papel de meio, de instrumento, e não um fim em si mesmo.
Portanto, é preciso conciliar o modelo econômico adotado pelo Estado
brasileiro, e explicitado em sua Constituição, como pautado no
capitalismo, porém, sem se esquecer das normas constitucionais que
buscam também “otimizar” a justiça social, reduzir o grau de
desigualdades, incluir e empoderar grande parte da população, hoje
marginalidade, impedida de acesso a bens materiais e, principalmente,
sem acesso a oportunidades para desenvolver o mais plenamente
possível as potencialidades de suas personalidades.
Calha, portanto, a lembrança de Enzo Bello, quanto à tônica de
constante discrepância entre normatividade e faticidade em relação aos
direitos sociais no curso da história brasileira, o que demonstra a
insuficiência da dimensão jurídica e a necessidade de se criar condições
políticas para concretização desses direitos na prática social. Ou seja, o
Pacto Fundamental de 1988 deve ser cotidianamente revivido pelo
exercício da cidadania, não se relegando a um segundo plano as
dimensões da participação e do pertencimento. 268
Portanto, é preciso estar alerta para essa tendência de bloqueio à
realização do programa de desenvolvimento, inclusão e emancipação
268
BELLO, Enzo. Cidadania e direitos sociais no Brasil, p. 190-191.
144
previsto na Constituição Cidadã de 1988, sendo esse mais um aspecto
para salientar a importância de mobilização social e cidadania ativa na
construção das políticas públicas, inclusive as que dizem respeito à
moradia digna.
Assegurar o acesso a uma residência adequada é o primeiro
passo de qualquer processo de resgate ou inclusão social das camadas
da população marginalizadas, que sobrevivem em condições de
extrema miséria. Uma triste realidade que o Pacto de 1988 quer seja
transformada. Nesse sentido, como saliente Conrado Hübner Mendes:
“Uma leitura da realidade social brasileira em confronto com o texto
da Constituição de 1988 permite observar inúmeros contrastes e
concluir que a pretensão desse texto, ao menos na aparência, não foi
estabilizar, manter ou consolidar a ordem social e econômica vigente,
e sim transformá-la. Foi além das antecessoras, pois não apenas
reconhece o catálogo básico das liberdades e direitos civis, mas
também atribui ao Estado muitas outras tarefas corretoras de
desigualdades. É essa característica do texto que, mais do que nunca,
autoriza-nos a falar em projeto, em agenda, em planejamento de
ação no futuro como parte integrante do direito constitucional.” 269
Contudo, a realização desse futuro demanda uma intensa
atuação democrática, um ativo exercício de cidadania nos espaços
públicos, não só, mas inclusive, nos Tribunais. Neste particular aspecto,
pertinente é a lembrança da advertência que Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho faz à magistratura, que precisa engajar-se ideologicamente,
não no sentido de política partidária, mas sim no encontrar a realidade
brasileira por meio de uma leitura comprometida por ela, tomando por
estribo as epistemologias críticas latino-americana, representadas por
autores como Wolkmer, Dussel, Ludwing, que veem o sujeito a partir de
uma ética de alteridade, ou seja, atrelada à dignidade do outro, isto é,
269
MENDES, Hübner. Controle de constitucionalidade e democracia, p. XXIII.
145
uma ética antropológica que parte das necessidades dos segmentos
humanos marginalizados e se propõe a gerar uma prática libertadora,
capaz de emancipar os sujeitos históricos oprimidos, injustiçados,
expropriados e excluídos.270
Crises econômicas, situações conjunturais de dificuldades influem
no campo da efetividade dos direitos prestacionais. São limites fáticos
que devem ser considerados. Porém, na necessária ponderação
também devem ser levados a sério os princípios diretamente
relacionados à proteção e promoção da dignidade humana, e,
principalmente, a preservação inexorável e universal do mínimo
existencial, como núcleo duro, não sujeito a concessões, retrocessos ou
aniquilamento, mesmo que por força de decisões majoritárias.
Assim, o desequilíbrio das contas públicas pode ser enfrentado
pelo viés do aumento da eficiência da atuação estatal bem como em
mudanças nas bases de financiamento do Estado, de modo a também
realizar a tão necessária justiça distributiva que, no campo da moradia,
importa em atingir uma situação em que não haja mais seres humanos
condenados a viver em locais inóspitos, insalubres, perigosos, sem um
mínimo de dignidade.
Trata-se da necessidade de uma mudança radical, levando-se em
conta que a história das políticas públicas habitacionais no Brasil mostra
que a tendência sempre foi a contemplar a moradia como uma
mercadoria, antes de tê-la um direito que tutela uma situação
existencial imprescindível à proteção da personalidade e da dignidade
humana. Por isso, em regra, o Estado direcionou seus recursos e suas
ações para as camadas da população que poderiam arcar com os custos
270
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal, p.
74-76.
146
do
financiamento,
tratando
a
moradia
essencialmente
como
mercadoria, e não como direito, quando não atuou em parceria com
interesses de especulação imobiliária, criando nichos de mercados de
terra urbana e unidades habitacionais de alta valorização com a
implantação de infraestrutura pública. Vale dizer, privatizando a mais
valia produzida com recursos públicos.
Em alguns períodos, o Estado chegou a atender as demandas das
famílias com renda mensal entre três a dez salários mínimos, dentro da
lógica da habitação-mercadoria, propiciando o “consumo” de produtos
imobiliários como terreno,
material de construção, casa
ou
apartamento, subsidiando-lhes o financiamento. Porém, em linhas
gerais, as famílias com menos de três salários mínimos de renda mensal
foram praticamente excluídas das ações do Poder Público; os
atendimentos essa camada recebeu foram pontuais, o mínimo possível
para assegurar nas cidades a disponibilidade de força de trabalho de
baixo custo.
Enfim, do ponto de vista do atendimento às necessidades de
proteção e promoção da dignidade da pessoa humana por meio da
universalização do direito à moradia, a história das políticas
habitacionais no Brasil mostra que nunca se enfrentou o desafio de
maneira adequada.271
Mudar esse paradigma, reverter essa tendência implica ter
consciência da história das políticas públicas habitacionais brasileiras,
para quebrar a tradição de se tratar a moradia exclusivamente com
uma mercadoria e não como um direito que a todos deve ser
assegurado.
271
CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 3-5.
147
2.6. BREVE RETROSPECTO DAS POLÍTICAS NACIONAIS DE
HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL
Nesse apertado retrospecto histórico, a primeira referência deve
ser para atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões272, no
período de 1937 a 1964, apontada por Adauto Lucio Cardoso273, José
Maria Aragão274 e Nabil Bonduki275, como marco do início da produção
estatal de moradias276.
Esses institutos atendiam apenas aos trabalhadores inseridos no
mercado formal e, mesmo assim, de forma incompleta. Além disso,
como a preocupação primordial era com a saúde financeira dos fundos,
privilegiavam-se os investimentos para o mercado das classes médias,
estabelecendo, com isso, uma redistribuição de riqueza às avessas, vez
que os recursos dos trabalhadores financiavam as camadas de melhor
renda.
Apesar do discurso ideológico dos Governos do Presidente
Getúlio Vargas fosse de que o trabalhador seria a base do projeto
nacional de desenvolvimento e por isso, o acesso deste à habitação
272
Entre 1933 e 1938, foram criados seis desses institutos: o da categoria dos marítimos
(IAPM), dos bancários (IAPB), dos comerciários (IAPC), dos industriários (IAPI), dos
condutores de veículos e empregados de empresa de petróleo (IAPETC) e dos estivadores
(IAPE). No período de 1937 a 1964, construíram 279 conjuntos, num total de 47.789
moradias, além de financiarem 72.236 habitações.
273
CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 3.
274
ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro de Habitação, p. 58.
275
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, p. 98-131.
276
Consideram-se tais atividades desses Institutos como produção estatal de moradia
porque, apesar da participação dos trabalhadores da categoria profissional respectiva ser
obrigatória, o Estado tinha controle da gestão, vez que cabia ao Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio nomear seus presidentes.
148
deveria ser vista como condição básica de reprodução da força de
trabalho e importante fator econômico na estratégia de industrialização
do país, na prática, o modelo de habitação popular que prevaleceu foi o
que interessava às elites, qual seja, a autoconstrução da casa própria
pelos trabalhadores pobres, em loteamentos distantes, muitos deles
clandestinos, comprados à prestação e desprovidos de água encanada,
sem coleta de esgoto, e sem luz elétrica.
O Poder Público apenas
fornecia transporte coletivo, capaz de levar seus moradores até o local
do trabalho.
Pior era a situação dos pobres que não estavam no mercado
formal de trabalho, ou seja, dos que não tinham o status de operário.
Considerados vadios, marginais, estavam excluídos da proteção do
Estado, abandonados à própria sorte. 277
A próxima referência histórica é a da Fundação da Casa Popular,
cuja atuação marca a primeira política de habitação de âmbito nacional
e com pretensão de atendimento universal278.
A intensa urbanização operada entre 1920 a 1940279 e a falta de
moradias gerou enorme descontentamento popular, que repercutiu na
imprensa, nos discursos políticos e nas propostas governamentais. Em
resposta a essa demanda, logo no início do governo do Presidente
Eurico Gaspar Dutra, em 1º de maio de 1946, é criada a Fundação da
277
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, p. 96, 110, 227-234, 281-313.
RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, p. 29-34 e 41.
278
Diferente da atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões que atendiam apenas
seus associados, sem prejuízo, de, para buscar renda para seus fundos, aplicarem no
mercado financeiro imobiliário.
279
De acordo com Milton SANTOS (A urbanização brasileira, p. 22), entre o fim do período
colonial até o final do século XIX, o índice de urbanização pouco se alterou. Entre 1890 e
1920, o crescimento foi mínimo, passando de 6,8% a 10,7%. Porém, entre 1920 a 1940, a
taxa de crescimento urbano triplicou, passando a 31,24%, sendo que a população
concentrada nas cidades sobe de 4.552.000 pessoas para 6.208.699.
149
Casa Popular.
Nos seus 18 anos de existência (até 1964), contou com poucos
recursos, teve produção modesta280, em total descompasso com o
intenso crescimento urbano do período.281 Mesmo assim, foi a principal
responsável pela política habitacional nos Governos dos Presidentes
Dutra, Vargas, Kubitschek, Quadros e Goulart. Porém sem conseguir
evitar o aumento das soluções informais de produção de moradias para
a população de baixa renda, baseadas na autoconstrução, muitas delas
sem a devida assistência técnica, nos loteamentos precários e
clandestinos, nas invasões e nas favelas, com seus inerentes impactos
socioambientais negativos. 282
De maior envergadura foi os empreendimentos habitacionais
promovidos pelo Banco Nacional de Habitação - BNH, criado em 21 de
agosto de 1964283, e que durante os seus vinte anos de funcionamento
foi o principal instrumento da política de moradia de interesse social
dos Governos Militares, juntamente com as Companhias de Habitação –
COHABs, empresas de economia mista que estavam sob o controle
acionário dos governos estaduais e municipais, tendo como principal
fonte de recursos o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, poupança
compulsória dos trabalhadores do mercado formal.
Observa-se que a prioridade da política habitacional durante os
Governos Militares foi mudando no transcorrer do tempo, conforme a
280
Apenas 143 conjuntos ou 18.142 unidades habitacionais.
Aponta Milton SANTOS (A urbanização brasileira, p. 29), que entre 1940 a 1960, a
população urbana aumenta de 10.891.000 (26,35%) para 31.956.000 (45,52%).
282
RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, p. 56; BONDUKI, Nabil.
Origens da habitação social no Brasil, p. 115-119; ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro
da Habitação, p. 62; MELO, Marcus André B. C. de. Política de habitação e populismo, p.
39-61. CARLI, Ana Alice de. Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à
moradia, p. 19.
283
Com a Lei 4.380/64.
281
150
conjuntura do ambiente político. Entre 1964 a 1970, demonstrando
claramente a necessidade de legitimação do regime, os investimentos
privilegiavam as classes populares. Entre 1970 e 1975, ficam em
segundo plano, voltando a serem prioritários no período seguinte.
Porém, o saldo final, mostra que a ênfase não foi no atendimento dos
pobres.284
Na síntese de Tomás Moreira, Zulma Schussel e Sílvia Schussel, a
política habitacional do período do governo militar foi um importante e
poderoso instrumento da política econômica, voltada sobretudo para a
criação de emprego na indústria da construção civil bem como pelo
fortalecimento
e
modernização
desse
setor.
Ela
financiou,
predominantemente, as classes médias e as classes altas, sustentáculos
do regime ditatorial, tendo um caráter redistributivo às avessas.285
Nabil Bonduki286 e Rodrigo Xavier Leonardo287 também apontam
o caráter autoritário na concepção das políticas, a centralização da
gestão e a ausência de participação dos usuários e da sociedade em
geral, o desrespeito ao meio ambiente e ao patrimônio cultural, como
marcas desse modelo de política habitacional de interesse social que
vigorou entre 1964 a 1985, no Brasil. As inúmeras especificidades de
cada região eram solapadas, eis que projetos padronizados foram
reproduzidos à exaustão. Não houve uma preocupação maior com a
qualidade das moradias, não foram levados em conta aspectos
284
Pelo critério de número de unidades, produziram-se mais habitações nas faixas de
interesse social (2,4 milhões de moradia ou 58,5% do total). Porém, tomando-se por base
os valores financiados, a faixa do mercado médio recebeu um aporte maior de recursos.
RODRIGUES, Arlete Moyses. Moradia nas cidades brasileiras, p. 59. BONDUKI, Nabil.
Política habitacional e inclusão social no Brasil, p. 73.
285
MOREIRA, Tomás; SCHUSSEL, Zulma; SCHUSSEL, Sílvia. Plano de habitação de interesse
social, p. 218.
286
BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil, p. 73.
287
LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 57.
151
culturais, ambientais e de contexto urbano. A opção pela construção de
grandes conjuntos habitacionais, situados nas periferias, em locais
distantes e geralmente, sem infraestrutura, gerou verdadeiros bairrosdormitórios, pouco integrados com as cidades. Seguiu-se um modelo de
urbanização baseada na expansão horizontal e na ampliação
permanente das fronteiras das cidades, na subutilização da
infraestrutura já instalada, sob a justificativa de que os preços dos
terrenos eram mais baixos nas franjas externas das cidades. Contudo,
não foram considerados nessa conta os custos adicionais para se levar a
infraestutura urbana e os serviços públicos essenciais, como transporte
público, água, iluminação, energia elétrica, coleta de esgoto, para as
periferias.
Como contraponto às críticas, há que se reconhecer o valoroso
papel e o grande avanço alcançado na área de saneamento, mormente
para a concretização do Plano Nacional de Saneamento – PLANASA,
decisivo para expansão das redes de água e esgoto nas principais
cidades brasileiras.288
O período entre a extinção do Banco Nacional de Habitação, em
1986, e a promulgação da Constituição de 1988, é tido como falta de
identidade e de continuidade nas políticas habitacionais, desarticulação
institucional289, ausência de planejamento estratégico de âmbito
nacional e redução dos recursos aplicados em programas de provisão
288
CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 4.
Evidência dessa descontinuidade é que as atribuições relativas à política habitacional
mudou várias vezes de órgão: Caixa Econômica Federal, Ministério de Desenvolvimento
Urbano e Meio Ambiente, Secretaria Especial da Ação Comunitária, Ministério de
Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente, Ministério de Habitação e Bem-estar Social,
Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária vinculada ao Ministério do Interior.
(LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 62; CARDOSO,
Adauto Lucio. Política habitacional no Brasil: balanço e perspectivas; SANTOS, Cláudio
Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998).
289
152
de moradias de interesse social. Tem-se, de maneira fragmentada,
algumas iniciativas importantes promovidas por Governos Estaduais e
Municipais, baseadas em mutirões e cooperativas e financiados com
recursos orçamentários próprios. No geral, parcela significativa da
população urbana continuou a resolver seus problemas de moradia por
vias
informais,
adquirindo
lotes
clandestinos,
precariamente
urbanizados, construindo por eles mesmos, na maioria das vezes sem
assistência técnica necessária, suas habitações, com materiais
adquiridos em pagamentos parcelados a juros exorbitantes.290
Durante o Governo do Presidente Fernando Collor (1990-1992)
aumentaram-se
os
gastos
com
financiamento
de
unidades
habitacionais, a serem construídas por empreiteiras privadas, quase
metade delas abandonadas antes do seu término. Alguns autores
denunciam o uso clientelista desses recursos, intensificado, no final
desse Governo, como parte da estratégia, não exitosa, de frustrar o
processo de impeachment.291
O Governo do Presidente Itamar Franco colocou como prioridade
a conclusão das obras iniciadas na gestão anterior. Em 1994, são
lançados os programas Habitar Brasil e Morar Município, custeados
com recursos do Orçamento Geral da União e do Imposto Provisório
sobre Movimentação Financeira. Porém, com o advento do Plano Real,
adotou-se a estratégia do contingenciamento de despesas para a
geração de superávits a serem empregados no pagamento da dívida
externa. O resultado desta política econômica é que houve muita
parcimônia nos gastos governamentais, afetando o desempenho das
290
SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998.
SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998, p.
21. CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 4; Política
Habitacional no Brasil: balanço e perspectivas, p. 3;
291
153
políticas públicas habitacionais de interesse social. 292
Fernando Henrique Cardoso exerceu dois mandatos de
Presidente
da
República.
Nesse
período
(1995-2003),
deu-se
prosseguimento à cartilha de austeridade fiscal, prejudicando as ações
focadas no provimento de habitações de interesse social. Houve dois
programas destinados à população de renda mensal inferior a três
salários mínimos, voltados a promover melhorias em assentamentos
degradados, o Pró Moradia e o Habitar Brasil, financiados
respectivamente com recursos do orçamento geral da União e do Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço, contudo, os recursos empregados
foram diminutos e foram logo paralisados em razão da política de
contigenciamento de despesas.293
Durante os mandatos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(2004-2010) destacaram-se a criação do Ministério das Cidades, do
Conselho das Cidades, do Sistema Nacional de Habitação de Interesse
Social e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei
11.124/2005), da parte do Programa de Aceleração da Economia
voltada à urbanização de assentamentos precários e implantação de
obras de infraestrutura urbana e do Programa Minha Casa Minha Vida
(Lei 11.977/2009).294
292
LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 62;
CARDOSO, Adauto Lucio. Política habitacional no Brasil: balanço e perspectivas; SANTOS,
Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998.
293
MARICATO, Ermínia. Política urbana e habitação social, p. 6; LEONARDO, Rodrigo Xavier.
Redes contratuais no mercado habitacional, p. 64-65; SANTOS, Cláudio Hamilton M.
Políticas federais de habitação no Brasil, p. 22-23.
294
BONDUKI, Nabil. Do projeto moradia ao Programa Minha Casa Minha Vida, p. 2-3.
Analistas apontam a crise internacional, iniciada nos Estados Unidos, com a falência de
várias instituições financeiras que atuavam no mercado imobiliário, como grande fator de
deflagração do Programa Minha Casa, Minha Vida. O objetivo maior era mitigar os efeitos
da crise nos vários setores da economia nacional, criando um ambiente econômico
confiável, que estimulasse o crescimento do mercado foram de habitação, o crédito
154
Também é durante o Governo Lula que se desenvolveu uma
relevante experiência de planejamento estratégico nacional para
enfrentamento do problema habitacional brasileiro. Trata-se do “Plano
Nacional de Habitação”295, elaborado entre julho de 2007 a janeiro de
2009, sob a coordenação da Secretaria de Habitação do Ministério das
Cidades.
O Plano Nacional de Habitação foi elaborado a partir discussões
realizadas no âmbito do Conselho das Cidades, das Conferências das
Cidades realizadas nas esferas federal, estadual e municipal e dos
Conselhos Gestores ou Curadores dos Fundos Públicos que financiam a
produção habitacional, bem como nos cinco seminários regionais,
sediados em Goiânia, São Paulo, Foz do Iguaçu, Recife e Belém, entre
outubro e dezembro de 2007, além de outros eventos, também nas
cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Natal, Maceió e Curitiba, como
reuniões de trabalho, oficinas técnicas e debates públicos.
Buscou-se, assim, garantir a participação das organizações da
sociedade civil, como associações, movimentos sociais, fóruns, redes,
sindicatos,
entidades
empresarias,
universidades,
entidades
profissionais.
Dessa forma, procurou-se romper como uma tradição de se
elaborar planos estratégicos apenas com técnicos e burocratas,
buscando incorporar todas as visões presentes na sociedade brasileira
imobiliário e a criação de empregos. Tal qual nos Governos Militares, que fomentaram a
indústria da construção civil, o Governo Lula também apostou na grande capacidade do
setor de absorver mão de obra pouco qualificada. Enxergou na crise internacional uma
oportunidade de trazer capitais estrangeiros, os quais, temerosos com o que ocorria nos
Estados Unidos e na Europa, precisavam de praças seguras para seus investimentos.
295
Disponível
em
http://www.cidades.gov.br/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&
id=132&Itemid=159. Acesso em 26.07.2011 às 21h32.
155
sobre a questão habitacional, considerando tanto as diversidades
regionais, as visões diferenciadas dos vários segmentos sociais e os
distintos olhares técnicos que o tema propicia.
Esse novo paradigma está em estreita consonância com os
preceitos da Constituição de 1988 e do Estatuto das Cidades (Lei
10.257/01), os quais estabelecem a participação e o controle social
como elementos centrais na gestão democrática das políticas de
desenvolvimento urbano e moradia.
Além disso, essa metodologia participativa de formulação e
pactuação teve um caráter emancipatório, por criar oportunidades de
capacitar atores sociais importantes, promover a apropriação de novos
saberes, políticos, técnicos e populares, superando uma perspectiva
exclusivamente técnica na elaboração desta importante política pública.
Daí o grande mérito desse plano. Ele não é um documento
apenas técnico, elaborado em gabinetes, mas sim fruto de uma
construção coletiva, baseada em correlação de forças políticas e de
diferentes interesses e objetivos, muitas vezes conflitantes, mas
mediados na perspectiva do interesse público.
Outra característica de relevo é que o novo Plano Nacional de
Habitação leva em conta que a questão habitacional brasileira é
bastante dinâmica. Por isso, ele foi elaborado com um horizonte de 15
anos, tendo como limiar o ano de 2023, mas com facticidade
assegurada pela articulação com propostas operacionais de médio e
curto prazo e pelo monitoramento, avaliações e revisões a cada quatro
anos (2011, 2015 e 2019), coincidindo com os períodos de elaboração
dos Planos Plurianuais.
Previu-se,
portanto,
a
necessária
interlocução
entre
o
156
planejamento e a orçamentação das políticas públicas de habitação,
bem como a articulação da política de habitação com as demais
políticas públicas, em um contexto de promoção do desenvolvimento
econômico e social, com respeito ao meio ambiente e à dignidade
humana.
No que diz respeito ao atendimento às famílias de baixíssima
renda, destacou-se que as ações de provisão de moradia precisam estar
articuladas com programas de transferência de renda (Bolsa-Família),
de capacitação para a geração de renda própria, bem como outras
estratégias
pós-assentamento/ocupação,
integrando
o
Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social com o Sistema Único de
Assistência Social e com o Cadastro Único do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tal articulação é
imprescindível no intuito de se encontrar soluções para o problema de
venda e/ou repassa das unidades habitacionais entregues para as
famílias de baixa renda para outras em melhores condições
econômicas.
Partiu-se da premissa de que o acesso à moradia digna está
diretamente relacionado com três fatores: 1) a capacidade de
ampliação e disponibilização de terra urbanizada bem localizada para a
provisão de unidades habitacionais de interesse social; 2) o estímulo à
cadeia produtiva da construção civil e 3) o fomento ao desenvolvimento
institucional
dos
agentes
envolvidos
no
setor
habitacional,
notadamente no âmbito dos Poderes Públicos municipais e estaduais.
Há, com o Plano Nacional de Habitação, uma retomada ao
processo de planejamento estratégico, de longo prazo, tratando-se a
questão habitacional como uma Política de Estado. Pena não ter se
157
revestido da forma de lei, tal qual previsto pelo artigo 48, IV, da
Constituição da República.
De fato, a atuação do Poder Público mostra-se indispensável para
a regulação do desenvolvimento urbano e do mercado imobiliário, para
a provisão de moradias de interesse social e para a regularização dos
assentamentos precários.
Diagnosticados como obstáculos ao acesso à moradia digna pelos
mais pobres as restrições ao crédito e a falta de recursos orçamentários
(não-onerosos) para custeio do provimento e/ou subsidio de unidades
habitacionais de interesse social, o novo Plano Nacional de Habitação
reconhece a necessidade de a identificação de fontes de recursos
perenes e estáveis para alimentar a política de habitação, incluindo
recursos onerosos para o financiamento habitacional e recursos nãoonerosos para subsídio.
Nabil Bonduki estima que para enfrentar satisfatoriamente o
déficit habitacional é necessária uma dotação estável de 2% do
Orçamento Geral da União e de 1% dos Orçamentos dos Estados e
Municípios durante todo o horizonte temporal (quinze anos). Esse
percentual é, na esfera federal, três vezes maior do que o previsto no
Plano Plurianual 2008-2011, já incorporando a elevação de recursos
propiciada pelo PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. 296
Sensíveis a essa necessidade de recursos estáveis para financiar a
política de habitação de interesse social, alguns segmentos da
sociedade, notadamente entidades empresariais e movimentos de
moradia, vem atuando perante o Congresso Nacional, advogando a
necessidade de aprovação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC
296
BONDUKI, Nabil. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa, Minha Vida.
158
– 285/2008, já apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados, estabelecendo a vinculação de receita à área,
tal qual ocorre com a educação e a saúde.297
Como cenário de fontes de recursos não onerosos foram
considerados, no Plano Nacional de Habitação, para o Orçamento Geral
da União os patamares de investimento efetivamente realizados em
2008, consolidados no Balanço Geral da União, e para o triênio 2009,
2010 e 2011, os investimentos previstos na Lei Orgânica Anual, Projeto
de Lei Orçamentária Anual e Plano Plurianual.
Para os demais exercícios as disponibilidades de recursos foram
projetadas com base na manutenção desse percentual de investimento
(2,63% da receita corrente líquida) seguido de um crescimento
estimado do PIB na ordem de 4% ao ano e manutenção da carga
tributária.
A projeção dos recursos onerosos dos Estados e Municípios levou
em conta as receitas realizadas em 2008, consolidadas no Balanço Geral
297
BRASIL, Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n. 285 de 2008, de
autoria do Deputado Paulo Teixeira (PT-SP), Angela Amin (PP-SC), Zezéu Ribeiro (PT-BA),
Fernando Chucre (PSDB-SP), Luíza Erondina (PSB-SP), Luiz Carlos Busato (PTB-RS), Arnaldo
Jardim (PPS-SP) e Nelson Trad (PMDB-MS). O objetivo é incluir artigo no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias para dispor sobre a vinculação de recursos
orçamentários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aos respectivos
fundos de habitação de interesse social, por um período de 30 anos ou até a eliminação do
déficit habitacional. Assim, prevê que anualmente sejam destinados a estes fundos as
seguintes verbas: Na União, nunca menos de dois por cento do produto de arrecadação dos
impostos, das contribuições de intervenção no domínio econômico, das contribuições
sociais, excetuadas as contribuições sociais patronais e dos trabalhadores para o Regime
Geral da Previdência Social e contribuição social para a previdência dos servidores públicos,
deduzidas as parcelas que forem transferidas aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios, nos termos da Constituição. Nos Estados e no Distrito Federal, no mínimo um
por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 da
Constituição e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea “a”, e inciso II,
deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios, nos termos da
Constituição. Nos Municípios e no Distrito Federal, pelo menos um por cento do produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 da Constituição e dos recursos de que
tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea “b” e § 3º.
159
da União e, a partir de 2009, adotou-se o percentual mínimo de 1% do
produto da arrecadação dos impostos, deduzidas, no caso dos Estados,
as parcelas que forem transferidas aos Municípios, conforme previsto
na Proposta de Emenda à Constituição n. 285/2008.
Como a garantia de acesso a terra urbanizada é parte
fundamental da política de habitação, enfatizou-se durante a
elaboração do Plano Nacional de Habitação a relevância de se implantar
instrumentos que possibilitem melhor ordenamento e maior controle
do uso do solo, de modo a evitar e combater a retenção especulativa,
bem como a privatização da mais-valia gerada por investimentos
públicos com infraestrutura urbana298, além de zelar para que a
propriedade urbana cumpra com sua função social.
Com o escopo de formatar estratégias para enfrentar a questão
habitacional urbana, reconhecendo-as como um dos mais dramáticos
problemas
sociais
brasileiros,
articulando
inclusão
social
e
redistribuição de renda com o desenvolvimento econômico do país, o
Plano Nacional de Habitação foi estruturado em quatro eixos - 1)
modelo de financiamento e subsídios para o provimento de novas
habitações e urbanização dos assentamentos precários; 2) política
urbana e fundiária; 3) arranjos institucionais e 4) fomento à cadeia
produtiva da construção civil299 - prevendo-se ações em cinco linhas
programáticas: I) Integração Urbana de Assentamentos Precários; II)
Produção e Aquisição da Habitação; III) Melhoria Habitacional; IV)
298
Dentre os instrumentos para evitar que a mais-valia gerada por investimentos públicos
seja privatizada por alguns, destacam-se a desapropriação por zona e a cobrança de
contribuição de melhoria.
299
A participação do setor da construção civil na economia brasileira é bastante expressiva,
aproximadamente 11,3% do PIB – Produto Interno Bruto, garantido mais de 8,2 milhões de
empregos, com grande capacidade de absorção de mão-de-obra pouco qualificada.
160
Assistência Técnica e V) Desenvolvimento Institucional.
A linha programática para integração urbana de assentamentos
precários abrange projetos de urbanização, regularização e integração
de assentamentos precários e regularização fundiária.
O objetivo das intervenções de urbanização de assentamentos
precários é estabelecer padrões mínimos de habitabilidade e integrar o
assentamento à cidade por meio de adaptações da configuração
existente, viabilizando a implementação e funcionamento das redes de
infraestrutura básica (água, esgoto, energia, iluminação), melhorando
as condições de acesso e circulação, eliminando situações de riscos e
protegendo e recuperando o meio ambiente.
O escopo da regularização fundiária é a titulação das terras em
nome dos moradores segundo os requisitos exigidos pela legislação.
São intervenções, portanto, que abrangem ações de habitação,
saneamento ambiental, inclusão social, jurídicas e de registros
imobiliários.
A linha programática focada na produção e aquisição de
habitações busca ofertar novas unidades habitacionais para reduzir o
déficit e responder à demanda futura.
Merecem destaque as ações que objetivam promover oferta para
as famílias de baixa e média renda de unidades habitacionais
produzidas em sistema de autogestão, mas com a devida assistência
técnica, por entidades privadas sem fins lucrativos, como fundações,
associações, sindicatos, cooperativas.
Também é digna de destaque a previsão de estratégias de
promoção pública de locação social de unidades habitacionais em
centros históricos e áreas urbanas consolidadas, com o objetivo de
161
subsidiar parte dos aluguéis para as famílias de baixa renda, rompendose com o paradigma de só produzir unidades habitacionais novas e na
periferia.
Nesta linha também se insere a previsão de ações de promoção
pública e privada de loteamentos urbanos associada com a oferta de
materiais de construção e assistência técnica, de modo a viabilizar o
atendimento às famílias de baixa renda e mitigar ou neutralizar os
impactos de ocupações desordenadas, bem como a aquisição de
unidades habitacionais usadas para serem destinadas aos mesmos fins.
No âmbito rural, previu-se a promoção pública ou por autogestão
de unidades habitacionais que permitam futuras ampliações, integrem
as instalações necessárias ao desenvolvimento da produção agrícola e
possuam ligação para poço, cisterna e fossa séptica executados
segundo padrões adequados, visando à melhoria da qualidade de vida
no campo, tendo como público alvo os beneficiários do Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, do Plano
Nacional de Crédito Fundiário – PNCF, assalariados rurais com registro
na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS ou com contrato de
trabalho temporário, trabalhadores rurais aposentados, pensionistas
rurais e segurados especiais rurais, observadas as características das
atividades da economia rural e a capacidade de pagamento dos
beneficiários.
A linha programática centrada na melhoria habitacional
contempla ações de autopromoção habitacional assistida, tendo por
objetivo viabilizar o acesso à aquisição de materiais de construção
associados a serviços de assistência técnica para a execução, conclusão,
reforma e/ou ampliação de unidades habitacionais promovidas pelos
162
próprios moradores, de modo a garantir boas condições de
habitabilidade e salubridade, uso adequado dos materiais e técnicas
construtivas, valorização arquitetônica e inserção urbana adequada.
O foco de atendimento são as famílias de baixa e média renda
que vivem em moradias construídas informalmente, com pouco ou
nenhum
acompanhamento
técnico,
resultando
em
unidades
habitacionais com baixa qualidade técnica e arquitetônica e que muitas
vezes permanecem inacabadas.
A linha programática com foco na assistência técnica tem por
objetivo apoiar o desenvolvimento e a implementação de estratégias de
capacitação e oferta de serviços de assistência técnica, visando
melhorar a capacidade dos agentes envolvidos na produção
habitacional.
As ações subdividem-se de acordo com o público alvo. Assim, há
previsão de assistência técnica nas áreas de arquitetura, engenharia,
jurídica, contábil e organizacional tanto para grupos de baixa renda
como para cooperativas e organizações não governamentais voltadas à
promoção de projetos habitacionais para população de baixa renda.
Por
fim,
na
linha
programática
para
desenvolvimento
institucional, o que se busca é aumentar a eficiência dos investimentos
e das demais linhas programáticas, promovendo-se ações de
financiamento e capacitação dos agentes institucionais para exercício
de suas atribuições na formulação, implementação, monitoramento,
avaliação e revisão das políticas habitacionais. Os alvos são agentes dos
Governos Federal, Estaduais e Municipais, participantes e delegados
das Conferências das Cidades, membros de conselhos gestores
relacionados com a política habitacional.
163
As metas do Plano Nacional de Habitação foram construídas a
partir de simulações que consideraram premissas como a tipologia de
Municípios300, a estratificação dos grupos de atendimento301, a
300
Adotou-se a tipologia das Cidades Brasileiras elaboradas pelo Observatório das
Metrópoles para o Ministério das Cidades, 2005, que serviu de base também para a Política
Nacional de Desenvolvimento Regional. A síntese dos tipos de cidades brasileiras é essa: I Faixa dos Municípios com mais de 100 mil habitantes: Tipo A – Regiões Metropolitana do
Rio de Janeiro e São Paulo: metrópoles situadas em regiões de alta renda, com alta
desigualdade social. São denominadas metrópoles globais pela concentração de atividades
e fluxos econômicos e financeiros; Tipo B – Regiões metropolitanas e principais
aglomerações e capitais do Centro-Sul: metrópoles, aglomerações urbanas e capitais
situadas em regiões de alto estoque de riqueza e grande importância funcional na rede de
cidades. São consideradas cidades pólos em suas respectivas regiões; Tipo C – Regiões
metropolitanas e principais aglomerações e capitais prósperas do Norte e Nordeste:
Principais centros polarizadores do Norte e Nordeste, com estoque de riqueza inferior aos
tipos A e B, com maior concentração de pobreza e alta desigualdade; Tipo D – Aglomerados
e centros regionais do Centro-Sul: municípios situados em regiões com alto estoque de
riqueza, com importância como centros polarizadores em suas microrregiões; Tipo E –
Aglomerados e centros regionais do Norte e Nordeste: municípios com baixo estoque de
riqueza, porém com grande importância regional; cidades pólos situadas em microrregiões
com menor dinamismo; II – Faixa dos Municípios com população entre 20 e 100 mil
habitantes: Tipo F – Centros urbanos em espaços rurais prósperos: municípios que estão
crescendo moderadamente, situados nas microrregiões mais ricas do país; têm mais
condições de enfrenta o déficit com recursos próprios; Tipo G – Centros urbanos em
espaços rurais consolidados, com algum grau de dinamismo: Municípios situados em
microrregiões historicamente de maior pobreza e relativa estagnação, mas apresentam
situações mais positiva em comparação aos demais tipos subsequentes; Tipo H – Centros
Urbanos em espaços rurais com elevada desigualdade pobreza: municípios que se
destacam pelos níveis mais elevados de pobreza, maior número de domicílios sem banheiro
e alto déficit habitacional relativo; III – Faixa dos Municípios com menos de 20 mil
habitantes: Tipo I – Pequenas cidades em espaços rurais prósperos; Tipo J – Pequenas
cidades em espaços rurais consolidados, mas de frágil dinamismo recente; Tipo K –
Pequenas cidades em espaços rurais de pouca densidade econômica.
301
Grupo 1: renda até R$ 797,00 nos Municípios tipos G a K e rural ou de até R$ 930,00 nos
Municípios de tipos A a F; atendimento com recursos a fundo perdido públicos ou
institucionais; necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda 2008-2023) de 16,9
milhões de domicílios; Grupo 2: renda de R$ 797,00 a R$ 2.790,00 nos Municípios tipos G a
K e rural ou de R$ 930,00 a R$ 2.790,00 para os Municípios de tipos A a F; atendimento
mediante subsídio parcial (complemento e/ou equilíbrio) ou financiamento com subsídio;
fontes de recursos: OGU e FGTS; necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda 20082023) de 12,4 milhões de domicílios; Grupo 3: renda de R$ 2.790,00 a R$ 4.900,00 e/ou
imóvel até R$ 130.000,00 e/ou mais de R$ 4.900,00 e/ou imóvel de até R$ 500.000,00;
atendimento pelo SFH; fontes de recursos: FGTS e SBPE; necessidades habitacionais (déficit
2007 + demanda 2008-2023) de 1,8 milhões de domicílios; Grupo 4: renda
preponderantemente acima de R$ 4.900,00, financiamento acima de R$ 350 mil e imóvel
acima de R$ 500.000,00; atendimento pelo mercado; fontes de recursos: SBPE faixa livre/
SFI, financiamento direto com a construtora e recursos próprios das famílias (aquisição sem
financiamento); necessidades habitacionais: 0,2 milhões de domicílios. Total das
164
distribuição dos produtos habitacionais por tipologia de municípios e
por grupos de atendimento; prioridades de atendimento por grupos;
contrapartidas dos beneficiários; modelo de financiamento e subsídio;
cenários das fontes de custeio.
As metas estabelecidas para 2023 no Plano Nacional de
Habitação foram as seguintes: Para as famílias do Grupo 1: 8,4 milhões
de atendimento, que corresponde a 50% das necessidades (déficit 2007
+ demanda futura) das famílias que não acessam financiamento
habitacional. O atendimento dar-se-á por meio de fornecimento de: a)
unidades prontas; b) cesta de materiais de construção mais assistência
técnica ou c) lote urbanizado mais cesta de materiais de construção
mais assistência técnica. O subsídio médio, custeado por recursos
públicos orçamentários não onerosos e a fundo perdido é de R$
22.800,00 por família (subsídios entre R$ 13.000,00 a R$ 52.000,00);
Para as famílias do Grupo 2: 12,4 milhões de atendimentos (100% das
necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda futura) das famílias
que necessitam de subsídio parcial. O atendimento dar-se-á por meio
de fornecimento de: a) unidades prontas; b) de cesta de materiais de
construção mais assistência técnica; c) lote urbanizado ou e) de lote
urbanizado mais cesta de materiais de construção mais assistência
técnica. Os valores médios de subsídio é de R$ 10.000,00
(complemento) e de R$ 2.000,00 (equilíbrio) para financiamentos entre
R$ 19.500,00 a R$ 45.000,00. As fontes de recursos para esses produtos
necessidades habitacionais até 2023: 31,3 milhões de domicílios. No geral, as famílias do
Grupo 1 são as mais vulneráveis, que não condições de acesso ao financiamento
habitacional nas condições de mercado e que, precisam de maiores subsídios e
investimentos de recursos públicos a fundo perdido. As famílias do Grupo 2 são aquelas
que têm capacidade de assumir algum financiamento, mas precisam de subsídio
parcial/fundo garantidor. As famílias dos Grupos 3 e 4 não têm dificuldades de ter acesso à
moradia digna nas condições de mercado.
165
habitacionais são o Orçamento Geral da União - OGU e o Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço – FGTS; Para as famílias do Grupo 3: 1,8
milhões de atendimento (100% das necessidades habitacionais) para
famílias de renda média-alta e alta, por meio de unidades prontas,
cestas de materiais de construção e lote mais cesta de materiais de
construção, viabilizados por meio de financiamento, na faixa de R$
90.000,00 a R$ 120.000,00 com recursos do Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço – FGTS e Sistema Brasileiro de Poupança e
Empréstimo – SBPE, nas condições de mercado; Para as famílias do
Grupo 4: 0,2 milhões de atendimento (100% das necessidades
habitacionais), por meio de unidades prontas, viabilizados por recursos
próprios das famílias e/ou financiamento nas condições de mercado
(faixa média de R$ 350.000,00), diretamente com as construtoras ou
com recursos do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE
ou do Sistema Financeiro Imobiliário – SFI; Para a urbanização e/ou
regularização fundiária dos assentamentos precários: 3,2 milhões de
domicílios atendidos (100% das necessidades) estimando que 1/3 dos
atendimentos (1,1 milhão de domicílios) far-se-á com fornecimento de
novas unidades habitacionais.
Um ponto que salta aos olhos é a meta de atender apenas 50%
das necessidades habitacionais do Grupo 1 (mais vulnerável), nos
próximos quinze anos. Ainda que se intensifiquem outras políticas
sociais, como transferência de renda e geração de empregos, o déficit
habitacional se incrementará, e os problemas urbanos continuarão, sem
sobre de dúvida, com padecimento focado nesse contingente mais
pobre da população brasileira. Neste particular, o Plano poderia ter
sido mais ousado.
166
O Governo Lula encerrou-se com adoção apenas parcial do Plano
Nacional de Habitação, notadamente pelo Programa Minha Casa, Minha
Vida e pelos projetos do Programa de Aceleração da Economia
dedicados à infraestrutura urbana e regularização de assentamentos
precários.
As estratégias de facilitação do acesso à moradia digna do
Programa Minha Casa, Minha Vida contam com instrumentos de
subsídio com recursos orçamentários aos financiamentos, isenção total
ou parcial do seguro, gratuidade ou redução das custas cartoriais para
registro imobiliário e a instituição de um fundo garantidor que oferece
cobertura de até 36 parcelas mensais no caso de perda temporária de
emprego ou renda.
Para atendimento das famílias com renda de até seis salários
mínimos mensais, o Programa Minha Casa Minha Vida aposta no
incentivo ao crescimento do mercado imobiliário, na realização de
operações pelo Sistema Financeiro de Habitação por um período
máximo de 30 anos e limitação de comprometimento de até 20% da
renda familiar com as contrapartidas/parcelas mensais, viabilizado por
meio de subsídios, redução das taxas de juros, custos dos seguros e
emolumentos cartoriais, além da cobertura do fundo garantidor.
As famílias com renda entre seis e dez salários mínimos mensais,
embora não sejam contempladas com subsídio direto, são beneficiadas
com taxas de juros reduzidas e descontos significativos nos custos de
seguro.
Além disso, utilizou-se de incentivos fiscais para os produtores de
imóveis para a baixa renda, com redução da alíquota do regime especial
167
de tributação para 1%, e redução de impostos para materiais de
construção.
No que diz respeito à regularização fundiária urbana de interesse
social, a Lei 11.977/2009, do Programa Minha Casa Minha Vida, traz
uma inovações importantes trazer a segurança jurídica da posse
exercida para fins de moradia por pessoas carentes e melhoria das
condições de sustentabilidade urbana e ambiental, como a demarcação
urbanística para fins de regularização fundiária, a legitimação da posse
dos moradores e a conversão administrativa da legitimação da posse
em registro de propriedade (artigos 46 a 71).302
O Governo da Presidente Dilma Rouseff inicia demonstrando que
dará seguimento e aprimorará a política nacional de habitação iniciada
no Governo anterior. Contudo, enfrenta grandes dificuldades de
atendimento das necessidades habitacionais das famílias com renda de
até três salários mínimos por mês. É lançada a da segunda fase do
Programa Minha Casa Minha Vida, com previsão de aumento dos
investimentos e das metas e o Programa Moradia Digna, da área de
infraestrutura. A proposta de Plano Plurianual encaminhada ao
Congresso demonstra o a intenção de prestigiar a área da habitação,
prevendo-se recursos de R$ 390 milhões para o período de 2012 a
2015.
Não obstante, os aparentes avanços, iniciados em passado
recente, ainda são pertinentes e atuais as críticas de José Reinaldo de
Lima Lopes303, alertando para o risco da moradia ser tratada apenas
como um direito de propriedade de uma casa, de um apartamento,
302
Para aprofundar, ver LUFT, Rosangela Marina. As duas dimensões das medidas jurídicas
de regularização fundiária urbana de interesse social.
303
LOPES, José Reinaldo de Lima. Cidadania e propriedade, p. 126.
168
como domínio sobre um bem imóvel. Nessa abordagem, dar direito a
casa como mercadoria é considerada tarefa do Estado. Porém, como o
núcleo dessa missão é claramente individualista e capitalista, segue-se a
lógica de estimular a indústria da construção civil e de associá-la a um
sistema financeiro.
Ocorre que, adotando-se somente essa estratégia, todo o esforço
estatal de tornar a mercadoria unidade habitacional atraente e
acessível no regime de mercado corre o risco de servir às classes
superiores, que, afinal, são às que conseguem pagar o financiamento.
Assim, paradoxalmente, a luta política para defender um direito
que é abstratamente de todos e, também dos mais necessitados –
direito a financiamento barato para a casa própria – acaba por
beneficiar concretamente os menos necessitados. Enfim, a redução do
problema de moradia a um problema de propriedade tem essa
consequência de acentuar as desigualdades sociais ao invés de reduzilas.
Esse é um alerta importante para no acompanhamento e
avaliação das políticas públicas habitacionais. Nem sempre o aumento
da previsão de recursos orçamentários para as políticas habitacionais
reverterão em termos de justiça distributiva e no atendimento das
camadas mais pobres da população. Pode ser que apenas fomentem o
crescimento econômico, o nível de emprego de mão de obra de baixa
qualificação, as atividades da indústria da construção civil, o comércio
de seus insumos, contudo sem lograr-se a universalização do direito à
moradia, ou ao menos a redução do déficit habitacional junto aos mais
necessitados.
Outro aspecto a ser salientado é que, embora o Plano Nacional
169
de Habitação tenha sido uma importante experiência de construção
democrática e participativa de um planejamento estratégico, o certo é
que ele não foi encaminhado ao Congresso Nacional. Logo, por não se
revestir da forma de lei, tal qual exigido pelo artigo 48, IV, da
Constituição, não há garantia de que ele venha a ser integralmente
adotado pelo Governo.
É importante denunciar que não há legislação que garanta que
sejam destinados, de maneira estável, e por longo prazo, recursos
orçamentários para as políticas públicas habitacionais previstas nesse
“Plano Nacional de Habitação”, especialmente para focar a parcela da
população da mais baixa renda, mais vulnerável e com menor poder de
pressão política.
Mostra-se evidente, nesta toada, a necessidade de aprovação da
Proposta de Emenda Constitucional n. 285/2008, bem como da
conversão em lei desse plano setorial que é o plano nacional de
habitação.
Como as leis orçamentárias, no Brasil, não tem caráter vinculante,
mas meramente autorizativa, os verdadeiros instrumentos balizadores
de uma política que transborda mais de um Governo são as leis que
estabelecem as ações estratégias e as metas de longo prazo.
Assim, somente observado o artigo 48, IV, da Constituição, se
revestirá o Plano Nacional de Habitação da qualidade de instrumento
de política de Estado, de um verdadeiro planejamento estratégico
democraticamente concebido, e com um horizonte que transcendam
mandados presidenciais. O problema habitacional brasileiro é grave e
complexo, necessitando de uma intervenção de longo prazo. Carece-se
de perseverança, de constância, de estabilidade.
170
Além disso, a formatação de um arcabouço institucional em todos
os níveis da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios)
para concretizar as políticas habitacionais por todo o território nacional,
de modo a universalizar o exercício do direito à moradia digna, ainda é
obra incompleta, não obstante os avanços representados pela edição
da Lei 11.124/2005, que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de
Interesse Social.
A maioria dos Municípios não tem capacidade técnica, nem
financeira, para estruturar serviços públicos para agir no campo da
moradia, o que demonstra que muito ainda há de ser feito nesta seara.
Há, sem dúvida, que se trabalhar com a descentralização
federativa, mas com atuação conjunta entre União, Estados, Distrito
Federal e Municípios, com distribuição clara de papéis, funções e
competências e distribuição de recursos compatíveis com o tamanho
das responsabilidades de cada ente.
Por isso, tomando como exemplo o Sistema Único de Saúde,
previsto no artigo 198 da Constituição Federal e regulamentado
principalmente pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, apesar de todas as suas
vicissitudes, é produtivo pensar na criação de um sistema de gestão
integrada e pleno das políticas habitacionais, reunindo e aprimorando
os arcabouços normativos do Sistema Financeiro Imobiliário, Sistema de
Habitação de Interesse Social e Sistema Financeiro de Habitação e
demais programas avulsos, constituindo o Sistema Único de Habitação
(o nome pouco importa), com a imprescindível vinculação de receitas
nos três níveis da federação para serem aplicadas nas necessárias ações
de integração urbana e regularização fundiária dos assentamentos
precários, melhoria de habitações precárias e provisão de habitações de
171
interesse social, de modo a realmente incluir e assegurar o direito à
moradia digna também as faixas mais pobres da população brasileira.
Enfim, os desafios da efetivação prática do direito à moradia
ainda estão colocados e precisam ser enfrentados pela cidadania ativa,
pela mobilização da sociedade civil e pelos Poderes Públicos. Pelos
procedimentos democráticos e pelas ações estatais necessárias, e, se
for preciso, também (mas não só) pela via jurisdicional, deve-se buscar
concretizar o que a Constituição de 1988 projeta e determina: que
todos tenham acesso a uma moradia digna, pois isso é uma das
características de uma sociedade justa de pessoas livres e solidárias.
172
3. A EXIGIBILIDADE DE MEDIDAS ESTATAIS DE
PROTEÇÃO OU PROMOÇÃO DO DIREITO À MORADIA
3.1. EXIGIBILIDADE À LUZ DA DOUTRINA DO SUPORTE FÁTICO
Impõe-se enfrentar o coração do problema e explicitar o que
deve ser sindicalizado para verificar se a pretensão apresentada à
Administração Pública, ou, se for o caso, ao Poder Judiciário,
postulando-se
medidas
estatais
de
proteção
ou
fomento,
consubstancia-se ou não um direito exigível. Salienta-se, aqui, que o
raciocínio é desenvolvido de maneira ampla, sem reduzir-se ao
processo judicial, evitando o erro de considerar o Judiciário como o
espaço único, ou prioritário, de reivindicação do direito à moradia. O
discurso dos direitos humanos fundamentais deve, ao contrário, estar
presente no âmbito do Parlamento e do Executivo, eis que vinculado
estritamente com a formulação e execução das políticas públicas.
A exigibilidade de medidas estatais de proteção ou promoção a
um direito humano fundamental coincide com o conceito normativo de
omissão inconstitucional: não fazer o que é devido, injustificadamente.
Assim, compreensão dos limites e possibilidades do controle das
omissões ou insuficiências do Poder Público na proteção e promoção
dos direitos humanos fundamentais pressupõe o aclaramento do
sentido e alcance da norma prevista no § 1º do artigo 5º da
Constituição.
Ao se dispor no § 1º do artigo 5º da Constituição da República
que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata”, o objetivo não foi afirmar o caráter absoluto dos
173
direitos fundamentais, no sentido de imune a restrição, mas sim o
reconhecer-lhes força normativa potencializada. Ou seja, na esteira do
que defendem Ingo Sarlet304, José Afonso da Silva305, entre outros, a
norma do § 1º do artigo 5º da Constituição encerra um mandado de
otimização, que impõe aos órgãos estatais a obrigação de reconhecer a
melhor eficácia possível aos direitos fundamentais, gerando uma
presunção em favor da sua exigibilidade imediata. Porém, o alcance do
princípio dependerá do exame do caso em concreto.
Direitos fundamentais são dotados da máxima eficácia possível
dentro dos condicionantes fáticos e jurídicos presentes nas
circunstâncias em que estiverem inseridos.
A intensidade ou amplitude da eficácia de cada direito
fundamental em um caso concreto tem que ser resolvida como uma
questão de colisão entre direitos fundamentais ou de colisão entre
direito fundamental e outros princípios, valores e bens jurídicos
constitucionalmente protegidos por meio do emprego da ponderação,
da concordância prática e da hierarquização axiológica, guiada pelo
critério da proporcionalidade. Daí a pertinência, para o estudo da
exigibilidade, da distinção feita por Robert Alexy entre direitos prima
facie e direitos definitivos.
A dicotomia direito prima facie e direito definitivo pressupõe a
diferenciação estrutural entre regras e princípios, espécies de normas
jurídicas. Robert Alexy306 emprega as categorias princípios e regras não
segundo os critérios da fundamentalidade e superioridade hierárquica
(isto é, princípios como mandamentos nucleares de um sistema) ou do
304
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 248-252.
SILVA, José Afonso da. A aplicabilidade das normas constitucionais, p. 165.
306
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
305
174
grau de abstração, mas sim como espécies de normas jurídicas
estruturalmente diferentes.
Os princípios, no conceito de Alexy, são normas que prescrevem
mandados de otimização, são mandamentos de otimização, podendo o
preceito ser cumprido em diversos graus de intensidade, de acordo com
as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Por identificarem valores
a serem preservados ou fins a serem alcançados em graus variáveis, os
princípios convivem de maneira integrada, inter-relacionada e
harmônica com outros princípios em sentido opostos, impondo limites
recíprocos. Daí serem aplicados mediante ponderação, a partir da
verificação dos pesos axiológicos de cada princípio em determinado
caso concreto.
Já as regras têm estrutura normativa mais concreta, na medida
em que especificam os atos que devem ser praticados para o
cumprimento
adequado
da
norma.
Portanto,
as
regras
são
mandamentos definitivos que se aplicam por subsunção, no modelo
tudo-ou-nada (all-or-nothing).
Desta diferença entre regras e princípios decorre a distinção
entre direitos definitivos e direitos prima facie: As regras garantem
direitos subjetivos e impõem os deveres correlatos na qualidade de
direitos definitivos, ao passo que os princípios garantem direitos
subjetivos ou impõem deveres apenas de maneira prima facie.
Um direito garantido por uma regra deverá ser realizado
totalmente caso a regra seja aplicável ao caso concreto. É o caso, por
exemplo, dos direitos dos acusados criminalmente decorrentes da regra
175
da retroação da lei penal mais benéfica, enunciada no artigo 5º, XL, da
Constituição de 1988.307
Já no caso de direitos garantidos por normas que tem a estrutura
de princípios, que são mandamentos de otimização, isto é, normas que
determinam que algo seja realizado na maior medida possível, a
amplitude do direito subjetivo que será realizado em definitivo
dependerá das interações com outros direitos e princípios, de modo
que aquilo que é previsto prima facie poder-se-á concretizar em
diferentes graus, de acordo com as condições fáticas e jurídicas
presentes na situação concreta.
Havendo colisão entre princípios, o problema jurídico de
aplicação das normas em conflito dá-se por meio da ponderação cujo
resultado será a fixação de relações condicionadas de precedência de
um princípio sobre o(s) outro(s).
Assim, no caso de direitos garantidos por princípios poderá haver
uma diferença significativa entre o que Alexy denomina de direito
prima facie e o direito definitivo.
O direito prima facie é aquele contemplado em abstrato, que
ainda não restringido, e o direito definitivo é o contemplado no plano
concreto, após ter sido restringido em razão da necessidade de
harmonização com outros princípios (ou direitos garantidos por
princípios). Restrição essa que, para ter validade, deve operar-se de
modo compatível com a Constituição.
307
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 45. O enunciado do inciso XL, do
artigo 5º, da Constituição “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” há de ser
compreendida como norma (regra) que determina o seguinte: “é proibida a retroação de
leis penais, a não ser que elas sejam mais benéficas para o réu que a lei anterior; nesses
casos, deve haver retroação”.
176
Tais conceitos e dicotomias de regras e princípios, direito prima
facie e direito definitivo, são basilares para a verificação da exigibilidade
de medidas estatais de proteção e/ou promoção de um direito
fundamental, o que se dá por meio de um procedimento de
ponderação, que Robert Alexy organiza utilizando a categoria
dogmática que denominou de “suporte fático” de um direito
fundamental.
Suporte fático é uma categoria empregada na teoria de Alexy308
que corresponde aos conceitos de tipo, utilizado no Direito Penal, ou de
fato gerado e hipótese de incidência, usados no Direito Tributário. No
âmbito do Direito Civil, Pontes de Miranda já se referia ao suporte
fático como “conceito da mais alta relevância para as exposições e
investigações científicas”309.
O suporte fático pode ser visto na perspectiva abstrata e na
perspectiva concreta. Em linhas gerais, o suporte fático abstrato é
formado por fatos ou atos do mundo que são descritos por
determinada norma como sendo aqueles cuja realização ou ocorrência
deflagra a consequência jurídica. Preenchido o suporte fático, ativa-se a
consequência jurídica. Já na perspectiva concreta, o suporte fático é a
ocorrência concreta, no mundo da vida, dos fatos ou atos que a norma,
previu em abstrato.310
Virgílio Afonso da Silva afirma que a forma de aplicação dos
direitos fundamentais depende da extensão do suporte fático. Salienta
também que as exigências de fundamentação nos casos de restrição a
direitos fáticos dependem da configuração do suporte fático e que, a
308
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 302.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 65-67.
310
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 67.
309
177
própria existência de colisão entre direitos fundamentais decorre
precisamente da determinação do conceito de suporte fático. 311
Por meio de distinção analítica, identificam-se no conceito de
suporte fático seus elementos constitutivos, os quais mudam, em se
tratando de direitos protegidos por regras ou por princípios, bem como
em se tratando de um direito de defesa ou em se tratando de um
direito a uma ação positiva.
Em se tratando de um direito de defesa (também chamado de
uma liberdade pública), vê-se que sua função principal é proteger algo
contra intervenções indevidas (decorrentes de atos estatais ou de atos
entre particulares). Ao contrário, quando estiver em jogo um direito
prestacional, o objetivo é a proteção contra omissões ou insuficiências
no cumprimento do dever de proteção ou promoção de determinado
bem jurídico fundamental.
Em uma norma de Direito Penal que veda a prática de homicídio,
como a do artigo 121 do Código Penal brasileiro – “Matar alguém. Pena:
311
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 68 - 69. Para ilustrar, apresenta o
autor seguinte exemplo: “Determinado grupo musical, frustrado com a impossibilidade de
demonstrar ao grande público seu talento, resolve, recorrendo a seu direito constitucional
de reunião (CF, art. 5º, XVI), fazer um concerto em local aberto ao público no horário de
maior movimento de automóveis, na avenida mais movimentada de sua cidade, em cujas
cercanias se encontram dezenas de hospitais importantíssimos. As autoridades locais, com
fundamento no transtorno para o trânsito, na possibilidade de mortes ou piora no quadro
de saúde daqueles que têm que ser transportados por ambulâncias para os referidos
hospitais e, por fim, em vista da dimensão meramente individual, festiva e interesseira do
evento, resolvem proibi-lo. Diante desse cenário, várias perguntas são possíveis: (a) O ato
“show de rock no meio da rua” é exercício do direito de reunião? (b) Há colisão entre o
exercício do direito de reunião e o direito à vida daqueles que podem morrer nas
ambulâncias em vista dos problemas no trânsito de automóveis? (b) Quais são as formas de
resolver o problema? Sopesamento entre direitos? Delimitação de um deles? Exclusão de
determinadas situações – por exemplo, “show de rock no meio da rua” – da garantia de
algum dos direitos envolvidos?” As respostas a essas perguntas dependem, entre outras
coisas, da definição do que seja suporte fático, da análise dos elementos que o compõem e,
por fim, da fundamentação de sua extensão. Assim, definir o conceito de suporte fático
dessa ou daquela maneira tem importantes consequências na forma de conceber o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
178
reclusão de seis a vinte anos”- tem-se que o suporte fático para que a
consequência jurídica prevista (imposição da pena) seja aplicada
concretamente é que alguém seja morto por outra pessoa. Nesse caso,
trata-se de um suposto fático de uma regra, isto é, de um mandamento
definitivo, aplicado no modelo tudo-ou-nada, por mera subsunção.
Já as disposições que garantem as liberdades fundamentais
(direitos fundamentais de defesa), a exemplo das que garantem a
liberdade de expressão312 ou o direito à privacidade313, têm a estrutura
de princípios. Tendo a estrutura principiológica, a definição do suporte
fático demanda resposta a quatro inexoráveis perguntas: 1) O que é
protegido (prima facie e em definitivo)? 2) Contra o quê? 3) Qual é a
consequência jurídica que poderá ocorrer se ocorrerem, no mundo da
vida, os fatos ou atos que a norma jurídica, em abstrato, juridicizou? 4)
O que é necessário ocorrer para que a consequência jurídica prevista na
norma advenha?314.
Tais perguntas permitem identificar os elementos constitutivos
do suporte fático.
A resposta à primeira pergunta constitui aquilo que Alexy chama
de “âmbito de proteção” do direito fundamental. Compreender o que é
protegido é uma parte importante, mas apenas uma parte do suporte
fático. Será necessário também responder à segunda pergunta: “Contra
o quê é protegido?” A resposta a essa segunda pergunta consiste no
elemento do suporte fático denominado “intervenção”. Isso porque,
nas liberdades fundamentais, ou, mais rigorosamente, na dimensão
312
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 5º, IV – é livre a manifestação do pensamento.
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a
honra e a imagem das pessoas.
314
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 71.
313
179
funcional de direito de defesa, a “consequência jurídica” prevista na
norma é a exigência de cessação de uma intervenção indevida. 315
Nas palavras de Alexy:
“Bens protegidos316 são ações, características ou situações, ou ainda
posições de direito ordinário, que não podem ser embaraçadas,
afetadas ou eliminadas. O conceito de intervenção constitui o
supraconceito para os conceitos de embaraço, afetação e eliminação.
Os direitos a ações negativas são, portanto, direitos à não-realização
de intervenções em determinados bens protegidos. A esse direito à
não-realização de uma intervenção corresponde (...) o dever de não
realizar essa intervenção”.317
Virgílio Afonso da Silva aprimora a formulação de Alexy quanto ao
conceito “suporte fático”, nele agregando um terceiro elemento: a
“fundamentação
constitucional”,
cuja
ausência
dá
ensejo
à
consequência jurídica prevista: a exigência de cessação da intervenção.
Se houver fundamentação constitucional para a intervenção
estar-se-á diante de uma não violação, mas de uma legítima restrição,
de uma restrição constitucional ao direito fundamental, o que impede a
ativação da consequência jurídica: declaração de inconstitucionalidade
e retorno ao status quo ante.
Daí porque é mais correto (e mais completo) definir o suporte
fático não apenas como sendo composto pelos elementos “âmbito de
315
Virgílio Afonso da SILVA (Direitos fundamentais, p. 71) dá um exemplo bastante claro
para ilustrar que o suporte fático é composto tanto pelo âmbito de proteção como pela
intervenção: “Aquele que todos os dias, antes de dormir, ora em agradecimento ao seu
deus exerce algo protegido pela liberdade religiosa. A ação “orar antes de dormir” é
abarcada, sem dúvida alguma, pelo âmbito de proteção da liberdade religiosa (art. 5º, VI, da
CF). Mas a conseqüência jurídica típica de um direito de liberdade – como é o caso da
liberdade religiosa – não ocorre. Como direito de defesa, essa conseqüência é a exigência
de cessação de uma intervenção. Isso simplesmente porque o suporte fático dessa
liberdade não foi preenchido, pois não houve qualquer intervenção naquilo que é protegido
pela liberdade religiosa.”
316
Expressão utilizada no sentido de âmbito de proteção.
317
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 303.
180
proteção” e “intervenção”, incluindo nesse conceito a “ausência de
fundamentação constitucional”. 318
A análise realizada até agora levou em conta as normas de direito
fundamental permissivas, ou seja, a que garantem liberdades ou direito
de defesa. Prossegue-se na exposição para agora tratar-se do suporte
fático dos direitos prestacionais, isto é, das normas que impõem um
correlato dever de agir ao sujeito passivo.
Paulo Gilberto Cogo Leivas319, mantendo-se nos trilhos da
dogmática de Robert Alexy, explica que no âmbito dos direitos
prestacionais, a passagem das obrigações prima facie para obrigações
definitivas depende da devida ponderação, guiada para preceito da
proporcionalidade.
Em se tratando de um direito de defesa, isto é, diante de
obrigação de omissão estatal, o preceito da proporcionalidade é
aplicado no sentido de proibição de excesso.320 Diante das obrigações
de fazer, isso é, junto aos direitos prestacionais, o preceito da
proporcionalidade é aplicado no sentido inverso, como proibição de
omissão ou de insuficiência.321
A proibição de insuficiência exige que o destinatário do dever de
agir (legislador, julgador, gestor público, etc.) não deixe de alcançar
limites mínimos de atividade ou de resultado.
Nessa linha, método adequado para verificar se ocorre ou não
omissão inconstitucional ou atuação estatal insuficiente na proteção ou
promoção de um direito fundamental prestacional, que é uma espécie
318
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 73-75.
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais e o
direito fundamental ao mínimo existencial, p. 282-286.
320
Übermaβverbot, em alemão.
321
Untermaβverbot, em alemão.
319
181
de procedimento de ponderação, é aquele apresentado por Robert
Alexy322 e aprimorado por Virgílio Afonso da Silva323, denominado de
verificação dos elementos do suporte fático (âmbito de proteção,
intervenção e fundamentação constitucional).
Como já visto, o suporte fático de um direito fundamental deve
conjugar todos os elementos que, quando preenchidos, dão ensejo à
realização da consequência jurídica prevista na norma que garante esse
direito. No caso de direitos que exigem prestações, e não meras
omissões, os elementos do suporte fático terão conteúdos distintos, em
comparação ao suporte fático dos direitos de defesa.
É que, os problemas relacionados aos direitos prestacionais é a
falta de realização dos direitos, decorrentes em geral de uma omissão
estatal ou de uma ação insuficiente. Assim, tanto o conceito do que é
protegido, quanto o conceito de intervenção tem outros conteúdos.324
São direitos de polaridades diversas, uns negativos, outros positivos.
O âmbito de proteção de um direito prestacional é composto
pelas ações exigidas do sujeito passivo (Estado ou particular, conforme
o caso) porque fomentam a realização desses direitos.
Por sua vez, o elemento “intervenção” na estrutura normativa
dos direitos prestacionais se mostra invertida em comparação à
dimensão negativa das liberdades públicas (direitos de defesa). Nos
direitos prestacionais, “intervir” significa não agir ou agir de forma
insuficiente.325
322
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 303 e ss.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 73 e ss.
324
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 77.
325
Vê-se, portanto, que o conceito dogmático de suporte fático de Alexy foi criado para dar
conta das restrições a direitos de defesa e, posteriormente, foi adaptado para atender as
problemas de omissão ou atuações insuficientes no cumprimento dos deveres de proteção
e promoção dos direitos fundamentais (direitos prestacionais).
323
182
Por fim, o último elemento do suporte fático dos direitos
prestacionais é a sua “fundamentação constitucional”. A diferença aqui,
em relação aos direitos de defesa, é que o que se terá que
fundamentar, justificar, embasar, não é uma ação, mas sim uma
omissão ou atuação mitigada.
Neste particular aspecto, é valiosa a invocação da lição de Teori
Albino Zavascki326 que enfatiza que o reconhecimento pelo Poder
Judiciário da inconstitucionalidade por omissão deve ser cercado dos
mesmos cuidados do exame da inconstitucionalidade por ação. Se há
uma presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público
também há uma presunção de constitucionalidade da conduta
omissiva. 327
Ou seja, em respeito ao princípio democrático e à representação
política, é preciso demonstrar, com argumentos consistentes, aptos a
convencer uma universalidade de pessoas bem intencionadas e
326
ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo, p. 236.
Para dar embasamento à sua exposição, Teoria Albino Zavascki cita doutrina de Carlos
MAXIMILIANO (in Hermenêutica e aplicação do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1984, p. 307) de seguinte teor: “Todas as presunções militam a favor da validade de um
ato, legislativo ou executivo; portanto, se a incompetência, a falta de jurisdição ou a
inconstitucionalidade, em geral, não estão acima de toda a dúvida razoável, interpreta-se e
resolve-se pela manutenção do deliberado por qualquer dos três ramos em que se divide o
Poder Público. Entre duas exegeses possíveis, prefere-se a que não infirme o ato de
autoridade. Os tribunais só declaram a inconstitucionalidade de leis quando esta é
evidente, não deixa margem à séria objeção em contrário. Portanto, se, entre duas
interpretações mais ou menos defensáveis, entre duas correntes de idéias apoiadas por
jurisconsultos de valor, o Congresso adotou uma, o seu ato prevalece. A bem da harmonia e
do mútuo respeito que devem reinar entre os poderes federais (ou estaduais), o Judiciário
só faz uso de sua prerrogativa quando o Congresso viola claramente ou deixa de aplicar o
estatuto básico, e não quando opta apenas por determinada interpretação não de todo
desarrazoada”. Pode-se, ainda, invocar as palavras de Sérgio Moro: “(...) o julgador não
deve substituir a interpretação da Constituição realizada pelo Parlamento pela sua própria,
a não ser que reúna argumentos substanciais no sentido de que a primeira estaria
equivocada (o que é bastante difícil em se tratando de interpretação de regras
constitucionais abertas). Entretanto, mesmo aqui, deve ser empregado o teste da
razoabilidade. As opções legislativas não podem ser arbitrárias. Ato normativo que não
passe pelo crivo da razoabilidade não é lei. (Legislação suspeita? Afastamento da
presunção de constitucionalidade da lei. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2003, p. 55).
327
183
razoavelmente bem informadas, que as escolhas alocativas feitas pelo
Poder Público, na formulação ou execução de uma política pública,
estão em desconformidade com o sistema constitucional de direitos
fundamentais, deixando sem proteção ou promoção suficiente o direito
em questão para privilegiar ou atender outros interesses menos
valiosos segundo a pauta axiológica acolhida pelo Pacto de 1988.
Não se conseguindo demonstrar argumentativamente que a
distribuição (ou alocação) dos recursos públicos disponíveis foi a melhor
do ponto de vista da ordem constitucional, mantém deferência à
decisão política tomada.
Em alguns casos, concluída a ponderação, chegar-se-á à
conclusão de que do Estado, na situação concreta em análise, não é
exigido em definitivo nenhuma conduta protetora ou promocional (ou
nenhuma medida outra além das que já vem empregando). Se assim
resultar da ponderação, não se estará diante de uma omissão
inconstitucional. O não-agir estará justificado, tem fundamentação
constitucional.
Noutros casos, ao final do procedimento de ponderação,
verificar-se-á há que está havendo omissão inconstitucional ou atuação
estatal insuficiente, também censurada pela Constituição, na proteção
ou promoção de determinado direito fundamental. Preenchido o
suporte fático, aciona-se a sanção jurídica para impelir o Poder Público
a cumprir com o seu dever de agir.
Ocorre que neste procedimento de ponderação, através do qual
se dá a passagem de um direito prestacional prima facie para um direito
definitivo, também há que se tecerem considerações a respeito da
necessidade e adequação dos meios frente à pluralidade de opções.
184
Seguindo os ditames da proporcionalidade, uma atuação estatal
será adequada, no sentido de obedecer à proibição de insuficiência,
caso os meios empregados sejam aptos a alcançar ou promover o
objetivo exigido pela norma que obriga o Estado a agir.
No plano da aferição da necessidade dos meios, verificar-se-á, se
há ou não outros meios aptos para alcançar em igual ou maior medida a
realização do objetivo exigido pela norma e que causem menos
afetação a outros direitos fundamentais ou a outros interesses também
constitucionalmente tutelados.
Saliente-se que, por serem assegurados por normas que tem
estrutura de princípio, isto é, de mandados de otimização, os direitos
fundamentais prestacionais devem ser atendidos pelos meios que
apresentarem a mais alta intensidade de proteção ou promoção do
estado de coisas desejado pela norma, salvo se houver necessidade de
alguma restrição, justificada pela necessidade de partilhar os meios
disponíveis para atender outro(s) direito(s) fundamental(is) igualmente
valioso(s)/importante(s).
A complexidade resulta de que tudo depende da necessária
ponderação ou sopesamento, cuja solução implica atribuição de pesos
aos direitos/princípios/valores/interesses/bens jurídicos colidentes.
Atribuição de pesos esta que está sujeita a controle racional,
fundamentando-se a decisão a motivação, que deve ser formulada à luz
das diretrizes constitucionais.
Por isso, depois de concluídos os juízos de adequação e de
necessidade, adentra-se no juízo da proporcionalidade em sentido
estrito, cujo critério guia é aquele que determina que quanto maior for
o grau de não satisfação ou de afetação de um direito fundamental,
185
tanto maior de ser a importância do direito fundamental que está
sendo satisfeito com os meios de que o Estado dispõe. Isso leva em
conta as escolhas alocativas, ou seja, é preciso verificar quais foram os
meios empregados para se atingir determinada finalidade e que
poderiam ter sido empregados para outro escopo.
Ainda assim pode ocorrer que, concluída a ponderação, existam
vários meios, igualmente adequados, necessários e proporcionais, para
atingir o fim de proteger e promover o bem jurídico ou direito
fundamental em tela. Como ensina o próprio Alexy:
“Se mais de uma ação de proteção ou fomento é adequada,
nenhuma delas é, em si mesma, necessária para a satisfação do
dever de proteção ou de fomento; necessário é somente que alguma
delas seja adotada.”328
Ou seja, nesses casos em que se verifica a existência de vários
meios aptos, reconhece-se um espaço de discricionariedade para a
escolha daquele que será empregado.
Percebe-se que a metodologia do suporte fático, defendida por
Robert Alexy e Virgílio Afonso da Silva, busca organizar a argumentação
jurídica e, portanto, propiciar uma estruturação da motivação da
decisão de aplicação do Direito diante de uma pretensão de tutela a
direito fundamental. Enfim, objetiva-se facilitar o controle racional,
intersubjetivo, a verificação da correição da decisão tomada, dando-lhe,
assim, mais transparência a todo o processo decisório329.
328
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 462.
Alguns julgados recentes são bastante expressivos quanto ao dever de transparência na
gestão da coisa pública no atual sistema constitucional brasileiro: 1) STF, RHD 22, Rel. Min.
Celso de Mello, j. 19 set. 1991: “A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres
individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial a
caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo políticojurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que
329
186
É claro que não se elimina de todo – até porque isso é na prática
inalcançável – os riscos de decisões equivocadas, ou pautadas em juízos
subjetivos do julgador. Porém, a necessidade de explicitação dos
fundamentos sujeita o julgador à crítica pública pela decisão tomada.
Portanto, a exposição decorrente do dever de bem fundamentar
propiciar maiores chances de acertos.
A rigor, a análise do suporte fático de um direito fundamental,
para fins de juízo acerca da exigibilidade em determinada situação
concreta, não deixa de ser uma espécie de raciocínio por ponderação.
Sendo assim, um problema que fica aberto é que a ponderação,
enquanto estrutura de raciocínio, não deixa de ser uma fórmula
meramente formal e, por isso, vazia de conteúdo. Por isso, quando de
sua aplicação, ela deve ser preenchida com critérios substanciais que
guiem o intérprete-aplicador-do-Direito na sua tarefa de atribuir pesos
e, com isso, decidir qual dos interesses em jogo deve prevalecer no caso
concreto.
Neste sentido, Ana Paula de Barcellos, após considerar que
ponderar tem o sentido de atribuir peso a diversas grandezas para
calcular a médica ponderada; de examinar com atenção e minúcia; de
avaliar, apreciar as vantagens e as desvantagens; de levar em
se oculta”; 2) STF, DJU 09 dez 2003, MS 24.725-8, Rel. Min. Celso de Mello: “Assiste, aos
cidadãos e aos meios de comunicação social (“mass media”), a prerrogativa de fiscalizar e
de controlar a destinação, a utilização e a prestação de contas relativas a verbas públicas.
(...) Não custa rememorar que os estatutos do poder, numa República fundada em bases
democráticas, não podem privilegiar o mistério, eis que a legitimidade político-jurídica da
ordem democrática, impregnada de necessário substrato ético, somente é compatível com
um regime do poder visível, definido, na lição de BOBBIO, como “um modelo ideal do
governo público em público”. Ao dessacralizar o segredo, a nova Constituição do Brasil
restaurou o velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio
democrático da publicidade, cuja incidência – sobre repudiar qualquer compromisso com o
mistério – atua como fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais”.
187
consideração, ter atenção sobre alguma coisa, sopesar; e de que toda
decisão humana minimamente racional envolve algum tipo de
ponderação, de avaliação de vantagens e desvantagens, dos prós e
contras, cuja conclusão condiciona à tomada de decisão em um ou
outro sentido, reconhece que a ponderação em si é uma técnica
instrumental vazia de conteúdo, incapaz de responder às seguintes
questões: 1) Que peso deve ser atribuído a cada elemento? 2) Por que
uns receberão um peso maior que outros? 3) Por qual razão uma
solução deve prevalecer sobre outra?330
No mesmo sentido, explica Luiz Guilherme Marinoni, citando Karl
Larenz que “ponderar” e “sopesar” direitos ou bens jurídicos são
apenas imagens. Não se trata de grandezas quantitativamente
mensuráveis, mas do resultado de valorações que deve ser feito no caso
concreto, não se podendo, de antemão, catalogar em uma tabela a
ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos.331
Igualmente, Humberto Ávila ressalta que ponderação e
concordância prática são estruturas exclusivamente formais, despidas
de critérios materiais para solução do conflito dos elementos que se
imbricam. 332
De fato, há uma preocupação muito grande de que a ponderação
se torne um procedimento fluído, estruturado com argumentos vazios,
formulados em linguagem rebuscada, que apenas servem para
dissimular os déficits de fundamentação racional, com o propósito de
camuflar, de escamotear decisionismos subjetivistas.333
330
BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 1-3 e
124.
331
MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da Tutela, p. 256.
332
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 96-97.
333
FERRAZ, Sergio Valladão. Hermenêutica constitucional estruturante, p. 117-118.
188
Dito isso, percebe-se que a controlabilidade racional das decisões
de aplicação do Direito tomadas com base em ponderação depende
não apenas da exposição estruturada do raciocínio, mas principalmente
da fundamentação substancial que é dada para justificar a precedência
de um interesse sobre outro, o que leva à questão da motivação das
sentenças, bem como à imprescindível abertura do processo que levou
à construção da decisão judicial a uma boa instrução probatória
multidisciplinar e a um debate racional, com ampla participação quando
se tratar de questão interesse geral.
Enfim, imprescindível que a ponderação esteja inserida em um
procedimento de debates e produção de provas que permita o
amadurecimento das questões em jogo.
Nesta linha, o próprio Alexy334 reconhece que a ponderação pode
não conduzir a um único resultado, nem elimina certa dose de
discricionariedade judicial. Contudo, defende seu método, aduzindo
que a possibilidade de múltiplas respostas não implica concluir que se
trate de um método desprovido de parâmetros racionais. Segundo a lei
da ponderação, devem-se apresentar argumentos racionais, com
pretensão de correção, demonstrando um grau de não cumprimento,
prejuízo ou restrição de um princípio, depois, comprova-se a
importância do cumprimento do princípio oposto. Depois, ainda, há de
se comprovar que importância do cumprimento do princípio que
justifica a mitigação do outro. Assim, conclui Alexy que a utilização da
técnica ponderativa proporciona controle sobre as decisões já que exige
a exposição de argumentos racionais.
334
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 108-116.
189
Ao contrário do que se poderia até cogitar, a ponderação não
enfraquece a normatividade dos direitos fundamentais, antes a reforça,
uma vez que, pela lei da ponderação, quanto maior a intensidade de
uma intervenção estatal no âmbito de um direito fundamental, maior
será a necessidade de justificação. Ou seja, quanto maior o sacrifício,
menos autorizada ela estará e menor probabilidade terá de ser
permitida, e isso preserva a força normativa do direito fundamental em
questão. 335
Como coloca Manuel Atienza, o modelo que Alexy propõe não
permite alcançar sempre uma única resposta correta para cada caso,
mas é o que leva a um maior grau de racionalidade prática, sendo
também o mais compatível com o modelo de racionalidade incorporado
pelo Direito de um Estado Democrático e Constitucional.336
O grande valor da teoria da argumentação, na visão de Alexy, é
contemplar o discurso jurídico como uma espécie do discurso prático
em geral. Um discurso cujas características são a de que as razões e as
contrarrazões são postas a prova, buscando-se, ao final, trazer uma
decisão fundamentada tão somente na força do melhor argumento.
Diante da tessitura aberta dos textos normativos, notadamente
dos chamados princípios constitucionais, o controle racional das
decisões jurídicas depende muito de critérios materiais de ordenação
hierárquica entre os diversos tópicos, argumentos, princípios, regras
e/ou versões de concretização normativa.
Observa Manuel Atienza que os critérios de racionalidade prática
apresentados pelas diversas teorias da argumentação jurídica que já
foram publicadas são apenas critérios mínimos, que só permitem
335
336
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 115-116.
ATIENZA, Manuel. As razões do Direito, p. 182.
190
descartar como irracionais determinadas decisões ou formas de
argumentação.337
Portanto, como há muito que ser descoberto e sistematizado,
está-se diante de um campo profícuo para investigações e pesquisas: o
da teoria da argumentação jurídica. Porém, não se pode deixar de lado
o que já se conquistou nesse âmbito para tornar as decisões mais
controláveis, menos suscetíveis a subjetivismos ou casuísmos.
Nos casos de interpretação, de atribuição de sentido, a textos
normativos de tessitura aberta, como é o caso das normas garantidoras
de direitos fundamentais, além da rigorosa observância do devido
processo legal, que assegure, ao máximo possível, a observância de um
debate racional e embasado; além do respeito aos limites das
possibilidades semânticas dos textos normativos interpretados, três
critérios materiais já revelados pelas teorias da argumentação parecem
fundamentais:
1) o da universalidade ou isonomia (as decisões para um
caso concreto devem ser definidas levando-se em conta
que elas deverão também valer para outros casos futuros
iguais aquele, não devem ser casuísticas ou
idiossincráticas)338;
2) e o da "reserva de consistência" das interpretações, que
significa que para se preencher o conteúdo dos termos
vagos constantes nos textos normativos, se deve buscar o
auxílio de outros saberes técnicos não jurídicos (medicina,
biologia, psicologia, sociologia, economia, administração,
337
ATIENZA, Manuel. As razões do Direito, p. 223.
Nesse sentido: BARROSO, Luís Roberto.
contemporâneo, p. 343-344.
338
Curso
de
Direito Constitucional
191
etc.), de modo a demonstrar-se, solidamente, o acerto da
solução proposta339 e
3) o da coerência da solução proposta com o sistema de
textos normativos em vigor, levando em conta,
precipuamente, as finalidades e os direitos fundamentais
previstos na Constituição, sendo que, no caso do Brasil,
têm especial relevo os princípios, os objetivos e as
finalidades fundamentais – e vinculantes – da República,
previstos nos artigos 1º e 3º do Texto Maior.340
Por conseqüência, tem importância indiscutível a argumentação
jurídica apresentada para a solução de um caso concreto envolvendo
direitos fundamentais. Por meio dela é que se verifica se houve sério
compromisso com a implementação dos direitos fundamentais, tal qual
ordenado pela Constituição, ou se, ao contrário, de forma indevida,
ignorou-se o mandamento do § 1º do artigo 5º da Constituição de 1988,
negando eficácia ao direito fundamental em questão.
Enfim, a doutrina do suporte fático de um direito fundamental
consegue organizar metodologicamente o processo para se sindicar se
há ou não exigibilidade, em determinado caso concreto, de medidas
protetoras ou fomentadoras de um estado de coisas aprioristicamente
contemplado por uma norma-princípio. Favorece-se a elaboração de
discursos mais consistentes, que respeite as enunciações dos direitos,
as condições da realidade e a imperiosa necessidade de conciliação
entre interesses conflitantes. E isso se aplica para fins de justiciabilidade
do direito à moradia em sua dimensão de direito prestacional.
No caso do direito à moradia, manifestar-se-á a dimensão
339
É, o que defende, v.g. MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como
democracia, p. 225
340
Nessa linha, FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito, p. 171-181.
192
prestacional quando se demandar, por exemplo, a estruturação de
órgãos e a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela
e promoção do direito à moradia; o fornecimento pelo Estado de auxílio
financeiro, a prestação de serviço público ou a entrega de bens
materiais, entre outras ações comissivas; prestações de tutela contra
danos potenciais, eminentes ou efetivos, causados por condutas ilegais
ou abusivas de agentes públicos ou privados (direito de proteção).
O direito humano fundamental à moradia em sua dimensão
prestacional é previsto em norma constitucional que tem a estrutura de
princípio. Os princípios, como mandados de otimização, determinam a
utilização dos meios adequados para o alcance ou promoção de
determinado objetivo. A finalidade colimada é o asseguramento de
acesso e fruição de uma moradia digna ou a efetiva proteção desse
direito quando ameaçado ou lesado por agente público ou particular.
Para atingir esses objetivos, em determinada situação concreta,
vários meios mostram-se a priori adequados, úteis, necessários, como,
por exemplo: fornecimento de um abrigo provisório, fornecimento de
dinheiro a título de auxílio aluguel, fornecimento de habitação para
venda a preços acessíveis, fornecimento de terreno, fornecimento de
materiais de construção, fornecimento de assistência jurídica ou de
assistência técnica para edificação e/ou regularização fundiária, o
fornecimento de um provimento judicial de proteção com o
cumprimento assegurado por meios inibitórios ou coercitivos, ações de
melhoria das habitações ou das estruturas de serviços públicos
essenciais como fornecimento de água, luz, coleta de esgoto, etc.
Assim, antes da ponderação, nenhum meio que possa promover
a realização do princípio pode ser desconsiderado. Todo e qualquer
193
meios é apto a proteger e promover a moradia é, portanto, considerado
objeto do mandado prima facie contido na norma constitucional. Assim,
todos esses meios devem ser submetidos à ponderação, que é guiada
pelo preceito da proporcionalidade, levando em conta a necessidade de
se atender, de maneira equilibrada, outros direitos humanos
fundamentais, com os recursos disponíveis, os quais, por óbvio, não são
ilimitados.
Portanto,
a
questão
da
análise
da
“fundamentação
constitucional”, enquanto elemento do suporte fático do direito
prestacional à moradia, em face do Poder Público, se conecta com os
dilemas da escassez de recursos e com as escolhas alocativas, a seguir
analisados.
3.2. EFETIVIDADE DO DIREITO À MORADIA, EFICÁCIA DA
NORMA CONSTITUCIONAL GARANTIDORA, ESCASSEZ E
ESCOLHAS ALOCATIVAS
José Casalta Nabais lembra que a ideia de direitos fundamentais
está atrelada a de deveres dos cidadãos, de tal forma que todos os
membros da comunidade devem contribuir para o suporte financeiro
desses direitos. Trata-se de um binômio direito-dever. Um binômio que
precisa ser salientado, já que, no dizer do mencionado autor, a
dimensão dos deveres vem se mantido como a “face oculta dos direitos
fundamentais”.341
A respeito dessa relevante discussão sobre os custos da proteção
dos direitos, Stephen Holmes e Cass Sunstein trazem contribuições
341
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos
dos direitos.
194
valiosas, ao demonstrarem que não apenas os direitos sociais342
implicam dispêndio de recursos públicos. A dimensão econômicofinanceira está presente em todo e qualquer tipo de direito.
É que qualquer direito mostrar-se-á oco se não for protegido pelo
Estado. Como esta proteção demanda dispêndio de recursos do erário,
todo e qualquer direito são onerosos. Não se trata de uma
exclusividade dos direitos sociais. Até mesmo os chamados direitos
negativos, ou de liberdade, porque seus remédios, suas garantias,
importam em gastos.
Assim, a dimensão financeira, de encargos para os cofres
públicos, está presente em qualquer tipo de direito: do direito ao
tratamento de saúde ao direito de propriedade; do direito de liberdade
de expressão ao direito à moradia digna. 343
Na mesma linha adotada por Holmes e Sunstein, Daniel Sarmento
leciona que envolver custos não é uma característica exclusiva dos
direitos sociais:
“... fazendo-se presente também nos direitos individuais e políticos,
cuja plena exigibilidade judicial ninguém questiona. Afinal, proteger a
propriedade, prestar a jurisdição, promover eleições, etc., são
atividades que também importam em gastos públicos”.344
Alceu Maurício Jr. concorda com Holmes e Sustein que as
chamadas liberdades públicas também demandam do Estado
342
O termo “direitos sociais” é empregado como denominação genérica aos direitos
positivos, isto é, os direitos a uma prestação ou uma atividade estatal relacionada à
educação, ao atendimento à saúde, à previdência e à assistência social entre outras
incumbências que os Estados-Nações ocidentais passaram a assumir, principalmente após o
segundo Pós-Guerra. A denominação “direitos sociais” é utilizá-la para contrastá-los com os
“direitos civis e políticos”, substituindo a expressão “direitos econômicos, sociais e
culturais”, consagrada nos Pactos das Nações Unidas.
343
HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The cost of rights, p. 15-20, 55 e 234-236.
344
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: Alguns parâmetros éticojurídicos, p. 533-554.
195
prestações positivas que oneram o orçamento público, porém, entende
que a distinção entre direitos negativos e direitos positivos ainda deve
permanecer eis que as liberdades em si não têm custos, apenas suas
garantias é que são gravosas ao Estado, enquanto os direitos
prestacionais não se realizam se sua execução não for custeada pelos
cofres públicos.345 Mas saliente-se: a distinção deve ser feita não entre
direitos e liberdades civis e políticas, de um lado, e direitos econômicos,
culturais e sociais, de outro, mas entre as dimensões funcionais de
direito de defesa e de direitos prestacionais presentes em qualquer
uma das categorias anteriores (liberdades e direitos civis e políticos e
direitos sociais lato sensu).
De fato, os chamados direitos negativos, voltados a resguardar
esfera de autonomia privada contra intervenções do Estado ou de
particulares, blindando um espaço de liberdade individual em face dos
outros e do Poder Público, não implicam gastos imediatos para se
realizarem na prática. Mas isso não implica em dizer que, mesmo assim
eles não implicam gastos públicos. Mesmo quando não são violados ou
ameaçados os direitos negativos (ou dimensão funcional negativa dos
direitos de liberdade) importarão em despesas para o Estado para o
custeio da criação e manutenção de organizações estatais que foram
estruturadas
justamente
para
garantir
esses
direitos
(Polícia,
Bombeiros, Defesa Civil, Judiciário, Ministério Público, etc.).
É certo, porém, que os chamados direitos sociais de cunho
eminentemente prestacional estão mais intensamente ligado ao custeio
pelo erário na medida em que eles não se realizam no mundo dos fatos
caso o fornecimento estatal do bem ou do serviço pertinente não
345
MAURÍCIO JR., Alceu. A revisão judicial das escolhas orçamentárias, p. 59,
196
ocorra. Logo, são direta e imediatamente dependentes do emprego de
recursos públicos.346
Contudo, a diferença entre direitos sociais e os chamados direitos
negativos, no que diz respeito à dependência do custeio estatal, é
apenas relativa e circunstancial. Logo, é equivocado relacionar os
direitos e liberdades civis às normas constitucionais de eficácia plena e
aplicabilidade direta e imediata e os direitos sociais às normas
programáticas, dependentes - para terem aplicabilidade - da
complementação pelo legislador ordinário.
Vicente de Paula Barreto, a respeito, sustenta que o pensamento
neoliberal criou três falácias para negar a exigibilidade dos direitos
sociais: 1) que os direitos sociais seriam direitos de segunda ordem, por
que não participaram do momento fundador do Direito, tais quais os
direitos civis e políticos; 2) que os direitos sociais têm sua exigibilidade
condicionada a uma economia forte; e 3) que só direitos sociais teriam
custos e, portanto, estariam sujeitos à escassez dos recursos. 347
Ocorre que, os direitos sociais não são apenas instrumentos de
compensação das desigualdades, mas integram um núcleo fundamental
sem o qual não se pode garantir a segurança, a liberdade, a sustentação
e a continuidade da vida humana em sociedade. Logo, os direitos sociais
também participam do momento fundador do Direito. Por outro lado, a
efetivação dos direitos sociais não depende de uma “economia forte”,
mas, sobretudo, de escolhas políticas que definirão a destinação dos
346
Discussão interessante que esse tópico suscita é se os gastos na realização de direitos
sociais são custos ou investimentos? Ao se considerar que a maior riqueza de um país é o
seu povo, investir na implementação dos direitos sociais – educação, saúde, moradia,
assistência social, principalmente – vale a pena. Tratar-se-á não de meros custos, mas sim
de investimentos. Afinal, prosperidade depende de pessoas qualificadas e talentosas, com
boa qualidade de vida.
347
BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais, p. 117-121.
197
recursos e das políticas públicas necessárias. Por fim, ter custo não é
uma característica exclusiva dos direitos sociais, bastando se lembrar
dos altos encargos à Fazenda Pública para manter e fazer operar o
aparelho estatal - administrativo e judicial - necessário para garantir os
direitos civis e políticos348.
A percepção que a proteção e promoção dos direitos envolvem
custos ilumina a questão da correlação entre as despesas geradas pelo
fornecimento das prestações estatais de bens e/ou serviços com os
recursos que a sociedade é capaz de carrear ao Estado.
Essa dimensão traz também à baila a importância de se verificar a
maneira pela qual os recursos públicos estão sendo utilizados, não só à
luz dos aspectos da eficiência e probidade, mas, notadamente, pelo
critério da compatibilidade com o estabelecido na Constituição, que
busca combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,
reduzir desigualdades sociais, assegurar igualdade de acesso às
condições básicas de vida através do caminho do desenvolvimento
socioambientalmente sustentável.
Consoante destaca Lafayete Josué Petter:
“o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de
garantir o desenvolvimento nacional, com a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a
marginalização e promovendo o bem de todos com redução das
desigualdades (CF, art. 3º), por certo está umbilicalmente
relacionado com os preceitos voltados para a atividade econômica
(CF, arts. 170 e ss.). A falta de desenvolvimento, ou, dito de outro
modo, o estado de subdesenvolvimento, deve ser tida como a
antítese do receituário constitucional, reclamando redobrados
esforços de superação na atividade afeta a todos os operadores do
Direito, v.g., impondo aos administradores públicos um mínimo de
348
BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais, p. 117-121.
198
programação de políticas públicas de longo prazo”349
Daí a relevância de verificar se as políticas públicas que vem
sendo formuladas e executadas pelo Poder Público, e que se encontram
espelhadas no orçamento público e nos planos estratégicos de
transformação da realidade, mostram-se compatíveis ou não com
objetivos fundamentais da República brasileira, centrada na dignidade
da pessoa humana, e com um claro propósito de eliminar a miséria e
reduzir as desigualdades (preâmbulo, artigo 1º e 3º da Constituição).
Poder-se-ia cogitar que a menor efetividade dos direitos sociais
estrutura-se numa contraposição, entre as normas que consagram
liberdades públicas e direitos políticos, entendidas como normas de
eficácia plena, e as normas que consagram direitos sociais, tidas como
de eficácia limitada.
Por esse prisma, a maior efetividade das liberdades públicas e dos
direitos políticos decorreria da característica desses direitos de não
dependerem de regulamentação e intervenção estatal para serem
respeitados, bastando uma abstenção do Estado e do legislador
ordinários, ao passo que, diferentemente, os direitos sociais estariam
contemplados em normas de eficácia limitada, revelada pela dimensão
dos custos que esses direitos implicam para o Estado, o qual, por isso
mesmo, não teria condições de agir da forma esperada.
Por essa maneira de olhar, a baixa efetividade seria mais uma
demonstração da eficácia limitada das normas que consagram os
direitos sociais.
Virgílio Afonso da Silva responde que esta explicação para a
menor efetividade dos direitos sociais, apesar de frequente na doutrina,
349
PETTER, Josué Lafayete. Princípios constitucionais da ordem econômica, p.165.
199
e apenas parcialmente correta. Primeiro porque qualquer direito
implica custos, às vezes altíssimos ao Estado. Também as liberdades
públicas e os direitos políticos exigem uma ação onerosa do Estado.
Segundo porque as razões para algumas normas conseguirem, no
plano prático, produzir mais efeitos do que outras são extrínsecas ao
texto ou à estrutura normativa, não estão na dimensão jurídica da
eficácia, mas em outro plano. A explicação para maior ou menor
efetividade encontra-se nas opções político-ideológicas que foram
feitas no curso da história de um país não sendo algo intrínseco às
normas constitucionais.350
Portanto, a explicação está na história, nas decisões alocativas de
recursos, nas estruturas institucionais e procedimentais que foram
sendo consolidadas, e nos volumes de recursos que foram sendo
tradicionalmente aplicados em determinada área de atuação do Estado.
Os primeiros exemplos que Virgílio Afonso da Silva trabalha para
demonstrar suas assertivas é o direito ao sufrágio, comparando-o com o
direito à saúde.
No plano do texto constitucional, nada diferencia o direito ao
sufrágio universal e às eleições livres, cujo voto de igual valor para
todos os eleitores, enunciado no artigo 14 da Constituição brasileira de
1988 e o direito à saúde, garantido pelo artigo 6º da mesma Carta.
Para que a norma expressa pelo artigo 14 produzisse os efeitos
desejados houve necessidade da criação e manutenção de seções
eleitorais e de juntas de apuração, a organização e manutenção de um
órgão responsável pela organização e bom funcionamento das eleições,
no caso, o Tribunal Superior Eleitoral, a elaboração de uma legislação
350
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 231-232.
200
eleitoral e partidária, a criação e manutenção de alguma forma de
financiamento partidário, entre outras exigências. Sem tudo isso, o
mero texto constitucional é despido de qualquer possibilidade de
produzir efeitos.
Para a norma expressa pelo artigo 6º da Constituição – direito à
saúde – produzir os efeitos desejados, mostra-se necessária a
construção de hospitais e a contratação de médicos para o serviço
público de saúde, a elaboração de uma legislação que discipline a forma
de financiamento e de utilização desse serviço público, a definição de
prioridades no combate a doenças, etc.
Portanto, como se percebe, nem uma nem outra norma é
bastante em si mesma. Ambas dependem da ação estatal para produzir
efeitos. E a diferença básica entre elas no que diz respeito à efetividade,
não está no plano jurídico-analítico, mas no plano jurídico-empírico.
Não está no plano da eficácia, mas sim no plano da efetividade.
Portanto, a explicação para atual crise de efetividade dos direitos
sociais é outra da tradicionalmente apresentada.
No caso do direito ao sufrágio, as condições institucionais, legais
e financeiras necessárias já existem, pois, no curso da sua história, o
Brasil já estruturou um órgão que organiza eleições, já existem
funcionários para trabalhar nesses órgãos e pessoas para trabalhar nos
dias de eleições, já existe dotação orçamentária suficiente para
organização das eleições.
Já no caso do direito à saúde, as condições institucionais, legais e
financeiras ainda não são ideais, pois faltam hospitais, não se dispõe de
um plano de carreira e salários para atrair médicos, notadamente longe
dos grandes centros urbanos, faltam recursos para comprar
201
medicamentos e material hospitalar, etc.
A diferença entre os dois casos, com efeito, é fática e temporal, e
não porque as normas que asseguram o direito ao sufrágio são de
eficácia plena e bastam em si mesmas e as normas que contemplam o
direito à saúde são de eficácia limitada, reduzida. A única diferença é
que em um caso, as condições fáticas para a produção dos efeitos já
existem, e no outro, ainda não.351
No caso do direito político ao sufrágio e o direito à saúde, acima
analisado,
ambos
apresentam
dimensão
funcional
positiva,
prestacional. Mas no caso de liberdades públicas comparadas com os
direitos sociais, haveria alguma diferença? A explicação para a menor
efetividade dos direitos sociais em comparação às liberdades públicas
decorre da diferente eficácia das respectivas normas constitucionais
que os salvaguardam?
Conforme apresentado por Virgílio Afonso da Silva, a explicação
que geralmente se encontra na doutrina é apenas parcialmente correta.
Se as liberdades públicas continuarem sendo compreendidas como
meros direitos de cunho liberal, que garante um direito subjetivo dos
indivíduos a uma abstenção estatal, aí sim, poder-se-ia entender que as
normas constitucionais que as garantem bastariam em si mesmas.
Contudo, e no caso de violação, de não observância espontânea do
dever de abstenção?
Tal peculiaridade mostra que as liberdades públicas só são
efetivas se o Estado cumprir o seu dever de protegê-las. Por isso, se
visualiza que os direitos e liberdades públicas além da dimensão
funcional de direito de defesa ou direito a uma abstenção/não351
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 232-234.
202
interferência, também apresentam as dimensões funcionais de direitos
de proteção e de direitos a organização e procedimentos, ambos como
inequívoco conteúdo prestacional.
Nesta linha, o direito de propriedade só será pleno se, de fato, o
Estado cumprir o seu dever de protegê-lo contra atentados de agentes
públicos ou privados. Para tanto, é necessário legislar, criar e manter
organizações, como a Polícia, o Poder Judiciário, etc., é preciso criar um
registro de imóveis, é necessário estabelecer os procedimentos para
aquisição e transferência da propriedade, dentre outras ações estatais
necessárias. Sem tudo isso, a norma constitucional que protege o
direito à propriedade não tem capacidade de produzir os efeitos
desejados no plano empírico, no mundo dos fatos.
Vale dizer: sem regulamentação, sem intervenção estatal, nem
mesmo a norma constitucional que garante um direito individual ou
uma liberdade pública tem capacidade de produzir seus efeitos.
Portanto, a criação das condições materiais e jurídicas para a produção
de efeitos dos direitos e liberdades individuais, via regulamentação e
via criação e manutenção de organizações e procedimentos equivale ao
que é demandado para a efetivação dos direitos sociais. Nesta linha,
por exemplo, o direito à educação demandaria a construção de escola,
a contratação e treinamento de professores e auxílio aos estudantes
carentes na compra de material escolar, ou, noutro exemplo, o direito à
moradia, aqui tratado, cuja efetividade demandaria a construção de
casas, a abertura de linhas populares de financiamento, entre outras
ações estatais.352
Daí
352
porque
o
destino
das
classificações
das
normas
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 235-237.
203
constitucionais segundo a eficácia, levando em conta os aspectos
semânticos do texto normativo, tende a ser o do abandono paulatino, já
que não consegue dar conta da realidade do fenômeno sociológico e
jurídico da efetividade. 353
O desafio de efetivação dos direitos sociais apresenta um
instigante paradoxo, também apontado por Virgílio Afonso da Silva:
depende-se em larga medida das decisões alocativas dos recursos
escassos disponíveis ao Poder Público, alocação essa que é feita,
sobretudo, com base em critérios políticos, demando pressão social por
353
Nessa linha, a classificação de Ruy Barbosa, inspirada nos trabalhos do americano
Thomas Cooley (self-executing provisions e not-self-execution provisions, isto é, normas
autoaplicáveis ou autoexecutáveis ou não), de Pontes de Miranda (normas bastantes em si
mesmas ou não), de José Horácio Meirelles Teixeira e de José Afonso da Silva (normas de
eficácia plena ou reduzida), de Ingo Wolfgang Sarlet (normas de alta ou de baixa densidade
normativa). Se todos os direitos dependem de atuações estatais, meios institucionais e
condições fáticas e jurídicas para se realizarem, não se justifica a identificação de normas
de eficácia limitada, porque todas assim o são. O texto constitucional não basta por si só,
depende sua efetivação da atuação do legislador democrático, bem como da atuação cívica
dos vários segmentos da sociedade. Por outro lado, não há normas ou direitos
fundamentais absolutos, no sentido de imunes a restrições, portanto, sem sentido falar-se
em normas de eficácia plena. Por fim, aponta-se o grave risco de, mediante simples
invocação às classificações em testilhas, o julgador elaborar discurso estratégico para fugir
do enfrentamento do cerne da questão que é o de verificar, mediante ponderação, se uma
postulação de medidas protetoras ou fomentadoras traduz-se ou não, diante das
circunstâncias concretas, um direito exigível, isto é, se há ou não omissão ou atuação
pública insuficiente em descompasso com a Constituição. Para aprofundar ver: FERRARI.
Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade,
operatividade e efetividade. MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como
democracia. SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. SILVA NETO,
Manoel Jorge e. O princípio da máxima efetividade e a interpretação constitucional.
CUNHA, Dirley da. Controle judicial das omissões do Poder Público. SOUZA NETO, Cláudio
Pereira de. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. BERCOVICI, Gilberto. A
Constituição Dirigente e a crise da Teoria da Constituição. SILVA, José Afonso da.
Aplicabilidade das normas constitucionais, DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e
seus efeitos. BASTO, Celso Ribeiro; BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade
das normas constitucionais. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas
constitucionais e direitos sociais. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a
efetividade de suas normas; Curso de Direito Constitucional contemporâneo. SILVA, Luís
Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas
constitucionais. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Constitucionalismo Contemporâneo e a
Instrumentalização para a Eficácia dos Direitos Fundamentais. DANTAS, Miguel Calmon.
Constitucionalismo dirigente e pós-modernidade.
204
parte justamente daqueles que, em geral, têm menos meios de fazer
essa pressão.354
De relevo é, assim, a importância da atuação de instituições como
o Ministério Público, a Defensoria Pública e Associações Civis na defesa
judicial e extrajudicial dos interesses dessa população hipossuficiente.
A diferença do grau de efetividade entre os diversos tipos de
direitos fundamentais contemplados na Constituição de 1988, e, mais
especificamente, a atual crise de efetividade do direito à moradia, não
se assenta numa suposta diferença de estrutura normativa, ou no maior
e menor grau de eficácia das normas constitucionais que consagram
esses direitos fundamentais. A explicação correta é outra, e está em
outro plano: no plano sociológico, histórico, do político, e pode ser
sintetizada da seguinte forma:
Enquanto as condições institucionais, legais, materiais, etc. para a
produção de efeitos dos direitos e liberdades individuais e dos direitos
políticos, em geral, já existem, já foram conquistadas/realizadas, as
condições institucionais, legais, materiais, etc. para a produção dos
efeitos dos direitos sociais ainda não existem, ou ainda não atingiram
um patamar minimamente satisfatório.
O problema não é da norma, mas sim dos desafios práticos de sua
efetivação.
Abre-se então o campo das políticas públicas como terreno para
efetivarem-se os direitos humanos fundamentais, inclusive o da
moradia digna.
Portanto, levar a sério a dimensão econômica dos custos da
proteção e promoção do direito à moradia e da vinculação entre
354
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 242.
205
efetividade dos direitos e as políticas públicas é condição sem a qual
não passara de uma enunciação retórica desprovida de sentido prático
a previsão deste direito na Constituição brasileira de 1988, como um
direito humano fundamental, como um direito da personalidade,
essencial à dignidade humana.
E a dimensão econômica dos custos da proteção e promoção dos
direitos fundamentais prestacionais, cotejada com a força normativa da
Constituição, indica que a verificação da exigibilidade de determinado
direito fundamental de cunho prestacional implica averiguar se a
omissão ou atuação estatal insuficiente justifica-se ou não à luz da
própria Constituição de 1988 e da conjuntura que estabelece os limites
e possibilidades da atuação estatal.
Quanto a esse particular aspecto, Clèmerson Merlin Clève ensina
que a omissão inconstitucional não é conceito naturalístico (“não
fazer”), mas normativo (“não fazer algo devido”). Assim, as ordens
constitucionais de legislar e as imposições constitucionais podem ser
descumpridas pelo silêncio transgressor (“um não atuar o devido”), e
também pelo agir insuficiente (“um não atuar completamente
devido”).355
Enfrentar o cerne do problema (ou desafio) da efetivação do
direito à moradia, rumo à sua universalização de fato, implica,
inicialmente, tomar consciência da dimensão econômica dos custos dos
direitos e da relação de dependência de uma proteção ou promoção
eficaz de um direito com as políticas públicas, como o planejamento
estratégico da ação estatal.
E, numa etapa posterior, impõe-se perceber que as políticas
355
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito
brasileiro, p. 327.
206
públicas devem ser planejadas e executadas em conformidade com a
Constituição,
sendo,
por
isso,
passíveis
de
controle
de
constitucionalidade difuso ou concentrado.
Em uma Constituição substancializada como a é a brasileira em
vigência, em que, parafraseando o constitucionalista espanhol Pablo
Lucas Verdú356, a Grundnorma, isto é, a norma fundamental kelseniana,
é a dignidade humana e os direitos que lhe são inerentes, o controle
jurídico das políticas públicas, quer nas instâncias judiciais, quer nas
demais instâncias (Parlamento e Executivo), não pode ficar restrito aos
aspectos formais, relativos à observância das regras de competência e
de procedimento, adentrando a sindicalização em aspectos materiais,
isto é, na compatibilidade do conteúdo dessas políticas aos valores,
ideais e metas contemplados no Pacto Fundamental. Ou seja, as
políticas públicas devem estar em coerência com o programa de
desenvolvimento cujo sentido humanista e de justiça social está
claramente delineado no Texto de 1988.
Portanto, o que está em jogo é saber se há ou não omissão
inconstitucional, um juízo complexo, que deve ser formado em um
procedimento de argumentação racional (ponderação) consistente
quanto ao conteúdo e participativo quanto à forma.
Nesta análise da constitucionalidade de uma política pública,
dentre elas a habitacional, deve-se levar em conta as escolhas
alocativas dos recursos disponíveis, tendo em conta a questão da
escassez, sempre presente ante a multiplicidade de demandas de
atuação do Estado.
De acordo com a Constituição de 05 de outubro de 1988, a
356
VERDÚ, Pablo Lucas. La Constitutión en la encrucijada, p. 66.
207
República do Brasil se organiza como um Estado Fiscal. Esse tipo de
Estado,
segundo
escólio
de
José
Casalta
Nabais,
é
aquele
financeiramente suportado pela arrecadação de impostos de seus
cidadãos.
São os impostos que dão conta de um bom número de tarefas –
funções e serviços públicos - impossíveis de serem custeadas pela
cobrança de taxas, quer por satisfazerem necessidades coletivas,
insusceptíveis de serem individualizadas; quer porque são destinadas às
pessoas que não possuem capacidade contributiva. Vislumbra-se,
assim, que, nesses casos, a arrecadação e a aplicação de impostos pelo
Estado fiscal têm efeitos de redistribuição de riqueza.357
Sendo o Brasil um Estado Fiscal, suportado financeiramente por
tributos, em grande sua maioria impostos e contribuições358, e diante
da vinculação entre efetividade dos direitos e as prestações estatais
pertinentes, tem-se que a busca por uma maior efetividade na proteção
dos direitos demanda uma atenção à política tributária, que há de ser
aprimorada para levar a um maior grau de justiça e eficiência na
357
O autor aborda também outros tipos de Estado, como o Patrimonial, primeira forma
apresentada pelo Estado Moderno, na época do Absolutismo Iluminista, que era suportado
financeiramente pelas receitas do seu patrimônio ou propriedade e pelos rendimentos da
atividade comercial e industrial por ele desenvolvida; e o Estado Socialista, que monopoliza
a atividade econômica, razão pela qual não é sustentado por impostos lançados sobre seus
cidadãos. Anota também que ainda hoje há Estados que, em virtude do grande montante
de receitas que auferem com a exploração de matérias-primas, como petróleo, gás natural,
ouro, ou com a concessão do jogo, como Mônaco ou Macau, podem dispensar a cobrança
de impostos de seus cidadãos (NABAIS, José Casalta. Estudos de Direito Fiscal, p. 41-44).
358
Para demonstrar que o Brasil é efetivamente um Estado Fiscal, Alceu MAURICIO JR.
(Revisão judicial das escolhas orçamentárias, p. 84-85), toma por base o orçamento anual
da União do exercício de 2005, que evidencia que o Poder Público brasileiro é financiado
basicamente por tributos (impostos, taxas e contribuição). A arrecadação tributária
corresponde a aproximadamente 95% do total das receitas. Dentre os tributos, os impostos
e as contribuições são predominantes, pois as taxas (federais, estaduais e municipais) – que
nada mais são do que receitas vinculadas a uma contraprestação estatal específica e
dirigida diretamente ao contribuinte - respondem por menos de 1% da carga tributária
brasileira. Situação essa que não se alterou de 2005 para hoje.
208
arrecadação de tributos.
Além disso, na outra ponta da atividade financeira estatal, exigese um cuidado especial na qualidade dos gastos públicos, evitando-se os
pecados da ineficiência, do desperdício e da corrupção.
O olhar atento sobre as políticas públicas ressalta que o
planejamento da ação estatal e a alocação equilibrada e eficiente dos
recursos disponíveis mostram-se essenciais para a consecução dos
resultados almejados pela Constituição de 1988, inclusive o de tornar o
direito à moradia digna um direito de acesso universal para todos os
brasileiros, ricos ou pobres.
Diante do postulado basilar da ciência econômica de que as
aspirações humanas tende ao infinito, ao contrário dos recursos
disponíveis em determinado tempo e lugar, isto é, diante da escassez
dos recursos, surge para o administrador o desafio de encontrar a
medida mais adequada para alocá-los, o que importa em fazer escolhas.
Escolhas sobre o que será implementado e o que não o será;
sobre o que será atendido e o que não o será; sobre o que será
priorizado e o que ficará em um segundo plano ou para um momento
subsequente.
Gustavo Amaral e Danielle Melo explicam o significado de bem
escasso e os vários tipo de escassez:
"Dizer que um bem é escasso significa que não há o suficiente para
satisfazer a todos. A escassez pode ser, em maior ou menor grau,
natural, quase-natural ou artificial. A escassez natural severa aparece
quando não há nada que alguém possa fazer para aumentar a oferta.
A escassez natural suave ocorre quando não há nada que se possa
fazer para aumentar a oferta a ponto de atender a todos. As reservas
de petróleo são um exemplo, a disponibilização de órgãos de
cadáveres para transplante é outro. A escassez quase-natural ocorre
quando a oferta pode ser aumentada, talvez a ponto de satisfação,
209
apenas por condutas não coativas dos cidadãos. A oferta de crianças
para adoção e de esperma para inseminação artificial são exemplos.
A escassez artificial surge nas hipóteses em que o governo pode, se
assim decidir, tornar o bem acessível a todos, a ponto da satisfação.
A dispensa do serviço militar e a oferta de vagas em jardim de
infância são exemplos".359
Considerando a escassez de recursos, as escolhas alocativas dos
recursos públicos disponíveis, aspecto central das políticas públicas e
que são definidas no processo orçamentário, repercutem no plano da
proteção dos direitos.
Se as escolhas alocativas são determinantes para a maior, menor
ou até mesmo nenhuma efetividade dos direitos, dentre os quais, o
direito à moradia, emerge dessa constatação a imprescindibilidade de a
sociedade participar dos processos em que são tomadas decisões sobre
essas escolhas.
Também há a necessidade da cidadania fiscalizar e atuar para que
essas escolhas estejam em consonância com o Pacto Fundamental de
1988, que estabelece um programa de inclusão e desenvolvimento
humano, contendo, como um dos seus elementos, a universalização do
direito à moradia.
Com efeito, para analisar a influência da chamada “reserva do
possível” na exigibilidade de um direito fundamental e, in casu, na do
direito à moradia, primeiramente, cumpre colocar esse conceito nos
seus devidos termos, evitando interpretações excessivas – e distorcidas
- que sirvam para frustrar a efetividade dos direitos sociais.
359
AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos?, p. 96-97
(negritos não constantes do original).
210
3.3. RESERVA DO POSSÍVEL E EXIGIBILIDADE DO DIREITO À
MORADIA
A doutrina aponta como leading case na experiência jurídica dos
países de tradição romano-germânica, o primeiro caso em que foi
utilizada a expressão “reserva do possível”, o julgamento, pelo Tribunal
Constitucional Alemão, do denominado caso numerus clausus, em 18 de
julho de 1972 (BVerfGE 33,303).
Nesse julgamento, deu-se à expressão o sentido daquilo que um
indivíduo poderia razoavelmente esperar fosse oferecido pelo Estado,
pela comunidade política à qual ele pertence, levando em conta os
investimentos que o Estado estava fazendo na área de educação
superior para anteder a demanda e a capacidade e limites de
financiamentos das políticas públicas. 360
360
A questão posta para julgamento, em suma, era a seguinte: Entre 1952 e 1967, o
número de estudantes nas universidades da Alemanha Ocidental praticamente dobrou,
saltando de 25 mil alunos para 51 mil. Todavia, o Governo não conseguiu acompanhar esse
crescimento no que diz respeito à estruturação das universidades para atender esse
aumento de demanda. Não conseguiu criar novas vagas para dar conta desse novo
contingente de alunos. Para fazê-lo, teria que gastar mais de 7,7 bilhões de marcos em
pleno período de crise (pós-guerra). O resultado foi que, nos anos 60, cada vez mais
instituições recorreram à regra numerus clausus, limitando o número de vagos para o
ensino superior. O impacto social foi significativo, mormente levando em conta de que, por
decisão constitucional, a oferta de ensino superior era monopólio estatal. Nesse contexto
fático é que as Cortes Administrativas solicitaram a manifestação da Corte Constitucional
em dois processos envolvendo a pretensão de cidadãos em acessarem, respectivamente, os
cursos de medicina nas Universidades de Hamburgo e Munique. O objetivo era esclarecer
se as regras das legislações estaduais que restringiam o acesso à universidade ao número
de vagas disponíveis (regra numerus clausus) estaria ou não em compatibilidade com a Lei
Fundamental. O Tribunal Constitucional entendeu que sim, porque verificou,
concretamente, que, apesar do déficit de vagas, o Governo estava, desde o
reconhecimento das dificuldades, realizando intensos esforços para a sua superação. Em
outras palavras, estava fazendo tudo o que estava ao seu alcance a fim de tornar o ensino
superior mais acessível, de modo que, exigir judicialmente mais do Poder Público
importaria em prejudicar, com ofensa ao postulado da razoabilidade, outros programas
sociais ou políticas públicas. Enfim, entendeu a Corte Constitucional alemã que, de acordo
com os valores adotados pela Lei Fundamental, o monopólio do ensino não implicava
exigência constitucional de prestação estatal no sentido de prover vagas de ensino para os
211
Portanto, sindicou o Poder Judiciário no caso numerus clausus o
próprio conteúdo substancial das escolhas alocativas, o aspecto
material das políticas públicas. Assim, percebe-se que, em países que
adotam Constituições com conteúdos substanciais, axiológicos, que
condicionam
as
decisões
democráticas,
como
é
o
caso,
contemporaneamente, por exemplo, da Alemanha, Portugal, Espanha e
Brasil, o controle judicial não se restringe aos aspectos procedimentais
da elaboração das políticas públicas, vez que pode atingir o conteúdo
substancial das escolhas alocativas, para anular e corrigir aquelas que
foram tomadas em dissonância com as normas constitucionais,
principalmente levando em conta os critérios da razoabilidade ou
proporcionalidade na distribuição dos recursos entre as diversas áreas
de atuação do Estado.
A respeito, consigna Daniel Sarmento que:
“numa ordem jurídica centrada na dignidade da pessoa humana não
se pode conceber a realização de despesa pelo Estado como um
campo livre para as decisões do legislador orçamentário e do
administrador. Pelo contrário, há prioridades que a eles se impõe por
força de princípios constitucionais revestidos de elevado teor moral
(...). Assim, me parece que o Poder Judiciário está plenamente
legitimado para fiscalizar o cumprimento destas prioridades pelos
demais poderes estatais.”361
diferentes cursos, com o correlato direito individual de obtenção de uma vaga universitária.
A oferta de vagas universitárias estava sujeita à “reserva do possível”, com o significado
daquilo que um indivíduo pode razoavelmente esperar da sociedade política organizada.
Portanto, a expressão “reserva do possível”, cunhada nesse julgamento, e que se mantêm
na jurisprudência alemã, passado mais de 30 anos do julgamento do caso numerus clausus
significa um parâmetro de razoabilidade quanto à exigência de prestações estatais, levando
em conta o que o Estado efetivamente tem condições de realizar e o que realmente precisa
ser garantido em respeito às normas constitucionais. KRELL, Andreas Joachin. Direitos
sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha, p. 52. SARLET, Ingo Wolgang;
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde,
p. 29. OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à
reserva do possível, p. 215-225. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos
sociais, p. 569.
361
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 578.
212
Assim, quando provocado para julgar um pedido de tutela que
obrigue o Poder Público a fornecer alguma prestação positiva (bem ou
serviço) individual ou coletiva, o Poder Judiciário analisará escolhas
alocativas, expressas nas dotações orçamentárias e nas despesas
efetivamente realizadas pelo Poder Público, as quais podem revelar em
quais casos a efetividade da proteção de um direito restou prejudicada
por escassez ou inexistência dos recursos necessários e em quais outros
a causa foi uma decisão política sobre a destinação dos meios
disponíveis a outros fins.
No caso do prejuízo à realização de um direito ter sido causado
por uma decisão de alocar os meios disponíveis para outros fins, dá-se
ensejo à investigação se essa escolha está ou não em consonância com
a Constituição, adentrando o Judiciário na sindicalização de uma política
pública.
A respeito da “reserva do possível”, José Reinaldo de Lima Lopes,
invoca a expressão Impossibilium nulla obligatio est (Celso, D. 50, 17,
185), incorporada à compilação que Justiniano mandou fazer no século
VI d.C e que foi transmitida à tradição ocidental. Lembra também da
outra versão corrente do mesmo preceito: impossibilia nemo tenetur.
Portanto, não é novidade o atual debate sobre a reserva do possível, a
discussão é antiga, e evidencia que não é sensato esperar de quem quer
que seja o impossível. Se a obrigação é do Estado, a mesma ideia deve
valer. Seja nos contratos administrativos, seja nas obrigações políticas
em geral, não é de se esperar que o Estado, só por ser pessoa jurídica
de direito público, esteja obrigado ao impossível. 362
362
LOPES, José Reinaldo de Lima. Em torno da “reserva do possível”, p. 173.
213
Quanto a esse particular aspecto, Ana Carolina Lopes Olsen
trabalha a diferença entre o não atendimento a uma pretensão de
direito em razão da escassez ou inexistência de meios (escassez natural)
e aquela decorrente de escolhas alocativas (a escassez artificialmente
criada), elucidando as nuances por meio de exemplos.
Assim, ilustra que atender uma pretensão ao fornecimento de
medicamente capaz de curar definitivamente a AIDS é algo impossível
no estágio atual da medicina. A efetividade dessa pretensão resta
prejudicada em razão da inexistência dos recursos adequados para o
seu atendimento. Ou seja, trata-se de um caso em que a inexistência
de meios ou a impossibilidade de atendimento à pretensão subjetiva se
dá no campo dos fatos. Não há como obrigar o Estado a fornecer aquilo
que é faticamente inviável. Aliás, não se pode exigir de alguém aquilo
que é absolutamente impraticável.363
Há também as situações em que o não atendimento a uma
pretensão subjetiva decorre não de inviabilidade fática de realização da
prestação demandada, mas sim em virtude da escassez natural dos
recursos adequados, isto é, por não existir, circunstancialmente,
disponibilidade do meio em determinado tempo e local.
Em outras palavras, nesses casos, o atendimento à pretensão é
frustrado não em decorrência da inexistência absoluta dos meios, mas
da sua indisponibilidade em determinado tempo e lugar.
É o que ocorre, por exemplo, com órgãos humanos para
transplante, que são naturalmente escassos, não podendo o Estado ser
impelido a tirar a vida de um cidadão para disponibilizar o fígado
necessário ao transplante em outro. Assim, poderá ocorrer de não
363
OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva
do possível, p. 188 e 204.
214
existir no momento adequado disponibilidade de órgãos para se
concretizar o transplante.364
Consoante afirmam Gustavo Amaral e Danielle Melo, tratando-se
de escassez natural, não há nada que se possa fazer para aumentar a
oferta a ponto de atender a todos.365
É fundamental enfatizar que, a rigor, somente nesses dois
sentidos é que se pode falar, propriamente, em “reserva do possível”,
ou seja, estará justificada a omissão (a não-atuação) do Estado porque
demonstrada ou a impossibilidade fática por inexistência absoluta do
recurso/bem
apto
à
suprir
a
pretensão/necessidade
(1)
ou
impossibilidade de agir em razão do recurso/bem adequado à suprir a
pretensão/necessidade não estar disponível/acessível no momento em
que é necessário.
Portanto, a rigor, não se subsume na “reserva do possível”
aquelas situações em que a escassez é artificial, ocasionada não em
razão da natureza das coisas, mas sim de uma escolha alocativa, de uma
decisão sobre a destinação que será dada aos recursos disponíveis.
A escassez artificial surge quando uma decisão política pode
tornar o bem acessível a todos, a ponto da satisfação.
Quanto a este particular aspecto, lembra Flávio Galdino que, no
caso de recursos financeiros, o que usualmente frustra a efetividade de
determinado direito não é a exaustão da capacidade orçamentária, mas
sim a opção política de não se gastar dinheiro com aquele direito.366
Nos casos em que a escassez é artificial, porque decorrente de
364
OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva
do possível, p. 205.
365
AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos?, p. 96-97.
366
GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: Direitos não nascem em
árvores, p. 235.
215
uma decisão política, abre-se campo para a correção, inclusive pela via
judicial, de escolha alocativa de recursos públicos que não esteja em
consonância com os ditames constitucionais, tendo em vista que estes
são normativamente vinculantes.
A respeito, José Reinaldo de Lima Lopes explicita:
“Há sim limites orçamentários que se pode alegar, mas como
orçamentos não são coisas da natureza mas frutos de decisões
políticas, é bem possível que eles também estejam sujeitos a regras
de elaboração e que, portanto, possam ser jurídica e judicialmente
impugnados”.367
Um exemplo bastante claro desse tipo de situação em que a
realização de um direito é frustrada por escolhas alocativas geradoras
de escassez artificial é trazido no escólio de Daniel Sarmento: a
injustificável não extensão do saneamento básico para uma
comunidade carente, que impacta direta e positivamente as
condicionantes da adequabilidade da moradia, quando o Poder Público
estiver gastando maciçamente com publicidade ou obra faraônica.368
Outro exemplo é o usado por Lenio Streck, referente a um caso
concreto julgado pelo Juízo de Direito da Comarca de Joinville, Santa
Catarina, em que o Município deixou de criar vagas necessárias no
ensino fundamental por ter optado por destinar verbas para
subvencionar o clube de futebol local que disputava a terceira divisão
do campeonato brasileiro, em montante suficiente para custear a
criação de 2.948 vagas escolares.369
Recentemente, a imprensa divulgou que, em 25 de novembro de
2010, o Juiz José Eduardo Vilar Filho, julgando ação civil pública
367
LOPES, José Reinaldo de Lima. Em torno da “reserva do possível”, p. 179.
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 579.
369
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, p. 103-104.
368
216
proposta pelo Ministério Público Federal, proibiu a União Federal, o
Estado do Ceará e o Município de Fortaleza em realizar gastos para
promover festas e fazer propagandas institucionais antes de
solucionarem o problema da fila de espera para cirurgias eletivas
ortopédicas de alta complexidade em dois hospitais da capital cearense.
Para redução gradual da fila de espera, de mais de 2.400 pessoas, que
podem aguardar mais de quatro anos para serem atendidas, a Justiça
fixou metas a serem atendidas no prazo de 3 a 36 meses para que
atendimento da decisão ocorra de maneira gradual.370
Esse é mais um exemplo claro de escassez artificial, ocasionada
por escolha alocativa, que impactou negativamente a realização de
outro direito, mais relevante segundo a pauta axiológica constitucional.
Os exemplos acima que mostram com nitidez casos de decisões
alocativas dissonantes das preferências estabelecidas na Constituição
de 1988 com força juridicamente vinculante, notadamente ao se
considerar que no Pacto Fundamental foram estabelecidas as
finalidades básicas da República: construir uma sociedade livre, justa e
solidária (artigo 3º, I); garantir o desenvolvimento nacional (artigo 3º,
II); erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades
sociais e regionais (artigo 3º, III).
Diante destas metas, às quais o Poder Público está condicionado,
maior aporte de recursos públicos deverá ser realizado no atendimento
das demandas de saúde, educação, saneamento ambiental, moradia.
Somente depois de atendidos razoavelmente as necessidades
fundamentais da sociedade é que se tem lugar para a realização de
gastos (módicos) com o incentivo a clubes esportivos, com lazer e com
370
Folha de São Paulo. Sexta-feira, 26 de novembro de 2010. Cotidiano – C7.
217
o embelezamento da cidade.
As situações patológicas acima retratadas, hiperbólicas mesmo, e
por isso selecionadas, dada a sua força didática, constituem escolhas
alocativas que seguem em direção contrária ao sentido mostrado pela
Constituição. Por isso, merecem correição jurisdicional.
Evidenciam igualmente os exemplos supra também que nem
sempre o Poder Público estará diante de “escolhas trágicas”, isso é,
naquelas que, frente a escassez de recursos, se vê forçado a eleger
prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas, prejudicando
uma delas.371
Muitas vezes, o caso é de uma má escolha, de uma opção por
atender uma demanda ilegítima ou menos valiosa do ponto de vista
constitucional.
Não se nega que a ideia de escassez traga consigo a noção de
trade-off372, isto é, que a alocação de recursos escassos envolve
371
Há casos, porém, em que estar-se-á frente a “escolhas trágicas”. Atender determinada
pessoa com o órgão para transplante é também decidir não atender os demais que
poderiam ser beneficiados. Expõe Daniel Sarmento que: “A escassez obriga o Estado em
muitos casos a confrontar-se com verdadeiras “escolhas trágicas”, pois, diante da limitação
de recursos, vê-se forçado a eleger prioridades dentre várias demandas igualmente
legítimas. Melhorar a merenda escolar ou ampliar o número de leitos na rede pública?
Estender o saneamento básico para a comunidade carente ou adquirir medicamentos de
última geração para o tratamento de algumas doenças raras? Aumentar o valor do salário
mínimo ou expandir o programa de habitação popular? Infelizmente, no mundo real nem
sempre é possível ter tudo ao mesmo tempo”. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos
direitos sociais, p. 555-556. Concorda-se com o referido autor, no sentido de que, em
quadro de escassez, não há como realizar imediatamente todos os direitos que impliquem
prestações estatais, e que são necessárias escolhas, priorizações. Observa-se, porém, que
tais escolhas não se dão de maneira bipolar – ou isso ou aquilo – escolha apenas entre duas
alternativas de cada vez - como uma interpretação literal do trecho acima pode indicar,
mas sim de maneira global, buscando equilibrar ou harmonizar no orçamento público todos
os setores da atuação estatal, porém priorizando-se sempre o custeio da proteção e da
promoção dos direitos humanos fundamentais.
372
Tradução livre: escolha inexorável entre duas coisas que se quer ou se necessita, mas
que são incompatíveis entre si, porque não podem se realizar simultaneamente.
218
simultaneamente a escolha do que atender e do que não atender373.
Toda escolha alocativa implica uma escolha desalocativa. Isso é certo.
Todavia, em alguns casos é fácil perceber que não se está diante de
uma escolha trágica e sim frente a uma má-escolha, uma decisão
alocativa juridicamente inválida porque seu conteúdo destoa da
Constituição.
Nessas hipóteses dá-se ensejo ao remanejamento dos recursos
públicos à luz das diretrizes e prioridades constitucionais, o que pode
ser obtido inclusive por via judicial.
Desmistifica-se, assim, o orçamento, muitas vezes visto como um
dogma, um preceito absoluto.
Como é colocado por Osvaldo Canela Júnior:
“O orçamento, assim como qualquer ato estatal, deve estar
estritamente vinculado aos objetivos inscritos no art. 3º da
Constituição Federal. Tal afirmação é consentânea com o
pressuposto inarredável de que os fins do Estado somente
poderão ser efetivamente atingidos por meio da utilização dos
dinheiros públicos.
(...) - Do ponto de vista do Estado social, o orçamento não
pode ser óbice à concessão dos direitos fundamentais sociais,
mas seu instrumento de realização. A ausência de recursos
não é indicativo de que o direito fundamental social não
poderá ser concedido, mas fator que determinará a
redistribuição dos recursos existente e a promoção das
decisões políticas que elegerão os financiadores deste gasto
público. (...). Constatada eventual incapacidade financeira
373
AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos?, p. 101. Quanto
a este particular aspecto, Egon Bockmann Moreira (Escolhas Trágicas) expõe de maneira
elucidativa que: “não há direitos gratuitos: todos custam dinheiro – desde a propriedade e
segurança privada (basta a lembrança dos alarmes e vidros escuros nos carros, além das
despesas públicas com policiamento), até o direito à saúde e à educação públicas. Alguns
custam mais, outros menos, mas todos exigem a disponibilidade atual de receita. E o
dispêndio para fazer frente aos custos de determinado direito proíbe que a mesma verba
faço o atendimento de outros direitos. Por exemplo, a verba gasta neste medicamente
pode impossibilitar que outro seja comprado; a compra de ônibus escolares pode impedir a
construção de escola”.
219
atual para a satisfação da decisão judicial, a solução não será
o julgamento de improcedência do pedido ou mesmo a
extinção do processo por ausência de condições de ação (falta
de interesse de agir ou impossibilidade jurídica do pedido).
Comprovada a lesão a direito fundamental social, impositivo
que os efeitos da sentença transitada em julgado se projetem
para fora do processo, vinculando o orçamento, a fim de que
os poderes Executivo e Legislativo atuem nas finanças
públicas, programando o custeio dos gastos gerados no
tempo.”.374
Em se tratando de dinheiro, portanto, a questão da reserva do
possível mostra-se como relativa, e, portanto, não é obstáculo para que
se sindicalize, à luz dos preceitos da proporcionalidade e da
razoabilidade (vale dizer, sem excessos, exageros e subjetivismo), a
adequação da programação financeira do Estado ao programa e às
diretrizes da Constituição de 1988.
Nessa abordagem, deve ser lembrado que a Constituição impõe
tarefas ao Poder Público para promover e proteger, mediante políticas
públicas sérias, consistentes e eficientes, os direitos humanos
fundamentais. Há, portanto, um projeto de desenvolvimento, de
construção de uma ordem econômica e social mais justa, isto é, com
menos desigualdades, exclusões e pobreza.
Tais aspectos limitam a discricionariedade.
Angela Cassia Costaldello observa que o Administrador Público
frequentemente parece não ter claros os limites do exercício da
discricionariedade, ao tratar da escassez de recursos para adotar
políticas públicas condizentes com a construção da cidade e o exercício
do direito à cidade, do qual o direito à moradia é elemento componente
dos mais importantes. Não lembra que, a rigor, quando elabora o
374
CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas, p. 107-109.
220
orçamento e, na sequência, ao executá-lo, sua “margem de liberdade” é
ínfima ante a realidade que se sobrepõe pelas exigências de eliminação
de uma exclusão social perversa.375
Com efeito, o argumento da reserva do possível, quer no sentido
de escassez fática de recursos, quer no sentido de ausência de
programação orçamentária, não é obstáculo à proteção jurídica direito
à moradia em sua dimensão prestacional.
A escassez de recursos e a programação orçamentária devem ser
levadas em conta, porém, ponderadas com outros argumentos para
verificar, ao final, se há um direito definitivo à medida protetora
postulada.
Quando tratar-se de pedido de adjudicação individual de
prestação estatal relacionada ao direito à moradia, a ausência de
dotação orçamentária pode ser superada, desde que, após a devida
ponderação, perceba-se que não justificativa constitucional para o não
atendimento de um direito prestacional prima facie garantido.
Preenchido o suporte fático, verificado que há omissão
inconstitucional (ou atuação insuficiente), faz-se incidir a sanção
jurídica, para que se cumpra com o dever de agir, com a obrigação de
prestar a medida apta a promover ou promover o direito fundamental.
E quando o que estiver em jogo for a proteção do mínimo
existencial, a ausência de dotação orçamentária é o menor dos
obstáculos. É o que será demonstrado no próximo item.
375
COSTALDELLO, Angela Cassia. A supremacia do interesse público e a cidade, p. 248.
221
3.4. EXIGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL DO DIREITO À
MORADIA
No âmbito do direito à moradia, situação bastante evidente de
tutela jurisdicional que pode ser concedida independentemente de
existir prévia dotação orçamentária para a prestação pelo Poder Público
de bens e/ou serviços é a que ocorre nos casos em que está em questão
a proteção ao denominado mínimo existencial.
Prestações estatais para assegurar o direito à moradia com lastro
no mínimo existencial podem ser evidenciadas em situações em que
determinada pessoa, por força de
desemprego, doença, invalidez,
velhice, desastres naturais ou outros casos de perda dos meios de
subsistência, em circunstâncias fora de seu controle, fica ou corre o
eminente risco de ficar desalojada.
De acordo com Ricardo Lobo Torres, o direito ao mínimo
existencial corresponde ao direito “às condições mínimas de existência
humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que
ainda exige prestações estatais positivas”. 376
A Sentença C-776, de 2003, da Corte Constitucional da
Colômbia,377 traz uma excelente definição do mínimo existencial:
“El objeto del derecho fundamental al mínimo vital abarca todas las
medidas positivas o negativas constitucionalmente ordenadas con el
fin de evitar que la persona se vea reducida en su valor intrínseco
como ser humano debido a que no cuenta con las condiciones
materiales que le permitan llevar una existencia digna. Este derecho
fundamental busca garantizar que la persona, centro del
ordenamiento jurídico, no se convierta en instrumento de otros fines,
376
TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 8.
Essa decisão invalidou parcialmente uma lei tributária que instituía imposto sobre o
valor agregado sobre uma séria de produtos, sem excepcionar bens e serviços de primeira
necessidade. Disponível em http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2003/C-77603.htm . Acesso em 08.01.2011 às 14h03.
377
222
objetivos, propósitos, bienes o intereses, por importantes o valiosos
que ellos sean. Tal derecho protege a la persona, en consecuencia,
contra toda forma de degradación que comprometa no sólo su
subsistencia física sino por sobre todo su valor intrínseco. (...) el
derecho fundamental al mínimo vital presenta una dimensión
positiva y una negativa. La dimensión positiva de este derecho
fundamental presupone que el Estado, y ocasionalmente los
particulares (...) están obligados a suministrar a la persona que se
encuentra en una situación en la cual ella misma no se puede
desempeñar autónomamente y que compromete las condiciones
materiales de su existencia, las prestaciones necesarias e
indispensables para sobrevivir dignamente y evitar su degradación o
aniquilamiento como ser humano. Por su parte, respecto de la
dimensión negativa, el derecho fundamental al mínimo vital se
constituye en un límite o cota inferior que no puede ser traspasado
por el Estado, en materia de disposición de los recursos materiales
que la persona necesita para llevar” una existencia digna.”378
Nas palavras de Daniel Sarmento:
“O direito mínimo existencial corresponde à garantia das condições
materiais básicas de vida. Ele ostenta tanto uma dimensão negativa
como uma positiva. Na sua dimensão negativa, opera como um
limite, impedindo a prática de atos pelo Estado ou por particulares
que subtraiam do indivíduo as referidas condições materiais
indispensáveis para uma vida digna. Já na sua dimensão positiva, ele
envolve um conjunto essencial de direitos prestacionais”.379
378
Tradução livre: O objeto do direito fundamental ao mínimo existencial abarca todas as
medidas positivas ou negativas constitucionalmente ordenadas com o fim de evitar que a
pessoa se veja reduzida em seu valor intrínseco como ser humano devido a não contar com
as condições materiais que a permitam levar uma existência digna. Este direito
fundamental busca garantir que a pessoa, centro do ordenamento jurídico, não se converta
em instrumento de outros fins, objetivos, propósitos, bens ou interesses, por mais
importantes ou valiosos que estes sejam. Tal direito protege a pessoa contra toda forma de
degradação que comprometa não só a sua existência física senão todo o seu valor
intrínseco. (...) o direito fundamental ao mínimo existencial apresenta uma dimensão
positiva e uma negativa. A dimensão positiva deste direito pressupõe que o Estado, e
ocasionalmente os particulares (...) estão obrigados a fornecer à pessoa que se encontra
em uma situação na qual ela mesma não pode agir autonomamente e que comprometa as
condições materiais de sua existência, as prestações necessárias e indispensáveis para ela
sobreviver dignamente e evitar sua degradação ou aniquilamento como ser humano. Na
sua dimensão negativa, o direito fundamental ao mínimo existencial se constitui em um
limite ou cota mínima que não pode ser ultrapassada pelo Estado em matéria de disposição
dos recursos materiais que a pessoa necessita para levar uma existência digna.
379
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 576.
223
Por seu turno, Paulo Gilberto Cogo Leivas380 traz como a definição
mais completa aquela formulada por Corinna Treisch381: O mínimo
existencial é a parte do consumo corrente de cada ser humano, seja
criança ou adulto, que é necessário para a conservação de uma vida
humana digna, o que compreende a necessidade de vida física, como a
alimentação, vestuário, moradia, assistência de saúde, etc. (mínimo
existencial físico) e a necessidade espiritual-cultural, como educação,
sociabilidade, etc. Compreende a definição do mínimo existencial tanto
a necessidade física como também cultural-espiritual, então se fala de
um mínimo existencial cultural.
Destaca Ricardo Lobo Torres que o problema do mínimo
existencial se confunde com a questão da pobreza no decorrer da
história. No Estado Patrimonial os pobres não eram imunes aos
tributos, resultando daí uma estrutura impositiva essencialmente
injusta, que prejudicava a liberdade e a dignidade do homem. Incumbia
a Igreja, com uma parcela dos dízimos, e aos cristãos ricos dar
assistência social aos pobres. 382
No Estado de Polícia, alteram-se as concepções, procurando-se
aliviar a tributação dos pobres e transferir para o Estado a sua proteção.
Inicia-se a defesa da progressividade da tributação e da imunidade do
mínimo existencial, retirando-se do campo da incidência tributária
aquelas pessoas que não possuem riquezas mínimas para o seu
sustento, e, no âmbito da proteção, faz-se a distinção entre as causas
da pobreza: preguiça ou outra causa. Distinção essa que vai ter uma
380
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais e o
direito ao mínimo existencial, p. 301.
381
TREISCH, Corinna. Existenzminimum und Einkommesbesteureung. Aache: Shaker,
1999, p. 1.
382
TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7.
224
importância decisiva na política assistencialista do liberalismo. 383
No Estado Social Fiscal, correspondente à fase do Estado do BemEstar Social ou do Estado-Providência, a proteção ao mínimo existencial
se faz com lastro na concepção de justiça social. 384
Atualmente, no Estado Democrático de Direito, aprofunda-se a
meditação sobre o mínimo existencial sob a ótica dos direitos humanos
e do constitucionalismo.385
Na visão de Daniel Sarmento, o direito ao mínimo existencial
decorre da ideia de que é papel do Estado assegurar as condições
materiais mínimas de vida para as pessoas mais necessitadas.
Para alguns, como o filósofo John Rawls386, o economista
Armartya Sen387, e os juristas Robert Alexy388 e Ricardo Lobo Torres389,
adeptos do liberalismo igualitário, o fundamento da proteção estatal ao
mínimo existencial é instrumental. Trata-se de uma exigência necessária
para a garantia da liberdade real. Isso porque, sem o atendimento de
certas condições básicas, restaria esvaziada a liberdade, pela
impossibilidade concreta do seu exercício.
Para outros, como o filósofo Jürgen Habermas390 e o jurista
Friedrich Müller391, o mínimo existencial é protegido em razão de um
383
Por exemplo, na Inglaterra, o Poor Law Ammendment Act (1834) se esforçou no sentido
de distinguir entre indigência e pobreza com o fito de limitar a obrigatoriedade do auxílio
estatal aos indigentes, assim entendido aqueles que eram incapazes de obter meios para a
sobrevivência, ao contrário dos pobres que poderiam conseguir recursos pelo trabalho.
TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7.
384
TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7.
385
TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7.
386
RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. RAWLS, John. Justiça e democracia.
387
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade.
388
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
389
TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial.
390
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia,
391
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social
ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Destaca Müller que, quando o povo
225
argumento democrático. Ocorre como meio de garantia a pressupostos
da democracia, na medida em que, sem a satisfação das necessidades
materiais básicas das pessoas carentes restaria comprometida a
capacidade real de elas participarem, como cidadãos, das deliberações
adotadas pela sociedade no espaço democrático.
Outros ainda, como os doutrinadores brasileiro Paulo Giberto
Cogo Leivas392 e Daniel Sarmento393, fundamentam a proteção estatal
ao mínimo existencial com lastro em um argumento não-instrumental,
mas ético. Defendem o atendimento das necessidades humanas básicas
como uma exigência autônoma de justiça, como um fim em si mesmo, e
não um meio para obtenção de qualquer outra finalidade.
Como explicita Daniel Sarmento: Reconhecer que a proteção ao
direito ao mínimo existencial é um fim em si mesmo, uma exigência
autônoma de justiça, não implica negar que ela também influi
positivamente no exercício da cidadania política e no gozo das
liberdades individuais. É que há situações, como a de um indivíduo que
padeça de deficiência mental severa e incurável e que esteja em
situação de absoluta penúria material, em que há o dever estatal de
proteção ao mínimo existencial, bem como o direito subjetivo a essa
proteção, mesmo sabendo-se que as prestações e os gastos públicos
realizados não possibilitaram à pessoa atendida o exercício da liberdade
individual ou do direito à participação política, mas apenas lhe
padece de exclusão, além da pobreza econômica sofre, em reação de cadeia da exclusão, a
pobreza política. O povo então, se degenera e se converte em mero ícone, e daí as
referências a vontade do povo, à constituição, ao poder constituinte, acaba cumprindo
função apenas ideológica de neutralizar as reivindicações de integração efetiva dos grupos
marginalizados, e superação das contradições que caracterizam as sociedades arcadas por
profundas desigualdades materiais.
392
LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais e o
direito fundamental ao mínimo existencial.
393
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais.
226
assegurará um mínimo de dignidade.394
No Brasil contemporâneo, a positivação constitucional do direito
ao mínimo existencial decorre, dentre outros dispositivos, da proteção
da vida e da liberdade (preâmbulo, artigo 3º, I, artigo 5º caput, II, etc.),
do objetivo fundamental da República de “erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (artigo 3º,
III), da explicitação dos direitos sociais (artigo 6º), e das emendas n.
14/1996, 29/2000, 31/2000, 41/2003, 42/2003, 45/2003 e 53/2007 que
estabeleceram vinculação de receitas públicas à realização de despesas
com educação, saúde e pobreza (assistência social), além de
declarações e tratados internacionais de direitos humanos dos quais o
Brasil é parte, incorporados à Constituição brasileira por força do artigo
5º, § 2º.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas (1948) estabelece em seu artigo XXV, que
“Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar
a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a
alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os
serviços sociais necessários, e o direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de
perda dos meios de subsistência, em circunstâncias fora de seu
controle”.
O Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais da Organização das Nações Unidas (1966),395 prevê em seu
artigo 2º que:
“ Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar
medidas, tanto por espaço próprio como pela assistência e
394
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 574-576.
Aprovado no Brasil pelo Decreto legislativo 226, de 12.12.1991 e promulgado pelo
Decreto 591, de 06.07.1992.
395
227
cooperação internacionais, principalmente nos planos econômicos e
técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a
assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o
pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto,
incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”.
E, em seu artigo 11, item 1, que:
“Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda
pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua
família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas,
assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os
Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a
consecução desse direito, reconhecendo, neste sentido, a
importância essencial da cooperação internacional fundada no livre
consentimento”.
Na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San
José da Costa Rica) (1960)396, artigo 26, está explicado que:
“Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto
no âmbito interno, como mediante cooperação internacional,
especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir
progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das
normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura,
constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos,
reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos
disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”.
E o artigo 34 a Carta da Organização dos Estados Americanos397
proclama que:
"Os Estados membros convém em que a igualdade de oportunidades,
a eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza
e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas
decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros,
objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los
convém da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à
consecução das seguintes metas básicas:
396
Aprovado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgado pelo
Decreto 678, de 06.11.1992.
397
Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 63, de 07 de dezembro de 1949.
228
(...)
j) Alimentação adequada, especialmente por meio da aceleração dos
esforços nacionais no sentido de aumentar a produção e a
disponibilidade de alimentos;
k) habitação adequada para todos os setores da população;
l) Condições urbanas que proporcionem oportunidade de vida sadia,
digna e produtiva (...)".
Convém salientar que as condições mínimas de existência digna
integra o núcleo essencial dos direitos da liberdade. A respeito, Eduardo
Cambi398 consigna:
“A liberdade jurídica se converte em liberdade real, quando as
pessoas conseguem desfrutar dos bens sociais materiais básicos para
viverem dignamente. Neste sentido, a liberdade não é apenas a
ausência de interferência ou de coação externa, mas principalmente
a ausência de dependência, que permite que a pessoa seja capaz de
se autogovernar, criando as condições mínimas para o seu
desenvolvimento pessoal e social. Sem isto, a pessoa não tem
condições de viver dignamente ou de ser considerada um cidadão
livre”.
A miséria é uma das principais causas da supressão das
liberdades básicas. Em casos mais graves, pode-se estar em jogo a
própria vida. Neste prisma, estando ligado aos direitos à vida, à
integridade física e psicológica e à liberdade, o mínimo existencial
constitui
direito
público
subjetivo
para
o
cidadão,
gerando
obrigatoriedade de prestação por parte do Estado, de modo a assegurar
as condições mínimas de existência humana digna.
O direito ao mínimo existencial é dotado de jusfundamentalidade
em sua dupla dimensão: a de proteção negativa, contra a incidência de
tributos ou qualquer outra imposição do Estado (inclusive atos
jurisdicionais expropriatórios da propriedade mínima com vistas à
398
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, p. 388.
229
satisfação de direito de crédito de outrem) e a de proteção positiva,
consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor
dos pobres no sentido de assegurar-lhes as condições mínimas para
uma vida digna. É plenamente garantido, inclusive pela jurisdição,
independentemente de prévia reserva orçamentária, por ter como
fundamento a proteção à vida, à liberdade, à cidadania e à dignidade da
pessoa humana. Daí se falar que o mínimo existencial é o núcleo duro
dos direitos fundamentais, a sua parte irrestringível, tendo, portanto, a
natureza jurídica de regra, e não apenas de princípio.
Exemplo de relevo recolhido da experiência jurisdicional
estrangeira é o da decisão da Corte Constitucional África do Sul,
proferida em 04 de outubro de 2000, no caso Grootboom399. Entendeuse que programa governamental de habitação não poderia ser
considerado válido, de acordo com a Constituição, por não incluir
medidas emergenciais para atender pessoas desabrigadas em situação
de carência desesperadora (desesperade need). Então, a Justiça
determinou que parcela razoável do orçamento para moradia fosse
alocada para atender aquela situação emergencial. Ou seja, determinou
que a política pública fosse reformulada, nomeando um órgão
independente, no caso, a Comissão de Direitos Humanos, para fiscalizar
o cumprimento da decisão.
De acordo com Ana Paula de Barcellos, o mínimo existencial
corresponde a um conteúdo básico do princípio da dignidade humana
399
Disponível em http://www.constitutionalcourt.org.za/Archimages/2798.PDF. Acesso em
10.01.2011 às 10h48. Este caso vem merecendo atenção da doutrina brasileira, a exemplo
de: MAURICIO JR., Alceu. A revisão judicial das escolhas orçamentárias: p. 253-258.
SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 582-583. BINENBOJM,
Gustavo; CYRINO, André Rodrigues. O direito à moradia e a penhorabilidade do bem único
do fiador em contratos de locação: Limites à revisão judicial e prognósticos legislativos, p.
1011-1013.
230
que assume o caráter de regra, não mais de princípio. Para além desse
núcleo, a norma mantém a sua natureza de princípio devendo das
opções feitas pelo Legislativo e Executivo, em cada momento histórico,
porém em consonância com as pautas constitucionais.
Vale dizer, somente as prestações que compõem o mínimo
existencial é que poderão ser exigidas judicialmente de forma direta,
sendo que as prestações restantes são reconhecidas tão somente se
previstas pelo legislador infraconstitucional ou a título de vedação do
retrocesso.
Defende Ana Paula de Barcellos essa posição ao argumento de
que é necessário manter um espaço próprio para a política e para as
deliberações majoritárias. 400
Sendo o direito ao mínimo existencial, já de início, um direito
definitivo, porque assegurado por norma constitucional que tem a
estrutura de regra, no caso de exaustão das dotações orçamentárias,
para viabilizar a prestação material necessária, o Poder Executivo tem
legítimo motivo para prontamente utilizar recursos previstos no
orçamento-programa para outras finalidades. Posteriormente, realizase a formalização da retificação do orçamento, mediante emenda na Lei
Orçamentária Anual, enviando-se projeto de lei ao Poder Legislativo
para abertura do crédito adicional extraordinário.
Assim, a inexistência ou exaustão das dotações orçamentárias
não é empecilho à proteção do mínimo existencial.
James Giacomoni põe relevo na circunstância de o orçamento
público poder ser retificado visando atender a situações não previstas
quando de sua elaboração ou mesmo viabilizar a execução de novas
400
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio
da dignidade humana, p. 248 e 305-306.
231
despesas que só se configuraram como necessárias durante a própria
execução orçamentária. Isso se dá por meio da abertura de créditos
adicionais, regulamentados pelos artigos 40 a 46 da Lei 4.320/64.
Há três modalidades de créditos adicionais: os suplementares, os
especiais e os extraordinários.
O crédito adicional suplementar destina-se a reforçar dotações
orçamentárias quando o orçamento contém o crédito adequado, mas a
dotação respectiva apresenta saldo insuficiente para o atendimento da
despesa necessária e imprevista.
O crédito adicional especial é destinado ao atendimento de
despesas para as quais a lei orçamentária não conta com crédito
específico.
Por fim, o crédito extraordinário que tem por finalidade atender a
despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra,
comoção interna ou calamidade pública.401.
É a partir dessa visão mais ampla dos créditos orçamentários que
deve ser interpretadas as disposições do artigo 167, II, da Constituição,
que enuncia ser vedada “a realização de despesa ou assunção de
obrigações diretas que excedam os créditos adicionais” e do inciso V do
mesmo artigo, que reza também a vedação da “abertura de crédito
suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem
indicação dos recursos correspondente”.
A interpretação sistemática revela que o que depende de prévia
autorização legislativa é a abertura de créditos suplementares e
especiais, não a abertura de créditos extraordinários, motivados por
situações de urgência.
401
GIACOMONI, James. Orçamento público, p. 309-310.
232
A abertura de créditos suplementares e especiais depende de
prévia autorização legislativa. É isso que diz os mencionados
dispositivos da Constituição, e também os artigos 42 e 43 da Lei
4.320/64, recepcionada pela ordem vigente com força de lei
complementar:
“Art. 42. Os créditos suplementares e especiais serão autorizados por
lei e abertos por decreto executivo”.
Art. 43. A abertura dos créditos suplementares e especiais depende
da existência de recursos disponíveis para ocorrer à despesa e será
precedida de exposição justificativa.
§ 1º. Consideram-se recursos para o fim deste artigo, desde que não
comprometidos:
I – o superavit financeiro apurado em balanço patrimonial do
exercício anterior;
II – os provenientes de excesso de arrecadação;
III – os resultantes de anulação parcial ou total de dotações
orçamentárias ou de créditos adicionais, autorizados em lei;
IV – o produto de operações de crédito autorizadas, em forma que
juridicamente possibilite ao Poder Executivo realizá-las.
§ 2º. Entende-se por superavit financeiro a diferença positiva entre o
ativo financeiro e o passivo financeiro, conjugando-se, ainda, os
saldos dos créditos adicionais transferidos e as operações de crédito
a eles vinculadas.
§ 3º. Entende-se por excesso de arrecadação, para os fins deste
artigo, o saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês, entre a
arrecadação prevista e a realizada, considerando-se, ainda, a
tendência do exercício.
§ 4º. Para o fim de apurar os recursos utilizáveis, provenientes de
excesso de arrecadação, deduzir-se-á a importância dos créditos
extraordinários abertos no exercício.”
Em suma, essas são as principais regras de disciplinamento dos
créditos adicionais suplementares e especiais.
Diferente é o regime jurídico a que estão sujeitos os créditos
adicionais extraordinários.
233
Em razão da imprevisibilidade e da urgência de atendimento à
situação que gerou a necessidade da despesa pública, não há exigência
de prévia autorização legislativa, nem mesmo da existência de recursos
em caixa, para a abertura do crédito orçamentário extraordinário.
A abertura diretamente pelo Executivo de créditos orçamentários
extraordinários não ofende os incisos I e V do artigo 167 da Constituição
porque estes dispositivos dizem respeito apenas aos créditos
suplementares e especiais, não aos extraordinários.
O que a lei exige, nos casos de abertura de créditos
extraordinários, é apenas que o Poder Executivo dê imediato
conhecimento ao Poder Legislativo (artigo 43 da Lei 4.320/64)402.
Na esfera de atuação da União Federal, inclusive o regramento
constitucional (§ 3º do artigo 167)403 prevê União, o uso de medida
provisória (artigo 62)404 para viabilizar a prontidão no atendimento da
situação pelo Poder Executivo e ensejar o controle a posteriori do Poder
Legislativo.
Para garantir certa flexibilidade na execução orçamentária, a lei
orçamentária anual, inclusive, pode autorizar de antemão o Poder
Executivo, com lastro no § 8º do artigo 165 da Constituição405, e no
402
BRASIL, Lei 4.320/64. Art. 44. Os créditos extraordinários serão abertos por decreto do
Poder Executivo, que deles dará imediato conhecimento ao Poder Legislativo.
403
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 167. (...) § 3º. A abertura de crédito extraordinário
somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as
decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no
art. 62.
404
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da
República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de
imediato ao Congresso Nacional.
405
BRASIL, Constituição de 1988. Art. 165. A lei orçamentária anual não conterá dispositivo
estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a
autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de
crédito ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei.
234
artigo 7º da Lei 4.320/64406, a abrir créditos suplementares até
determinada importância.
Portanto, eventual inexistência ou exaurimento de crédito ou de
dotação orçamentária não é obstáculo para as despesas necessárias
para o Poder Público dar atendimento a uma situação fática em que
está em risco o direito ao mínimo existencial. O orçamento público será
retificado por meio da abertura de crédito adicional extraordinário.
Portanto, estando em jogo o mínimo existencial, caso haja
omissão de atendimento pelo Poder Executivo, o prejudicado poderá
obter a prestação material necessária para asseguramento do seu
direito postulando tutela ao Poder Judiciário. Releva acentuar, que
nestes casos, o exaurimento ou inexistência de crédito/dotação
orçamentária para a despesa pública necessária é aspecto irrelevante,
que não integra o thema probandum et decidendum.407
Nem mesmo os limites de despesas impostos pela chamada Lei
de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar n. 101/2000, é
406
BRASIL, Lei 4.320/64. Art. 7º. A Lei de Orçamento poderá conter autorização ao
Executivo para: I – abrir créditos suplementares até determinada importância, obedecidas
as disposições do art. 43; II – realizar, em qualquer mês do exercício financeiro, operações
de crédito por antecipação da receita, para atender a insuficiência de caixa. § 1º. Em caso
de deficit, a Lei de Orçamento indicará as fontes de recurso que o Poder Executivo fica
autorizado a utilizar para atender a sua cobertura. § 2º. O produto estimado de operações
de crédito e de alienação de bens imóveis somente se incluirá na receita quando umas e
outras forem especificamente autorizadas pelo Poder Legislativo em forma que
juridicamente possibilite ao Poder Executivo realizá-las no exercício. § 3º. A autorização
legislativa a que se refere o parágrafo anterior, no tocante a operações de crédito, poderá
constar da própria Lei de Orçamento.
407
Em tradução livre: os assuntos/aspectos/temas que serão objeto da instrução probatória
e da decisão judicial. Embora não enfrentando a questão da possibilidade de retificação do
orçamento pela abertura de créditos extraordinários, merece menção o voto do Ministro
do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, no Recurso 283.834/RS (relatoria do Min.
Marco Aurélio), que, encampando fundamentação expedida no acórdão impugnado, do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, consignou que “A falta de previsão orçamentária
não deve preocupar o juiz que lhe incumbe a administração da justiça, mas apenas o
administrador que deve atender equilibradamente as necessidades de seus súditos,
principalmente os mais necessitados e doentes”.
235
obstáculo à concretização de prestações públicas relacionadas a
asseguramento do mínimo existência.
Não bastasse toda a argumentação de nível constitucional, podese ainda invocar o artigo 8º, § 2º, do referido Diploma Legal, que exclui
da regra geral limitadora de despesas públicas aquelas que se
constituírem obrigações constitucionais e legais do ente, e assim, são
aquelas vinculadas à satisfação de direitos fundamentais da pessoa
humana, já que, proteger o mínimo vital é dever constitucional
impostergável do Poder Público.408
Tal
situação,
porém,
é
restrita
aos
casos
referentes à proteção do mínimo existencial. As prestações estatais que
ultrapassarem esse mínimo têm sua eficácia de possibilitar adjudicação
individual dependentes da interpositio legislatoris409 infraconstitucional.
Não decorrem diretamente da Constituição. Por isso, devem ser obtidas
por via da cidadania reivindicatória, a partir do processo democrático,
de modo a integrar políticas públicas e previsões orçamentárias. Sendo
assim, a adjudicação jurisdicional das pretensões que ultrapassem o
mínimo existencial demandam a verificação da existência do direito
subjetivo
à
luz
das
políticas
públicas
e
das
legislações
infraconstitucionais editadas, sem prejuízo do controle jurisdicional de
constitucionalidade das políticas públicas.
Assim, no que tange ao direito à moradia digna, no que se referir
ao mínimo existencial, quando a pessoa, por circunstâncias alheias à
sua vontade, estiver desalojada ou estiver na eminência de ficar, a
adjudicação individual da prestação estatal pertinente pode ser
postulada e obtida jurisdicionalmente
408
409
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento, p. 152.
Em tradução livre: intervenção do legislador.
236
Porém, é importante salientar que o controle judicial e a
possibilidade de adjudicação de tutela favorável ao direito à moradia
em sua dimensão prestacional em face do Poder Público não se limitam
à proteção do mínimo existencial. Não é isso que se está afirmando,
mas apenas que o mínimo existencial está protegido por uma norma
constitucional que tem a estrutura de regra, e, portanto, é aplicada
mediante subsunção, sendo assim, plenamente judicializável porque
prontamente exigível.
Nos demais casos, quando se estiver diante de uma pretensão
que ultrapasse o mínimo existencial, a cognição é horizontalmente mais
ampla, pois se terá que realizar um juízo de ponderação para verificar
se o que se postulada com lastro em um direito prima facie traduz-se
ou não, ao final do sopesamento dos argumentos fáticos e jurídicos, em
um direito definitivo. É a partir das justificativas apresentadas é que se
afere se há omissão inconstitucional ou insuficiência na atuação do
Poder Público, conforme método já explicitado.
Contudo, levando em conta a realidade brasileira, universalizar o
mínimo existencial do direito à moradia já se consubstancia num
enorme desafio. Enfrentá-lo demanda lançar mão do planejamento
estratégico participativo, condição imprescindível para formulação e
implementação das políticas públicas legítimas, afinadas com as
promessas constitucionais.
A Constituição brasileira de 1988, na qualidade de pacto social
fundante da República, elaborado em especial momento de legitimação
constituinte, e com ampla participação dos diversos segmentos da
sociedade, como decisão política de maior envergadura, estabelece
vinculações normativas ao planejamento e à execução das políticas
237
públicas, reduzindo assim o espaço de liberdade do legislador na
elaboração dos planos de atuação governamental e dos orçamentos
públicos, o que torna possível os controles democrático e jurisdicional,
de modo a garantir a proteção e a promoção dos direitos humanos
fundamentais, inclusive a moradia digna.
Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição
não depende apenas do seu conteúdo, da justiça de seus preceitos,
mas, sobretudo, de uma prática constante que garanta que as normas
constitucionais sejam vivenciadas no cotidiano, orientando condutas e a
vida política, dando rumos à almejada transformação da realidade.
Enfim, servindo-se da expressão de Pablo Lucas Verdú410, uma práxis
que revele um verdadeiro sentimento constitucional, sempre
alimentado.
Precisa ser a Constituição um pacto vivo dos valores que a
sociedade brasileira, em determinado momento histórico resolveu,
soberanamente, compartilhar. E isso exige uma cultura política e
jurídica que busque, nos espaços públicos, decisões compatíveis com as
diretrizes constitucionais.
O Poder Judiciário é um desses espaços de atuação cívica, mas
não pode ser a única trincheira para proteger os cidadãos das
arbitrariedades ou omissões do Estado. Ou seja, o recurso aos Tribunais
não pode causar desmobilização ou desarticulação dos movimentos
sociais, nem enfraquecer a atuação nos demais espaços públicos
democráticos em que são definidas as políticas públicas e os conteúdos
dos direitos fundamentais que serão protegidos e promovidos pelo
410
VERDÚ, Pablo Lucas. El sentimento constitucional; La Constitución en la encrucijada.
238
Estado411.
O que se quer salientar é que o discurso dos direitos humanos
fundamentais deve estar presente em todos os espaços públicos, sejam
eles Fóruns e Tribunais, Parlamentos ou órgãos da Administração
Pública.
Sobreleva-se, portanto, também no campo da efetivação do
direito à moradia digna, rumo à almejada universalização, o papel da
cidadania ativa e a defesa da solidariedade para uma distribuição mais
justa das riquezas e das oportunidades, para a promoção de um
desenvolvimento com respeito às limitações ambientais e com maior
justiça social.
411
Sobre tal perigo na experiência da Colômbia, mas com lições aplicáveis ao Brasil, ver:
YEPES, Rodrigo Uprimy. A judicialização da política na Colômbia: Casos, potencialidades e
riscos.
239
CONCLUSÕES
Capítulo 1.
Constatou-se que o regime contemporâneo de proteção e
promoção jurídica da moradia resulta de uma longa construção que,
durante muito tempo, trilhou duas vertentes paralelas: como direito da
personalidade no campo do Direito Privado e como direito humano
fundamental, no Direito Público. Caminhos que se encontraram com a
constitucionalização do Direito e com o reconhecimento da plena
normatividade dos preceitos constitucionais, sejam eles regras ou
princípios, consolidando-se uma tutela integral e prioritária da pessoa
humana e das situações existenciais.
Estando a moradia positivada no ordenamento jurídico brasileiro
como um direito humano fundamental, não pode ela ser tratado
apenas como mercadoria, acessível apenas àqueles que têm condições
econômicas de pagar seu preço. Daí a importância de políticas públicas
para universalizar a moradia digna enquanto necessidade essencial de
todo e qualquer ser humano, como bem jurídico extrapatrimonial
indispensável à proteção e promoção da dignidade.
Capítulo 2
A efetividade do direito à moradia em um país marcado pelas
desigualdades, como é o Brasil da atualidade, depende das políticas
públicas redistributivas. Daí a importância de estratégias de
universalização do direito à moradia digna estarem contempladas nos
240
planos de desenvolvimento econômico e social, no planejamento da
atuação estatal, contando com aporte de recursos adequados e estáveis
nos orçamentos públicos.
Quando não há planejamento, ou quando se excluir das políticas
habitacionais parcela significativa da população, que é pobre, esta terá
que resolver por si só sua necessidade de moradia, autoconstruindo
habitações precárias nos espaços que sobram da cidade, como as beiras
de córregos, rios e lagos, morros e encostas sujeitas a desabamentos,
áreas contaminadas ou insalubres, embaixo de pontes e viadutos,
loteamentos clandestinos, produzindo-se resultados socioambientais
desastrosos.
Capítulo 3
Em uma Constituição substancializada, em que a norma
fundamental é a dignidade da pessoa humana e os direitos que lhe são
inerentes, o controle jurídico das políticas públicas não se restringe aos
aspectos formais, de observância da competência e dos procedimentos,
adentrando-se na sindicalização material, isto é, da compatibilidade do
conteúdo aos valores, ideais e metas acolhidos pelo Pacto Fundamental
de 1988 e seu programa de desenvolvimento, cujo sentido está
claramente delineado. Daí a possibilidade de controle das políticas
habitacionais e de tutela contra omissões ou insuficiências na proteção
e promoção do direito à moradia digna.
A moradia digna na qualidade de direito humano fundamental
tem a estrutura normativa de princípio, dotado da máxima eficácia
possível dentro dos condicionantes fáticos e jurídicos presentes nas
241
circunstâncias em que estiverem inseridos. Neste prisma, a exigibilidade
de medidas estatais de proteção e promoção do direito à moradia digna
é verificada através do método da ponderação dos direitos, valores ou
bens jurídicos em jogo.
Robert Alexy apresenta uma proposta – aprimorada por Virgílio
Afonso da Silva – chamada de análise do suporte fático, que contribui
para dar maior transparência e possibilitar maior controle das decisões
tomadas sobre omissões ou atuações estatais insuficientes na proteção
e promoção de um direito humano fundamental. Defende-se o
emprego de tal método de ponderação, lastreado na teoria da
argumentação jurídica, para verificação da exigibilidade do direito à
moradia, porque, não obstante as suas limitações, é o que melhor
responde aos preceitos de transparência e controlabilidade.
A reserva do possível influi na efetividade do direito à moradia.
Porém, ela só se configura nos casos em estiver demonstrada a
impossibilidade de agir em razão da inexistência absoluta do recurso
apto a suprir a necessidade em questão, ou quando o meio adequado
não estiver acessível/disponível no momento em que é necessário. Na
reserva do possível não se subsumem situações em que a escassez é
artificial, ocasionada não em razão da natureza das coisas, mas sim de
uma decisão alocativa, de uma escolha sobre a destinação que será
dada aos recursos disponíveis. Escolha essa que pode ser sindicada à luz
da pauta axiológica constitucional.
Quando a tutela ao direito à moradia estiver fundada na garantia
do mínimo existencial, ter-se-á desde logo um direito definitivo,
previsto em norma constitucional que tem a estrutura de regra,
ensejando o pronto atendimento, eis que em questão estará um
242
conteúdo mínimo e irredutível da dignidade humana, quando não da
manutenção da própria vida.
Conclusão geral
A atual crise de efetividade do direito à moradia junto às camadas
mais pobres da população brasileira não decorre de um menor grau de
eficácia da respectiva norma constitucional garantidora. A explicação
não está no plano da norma, mas sim no da história política: decorre
das escolhas alocativas que foram feitas no decorrer do tempo,
refletidas nas estruturas institucionais, procedimentais e financeiras
que já foram consolidadas em algumas áreas, estão no meio do
caminho em outras, mas que noutras ainda não atingiram um patamar
minimamente adequado, como é o caso das políticas públicas de
universalização do direito à moradia digna.
Portanto, a universalização do direito à moradia deve estar
contemplada nas estratégias de promoção do desenvolvimento
nacional. Desenvolvimento esse que não se reduz a mero crescimento
econômico, de geração de riqueza, mas sim como um processo mais
amplo, de melhoria da qualidade de vida, de apropriação de direitos
humanos fundamentais, sendo, portanto, uma questão de justiça
distributiva.
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