PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DOUTORADO ODONÉ SERRANO JÚNIOR O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA: EXIGIBILIDADE, UNIVERSALIZAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O DESENVOLVIMENTO CURITIBA 2011 Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central S487d 2011 Serrano Júnior, Odoné O direito humano fundamental à moradia digna : exigibilidade, universalização e políticas públicas para o desenvolvimento / Odoné Serrano Júnior ; orientadora, Jussara Maria Leal de Meirelles. – 2011. vii, 264 f. ; 30 cm Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2011 Bibliografia: 244-264 1. Direito à moradia. 2. Direitos humanos. 3. Direitos civis. 4. Política pública. 5. Brasil. Constituição (1988). I. Meirelles, Jussara Maria Leal de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. Doris 4. ed. – 341.6 ii iii Odoné Serrano Júnior O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA: EXIGIBILIDADE, UNIVERSALIZAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O DESENVOLVIMENTO Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, pela seguinte banca examinadora: Profª Drª Jussara Maria Leal de Meirelles Orientadora – PPGD PUCPR Profª Drª Angela Cássia Costaldello Convidada – UFPR Prof. Dr. Gilberto Giacóia Convidado – FEDNP Prof. Dr. Antônio Carlos Efing Membro – PPGD PUCPR Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas Membro – PPGD PUCPR Curitiba, 07 de dezembro de 2011. iv Um trabalho de pesquisa de doutorado é sempre uma obra coletiva. Os erros e insuficiências, eu assumo-os integralmente. Quanto aos acertos, os méritos devem ser divididos entre muitos. Primeiro a Deus, sempre presente em minha vida. Aos meus pais, pela formação e exemplo de vida. A minha esposa Ana Paula e aos meus filhos Pedro Henrique e Ana Luísa, que foram os mais sacrificados no tempo de convivência. Demais parentes e amigos, pela força, fé e estimulo. Aos meus orientadores Luiz Edson Fachin e Jussara Maria Leal de Meirelles, pela seriedade, rigor e lealdade. Aos demais mestres-mentores nesta jornada de transformaçãoaprimoramento pessoal, especialmente, aos Professores Gilberto Giacóia, Angela Costaldello, Antônio Carlos Efing, Fernando Antonio de Carvalho Dantas, Fabiane Bessa, Wladimir Passos de Freitas, Cláudia Barbosa, Flávia Piovesan, Melina Fachin, Katya Kozicki, Roberto Ferraz, James Martins, Márcia Carla Pereira e Luiz Alberto Blanchet, pelas lições que fizeram toda a diferença. Aos colegas discentes do PPGD-PUCPR, companheiros de jornada que muitas vezes se revelaram grandes mestres. A Eva de Fátima Curelo, sólido pilar desse PPGD, e grande amiga. Ao Ministério Público do Estado do Paraná, por fomentar esse estudo. A Semíramis e Prof. Norberto, pela ajuda no résumé. Aos despossuídos, desabrigados, excluídos e marginalizados, que são os que mais precisam das políticas públicas para terem assegurado um mínimo de dignidade e liberdade real e, para tanto, inclusive, uma moradia digna. v RESUMO Abordam-se os problemas da universalização e da exigibilidade do direito humano à moradia digna ante a crise de efetividade na contemporaneidade brasileira, notadamente junto às camadas mais pobres da população, que são justamente aquelas que, para viverem com um mínimo de dignidade, mais precisam das políticas públicas. Reverter esse quadro de distanciamento das promessas constitucionais, tornando a moradia digna uma realidade para todos os brasileiros é desafio a ser enfrentado, inclusive no campo da reflexão teórica e conceitua, buscando contribuir para uma melhor compreensão do regime jurídico e da eficácia da proteção jurídica dessa situação existencial inexorável ao respeito à dignidade humana. Defende-se a universalização do direito à moradia digna como dimensão das mais importantes do desenvolvimento socioambientalmente sustentável, entendido como processo de melhoria da qualidade de vida, de apropriação de direitos humanos fundamentais e de realização de justiça distributiva. Para tanto, torna-se primordial o planejamento estratégico e participativo de políticas públicas alinhadas com o projeto de transformação progressiva da ordem econômica e social contemplado na Constituição de 1988. E, no que toca à verificação da exigibilidade de medidas estatais de proteção e promoção do direito à moradia digna, explicita-se um método, baseado na técnica da ponderação, na diferença estrutural entre regras e princípios propugnada por Robert Alexy e na proteção imediata do mínimo existencial. PALAVRAS-CHAVES: Direito humano fundamental à moradia digna. Exigibilidade. Universalização. Políticas públicas. Desenvolvimento econômico e social. Mínimo Existencial. Controle das escolhas orçamentárias. vi RÉSUMÉ Cette thèse aborde les problèmes d'universalisation et de l'exigibilité du droit humain au logement face à la crise de l'efficacité dans la contemporainéité brésilienne, notamment en relation aux couches plus pauvres de la population, qui sont précisément celles qui, pour vivre avec un minimum de dignité, ont plus besoin de politiques publiques. Inverser cette situation d’eloignement des promesses constitutionnels et rendre l’áccès au logement une réalité pour tous les Brésiliens est le défi auquel il faut faire face, notamment dans le domaine de la réflexion théorique et conceptualisée, dans le but de contribuer à une meilleure compréhension du cadre juridique et l'efficacité de la protection juridique de cette situation existentielle inexorable au respect de la dignité humaine. On défend l'universalisation du droit au logement comme une des plus importantes dimensions du développement social et environnement soutenable, compris comme le processus d'amélioration de la qualité de vie, d’appropriation des droits fondamentaux de l’Homme et de réalisation la justice distributive. Pour parvenir à ce but, il devient primordiale la planification stratégique et participatives des politiques publiques alignées avec la conceception de la tranformation progressive de l'ordre économique et social envisagée par la Constitution brésilienne de 1988. Et, en ce qui concerne la vérification de la responsabilité de l'État et de l’exigililité de mesures étatiques pour protéger et promouvoir le droit à un logement décent, on explicite une méthode, basée sur la technique de la pondération et sur la différence structurale entre les règles et principes préconisée par Robert Alexis et qui contemple la protection immédiate du minimum existentiel. Mots clés : droit humain fondamental de l’Homme à un logement. Exigibilité. Universalisation. Politiques publiques. Développement économique et social. Minimum existentiel. Contrôle des choix budgétaires. vii SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................... 1 1. MORADIA DIGNA COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL 1.1. POR QUE DIREITO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL?..................................11 1.2. DIREITO À MORADIA E DIGNIDADE HUMANA.................................................16 1.2.1. Moradia digna: bem jurídico indispensável à dignidade humana..........................................................................................................16 1.2.2. Interdependência entre moradia e outros bens jurídicos essenciais à dignidade humana.........................................................................................21 1.3. A PROTEÇÃO JURÍDICA DA MORADIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: ENCONTRO DE DOIS CAMINHOS..............................................................................34 1.3.1. O caminho do Direito Público.............................................................34 1.3.2. O caminho do Direito Privado.............................................................42 1.3.3. A confluência na constitucionalização................................................48 1.4. A POSITIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA: DESDE QUANDO?.........................................................................61 1.5. DAS CLASSIFICAÇÕES RÍGIDAS AO RECONHECIMENTO DA PLURALIDADE DE CONTEÚDOS E FUNÇÕES...........................................................................................71 1.5.1. Classificação geracional ......................................................................71 1.5.2. Direitos, liberdades e garantias versus direitos econômicos, sociais e culturais.........................................................................................................75 1.5.3. Classificações funcionais.....................................................................82 1.5.4. A pluralidade de conteúdos e funções do direito humano fundamental à moradia digna......................................................................92 2. A UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS 2.1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS........................................................................................................97 2.2. MORADIA E DIREITO AO DESENVOLVIMENTO...............................................103 viii 2.3. PLANEJAMENTO DO DESENVOLVIMENTO, PARTICIPAÇÃO E POLÍTICAS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ........................................................................109 2.4. PLANEJAMENTO E ORÇAMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À MORADIA ...........................................................................................120 2.5. O RISCO DE BLOQUEIO NEOLIBERAL À UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA...................................................................................................137 2.6. BREVE RETROSPECTO DAS POLÍTICAS NACIONAIS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL......................................................................... 148 3. A EXIGIBILIDADE DE MEDIDAS ESTATAIS DE PROTEÇÃO OU PROMOÇÃO DO DIREITO À MORADIA 3.1. EXIGIBILIDADE À LUZ DA DOUTRINA DO SUPORTE FÁTICO...........................173 3.2. EFETIVIDADE DO DIREITO À MORADIA, EFICÁCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL GARANTIDORA, ESCASSEZ E ESCOLHAS ALOCATIVAS.............194 3.3. RESERVA DO POSSÍVEL EXIGIBILIDADE DO DIREITO À MORADIA..................211 3.4. EXIGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL DO DIREITO À MORADIA.............222 CONCLUSÕES.........................................................................................240 BIBLIOGRAFIA....................................................................................... 244 ix INTRODUÇÃO Esse trabalho de pesquisa cuida da verificação da exigibilidade das medidas de proteção ou promoção da moradia digna em face do Poder Público, bem como da tarefa de universalizar esse direito humano fundamental. Mas por que cuidar desse tema? Qual a sua relevância na atualidade brasileira? A resposta encontra-se na grave crise de efetividade junto às camadas mais pobres da população, que são justamente aquelas que, para viverem com um mínimo de dignidade, mais precisam das políticas públicas. Quanto a déficit habitacional e inadequação das moradias, o último levantamento oficial foi o realizado pela Fundação João Pinheiro em parceria com Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades”1, apontando para uma carência de 6,273 milhões de domicílios, a maior parte dela concentrada nas famílias de baixa renda. Também é bastante grave o diagnóstico acerca do número de brasileiros que ocupam unidades habitacionais construídas em áreas de risco de deslizamento, inundação e/ou proliferação de transmissores de 1 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação; Fundação João Pinheiro, Centro de Estatística e Informações. Déficit Habitacional no Brasil 2007. Brasília: Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Habitação; Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2009. Disponível em http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-dehabitacao/biblioteca/publicacoes-e-artigos/DeficitHabitacional.zip/view, conforme pesquisa realizada em 23.08.2010, às 9h49, e "Indicadores de direito à moradia adequada" - Desenvolvimento – Revista do IPEA, junho de 2009, p. 90-91. O levantamento do déficit habitacional foi elaborado a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD realizada no ano de 2005 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. A atualização desta pesquisa, com aprimoramentos metodológicos, está prevista para breve, estando no aguardo da disponibilização dos dados colhidos no Censo de 2010. 1 doenças, a demandar providências urgentes para evitar tragédias como as que ocorreram recentemente em várias regiões do país.2 Outro aspecto relevante é a segregação socioespacial, geradora de mais pobreza e exclusão, que se reflete na forma atual de ocupação do território das grandes metrópoles, cada vez mais divididas por muros invisíveis, erguidos a partir do alto custo de morar em determinadas 2 Faz-se aqui, apenas para fins ilustrativos e para demonstrar a importância prática do tema pesquisado, a apresentação de alguns fragmentos da realidade retirados de notícias de jornal: Em Santa Catarina, em novembro de 2008, em razão das intensas chuvas que causaram desmoronamento de muitos morros ocupados com habitações. Segundo a Defesa Civil de Santa Catariana, até dezembro de 2008, 106 mortes foram confirmadas. E para que não houvesse mais vítimas, 9.390 pessoas tiveram que sair de suas casas, instalando-se em casas de parentes ou em alojamentos improvisados em escolas públicas, ginásios, etc. Em janeiro de 2010, deslizamentos de terra em Ilha Grande (Praia do Bananal e Morro Carioca), na região de Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro, causaram mais vítimas fatais. Segundo a Defesa Civil, as mortes os chegaram ao número de 50. Os desabamentos também fizeram 228 pessoas perderem as suas casas (Gazeta do Povo, 5 de janeiro de 2010, p. 8). Em abril de 2010, novos desastres assolam o Rio de Janeiro em decorrência de fortes chuvas, inundações e deslizamento de terra, deixando 231 mortos, 161 feridos, 60 desaparecidos e 5.000 desalojados. Situação paradigmática foi a que ocorreu no Morro do Bumba, em Niterói, cujo desabamento matou 47 pessoas, soterradas. O Morro do Bumba abrigava uma comunidade inteira, com casas, igreja, pizzaria, bares e creche, apesar de estar sobre um lixão tóxico, desativado em 1986. A ocupação floresceu com a contribuição de ações demagógicas de alguns governantes que, ao invés de propiciarem o realojamento dos moradores para local adequado, acabaram incentivando as ocupações nesse local condenado ao levarem bica d'água potável, energia elétrica, quadra de esportes, e outras "melhorias", sempre acompanhadas de festas de inauguração, com inequívoco propósito de promoção pessoal dos supostos benfeitores. Vide: Gazeta do Povo, 1º de junho de 2010, p. 7 – Morro do Bumba: MP aponta omissão da Prefeitura de Niterói; Ruth de Aquino – Nossa Antena: "A omissão que mata" – Revista Época de 12 de abril de 2010, p. 30. Em junho de 2010, enchentes e enxurradas atingem 22 municípios de Alagoas, deixando mais de 70 mil desabrigados e desalojados. O ano de 2011 inicia com novas tragédias. Várias cidades no Estado de São Paulo sofrem com enchentes. As cidades paulistas de Franco da Rocha e de Atibaia inundaram, causando muitos estragos. Na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, notadamente em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis, computam-se no mínimo 841 mortes, 541 desaparecidos e 21,5 mil desalojados e desabrigados, em razão dos desabamentos provocados em razão das fortes chuvas, não obstante os inúmeros alertas de especialistas em clima e ocupação do solo sobre os riscos do desmatamento e das construções em morros com solo arenoso e com topografia íngreme. Após a tragédia, enfrenta-se um surto de leptospirose, transmitida pela urina dos ratos e disseminada pelas águas da enchente.2 Por fim, com as águas de março, o litoral do Paraná também é palco de tragédias em decorrência do excesso das chuvas que provocou deslizamentos, morte de 3 pessoas, 2,5 mil pessoas desabrigadas, 10 mil desalojadas e um total de 26 mil afetadas em Antonina e Morretes, onde 4 mil casas foram danificadas e 211 ficaram comprometidas, além do isolamento de várias áreas rurais (Ver: Gazeta do Povo, 19 de março de 2011, p. 6-8). E, de tempos em tempos, notícias como essas se repetem. 2 regiões.3 Nas palavras de Arlete Moysés Rodrigues, é "suficiente observar qualquer cidade para verificar que há grande diferenciação entre as características de moradia dos bairros, tamanho dos lotes das construções, da "conservação", de acabamento das casas, as ruas – asfaltadas ou não -, a existência de iluminação, esgotos, etc. para se ter uma noção da segregação espacial. Ao mesmo tempo, há espaços na cidade com infra-estrutura e outros sem. Há espaços densamente ocupados e outros com rarefação de ocupação. Amplos espaços servidos de infra-estrutura e outros com grande densidade de ocupação, mas com rarefação de serviços. Isto significa que a diversidade não se refere apenas ao tamanho e características das casas e terrenos, mas à própria cidade". “Esta diversidade não está relacionada a diferentes tempos de ocupação, ou seja, não foram ocupadas em tempos diferentes e "com o passar do tempo" serão servidas por infra-estrutura de equipamentos e serviços coletivos. Trata-se de uma variação no mesmo tempo e no mesmo espaço. O computador é contemporâneo do analfabetismo; a vela das usinas nucleares; as mansões das favelas. Num mesmo espaço e ao mesmo tempo, a segregação espacial é visível até para os observadores menos atentos". 4 3 Raquel Rolnik aponta que a segregação sócio-espacial tem como marco histórico remoto as primeiras políticas urbanas propriamente ditas, adotadas na Primeira República (18891930), mantendo o padrão de atender os interesses das elites proprietárias. De cunho higienista, deflagradas em decorrência das frequentes epidemias como a febre amarela em 1892 e a gripe espanhola de 1918, num contexto urbano de precariedade ou inexistência de sistemas de saneamento, de adensamento excessivo e de péssimas condições de habitação aos trabalhadores pobres, as intervenções estatais no ambiente urbano tiveram como tônica a demarcação de zoneamento para proibir a construção de cortiços e casas de operários nas áreas centrais. Eis a primeira evidência do objetivo do Poder Público de realizar a segregação socioespacial, de colocar os operários fora do perímetro central (ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei, p. 35-36). 4 RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, p. 11-12. 3 Essas diferenças configuram aquilo que Milton Santos5 denominou de áreas luminosas e áreas opacas. As áreas luminosas são aquelas bem servidas pelas redes de telecomunicação, transporte, infraestrutura urbana, etc., onde os agentes hegemônicos, representados pela população mais rica e organizada ditam as regras, e as áreas opacas aonde a modernização e as políticas públicas não chegam, apesar de seus habitantes, na qualidade de trabalhadores, participarem da lógica que move as metrópoles6. Por sua vez, Rosa Moura e Clovis Ultramari salientam que esses espaços opacos, as periferias, são a imagem da desordem, do inacabado, do provisório: lá a regra é a da autoconstrução da moradia, a falta de calçamento da rua, os esgotos a céu aberto, a ausência de equipamentos sociais como escolas, postos de saúde, praças. 7 Na visão de Raquel Rolnik, “O drama da multiplicação desses habitats precários, inacabados e inseguros vêm à tona quando barracos 5 SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo, p. 41-42. Tomando por exemplo um Município da região metropolitana de Curitiba consegue-se visualizar uma situação dramática que se repete em outras metrópoles. Cerca de 60% de população de Almirante Tamandaré, cidade localizada a 15 quilômetros de Curitiba, estuda ou trabalha na Capital e só volta para casa para dormir. A cidade dormitório é muito precária, com ruas esburacadas, altos índices de violência, falta de saneamento, educação e saúde, mantendo forte dependência dos recursos repassados pelo Governo Federal, mormente das transferências do Fundo de Participação dos Municípios (36% do total das receitas municipais). Metade dos proprietários de imóveis de Almirante Tamandaré não paga o IPTU, a grande maioria porque não tem condições financeiras. Da receita total de R$ 65 milhões, a arrecadação de IPTU representa apenas 2,92% (R$ 1,9 milhão). O Imposto sobre Serviços, que também serve para medir a atividade econômica, participa com apenas 3,85% do total da arrecadação. Aproximadamente 22% da população sobrevivem com apenas R$ 302,00 ao ano. A maior parte das residências é irregular. O índice de homicídios é alto e os educacionais baixos. Observa-se, ainda, um aumento crescente da população dessas cidades com altas taxas de pobreza e baixo índice de desenvolvimento humano, tendo em vista, principalmente, o aumento do custo da moradia na Capital. Como, nessas cidades ao entorno da metrópole há baixa atividade econômica, arrecadação tributária limitada, persistindo a omissão na tomada de medidas de redistribuição de recursos e oportunidades, as desigualdades tendem a se agravarem cada vez mais. 7 MOURA, Rosa; ULTRAMARI, Clovis. Periferias das cidades, p. 38 e 50. 6 4 desabam, em conseqüência de chuvas intensas, e quando eclodem cries ambientais como o comprometimento de áreas de recarga de mananciais em função de “ocupação desordenada”. Na ausência desses episódios, no entanto, parece “natural” o apartheid que separou nossas cidades em centros e em periferias. O “centro” é o ambiente dotado de infraestrutura completa, onde estão concentrados o comércio, os serviços e os equipamentos culturais; e onde todas as residências de nossa diminuta classe média têm escritura devidamente registrada em cartório. Já a “periferia” é o lugar feito exclusivamente de moradias de pobres, precárias, eternamente inacabadas e cujos habitantes raramente têm documentos de propriedade registrados. São usuais, nos momentos em que voltam à mídia os dramas da “periferia” e das “favelas”, as análises que culpam o Estado por não ter planejado, por não ter políticas habitacionais ou mesmo por ter “se ausentado”. Entretanto é flagrante o quanto o planejamento, a política habitacional e de gestão do solo urbano tem contribuído para construir este modelo de exclusão territorial”.8 Além disso, como bem observa Luiz César Queiroz Ribeiro9, essa segregação tem impactos corrosivos nas relações de reciprocidade entre grupos e classes sociais, gerando reprodução da pobreza e aumento da criminalidade violenta, com grande incidência de homicídios, principalmente de jovens do sexo masculino10. 8 ROLNIK, Raquel. A construção de uma política fundiária e de planejamento urbano para o país – avanços e desafios, p. 200-201. 9 RIBEIRO, Luiz César Queiroz. Dinâmica socioterritorial das metrópoles brasileiras, p. 223225. 10 Na Região Metropolitana de Curitiba, por exemplo, durante algum tempo tem perdurado uma média de 20 homicídios por final de semana, a maioria de rapazes jovens, por motivação fútil ou questões ligadas ao narcotráfico. No contexto internacional, o Brasil 5 Trata-se de um processo extremamente injusto e com efeitos socioambientais danosos. Por isso, a segregação socioespacial das cidades brasileiras é importante aspecto da moradia indigna que deve ser objeto de maior atenção por parte das políticas de planejamento urbano e de habitação. Enfim, todos esses dados da realidade brasileira contemporânea – déficit, inadequação, precariedade das habitações, segregação socioespecial, revelam que há uma crise de efetividade no direito à moradia, cuja reversão é desafio a ser enfrentado. O avesso do Direito, o crônico problema habitacional, dimensão dramática da pobreza e das desigualdades sociais, o distanciamento da realidade atual das promessas constitucionais de uma sociedade justa, livre e solidária11, justificam a investigação em tela. E a contribuição que se pretende dar situa-se no campo da reflexão teórica e conceitual, buscando aprimorar a compreensão, bem como remover obstáculos a um melhor tratamento jurídico à moradia. O campo de investigação escolhido guarda relação de pertinência com as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, na medida em que trata ocupa a sexta posição, tanto no total de homicídios quanto nos homicídios juvenis, entre os 100 países que apresentam dados à Organização Mundial da Saúde. Ver, a respeito, matéria jornalística “Mapa da Violência”, Gazeta do Povo, 25 de fevereiro de 2011, p. 3-4. e o documento divulgado pelo Ministério da Justiça e Instituto Sangari: WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2011: Os jovens do Brasil. São Paulo; Brasília: Instituto Sangari; Ministério da Justiça, 2011 (Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJEBAC1DBEITEMIDDD6FC83AAA9443839282FD58A54 74435PTBRNN.htm, acesso em 13.09.2011 às 14h07, e em www.mapadaviolencia.org.br, acesso em 13.09.2011 às 14h16), com números alarmantes, apesar de reconhecida a limitação decorrente de subregistros de ocorrências de casos de mortes violentas. 11 Ver, a respeito desse descompasso entre o projeto da Constituição de 1988 e a obra edificada nesses mais de 20 anos de vigência, do distanciamento entre a proclamação discursiva das boas intenções e efetivação da experiência, o texto de Luiz Edson FACHIN, A Constituição nossa de cada dia. In: Jornal Carta Forense, abril de 2011, p. A 16. 6 de questões ligadas à proteção jurídica do ser humano em sua dignidade, vislumbrando a moradia digna como uma situação existencial, cuja universalização é uma das mais importantes dimensões do desenvolvimento socioambientalmente sustentável. Na busca do objetivo de contribuir para o aprimoramento da compreensão desses aspectos do direito à moradia digna no Brasil contemporâneo utilizou-se o método da análise crítica das fontes normativas, com amparo em referenciais doutrinários selecionados. A explicitação dos resultados dessa empreitada foi estruturada em três capítulos: 1) moradia digna como direito humano fundamental; 2) universalização do direito à moradia e as políticas públicas e 3) a exigibilidade de medidas estatais de proteção ou promoção do direito à moradia. O primeiro capítulo é dedicado à demonstração de que a proteção jurídica da moradia digna é regida pelo estatuto dos direitos humanos fundamentais, eis que trata de uma situação existencial, convertida um bem jurídico indispensável à promoção e garantia da dignidade da pessoa humana. Logo, moradia não pode ser reduzia a uma mercadoria, à propriedade sobre um bem imóvel, acessível apenas a quem pode pagar seu preço, devendo, sim, ser objeto de políticas públicas tendentes à sua universalização. Para essa demonstração, amalgamada em uma breve revisão do estatuto jurídico dos direitos humanos fundamentais, foram adotadas como referenciais teóricos principalmente as lições de André Ramos de Carvalho, Angela Cassia Costaldello, Antônio Carlos Effing, Fábio Konder Comparato, Flávia Piovesan, Gilberto Giacóia, Gustavo Tepedino, Ingo Wolfgang Sarlet, José Afonso da Silva, José Antônio Peres Gediel e 7 Rosalice Fidalgo Pinheiro, Jussara Meirelles, Luiz Edson Fachin, Maria Celina Bodin de Moraes, Nelson Saule Junior, Paulo Bonavides, Ricardo Cesar Pereira Lira, Sidney Guerra, Virgílio Afonso da Silva, José Joaquim Gomes Canotilho, José Carlos de Andrade Vieira, Jorge Miranda, Pedro Pais de Vasconcelos, Vital Moreira, Antonio-Enrique Perez Luño e Robert Alexy. O segundo capítulo enfoca a importância das políticas públicas e do planejamento estratégico participativo para a almejada universalização do direito à moradia. A abordagem desenvolvida partiu da premissa de que planejar e executar transformações na ordem social e econômica, concretizando o projeto emancipatório da Constituição de 1988, são atividades guiadas pelo também humano e fundamental direito ao desenvolvimento socioambientalmente sustentável. Ou seja, assegurar a todos o direito à moradia digna é dimensão relevante desse processo de apropriação dos direitos humanos que caracteriza o desenvolvimento visto neste prisma de justiça social e respeito aos recursos naturais. Defende-se, assim, que a universalização do direito à moradia deve ser alcançada pela construção democrática de políticas públicas que efetivamente contribuam para o empoderamento dos brasileiros mais frágeis do ponto de vista socioeconômico, integrando-os na cidadania. Assim, no que diz respeito ao planejamento das políticas públicas e à programação orçamentária da atuação estatal, é imprescindível que não mais se ignore que a maior parte da população brasileira é pobre e que, para se universalizar a moradia digna, esta não pode continuar a ser tratada apenas como uma mercadoria. É preciso resgatar sua 8 dimensão de direito que tutela uma situação existencial imprescindível à proteção da personalidade e da dignidade humana. Nesta etapa, as reflexões se ampararam sobretudo nos marcos teóricos Amartya Sen, Carlos Matus, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Enrique Dussel, Eros Roberto Grau, Gilberto Bercovici, Gulherme Amorim Campos da Silva, Helio Saul Mileski, Ignacy Sachs, James Giacomoni, José Afonso da Silva, José Matias-Pereira, José Reinaldo de Lima Lopes, Lafayete Josué Petter, Marcio Cammarosano, Maria Paula Dallari Bucci, Nelson Saule Junior, Pedro Pontual, Ronald Dworkin, Vanderlei Siraque. No terceiro capítulo cuida-se da exigibilidade de medidas estatais de proteção ou promoção do direito à moradia, explicitando-se um método de verificação de omissão ou atuação insuficiente do Poder Público baseado na técnica da ponderação, na diferença estrutural entre regras e princípios propugnada por Robert Alexy, na teoria da argumentação jurídica e na proteção imediato do mínimo existencial. Buscou-se também verificar se a atual crise de efetividade do direito à moradia digna, notadamente junto às pessoas que não podem adquirir com suas economias próprias uma unidade habitacional em lote urbanizado regular do ponto de vista jurídico e ambiental, decorre ou não de um menor grau de eficácia da respectiva norma constitucional garantidora. Analisa-se, também, a chamada “reserva do possível”, procurando compreender adequadamente seu significado, bem como a influência que exerce na exigibilidade concreta do direito à moradia, sobretudo no que diz respeito à tutela do mínimo existencial. Nesta empreitada, serviram como bússola as lições de Alceu 9 Maurício Júnior, Amartya Sen, Ana Carolina Lopes Olsen, Ana Paula de Barcellos, Cláudio Pereira de Souza Neto, Clèmerson Merlin Clève, Daniel Sarmento, Eduardo Cambi, Flávio Galdino, Gilberto Bercovici, Gustavo Amaral e Danielle Melo, John Rawls, José Casalta Nabais, José Reinaldo de Lima Lopes, Osvaldo Canela Junior, Paulo Gilberto Cogo Leivas, Regina Maria Macedo Nery Ferrari, Ricardo Lobo Torres e Vicente de Paulo Barreto. Fecha-se esse relatório de pesquisa com a apresentação sintética das principais conclusões a que se chegou em cada capítulo, conduzindo a conclusões gerais. 10 1. MORADIA DIGNA COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL 1.1. POR QUE DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL? O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito a qual termo seria mais adequado para se referir ao direito à moradia digna, objeto desse estudo: Direitos do homem? Direitos do cidadão? Direitos humanos? Direitos fundamentais? Direitos humanos fundamentais? O título do capítulo já traz a resposta quanto à opção terminológica realiza. Resta, então, justificá-la. Para tanto é preciso aclarar que a expressão direitos do homem é a mais remota, tendo a Declaração francesa de 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como documento propagador. O contraste "direitos do homem" versus "direitos do cidadão" mostra o viés jusnaturalista, a indicar que os direitos do homem seriam direitos naturais, inalienáveis, "do homem que preexiste à sociedade", enquanto que os direitos do cidadão dizem respeito ao sujeito que faz parte da sociedade política; os direitos positivados e garantidos pelo ordenamento jurídico. A expressão "Direitos humanos" tem na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, sua fonte remota mais importante, sendo a expressão preferida para indicar direitos protegidos no campo do Direito Internacional, enquanto "direitos fundamentais" seriam os direitos humanos que foram reconhecidos, positivados e protegidos por um determinado Estado, no seu âmbito interno. Contudo, como a expressão "direitos fundamentais" pode se tida como direitos previstos 11 e protegidos na Constituição, e nem todos esses dizem respeito à tutela da pessoa, na qualidade de ser humano, optou-se neste trabalho pela expressão "direitos humanos fundamentais" como a mais adequada. Outra vantagem é que "direitos humanos fundamentais" indica claramente que se trata de direitos inerentes ao ser humano (e não a organizações, pessoas jurídicas), cuja fundamentalidade manifesta-se em dois sentidos: primeiro por ser objeto de proteção jurídica em nível constitucional, estando no topo da hierarquia normativa de um Estado – e o trabalho em tela faz o recorte metodológico para focar na proteção jurídica da moradia pelo Estado brasileiro contemporâneo e no interior do território brasileiro; segundo, porque conceber a moradia como um “direito humano fundamental” deixa claro que se trata de um direito cujo objeto de tutela é uma necessidade essencial para a dignidade da pessoa humana.12 A importância da positivação da moradia como um direito humano fundamental é que, nesta qualidade, ele frui de um regime jurídico que lhe assegura reforçada proteção jurídica porque, consoante 12 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos humanos fundamentais, p. 20; LUÑO, Antonio-Enrique Perez, Los derechos fundamentales, p. 46-47; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 353-356; ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 11-15; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 33-41. Nessa mesma trilha caminha José Afonso da SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 178), para quem: “Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referi-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais.” 12 dispõe o § 1º do artigo 5º, do Texto Maior13, previstos em normas constitucionais intervenção diretamente do legislador aplicáveis, independentemente infraconstitucional, e imunes da à abolição/revogação, até mesmo por emenda constitucional, em razão de estarem amparadas pela cláusula pétrea do inciso IV, do § 4º, do artigo 60 da Carta Magna.14 Os direitos fundamentais, por serem essenciais e indispensáveis à proteção da dignidade humana, constituem a base lógica e axiológica do ordenamento jurídico brasileiro. Por isto, eles possuem status jurídico que privilegia sua proteção e eficácia.15 Significa dizer que o regime jurídico a que estão sujeitos busca conferir, na prática, um maior grau de proteção e efetivação. São fundamentais e, justamente por isso, merecedores de prioritário respeito tanto pelos particulares como também pelo Poder Público. Contundente manifestação do status jurídico privilegiado dos direitos fundamentais é estarem eles entre os princípios constitucionais sensíveis, autorizando a medida extrema de intervenção da União em um Estado ou no Distrito Federal para “assegurar a observância” dos “direitos da pessoa humana” (artigo 34, VII, “b”, da Constituição da República). Em razão de sua força normativa potencializada, a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, que emerge das normas 13 Constituição de 1988, artigo 5º. (...) § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. 14 Constituição de 1988, artigo 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II – do Presidente da República; III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa dos seus membros. (...) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias individuais. 15 MARTINS NETO, João dos Passos. Direitos fundamentais: conceito, função e tipos, p. 79. 13 decorrentes do preâmbulo da Carta Magna, bem como do artigo 1º, III, artigo 3º, III e artigo 5º, §§ 1º e 2º, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, atua no plano da hermenêutica para condicionar e conformar todo o tecido normativo.16 Tem-se, portanto, que os direitos fundamentais ocupam posição preferencial, como expressamente se verifica da análise do artigo 5º, § 1º e do artigo 60, § 4º, IV, da Carta de 1988, por força do que todos devem respeitá-los, tratá-los a sério. Ocorre que, na prática, muitas vezes se esquece de que a moradia é um direito humano fundamental. Trata-se a moradia como se ela fosse apenas uma mercadoria, um bem acessível apenas àqueles que têm condições financeiras de custear o seu preço. Daí a importância do discurso jurídico fazer essa lembrança: moradia é direito personalíssimo. É direito humano fundamental, acessível e garantida a todos. Por fim, cumpre esclarecer que o fato de se reconhecer que o direito à moradia é um direito humano fundamental não significa que se esteja diante de um direito absoluto, completamente imune a restrições. Nenhum direito fundamental é absoluto, no sentido de ter imunidade à restrição. As restrições fazem parte da dinâmica existência dos direitos fundamentais, porque estes convivem dentro de um sistema, devendo-se harmonizar com outros direitos, valores, interesses ou bens juridicamente protegidos. Ao dispor no § 1º do artigo 5º da Constituição da República que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, o objetivo do Ordenamento Jurídico não foi 16 TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações privadas, p. 25-26. 14 afirmar o caráter absoluto e imune a restrição dos direitos fundamentais. Assim, o direito fundamental à moradia pode entrar em colisão com outros direitos fundamentais, ensejando restrições, a exemplo do que ocorre com a necessidade de desocupação de áreas de proteção ambiental, analisado por Ingo Sarlet.17. Todavia, apesar de sujeito a restrições, o direito à moradia não pode ser negado. Restrição não significa neutralização. Há sempre um cerne, um núcleo irredutível: o mínimo existencial. Assim, por exemplo, na efetivação de desocupação de área para fins de atendimento ao valor ambiental, também constitucionalmente protegido, dever-se-á verificar o motivo pelo qual aquelas pessoas e/ou famílias estavam naquele local. Se as pessoas que ocupam área de proteção ambiental pelo motivo de não terem outro lugar para morar, isto é, quando o motivo da ocupação da área ambientalmente protegida for a pobreza, deve o Poder Público assegurar o direito à moradia digna em local adequado como expressão da garantia do mínimo existencial. Por fim, cumpre destacar, neste tópico, que a positivação de um direito como direito fundamental não implica que o texto constitucional baste por si só. A concretização ou realização de um direito fundamental, ou sua efetiva proteção e promoção na prática depende da estruturação e manutenção de órgãos e procedimentos e prestação eficiente de serviços públicos, razão pela os direitos fundamentais, notadamente no que diz respeito à sua função prestacional, positiva, que exige condutas ativas do Poder Público, depende de políticas públicas consistentes, ou seja, de que atuação estatal seja bem 17 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão negativa (defensiva), p. 1037-1038. 15 planejada e conte com recursos financeiros compatíveis. Nessa linha, a realização prática dos direitos fundamentais depende muito das ações que serão tomadas nos espaços democráticos, o que não prejudica que o Poder Judiciário desempenhe algum papel no asseguramento do direito à moradia e no controle das políticas públicas habitacionais, até porque as margens de discricionariedade do Poder Executivo e do Poder Legislativo são bastante limitadas pelos princípios e regras constitucionais. Nessa perspectiva, restam evidenciadas as razões pelas quais se preferiu, neste trabalho, tratar a moradia como direito humano fundamental. Segue-se, então, com a demonstração da imbricação entre a moradia e a dignidade da pessoa humana. 1.2. DIREITO À MORADIA E DIGNIDADE HUMANA 1.2.1. Moradia digna: bem jurídico indispensável à dignidade humana A moradia é uma necessidade essencial para todo e qualquer ser humano. Dialogando com a filosofia e com a ética, encontra-se em Enrique Dussel valioso aporte no sentido de que as necessidades humanas, dentre as quais a de ter uma casa, fundamentam/legitimam uma ordem normativa, impondo certos conteúdos indispensáveis e estabelecendo limites intransponíveis ao exercício das liberdades. Nas palavras do autor: "A vida sobrenada, em sua precisa vulnerabilidade, dentro de certos limites e exigindo certos conteúdos: se a temperatura da Terra sobe, 16 morremos de calor; se não podemos beber devido a um processo de seca – como acontece aos povos subsaarianos – morremos de sede; se não podemos alimentar-nos, morremos de fome; se nossa comunidade é invadida por outra comunidade mais poderosa, somos dominados (vivemos, mas em grau de alienação que vão desde uma vida quase animal até a própria extinção, como no caso dos povos indígenas depois da conquista da América). A vida humana impõe limites, fundamenta normativamente uma ordem, tem exigências próprias. Impõe também conteúdos: há necessidades de alimento, casa, segurança, liberdade e soberania, valores e identidade cultural (funções superiores do ser humano e que consistem os conteúdos mais relevantes da vida humana). A vida humana é o modo de realidade do ser ético." 18 A adequação da moradia é uma condicionante de uma vida digna, estando ligada a aspectos materiais e imateriais. Dispor de um lugar com certa exclusividade serve tanto como abrigo das intempéries e proteção contra ataques de outros seres vivos, propiciando momentos de paz e tranquilidade para o descanso do corpo e da alma, quanto para assegurar um espaço próprio de intimidade/privacidade, imprescindível para exercício de uma vida privada e/ou familiar, fazendo desse ambiente um lar.19 Essa situação, reconhecida pelo ordenamento jurídico, faz da moradia um bem extrapatrimonial, isto é um bem da personalidade20, 18 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, p. 131-132. Como bem lembra Luiz Edson FACHIN (Teoria crítica do direito civil, p. 267), citando Michelle Perrot: "A casa é, cada vez mais, o centro da existência, o lar oferece, num mundo duro, um abrigo, uma proteção, um pouco de calor humano". 20 Segundo José Reinaldo de Lima LOPES (Cidadania e propriedade: perspectiva histórica do direito à moradia, p. 131), o direito à moradia inclui o direito de ocupar um lugar no espaço, assim como o direito às condições que tornam este espaço um lugar de moradia, de tal sorte que morar constitui um existencial humano. Pertinente aqui também é a passagem clássica de Adriano de Cupis (I diritti della personalità. Milano: Giuffrè, 1950, p. 18): "existem direitos sem os quais a personalidade restaria em uma atitude completamente insatisfeita, privada de qualquer valor concreto; direitos desacompanhados dos quais todos os outros direitos subjetivos perderiam qualquer interesse para o indivíduo, a ponto de chegar-se a dizer que, se esses não existissem, a pessoa não seria 19 17 juridicamente protegido e promovido21. Percebe-se, então, a ligação da proteção e promoção jurídica da moradia com a garantia e fomento da dignidade da pessoa humana. Luciano de Souza Godoy reconhece que não é fácil a conceituação de dignidade da pessoa humana, todavia, nem mesmo se necessita de uma conceituação precisa por se tratar de uma cláusula geral destinada à proteção da pessoa e definidora de um direito da personalidade de conteúdo aberto. As cláusulas gerais são conceitos jurídicos abertos, são janelas, pontes e avenidas dos textos normativos, permitindo o ingresso, no ordenamento jurídico de princípios valorativos, standarts, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos tipificadamente na legislação. Com a técnica do emprego das cláusulas gerais, evita-se a rigidez e o envelhecimento do sistema, que passa a ser aberto, transmitindo segurança a partir de uma facilidade de interpretação. 22 Neste prisma, diante da cláusula geral de proteção da dignidade humana, tem-se que, para que possa viver dignamente e desenvolver livremente sua personalidade23, todo o ser humano necessita de uma mais a mesma" (FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 44). 21 Norberto BOBBIO (Da estrutura à função, p. 10-21) destaca que, ao lado das funções tradicionais do Direito como ordenamento protetor-repressivo, os Estados contemporâneos ocidentais, mormente após o segundo pós-guerra estão assumido cada vez mais funções promocionais, mediante adoção de técnicas jurídicas de encorajamento de ações desejadas. Ou seja, além de servir a manutenção do status quo, o Direito também busca a transformação da realidade, na busca de um melhor padrão de justiça. 22 GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 48 e 10Ver também: COSTA, Judith Martins. O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro, p. 24-48. 23 Eroulths CORTIANO JÚNIOR, Jussara Maria Leal de MEIRELLES e Umberto PAULINI (Um estudo sobre o ofuscamento da realidade, p. 37-39), destacam que, em respeito ao Texto Constitucional de 1988, impõe-se a superação da compreensão que esgota a personalidade como aptidão para que o sujeito figure como titular de direitos e obrigações. Com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como valor central e unitário de todo o 18 moradia adequada. Na visão de Luciano de Souza Godoy24, a moradia é uma necessidade do indivíduo para desenvolver suas potencialidades no campo pessoal, familiar, profissional e afetivo: “Um indivíduo, para se desenvolver como pessoa, para nascer, crescer, estudar, formar sua família, adoecer e morrer com dignidade, necessita de um lar, de uma moradia, da sede física e espacial onde irá viver. E o acesso a essa moradia (...) há de ser patrocinada, tutelada e resguardada pelo Poder Púbico, incluindo também as situações em que o próprio indivíduo não puder implementá-lo por esforço próprio, isto é, com economias próprias”. ordenamento jurídico (artigo 1º, III da Constituição), a personalidade não pode ser tomada apenas como sinônimo de sujeito de direito, como reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual é exercida a titularidade. Faz-se necessário, pois, apartar as categorias personalidade (expressão da dignidade da pessoa humana) e subjetividade (capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações). A subjetividade jurídica está associada à faculdade de figurar no sistema como centro de imputação de direitos e deveres, o que não é exclusivo da pessoa humana, já que reconhecida às pessoas jurídicas e, em alguns casos, segundo opções de política legislativa, até em favor de entes despersonalizados. Já a personalidade é o valor característico da pessoa humana que atrai a disciplina jurídica própria das relações existenciais. A pessoa é e vale. Com a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, estatui-se uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa e da vida humana, submetendo toda a atividade social, econômica e científica a um novo critério de validade. Na mesma trilha, Rafael Garcia RODRIGUES (A pessoa e o ser humano no novo Código Civil, p. 3), concluindo que a personalidade não se resume à possibilidade de ser titular de direitos e obrigações, ou seja, ao conceito abstrato de pessoa próprio do ideário oitocentista, importando no reconhecimento que tocam somente ao ser humano, expressão da sua própria existência. Assim, a personalidade é vista como expressão do ser humano, traduzido como valor objetivo, interesse central do ordenamento e bem juridicamente relevante. Trata-se do reconhecimento da personalidade como valor ético emanado do princípio da dignidade da pessoa humana e da consideração pelo direito do ser humano em sua complexidade. De além-mar, Pedro Pais de VASCONCELOS (Direito de personalidade, p. 6), salienta que a pessoa humana constitui o fundamento ético-ontológico do Direito. Sem pessoas não existira Direito. O Direito existe pelas pessoas e para as pessoas. A pessoa é autora e atora no Direito. Autora porque o cria e constitui: organicamente na lei; interpessoalmente no contrato e no negócio; institucionalmente na cultura e no costume jurídico. Atora porque apenas as pessoas agem no Direito. As pessoas coletivas/jurídicas não passam de agrupamento de pessoas ou da institucionalização de seus fins. As pessoas coletivas/jurídicas não têm um papel igual ao das pessoas humanas, sendo apenas a elas análogas e instrumentais. São uma criação do direito, que assim como as faz nascer, pode também extingui-las, conforme entender conveniente, dentro de critério de razoabilidade e da eficácia. Já com as pessoas humanas não, é impossível ao Direito negar-lhes a personalidade e a dignidade. 24 GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, prefácio e p. 48. 19 Por sua vez, Ana Alice de Carli25 destaca que, na verdade, a moradia: “consubstancia atributo essencial da personalidade, pois é no locus doméstico que as pessoas desenvolvem seu caráter, dão seus primeiros passos rumo ao processo de crescimento espiritual, físico e intelectual. Enfim, é, primeiramente, no espaço do lar, concretizado num teto com paredes, portas, janelas e banheiro, que o indivíduo se sente protegido e seguro para iniciar o aprendizado da vida em relação. Enfim, a capacidade de enfrentar o “mundo da vida” com segurança, autoconfiança e dignidade pressupõe a existência de uma moradia com qualidade”. Logo, uma das dimensões da dignidade humana é a moradia, cuja tutela também deve ser integral, quer no sentido de ser objeto de atenção de todos os chamados “ramos” do Direito (Constitucional, Penal, Administrativo, Tributário, Financeiro, Civil, Econômico, Ambiental, Urbanístico, etc.), quer significando que deve abranger não apenas técnicas repressivas e de ressarcimento, mas também mecanismos preventivos contra lesões à/perda da moradia e promocionais do acesso e da melhoria das condições de moradia. A interdependência entre a moradia com outros bens jurídicos essenciais à dignidade da pessoa humana, explorada no próximo item, reforça o amalgama de sua tutela jurídica ao regime dos direitos humanos fundamentais. 25 CARLI, Ana Alice de. Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à moradia, p. 11. 20 1.2.2. Interdependência entre moradia e outros bens jurídicos essenciais à dignidade humana Há uma relação de interdependência entre a moradia adequada e outros bens juridicamente protegidos como direitos essenciais da pessoa humana: a vida, a saúde, a integridade física e moral, a intimidade, a liberdade, entre outros. A moradia, nas suas diversas manifestações (ocupação/utilização de um espaço com lastro em direito de propriedade, locação, concessão de uso, mera posse, direito real de moradia, etc.), é um bem referente à integridade física, psíquica e moral da pessoa, cujo respeito se dá pela via do exercício do direito à moradia minimamente condigna e adequada. 26 A proteção à moradia além da proteção do espaço em si em que ela é exercida inclui também a proteção aos bens móveis necessários à vida diária, já que eles integram o mínimo existencial, não se sujeitando sequer à penhora, exprimindo a funcionalização das situações patrimoniais às existenciais. As condições nas quais se exerce a moradia podem implicar violação da dignidade e de outros direitos que lhe são corolários, como ocorre: nos casos das pessoas em situação de rua27, quando não se 26 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação, p. 154-164. Anderson SCHREIBER (Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro, p. 81-83) coloca com precisão que "A nãohabitação ou habitação das ruas represente não apenas a perda da moradia, mas a perda da própria condição de pessoa. De fato, todo indivíduo tende naturalmente a delimitar um espaço próprio de ocupação que lhe possa servir de referência à própria identidade". O autor menciona relatos de pesquisadores sobre o comportamento de pacientes de determinado hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, sobre a constatação de práticas frequentes de "apego físico a bens pessoais" e a "criação de espaços individuais nos quartos coletivos e nas áreas de convívio comum", uma tentativa de retorno à condição de pessoa representada pelo mundo da casa, ainda que simbólico, em face do que significa a ida ao 27 21 oferecem albergues adequados dentro de um conjunto de ações de assistência social voltadas à emancipação do indivíduo; das pessoas que habitam em lugares inadequados, perigosos e/ou insalubres, como embaixo de viadutos, em morros com risco de desabamento, às margens de cursos d´água sujeitos à inundação; ou, ainda, daqueles que moram em cortiços ou outros tipos de habitação coletiva, privados de um mínimo de privacidade para si e para seus familiares. Diante de casos como estes, muito frequentes no Brasil contemporâneo, é importante salientar que a razão de ser de uma norma jurídica pode ser justamente a vigência de uma realidade diversa. Uma realidade que não se aceita como correta e que, pela função promocional do Direito, se busca transformar. Neste aspecto, é pertinente a advertência de Cristiane Derani de que a norma jurídica é formulada tendo em vista um determinado estado da realidade social que ela pretende reforçar ou modificar.28 E, no caso da realidade de déficit habitacional concentrado nas camadas mais pobre da população, há um estado da realidade social que o Direito procura transformar. A moradia envolve os direitos à saúde e à integridade física e, em casos extremos, o próprio direito à vida, afetados quando a pessoa não tem acesso a uma morada que lhe assegure o atendimento de suas necessidades básicas ou lhe assegure um mínimo de segurança porque desprovida de saneamento básico (serviços de água, esgoto e limpeza hospital psiquiátrico (passagem, muitas vezes sem volta, para a condição de indivíduo, dado impessoal e indiferenciado do mundo da rua, em que não há lugar para a pessoa e em que ninguém possui um nome próprio). Igualmente interessante e pertinente é a invocação da psicologia e filosofia existencialista que, de há muito constatou que "ser" é necessariamente "ser-no-mundo", "ser-em-algum-lugar", para lembrar que a própria condição humana depende de um referencial espacial particular. 28 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico, p. 22. 22 urbana) e/ou por ser exercida em edificação precária, improvisada, mal construída, sem estabilidade da estrutura física (materiais de baixa qualidade e/ou falta de emprego das técnicas construtivas corretas e/ou edificação em locais inadequados), ensejando graves riscos de acidentes graves ou fatais ou de aquisição de doenças. No plano da ética, mas com possibilidade de dar embasamento substancial ao Direito e aos direitos, Enrique Dussel defende que a vida é o princípio material universal que dá embasamento à moral."29 O pensamento de Dussel, no plano jurídico, encontra ressonância no princípio da dignidade da pessoa humana, cujo valor básico é o proteger e propiciar uma vida boa, digna de ser vivida, para cada um e para todos. Na colocação de Luiz Edson Fachin: "É nessa linha, pois, que a vida deixa de ser apenas o primeiro e mais fundamental direito tutelado pelo ordenamento jurídico para se tornar condição essencial de possibilidade dos outros direitos. Desenvolve-se aí a concepção da supremacia da vida e que, para ser entendida como vida, necessariamente deve ser digna."30 A liberdade da pessoa humana também é afetada quando a mesma não dispõe de um mínimo existencial, do qual faz parte uma morada digna. Neste sentido, expõe Eliana Maria Barreiros Aina31 que: "O ser humano, quando privado de suas necessidades básicas, fica acuado, enfraquecido na sua liberdade de consciência e de ação. Sem perspectiva de vida, de estabelecer projetos, ele se rende a qualquer benesse imediatista, às vezes em troca de seus bens mais valiosos, 29 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, p. 143: "Aquele que atua eticamente deve (como obrigação) produzir, reproduzir e desenvolver auto-responsavelmente a vida concreta de cada sujeito humano, numa comunidade de vida, a partir de uma "vida-boa" cultural e histórica (...) que se compartilha pulsional e solidariamente, tendo como referência última toda a humanidade. 30 FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 49. 31 AINA, Eliana Maria Barreiros. O fiador e o direito à moradia, p. 64. 23 como sua liberdade e seus direitos políticos, justamente, porque esses, para os que não vivem com um mínimo de dignidade, não apresenta um valor concreto". Na mesma direção, Amartya Sen32 destaca que um imenso número de pessoas em todo o mundo é vítima de várias formas de privação de liberdade, como as decorrentes de fome coletivas, subnutrição, falta de acesso a serviços de saúde, saneamento básico ou água tratada, que as fazem passar a vida lutando contra uma morbidez desnecessária e, com frequência sucumbindo à morte prematura. Assim, a privação de liberdade pode surgir não só de violação do direito ao voto ou de outros direitos políticos ou civis, mas de oportunidades inadequadas que algumas pessoas têm para realizar o mínimo do que gostariam, incluindo a ausência de oportunidades elementares como a capacidade de escapar da morte prematura, morbidez evitável ou fome involuntária. Enfim, dessas observações se constata que a pobreza afeta a liberdade, situando o indivíduo muito abaixo de qualquer definição razoável de decência humana. E que a pobreza é um grande obstáculo ao acesso a uma moradia adequada e, reflexamente, a um exercício mais pleno da liberdade. Daí a pertinência da lembrança de Ingo Wolfgang Sarlet33 de que mesmos pensadores liberais, como Cass Sunstein, justificam um direito a um mínimo existencial, com lastro não apenas no argumento de pessoas sujeitas a condições de vida desesperadoras não vivem uma boa vida, mas também a partir da premissa de que um regime genuinamente democrático pressupõe certa independência e segurança 32 33 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade, p. 29-50. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 97. 24 de cada pessoa. Por sua vez, Jacques Távora Alfonsin é enfático ao sustentar que sem a satisfação das necessidades vitais – entre as quais a moradia – não há como se considerar garantidos o direito à vida e à liberdade. O homem morto ou ameaçado de morrer deixa de ser livre, independentemente do contexto social no qual vive.34 Sem dúvida, o direito à moradia está inserido nesse denominado mínimo existencial. Daí a importância das ações de combate à miséria absoluta, fator de uma morbidez precoce e evitável, chamadas de ações de "empoderamentos". O empowerment demanda cidadãos ativos, conscientes e mobilizados, bem como serviços públicos efetivos, capazes de gerar desenvolvimento humano, transformar a vida e as expectativas das pessoas, algo que vai muito além do aumento da renda monetária porque envolve a inclusão social, política e econômica de um enorme contingente de pessoas e, como resultado, um aumento efetivo da liberdade real de cada uma delas. O rompimento com a omissão e a indiferença para com o sofrimento alheio, fazendo vivo o valor da solidariedade, é, sem dúvida, um grande desafio.35 Sob a ótica da garantia da liberdade pelo asseguramento de condições existenciais mínimas, as condições reais de moradia podem ser levadas em conta no diagnóstico, como meio estratégico de 34 ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso á terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia, p. 59-60. Aprofundando e provocando reflexão, na esteira das provocações de Peter SINGER (Ética prática, p. 233-246), pode se colocar a incômoda pergunta: até que ponto deixar morrer – inclusive por falta de condições de acesso a uma moradia adequada – não equivale a matar? Incômoda porque faz lembrar a omissão e a indiferença para com o sofrimento alheio. 35 A respeito do "empoderamento", conferir, entre outros: OAKLEY, Peter; CLAYTON Andrew. Monitoramento e avaliação do empoderamento. São Paulo: Instituto Pólis, 2003, e GREEN, Ducan. Da pobreza ao poder. São Paulo: Cortez: Oxfam Internacional, 2009. De igual sorte, mostra-se pertinente as ações de empoderamento/emancipação por meio da concessão de microcrédito tratadas em YUNUS, Muhammad. O banqueiro dos pobres. 25 enfrentamento do problema da exclusão36 e, também, como meta a ser alcançada, na medida em que assegurar acesso à moradia adequada importa em emancipação, em ganhos de liberdade. 37 Quanto a esse particular aspecto, a referência à Teoria da Justiça de John Rawls38 mostra-se obrigatória. Rawls entende que em uma sociedade pluralista, como se pretendem sejam as democracias contemporâneas, a ideia de justiça precisa ser funcional, sendo assim essencialmente política. E a ideia de justiça defendida por Rawls é aquela de justiça como equidade (fairness), traduzida em dois princípios: 1º) Cada pessoa terá igual direito à mais extensa liberdade básica compatível com semelhante liberdade para as outras; 2º) As desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas de tal modo que: a) possa razoavelmente esperar-se que sejam vantajosas para todos; b) sejam vinculadas a posições e cargos abertos a todos. Assim, na perspectiva de Rawls, em uma sociedade ordenada segundo padrões de equidade, as normas básicas de cooperação devem ser compatíveis com a realização de múltiplos fins pessoais, determinados pelos próprios indivíduos, reconhecidos como livres e iguais. E, para a consecução de qualquer objetivo de vida em uma sociedade pluralista, alguns bens primários devem ser garantidos igualitariamente. Esses seriam as condições mínimas da igualdade e, 36 O que se dá pela constatação de que a colocação de uma pessoa em uma moradia condigna, acompanhadas de outras ações de emancipação, facilita a sua inserção no mercado formal de trabalho, abrindo-lhe novas oportunidades. 37 Na consecução do projeto solidarista previsto na Constituição, é importante destacar a Emenda Constitucional n. 31, de 14 de dezembro de 200, que criou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, regulamentado pela Lei Complementar n. 111, de 06 de julho de 2001, com a finalidade de viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência. Os recursos desse fundo destinam-se a ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço da renda familiar e outros projetos ou programas de relevante interesse social, voltados à melhoria da qualidade de vida. 38 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 26 portanto, também da liberdade.39 É à busca desse mínimo de igualdade que o empoderamento dedica-se. Por essa razão, a tese de Rawls tem muita importância em Estados marcados pela intensa e injusta desigualdade social, como é o caso do Brasil na atualidade, pois serve de embasamento para o preenchimento substancial de categorias dogmáticas, dando direção à interpretação jurídica de normas de tessitura aberta. Nesta linha, não se pode olvidar que qualquer trabalho de inclusão, de emancipação e empoderamento deve partir da provisão de uma moradia digna. Não há como se fazer resgate social mantendo-se a pessoa numa residência precária, improvisada, insalubre, com riscos de desabamento, inundação, etc. Por outro lado, assegurar um espaço adequado para um lar familiar por si só não basta, devendo-se isto vir acompanhado de outras ações estratégicas nas áreas de educação, saúde, assistência social, capacitação para geração de renda própria, entre outras. Outra manifestação da interdependência e do inter- relacionamento entre os bens da personalidade se dá entre a moradia e os direitos ao sossego, à privacidade e intimidade. O sossego diz respeito à necessidade que todo ser humano de repousar, de descansar, o corpo e a alma. Daí a preocupação com os ruídos excessivos ou cheiros suscetíveis de incomodar os moradores, prejudicando-lhe a qualidade de vida, tirando-lhes a paz e a tranquilidade.40 39 KUNTZ, Rolf. A redescoberta da igualdade como condição de justiça, p. 148-152. Expõe claramente Waldir de Arruda Miranda CARNEIRO (Perturbações sonoras nas edificações urbanas, p. 13- 20) que o sossego juridicamente protegido concerne ao estado de quietação necessário ao descanso, repouso ou à concentração do homem comum. Trata-se de ausência de ruídos ou vibrações que possam causar incômodo, interferindo no 40 27 Portanto, garantir moradia adequada é garantia um recinto de paz e de tranquilidade. Quanto à privacidade ou intimidade pessoal e familiar, a moradia assegura o segredo doméstico, isto é, das atitudes íntimas da pessoa assumidas na sua habitação.41. Como pontua Sérgio Iglesias Nunes de Souza, recanto de isolamento físico e moral, é o lar o local onde cada ser humano pode atuar de forma mais livre, exteriorizando suas atividades mais pessoais e íntimas, como o descanso, o lazer doméstico, a leitura, a alimentação, o sono, a higiene, etc.42 Daí o princípio segundo o qual la vie privée doit être murée43, no sentido de que aspectos da intimidade devem ser protegidos, sendo uma das facetas dessa proteção a inviolabilidade do domicílio.44 trabalho ou descanso a que todos temos direito. Além de proteger o sossego dos indivíduos, resguarda-se a saúde e a segurança. Ruídos que impedem o repouso acabam por comprometer a saúde pela ausência de recuperação de energias, dentre outras coisas, bem como a própria segurança do indivíduo, pela queda dos reflexos, diminuição da capacidade de concentração e raciocínio em decorrência da falta do descanso necessário, expondo-o a perigos na operação de máquinas e veículos, por exemplo. O comprometimento do sono prejudica a recuperação da fadiga física, mental e nervosa. E o problema não tem por causa apenas o ruído, podendo derivar de manutenção de água empoçada propiciadora da proliferação de pernilongos ou emanações tóxicas, corrosivas ou malcheirosas. Por fim, ruídos e vibrações excessivas podem ter impacto nas estruturas das edificações, favorecendo desmoronamentos. 41 É por essa razão que razão que a Constituição enuncia em seu artigo 5º, inciso XI, que "a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação judicial" 42 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação, p. 204-206. 43 Em tradução livre: A vida privada deve estar murada, protegida, resguardada. 44 No âmbito da tutela penal, há o tipo do artigo 150 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal, para repressão da violação de domicílio. A fattispecie (descrição típica da conduta proibida) é assim enunciada: "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências". Esclarece o § 4º que a expressão casa compreende: "I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade". Porém, a tutela penal por si só não basta, devendo o Estado, e inclusive o Estado-Juiz proteger as pessoas, inclusive preventivamente, mediante provimentos da jurisdição civil. Neste campo de proteção jurisdicional civil, as importantes contribuições de Sérgio ARENHART, Tutela inibitória da vida privada. 28 Gilberto Giacóia, invocando os dizeres poéticos de Ferreira Gullar, lembra que a casa é o reino, o reduto, o castelo de todo homem, que precisa ser defendido contra o invasor despudorado, bem como lembra que atualmente, as esferas da intimidade e da privacidade são muitas vezes atingidas no cerne do que há de mais interno e personalíssimo, a pretexto de se alcançar objetivos sociais.45 Na colocação de Paulo José da Costa Júnior, a intimidade consubstancia-se não apenas em isolamento, mas resguardo das interferências alheias, de não ser a pessoa importunada pela curiosidade ou pela indiscrição de outrem, de poder desfrutar de sua paz de espírito e ver respeitados os atributos de sua personalidade frente aos outros indivíduos ou ao Estado. 46 Assim, mesmo sem adentrar nos problemas das novas ameaças à intimidade em decorrência de novos aparelhos tecnológicos de captação de áudio e imagens à distância, é fato que um grande número de pessoas, especialmente as moradoras de favelas e cortiços, não usufrui de condições mínimas de intimidade em razão da estrutura precária e da localização de suas moradas, muito próximas umas às outras, sem o isolamento visual e/ou acústico apropriado47 ou por não 45 GIACÓIA, Gilberto. Invasão da intimidade, p. 7. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só, p. 25-26 e 14. Para o autor: "O desejo de subtrair as nossas experiências íntimas ao controle do mundo exterior, interiorizando-as, justifica-se pelo fato de nada mais ser que o corolário de nosso anseio por uma personalidade independente. E ninguém ousará contestar que só uma personalidade independente é capaz de aprofundar as experiências comunitárias. Porque o significado dessas experiências emerge, com todo o seu peso e verdade, apenas quando elas possam ser postas em confronto com as experiências interiores. (...) Ademais, a privatividade, como solidão autêntica, é o único momento que nos oferece a possibilidade de uma visualização crítica das relações sociais. Sem essa perspectiva crítica, a participação de cada um no mecanismo de comunicabilidade social equivale a um nada". 47 Em respeito à privacidade, segurança, sossego e saúde dos vizinhos, a legislação estabelece várias restrições ao uso de bem imóvel, como as previstas nos artigos 1277 e 1301 da Lei 10.402, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil. Todavia, muitas dessas regras 46 29 se dispor de cômodos suficientes para todos os moradores.48 Percebe-se que ter uma moradia adequada não é simplesmente dispor de um teto sobre quatro paredes. Consoante alerta Eliane Adelina Pagani49, dispor de moradia adequada implica: ter um endereço para ser localizado; acesso às redes de saneamento básico (fornecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, drenagem, coleta de lixo) que proporcionam saúde e higiene; acesso à energia elétrica que proporciona conforto, conservação dos alimentos, informação e comunicação; acesso ao sistema de saúde na prevenção e tratamento de doenças; acesso à rede de transporte, que proporcional o deslocamento para o trabalho, escola, cultura e lazer. Enfim, dispor de uma moradia adequada é dispor de um lugar integrado dentro de uma cidade. Como saliente Angela Cassia Costaldello: “A cidade é o espaço da existência plural, com a inacabável profusão de grupos distintos, com toda espécie de relações humanas e materiais e, na contemporaneidade vislumbra-se – pelo avanço do exercício da cidadania e da busca pela vida digna – que o direito à cidade passe a ser encarado como um direito fundamental. Se assim entendido, a formulação encontra no texto da Constituição da parecem não ter efetividade nas "cidades informais", porque esquecidas pelo Poder Público, num país em que a maioria das unidades habitacionais está na "clandestinidade" no sentido de estarem à margem das regras do Direito oficial, muitas vezes indiferentes às necessidades da maioria das pessoas, tratadas como invisíveis porque despossuídas de bens patrimoniais. 48 Como, por exemplo, se dá nas chamadas "meia-água", casas de um cômodo do só, muitas delas habitadas por várias pessoas ou nas habitações coletivas, isto é, espaços ocupados simultaneamente por várias famílias. Neste ponto, deve ser lembrado que, seguido os círculos concêntricos vida íntima/vida privada/vida pública, mesmo dentro do lar e no convívio com os seus, qualquer pessoa necessita de um espaço reservado para o exercício de uma vida íntima, uma esfera que inclui aspectos pessoais de maior segredo, que a pessoa nunca partilha ou quase nunca partilha com outras, ou que comunga apenas com pessoas muitíssimo próximas (cf. VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direitos de personalidade, p. 80). Esfera íntima essa que fica prejudicada ou até mesmo anulada quando não se tem uma moradia adequada. 49 PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia, p. 220 e 116. 30 República Federativa do Brasil os baldrames necessários a traçar, ao menos num primeiro momento, o espectro do direito à cidade.”50 Daí que o problema social da habitação não é resolvido com a simples produção de unidades habitacionais, mas sim com a produção de unidades habitacionais em local servido por infraestrutura e serviços. Há necessidades de investimento sobre a terra para que ela se torne, efetivamente, um pedaço da cidade e ofereça condições viáveis de moradia. Daí a conexão entre o direito à moradia e o direito a cidades sustentáveis, previsto no artigo 2º, inciso I, da Lei 10.257/2001, denominada “Estatuto das Cidades”.51 Logo, a moradia se conecta com seu entorno próximo e remoto, ou seja, com o que vem sendo denominado de direito à cidade na dimensão de uma ocupação mais igualitária do espaço urbano, a exigir esforços contínuos de reversão desse processo de apartheid socioespacial característicos das "cidades partidas", de que nos fala Zuemir Ventura, entre outros52. Para tanto, devem ser aproveitados ao 50 COSTALDELLO, Angela Cassia. A supremacia do interesse público e a cidade, p. 248. Lei 10.257/2001 – Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. 52 Segundo a constatação de Luiz Edson FACHIN (A cidade nuclear e o direito periférico, p. 107): "A formação da concentração urbana revela (de um modo geral) um núcleo percorrido pelas principais artérias de sua própria dinâmica; diversamente, em seu entorno, distanciando-se desse centro (aqui tomado na acepção plural, não reduzido a um único conceito físico ou geográfico), forma-se um inchaço julgado periférico ou marginal. Nessa ordem de idéias, é a atividade do governar, do reinar, que põe os interesses na órbita central, excluindo ou remetendo para o entorno (para a vila, enfim) o que dela não faz parte". Por seu turno, Zuemir VENTURA (Cidade partida) apresenta os interessantes relatos das relações de vida entre os dois lados da cidade partida do Rio de Janeiro, resultado de uma política não de mera separação, mas sim de verdadeira exclusão para os morros e periferias dos cidadãos tidos como de segunda classe. O fenômeno carioca não é isolado. Curitiba, reconhecida internacionalmente pela sua qualidade de vida e boas práticas de 51 31 máximo, sem prejuízo de outros, os instrumentos legais instituídos pela Lei 10.257/2001 – Estatuto das Cidades, tais como os mecanismos de gestão democrática participativa da política de desenvolvimento urbano. Nelson Saule Júnior e Maria Elena Rodrigues destacam a respeito disso que: "As cidades informais caracterizadas pelas áreas onde se localizam as favelas, os loteamento populares irregulares e clandestinos nas periferias urbanas, nas áreas declaradas de proteção ambiental, as ocupações coletivas de área urbana, conjuntos habitacionais em condições precárias ou abandonados, os cortiços e habitações coletivas em condições precárias nas regiões centrais da cidade, são situações concretas que evidenciam a necessidade de constituir uma política urbana de promover a integração social e territorial da população que vive nesses assentamentos urbanos." Diante desse quadro, prosseguem referidos autores, o direito à moradia e o direito a cidades sustentáveis, reconhecidos pelos sistemas internacional e nacional de proteção dos direitos humanos são fundamentos para a promoção de uma política urbana que tenha como meta e prioridade a urbanização e regularização dos assentamentos precários visando a melhorar as condições de vida mediante implantação de rede de esgoto e tratamento dos resíduos, canalização dos córregos, educação ambiental, recuperação e reposição de áreas verdes, bem como a regularização fundiária visando a conferir uma planejamento não foge a esse modelo excludente, eis que utiliza, ao invés dos morros cariocas, o anel periférico, composto por vários municípios vizinhos, com graves precariedades de estrutura urbana e de serviços básicos, transformadas em cidadesdormitórios para alojar a população carente, a maior parte dela sujeita a deslocamentos diários para trabalharem na "Capital-modelo-de-planejamento-que-deu-certo" - imagem superlativa construída artificialmente a partir de estratégias de city marketing. A respeito, ver: GARCIA, Fernanda Ester Sánchez. Cidade espetáculo: política, planejamento e city marketing e MOURA, Rosa; KORNIN, Thaís. A internacionalização da metrópole e os direitos humanos. 32 segurança jurídica à população moradora desses assentamentos. 53 Consoante síntese de Eliane Maria Barreiros Aina: "a moradia é um valor de conceito amplo que envolve a garantia de um abrigo digno, salubre e que promova o bem-estar de seus ocupantes, de forma a concretizar a existência com dignidade dos indivíduos. Neste aspecto, encontra vertentes no direito à vida, no direito à saúde, na proteção da família54, no direito ao meio ambiente saudável, no acesso à propriedade, na renda mínima que possa garantir efetivamente um lar, em uma ordem econômica justa etc."55 Evidencia-se, pois, claramente a interdependência e o interrelacionamento do direito à moradia digna com outros direitos essenciais da pessoa humana; que o conceito de moradia é muito mais amplo e complexo do que o de "casa própria", não coincide e na maioria das vezes transcende à noção de patrimônio. Moradia é, ao mesmo tempo, local de refúgio da pessoa humana, como também espaço para sua integração com a família, com a cidade e com o mundo, com as demais pessoas, de forma que o indivíduo possa encontrar condições concretas para exercer suas liberdades, sua cidadania, sua dignidade, enfim, os pressupostos indispensáveis para desenvolver plenamente as potencialidades da sua personalidade. 53 SAULE JÚNIOR, Nelson; RODRIGUES, Maria Elena. Direito à moradia, p. 115-116. A rigor, nos dias de hoje melhor falarmos em proteção das famílias. Famílias no plural em razão de uma ordem jurídica estruturada a partir da dignidade da pessoa humana não se limitar a proteger (com ênfase nos aspectos patrimoniais) o modelo "tradicional" de família matrimonial e patriarcal, mas todos os tipos de manifestação de uniões de vida, pautadas no amor, constitutivas de um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade e realização espiritual de seus membros, que também se manifestam nas uniões estáveis entre homem e mulher ou entre pessoas do mesmo sexo ou até na criação e educação de filhos socioafetivos não oriundos de uma descendência genética, passando pela fraternidade socioafetiva, e assim por diante (exemplifica-se porque impossível abranger todas as possibilidades existentes, que existiram ou que existiram de vida familiar). Nesta leitura pluralista, o que o artigo 226 da Constituição do Brasil é que são as famílias, os vários tipos de família, os múltiplos arranjos familiares que formam a base da sociedade. 55 AINA, Eliane Maria Barreiros. O fiador e o direito à moradia, p. 88. 54 33 1.3. A PROTEÇÃO JURÍDICA DA MORADIA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: ENCONTRO DE DOIS CAMINHOS A proteção jurídica da moradia no Brasil contemporâneo é o resultado do encontro de dois caminhos que por muito tempo seguiram em paralelo por consequência da summa divisio56 Direito Público/Direito Privado. 1.3.1. O caminho do Direito Público No caminho do Direito Público, três momentos encontram-se nitidamente caracterizados: o primeiro, da consagração dos direitos individuais típicos do Estado Liberal; o segundo, do reconhecimento dos direitos sociais e o terceiro, da internacionalização e constitucionalização dos direitos humanos fundamentais. José Antônio Peres Gediel e Rosalice Fidalgo Pinheiro57 ensinam que, diante da necessidade de estabelecer a independência da pessoa e a intangibilidade dos direitos humanos, ensaiada pelo Renascimento, veio a lume a afirmação do Direito Natural. Colocando a pessoa para um momento anterior ao Estado e à sociedade, o jusnaturalismo obteve o pressuposto basilar para a ideia de direitos inatos, superiores e anteriores à sociedade e ao Estado. Assim, em contexto de reivindicações políticas, inspirando-se nas doutrinas do Direito Natural, é que foram dados os primeiros passos de afirmação dos direitos da 56 Em tradução livre: Divisão máxima, absoluta separação que constitui duas áreas incomunicáveis. 57 GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às Constituições: Os direitos fundamentais da personalidade, p. 63-64. 34 pessoa humana, na forma de direitos fundamentais proclamados pelas declarações de direitos de independência norte-americana, em 1776, e da Revolução Francesa, em 1789. Durante o liberalismo, o Direito ocupava-se basicamente de estipular garantias para que o domínio fosse exercitado sem ingerência externa e que a transferência de riqueza pudesse ter livre curso mediante a disciplina dos contratos. Para Luiz Edson Fachin, "os direitos fundamentais podem ter sua origem histórica em um momento no qual se consolida uma ordem de idéias que enfatiza a autonomia dos indivíduos frente ao Estado, com vistas a um rompimento com a racionalidade que marcava o Estado absolutista. Justificava-se a existência de direitos subjetivos a serem opostos contra o poder estatal, que se colocava acima dos indivíduos, mas que deveria sujeitar-se a limites." 58 No dizer de Gustavo Tepedino: "A preocupação com a pessoa humana, surgida com as declarações de direitos, a partir da necessidade de proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado totalitário, limitava-se, por isso mesmo, à tutela conferida pelo direito público à integridade física e a outras garantias políticas, não existindo nas relações de direito privado um sistema de proteção fora dos limites dos tipos penais".59 Portanto, esse é o primeiro momento dos chamados direitos 58 FACHIN, Luiz Edson. Constituição e relações privadas, p. 237. Prossegue sua lição, apontando que, nesse primeiro momento, os direitos fundamentais "eram exercidos contra um ente que se colocava em posição de superioridade em relação aos titulares dos direitos, a ele subordinado, mas que possuíam a garantia de um espaço de liberdade intangível contra o Estado." (...) "Em tal contexto, os direitos fundamentais de primeira geração se projetavam como liberdades públicas, no sentido de que eram exercidas frente ao Estado. Constituíam, sobretudo, liberdades negativas, que implicavam deveres de omissão por parte do Estado. Em outras palavras, as liberdades negativas são aí espaços de não intervenção. É do exame dessas liberdades que se revela a edificação da clivagem público e privado, uma vez que é precisamente no discurso dos direitos subjetivos que se estabelecerá os limites de atuação do Estado". 59 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade..., p. 34. 35 humanos fundamentais que florescem no solo do Direito Público. Porém, asseguradas a liberdade para estabelecimento de relações jurídicas interprivadas, a individualidade em face da polis e a igualdade formal, surgem no final do século XIX e no início do século XX vários movimentos reivindicatórios, nos quais as doutrinas socialistas tiveram grande repercussão. Em um quadro de intensas desigualdades materiais, pobreza e exclusão social, em razão do impacto da industrialização e dos grandes problemas sociais e econômicos gerados, as necessidades emancipatórias tornaram-se outras.60 Nesse contexto é que surge o segundo momento dos direitos humanos fundamentais, timbrado pela busca da igualdade material. Os primeiros documentos históricos de referência dessa nova etapa, contendo o discurso social da cidadania e emergência dos direitos à atuação estatal de modo a garantir um mínimo necessário e imprescindível para cada pessoa humana, são a Constituição mexicana de 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da então República Soviética Russa de 1918 e a Constituição alemã de Weimar de 191961, conformando um novo modelo de Estado, o Estado Social, em contraste com o Estado Liberal até então vigente. Em um movimento de acréscimo de funções, os direitos humanos fundamentais apresentam, a partir de então, dupla dimensão: além da 60 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 55 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 139. José Afonso da SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 160) refere-se ainda ao Manifesto Comunista, elaborado por Marx e Engels e publicado em janeiro de 1848 como plataforma da Liga Comunista, considerando-o o documento político mais importante na crítica socialista ao regime liberal-burguês, posto que, a partir dele, essa critica fundamentou-se em bases teóricas e em uma nova concepção da sociedade e do Estado, provocando também o aparecimento de outras correntes e documentos, como as encíclicas papais, a começar pela de Leão XII, Rerum Novarum, de 1891. 61 36 negativa (direito a não-interferência), a positiva (prestacional). Enquanto direitos de defesa (dimensão negativa), impõem deveres de abstenção erga omnes.62 Seu conteúdo imediato é a resistência a uma intervenção ou a exigência de que não haja intervenções por quem quer que seja. Enquanto direitos prestacionais (dimensão positiva), eles demandam a criação e estruturação de órgãos e procedimentos de proteção e/ou promoção do estado de coisa almejado e, em alguns casos, o fornecimento de bens ou serviços. O terceiro momento é fruto do pós-guerra. Em razão dos horrores produzidos pela Segunda Guerra Mundial, consolida-se um novo humanismo, tendo com caminho escolhido a constitucionalização, na seara interna de cada país, ao lado do direito internacional de direitos humanos63. Eis uma demonstração eloquente do sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, consoante bem colocado por Fábio Konder Comparato.64 A Carta italiana de 194765, a alemã (Lei Fundamental de Bonn) de 194966, a portuguesa de 197667 e a espanhola de 197868, fazem parte desse movimento. Tais Estatutos tiveram marcante influência na 62 Tradução livre: universal, que vincula a todos. Observa Flávia PIOVESAN (Direitos humanos e justiça internacional) que o direito internacional dos direitos humanos se torna cada vez mais presente e atuante, quer no sistema centralizado pela Organização das Nações Unidas, quer nos sistemas regionais europeu, americano e africano. 64 COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos, p. 56. 65 A Constituição Italiana de 1947 proclama, entre os princípios fundamentais, que todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei. 66 A Lei Fundamental de Bonn enuncia em seu artigo 1º, I, que a dignidade do homem é intangível; respeitá-la e protegê-la e obrigação de todos os poderes estatais. 67 A Constituição Portuguesa de 1976 estabelece em seu artigo 1º: "Portugal é uma República soberana baseada, entre outros valores, na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária". 68 Em seu artigo 10, 1, reza que Constituição espanhola de 1978 que a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social. 63 37 elaboração da Constituição brasileira de 1988, que explicitou no seu artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República 69 No plano supranacional, o ser humano é colocado como o valor mais importante a pautar os sistemas jurídicos internacionais e nacionais. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada e proclamada em 1948 pela ONU – Organização das Nações Unidas, seguida pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, são os documentos que marcam o início dessa fase, caracterizada pela busca da proteção e promoção da pessoa humana de maneira integral e unitária. Especificamente quanto ao direito à moradia, a sua previsão em instrumentos de âmbito internacional tem como marco inicial a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, pela Assembleia Geral da ONU – Organização das Nações Unidas, tendo o Brasil como um dos seus signatários. Declaração essa que em seu artigo 25, § 1º, enuncia que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis”. 69 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana, p. 82-83. Ana Lucia de Lyra TAVARES (A Constituição brasileira de 1988: Subsídios para os comparatistas), neste particular aspecto, aponta a grande influência da Constituição portuguesa de 1976, da Constituição espanhola de 1978, da Lei Fundamental alemã de 1946, além da Constituição peruana de 1979 e dos textos internacionais como a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 e dos Pactos Políticos e Sociais da ONU de 1966, na Constituinte 87/88 e na Constituição brasileira de 1988, fruto de uma transição democrática sem ruptura revolucionária e que procurou albergar as tendências do constitucionalismo democrático social. 38 No Sistema Global de Proteção Internacional dos Direitos Humanos capitaneado pela Organização das Nações Unidas, o principal instrumento normativo que trata do direito à moradia, ratificado pelo Brasil e por mais de 138 países, é o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 196670, que em seu artigo 11, § 1º, se reconhece o direito de toda pessoa à moradia adequada e comprometendo-se os Estados que dele tomaram parte a adotar as medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito. Obrigação esta cujo atendimento é monitorado pelo Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Apesar de se trabalhar com instrumentos de soft law71, adotando-se a sistemática da international accountability72, que se opera por meio de apresentação de relatórios que são apreciados pelo Comitê de Direitos Humanos além das comunicações interestatais em que um Estado parte pode alegar que outro incorreu em violação dos direitos humanos, tais mecanismos tem contribuído de forma significativa para a promoção e proteção dos direitos humanos.73 Como bem coloca Sidney Guerra, a respeito do power of embarrassement74, os constrangimentos gerados por uma condenação política e moral na arena internacional criam uma via estratégica que 70 O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, foi aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro, pelo Decreto Legislativo n. 226, de 1991, e pela Presidência da República, pelo Decreto n. 591, de 1992. 71 Em tradução livre, normas leves, sem previsão de sanção coercitiva no caso de descumprimento de seu preceito. 72 Em tradução livre: dever de transparência, de prestação de contas, para com a comunidade internacional. 73 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 226-236. 74 Em tradução livre: poder de criar embaraço, constrangimento. Embora não exista sanção no sentido jurídico, a condenação de um Estado no âmbito internacional pode ensejar consequências no plano político, causando constrangimentos políticos e moral ao Estado violador. 39 não pode ser desprezada para o fim de que os direitos humanos venham a ser cada vez mais respeitados.75 Não se pode desconsiderar a força que têm a mera submissão de um Estado ao monitoramento e ao controle da comunidade internacional no que diz respeito a como são tratados, em seu território, os direitos humanos. 76 No particular monitoramento das condições de moradia, a ONUHabitat tem desempenhando um papel relevante, recomendando vários indicadores, vinculados à Meta n. 11 do 7º Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, com horizonte temporal para 2020, que é de se alcançar uma melhora significativa na vida de pelos menos 100 milhões de habitantes de assentamentos precários, isto é, daqueles que não têm acesso à água potável, esgotamento sanitário, segurança da posse, durabilidade da moradia e/ou área suficientes para morar.77 75 GUERRA, Sidney. Direitos humanos na ordem jurídica internacional e seus reflexos na ordem constitucional brasileira, p. 113.. 76 Não obstante, é claro que o Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos ainda pode ser aprimorado. Nesta linha, propõe Fábio Konder Comparato: “É indispensável reforçar os poderes investigatórios da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, bem como criar, ao mesmo tempo, um tribunal internacional com ampla competência para conhecer e julgar casos de violação desses direitos pelos Estados-Membros, nos moldes do Estatuto de Roma de 1998, que instituiu o Tribunal Penal Internacional” (COMPARATO, Fábio Konder. Afirmação histórica dos direitos humanos, p. 541). 77 O Brasil, por exemplo, teve que responder em 2003, ao seguinte checklist (questionário) à ONU-Habitat: 1. O país ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais? (Resposta: Sim) 2.a. A Constituição do país tem promovido a plena realização dos direitos à moradia adequada? (Resposta: Sim) 2b. Se sim, menciona-se explictamente que todas as pessoas fazem jus a este direito? (Resposta: Sim) 2.c. Se sim, menciona-se esse direito a grupos específicos? (Resposta: Não) 2.d. Quais grupos específicos? (Resposta: prejudicado) 3. Existe alguma legislação que afete diretamente o alcance do direito à moradia? (Resposta: Sim). 4. A Constituição tem promovido o pleno e progressivo alcance aplicado à moradia adequada? (Resposta: Sim). 5.a. Existem impedimentos para a propriedade da terra pelas mulheres? (Resposta: Não). 5b. Existem impedimentos para a propriedade de grupos específicos? (Resposta: Sim). 5.c. Quais grupos particulares? (Resposta: Indígenas sob a tutela do Estado brasileiro). 6.a. Existem impedimentos para a herança ou posse das terras às mulheres (Resposta: Não). 6.b. Existem impedimentos para herança ou posse das terras a grupos específicos (Resposta: Sim). 6.c. Quais grupos específicos? (Resposta: Indígenas sob a tutela do Estado brasileiro). (MORAIS, Maria da 40 Além do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Brasil também ratificou as Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), sobre os Direitos das Crianças (1989), sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), sendo que todas elas reafirmam a censura de qualquer tipo de discriminação – de gênero, raça (rectius, etnia), idade e nível socioeconômico – com relação ao direito à moradia adequada.78 No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos – OEA, relacionamse diretamente com o direito à moradia, o artigo 1179 da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica80 e o artigo 34, item k81 da Carta da Organização dos Estados Americanos82, Piedade; GUIA, George Alex da; PAULA, Rubem de. Monitorando o direito à moradia no Brasil (1992-2004), p. 235). 78 Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial", artigo 5º, e, iii (ratificada pelo Brasil em 27.03.1968 e promulgada pelo Decreto 65.810, de 08.12.1969); Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, artigo 14.2 (h) (ratificada pelo Brasil em 01.02.1984 e promulgada pelo Decreto 4.377, de 13.09.2002); Convenção sobre os direitos das crianças, artigo 27, item 1 e item 3 (ratificada pelo Brasil em 24.09.1990, aprovada pelo Decreto Legislativo 28, de 14.09.1990 e promulgada pelo Decreto 99.710 de 21.11.90). Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, artigo 10 e artigo 21 (promulgado no Brasil pelo Decreto 50.215, de 28.01.1961). 79 "Art. 11. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento da sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas". 80 Ratificado pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, tendo sido aprovado pelo Decreto Legislativo de 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo Decreto 678 de 06 de novembro de 1992. 81 “Art. 34. Os Estados membros convêm em que a igualdade de oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los convém da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à consecução das seguintes metas básicas: (...) k) habitação adequada para todos os setores da população(...)". 82 Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 63, de 07 de dezembro de 1949. 41 Explicitada a vereda do Direito Público, um dos caminhos que levam à contemporânea proteção jurídica da moradia no âmbito do Estado brasileiro, iluminado pela construção dogmática e positivação dos direitos humanos fundamentais, cumpre abordar a outra senda, que por muito tempo, em razão da summa divisio, teve que seguir em paralelo: a rota dos direitos da personalidade, edificada no campo do Direito Privado. 1.3.2. O caminho do Direito Privado O início da edificação dos direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à proteção de sua dignidade e integridade, sob a denominação de direitos da personalidade, é relativamente recente83, surgindo somente no século XIX, a partir da elaboração das doutrinas francesa e alemã84. 83 Sem embargo daqueles que vislumbram uma proteção da personalidade na antiga actio iniuriarum romana, ação contra a injúria que, no espírito prático dos romanos, abrangia qualquer atentado à pessoa física ou moral do cidadão, hoje associado à tutela da personalidade humana (TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 26). Neste sentido, Rita de Cássia Curvo LEITE (Os direitos da personalidade, p. 152), indica os ensinamentos do professor espanhol José Castan Tobeñas, que defende que já em épocas antigas são encontradas manifestações, embora isoladas, de proteção da personalidade individual, punindo-se, severamente, ofensas físicas e morais, através das ações dike kakegoric dos gregos e da actio injuriarum dos romanos, esta última prevista na Lex Duodecim Tabularum. Todavia, a consciência ôntica e ética do homem como personalidade é algo desconhecido no mundo antigo greco-romano. Na Antiguidade, sobretudo entre os gregos, a essência do homem encontrava-se na humanitas, no ser político, no viver politicamente. O homem para a filosofia grega era um animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado (MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais, p. 45). E, note-se, um conceito de cidadania bastante restrito, pois excluía as mulheres, os escravos. Enfim, cidadão era o chefe de família, que tinha terras e escravos, e, por isso, tempo para participar da vida pública. 84 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, p. 32-34. FACHIN, Luiz Edson. 42 Na observação de José Antônio Peres Gediel e Rosalice Fidalgo Pinheiro85, a tutela setorizada pessoa não permitiu às codificações civis a imediata transposição daquilo que já estava proclamado no âmbito do Direito Público pelas grandes declarações de direitos. Levando em conta que o Código Civil tinha o caráter de "Constituição do homem privado", isso se revelou um problema porque, no âmbito do Direito Público, a proteção à pessoa humana em face de atentados perpetrados por particulares se dava exclusivamente ou quase que exclusivamente no campo do Direito Penal, insuficiente, não só em razão de a resposta penal limitar-se àquelas condutas que correspondesse com precisão aos tipos criminais previamente estabelecidos pela legislação, mas também porque, em se tratando de personalidade, o primordial não é punir aviltamentos já consumados, mas, sobretudo, impedir ofensas.86 Inicialmente, a tutela do ser, através dos direitos da personalidade, sofreu grandes resistências no campo do Direito Privado. É que, na esteira do Código Napoleão, inspiradas pelo liberalismo e pelo individualismo, as codificações civis do século XIX e início do século XX, dentre as quais se insere o Código Civil brasileiro de 1916, foram formatadas para prestar primordialmente salvaguarda patrimonial, tendo como instrumentos técnicos, desenvolvidos e aprimorados pela Pandectista alemã, os conceitos operacionais de relação jurídica e de direitos subjetivos. Esses conceitos operacionais apresentam como ponto de ancoragem a noção abstrata de sujeitos de Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 43. 85 GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às Constituições: Os direitos fundamentais da personalidade, p. 64. 86 A mesma crítica de extemporaneidade da tutela penal é cabível em relação à tutela cível pós-danos morais, mediante indenização em pecúnia, uma das primeiras respostas dadas pelo Direito Privado para as ofensas à personalidade. 43 direitos supostamente iguais entre si e traduzem técnica forjada pela a proteção do ter, garantindo a propriedade e a circulação de riquezas materiais.87 Com efeito, consoante aponta Jussara Meirelles88, manifesta-se translúcido que em "um sistema assente na estrutura formal da relação jurídica, as pessoa são consideradas sujeitos, não porque reconhecidas a sua natureza humana e a sua dignidade, mas na medida em que a lei lhes atribui faculdades ou obrigações de agir, delimitando o exercício de poderes ou exigindo o cumprimento de deveres. (...) Importa observar que essa inclusão da pessoa humana no conceito formal e abstrato de sujeito da relação jurídica faz nivelá-la às pessoas jurídicas as quais, face tão-somente a razões de ordem técnicacientífica, são também qualificadas de sujeitos de relações jurídicas". Enfim, há um "claro desprestígio da pessoa humana, reduzida a simples elemento da relação jurídica", sendo que, ademais, na "concepção clássica do Direito Privado, a pessoa humana é valorizada pelo que tem e não por sua dignidade como tal'." Estruturadas as codificações civis para assegurar tutela ao patrimônio e o trânsito de riquezas, com base na técnica da relação jurídica que tinha por objeto um bem material, e estando reduza a personalidade à mera capacidade jurídica (de figurar num dos polos da relação jurídica substancial tal qual a pessoa jurídica), o reconhecimento da categoria dos direitos da personalidade sofreu grande resistência de duas frentes. De um lado a oposição atacava que o discurso humanista era jusnaturalista e, a perspectiva inaugurada pela 87 Por isso, como bem apontado por Luiz Edson FACHIN (Constituição e relações privadas, p. 243-244), mais cedo ou mais tarde, a abstração do sujeito, colocado como mero elemento da relação jurídica, ao lado do objeto, do vínculo de atributividade e do fato propulsor, colocado como elemento unificador do sistema, implicará um crise de legitimação de um Direito que se afasta da realidade concreta, sem ter olhos para as desigualdades concretas e para a exclusão daqueles que não se inserem no modelo jurídico de proprietários. 88 MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na codificação civil brasileira, p. 89-90 e 94-95. 44 Escola Histórica alemã e pelo positivismo jurídico oitocentista era contra a toda e qualquer fundamentação metafísica no campo do Direito. Por outro, vários juristas, com destaque para Savigny89 e Jellinek90, compuseram a tese negativista dos direitos da personalidade, sustentando, como argumento contrário, que haveria uma contradição lógica em a pessoa ser, ao mesmo tempo, titular e objeto de um direito subjetivo.91 Em face dessas críticas, para transpô-las, num primeiro momento é retomado o conceito do ius in se ipsum.92 O direito à própria pessoa foi o modo encontrado para acomodar dogmaticamente a tutela da personalidade aos argumentos contrários. Por este olhar, a proteção jurídica dos bens essenciais à pessoa humana enquanto tal não se daria propriamente na forma de direitos subjetivos, mas como meros efeitos reflexos do direito objetivo, o qual reagiria contra a injusta lesão a determinados aspectos da personalidade, via mecanismo da responsabilidade civil. 93 Essa construção teórica, com o claro propósito de driblar as ofensivas dos negativistas, ainda confunde a personalidade como capacidade para ser titular de relações jurídicas e a personalidade como um conjunto de atributos à pessoa humana, objeto de proteção pelo 89 Savigny sustentava que a admissão dos direitos da personalidade levaria à legitimação do suicídio ou à automutilação. 90 Jellinek objetou à adoção da categoria dos direitos da personalidade sob o argumento de que a vida, a saúde, a honra não se enquadram na categoria do ter, mas do ser, o que os tornariam incompatíveis com a noção de direitos subjetivos, predispostos à tutela das relações patrimoniais. 91 GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às constituições, p. 64. TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 27. FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 44. 92 Em tradução livre: direito de dispor livremente de si. 93 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 29. 45 ordenamento jurídico.94 O segundo momento relevante desse processo de progressivo reconhecimento dos direitos da personalidade enfrenta a crítica à premissa das teorias negativistas mediante esclarecimento de que a alegada contradição lógica de que o sujeito de direito não pode ser, ao mesmo tempo, seu objeto, somente ocorre ao se considerar a personalidade como subjetividade jurídica, isto é, como capacidade de ter direitos e obrigações. Ao se tomar consciência de que personalidade tem uma segunda dimensão - a de conjunto de atributos da pessoa humana, inerentes e indispensáveis ao seu livre desenvolvimento e ao resguardo da sua eminente dignidade – a crítica perde força. Vista por este segundo ângulo, como um conjunto de atributos essenciais, a personalidade é considerada como um valor, constituindose um bem jurídico em si mesmo, digno de tutela privilegiada, podendo, sem qualquer incongruência lógica, ser objeto de direitos subjetivos oponíveis erga omnes95: os direitos da personalidade.96 No campo teórico o problema estava resolvido. Cumpria, porém, buscar o reconhecimento normativo à luz dos textos positivados. Em França, na falta de uma referência expressa aos direitos da personalidade no Código Napoleão, seus intérpretes buscaram o reconhecimento normativo dessa figura no dispositivo do artigo 1.382, referente à responsabilidade por atos ilícitos. É claramente insuficiente essa tutela repressiva e patrimonial a bens jurídicos atinentes à esfera do ser, cuja lesão não encontra 94 GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às constituições, p. 64. 95 Em tradução livre: em face de todos. 96 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 28-29. 46 equivalência exata no quantum da indenização, exercendo mera função de lenitivo do sofrimento (satisfação compensatória) juntamente com uma função punitiva do ofensor.97 Porém, dentro do contexto histórico, ela representou um inegável avanço no sentido de contribuir para a consolidação do reconhecimento dos direitos da personalidade. Seguindo a linha francesa, na Alemanha, deu-se um passo além. O BGB98 acolheu em seu § 823 a obrigação de indenizar nos casos de lesão à vida, à integridade corporal, à saúde e à liberdade, com o que se entenderam tipificados os direitos da personalidade à vida, à integridade física, à saúde e à liberdade. Na observação de José Antônio Peres Gediel e Rosalice Fidalgo Pinheiro, esses esforços doutrinários para encontrar o objeto dos direitos da personalidade fora de seu titular e de encerrar sua tutela na responsabilidade civil demonstram a insuficiência da moldura do direito subjetivo (técnica construída para os direitos patrimoniais) para sustentar esses direitos.99 O terceiro momento relevante do processo de reconhecimento da tutela jurídica à personalidade humana no campo do Direito Privado se dá pela defesa de um direito geral da personalidade em um ambiente de embates entre teorias pluralistas e monistas, e, por consequência, entre a técnica da tipificação e a da cláusula geral. O ponto frágil da adoção exclusiva da técnica da tipificação é o reconhecimento de um número limitado de direitos da personalidade, e, por conseguinte, dos bens tidos por essenciais à pessoa humana, que pode ensejar uma proteção jurídica insuficiente, em razão dos avanços 97 REIS, Clayton. Avaliação do dano moral, p. 121-138. Bürgerliches Gesetzbuch, Código Civil Alemão de 1900. 99 GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos códigos às constituições, p. 64-65. 98 47 da técnica e das formas de aviltamento da dignidade humana. Assim, melhor é a adoção de um sistema dual, que conjugue a técnica de proteção aos direitos legalmente tipificados (à vida, à integridade física, à liberdade, ao nome, etc.) com um direito geral da personalidade. Não se despreza a importância dos direitos típicos da personalidade, porque eles, como bem colocado por Pedro Pais de Vasconcelos,100 são formatados pelo legislador a partir das feridas que são repetidamente infligidas à dignidade das pessoas, são as cicatrizes dessas feridas, correspondendo a uma "memória do sistema". Sem se conformar a essas ofensas, mais rotineiras, o legislador vai construindo regimes específicos/típicos de defesa e de reação contra elas. Porém, deve-se evitar que o método da tipicidade gere exclusões, deixando sem tutela jurídica, todas as situações da vida que não se adaptem às molduras disponíveis. Daí a importância de se complementar a tutela típica com a técnica da cláusula geral. Em um sistema de relacionamento harmônico entre direitos de personalidade típicos e um direito geral (ou cláusula geral) de proteção à dignidade da pessoa humana, os direitos tipificados não são apresentados como numerus clausus (rol fechado/exaustivo), mas como enumeração exemplificativa (numerus apertus). São os casos paradigmáticos de tutela da personalidade, correspondente a situações especialmente exemplares e elucidativas. As lacunas são colmatadas ou preenchidas pelo direito geral, evitando que fiquem sem proteção as novas lesões da personalidade que o avanço da técnica e a criatividade 100 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade, p. 65-66. Para este autor, há um único direito da personalidade. Os chamados "direitos especiais da personalidade" não seriam direitos subjetivos autônomos, mas poderes que integram o direito subjetivo da personalidade. Todos esses poderes se agregariam num conjunto coerente, unificado pelo fim comum de defesa da dignidade do seu titular (obra citada, p. 67). 48 da maldade humana propiciam. 1.3.3. A confluência na constitucionalização O encontro do caminho do Direito Público e do Direito Privado se dá a partir da inserção da tutela da pessoal humana em sede constitucional. Maria Celina Bodin de Moraes101 aponta que a Alemanha foi o primeiro pais de tradição continental a seguir o caminho da constitucionalização do Direito Civil por meio do papel desempenhado por sua Corte Constitucional como guardiã dos direitos fundamentais dos indivíduos contra agressões provenientes tanto do Poder Público como de particulares. Na órbita da jurisprudência germânica, merece referência o considerado leading case sobre o tema, ocorrido em 1950: o Caso Lüth (BVerGE 7, 198), em cuja decisão deixou o Tribunal assentado três preceitos basilares, quais sejam: 1) que os direitos fundamentais não valem apenas nas relações entre o Estado e o(s) cidadão(s), mas também nas relações entre particulares, posto que são onipresentes em todos os "ramos do Direito"; 2) que os direitos fundamentais têm a estrutura de princípios, no sentido de que sua aplicação exige ponderação com outros princípios com ele colidentes; 3) que é próprio da estrutura normativa dos direitos fundamentais a propensão para colidir, tendo esta colisão que ser solucionada pela via da 101 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo, p. 107-109 49 ponderação.102 Merece menção também o "Caso Springer/Blinkfüer", julgado em 26 de fevereiro de 1969 pelo Tribunal Constitucional alemão, que também reconheceu que direito fundamental garantido pela Constituição alemã aplica-se, por igual, às relações sociais e econômicas públicas e privadas.103 A importância desses precedentes é o seu caráter de inovação. Antes deles, entendia-se que uma lide entre particulares só poderia ser resolvida pelo Direito Privado e, no âmbito deste, os direitos fundamentais não tinham qualquer importância. Outrora, na interpretação e aplicação de uma norma civilista, a Carta Magna não desempenhava papel algum, destaca Maria Celina Bodin de Moraes.104 O encontro dos direitos da personalidade com os direitos humanos fundamentais na Alemanha ocorreu para fortaleceu e consolidar a construção jurisprudencial a respeito da coexistência de um direito geral da personalidade com vários direitos especiais/típicos. Tal edificação jurisprudencial mostrou-se imprescindível em razão do BGB105 não prever um direito geral da personalidade, mas apenas as disposições do § 12, sobre direito ao nome, e o § 823, sobre a 102 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 106-108; BARCELOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 84-85; CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha, p. 227; MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 75-77; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, p. 61; STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 105, 139, 146-147; UBILLOS, Juan Maria Bilbao. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales, p. 315). 103 MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 83; CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas, p. 44. 104 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana, p. 107-109. 105 Bürgerliches Gesetzbuch, Código Civil Alemão de 1900. 50 responsabilidade civil emergente da lesão, dolosa ou negligente, à vida, ao corpo, à saúde, à liberdade, à propriedade ou outro direito de uma pessoa. Assim, considerada apenas a legislação civil, se, por um lado, não havia dúvida de que estavam legalmente tipificados os direitos à vida, à integridade física, à liberdade e ao nome, de outro, não havia segurança de que outros aspectos da personalidade estariam juridicamente protegidos. Então, no pós-guerra, com o advento da Grundgesetz – Lei Fundamental de Bonn – consagrando no seu § 1 do Texto Constitucional, a dignidade das pessoas, e, no § 2, o livre desenvolvimento da personalidade, tornou-se possível buscar a tutela da pessoa humana com embasamento em normas constitucionais. Assim, via conjugação dos mencionados preceitos constitucionais com os que já constavam no BGB, foi se construindo jurisprudencialmente um sistema dual, reconhecendo-se um direito geral da personalidade para além dos direitos típicos. Neste sistema, o direito geral da personalidade é um direito-fonte do qual irão se separando, novos direitos especiais, logo que se forem tornando necessários.106 O reconhecimento de uma cláusula geral de proteção à personalidade no Direito Alemão veio na esteira da discussão sobre a incidência dos direitos fundamentais/normas constitucionais nas relações entre particulares. Salienta-se, neste contexto, o debate entre duas vertentes teóricas: a teoria da eficácia mediata (ou indireta) e a teoria de eficácia imediata (ou direta). 106 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade, p. 61-62. GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos Códigos às Constituições, p. 68. 51 A teoria da eficácia mediata (ou indireta) foi formulada inicialmente por Güther Dürin, defendendo que a eficácia das normas constitucionais nas relações entre particulares dependiam de disposições da legislação infraconstitucional. Já a teoria da eficácia imediata ou direta, formulada por Hans Carl Nipperdey, e adotada pioneiramente pela 1ª Câmara do Tribunal Federal do Trabalho da Alemanha, entendia que os direitos fundamentais não visam somente garantir liberdades em face do Estado, mas também estabelecer as bases essenciais da vida social, incidindo nas relações entre particulares independentemente de interpositio legislatoris; o alcance dessa eficácia seria determinado no caso concreto, enquanto problema de colisão entre direitos fundamentais, mediante a ponderação dos interesses ou interesses constitucionalmente protegidos que estivessem em jogo.107 Prevaleceu, na Corte Constitucional alemã, a teoria da eficácia imediata ou direta das normas constitucionais garantidoras dos direitos fundamentais. A jurisprudência italiana seguiu os passos da jurisprudência alemã, reconhecendo também um direito geral da personalidade também com lastro em normas constitucionais: as dos artigos 2º e 3º da Constituição italiana de 1947 que proclamavam os direitos invioláveis do homem e o pleno desenvolvimento da pessoa humana.108 Portugal adota também esse sistema dual, mas sem demandar maior esforço de construção jurisprudencial ou necessidade de invocação de normas constitucionais, vez que o Código Civil português 107 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, p. 136-143 e 164-175. 108 GEDIEL, José Antônio Peres; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Dos Códigos às Constituições, p. 68. 52 trata de maneira expressa primeiro da tutela geral da personalidade (artigo 70º) e, depois, dos direitos especiais de personalidade (artigos 72º a 80º).109 Não obstante, é possível o reforço da tutela da personalidade com normas de mais elevado nível hierárquico, vez que o Texto Constitucional português de 1976 prevê no seu artigo 1º que a dignidade da pessoa humana é a base da República portuguesa, empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o que ganha reforço com o artigo 18 que estabelece que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. No Brasil, a ordem jurídica instaurada em 05 de outubro de 1988 apresenta o melhor arcabouço de textos normativos de sua história para a proteção dos direitos da personalidade a partir desse sistema dual – direitos típicos ao lado de um direito geral da personalidade. Exemplificativamente, pode-se mencionar, como fonte de direitos típicos, o artigo 5º, X, da Constituição, segundo o qual "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação"; as disposições dos artigos 11 a 21 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil – enunciando proteção aos direitos à 109 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de personalidade, p. 63. STJ 27.VI.95, BMJ 448, 378: I – A ordem jurídica portuguesa reconhece, designadamente através do artigo 70º do Código Civil, o direito geral de personalidade, compreendendo, complexivamente, a personalidade física e moral. – Além disso, quanto à aplicabilidade das normas/direitos constitucionais nas relações privadas, a Constituição Portuguesa alberga dispositivo cujo texto contribui muito para evitar controvérsias: o inciso 1 do artigo 18, que deixa claro que os direitos, liberdades e garantias fundamentais vinculam o poder público e as entidades privas, demonstrando inequivocamente a opção do ordenamento jurídico lusitano pela eficácia direta e imediata dos preceitos constitucionais nas relações interprivadas (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 421-422 e 1204-1214; MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Obtenção dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 122-125). 53 integridade física, ao nome, à honra, à imagem e à privacidade110, e, funcionando como cláusula geral111 (ou direito geral) de proteção à personalidade, embasada na interpretação sistemática a partir das disposições do artigo 1º, III, artigo 3º e seus incisos, e artigo 5º, § 2º do Texto Maior. O ponto central é a proclamação da dignidade humana entre os princípios fundamentais da Constituição brasileira de 1988. Esclarecimento terminológico que precisa ser feito neste momento da exposição diz respeito ao vários sentidos/significados que pode ter a dicotomia regras/princípios, espécies normativas. A explicação é importante porque o conteúdo do conceito de princípio e de regra (e a distinção entre ambos) variam de acordo com os critérios adotados, razão pela qual o intérprete deve prestar atenção para perceber em que sentido os termos princípios e regras estão sendo utilizados. Etimologicamente, a palavra princípio vem do latim principium, dando a ideia tanto de começo, início, origem, ponto de partida, como de verdade primeira que serve de fundamento ou base para algo. No campo do Direito, contudo, é adotada com vários significados, conforme o critério seguido para distingui-la da palavra regra. A saber: a) o da fundamentalidade: princípios são os mandamentos nucleares do sistema jurídico e, por isso, as regras devem estar 110 Luciano de Souza GODOY critica o fato de o legislador ter deixado de dar um passo adiante no Código Civil de 2002, fazendo a previsão dos direitos da personalidade por tipos, deixando de prever a proteção da personalidade por meio de uma cláusula geral (O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 52). Não obstante, a ausência de uma cláusula geral na legislação infraconstitucional não causa prejuízos ao se considerar que ela está contemplada em norma de hierarquia normativa superior – o artigo 1º, III, da Constituição – aplicável direta e imediatamente sobre todos os ramos do direito, inclusive sobre os campos de incidência do Código Civil. 111 Cláusula geral que assegura maleabilidade/versatibilidade de aplicação a situações novas e complexas não previstas tipificadamente pelo legislador. 54 em consonância com os princípios; nesse sentido, a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”112; e de Antônio Carlos Efing: “Dentro da atual racionalidade constitucional, princípio é fundamento, núcleo de condensação de bens e valores constitucionais, alicerce, base do sistema normativo, é fonte primeira e maior, é diretriz de interpretação, é elemento integrador do sistema jurídico, e o mais relevante, princípio é norma vinculante”.113 b) o do grau de generalidade e abstração: princípios são normas com alta carga de abstração e generalidade; regras são normas mais concretas e específicas; c) o da hierarquia: o critério da hierarquia decorre do critério da fundamentalidade: os princípios são considerados normas superiores dentro do ordenamento jurídico em comparação com as regras); d) o estrutural segundo a teoria de Robert Alexy: princípios são normas que prescrevem mandados de otimização, são mandamentos de otimização, podendo o preceito ser cumprido em diversos graus de intensidade, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes; os princípios identificando valores a serem preservados ou fins a serem alcançados em graus variáveis, por isso, os princípios convivem de maneira integrada, inter-relacionada e harmônica com outros 112 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 902. EFING, Antônio Carlos; INOMATA, Adriana; ROCHA, Ana Cláudia Loyola da; BOURGES, Fernanda Schuhli; DIEHL, Liliana Orth; SCATTOLIN, Rossana. O conceito de consumidor, p. 17. 113 55 princípios em sentido opostos, impondo limites recíprocos; já as regras tem estrutura normativa mais concreta, na medida em que especificam os atos que devem ser praticados para o cumprimento adequado da norma, logo, as regras são mandamentos definitivos que se aplicam por subsunção, no modelo tudo-ou-nada (all-or-nothing). Como, no modelo de Alexy, o critério para distinguir princípios e regras é estrutural, sem levar em conta a fundamentalidade, nem a generalidade, nem a abstração, tem-se que normas tradicionalmente classificadas como princípios, como a anterioridade da lei penal, seriam regras segundo o critério proposto pelo mencionado jurista alemão.114 Ao se proclamar, no Texto Normativo Maior, a dignidade da pessoa humana entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor de supremo alicerce da ordem jurídica, tem-se que o valor da dignidade e os direitos humanos fundamentais que lhe são corolários alcançam todos os setores da ordem jurídica, vinculando não apenas as condutas dos agentes públicos, no âmbito do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, mas também os atores privados, em toda e qualquer de suas relações intersubjetivas, merecedoras de proteção estatal se e na medida em que atendam à cláusula geral de proteção à pessoa humana. No contexto em tela, a palavra princípio, para se referir à norma jurídica constitucional de proteção geral à dignidade humana, é empregada seguindo o critério da fundamentalidade e da hierarquia. Quando do estudo da exigibilidade, a palavra princípio será usada no sentido dado por Alexy, como mandamento de otimização, sendo que, 114 BORGES, Rodrigo Lanzi de Moraes. O conceito de princípio: uma questão de critério; SILVA, Virgílio Afonso da Silva. A constitucionalização do Direito; SILVA, Virgílio Afonso da Silva. Direitos fundamentais. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 56 na ocasião, será feito o pertinente alerta. Seguindo no raciocínio, cumpre invocar Luiz Edson Fachin115, que observa que a dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, é um valor que foi edificado ao longo da evolução histórica da humanidade. Contemporaneamente, a dignidade da pessoa humana é compreendida como princípio fundamental do qual todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas. Sua validade e eficácia, como norma que foi elevada acima das demais regras e princípios não derivaram de algum direito ideal constituído previamente ao ordenamento jurídico e que foi válido perenemente. Ao contrário, decorreram da necessidade própria da integração e proteção da dignidade humana nos sistemas normativos. A Constituição brasileira enuncia em seu artigo 1º, III, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, estabelecendo uma cláusula geral de tutela à personalidade. Interpretando o impacto da positivação desse princípio, Gustavo Tepedino116 ensina que o indivíduo, elemento subjetivo basilar e neutro deu lugar à pessoa humana, para cuja promoção se volta a ordem jurídica como um todo. Em outro trabalho, argumentou referido jurista que: "A proteção constitucional da pessoa humana supera a setorização da tutela jurídica. Não há mais razão plausível para se distinguir entre os direitos humanos, no âmbito do direito público, e os chamados direitos da personalidade, na órbita do direito privado, bem como a tipificação de situações previamente estipuladas, nas quais pudesse incidir o ordenamento. No que tange especificamente à proteção da pessoa humana, mantém-se despercebida, as mais das vezes, pelos civilistas, a cláusula geral de tutela fixada pela Constituição, nos arts. 115 FACHIN, Luiz Edson. Análise crítica, construtiva e de índole constitucional da disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil brasileiro, p. 49. 116 TEPEDINO, Gustavo. Do sujeito de direito à pessoa humana, p. 340-342. 57 1º, inc. III, 3º, inc. III, e 5º, § 2º, à qual se agrega o § 3º, recémintroduzido, no sentido de se promover a dignidade independentemente dos confins do direito público e do direito privado. Com efeito, a escolha da dignidade humana, como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não-exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo Texto Maior, configura verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento." 117 A pessoa humana, portanto, e não mais o sujeito de direito neutro, anônimo e titular de patrimônio, é que importa. O indivíduo qualificado na concreta relação jurídica em se insere, de acordo com o valor social da sua atividade, sendo protegido pelo ordenamento jurídico segundo o grau de sua vulnerabilidade. Isso se dá por efeito da dignidade da pessoa humana constituir cláusula geral remodeladora das estruturas e da dogmática do Direito. Por conseguinte, opera-se a funcionalização das situações jurídicas patrimoniais às existenciais, realizando processo de verdadeira inclusão social, com a ascensão à realidade normativa de interesses coletivos, direitos da personalidade e renovadas situações jurídicas existenciais, desprovidas de titularidades patrimoniais, independentemente destas ou mesmo em detrimento destas. Enfim, ao encontrarem-se os caminhos do Direito Público (direitos humanos fundamentais) e do Direito Privado (direitos da personalidade) no constitucionalismo do século XX e do século XXI, consolida-se uma tutela integral da pessoa humana a partir do 117 TEPEDINO, Gustavo. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento jurídico brasileiro: sua eficácia nas relações privadas, p. 25-26. 58 reconhecimento da normatividade dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, incidentes em todos os "ramos" ou "setores" do cenário jurídico, nas relações Estado-cidadão ou nas relações interprivadas. Superada a rígida divisão, o que se tem, em verdade, são dois olhares, duas perspectivas sobre o mesmo fenômeno. Na observação de Gustavo Tepedino, os direitos humanos, entendidos como direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando se deseja proteção contra as arbitrariedades do Estado são, em princípio, os mesmos da personalidade, porém sob o ângulo do Direito Privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas.118 Assim, o direito à moradia é caracterizado na atualidade tanto como direito da personalidade e como direito humano fundamental, posto que essencial para a proteção da própria existência física e, para além dela, uma existência com um mínimo de dignidade. Nessa direção, a colocação de Ingo Wolfgang Sarlet119 de que: "sem um lugar adequado para proteger a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, a depender das circunstâncias, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. Aliás, não é por outra razão que o direito à moradia tem sido incluído até mesmo no elenco dos assim designados direitos de subsistência, como expressão mínima do 118 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 35. Ou, consoante assevera Luciano de Souza GODOY, Luciano de Souza (O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 55-56): "Em virtude da formulação da ideia da cláusula geral de proteção da personalidade, hoje em dia, os direitos humanos fundamentais tendem a ser considerados direitos da personalidade e vice-versa". 119 SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão negativa (defensiva): Análise crítica à luz de alguns exemplos, p. 1025. 59 próprio direito à vida e, nesta perspectiva (bem como em função de sua vinculação com a dignidade da pessoa humana) é sustentada a sua inclusão no rol dos direitos da personalidade." Portanto, resta demonstrado que, no âmbito do Direito Privado, a proteção da moradia, juntamente com outros bens essenciais à dignidade da pessoa humana, foi sendo paulatinamente construída como direito da personalidade e, no campo do Direito Público, como direito humano fundamental e que, atualmente, essas duas veredas se reúnem120 como expressão de uma tutela integral da pessoa humana de matriz constitucional121 que, do topo da hierarquia normativa, irradia seus efeitos a todos os setores do ordenamento jurídico, cobrindo todas as dimensões funcionais e todos os conteúdos que esse direito possa apresentar em determinada situação concreta. E é a partir dessa perspectiva que o direito humano fundamental à moradia deve ser compreendido, protegido e fomentado. 120 Trata-se, em verdade, de dois olhares, de duas perspectivas sobre o mesmo fenômeno. Consoante assevera Luciano de Souza GODOY (O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 55-56): "Em virtude da formulação da ideia da cláusula geral de proteção da personalidade, hoje em dia, os direitos humanos fundamentais tendem a ser considerados direitos da personalidade e vice-versa". Ou, na observação de Gustavo TEPEDINO (A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 35), os direitos humanos, entendidos como direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando se deseja proteção contra as arbitrariedades do Estado são, em princípio, os mesmos da personalidade, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas. 121 Na colocação de Rafael Garcia RODRIGUES (A pessoa e o ser humano no novo Código Civil, p. 33), tem-se que com o reconhecimento da pessoa como valor central e unitário do ordenamento jurídico, a tradicional dicotomia público/privado perde espaço, ampliando-se a tutela da pessoa humana, extrapolando as relações entre indivíduo e Estado para alcançar todas as relações privadas. É que a proteção do ser humano não é tarefa exclusiva do Estado, senão de toda a sociedade e em todas as esferas de atuação do indivíduo. 60 1.4. A POSITIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA: DESDE QUANDO? Não foi aprovado dispositivo que constava no anteprojeto de Constituição versando expressamente do direito à moradia. Trata-se do artigo 386 do anteprojeto de Constituição elaborado pela Comissão de Estudos Constitucionais (Comissão Afonso Arinos, 1986), de seguinte teor: "É garantido a todos o direito, para si e para sua família, de moradia digna e adequada, que lhe preserve a sua segurança, a intimidade pessoal e familiar". Diante da não inserção no Texto Maior promulgado em 05 de outubro de 1988 do artigo 386 do anteprojeto da Comissão Afonso Arinos surge a primeira indagação relevante: Seria esse um indicativo de que a moradia não é foi contemplada como um direito humano fundamental no Texto originário da nova Constituição brasileira? 122 Tal dúvida é potencializada com a edição da Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, por força da qual o direito à moradia foi expressamente elencado no artigo 6º, no rol dos direitos sociais, ao lado da educação, da saúde, do trabalho, do lazer, da segurança, da previdência social, da proteção à maternidade e à infância e da assistência aos desamparados. Ocorre que a proteção jurídica à moradia a partir do topo da hierarquia normativa – a Constituição – não demanda a existência de um dispositivo expresso específico. Isto porque proteger e promover o acesso à moradia digna para todos é algo que se impõe ao Poder Público e aos atores jurídicos privados em razão da República do Brasil 122 PANSIERI, Flávio. Do conteúdo à fundamentalidade do direito à moradia, p. 113. 61 estar assentada na dignidade da pessoa humana e ter por meta a construção de uma sociedade justa, livre e solidária, como fica claramente evidenciado pelo preâmbulo e pelos artigos 1º e 3º do Texto Maior. Por outro lado, vários tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é parte contemplam explicitamente referido direito. Portanto, não há como deixar de se considerar que moradia, desde 05 de outubro de 1988, é um direito humano fundamental. A redação do § 2º do artigo 5º da Carta Magna é claríssima, dissipando qualquer dúvida a respeito ao rezar que: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". A Carta Magna, ao explicitar no artigo 1º, III, que a dignidade da pessoa humana é alicerce supremo da ordem jurídica democrática deixou claro que este princípio fundamental da República alcança todos os setores da ordem jurídica, exigindo a tutela integral da pessoa humana, superadora da dicotomia Direito Público e Direito Privado, e que vá além da tipificação de situações previamente estipuladas nas quais pudesse incidir o ordenamento jurídico. Não são suficientes os mecanismos simplesmente repressivos ou ressarcitórios, ancorados na técnica lesão-sanção123, impondo-se a 123 Até porque, tal tutela de direitos da personalidade, no momento patológico, configura uma estranha patrimonialização de um bem jurídico existencial. A respeito, Sérgio Cruz Arenhart, abonando-se em Michel Miaille, faz severas críticas a essa forma tradicional de encarar os direitos da personalidade "patrimonializando-os". Nas suas palavras, isso significa: "a superação do ser pelo ter (ou quando menos, sua equivalência). A essência da pessoa humana é identificada com seu patrimônio. Trata-se de notória influência do econômico sobre o social, sendo que a existência humana é caracterizada por sua 62 adoção de instrumentos de tutela preventiva e promocionais que concretize a tábua axiológica eleita pelo constituinte que conferiu à cidadania e à dignidade da pessoa humana (art. 1º, I e III) a condição de fundamentos da República, além de adotar o princípio da igualdade substancial (art. 3º, III) ao lado da isonomia formal (art. 5º) que condiciona o enfrentamento e progressiva superação da pobreza e das desigualdades. 124 Por essa perspectiva, não há como negar que a ordem jurídica instituída em 05 de outubro de 1988, contempla a proteção jurídica da moradia na qualidade de direito humano fundamental porque imprescindível à satisfação das necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade. Nem poderia ser diferente, pois uma ordem jurídica que não estivesse ancorada na proteção dos bens essenciais à personalidade humana – e que, portanto, não dispensasse proteção jurídica à moradia a partir das normas constitucionais - não poderia ser tida como legítima. 125 Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos: "A personalidade é a qualidade de ser pessoa. Esta qualidade tem uma relevância jurídica crucial. Todo o Direito é construído a partir dela e a seu propósito. Mais próxima ou mais remotamente, está sempre a Pessoa, a pessoa humana, única e irrepetível, infungível, capacidade de acumulação de riqueza – e onde a pior sanção que se concebe é a agressão ao patrimônio alheio" (ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada, p. 6263). 124 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro, p. 52, 53 e 57. 125 Destaca Ingo Sarlet que, diante da indissociável relação entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, mesmo nas ordens normativas em que a dignidade não mereceu ainda referência expressa, não se pode concluir, só por isso, que ela não se faça presente na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, estando implicitamente reconhecida e assegurada na forma dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p. 88). 63 irrecusável, inevitável. Não há Direito sem pessoas, sem pessoas humanas, de carne e osso, com amor e ódio, alegria e tristeza, prazer e dor, bondade e maldade, solidez e fragilidade, concepção e morte. São elas o fundamento ontológico do Direito. Seria impossível que o Direito não se ocupasse delas". Mais do que fundamento ontológico, acrescenta-se que a pessoa humana é fundamento axiológico do Direito, pois, como colocado por José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz: "ser e valor estão intimamente ligados, em síntese indissolúvel, eis que o valor está, no caso, inserido no ser. O homem vale, tem a excepcional e primacial dignidade de que estamos a falar, porque é. E é inconcebível que um ser humano seja sem valer. Por isso mesmo, a personalidade é uma noção insuscetível de gradações ou restrições. A capacidade de direito, ao contrário, pode sofrer restrições ou limitações por parte da ordem jurídica digna desse nome, sobre a afirmação da fundamental dignidade de todos os seres humanos, daí decorre evidente corolário de igualdade essencial entre todos os homens".126 Além dos princípios e objetivos fundamentais da República (preâmbulo, artigo 1º e artigo 3º), o Texto de 05 de outubro de 1988, no artigo 7º, IV, ao tratar do salário mínimo, coloca a moradia entre as necessidades básicas da pessoa humana, reconhecendo integrar as condições materiais mínimas para uma vida com dignidade.127 De igual sorte, o inciso IX do artigo 23 da Constituição fixa como competência administrativa comum da União, dos Estados, do Distrito 126 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira Muniz. O Estado de Direito e os direitos da personalidade, p. 16. 127 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 350. Por seu turno, Carlos Ayres BRITTO (O humanismo como categoria constitucional, 98), pondera que o inciso IV do artigo 7º da Constituição, "determinante de que o salário mínimo seja fixado em ordem a atender aos seguintes itens de despesa do trabalhador e sua família: "moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social", designados como "necessidades vitais básicas" – "resultando óbvio que "necessidades vitais básicas" não comportam desatendimento. Têm que ser supridas como o epicentro mesmo da democracia social, por se tratar de lídima questão de honra humanista". 64 Federal e dos Municípios a promoção de programas de construção de moradias e melhorias das condições habitacionais. Previsão esta que vem ao lado daquelas atinentes à garantia do direito à saúde e à educação, evidenciando que a moradia tem o mesmo status jurídico do direito à saúde e do direito à educação, inequivocamente fundamentais à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Também devem ser trazidos à baila os dispositivos do artigo 5º, XXIII, do artigo 170, II e do artigo 182, § 2º, vinculando o exercício da propriedade a uma função social, bem como a previsão constitucional das usucapiões especiais urbanas (artigo 183) e rural (artigo 191), ambas condicionadas à utilização do imóvel para fins de moradia.128 Expressando a proteção à moradia na sua dimensão funcional de direito de defesa, isto é, contra interferências indevidas, a redação do inciso XI do artigo 5º é bastante enfática ao enunciar que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". Há uma ligação hermenêutica fortíssima entre a garantia constitucional da inviolabilidade do domicilio e o direito à moradia. Neste prisma, Ricardo Cesar Pereira Lira129 argumenta que se todos são iguais perante a lei (artigo 5º, caput, da Constituição) e se a casa é o asilo inviolável do indivíduo (artigo 5º, XI, da Constituição), então é evidente que todos têm direito a esse asilo e a essa inviolabilidade, restando claro que o direito à moradia/à habitação é assegurado pela 128 Na visão de Ingo Sarlet, tais dispositivos apontam para a previsão, ao menos implícita da moradia como um direito constitucionalmente protegido. (SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição, p. 150-151). 129 LIRA, Ricardo Cesar Pereira. Direito à habitação e direito de propriedade, p. 81. 65 Constituição. A Carta Magna de 1988 também contempla a moradia na regra do artigo 21, XX que outorga competência à União Federal para "instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação", a demonstrar ser esse um tema de importância fundamental para a tutela do Estado. No âmbito rural, prevê o inciso VIII do artigo 187 da Constituição de 1988 que a política agrícola será planejada e será executada levando em conta "a habitação para o trabalhador rural". E não é só: o artigo 47, § 3º, III, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias também é uma demonstração do valor superior da moradia para a ordem jurídica brasileira, ao excluir o imóvel que serve de moradia da contabilidade para fins de demonstração de insuficiência de patrimônio para fazer jus ao benefício de exclusão da correção monetária os débitos dos micros e pequenos empresários e produtores rurais. Por fim, tem-se o artigo 53, VI do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que assegura uma preferência aos combatentes da 2ª Guerra Mundial na aquisição da casa própria. Por outro quadrante, incidem com força constitucional as normas internacionais de direitos humanos atinentes à moradia a que o Brasil se vinculou. Ensina Flávia Piovesan130 que, pelas regras do §§ 1º a 3º do artigo 5º da Constituição do Brasil, reconhece-se a vigência automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos, cujos tratados, assim que ratificados, irradiam efeitos tanto na ordem jurídica internacional e interna, dispensando a edição de decretos de execução. A hierarquia 130 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 82-90. 66 constitucional dos tratados sobre direitos humanos decorre dos §§ 2º e 3º da Constituição.131 Neste prisma, há um grande manancial de textos normativos de Direito Internacional prevendo proteção jurídica à moradia, que colaboram para fundamentar a tutela jurídica desse bem fundamental à personalidade humana pelo Estado brasileiro. Pode-se começar esse inventário com a alusão ao artigo 17 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas - ONU132, prevendo a garantia contra interferências arbitrárias no local de moradia. Enuncia o § 1º do referido artigo 17 que: "ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra e reputação". Em seguida, o § 2º estabelece que: "toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas". No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, existe dispositivo equivalente, o artigo 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica133 de seguinte teor: "1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao 131 Por outro lado, se o conteúdo do tratado internacional não versar sobre direitos humanos, há a exigência do aludido decreto, pois a incorporação não é automática, ante ao silêncio constitucional. A hierarquia infraconstitucional dos demais tratados decorre do artigo 102, III, b, da Constituição, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, mediante recurso extraordinário, "as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal". 132 Ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991 e promulgado pelo Decreto 592, de 06 de dezembro de 1992. 133 Ratificado pelo Brasil, em 25 de setembro de 1992, tendo sido aprovado pelo Decreto Legislativo de 25 de setembro de 1992 e promulgado pelo Decreto 678 de 06 de novembro de 1992. 67 reconhecimento da sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas". O artigo 11, § 1º, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas134, por seu turno, enuncia que: "Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequada, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito (...)". Merece também referência o artigo 34, item k da Carta da Organização dos Estados Americanos135, proclamando que: "Os Estados membros convém em que a igualdade de oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los convém da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à consecução das seguintes metas básicas: (...) k) habitação adequada para todos os setores da população(...)". Portanto, por força da previsão do § 2º do artigo 5º da Constituição de 1988, e diante dessas previsões de tratados internacionais de direitos humanos a que o Brasil tomou parte136, 134 Ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 226, de 12 de dezembro de 1991 e promulgado pelo Decreto 592, de 06 de dezembro de 1992. 135 Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 63, de 07 de dezembro de 1949. 136 Há outros diplomas internacionais tratando sobre a proteção e promoção da moradia em favor de determinados grupos vulneráveis que podem ter incidência em determinada 68 incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio como normas constitucionais, não há dúvida de que a moradia, desde 05 de outubro de 1988, é tida como um direito humano fundamental. Como o direito à moradia já era contemplado desde o início da vigência do Pacto de 1988 como direito humano fundamental protegido e promovido pelo Estado brasileiro, tem-se que a edição da Emenda Constitucional n. 26/2000 veio apenas para não deixar qualquer margem de dúvida acerca do status de direito constitucional à moradia. Poder-se-ia argumentar que a positivação expressa do direito à moradia no artigo 6º da Constituição seria uma estratégia simbólica, com a intenção de amainar cobranças e pressões por uma atuação mais marcante do Governo brasileiro em formular e implementar políticas públicas que assegurem efetividade137 ao direito à moradia digna. O uso meramente simbólico da legislação visa a dar a impressão de que providências estão sendo tomadas pelo Poder Público. Utiliza-se a Constituição como álibi, como fachada, para iludir, dissimular, e, com isso, amainar as cobranças de movimentos sociais por providências concretas em defesa, proteção e promoção de determinado direito fundamental. Não é esse o caso da Emenda Constitucional n. 26/2000 porque o situação concreta, como a "Convenção internacional sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial", artigo 5º, e, iii (ratificada pelo Brasil em 27.03.1968 e promulgada pelo Decreto 65.810, de 08.12.1969); a "Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, artigo 14.2 (h) (ratificada pelo Brasil em 01.02.1984 e promulgada pelo Decreto 4.377, de 13.09.2002); a "Convenção sobre os direitos das crianças", artigo 27, item 1 e item 3 (ratificada pelo Brasil em 24.09.1990, aprovada pelo Decreto Legislativo 28, de 14.09.1990 e promulgada pelo Decreto 99.710 de 21.11.90). 137 Distingue-se eficácia e efetividade de um direito. O estudo da eficácia é o estudo dos efeitos normativos de um direito positivado. Já a análise da efetividade contempla se a previsão normativa de um direito realiza-se ou não concretamente, isto é, no mundo dos fatos. 69 símbolo – "a moradia" – por ela inserido no rol dos direitos sociais do artigo 6º da Constituição trouxe um reforço à significação normativa, no sentido de favorecer a implementação de medidas concretas em favor da ampliação do acesso à moradia digna, mormente para as camadas mais pobres da população, que não têm condições econômicas de resolver por si suas necessidades habitacionais. Ademais, estando a edição da Emenda Constitucional n. 26/2000 em um contexto de reivindicações por melhores políticas públicas na área da moradia, notadamente da habitação social, tendo por alvo as pessoas mais carentes, como bem explicitam Nelson Saule Júnior e Maria Elena Rodriguez138, há chances concretas da inserção expressa da moradia no rol dos direitos sociais do artigo 6º do Texto Maior servir a fins emancipatórios, ao invés de reduzir-se a mero simulacro ou estratagema de legislação simbólica139. Em face do exposto, conclui-se que, se já era possível compreender o direito à moradia digna como um direito previsto na Constituição brasileira desde a sua promulgação (05.10.1998) 140, depois do advento da Emenda Constitucional n. 26 é que não há mesmo mais espaços para se refutar tal condição. Enfim, a consagração do direito à moradia como um direito humano fundamental resta explicitada. Portanto, a moradia digna deve ser tratada como um direito ao qual são asseguradas proteção e força 138 SAULE JR, Nelson; RODRIGUEZ, Maria Elena. Direito à moradia, p. 110. A respeito do uso da legislação constitucional como mero simulacro, destaca-se o trabalho de Marcelo NEVES, A constitucionalização simbólica. 140 Em sentido contrário, por exemplo, Rui Geraldo Camargo Viana (O direito à moradia, Revista de Direito Privado n. 2, p. 9, São Paulo: abr./jun. 2000) entende que o direito à moradia não se mostrava existente antes da Emenda Constitucional n. 26, que veio a suprir uma lacuna. (GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário, p. 37). 139 70 normativa reforçada ante a sua estreita ligação com a dignidade da pessoa humana. 1.5. DAS CLASSIFICAÇÕES RÍGIDAS AO RECONHECIMENTO DA PLURALIDADE DE CONTEÚDOS E FUNÇÕES 1.5.1. CLASSIFICAÇÃO GERACIONAL Uma abordagem muito reiterada é aquela que classifica os direitos humanos em gerações, isto é, como fases de um processo de afirmação histórica desse direito. Tal proposta foi lançada pelo jurista francês de origem checa, Karel Vasak, em conferência proferida no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, no ano de 1979141, e que serviu de inspiração para a doutrina bastante aclamada do constitucionalista cearense Paulo Bonavides.142 Neste prisma, a primeira geração englobaria os chamados direitos da liberdade, com conteúdo de prestações negativas, nas quais o Estado deve proteger a autonomia do indivíduo. São também chamados de direitos de defesa, possuindo o caráter de distribuição de competência entre o Estado e as pessoas humanas, e, assim, limitando reciprocamente tais competências. Também são denominados de direitos ou liberdades individuais. Essa primeira geração tem como marco as revoluções liberais do século XVIII na Europa e Estados 141 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional, p. 82: Cada geração foi associada, na Conferência proferida por Vasak, a um dos componentes do dístico da Revolução Francesa: “liberté, egalité et fraternité” (VASAK, Karel. For the Third Generation of Human Rights: The Rights of Solidarity”, Inaugural lecture, Tenth Study Session, Internacional Institute of Human Rights, July 1979; VASAK, Karel. The internacional dimension of human rights, vols. I e II. Paris: Unesco, 1982). 142 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 516-526. 71 Unidos, as quais visavam restringir o poder absoluto do monarca, colocando limites à ação estatal. Traduzem o valor liberdade.143 A segunda geração dos direitos humanos fundamentais representa a modificação do papel do Estado, exigindo-lhe um papel mais ativo, além de mero fiscal das regras jurídicas. Em razão da influência das doutrinas socialistas, passou-se a aceitar que a efetiva concretização da liberdade e da igualdade demanda uma atuação mais marcante do Estado na concretização daquilo que Celso Lafer denominou de “direito de participação do bem-estar social”. Nesse momento, são reconhecidos os direitos sociais, também de titularidade individual e exercidos contra o Estado, como o direito à saúde, educação, previdência social, habitação, entre outros que demandam prestações positivas do Poder Público para seu atendimento, mediante a ampliação dos serviços públicos. São também denominados direitos de igualdade por garantirem às camadas mais pobres da sociedade a concretização das liberdades abstratas reconhecidas nas primeiras declarações de direitos. Esses direitos humanos de segunda geração seriam frutos das lutas sociais na Europa e Américas, tendo como marcos a Constituição mexicana de 1917, que regulou o direito ao trabalho e à previdência social, a Constituição alemã de Weimar de 1919, que na sua segunda parte estabelece os deveres do Estado na proteção dos direitos sociais, e no Direito Internacional, o Tratado de Versailles, que criou a Organização Internacional do Trabalho, reconhecendo direitos dos trabalhadores. 143 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional, p. 82-84. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 516-518. 72 No Brasil, os direitos de segunda geração são contemplados pela primeira vez na Constituição de 1934.144 A terceira geração dos direitos fundamentais abarcaria aqueles de titularidade coletiva, da comunidade, como o direito ao desenvolvimento, à paz, o direito à autodeterminação dos povos, o direito ao meio ambiente equilibrado. São, por isso, chamados de direitos da solidariedade145. Dentro dessa classificação rígida, o direito à moradia, em sua dimensão prestacional, tendo por conteúdo medidas de proteção e promoção exigíveis do Poder Público, seria um direito humano fundamental de segunda geração, um direito social. Ocorre que essa abordagem geracional é alvo de críticas por se passível de transmitir erroneamente o caráter de sucessão de uma geração de direitos por outro, quando o que ocorre é, ao contrário, um processo de acumulação de direitos.146 144 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional, p. 84-85. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 519. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos, p. 127. 145 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional, p. 85. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, p. 523-524. Paulo Bonavides, arrimando-se na proposta de Vasak, defende ainda o nascimento de uma quarta geração dos direitos humanos, resultante da globalização, que contemplaria o direito de participação democrática (democracia direta), o direito à informação e o direito ao pluralismo. 146 Como bem pontua Ana Maria D’Ávila LOPES (Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar, p. 62), com o surgimento de uma nova “geração”, não há caducidade dos direitos das gerações anteriores. O reconhecimento progressivo de novos direitos tem caráter cumulativo, de complementação e não de alternância. Portanto, deve-se preferir o termo “dimensão”, para não ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma “geração” por outra posição, como bem observa Ingo Wolfgang SARLET (Eficácia dos direitos fundamentais, p. 59-66).146 Na mesma linha, Flávia PIOVESAN (Temas de direitos humanos, p. 36-437). Diante de tais colocações, o próprio Professor Paulo BONAVIDES (Curso de Direito Constitucional, p. 516) que em sua obra emprega o termo “geração”, admite que o vocábulo “dimensão” substitui aquele com vantagem lógica e qualitativa, afirmando que os direitos de primeira geração (direitos individuais), os de segunda (direitos sociais) e os da terceira (direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade) permanecem eficazes, são infra-estruturais; formam a pirâmide cujo ápice é o 73 Além disso, a classificação geracional estimula uma visão fragmentada do universo dos direitos humanos, dando embasamento para um tratamento diferenciado aos direitos de uma geração em detrimento dos de outra, quer para legitimar abusos contra a liberdade, quer para se aceitar imensas desigualdades no âmbito dos direitos sociais147. Com efeito, é imprescindível se ter uma visão integral do conjunto de direitos humanos, todos essenciais para uma vida humana digna. Assim, a visão fragmentada das gerações deve ser afastada. direito à democracia. Fazendo acerto terminológico, o presente trabalho, acolhendo a orientação da doutrina acima mencionada, adota a expressão “dimensão” ao invés de “geração”. Portanto, quando no texto aparecer a palavra “geração”, justificar-se-á seu emprego por tratar-se de citação de autor que emprega tal terminologia. Por outro lado, há que se destacar que o processo de reconhecimento dos direitos é de cunho dinâmico e dialético, marcado por avanços, retrocessos e contradições, ressaltando a dimensão histórica e relativa dos mesmos. As diversas dimensões marcam a evolução de um processo de reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais revelando sua natureza materialmente aberta e mutável, ainda que seja possível observar certa permanência e uniformidade nesse campo, como ilustram os tradicionais exemplos do direito à vida, da liberdade de locomoção e de pensamento, tão atuais nos dias de hoje quanto eram no século XVIII, como bem aponta SARLET (Eficácia dos direitos fundamentais, p. 61). Outro aspecto a ser considerado é que este processo evolutivo não se dá apenas pela positivação de “novos” direitos no texto da Constituição, mas também por meio de atualização hermenêutica que reconhece novos conteúdos e funções para alguns direitos já tradicionais. Exemplo disso é o que está acontecendo com a proteção da liberdade, da igualdade, da vida, da intimidade e de outros valores essenciais à dignidade da pessoa humana, revitalizada em face de novas agressões decorrentes do crescente controle dos indivíduos por meio dos recursos de informática (bancos de dados, redes de computadores, registros informatizados de compra com cartão de crédito etc.), de novas técnicas de investigação criminal (interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário e de correspondência etc.), das ameaças da poluição ambiental, dos avanços científicos (por exemplo, a recente controvérsia em torno da fabricação de “clones humanos”, as questões envolvendo as novas técnicas de fecundação artificial, mudança de sexo etc.) (SARLET, Eficácia dos direitos fundamentais, p. 61). 147 Citando Antonio Augusto Cançado Trindade, André de Carvalho RAMOS (Teoria dos direitos humanos na Ordem Internacional) afirma que a visão fragmentada ou geracional dos direitos humanos serviria a justificar vários governos que, sob a bandeira de buscarem promover direitos econômicos e sociais, minimizariam os direitos civis e políticos, ou, ao contrário, embasariam postura de governos que sustentam a tese de que os direitos de segunda geração não partilhariam do mesmo regime jurídico de direitos de primeira geração, estando contemplado em normas meramente programáticas, de pouca vinculação. 74 De igual sorte, merecem críticas a classificação dos direitos humanos fundamentais que os aparta em dois grandes grupos: os direitos, liberdades e garantias (ou direitos civis e políticos), de um lado, e os direitos econômicos, sociais e culturais, de outro. 1.5.2. DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS VERSUS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS Por forte influência da doutrina constitucionalista portuguesa em terras brasileiras, são utilizadas por aqui com certa frequência as expressões “direitos, liberdades e garantias” para tratar de posições juridicamente protegidas a determinado cidadão em face do Estado na qualidade de direitos fundamentais. Trata-se de uma classificação que leva em conta pretensas diferenças na estrutura jurídica de cada uma dessas categorias. O significado da trilogia direitos, liberdades e garantias, usada no Constituição lusitana de 1976148, é explicado por Canotilho e Vital Moreira149, bem como por Jorge Miranda150 e por José Carlos Vieira de Andrade151. A fonte da construção de sentido é a teoria dos estados de 148 A Constituição brasileira de 1988 não usou a terminologia “direitos, liberdades e garantias versus direitos econômicos, sociais e culturais”, reunindo no Título II, denominado “direitos e garantias fundamentais” os nomeados “direitos e deveres individuais e coletivos” (Capítulo I), “direitos sociais” (Capítulo II), direitos e garantias decorrentes da “nacionalidade” (Capítulo III), “direitos políticos” (Capítulo IV) e direitos e garantias dos “partidos políticos” (Capítulo V). Porém, como se verá, o estudo da doutrina e do Direito Positivo mostra-se útil porque já fornece pistas para a construção de uma classificação que, ao levar em conta as funções, conteúdos e estruturas, dos diversos direitos humanos fundamentais, em sua perspectiva de direitos subjetivos, esclareça as peculiaridades dos respectivos regimes jurídicos a que estão submetidos cada uma das categorias. 149 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, p. 109-11. 150 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais, p. 73-107. 151 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 186-212. 75 Georg Jellinek152, também denominada de doutrina dos direitos subjetivos públicos, a qual teve grande acolhida entre os constitucionalistas da Europa ocidental na segunda metade do século passado. Trata-se de uma classificação de posições jurídicas do indivíduo em face do Estado, em sucessivos estatutos jurídicos. A primeira posição, na visão de Jellinek, seria a do status subiectionis ou do estado passivo, em virtude da subordinação ao Estado, já que uma personalidade absoluta do indivíduo, não subordinada de maneira alguma à vontade do Estado seria uma concepção incompatível com a natureza do Estado. Todavia, chamado a desenvolver determinadas tarefas, o Estado também aparece limitado na sua capacidade de agir, pois lhe incumbe reconhecer a personalidade dos súditos, e a isso fica juridicamente obrigado por força do seu próprio ordenamento jurídico. A relação entre o Estado e cada pessoa surge como duas grandezas que se implicam reciprocamente. Assim, o desenvolvimento da personalidade individual diminui a extensão do estado passivo e, com isso, também se reduz o campo de autoridade do Estado. Sendo a soberania estatal um poder juridicamente limitado, que se exerce no interesse geral, aos membros do Estado, aos cidadãos, são assegurados um status negativus ou status libertatis, uma esfera na qual são livres do Estado, uma esfera que exclui o imperium estatal, dentro da qual são prosseguidos fins estritamente individuais, privados. Nessa dimensão estariam as posições jurídicas dos indivíduos em face 152 A teoria dos estados de Jellinek é adotada por Robert ALEXY (Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 254-275), jurista alemão muito prestigiado pelos constitucionalistas lusitanos. 76 do Estado chamadas liberdade e, por meio delas, busca-se defender a esfera jurídica dos cidadãos da intervenção ou agressão dos Poderes Públicos. Por isso, são também chamadas de direitos da liberdade, direitos negativos, direitos civis, liberdades individuais. Seriam exemplos de liberdades o direito à vida, o direito à integridade pessoal, o direito à liberdade e à segurança, o direito à identidade, ao bom nome e à intimidade, o direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, o direito à liberdade de expressão e informação, o direito à liberdade de consciência, religião e culto, o direito de reunião e de associação, entre outros. 153 Já os direitos, nesta proposta de classificação seriam as posições jurídicas ligadas ao status activus ou status civitatis do indivíduo, sendo assim designados como direitos políticos, liberdades-participação, direitos do cidadão, entre outros. De acordo com a doutrina dos direitos subjetivos públicos de Jellinek, a atividade do Estado, que deve ser desenvolvida no interesse dos súditos, somente se torna possível por meio das ações dos indivíduos, dos cidadãos. Quando o Estado reconhece ao indivíduo a capacidade de agir por conta do Estado, promove-o a uma condição mais elevada: a da cidadania ativa, com a qual o indivíduo fica autorizado a exercer os chamados direitos políticos em sentido estrito154. Por fim, têm-se as garantias, assim entendidas a prerrogativa dos cidadãos de exigir dos Poderes Públicos a proteção dos seus direitos, bem como o reconhecimento dos meios processuais para tal 153 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais, p. 83-84. 154 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais, p. 84. 77 finalidade155, além das garantias do processo criminal, como a de não ser considerado culpado senão após sentença condenatória criminal transitada em julgado, a garantia do contraditório e da ampla defesa, o direito ao habeas corpus, etc. As garantias estariam relacionadas ao status positivus156, no qual se dá o reconhecimento da capacidade jurídica do cidadão para recorrer ao aparato estatal e utilizar as instituições estatais, ou seja, quando se garante ao indivíduo prestações positivas157, notadamente meios processuais para a defesa dos direitos e liberdades. Em sede da doutrina brasileira, encontra-se em Ruy Barbosa, a raiz mais remota da distinção entre direitos e garantias, lastreada na separação das disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, das disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. As disposições declaratórias instituiriam os direitos; as assecuratórias, as garantias.158 A base da classificação de Ruy Barbosa para direitos e garantias é semântica, calcada nos aspectos textuais dos diplomas normativos, sendo que o próprio autor reconhece que muitas vezes ocorre de juntar-se na mesma disposição constitucional ou legal a fixação da garantia com a declaração de direito. Isso sem considerar que muitas 155 Neste sentido, José Afonso da SILVA (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 186) traz a pertinente citação de Maurice Hauriou para destacar que não basta que um direito seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo porque virão ocasiões em que será discutido e violado. Tal afirmação, em temos recentes, ecoou na eloquência de Norberto BOBBIO (A Era dos direitos, p. 24) ao salientar que o problema fundamental nos dias de hoje não é fundamentar os direitos humanos, mas sim protegê-los com eficiência, um problema muito mais do que filosófico, verdadeiramente político. 156 Em tradução livre: estado positivo. 157 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 263-264. 158 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 186. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p. 33. 78 garantias são textualmente declaradas, além de direitos serem declarados usando-se a fórmula assecuratória.159 A diferença entre direitos e garantias, portanto, não pode se arrimar apenas nos aspectos semânticos, textuais, dos dispositivos normativos, mas na dimensão funcional e, por conseguinte, na estrutura e no conteúdo de determinada posição jurídica subjetiva protegida. As peculiaridades normativas identificar-se-ão não a priori, à luz de aspectos meramente textuais, mas no plano concreto, a partir da constatação de qual função o direito fundamental estará desempenhando em determinada situação. Nesta ótica, quando se fala em garantias, está se falando de uma função instrumental, para a qual se estruturam meios, técnicas, instrumentos ou procedimentos para impor o respeito e a exigibilidade de um determinado direito. Assim, como salienta José Afonso da Silva, nas seriam as garantias fins em si mesmas, mas instrumentos para a tutela de um direito principal; estariam a serviço dos direitos humanos fundamentais.160 Reconhecem Canotilho e Vital Moreira que a distinção entre cada uma das categorias que compõe a trilogia dos direitos, liberdades e garantias, além de pouco precisa, é irrelevante do ponto de vista das consequências jurídicas, visto que, qualquer que seja a categoria, todos os direitos fundamentais fruem do mesmo regime.161 Acrescenta-se o 159 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 186. Por exemplo: “é assegurado o direito de resposta (art. 5º, V); “é assegurada... a prestação de assistência religiosa (art. 5º, VII); “é garantido o direito de propriedade” (art. 5º, XXII); “é garantido o direito de herança” (art. 5º, XXX). 160 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 189. 161 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, p. 111. A diferença de regime jurídico se dá entre direitos, liberdade e garantias, previstos no Título II da Constituição portuguesa, aos quais se assegura uma normatividade e força jurídica 79 argumento de que não haveria uma verdadeiro direito ou uma liberdade sem a correspondente garantia (direito de proteção estatal e os respectivos meios processuais). O contraste dos direitos, liberdades e garantias se faz com os direitos econômicos, sociais e culturais, previstos no Título III da Constituição portuguesa de 1976, com os mesmos significados adotados pelos Pactos Internacionais de Direitos Humanos das Nações Unidas. O Sistema Global de Proteção Internacional dos Direitos Humanos, capitaneado pela Organização das Nações Unidas, utiliza uma classificação que cinde os direitos humanos em direitos civis e políticos, de um lado, e direitos econômicos, culturais e sociais, de outro. Por direitos civis, neste contexto, são entendidos os direitos de autonomia dos indivíduos contra interferências indevidas do Estado ou de terceiros. Os direitos políticos, por sua vez, seriam os direitos de participação na elaboração das decisões políticas e na gestão da coisa pública, a ser exercido diretamente ou por meio de representantes periodicamente eleitos por meio de sufrágio igualitário e universal e por voto secreto. Os direitos econômicos seriam aqueles relacionados à organização da vida econômica de um Estado, como o direito de associação sindical com objetivo de promoção de interesses econômicos da categoria, o direito de greve, o direito ao trabalho, entre outros. Os direitos sociais, nesta classificação, são os direitos tendentes a reforçada em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais do Título III. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 218-219). 80 assegurar uma vida material minimamente digna, exigindo prestações positiva do Estado em favor dos indivíduos que as necessitem. E, por fim, os direitos culturais, entendidos como aqueles relacionados à participação do indivíduo na vida cultural de uma comunidade, bem como o direito à manutenção do patrimônio histórico e cultural de uma comunidade, o qual concretiza a sua identidade e memória.162 Visto por essa lente, o direito à moradia digna, com conteúdo de direito prestacional em face do Estado, classificar-se-ia como um direito social. José Gomes Canotilho leciona que a classificação em tela não se mostra precisa, posto que muitos direitos enumerados no rol dos direitos econômicos, sociais e culturais têm natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, como, por exemplo, a liberdade de profissão, a liberdade sindical, o direito de propriedade privada, o direito à livre iniciativa econômica. Por outro lado, alguns destinatários destes direitos não seria apenas o Estado, mas a generalidade dos cidadãos.163 Outro aspecto a ser considerado é que um mesmo dispositivo normativo pode gerar diversas normas, podendo constituir um feixe de posições juridicamente protegidas nas quais estão investidas o titular dos respectivos direitos fundamentais. Logo, a distinção entre norma e texto da norma164 erode qualquer 162 RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na Ordem Internacional, p. 89-92). A razão dessa clivagem, direitos civis e políticos de um lado, direitos econômicos, sociais e culturais de outro, objeto de dois Pactos, é explicada por Flávia PIOVESAN (Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 157-161). 163 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 378-379. 164 Os limites deste trabalho impede o aprofundamento de tão instigante e basilar problema de Teoria Geral do Direito e/ou da Hermenêutica Jurídica. Porém, para os fins do 81 tentativa de classificação de direitos fundamentais a partir da análise meramente semântica dos enunciados/dispositivos constitucionais. Há que se reconhecer, ao contrário, que os direitos humanos fundamentais, vistos em sua completude, são multifuncionais, apresentam diferentes conteúdos, conforme a relação concreta em que se inserirem. Daí a doutrina mais recente identificar a utilidade da construção de categorias classificatórias sob o ângulo funcional. 1.5.3. CLASSIFICAÇÕES FUNCIONAIS Maior precisão e utilidade prática guardam as classificações funcionais. Robert Alexy, por sua grande influência entre os constitucionalistas lusitanos e, por consequência, entre os brasileiros, é um referencial importante neste campo. Sua proposta é a de que os direitos fundamentais, na qualidade de direitos subjetivos, sejam organizados em três categorias segundo o conteúdo e a função desempenhada: 1) direitos a algo (abrangendo duas submodalidades: 1.1. direito a algo e 1.2. direito a ações positivas; 2) liberdades e 3) competências.165 raciocínio aqui desenvolvido, basta salientar que a norma é o resultado da interpretação de todo o ordenamento jurídico a partir das relações mantidas com as peculiaridades fáticas do caso concreto a ser decidido. A norma não existe antes da interpretação/aplicação. É o sentido/significado atribuído a todos os textos/dispositivos incidentes em determinada situação fática juridicamente relevante. Para uma análise mais aprofundada da questão da distinção entre texto e norma ver: MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. FERRAZ, Sérgio Valladão. Hermenêutica constitucional estruturante. 165 Anota Ingo Wolgang SARLET (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 169) que Robert Alexy formula sua proposta partindo da distinção efetuada por Benthan entre rights to services (direitos a serviços), liberties (liberdades) e powers (poderes, capacidade jurídica, competência ou autorização). 82 Na qualidade de direito a algo, estariam englobados os direitos a ações negativas e positivas do Estado e/ou de particulares, portanto, os direitos de defesa e os direitos a prestações. Os direitos de defesa abrangeriam os direitos a que não se impeça, nem se dificulte determinadas ações do titular do direito; os direitos a que não se afete determinadas características ou situações do titular do direito (por exemplo, a inviolabilidade do domicílio); e os direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito mediante derrogação das correspondentes normas jurídicas. Os direitos a ações positivas, por seu turno, abarcariam os direitos que o cidadão tem contra o Estado a ações estatais positivas que podem ser tanto de conteúdo fático como de conteúdo normativo. De conteúdo fático quando o objeto for uma prestação material, como o fornecimento de água potável, de ensino, de assistência médica, a expedição de um documento; de conteúdo normativo quando consubstanciar na edição de normas jurídicas, gerando, por isso, o dever de legislar, regulamentar, julgar. As liberdades, nessa classificação de Alexy, contemplam as posições jurídicas que asseguram ao seu titular ser livre para fazer ou não fazer algo porque não está impedido, nem obrigado a praticar uma conduta. Neste prisma, as liberdades evidenciam-se como negação de exigências e proibições. Por fim, ter-se-iam as competências, que seriam os poderes jurídicos ou capacidades jurídicas reconhecidas aos indivíduos, para modificarem determinada situação jurídica, como são as capacidades de contratar, fazer um testamento, contrair matrimônio, criar 83 associações, adquirir propriedade, votar, etc. A visão de Alexy não é fragmentária nem reducionista. Engloba todos os conteúdos, admitindo, assim, a multifuncionalidade dos direitos fundamentais. Dependendo da situação eles se manifestarão como direitos de defesa, direitos de proteção, liberdades e/ou competências. 166 Nesta linha, José Carlos Vieira de Andrade realça que, no que diz respeito à estrutura própria dos direitos fundamentais, há que tomar em consideração o caráter complexo e multifacetado da maior parte dos direitos subjetivos fundamentais, sendo “frequentemente múltiplas as faculdades incluídas num direito constitucionalmente consagrado, faculdades que têm objecto e conteúdo distintos, que são oponíveis a destinatários diferentes, determinam deveres de variado tipo e que podem ter até titulares diversos. Assim, num mesmo direito fundamental unitariamente designado podemos encontrar combinados poderes de exigir um comportamento negativo (das potências públicas) com poderes de exigir ou de pretender prestações positivas, jurídicas ou materiais, ou com poderes de produzir efeitos jurídicos na esfera de outrém, poderes que têm muitas vezes recortes diferentes e aos quais correspondem, conforme os casos, deveres de abstenção ou de nãointromissão, deveres de prestação ou de acção ou sujeições (deveres de tolerar). Por outro lado, os sujeitos passivos dos direitos podem ser, simultaneamente mas em medida diversa, o legislador, o administrador, o poder judicial ou, em certos casos, entidades privadas; tal como deparamos em certos direitos com faculdades ou poderes que cabem a todos os indivíduos, a par de outros que pertencem apenas aos que fazem parte de grupos específicos ou serão mesmo próprios de entidades colectivas ou comunidades. Quando se fala de um direito subjectivo fundamental não se pode, pois, pensar “num singular poder ou pretensão jurídica unidimensional ou unidireccional”, antes a representação mais adequada é a de um feixe de faculdades ou poderes de tipo diferente e diverso alcance, apontados em direções distintas”.167 166 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 193-253. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 188-189. Note-se que, não obstante não separar norma e texto da norma, nem considerar que um mesmo texto possa configurar um feixe de normas prevendo direitos 167 84 Para Canotilho168, o reconhecimento de múltiplas dimensões e funcionalidades aos direitos fundamentais, outrora captadas unilateralmente pelas diversas teorias (liberal, da ordem de valores, institucional, social, democrático-funcional, socialista) oferece um suporte constitucionalmente sustentável para um Estado Constitucional de Direitos Fundamentais e para uma Sociedade Civil de Direitos Fundamentais. Gomes Canotilho acolheu a classificação desenvolvida por Alexy, adaptando-a ao Direito Positivo português, que estabelece um regime jurídico diferenciado para os direitos econômicos, sociais e culturais. Assim, Canotilho subdivide a categoria “direitos a prestações”, separando direitos originários a prestações e direitos derivados a prestações. Os direitos prestacionais originários seriam depreendidos diretamente da norma constitucional, não dependendo da atuação do legislador para definir os seus conteúdos. Já os direitos prestacionais derivados assegurariam aos cidadãos uma participação igual nas prestações estatais de acordo com as capacidades existentes em determinado momento da história, protegendo o núcleo essencial subjetivos de variada estrutura, conteúdo e funções, encontra-se em Hans KELSEN (Teoria Pura do Direito, p. 80-87 e Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 110-128) o entendimento de que ter um direito subjetivo pode significar várias coisas, como: a) “não ser proibido de” (não sofrer sanção por fazer ou não fazer algo); b) “não poder ser impedido” (outrem pode ser punido por querer impedir a ação ou forçar a omissão do titular do direito); c) “ter autorização para fazer algo” (liberdade garantida quando há normas que abrem exceção a uma proibição geral); d) “o contraponto de uma obrigação alheia ativa (fazer) ou passiva (não fazer ou tolerar que se faça)”; e) “autorização de participar na produção do Direito” (direitos políticos); f) “direito de ação processual” (direito de processar o sujeito passivo da relação jurídica buscando a aplicação da sanção). 168 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1302-1308. 85 desses direitos contra retrocessos.169 José Carlos de Andrade Vieira, por seu turno, igualmente inspirado em Alexy e em Jellinek, classifica funcionalmente os direitos fundamentais em direitos de defesa, direitos de participação e direitos a prestações. Os direitos de defesa corresponderiam aos clássicos direitos de liberdade, que impõem uma abstenção ao Estado, um dever de não-interferência ou de não-intromissão, resguardando a autonomia privada. Os direitos a prestações exigem do Estado uma ação positiva a fim de proteger os bens jurídicos ou promover um estado de coisa desejado. Por fim, os direitos a participação seriam um híbrido de direitos de defesa e direitos de prestação, compondo uma categoria autônoma porque desempenhariam a função de garantir a participação individual na vida política, mais concretamente na formação da vontade política da comunidade.170 Andrade Vieira171 aponta que, por esse ângulo, verifica-se que a clivagem principal existente dentro dos direitos fundamentais no Direito Constitucional português, que os divide em direitos, liberdades e garantias e os demais direitos econômicos, sociais e culturais ou, abreviadamente, direitos sociais, não consegue ser rigorosa na sua correspondência aos regimes jurídicos específicos. Direitos a prestações não são apenas aqueles que consistem exclusivamente em prestações de auxílio social. Direitos de liberdade e 169 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 447-449. OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais, p. 51. 170 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 192-194. 171 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 197-205. 86 direitos de participação política contêm, igualmente, faculdades de exigir ou pretender prestações estatais de proteção ou promoção, não se subsumindo à hipótese de incidência do artigo 18 da Carta de 1976172, eis que sujeitos à realização gradual, progressiva, e sujeitos à reserva do possível, em razão da escassez ou limitação dos recursos à disposição do Estado para satisfazer as necessidades de todos os cidadãos estando em causa opções quanto à alocação ou afetação material desses recursos, determinadas pelo legislador ordinário ao configurarem as políticas púbicas. Paralelamente, há direitos enumerados no rol dos sociais (Título III) que podem ter a estrutura de direitos de defesa, sujeitando-se ao mesmo regime dos direitos, liberdades e garantias, conforme dispõe o artigo 17 da Carta Constitucional, por lhes serem análogos. Assim, conclui José Carlos Vieira de Andrade que há dois tipos básicos de direitos fundamentais, consoante a determinação do respectivo conteúdo e, por consequência, com diversa força jurídica: os direitos de defesa e os direitos prestacionais. 173 Já adentrado na doutrina brasileira, merece menção a pioneira classificação de Edilsom Pereira de Farias174, que organiza os direitos fundamentais em direitos fundamentais de defesa, direitos 172 PORTUGAL, Constituição de 1976 (VII Revisão de 2005). Artigo 18º (Força jurídica) 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais. 173 PORTUGAL, Constituição de 1976 (VII Revisão de 2005). Artigo 17º (Regime dos direitos, liberdades e garantias) O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. 174 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos, p. 82-93. 87 fundamentais a prestação fáticas ou jurídicas e direitos de participação, mostrando ter sofrido forte influência das construções de Jellinek, Alexy, Canotilho e Vieira de Andrade. Paulo Gustavo Gonet Branco175, por sua vez, também salienta que os direitos fundamentais desempenham funções múltiplas na sociedade e na ordem jurídica e essa diversidade de funções leva a que a estrutura dos direitos fundamentais não seja unívoca. Assim, enxerga-se nos direitos fundamentais, em sua dimensão subjetiva, o desempenho de funções de direitos de defesa, direitos a prestação e de direitos de participação. Na condição de direitos de defesa, a função desempenhada é a de impor ao Estado um dever de abstenção, um dever de nãointerferência, de não-intromissão no espaço de autodeterminação do indivíduo. Sob esse aspecto, constituem normas de competência negativa para os Poderes Públicos, jungindo o Estado a não estorvar o exercício da liberdade do indivíduo, quer material, quer juridicamente. Na qualidade de direito a prestação, os direitos fundamentais exigem que o Estado aja para libertar os indivíduos das necessidades. São, portanto, direito de promoção de um estado de coisas almejado. Por fim, os direitos fundamentais de participação correspondem aos direitos políticos, isto é, os direitos orientados a garantir a participação dos cidadãos na formação da vontade do Estado. Afora o plano de subjetivo, Paulo Branco partilha do entendimento segundo o qual os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva, fazendo deles princípios básicos da ordem constitucional, operando como limite do poder e como diretriz para a 175 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, p. 244-258. 88 ação estatal. Assim, os direitos fundamentais influem sobre todo o ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de todos os poderes constituídos. Dessa dimensão objetiva, derivam consequências importantes, como a eficácia horizontal desses direitos, isto é, na esfera privada, no âmbito das relações entre os particulares, bem como o reconhecimento de um dever estatal de proteção contra agressões dos próprios Poderes Públicos, provindas de particulares ou de outros Estados. Doutrinador brasileiro que também se inspirou nas teorias de Jellinek, Alexy e Vieira de Andrade é Ingo Wolfgang Sarlet176, o qual classifica tais direitos, segundo a funcionalidade, conteúdo e estrutura normativa, em dois grandes grupos: os direitos fundamentais de defesa e os direitos fundamentais a prestações. No grupo dos direitos fundamentais de defesa da classificação de Ingo Sarlet se vinculariam as liberdades civis reconhecidas desde o Estado Liberal, integrantes do status negativus ou status libertatis, que asseguram uma esfera protegida de autonomia privada, bem como as liberdades sociais, as quais, seguindo na inspiração dada pela doutrina de Jellinek, constituiriam um status negativus socialis ou status libertatis socialis, a exemplo dos direitos de grave e da liberdade sindical. O grupo dos direitos fundamentais a prestações estaria subdivido em direitos a prestação em sentido amplo e os direitos a prestação em sentido estrito. Os direitos a prestação em sentido amplo seriam compostos pelas categorias direitos à proteção e direitos a participação em 176 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 185-226. 89 organização e em procedimento. Sarlet entende por direitos à proteção, tomando por base a doutrina de Robert Alexy177, aqueles que outorgam ao indivíduo o poder de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros em determinados bens pessoais. Os direitos à proteção foram revelados ou desenvolvidos a partir do reconhecimento da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais. Em decorrência da aceitação da ideia de que o Estado tem o dever geral de efetivação dos direitos fundamentais, tem-se também que a ele incumbe zelar, inclusive em caráter preventivo, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não só contra ingerências indevidas por parte dos poderes públicos, como também contra agressões provindas de particulares e até mesmo de outros Estados. Um dever que implica a obrigação de adotar medidas positivas visando garantir e proteger de forma efetiva a fruição dos direitos fundamentais. 178 Os direitos a participação na organização e procedimento se vinculariam a um status activus processualis179, contemplando meios processuais adequados para a defesa ou realização dos direitos, bem como as pertinentes estruturas organizacionais.180 Por fim, termina Ingo Sarlet sua classificação com os direitos a 177 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 450-469. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 210-211. 179 Em tradução livre: estado ativo processual. Aponta Ingo Wolfgang SARLET (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 212) que o status activus processualis, que se refere à dimensão procedimental dos direitos fundamentais, podendo ser qualificada de um autêntico devido processo legal (due process of law) dos direitos fundamentais, decorre de uma releitura feita por Peter Häberle à teoria dos quatro status de Jellinek. No campo do Direito Processual Civil, destaca-se o trabalho de Luiz Guilherme MARINONI (Técnica Processual e Tutela dos Direitos, p. 154-157 e p. 165-244), que, à luz da Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais, vem defendendo que o juiz tem o dever de conformar o procedimento, para adequado ao caso concreto, de modo a garantir efetividade à prestação jurisdicional. 180 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 381. 178 90 prestações em sentido estrito, composto pelos direitos a prestações materiais de cunho social, relacionadas ao status positivus libertatis, e que se concretizam nas tarefas incumbidas ao Estado Social de Direito de zelar por uma justa e adequada distribuição e redistribuição dos bens existentes. Wolfgang Sarlet181 reconhece que os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos. Transcendendo essa perspectiva subjetiva, eles constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Assim, o primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais seria a eficácia de fornecer impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do Direito infraconstitucional, apontando para a necessidade de uma interpretação conforme os direitos fundamentais. Dessa dimensão objetiva também derivaria a sua eficácia horizontal, isto é, a irradiação de efeitos também nas relações privadas. Enfim, da redescoberta da perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais decorre a possibilidade de desenvolvimento de novos conteúdos e funções aos direitos fundamentais a partir da relação dinâmica e dialética entre norma jurídica e realidade. 181 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 157-171. 91 1.5.4. A PLURALIDADE DE CONTEÚDOS E FUNÇÕES DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA DIGNA O direito humano fundamental à moradia também configura um feixe de posições juridicamente protegidas, implicando direitos (e correspondentes deveres) de cunho negativo (direitos de defesa) e positivo (direitos a prestações). Na função de defesa (dimensão negativa), o direito de moradia se expressa com o conteúdo de deveres de abstenção erga omnes182. Essa dimensão funcional concretiza-se nas normas que asseguram a inviolabilidade do domicílio, no sentido de protegê-lo contra invasões por agentes públicos e/ou particulares, como a constante do inciso XI do artigo 5º da Constituição de 1988183. Concretiza-se o direito à moradia, também, nesta dimensão funcional defensiva, nas normas as que protegem contra penhora, alienação voluntária, dação de pagamento, entre outros atos de despojamento, os bens materiais utilizados para o exercício da moradia, notadamente os imóveis utilizados como unidades habitacionais, quando, no caso concreto, o proprietário não tiver condições financeiras de acesso a outra residência por meio de locação, compra de imóvel, pagamento de hospedagem, etc.184. Expressam, igualmente, essa dimensão negativa (função de defesa), as normas que protegem moradores contra despejos 182 Tradução livre: universal, em face de todos. Constituição de 1988, art. 5º. (...) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. 184 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Na dimensão defensiva de inalienabilidade, o direito à moradia, como bem essencial da personalidade, protege o patrimônio mínimo indispensável a uma existência digna. 183 92 arbitrários. Quando essa dimensão negativa não for espontaneamente observada, haverá necessidade de entrar em ação a dimensão positiva do direito à moradia, também chamada de direito à proteção estatal, de modo a assegurar a posição jurídica prevista pelo ordenamento em favor do titular do direito. Na dimensão positiva ou função prestacional, o direito à moradia demanda a estruturação de órgãos e a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela e promoção do direito à moradia. Demanda, em casos de necessidade, o fornecimento pelo Estado de auxílio financeiro, a prestação de serviço público ou a entrega de bens materiais, entre outras ações comissivas185. A dimensão positiva pode ser subdividida nas categorias de direito à proteção estatal, de direito promocional e de direito prestacional em sentido estrito. Como direito à proteção estatal, o direito à moradia demanda prestações de tutela contra danos potenciais, eminentes ou efetivos oriundos de condutas ilegais ou abusivas de agentes público ou privados. A proteção estatal há de ser prestada faticamente, mas com lastro nas normas jurídicas, isto é, por meio de provimentos estatais que interfiram na realidade concreta. Esses provimentos, que se originam no âmbito das funções administrativas ou jurisdicionais do Estado, pressupõem a estruturação de um sistema complexo, de uma rede de proteção que envolve corpo de bombeiro, defesa civil, polícias civil, militar e administrativa, Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros organismos, imprescindíveis para dar efetividade à dimensão negativa 185 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão negativa (defensiva), p. 1033. 93 (função defensiva) do direito à moradia nos casos de lesões ou ameaças. Na função promocional, o direito à moradia impõe-se ao Estado deveres de fomentar, isto é, de facilitar lhe o acesso. Esse estímulo estatal pode se operar mediante políticas de financiamentos a juros reduzidos, de redução da carga tributária ou mesmo isenção fiscal de algumas operações ligadas à cadeia econômica de fornecimento de imóveis destinados à habitação, de instalação de infraestrutura urbana de modo coerente com os planos de desenvolvimento das cidades. A intervenção estatal, nesses casos, terá por metas baratear o preço da terra urbana e dos materiais de construção; reduzir os custos de edificar, reformar e/ou comprar unidades habitacionais; fazer com que os valores de aluguéis residenciais praticados no mercado imobiliário se tornem acessíveis às várias faixas econômicas da população, notadamente às de menor poder aquisitivo. Na função prestacional em sentido estrito, o direito à moradia se materializa nos deveres estatais de fornecimento de alguma prestação material concreta, que pode ser um bem ou um serviço público, adjudicado individualmente ou oferecido coletivamente. Essa proteção positiva do direito à moradia se realiza de diversas formas, como a disponibilização de um abrigo às pessoas em situação de rua ou desabrigadas em razões de catástrofes naturais ou outro tipo de calamidade pública; o fornecimento de certa quantia em dinheiro a pessoas necessitadas, incapazes de custearem por elas mesmas um alojamento digno a titulo de subsídio ("auxílio-aluguel"); implantação e manutenção de serviços públicos que melhore a qualidade das condições de moradia em determinada área urbana, como os de 94 saneamento básico, de iluminação pública, de fornecimento de energia elétrica, transporte coletivo; o fornecimento de assistência técnica e jurídica a pessoas de baixa renda que irão autoconstruir suas moradias; investimentos em regularização fundiária e urbanização de assentamentos precários ou renovação urbana de bairros envelhecidos, etc. Resta, portanto, evidenciada a pluralidade de conteúdos e funções do direito humano fundamental à moradia. Em razão dessa multifuncionalidade, abre-se vários campos de investigação relevantes e pertinentes na atualidade. Pode-se tratar, por exemplo, a eficácia do direito à moradia em sua dimensão funcional de direito de defesa na proteção do mínimo existencial (ou patrimônio mínimo) do devedor solteiro ou do fiador contra atos de penhora e alienação judicial para fins de execução de dívidas.186 Outras vertentes 186 Dedicaram-se a este campo, entre outros: AINA, Eliana Maria Barreiros. O fiador e o direito à moradia: Direito fundamental à moradia frente à situação do fiador proprietário de bem de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004; CARLI, Ana Alice de. Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; CASTILHO, Ricardo dos Santos. A impenhorabilidade do bem de família do fiador no contrato de locação: A inconstitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei n. 8.009/90. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coordenadora). A outra face do Poder Judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas, volume 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 208-226; FACHIN, Luiz Edson Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; LONGO, Gabriel Souza. A inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador para a satisfação de crédito locatício. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coordenadora). A outra face do Poder Judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas, volume 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 194207; PINHEIRO, Rosalice Fidalgo; ISAGUIRRE, Katya. O direito à moradia e o STFR: um estudo de caso acerca da impenhorabilidade do bem de família do fiador. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (organizadores). Diálogos sobre Direito Civil – volume II. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 131-163; SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: MELLO, Celso de Albuquerque; TORRES, Ricardo Lobo (diretores). Arquivos de Direitos Humanos n. 4. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 137-191; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensão negativa (defensiva): Análise crítica a luz de alguns exemplos. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coordenadores). Direitos sociais: Fundamento, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 1019-1049; SCHREIBER, 95 de pesquisa seriam o diálogo entre o direito à moradia e a função social da propriedade urbana187; a proteção do direito à moradia das pessoas pobres instaladas em assentamentos irregulares consolidados, em face da ameaça de despejos forçados188; a incidência do direito à moradia e a proteção contra abusos nos reajustes de contratos de mútuo (financiamento imobiliário)189, etc. Ou, o objeto da presente investigação, centrada nos problemas da exigibilidade e da universalização do direito à moradia em sua dimensão positiva, com conteúdo prestacional, a ser efetivado pelo Poder Público, com função garantidora do mínimo existencial. Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira Ramos; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; GEDIEL, José Antônio Peres; FACHIN, Luiz Edson; MORAES, Maria Celina Bodin (organizadores). Diálogos sobre direito civil: Construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar: 2002, p. 77-98. 187 Ao tema dedicaram-se, por exemplo: ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003; ALFONSIN, Jacques Távora. A função social da cidade e da propriedade privada urbana como propriedades de funções. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (organizadores). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto das Cidades. Fórum, 2006, p. 41-79; LIRA, Ricardo Cesar Pereira. Direito à habitação e direito de propriedade. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro n. 6/7. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, 1998/1999; LOPES, José Reinaldo de Lima. Cidadania e propriedade: perspectiva histórica do direito à moradia. In: Revista de Direito Alternativo, 1993; PAGANI, Eliane Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo entre o direito de propriedade urbana imóvel e o direito à moradia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. 188 Podem-se arrolar, nesta seara, os trabalhos de: SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2004; BARROSO, Lucas Abreu. Propriedade privada, justiça social e cidadania material. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (coordenadora). A outra face do Poder Judiciário: decisões inovadoras e mudanças de paradigmas, volume 2. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 119-137, entre outros. 189 Dedicaram-se a esse campo investigatório, v.g., GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia e o contrato de mútuo imobiliário. Rio de Janeiro: Renovar, 2006 e LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 2003. 96 2. UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA E AS POLÍTICAS PÚBLICAS 2.1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS Observa Thiago Lima Breus que as políticas públicas só recentemente se tornaram uma categoria de interesse para os operadores do Direito, motivado pela intensificação do pluralismo social e pela emergência de reivindicações por novas formas de atuação do Poder Público, atingindo áreas que antes estavam fora do âmbito da política.190 Guilherme Amorim Campos da Silva explicita que a utilização da expressão política pública é redundante, configurando um verdadeiro pleonasmo, eis que qualquer política tende a ser pública, isto é, voltada para uma realização social. Porém, o qualificativo se justifica para salientar o fim social que se busca alcançar com o programa de ação, isto é, com a política.191 Ronald Dworkin utiliza o termo política como padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade. Relacionase, portanto, com uma meta ou finalidade coletiva.192 Eros Roberto Grau, por sua vez, salienta a importância das políticas públicas para os operadores do Direito apontando que, na atualidade, o Estado intervém na ordem social não mais exclusivamente 190 BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no Estado Constitucional, p. 217. SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento, p. 103. 192 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 36. 191 97 como produtor do Direito e provedor de segurança. Desenvolveram-se novas formas de atuação estatal, para o que o Estado atualmente faz uso do Direito Positivo como instrumento de implementação de suas políticas públicas. Com efeito, o government by policies substitui e aprimora o government by Law, eis que, o Estado contemporâneo, de cunho Social, legitima-se, antes de tudo, pela realização de políticas, isto é, de programas de ação.193 Maria Paula Dallari Bucci, pioneira na investigação desse novo campo do conhecimento, aprimorando formulação outrora apresentada194, propõe que se entenda como política pública: "o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.” E, mais, assevera que: “Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados".195 193 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, p. 26. O government by policies (governo por meio de políticas públicas) é uma visão aprimorada do government by law (governo por meio de leis). As políticas públicas, portanto, configura uma evolução, assim como o governo baseado em leis foi em relação ao government by men (governo por meio de homens, no qual a vontade do soberano prevalecia de maneira absoluta), anterior ao constitucionalismo. 194 A primeira formulação apresentada por Maria Paula Dallari Bucci para o conceito de políticas públicas era este: “Políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas públicas são “metas coletivas conscientes” e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato” (Direito Administrativo e políticas públicas, p. 241). 195 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em Direito, p. 39. 98 Esse conceito permite: a) que se entende por política pública um programa de ação governamental; b) que se visualizem os diversos processos regulados pelos Direito que compõem uma política pública (eleitoral, de planejamento, de governo, orçamentário, legislativo, administrativo e judicial); c) a identificação da política como atividades de coordenação dos meios à disposição do Estado e das atividades privadas com o fim de realizar objetivos; d) salientar que o primeiro passo da formulação de uma política público é a definição, por meio de uma decisão política, dos objetivos socialmente relevantes a serem alcançados; e) que se compreenda que uma política pública, além da definição dos objetivos a serem alcançados, implica seleção de prioridades, reserva de meios necessários à sua consecução e a definição do intervalo de tempo em que se espera que os resultados esperados sejam atingidos. Atuação estatal por políticas públicas é concepção que dá conta não apenas das chamadas liberdades públicas (na qualidade ou função de direitos de defesa), mas, sobretudo, da efetivação dos direitos de cunho prestacional (sociais ou individuais), os quais exigem um intenso atuar comissivo dos órgãos públicos, a estruturação de órgãos e procedimentos, dispêndio de recursos do erário. É, portanto, o modelo mais adequado para a República do Brasil da atualidade, a qual, à luz do Texto Constitucional, conforma-se não como um Estado Liberal, de atuação mínima, mas sim como um Estado Social Democrático de Direito, que atua196 de maneira intensa na área 196 Prefere-se o termo “atuar” ao invés de “intervir”, bastante usual nos textos jurídicos, de modo a evitar a falsa ideia que quando o Estado “intervém” no campo do mercado, da economia e das relações sociais interprivadas estaria se imiscuindo numa área que não é 99 econômica e social, regulando as relações, promovendo/fomentado o desenvolvimento, dando proteção aos direitos fundamentais. Como enfatiza Habermas, o Estado Social se fundamenta na dialética entre a igualdade jurídica e as desigualdades reais. A tarefa do Estado Social consiste em assegurar condições de vida sociais, tecnológicas e ecológicas que permitam a todos, em condições de igualdade de oportunidade, tirarem proveito dos direitos cívicos igualmente distribuídos. 197 E, para cumprir com suas tarefas, o Estado brasileiro, na qualidade de Estado Social de Direito, necessita de políticas públicas. A efetividade do direito à moradia, como se constata dos conteúdos nas várias funções que ele pode assumir em determinada situação concreta, depende diretamente das políticas públicas. Demonstração bastante cabal dessa assertiva é o atual quadro de déficit habitacional, bem como das péssimas condições de moradia em que vivem as camadas mais pobres da população brasileira, indicando a inadequação das políticas públicas habitacionais praticadas e, sobretudo, a necessidade de uma atuação mais marcante do Poder Público para enfrentar e superar esse dramático problema social. Nessa trilha, traçando a vinculação entre a proteção e promoção do direito à moradia e as política públicas, Márcio Cammarosano enfatiza que: “Falar em habitação, moradia, casa, lar, é falar em necessidade básica do ser humano, que a Constituição assegura como direito social, impondo-se ao legislador e ao administrador público dar-lhe densidade normativa e implementar políticas que lhe assegurem a dele, quando, na verdade, é próprio do Estado realizar esta atuação de modo a cumprir o programa de desenvolvimento social estabelecido no Pacto Constitucional. 197 HABERMAS, Jürgen. Más allá del Estado nacional, p. 53. 100 mais plena eficácia”.198 Em sua dimensão de direito prestacional de caráter social, o direito à moradia apresenta especificidades que precisam ser bem compreendidas, de modo a se assegurar a máxima efetivação e o máximo de fruição. Pertinente, portanto, é trazer a colação as advertências de José Reinaldo de Lima Lopes, comparando semelhanças entre o direito à educação e o direito à moradia: “o direito à educação: é mais do que o direito de não ser excluído de uma escola; é, de fato, o interesse de conseguir uma vaga e as condições para estudar (ou seja, tempo livre, material escolar, etc.). Ora, se a vaga não existe, se não existe o tempo livre, se não há material escolar a baixo custo, como garantir juridicamente tal direito? Como transformá-lo de um direito à não interferência (permissão, dever de abstenção) em um direito à prestação (dever de fazer, obrigação) de alguém? Paradigmaticamente a mesma coisa ocorre com o direito à moradia: como transformar o direito à propriedade (defesa de bens contra a injusta invasão ou apropriação de terceiros e permissão para deter bens legitimamente adquiridos) em direito à moradia (acesso à propriedade, ou à posse – pela locação, por exemplo – de um local onde se estabelecer com a família numa cidade)? De quem exigir tal acesso, contra quem exercer seu direito e quem afinal está obrigado a que espécie de prestação?”199 Uma importante diferença desses “novos direitos”, chamados de “direitos sociais”, como observa José Reinaldo de Lima Lopes, é que, muitas vezes eles demandam serviços públicos uti universi e não uti singuli200, não remunerados diretamente pelos usuários, mas mantidos 198 CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos constitucionais do Estatuto das Cidades, p. 25. LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p. 127. 200 Serviços públicos uti universi são serviços públicos prestados à coletividade como um todo, de maneira universal e indivisível, como, por exemplo, a iluminação pública, a proteção das fronteiras nacionais, o calçamento, atendendo toda a coletividade, satisfazendo indiscriminadamente toda a população, razão pela qual são remunerados pelos impostos, eis que não há um usuários específico para pagar esses serviços por meio 199 101 por meio de imposto. Além disso, a prestação do serviço depende da real existência dos meios. Daí as questões: “não existindo escolas, hospitais e servidores capazes e em número suficiente para prestar o serviço o que fazer? Prestá-lo a quem tiver tido a oportunidade e a sorte de obter uma decisão judicial a abandonar a imensa maioria à fila de espera? Seria isto viável de fato e de direito, se o serviço público deve pautar-se pela sua universalidade, impessoalidade e pelo atendimento a quem dele mais precisar e cronologicamente anteceder os outros?”201 Percebe-se, a partir dessas considerações, que não se podem tratar direitos prestacionais da mesma forma como se tratam os direitos de defesa. Os instrumentos de concretização e de tutela são outros, específicos para dar conta das especificidades do seu objeto. Além disso, o que ocorre com os direitos sociais exercidos em face do Estado é similar ao que ocorre com os direitos societários em uma empresa. Um sócio tem direito ao lucro, isso é seu direito subjetivo, mas esse direito só pode ser exercido em partilha, com outros da mesma espécie, donde emerge a regra do rateio, da divisão proporcional dos lucros e das perdas entre todos os sócios. A relação, portanto, não é a de um contrato bilateral ou sinalagmático, mas de um contrato plurilateral como o de uma sociedade empresarial. Com efeito, os direitos sociais prestacionais dependem, para sua eficácia, de uma de taxas ou tarifas; serviços públicos uti singuli, ao contrário, são serviços direcionados à determinada pessoa, de maneira individualizada, como, por exemplo, os serviços telefônicos, o fornecimento de água e energia elétrica a domicílios, que, por isso, podem ser delas cobrados por meio de taxas (tributo) ou tarifas (preço público) (cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p. 314). 201 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p. 131. As mesmas perplexidades suscitadas gerariam uma demanda judicial buscando a estruturação de uma Delegacia de Polícia em determinada localidade, assolada por inúmeros crimes contra o patrimônio. Logo, a questão está relacionada à dimensão funcional prestacional, que pode estar presente nos clássicos direitos de primeira geração, não sendo exclusividade dos direitos sociais. 102 ação concreta do Estado, dependem da execução concreta de políticas públicas e da prestação de serviços públicos.202 Como é lembrado por José Reinaldo de Lima Lopes: “Sem os planos, sem os orçamentos, nada de política pública pode ser implementado.”203 Daí que, para enfrentar o desafio da efetivação dos direitos sociais prestacionais, como é o caso da dimensão aqui tratada do direito à moradia, é necessário compreender a complexidade das políticas públicas, e, para que isso seja possível, imprescindível é trazer para um lugar de destaque o regime jurídico do planejamento, não apenas das contas públicas, mas do desenvolvimento nacional, regional e local. Essa compreensão parte da visualização da articulação entre a necessidade de moradia digna como o também direito humano fundamental ao desenvolvimento. 2.2. MORADIA E DIREITO AO DESENVOLVIMENTO É pertinente e oportuno fazer a articulação entre o direito à moradia e o direito ao desenvolvimento em um contexto de planejamento das atividades estatais, mormente levando-se em conta que as atribuições ou competências dos órgãos legislativos para elaborar planos para o desenvolvimento econômico e social, embora previstas no Texto Constitucional, estão bastante esquecidas. Bem por isso, tais competências legislativas precisam ser vivificadas por meio de técnicas e práticas que ampliem a participação democrática na elaboração de planos de políticas públicas de moradia de longo prazo e 202 203 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p 129-130. LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais, p. 133. 103 coerentes com um projeto maior de desenvolvimento centrado na justiça social e na dignidade da pessoa humana. Na linha defendida por Enrique Dussel204, e aqui adotada, deve-se entender por desenvolvimento aquele que realiza o princípio éticomaterial de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana de cada sujeito em comunidade. Mas não uma simples vida, no sentido de sobrevivência e sim uma vida plena, digna de ser vivida. Princípio ético-material esse que foi albergado pela Constituição de 1988, como se vê do seu preâmbulo e dos seus artigos 1º, 3º e 170, entre outros. Como adverte Josaphat Marinho: “o desenvolvimento a que o indivíduo e a sociedade aspiram é um estado de realização comum das pessoas, e não de exclusão de umas, para favorecimento de outras. Pode dizer-se hoje, como Pierre Massé escreveu em 1973, que o desenvolvimento “não é o crescimento material, manifestação estatística do progresso, que busca o aumento das coisas, mas ignora a valorização dos seres. É o crescimento a serviço do homem. Não é a quantidade dos bens produzidos ou criados, mas a qualidade da distribuição deles no meio social, que caracteriza o desenvolvimento. Multiplicidade de bens, sem divisão justa, ou sem possibilidade razoável de adquiri-los, não é fator de paz social”.205 Ou ainda, compartilhando-se da visão de Amartya Sen, tem-se que o desenvolvimento é o melhor caminho para tornar mais plena a liberdade, eis que a privação material (pobreza) e a falta de acesso a direitos sociais constituem grandes obstáculos ao exercício da liberdade. Assim, nesta ótica, o desenvolvimento consiste na eliminação de privações que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de 204 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade de globalização e da exclusão, p. 182184. 205 MARINHO, Josaphat. Constituição, desenvolvimento e modernidade, p. 87. 104 exercer, ponderadamente, sua condição de agente. Porém, o desenvolvimento de que fala Amartya Sen não fica restrito ao crescimento econômico, ao aumento da riqueza material produzida. Se, de um lado, o crescimento econômico pode ajudar, eis que possibilita ao Estado financiar a seguridade social e uma intervenção social ativa, deve-se, por outro, investir na criação de oportunidades sociais por meio de serviços como educação pública, serviços de saúde e desenvolvimento de uma imprensa livre e ativa. Isso porque “o objetivo do desenvolvimento relaciona-se à avaliação das liberdades reais desfrutadas pelas pessoas”. Enfim, devem ser removidas as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.206 Na síntese de Lafayete Josué Petter: “Adotado o conceito de liberdade no sentido de um poder de atuação do homem em busca de sua realização pessoal, de sua felicidade, tudo o que impedir aquela possibilidade de coordenação dos meios é contrária à liberdade. Por isso a visão histórica da liberdade está associada a um processo dinâmico de liberação do homem de vários obstáculos que se antepõem à realização de sua personalidade”.207 O direito humano ao desenvolvimento foi, inclusive, enunciado em Declaração da Organização das Nações Unidas, em 1986, da seguinte forma: “Art. 1º O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social 206 207 SEN, Amartya. O desenvolvimento como liberdade, p. 10, 18 e 57-71. PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica, p. 85. 105 e cultural e político, a ele contribuir e desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados”. E o fenômeno do desenvolvimento, como bem coloca Jean Carlos Dias pode ser acompanhado (monitorado) por meio do: a) crescimento do bem-estar econômico; b) diminuição dos níveis de pobreza, desemprego e desigualdade; c) melhoria das condições de saúde e nutrição e educação e moradia e transporte, entre outros indicadores.208 O fim do desenvolvimento, consoante destaca Lafayete Josué Petter, ao analisar o conteúdo do artigo 170 da Constituição brasileira, é propiciar existência digna a todos, é assegurar justiça social. Segundo o autor, o capitalismo propicia o crescimento econômico, mas o desenvolvimento econômico é aferido pela dignidade de existência de todos, em um ambiente de justiça social. É possível um país crescer sem se desenvolver, o que ocorre nos casos em que há má distribuição da riqueza. Por isso, o aumento do bem-estar não pode se medido apenas por meio de indicadores como o produto nacional e a renda per capita209, dependendo também da verificação da diminuição dos níveis de pobreza, do desemprego e da desigualdade, das condições de saúde, nutrição, educação, moradia e transporte da população.210 A Constituição de 1988 alberga o desenvolvimento socioambientalmente sustentável como objetivo da República. Trata-se de uma visão humanista e ecológica do desenvolvimento que, na visão 208 DIAS, Jean Carlos. O direito humano ao desenvolvimento e o princípio tributário da capacidade contributiva, p. 175. 209 Em tradução livre: renda por cabeça. Esse indicador representando a média obtida pela divisão da expressão monetária da renda auferida pelo número de habitantes de determinado território, Estado, País, região. 210 PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica, p. 88. 106 de Inacy Sachs, é aquele que coloca “o social no comando, o ecológico enquanto restrição assumida e o econômico no seu papel instrumental”.211 O grau de desenvolvimento deve ser aferido, sobretudo, pelas condições materiais, culturais e ambientais de que uma população dispõe para o seu bem-estar. Ou como expressa Cristiane Derani: “qualidade de vida no ordenamento jurídico brasileiro apresenta estes dois aspectos concomitantemente: o do nível de vida material e o do bem-estar físico e espiritual. Uma sadia qualidade de vida abrange esta globalidade, acatando o fato de que um mínimo material é sempre necessário para o deleite espiritual”.212 Enfim, deve-se entender o desenvolvimento como um projeto (uma norma) e, ao mesmo tempo, um caminho histórico de democratização, de aprendizagem social e de libertação da opressão material, o que supõe partilha equitativa dos bens, e a supressão de todos os entraves que impedem seu desabrochar, na busca de uma melhor situação. Servindo-se da síntese de Ignacy Sachs, trata-se o desenvolvimento de um processo de apropriação dos direitos humanos.213 Da constatação de que crescimento econômico não corresponde necessariamente a desenvolvimento, vem-se complementando as medições outrora feitas apenas com os números do produto nacional e da renda per capita, por outros indicadores, como o índice de Gini que avalia os níveis de distribuição ou concentração de renda, e o índice de desenvolvimento humano – IDH, adotado pelo Programa de 211 SACHS, Ignacy. Em busca de novas estratégias de desenvolvimento, p. 44. DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico, p. 59. 213 SACHS, Ignacy. O desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos, p. 151. 212 107 Desenvolvimento das Nações Unidas. 214 As condições em que se exerce a moradia é fator relevante na avaliação do nível de bem-estar material, cultural, ambiental e espiritual das pessoas, afetando diretamente sua existência e sua personalidade. Portanto, é aspecto que deve ser considerado nas políticas públicas de desenvolvimento social. Até porque toda a estratégia de resgate e emancipação social, envolvendo um amplo e articulado leque de prestações estatais de solidariedade, tais como ações de assistência, educação e saúde, capacitação para o trabalho e geração de renda, deve ter como primeiro e fundamental passo o de assegurar uma moradia minimamente digna. Retirar dos locais insalubres, perigosos e infamantes que, por falta de opção, servem de habitação e abrigo a muitos miseráveis desse país mostra-se como a ação estratégica número um de todo e qualquer plano consistente de desenvolvimento sustentável. 214 Tais índices colocam o Brasil como um país com grandes contingentes de população miserável, que vivem abaixo da linha de pobreza (quando a renda per capita é insuficiente para a aquisição de uma cesta de produtos alimentares que supram o mínimo de calorias recomendadas pela FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations (2.100 calorias), portanto, com graves desigualdades sociais, e, no grupo dos países de médio desenvolvimento humano, ocupando a 69º posição, em contrates com o posto de 13ª economia global. Ou seja, o Brasil é um país relativamente rico, mas ainda subdesenvolvido e socialmente injusto no quesito da distribuição da riqueza e da renda. Para aprofundar o estudo do índice de Gini e do IDH ver PETTER, Lafayete Josué. Princípios constitucionais da ordem econômica, p. 98-107. Tais indicadores demonstram que apesar do “milagre econômico” verificado no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, em que economia apresentou taxas de crescimento superiores aos 10% ao ano, elevadíssimas para os padrões internacionais, “o bolo cresceu”, mas não foi “repartido” com justiça (PAULANI, Leda Maria; BRAGA, Márcio Bobik, A nova contabilidade social. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 234). 108 2.3. PLANEJAMENTO DO DESENVOLVIMENTO, PARTICIPAÇÃO E POLÍTICAS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL O planejamento é essencial para o desenvolvimento e este, por sua vez, é garantia de um melhor nível de vida coordenada com um equilíbrio na distribuição de renda e de condições de vida mais saudáveis. O planejamento coordena, racionaliza e dá unidade de fins à atuação do Estado, diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou casuística. Por ser expressão da política geral do Estado, o plano deve estar de acordo com a ideologia constitucionalmente adotada, deve estar com ela comprometida axiologicamente, assim, deve buscar a transformação do status quo econômico e social. As políticas públicas envolvem um conjunto heterogêneo de medidas. Uma política habitacional ou de moradia, por exemplo, envolve a elaboração de leis programáticas como são as leis de orçamento de despesas e receitas públicas, a definição de planos diretores de cidades, de zoneamento, a definição de áreas de preservação ambiental, a estruturação e manutenção de órgãos e procedimentos, a edição de várias leis, regulamentos, atos administrativos e atos de execução material. Por isso, o êxito de qualquer política pública depende de planejamento. O planejamento de qualquer política setorial – como é o caso da política de habitação – deve também estar articulado com os demais planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento 109 (Constituição Federal, artigo 48, IV e artigo 58, § 2º, II e VI)215, de modo a ganhar o máximo de eficiência. Gilberto Amorim Campos da Silva destaca que o artigo 21, IX, da Constituição determinou à União elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social. No inciso XX, do artigo 21 previu competência da União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transporte urbano. Nessa direção, a União pode, conforme previsto no artigo 43, englobar regiões econômicas e sociais, visando a promoção do desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais.216 O artigo 48, inciso IV, por seu turno, estabelece a competência do Congresso Nacional para dispor sobre planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento. Merece menção também o artigo 174, caput, da Carta Maior, que dispõem se tratar o planejamento econômico de atividade determinante para o Poder Público, tendo o seu § 1º, previsto que as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento, é matéria de lei, portanto, questão a ser tratada pelo Congresso Nacional. 215 BRASIL, Constituição da República, 1988, art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos artigos 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: (...) IV – planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento. (...) Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato que resultar sua criação. (...) § 2º. Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: (...) II – realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil; (...) VI – apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer. 216 SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento, p. 125. 110 Todavia, esses dispositivos que tratam do planejamento do desenvolvimento andam bastante esquecidos, negligenciados. Daí a importância de resgatá-los. Em face da conexão do direito à moradia digna com o direito à cidade sustentável, o papel dos Municípios nesta função de planejamento é de elevado destaque, eis que a Constituição de 1988 estabelece em seu artigo 30, VIII, ser da competência municipal “promover (...) adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. A atividade de planejamento urbanístico é incumbência do Poder Público. Embora a construção de habitações, o parcelamento do solo, entre outras atividades urbanísticas devam ser deixadas preferencialmente a carga dos particulares, o Poder Público sempre deve intervir quando a ordem urbanística estiver ameaçada, como, por exemplo, nos casos de ocupação desordenada do solo que provoca colapso nos equipamentos públicos, aumento de criminalidade e degradação ambiental. Ao estabelecer regulações, por meio dos Planos Diretores, das Leis de Uso e Ocupação do Solo, dos Códigos de Posturas e de Obras, da legislação ambiental, entre outros diplomas, o Poder Público tem o objetivo de garantir a sustentabilidade da cidade do ponto de vista ambiental e a equidade do ponto de vista social, permitindo o acesso de todos os cidadãos aos bens e serviços urbanos, às oportunidades econômicas, educacionais, culturais, de lazer e de trabalho que a cidade oferece. Afinal, as cidades existem justamente para isso: ampliar as oportunidades de desenvolvimento dos cidadãos. Mas para isso 111 ocorrer, imprescindível será que o desenvolvimento urbano ocorra de maneira planejada. A qualidade da moradia está diretamente relacionada à qualidade da cidade na qual ela está inserida. Enfim, o fundamental na ideia de planejamento é a perseguição de fins que alterem a situação econômica e social vivida em determinado momento. Trata-se de uma programação da atuação do Estado voltada para o futuro. Deste modo, consoante destaca Gilberto Bercovici, o planejamento, embora tenha conteúdo técnico, é um processo político.217 Porém, cabe aqui uma ressalva: apesar de político esse processo sofre a incidência de normas jurídicas, notadamente das constitucionais, possibilitando, assim, o seu controle, inclusive pela via jurisdicional. Eros Roberto Grau ensina que o plano, produto da atividade de planejamento, é um ato eminentemente político, que carrega em si a marca do governo e da maioria que decidiu sobre a sua elaboração. É um complexo de diversos atos, jurídicos e não jurídicos que se entroncam entre si, formando um sistema que orienta a ação do Poder Público e da sociedade em determinado período de tempo.218 José Afonso da Silva defende ser imprescindível que qualquer entidade pública atue de maneira planejada nos serviços que presta, nos investimentos que realiza, na forma como gerencia os recursos públicos, na maneira como influi no desenvolvimento econômico e social do país.219 217 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento, p. 69-70. GRAU, Eros Roberto. Planejamento, plano e Direito, p. 91. 219 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico municipal, p. 135. 218 112 Assim, o planejamento estratégico220, como método, deve ser utilizado em todos os setores das atividades do Poder Público. Logo, também no âmbito das políticas habitacionais, de modo a articulá-las a um projeto maior de desenvolvimento do País e, principalmente, de seu povo. Levando em conta que a democratização é uma dimensão importante do desenvolvimento enquanto processo de apropriação dos direitos humanos, o planejamento das transformações sociais na direção de uma melhoria das condições de vida deve propiciar o exercício dos direitos e deveres da cidadania. O planejamento importa em responder às questões de o que fará o Poder Público, onde, quando e de que maneira. Há uma relação direta desse planejamento com a eficiência e a efetividade da ação estatal. Além disso, a legitimidade tem como fonte a participação dos cidadãos no processo de elaboração dos planos. Considerando tais aspectos, tem-se que o enfrentamento consistente dos problemas sociais da contemporaneidade brasileira e a concretização progressiva do projeto de desenvolvimento previsto na Constituição de 1988 demandam, sem sombra de dúvida, a adoção da metodologia do planejamento estratégico participativo na formulação, 220 De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa estratégia é a arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos (HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 840). Por seu turno, Roberto Kanaane, Rosane Segatin Keppke, Renato Aldarvis e Dorival Caldeira da Silva lembram que “O planejamento estratégico contemporâneo tem origem militar. No universo coorporativo são frequentes as citações da Arte da Guerra, de Sun Tzu. Credita-se aos acadêmicos de Harvard o transplante metodológico para o setor privado e dali para o setor público. O planejamento estratégico emergiu para enfrentar a competitividade acirrada que foi deflagrada pela globalização. Esse fenômeno impactou não apenas as empresas, mas também os governos.” (Gestão pública estratégica e a visão do futuro, p. 50). 113 implementação e controle das políticas públicas, inclusive na que se refere à proteção e promoção do direito à moradia digna rumo à almejada universalização. Assim, na formulação das políticas que direta ou indiretamente repercutam sobre o direito à moradia digna, há um grande desafio em superar o baixo nível de interlocução entre o Poder Público e os diversos segmentos da sociedade, notadamente os não ligados ao setor do mercado imobiliário e da construção civil. É preciso dar voz e vez aos usuários da cidade, simples moradores, cidadãos. Imprescindível, portanto, aumentar os níveis de participação na formulação das políticas. Afinal, como enfatiza Paulo Hamilton Siqueira Júnior, a cidadania designa a participação do indivíduo nos negócios do Estado: “Cidadão é aquele que participa da dinâmica estatal. No Estado Democrático e Social de Direito essa atuação é exercida não apenas pelo voto, mas os cidadãos participam da tomada das decisões acerca dos temas de interesse público. No Estado contemporâneo, esse interesse se realiza pelas políticas públicas”. 221 Um dos caminhos para se democratizar o planejamento estatal e, por consequência, a Administração Pública, são as práticas participativas. O chamado orçamento participativo atualmente é regra geral. Experiências pioneiras realizadas em algumas cidades, como Vila VelhaES (no período de 1983-1986), Porto Alegre (a partir de 1989) e Belo Horizonte (a partir de 1993)222 tornaram-se práticas obrigatórias para todo e qualquer Município brasileiro graça às previsões da alínea f do 221 SIQUEIRA JR. Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos humanos e cidadania, p. 251. 222 AVRITZER, Leonardo. O Orçamento Participativo: As Experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte, p. 19-20. 114 inciso III do artigo 4º e do artigo 44 da Lei 10.257/2001 – Estatuto das Cidades223. Além disso, prevê o artigo 48, parágrafo único da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2000, que a transparência da gestão fiscal será assegurada também mediante incentivo à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos. A abertura à participação de um número cada vez maior de atores de todos os segmentos da sociedade, nesse caso, é assegurada pela realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas de Planos de Políticas Públicas articuladas com as propostas de Plano Plurianual, de Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual. Neste prisma, a participação, via realização de consultas, debates e audiências públicas, não há de ocorrer apenas na fase preliminar de formatação das propostas do Poder Executivo de plano plurianual, de lei de diretrizes orçamentárias e de lei orçamentária. Há que haver participação também durante a tramitação do processo nos Poderes Legislativos, para ouvir os segmentos afetados antes da apresentação de emendas parlamentares, bem como na fase de execução orçamentária, por meio de conselhos paritários de gestão do orçamento público, tal qual sugere Vanderlei Siraque.224 223 Lei 10.257/2001 – Estatuto das Cidades – Art. 4º. Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: (....) f) gestão orçamentária participativa; (...). Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4º desta lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal”. 224 SIRAQUE, Vanderlei. Controle social da função administrativa do Estado, p. 116. 115 E mais: a prática participativa de planejamento de políticas públicas e sua articulação ou integração com o processo orçamentário não deve ficar restrita ao nível municipal da Federação, buscando-se também nos Estados e na União democratizar cada vez mais esses processos. Diogo de Figueiredo Moreira Neto ensina que o instituto das audiências públicas (public hearings) tem origem nos países anglosaxões, ligando-se aos princípios basilares do devido processo legal (due process of law), do qual emerge o direito do indivíduo ser ouvido em matéria na qual esteja em jogo o seu interesse (right to a fair hearing) como característica impostergável de uma ordem jurídica justa. Assim, as audiências públicas têm por finalidade o balizamento das decisões a respeito dos serviços e políticas públicas já existentes ou a criar, de normas de ordenamento econômico, social ou de fomento público, mediante coleta de opiniões e debate público.225 Trata-se, como aponta Leonardo Avritzer, de práticas que têm grande potencial para melhorar a justiça social na distribuição de recursos públicos, pois com elas se consegue dar maior atenção às faixas de população de mais baixa renda, que são as que mais precisam da atuação do Poder Público.226 Para Nelson Saule Júnior, o orçamento participativo tem o significado de partilha de poder, pois “não somente os técnicos da burocracia estatal e os governantes tomam as decisões sobre a arrecadação e os gastos públicos, devido a participação direta dos indivíduos, comunidade, movimentos 225 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política, p. 128-129. AVRITZER, Leonardo. O orçamento participativo: As experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte. 226 116 sociais e organização da sociedade civil”. 227 Entende Pedro Pontual que o orçamento participativo é uma prática que tem potencialidade enorme de transformar uma cultura política arraigada que é profundamente elitista e autoritária, expressando-se nas práticas de tutela, clientelismo, fisiologismo e trocas de favores. Uma transformação que emerge da constituição de uma cidadania ativa e responsável, da construção de novos espaços públicos, do alargamento e aprofundamento do exercício da democrática por meio de novas práticas de gestão da coisa pública. Uma transformação que emerge de uma prática apta a “pedagogizar” o conflito, no sentido almejado por Paulo Freire. 228 O orçamento participativo, de fato, tem inúmeras vantagens, vez que possibilita: a) a construção de critérios objetivos e transparentes de distribuição dos recursos públicos; b) a tomada de uma consciência mais efetiva por maior número de pessoas das possibilidades e dos limites dos recursos públicos; c) uma visão mais clara das atribuições de cada uma das esferas de poder (entes federativos e poderes estatais); d) o desvelamento dos mecanismos de funcionamento da máquina do Estado e dos procedimentos de elaboração e execução orçamentária; e) o aprendizado de que o conflito faz parte do processo de elaboração de políticas públicas e de planejamento orçamentário e de que são necessárias regras claras e democráticas para a disputa dos interesses e para a negociação . No plano simbólico, o orçamento participativo propicia um 227 SAULE JÚNIOR, Nelson. A participação dos cidadãos no controle da Administração Pública. 228 PONTUAL, Pedro. Nova cultura política no orçamento participativo, p. 47. 117 sentimento de pertencimento, fazendo o cidadão valorizar os investimentos e as ações estatais como algo que é seu, que ele colaborou para realizar, participando da construção da decisão pública. Além disso, a prática participativa promove a educação política do povo; fomenta o controle social das políticas públicas; fortalece o senso de solidariedade; desenvolve a capacidade de negociação de conflitos, de hierarquização de prioridades e de construção de consensos; permite que mais pessoas passem, paulatinamente, a entender o modus operandi229 dos processos de tomada de decisões e de gestão da coisa pública. Enfim, contribui efetivamente para o empoderamento das classes mais frágeis da sociedade e sua integração na cidadania. Por outro lado, vem a calhar a advertência de Leonel Pires Ohlweiler: “O nível de democracia imprescindível para um autêntico conjunto de políticas públicas certamente exige a construção de estratégias capazes de expressarem as aspirações da comunidade, manifestadas em debates e audiências públicas, mas que não se divorciem do projeto de legitimidade constitucional formal e substancial. Com isto quer-se dizer que a regra majoritária não é e não pode ser absoluta. Existem limites até mesmo para os espaços de deliberação participativa”.230 Na retomada dessa discussão, deve-se iniciar lembrando que a atual concepção de planejamento, à luz da Constituição de 1988, que estabelece que o Brasil é uma República Democrática e um Estado Social de Direito, exige que a dimensão técnica dialogue com a dimensão política, que a programação das atividades estatais ocorra dentro de uma metodologia democrática e participativa. Consoante 229 230 Tradução livre: funcionamento; maneira ou modo de operar. OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas públicas e controle jurisdicional, p. 336. 118 adverte Tania Bacelar Araújo: “O planejamento não pode ser entendido como uma atividade técnica de organização do processo decisório (ênfase da razão técnica). Na concepção contemporânea, o planejamento é visto como um processo de negociação e decisão política, envolvendo diferentes atores e grupos sociais, portadores de interesses diversos e capacidade de influenciação e poder também distintos (Matus, 1989). O processo de planejamento organiza o círculo decisório, que é alimentado e fundamentado por recursos e instrumentos técnicos e organizacionais, mas seu caráter é essencialmente político. No planejamento governamental, o Estado é ator estratégico da implementação de um projeto dominante e um locus importante da luta social. O processo de planejamento incorpora as decisões que resultam da negociação técnico-política. Essa concepção do planejamento tem uma importância fundamental na estruturação do sistema institucional encarregado de produzir planos, programas e projetos. Ela impede a reprodução da experiência de livros-planos, meras declarações de intenções, produtos de elaboração tecnocráticas, sem força nem patrocínio político.”231 No plano do direito à moradia, é importante que a integração planejamento-orçamento não mais ignore que a maior parte da população urbana brasileira é pobre, tem baixíssima renda e pouca ou nenhuma capacidade de investir em um bem extremamente caro como é uma unidade habitacional construída em terreno urbanizado. Daí porque moradia não pode ser tratada exclusivamente como uma mercadoria. Quando não há planejamento, ou quando esse planejamento excluir essa significativa parcela da população, ela terá que resolver por 231 ARAÚJO, Tania Bacelar. Planejamento regional e relações intergovernamentais, p. 476. Klaus FREY (A dimensão político democrática das teorias de desenvolvimento sustentável e suas implicações para a gestão local, p. 7-12) lembra que, em sentido contrário à abordagem política de participação democrática, há aqueles que defendem uma visão tecnocrática e autoritária de planejamento, sustentando que o povo não dispõe de maturidade e capacidades suficientes para tomar decisões prudentes em um processo complexo como é o de planejar o desenvolvimento. 119 si só sua necessidade de moradia, produzindo habitações de forma autoconstruída nos espaços que sobram da cidade, ou seja, nos espaços não ocupados pelos mercados formais, como as beiras de córregos, as encostas, as áreas de preservação ambiental ou de risco ou insalubres, com resultados socioambientais desastrosos. Portanto, é preciso levar a sério as diretrizes estabelecidas na Constituição de 1988 e as linhas gerais nela estabelecida para que sejam elaboradas e executadas políticas públicas consistentes, aptas a conduzir o país a um processo de desenvolvimento que elimine a pobreza, redistribua riquezas e oportunidades, reduza desigualdades e ofereça a todos as condições mínimas de uma vida digna. Enfim, para que a moradia digna, mais do que um direito enunciado, torne-se algo efetivamente usufruído por todos os brasileiros, concretize-se de uma vez por todas no cotidiano nacional, aproximando-se cada vez mais o ideal do texto da realidade. 2.4. PLANEJAMENTO E ORÇAMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À MORADIA Deve-se levar em conta que as políticas públicas de proteção e promoção dos direitos tornam-se estritamente retóricos, esvaziados de sentido prático, se não tiverem o adequado suporte financeiro. Assim, entender o regime jurídico do orçamento público é indispensável para que se possa garanti-lo pelos controles democráticos, inclusive o jurisdicional, se necessário. Contudo, a efetivação do programa constitucional, que perpassa o enfrentamento dos problemas habitacionais brasileiros, demanda que 120 não se caia no vício de reduzir o planejamento da ação estatal ao processo orçamentário. E mais, para que os planos estejam de acordo com a realidade e tenha condições de “sair do papel” e concretizar-se na vida das pessoas, imprescindível a integração entre planejamento estratégico e processo orçamentário participativo, sendo este um dos nós górdios do problema da falta de efetividade do direito à moradia digna no Brasil. Salienta-se, entretanto, que o planejamento das políticas públicas, dentre elas a habitacional, vai além do processo orçamentário. O planejamento das políticas públicas envolve a elaboração de leis programáticas como são as leis que tratam do orçamento das receitas e despesas públicas. Porém, o planejamento das políticas públicas é muito mais do que o orçamento público. O orçamento público é a simples previsão de gastos, que pode ocorrer ou não. O orçamento é apenas uma forma de coordenar mais racionalmente os gastos públicos. É que o orçamento público, no Brasil, por não ter caráter vinculativo, torna-se mera previsão e autorização de gastos públicos. Trata-se de leis programáticas, de mera programação da receita e da despesa pública, que autoriza, mas não obriga o Poder Público a realizar os gastos nele previstos e autorizados. Ao contrário, o planejamento de uma política pública fixa diretrizes para a atuação do Estado. É o planejamento que define os objetivos a serem atingidos pelo Poder Público, e quantifica metas, sendo assim, pressuposto ou condição de possibilidade para o exercício dos controles, não só quanto ao desvio de poder, mas, sobretudo, no 121 que diz respeito às omissões232. Por isso é que se torna necessário fomentar uma cultura de planejamento por meio de lei. Uma lei que defina um plano de política pública, explicitando objetivos e metas a serem obrigatoriamente alcançados em determinado período de tempo. Ainda que se possa fazer planejamento apenas no âmbito da Administração Pública, imprescindível que ele seja elaborado no âmbito do Parlamento para tornar-se política de Estado, e não de apenas uma gestão governamental. Impende também que, ao contrário das leis orçamentárias, as leis contemplando planos estratégicos não contemplem apenas autorizações para gastos e realização de atividades públicas, mas tenham sim caráter vinculativo quanto ao alcance das metas. Por um lado, o planejamento não pode ser reduzido à orçamentação, por outro, é claro que o planejamento deve estar vinculado ao orçamento. Sem previsão de recursos financeiros, o plano não sai do papel, torna-se peça meramente retórica. O que se salienta aqui é o empecilho à concretização do programa constitucional de desenvolvimento, inclusão e emancipação, colocado pelo mau vezo de reduzir o planejamento ao orçamento. E é justamente a falta de um planejamento consistente (inclusive com previsão de recursos orçamentários) de uma política nacional de habitação um dos grandes fatores da atual crise de efetividade do direito à moradia. Com efeito, a questão transcende a eficácia da norma constitucional que consagra o direito humano fundamental à moradia. Não é a falta ou pouca eficácia da norma constitucional a responsável 232 Omissão no sentido de não fazer o deveria ser feito, portanto, um conceito normativo, ligado à tutela contra a inércia ou proteção insuficiente de um direito. 122 pela atual crise de efetividade do direito à moradia, mas sim o déficit de efetivação do programa constitucional. Um desafio que pode ser enfrentado de maneira mais consistente com o auxílio do ferramental metodológico do planejamento estratégico. Referencial importante nesta seara é o chamado Planejamento Estratégico Situacional, divulgado no Brasil no final dos anos 80 e início dos anos 90, por Carlos Matus233, e que se propõe a trabalhar com problemas, oportunidades e ameaças, identificando-se suas causas, seus sintomas e suas consequências. Um dos grandes méritos do método do Planejamento Estratégico Situacional de Carlos Matus é que a abordagem da realidade por problemas permite o diálogo e a participação com os setores da sociedade que sofrem os efeitos dos problemas concretos a serem enfrentados, aproximando a dimensão técnica e a dimensão política do planejamento. Com base na teoria dos jogos234, esta metodologia propugna que também sejam feitas análises sobre as possíveis interações que atores sociais, por força de seus interesses, terão para com ações estratégicas planejadas. Em suma, defende-se o planejamento a partir de uma abordagem sempre situacional, isto é, situada em determinado contexto concreto e focada em problemas que devem ser 233 Economista chileno, Carlos Matus foi Ministro do Governo Allende (1973). Criou a Fundação Altadir, com sede na Venezuela para dirigir o método do Planejamento Estratégico Situacional e capacitar dirigentes. Ministrou vários cursos no Brasil nos anos 90. 234 A teoria dos jogos leva em conta as ações de natureza estratégica, que são aquelas que buscando a realização de um determinado interesse. A análise é feita na dinâmica das interações, identificando as tendências de comportamento consoante as informações disponíveis a cada jogador nas diversas rodadas. Para aprofundar sobre a teoria dos jogos e suas aplicações nas análises econômicas do Direito, ver: FIANI, Ronaldo. Teoria dos jogos. RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI JUNIOR, Irineu. Teoria Geral dos contratos: Contratos empresarias e análise econômica, p. 108-114. 123 enfrentados.235 Ensina Francisco Antônio Cavalcanti que o pressuposto básico para o êxito no planejamento estratégico e na sua implementação é a legitimidade, e está é garantia pela participação. Uma participação qualificada que garanta o máximo possível de informação a todos os atores. Escolia igualmente que: “O modelo básico de planejamento estratégico compõe-se de estágios claramente delineados, que envolvem a definição de propósitos da organização, a definição de seus princípios, o diagnóstico das realidades ambientais, a escolha das estratégias, a fixação dos objetivos e a concepção das ações. (...) A rigor, ao plano estratégico subordinam-se o plano tático, correspondente às metas e às ações, e o plano operacional, expresso nas agendas de trabalho para a implementação dessas ações”.236 Por seu turno, mas na mesma direção, José Matias-Pereira sustenta que: “Facilitar a solução de problemas pela ação catalisadora aplicada a toda comunidade através do planejamento estratégico, baseado na previsão do que vai acontecer, é um bom caminho a ser seguido pelo 237 governo.” José Afonso da Silva238, considera o processo de planejamento como a definição de objetivos determinados em função de uma realidade e da manifestação de uma população, a preparação dos meios para atingi-los, o controle de sua aplicação e a avaliação dos resultados obtidos. Na ótica do autor, desdobra-se o processo de planejamento nas seguintes etapas: 235 MATUS, Carlos. Política, planejamento, governo. CAVALCANTI, Francisco Antônio. Planejamento estratégico participativo, p. 97 e 163. 237 MATIAS-PEREIRA, José. Finanças públicas, p. 258. 238 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro, p. 142-144. 236 124 I – Estudos preliminares: que levantam dados e avaliam de forma sumária a situação e os problemas a serem enfrentados; II – Diagnóstico: que pesquisa e analisa em profundidade os problemas selecionados na etapa anterior, identifica as variáveis que devem ser consideradas para as soluções desses problemas e prevê suas perspectivas de evolução. O diagnóstico busca responder às seguintes perguntas: Quais são os problemas existentes? Quais as necessidades a atender? Que tipos de atuação devem ser desenvolvidos? Portanto, o diagnóstico corresponde a uma análise da situação visando coligir dados informativos para estabelecer as diretrizes das mudanças que se quer implementar. Envolve, portanto, uma análise retrospectiva da situação existente, buscando suas causas, bem como uma análise projetiva, em que serão salientados os meios necessários que deverão ser utilizados para a solução dos problemas verificados, bem como em que serão estruturados os programas e os projetos destinados a alcançar os objetivos escolhidos; III – Plano de diretrizes: no qual se estabelece uma política para as soluções dos problemas escolhidos, definem-se metas, faz-se a seleção dos meios, fixam-se as diretrizes para a atuação estatal; e IV – Instrumentação do plano: que compreende a elaboração dos instrumentos de atuação, de acordo com as diretrizes selecionadas, e identifica as medidas capazes de atingir os objetivos escolhidos. É o plano propriamente dito, com relatórios, mapas, quadros, propostas de transformação, previsão dos recursos técnicos, humanos e financeiros necessários à implementação do plano a curto, médio e longo prazos. Na síntese de José Matias-Pereira, embora se perceba algumas pequenas diferenças de nomeclatura e na separação das etapas, conforme a metodologia adotada, em essência, o processo de 125 planejamento estratégico envolve as seguintes atividades: a) a análise da situação interna e externa; b) o diagnóstico ou identificação das questões mais importantes à frente da organização; c) a definição da sua missão fundamental; d) a articulação de seus objetivos básicos; e) a criação de uma visão do sucesso almejado; f) o desenvolvimento de uma estratégia para realizar a visão e os objetivos definidos; g) a elaboração de um calendário para executar a estratégia e h) a mensuração e avaliação dos resultados alcançados.239 A metodologia do planejamento estratégico resta incorporada no processo orçamentário com o advento do chamado “orçamentoprograma”. O que não pode ocorrer é cair-se no vício de reduzir o planejamento a simples elaboração das peças orçamentárias. Destaca Fabiano Garcia Core que todo e qualquer sistema orçamentário compreende o desempenho de três funções básicas: a de planejamento, a de gerência e a de controle das ações estatais, estruturando-se de acordo com ênfase dada a cada uma dessas funções.240 A vinculação necessária entre o planejamento das políticas públicas e o orçamento público, põe em relevo a função planejamento, típica do chamado orçamento de desempenho ou orçamentoprograma, que é aquele que apresenta os propósitos e objetivos para os quais os créditos orçamentários se fazem necessários; é o orçamento que apresenta os custos dos programas propostos para atingir aqueles objetivos; é o orçamento que apresenta indicadores para que se meçam as realizações e os trabalhos levado a efeito por cada um dos programas propostos. Enfim, é um sistema que privilegia a função de 239 240 MATIAS-PEREIRA, José. Finanças públicas, p. 258. CORE, Fabiano Garcia. Reformas orçamentárias no Brasil, p. 1. 126 planejamento estratégico. Os conceitos de orçamento-programa e planejamento estratégico da ação governamental foram bastante difundidos nos anos 60, por manuais e seminários patrocinados pela Organização das Nações Unidas, com destaque para o “Manual de Orçamento por Programas e Realizações”, publicado em 1962, parte das iniciativas para fomentar o desenvolvimento dos países economicamente pobres. A introdução oficial deste instrumento no Brasil ocorre com a Lei 4.320, de 17 de março de 1964, que incorpora várias disposições dos manuais das Nações Unidas sobre orçamento por programas e realizações. 241 Seguindo as recomendações dos manuais das Nações Unidas, bem como se valendo das experiências positivas do Governo dos Estados Unidos, o artigo 2º da Lei 4.320/64 estabeleceu que: “A Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e da despesa de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do governo, obedecidos os princípios da unidade, universalidade e anualidade”. Atualmente, o regime jurídico do orçamento público está, em sua base, estabelecido na Constituição de 1988, notadamente nos artigos 165 a 169, além dos artigos 70 a 75 (normas sobre o controle da execução orçamentária), do artigo 99 (orçamento do Poder Judiciário) e artigo 31 (a fiscalização orçamentária nos Municípios), na Lei 4.320/64, recepcionada com força de Lei Complementar, e na Lei Complementar 101/2000. 241 A Lei 4.320/64 é produto de várias colaborações. Remonta ao anteprojeto elaborado em agosto de 1949 durante a 3ª Conferência da Contabilidade Pública e Assuntos Fazendários que se fundiu com outro, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Conselho Técnico de Economia e Finanças, em 1957. 127 Em seu regramento jurídico contemporâneo, o orçamento público está inserido no contexto das atividades de planejamento da ação estatal, isto é, na concepção das políticas públicas, importando em responder às questões de o que o Poder Público irá fazer, onde, quando e como. A técnica de planejamento desmembra-se nas etapas de diagnóstico, programação, execução e controle, avaliação e revisão.242 A linguagem orçamentária é essencialmente contábil. O elemento básico de expressão do orçamento são contas, por meio das quais se antecipa, por projeção, as receitas e despesas (orçamento propriamente dito), se registra as operações financeiras de receitas e despesas (execução orçamentária) e se demonstra os resultados dessas operações e da situação patrimonial (balanços e relatórios). Não obstante a linguagem contábil do orçamento, que salienta sua dimensão técnica, é importante lembrar que tanto as receitas tributárias, como as despesas públicas são fruto de decisões políticas, muitas delas já tomada no plano constitucional, muitas outras deixadas em aberto para o campo da Política e da Democracia cotidianas. Nessa linha, Eduardo de Lima Caldas aponta que o orçamento público: “não é uma mera listagem de números e valores de significado apenas contábil, embora muitas vezes seja apresentado numa forma técnica muito complexa, o que dificulta o conhecimento e a apropriação do seu conteúdo por parte de grupos organizados da sociedade. O acesso a essas informações permite à população intervir na disputa por recursos voltados à melhoria das suas condições de vida. Quando as reivindicações de um segmento da sociedade são publicamente incorporadas ao orçamento, estas deixam de ser entendidas como um favor e adquirem o caráter de 242 SIRAQUE, Vanderlei. Controle social da função administrativa do Estado, p. 151. 128 direito.” 243 Destacando o processo de negociação política que perpassa a elaboração do orçamento público, Paulo Romeiro afirma que: “o orçamento elaborado pelo Executivo é negociado com os diferentes setores sociais representados no Legislativo. Estes expressam os interesses de seus representados, apresentando emendas à peça orçamentária que busquem atender suas demandas. Um dos palcos privilegiados para essa negociação é a Comissão do Orçamento, presente nos três níveis do Poder Legislativo. (...) Os parlamentares também podem decidir o destino dos chamados créditos especiais ou suplementares. São recursos que, em virtude do processo de discussão no Legislativo, ficam sem as despesas correspondentes, seja em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária e que poderão ser utilizados mediante autorização legislativa prévia e específica”. 244 Assim, acompanhar o direcionamento de recursos e reivindicar sua aplicação em determinada área de atuação do Estado é uma forma de verificar se há ou não comprometimento das gestões públicas em reduzir as desigualdades e buscar efetivação dos direitos sociais, dentre os quais o direito à moradia digna. Hélio Saul Mileski, por sua vez, põe em relevo que o orçamento público exerce grande influência na vida de cada cidadão, na medida em que: “É por meio do orçamento público que o Estado pode proceder a uma redistribuição de renda, aumentando ou reduzindo a carga tributária. É pelo orçamento público que o Estado diz se vai colocar uma lâmpada no último poste, da última rua, da última vila da periferia, ou se vai construir um palácio ou uma usina elétrica”.245 243 CALDAS, Eduardo de Lima. Apresentação e acompanhamento do orçamento público do município de São Paulo no período recente, p. 9-10. 244 ROMEIRO, Paulo. O controle social do orçamento público, p. 14-15. 245 MILESKI, Hélio Saul. O controle da gestão pública, p. 45. 129 O que fazer? Onde? Quando? Como? Com quais meios? Em suma, o processo de planejamento, de formulação de políticas públicas, que se integra com o processo orçamentário, e se concretiza na sua execução, visa responder a essas perguntas. Nesta linha, enfatiza James Giacomoni que “hoje o orçamento deve ser visto como parte de um sistema maior, integrado por planos e programas de onde saem as definições e os elementos que vão possibilitar a própria elaboração orçamentária”.246 No regramento da Constituição de 1988, a compatibilização entre o planejamento das políticas públicas e sistema orçamentário se desdobra em três instrumentos sob a forma de leis e que devem estar entre si articulados: o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual. Tudo conforme disposto nos artigos 165, 166 e 167 do Texto Maior. O Plano Plurianual estabelece o planejamento global da ação governamental de longo prazo. Trata-se de um plano de trabalho no qual se busca responder à seguinte questão: Nos próximos quatro anos, o que será feito pelo Poder Público, além de manter aquilo que já funciona? Como plano de expansão e aprimoramento da ação governamental, tem período de vigência intergovernamental (vigora do segundo ano de determinado mandato do Chefe do Poder Executivo e se estende até o primeiro ano da próxima gestão) visando garantir a continuidade de diversos programas.247 246 GIACOMONI, James. Orçamento público, p. 206. CALDAS, Eduardo de Lima. Apresentação e acompanhamento do orçamento público do Município de São Paulo no período recente, p. 11. No mesmo sentido, LIMA, Edilberto 247 130 Para Ricardo Lobo Torres, “O plano plurianual tem por objetivo estabelecer os programas e as metas governamentais de longo prazo. É planejamento conjuntural para a promoção do desenvolvimento econômico, do equilíbrio entre as diversas regiões do País e da estabilidade econômica”.248 Escolia, por sua vez, Gilberto Bercovici que, o plano plurianual, introduzido pelo artigo 165, I e § 1º, da Constituição brasileira de 1988, tem por fundamento o encadeamento entre as ações anuais de governo, previstas no orçamento anual com um horizonte de tempo maior, necessário para um planejamento efetivo.249 Dispõe o § 1º do artigo 167 da Constituição que nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, prevendo que o ordenador da despesa que não cumprir esse preceito será responsabilizado. Alterações na lei orçamentária anual somente poderão ser aprovadas se compatíveis com o Plano Plurianual (artigo 166, § 3º). Além disso, reza o § 4º do artigo 165 da Constituição que o custeio de todos os programas nacionais, regionais e setoriais previstos na Constituição – como é o caso dos programas nacionais de urbanização e/ou habitação social - deve se compatibilizar com o plano plurianual. Para estabelecer uma conexão entre os instrumentos de Carlos Pontes; MIRANDA, Rogério Boueri. O processo orçamentário brasileiro, p. 323: “O PPA é um instrumento de planejamento a médio prazo e deve estabelecer as diretrizes para as despesas de capital e para as de duração continuada. Tem duração de quatro anos, revisado anualmente. A vigência é do segundo ano do mandato do presidente da República até o primeiro ano do mandato do presidente que o suceder. A vigência entre dois governos foi estabelecida com o intuito de tentar evitar solução de continuidade entre as ações governamentais quando da mudança de governo”. 248 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 172. 249 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento, p. 80. 131 planejamento, o Plano Plurianual deve ser detalhado em um plano de metas para cada ano. Este plano de metas anual chama-se Lei de Diretrizes Orçamentárias porque define as normas gerais para a elaboração da Lei Orçamentária Anual, além de estabelecer as metas compatíveis com o Plano Plurianual a serem atingidas no ano vindouro mediante a execução da Lei Orçamentária Anual. Portanto, a Lei de Diretrizes Orçamentárias é uma “ponte” entre o Plano Plurianual e a Lei Orçamentária Anual. De acordo com a cátedra de Ricardo Lobo Torres250: “A lei de diretrizes é, em suma, um plano prévio, fundado em considerações econômicas e sociais, para a ulterior elaboração da proposta orçamentária do Executivo, do Legislativo (arts. 51, IV e 52, XIII), do Judiciário (art. 99, § 1º) e do Ministério Público (art. 127, § 3º).” 251 Hely Lopes Meirelles252 ensina que a lei de diretrizes orçamentárias deve estabelecer as metas e prioridade da Administração para o exercício financeiro subsequente, orientar a elaboração da lei orçamentária anual, dispor sobre as alterações na legislação tributária e ser aprovada até o final do primeiro semestre de cada ano (CF, art. 165, § 2º). A Lei de Diretrizes Orçamentárias também deve estabelecer a política das agências financeiras de fomento (CF, artigo 165, § 2º). Há possibilidade de emendas ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, desde compatíveis com o plano plurianual (CF, artigo 166, § 4º). A Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2000, conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”, no seu artigo 4º, § 1º, previu 250 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário, p. 174-175. Referências feitas ao Texto Constitucional. 252 Meirelles, Hely Lopes. Direito Municipal brasileiro, p. 249. 251 132 uma nova função para a Lei de Diretrizes Orçamentárias, a de planejamento trienal. Daí se prever o instrumento do Anexo de Metas Fiscais, que deve integrar o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias. No Anexo de Metas Fiscais serão estabelecidas metas anuais, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário253 e montante da dívida pública, para o exercício a que se referir a Lei de Diretrizes Orçamentárias e para os dois seguintes. Por fim, tem-se a Lei Orçamentária Anual, elaborada segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias, constituindo o orçamento público stricto sensu254, eis que prevê as receitas e fixa as despesas de um ano de governo. Aprovada a Lei Orçamentária Anual, esta é publicada no Diário Oficial. A partir de então o Poder Executivo tem até trinta dias para estabelecer a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolsos (artigo 8º da Lei Complementar 101/2000)255. É imprescindível que haja um vínculo entre o planejamento estratégico, o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual (orçamento-programa). Inclusive, nesse sentido, é a redação expressa do § 4º do artigo 165256 e do artigo 167, I257, da Constituição da República e do artigo 40, § 1º do Estatuto das Cidades, 253 Resultado primário é a diferença entre receitas e despesas, excluído tudo o que diga respeito a juros e a principal da dívida, tanto pagos quanto recebidos. Resultado nominal é a diferente entre todas as receitas arrecadadas e todas as despesas empenhadas. 254 Em tradução livre: em sentido estrito. 255 BRASIL. Lei Complementar 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal – Art. 8º. Até 30 (trinta) dias após a publicação dos orçamentos, nos termos em que dispuser a lei de diretrizes orçamentárias e observado o disposto na alínea c do inciso I do artigo 4º, o Poder Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma mensal de desembolso. 256 BRASIL, Constituição de 1988. Art. 165. (...) § 4º. Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional. 257 BRASIL, Constituição de 1988. Art. 167. São vedados: I – o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; (...). 133 Lei 10.257/2001: “Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. § 1º. O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e prioridades nele contidas.” Planejamento e processo orçamentário são duas dimensões que se complementam. Sem previsão de recursos, os planos não têm condições de sair do papel, tornam-se peças meramente retóricas, simbólicas, demagógicas, de fachada. Por outro lado, orçamento sem planejamento corre o risco de torna-se peça de ficção, posto que sua natureza jurídica é meramente a de ato autorizativo. A lei orçamentária autoriza, mas não obriga o Poder Público à realização de gastos públicos, a fazer os investimentos nela contemplados. Deste modo, é o plano, previsto em lei, contemplando metas vinculativas, isto é, resultados concretos que deverão ser obrigatoriamente alcançadas, que assegura efetividade da promoção e proteção de determinado direito social por meio de políticas públicas, além de viabilizar o controle social por meio do monitoramento dos respectivos indicadores. Observa-se, uma tendência de redução do planejamento estatal à elaboração dos planos plurianuais e leis orçamentárias, olvidando-se da necessidade de se construir democraticamente, com a participação da sociedade e dos seus representantes no Poder Legislativo, um projeto mais amplo de desenvolvimento socioambientalmente sustentável, tido como a política das políticas públicas, isto é, como a principal política 134 pública, responsável pela conformação e harmonização de todas as políticas públicas, regionais, locais e setoriais. Na síntese de Gilberto Bercovici: “A partir da década de 1980, o planejamento foi totalmente abandonado pelo Estado. A atuação estatal caracteriza-se, desde então, como desprovida de uma diretriz global para o desenvolvimento nacional. A política econômica limitou-se à gestão de curtíssimo prazo dos vários “planos” de estabilização econômica. Deste modo, o Poder Público foi incapaz de implementar políticas públicas coerentes, com superposição e implementação apenas parcial de diversos planos ao mesmo tempo”258 A falta de cumprimento pelo Poder Legislativo da obrigação, prevista no § 1º do artigo 174 da Constituição de 1988259, de editar legislação fixando diretrizes e bases para o planejamento do desenvolvimento nacional, é deveras sintomática da pouca importância que vem sendo dada à função, ao poder-dever, de o Poder Público planejar estrategicamente o desenvolvimento econômico e social do Brasil. 260 Há, pois, na contemporaneidade, uma crise na função estatal de planejamento, uma crise que irradia seus efeitos no campo do direito à moradia digna, e que está a demonstrar a premência de se retomar a discussão do tema e de fazê-lo retornar à agenda política nacional. 258 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento, p. 76. BRASIL, Constituição de 1988. Art. 174. (...) § 4º. A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. 260 Exemplo bastante elucidativo da redução do planejamento ao orçamento foi o Plano Brasil em Ação do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, que se assemelha estruturalmente às primeiras experiências de planificação dos gastos estatais no Brasil, desenvolvidas pelo DASP – Departamento Administrativo do Estado Novo, durante o Estado Novo (o Plano Especial de Obras Públicas e Aparelhamento da Defesa Nacional de 1939 e o Plano de Obras e Equipamentos de 1943). Ou seja, documentos que se limitam à propostas orçamentárias, sem garantir efetivamente os recursos necessários para a concretização do plano, nem fixam objetivos e metas a serem obrigatoriamente atingidos pela atuação do Estado. 259 135 Daí a importância de se resgatar a prática do planejamento no setor público brasileiro. Um planejamento que seja feito de forma democrática, com participação do Poder Legislativo e com intensa participação também dos diversos segmentos da sociedade civil. Um planejamento que seja fruto da democratização do processo político, da imposição do melhor argumento no processo comunicativo de formação de opinião e na criação de uma esfera pública, sustentada pela sociedade civil, que se torne a força motriz para a promoção do desenvolvimento sustentável.261 Por fim, e não menos importante, um planejamento cujo resultado se revista da forma de lei, prevendo metas a serem obrigatoriamente alcançadas pelos Governos, na medida em que consubstancie Políticas de Estado. Levando em conta que moradia é um direito humano fundamental e que o acesso a unidades habitacionais estruturalmente seguras e salubres, situadas em áreas com infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade, transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais, precisa ser universalizado. Enfrentar esse grande desafio demanda, sem dúvida, que as políticas públicas pertinentes resultem de um bom planejamento estratégico e de uma constante mobilização cívica que neutralize os riscos de bloqueio neoliberação à efetivação dos direitos humanos fundamentais que dependem da atuação do Poder Público. 261 FREY, Klaus. A dimensão político-democrática nas teorias de desenvolvimento sustentável e suas implicações para a gestão local, p. 17. 136 2.5. O RISCO DE BLOQUEIO NEOLIBERAL À UNIVERSALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA DIGNA O neoliberalismo, presente na cena política mundial a partir do final da década de 1980 é, caracterizado, na síntese de Enzo Bello, como um movimento que apresenta fortes críticas ao Estado, aponta para o desaparecimento da sua responsabilidade social, revelando uma verdadeira cultura de “Estadofobia”, pregando, portando, uma reorganização estrutural do aparato burocrático estatal, mediante reformas e desestatização.262 O ideário neoliberal se fez presente no Brasil, tendo como um diploma de grande expressão a Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar n. 101/2000, a qual, segundo a análise de Gilberto Bercovici e Luís Fernando Massonetto, coroa um processo iniciado nos anos 1970.263 Com a crise econômica mundial da década de 1970, várias reformas foram realizadas para alterar o padrão de financiamento do Estado brasileiro, até então pautado na emissão de moeda, geradora de inflação.264 Entre essas reformas, destaca-se a criação, pelo Decreto n. 262 BELLO, Enzo. Cidadania e direitos sociais no Brasil, p. 191. BERCOVICI, Gilberto; MASSONETTO, Luís Fernando. A Constituição Dirigente Invertida. 264 A estruturação financeira do Estado brasileiro, durante o regime militar, expressava-se em quatro peças orçamentárias distintas: 1) o Orçamento Geral da União, que era o orçamento fiscal, sendo essa a única peça orçamentária aprovada formalmente pelo Congresso Nacional; 2) o Orçamento da Previdência Social, definido e implementado apenas no âmbito do Executivo; 3) o Orçamento das Empresas Estatais, também elaborado e executado exclusivamente pelo Executivo, e 4) o Orçamento Monetário, peça em que eram fixadas as metas quantitativas das duas autoridades monetárias: o Banco Central e o Banco do Brasil e que era manipulado pela conta-movimento do Banco do Brasil, criada em março de 1965, e que, na prática, representava emissão de moeda pelo Tesouro Nacional para financiamento do déficit público, que era camuflado e, por isso, não constava do Orçamento Geral da União. 263 137 84.128, de 29 de outubro de 1979, da Secretaria de Controle das Empresas Estatais. Com a redemocratização, motivado pela profunda crise econômica herdada pela Nova República, o processo de reestruturação financeira acelera. Em 1986 é criada a Secretaria do Tesouro Nacional, que passa a administrar os fundos e programas de fomentos até então gerenciados pelo Banco Central. Em 31 de janeiro de 1986, o Conselho Monetário Nacional, por força do Voto n. 45/86, congela o saldo da conta-movimento do Banco do Brasil, encerrando, na prática suas atividades. Com o Plano Bresser, de 1987, editado pelos Decretos 94.443 e 94.444, ambos de 12 de junho de 1987, e pelo Decreto-Lei n. 2376, de 25 de novembro de 1987, a gestão da dívida pública sai da esfera de competências do Banco Central e passa para o Ministério da Fazenda. Além disso, o Banco Central deixa de ser financiador do Tesouro Nacional, bem como são extintas suas funções de fomento. A Constituição de 1988265 consolidou a unificação monetária e orçamentária, ampliando a participação do Poder Legislativo na elaboração, aprovação e execução do orçamento, além de se aumentar a transparência dos gastos públicos. Durante a década de 1990, ocorrem a privatização dos bancos estaduais e a consolidação da autoridade monetária centralizada no Banco Central. Por fim, tem-se no ano 2000 a edição da Lei de Responsabilidade 265 Apontam BERCOVICI e MASSONETTO que as origens da ordem financeira da Constituição de 1988 estão na estruturação econômico-financeira da ditadura militar, iniciada com o Plano de Ação Econômica do Governo, elaborado por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, em 1964, que resultou, por exemplo, na criação do Banco Central do Brasil, pela Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, como órgão de defesa da moeda nacional, função essa compartilhada com o Banco do Brasil, além de algumas funções de fomento econômico. 138 Fiscal (Lei Complementar n. 101) que coroa um processo iniciado na década de 1970. A face perigosa desse processo de reestruturação das finanças públicas, buscando o equilíbrio das contas públicas, tendo como norte a geração de superávits para pagamento da dívida pública, é o esgotamento, ou redução drástica, da capacidade de intervenção do Estado na área econômica e social. Busca-se, de maneira drástica, garantir-se o pagamento da dívida financeira, e se esquece da enorme dívida social, concentrada na grande parcela pobre e marginalizada da população. Diminui-se consideravelmente a capacidade do Estado brasileiro de realizar na prática o programa de desenvolvimento previsto na Constituição de 1988. Por isso, Gilberto Bercovici e Luís Fernando Massonetto alertam para os riscos de bloqueio à realização dos direitos sociais e ao programa de desenvolvimento previsto na Constituição de 1988, em decorrência das tendências liberais percebidas a partir das últimas décadas do século XX, que implicam no fenômeno da “Constituição dirigente invertida” Se no segundo pós-guerra emergiram Constituições de Estados Sociais, cujos orçamentos apresentam a característica fundamental de garantir direitos e a prestação de serviços públicos para a maioria da população, a partir dos anos 1970, com a financeirização do capitalismo, e com o desenvolvimento tecnológico chegando a um nível que passa dispensar a força de trabalho humana, o sistema capitalista não vê mais serventia em um fundo público com a função de assegurar, por meio de direitos sociais e serviços públicos, a reprodução da força 139 de trabalho. Assim, começam as investidas para que o fundo público sirva para garantir a remuneração do próprio capital. É daí que, a partir da década de 1980, alçam-se a retórica do controle do déficit público, vinculada ao discurso neoliberal de repúdio ao Estado, não obstante esses discursos viessem acompanhados do paradoxal aumento dos gastos públicos em razão de despesas com a política monetária, especialmente para custeio das altas taxas de juros. Ou seja, o déficit público que era defendido por autores como John Maynard Keynes e Michal Kalecki para propiciar pleno emprego, com as políticas do neoliberalismo, passa a ter nova função: garantir a remuneração para o capital. A crise do setor público torna-se mais graves nos países periféricos como o Brasil, cujos recursos são insuficientes para financiamento público da acumulação de capital. Seguindo as tendências neoliberais, o orçamento público passa a ser utilizado para estabilizar o valor real dos ativos das classes proprietárias, isto é, para garantir o investimento privado, em detrimento dos direitos sociais e dos serviços públicos voltados para a população mais desfavorecida. Assim, o orçamento-programa, dada a primazia assegurada à política de estabilização monetária e a garantia do custo da moeda. Política essa definida pelo Banco Central e pelo Conselho de Política Monetária – COPOM, à margem do Congresso Nacional, corre o risco de não cumprir com sua função promocional do desenvolvimento. Daí que a implementação da ordem econômica e da ordem social prevista na Constituição de 1988 ficam restritas as sobras orçamentárias e financeiras do Estado. 140 Ou seja, na síntese de Bercovici e Massonetto: a Constituição financeira de 1988 restará “blindada” com os rigores da Lei de Responsabilidade Fiscal. Como, então, buscar as metas da ordem econômica e social previstas no Texto Maior: o busca do pleno emprego, a redução das desigualdades regionais e sociais, o asseguramento a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170)? Leitura similar dos riscos do projeto neoliberal é feita por Valter Fernandes da Cunha Filho266. A ideia condutora do seu argumento é que as questões levantadas pelas relações de produção (economia) têm um relativo predomínio sobre as opções políticas. Assim, entre a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, quando o Estado renasceu como Social, ou seja, como o provedor e o implementador dos direitos sociais (habitação, transporte, educação, lazer, saúde, etc.), estava, em verdade, ao fornecer tais bens e serviços essenciais, possibilitando que sobrasse mais dinheiro para o trabalhador tornar-se consumidor de bens manufaturados. Estava elevando a demanda efetiva, fazendo, por conseguinte, que as empresas produzissem mais. Estava o Estado gerando um ciclo virtuoso responsável pelo boom econômico da “era de ouro” do capitalismo mundial. Sendo o Estado dependente dos impostos, ele assume a tarefa de guardião do crescimento econômico, visto como aumento da produção e do consumo em massa. Ora, se os empresários não conseguem vender seus produtos, o Estado então gasta em obras públicas e contrata mais pessoal para que seja elevada a demanda agregada, bem 266 CUNHA FILHO, Valter Fernandes da. Estado, Direito e Economia: Uma visão realista acerca dos dilemas da efetivação dos direitos sociais nas democracias contemporâneas. 141 como fornece certos serviços essenciais, como medicina socializada, educação gratuita e universal, previdência social, seguro-desemprego e outros subsídios para que sobre dinheiro para o trabalhador consumir produtos industrializados, elevando a demanda efetiva. Ocorre que, com o aumento do contingente de pessoas que usufruem de direitos sociais, grande parte da população deixa de ter a manutenção da sua vida condicionada à venda de sua força de trabalho, isto é, deixam de ter que trabalhar para sobreviver. Daí o paradoxo: o Estado, na tentativa de salvar o capitalismo da crise acabou por criar práticas comprovadamente anticapitalistas. Como o Estado, em um regime capitalista, não tem nenhuma capacidade de geração de valor, dependendo dos impostos, pagos a partir do nível de acumulação privada realizada nas unidades de produção de mercadorias, o Estado Social começa a entrar em crise. Crise essa que se acentua com as exigências de melhorias dos serviços públicos e ampliação dos números de beneficiários, que passam a pressionar cada vez mais o orçamento fiscal do Poder Público. Afinal, os direitos sociais são caros, implicam em custos financeiros, recursos esses que são escassos. E em torno desses recursos há uma pluralidade de agentes interessados, requerendo do Estado políticas que satisfaçam suas reivindicações. Então, o Estado vê-se obrigado a selecionar quem será atendido, privilegiando aqueles de quem o setor público mais depende para financiar o seu custeio. Frente a essa crise na fonte de financiamento, emerge, a partir do final da década de 1988, a reação neoliberal, inspirados pelas políticas adotadas por Margareth Thatcher na Inglaterra e por Ronald Reagan nos Estados Unidos. A crise latino-americana passa a ser vista com mais 142 seriedade em um contexto de globalização. Aplica-se, então, o receituário do Consenso de Washington para combater o “populismo econômico” que promovia o endividamento público e a intervenção estatal excessiva. Os remédios propugnados seriam ajuste fiscal, desregulamentação, privatizações, cortes de gastos sociais, diminuição do tamanho e das atividades do Estado. Tudo para reativar a atividade econômica das empresas privadas. O contraponto é que o Estado precisa legitimar-se democraticamente e, assim, assegurado os interesses dos capitalistas que asseguram o seu financiamento, ele tende a retornar em suas prestações sociais. Daí concluir Valter Fernandes da Cunha Filho, a partir dessas evidências, que os direitos sociais não podem avançar muito na economia capitalista, em que o Estado, impedido de violar os direitos de propriedade, é também impedido de organizar a produção privada de modo a facilitar a distribuição dos recursos entre os membros da sociedade. É que, para recuperar a capacidade de gastar na área social, o Estado necessita cuidar primeiro da prosperidade das empresas privadas. Essa é a razão pela qual sempre será um desafio fazer com que a esfera política prevaleça sobre a econômica. Por isso, propugna referido autor que as análises sobre a efetividade dos direitos sociais e das políticas públicas não se apartem de uma teoria do Estado que possibilite uma articulação realista entre Estado, Direito e Economia.267 267 Propondo fazer essa articulação entre Estado, Direito e Economia, destacam-se, entre outros, os seguintes estudos: COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Direito & Economia. Tradução de Luis Marcos Sander e Francisco Araújo da Costa. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2010; PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercado. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. RIBEIRO, Márcia Carla Pereira; GALESKI JUNIOR, Irineu. Teoria Geral dos Contratos: Contratos empresarias e análise econômica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. 143 Contudo, considerar a importância da análise econômica no campo jurídico não implica render-se aos preceitos de maximização da eficiência econômica, ou ter uma leitura fatalista da realidade e do futuro (do tipo “as coisas são o que são, e sempre serão assim”). Em um contexto de desenvolvimento centrado na justiça social e na dignidade da pessoa humana e que coloca o respeito ao meio ambiente como uma restrição assumida, o econômico deve manter-se no seu papel de meio, de instrumento, e não um fim em si mesmo. Portanto, é preciso conciliar o modelo econômico adotado pelo Estado brasileiro, e explicitado em sua Constituição, como pautado no capitalismo, porém, sem se esquecer das normas constitucionais que buscam também “otimizar” a justiça social, reduzir o grau de desigualdades, incluir e empoderar grande parte da população, hoje marginalidade, impedida de acesso a bens materiais e, principalmente, sem acesso a oportunidades para desenvolver o mais plenamente possível as potencialidades de suas personalidades. Calha, portanto, a lembrança de Enzo Bello, quanto à tônica de constante discrepância entre normatividade e faticidade em relação aos direitos sociais no curso da história brasileira, o que demonstra a insuficiência da dimensão jurídica e a necessidade de se criar condições políticas para concretização desses direitos na prática social. Ou seja, o Pacto Fundamental de 1988 deve ser cotidianamente revivido pelo exercício da cidadania, não se relegando a um segundo plano as dimensões da participação e do pertencimento. 268 Portanto, é preciso estar alerta para essa tendência de bloqueio à realização do programa de desenvolvimento, inclusão e emancipação 268 BELLO, Enzo. Cidadania e direitos sociais no Brasil, p. 190-191. 144 previsto na Constituição Cidadã de 1988, sendo esse mais um aspecto para salientar a importância de mobilização social e cidadania ativa na construção das políticas públicas, inclusive as que dizem respeito à moradia digna. Assegurar o acesso a uma residência adequada é o primeiro passo de qualquer processo de resgate ou inclusão social das camadas da população marginalizadas, que sobrevivem em condições de extrema miséria. Uma triste realidade que o Pacto de 1988 quer seja transformada. Nesse sentido, como saliente Conrado Hübner Mendes: “Uma leitura da realidade social brasileira em confronto com o texto da Constituição de 1988 permite observar inúmeros contrastes e concluir que a pretensão desse texto, ao menos na aparência, não foi estabilizar, manter ou consolidar a ordem social e econômica vigente, e sim transformá-la. Foi além das antecessoras, pois não apenas reconhece o catálogo básico das liberdades e direitos civis, mas também atribui ao Estado muitas outras tarefas corretoras de desigualdades. É essa característica do texto que, mais do que nunca, autoriza-nos a falar em projeto, em agenda, em planejamento de ação no futuro como parte integrante do direito constitucional.” 269 Contudo, a realização desse futuro demanda uma intensa atuação democrática, um ativo exercício de cidadania nos espaços públicos, não só, mas inclusive, nos Tribunais. Neste particular aspecto, pertinente é a lembrança da advertência que Jacinto Nelson de Miranda Coutinho faz à magistratura, que precisa engajar-se ideologicamente, não no sentido de política partidária, mas sim no encontrar a realidade brasileira por meio de uma leitura comprometida por ela, tomando por estribo as epistemologias críticas latino-americana, representadas por autores como Wolkmer, Dussel, Ludwing, que veem o sujeito a partir de uma ética de alteridade, ou seja, atrelada à dignidade do outro, isto é, 269 MENDES, Hübner. Controle de constitucionalidade e democracia, p. XXIII. 145 uma ética antropológica que parte das necessidades dos segmentos humanos marginalizados e se propõe a gerar uma prática libertadora, capaz de emancipar os sujeitos históricos oprimidos, injustiçados, expropriados e excluídos.270 Crises econômicas, situações conjunturais de dificuldades influem no campo da efetividade dos direitos prestacionais. São limites fáticos que devem ser considerados. Porém, na necessária ponderação também devem ser levados a sério os princípios diretamente relacionados à proteção e promoção da dignidade humana, e, principalmente, a preservação inexorável e universal do mínimo existencial, como núcleo duro, não sujeito a concessões, retrocessos ou aniquilamento, mesmo que por força de decisões majoritárias. Assim, o desequilíbrio das contas públicas pode ser enfrentado pelo viés do aumento da eficiência da atuação estatal bem como em mudanças nas bases de financiamento do Estado, de modo a também realizar a tão necessária justiça distributiva que, no campo da moradia, importa em atingir uma situação em que não haja mais seres humanos condenados a viver em locais inóspitos, insalubres, perigosos, sem um mínimo de dignidade. Trata-se da necessidade de uma mudança radical, levando-se em conta que a história das políticas públicas habitacionais no Brasil mostra que a tendência sempre foi a contemplar a moradia como uma mercadoria, antes de tê-la um direito que tutela uma situação existencial imprescindível à proteção da personalidade e da dignidade humana. Por isso, em regra, o Estado direcionou seus recursos e suas ações para as camadas da população que poderiam arcar com os custos 270 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Jurisdição, psicanálise e o mundo neoliberal, p. 74-76. 146 do financiamento, tratando a moradia essencialmente como mercadoria, e não como direito, quando não atuou em parceria com interesses de especulação imobiliária, criando nichos de mercados de terra urbana e unidades habitacionais de alta valorização com a implantação de infraestrutura pública. Vale dizer, privatizando a mais valia produzida com recursos públicos. Em alguns períodos, o Estado chegou a atender as demandas das famílias com renda mensal entre três a dez salários mínimos, dentro da lógica da habitação-mercadoria, propiciando o “consumo” de produtos imobiliários como terreno, material de construção, casa ou apartamento, subsidiando-lhes o financiamento. Porém, em linhas gerais, as famílias com menos de três salários mínimos de renda mensal foram praticamente excluídas das ações do Poder Público; os atendimentos essa camada recebeu foram pontuais, o mínimo possível para assegurar nas cidades a disponibilidade de força de trabalho de baixo custo. Enfim, do ponto de vista do atendimento às necessidades de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana por meio da universalização do direito à moradia, a história das políticas habitacionais no Brasil mostra que nunca se enfrentou o desafio de maneira adequada.271 Mudar esse paradigma, reverter essa tendência implica ter consciência da história das políticas públicas habitacionais brasileiras, para quebrar a tradição de se tratar a moradia exclusivamente com uma mercadoria e não como um direito que a todos deve ser assegurado. 271 CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 3-5. 147 2.6. BREVE RETROSPECTO DAS POLÍTICAS NACIONAIS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL Nesse apertado retrospecto histórico, a primeira referência deve ser para atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões272, no período de 1937 a 1964, apontada por Adauto Lucio Cardoso273, José Maria Aragão274 e Nabil Bonduki275, como marco do início da produção estatal de moradias276. Esses institutos atendiam apenas aos trabalhadores inseridos no mercado formal e, mesmo assim, de forma incompleta. Além disso, como a preocupação primordial era com a saúde financeira dos fundos, privilegiavam-se os investimentos para o mercado das classes médias, estabelecendo, com isso, uma redistribuição de riqueza às avessas, vez que os recursos dos trabalhadores financiavam as camadas de melhor renda. Apesar do discurso ideológico dos Governos do Presidente Getúlio Vargas fosse de que o trabalhador seria a base do projeto nacional de desenvolvimento e por isso, o acesso deste à habitação 272 Entre 1933 e 1938, foram criados seis desses institutos: o da categoria dos marítimos (IAPM), dos bancários (IAPB), dos comerciários (IAPC), dos industriários (IAPI), dos condutores de veículos e empregados de empresa de petróleo (IAPETC) e dos estivadores (IAPE). No período de 1937 a 1964, construíram 279 conjuntos, num total de 47.789 moradias, além de financiarem 72.236 habitações. 273 CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 3. 274 ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro de Habitação, p. 58. 275 BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, p. 98-131. 276 Consideram-se tais atividades desses Institutos como produção estatal de moradia porque, apesar da participação dos trabalhadores da categoria profissional respectiva ser obrigatória, o Estado tinha controle da gestão, vez que cabia ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio nomear seus presidentes. 148 deveria ser vista como condição básica de reprodução da força de trabalho e importante fator econômico na estratégia de industrialização do país, na prática, o modelo de habitação popular que prevaleceu foi o que interessava às elites, qual seja, a autoconstrução da casa própria pelos trabalhadores pobres, em loteamentos distantes, muitos deles clandestinos, comprados à prestação e desprovidos de água encanada, sem coleta de esgoto, e sem luz elétrica. O Poder Público apenas fornecia transporte coletivo, capaz de levar seus moradores até o local do trabalho. Pior era a situação dos pobres que não estavam no mercado formal de trabalho, ou seja, dos que não tinham o status de operário. Considerados vadios, marginais, estavam excluídos da proteção do Estado, abandonados à própria sorte. 277 A próxima referência histórica é a da Fundação da Casa Popular, cuja atuação marca a primeira política de habitação de âmbito nacional e com pretensão de atendimento universal278. A intensa urbanização operada entre 1920 a 1940279 e a falta de moradias gerou enorme descontentamento popular, que repercutiu na imprensa, nos discursos políticos e nas propostas governamentais. Em resposta a essa demanda, logo no início do governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1º de maio de 1946, é criada a Fundação da 277 BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, p. 96, 110, 227-234, 281-313. RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, p. 29-34 e 41. 278 Diferente da atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões que atendiam apenas seus associados, sem prejuízo, de, para buscar renda para seus fundos, aplicarem no mercado financeiro imobiliário. 279 De acordo com Milton SANTOS (A urbanização brasileira, p. 22), entre o fim do período colonial até o final do século XIX, o índice de urbanização pouco se alterou. Entre 1890 e 1920, o crescimento foi mínimo, passando de 6,8% a 10,7%. Porém, entre 1920 a 1940, a taxa de crescimento urbano triplicou, passando a 31,24%, sendo que a população concentrada nas cidades sobe de 4.552.000 pessoas para 6.208.699. 149 Casa Popular. Nos seus 18 anos de existência (até 1964), contou com poucos recursos, teve produção modesta280, em total descompasso com o intenso crescimento urbano do período.281 Mesmo assim, foi a principal responsável pela política habitacional nos Governos dos Presidentes Dutra, Vargas, Kubitschek, Quadros e Goulart. Porém sem conseguir evitar o aumento das soluções informais de produção de moradias para a população de baixa renda, baseadas na autoconstrução, muitas delas sem a devida assistência técnica, nos loteamentos precários e clandestinos, nas invasões e nas favelas, com seus inerentes impactos socioambientais negativos. 282 De maior envergadura foi os empreendimentos habitacionais promovidos pelo Banco Nacional de Habitação - BNH, criado em 21 de agosto de 1964283, e que durante os seus vinte anos de funcionamento foi o principal instrumento da política de moradia de interesse social dos Governos Militares, juntamente com as Companhias de Habitação – COHABs, empresas de economia mista que estavam sob o controle acionário dos governos estaduais e municipais, tendo como principal fonte de recursos o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, poupança compulsória dos trabalhadores do mercado formal. Observa-se que a prioridade da política habitacional durante os Governos Militares foi mudando no transcorrer do tempo, conforme a 280 Apenas 143 conjuntos ou 18.142 unidades habitacionais. Aponta Milton SANTOS (A urbanização brasileira, p. 29), que entre 1940 a 1960, a população urbana aumenta de 10.891.000 (26,35%) para 31.956.000 (45,52%). 282 RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras, p. 56; BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, p. 115-119; ARAGÃO, José Maria. Sistema Financeiro da Habitação, p. 62; MELO, Marcus André B. C. de. Política de habitação e populismo, p. 39-61. CARLI, Ana Alice de. Bem de família do fiador e o direito humano fundamental à moradia, p. 19. 283 Com a Lei 4.380/64. 281 150 conjuntura do ambiente político. Entre 1964 a 1970, demonstrando claramente a necessidade de legitimação do regime, os investimentos privilegiavam as classes populares. Entre 1970 e 1975, ficam em segundo plano, voltando a serem prioritários no período seguinte. Porém, o saldo final, mostra que a ênfase não foi no atendimento dos pobres.284 Na síntese de Tomás Moreira, Zulma Schussel e Sílvia Schussel, a política habitacional do período do governo militar foi um importante e poderoso instrumento da política econômica, voltada sobretudo para a criação de emprego na indústria da construção civil bem como pelo fortalecimento e modernização desse setor. Ela financiou, predominantemente, as classes médias e as classes altas, sustentáculos do regime ditatorial, tendo um caráter redistributivo às avessas.285 Nabil Bonduki286 e Rodrigo Xavier Leonardo287 também apontam o caráter autoritário na concepção das políticas, a centralização da gestão e a ausência de participação dos usuários e da sociedade em geral, o desrespeito ao meio ambiente e ao patrimônio cultural, como marcas desse modelo de política habitacional de interesse social que vigorou entre 1964 a 1985, no Brasil. As inúmeras especificidades de cada região eram solapadas, eis que projetos padronizados foram reproduzidos à exaustão. Não houve uma preocupação maior com a qualidade das moradias, não foram levados em conta aspectos 284 Pelo critério de número de unidades, produziram-se mais habitações nas faixas de interesse social (2,4 milhões de moradia ou 58,5% do total). Porém, tomando-se por base os valores financiados, a faixa do mercado médio recebeu um aporte maior de recursos. RODRIGUES, Arlete Moyses. Moradia nas cidades brasileiras, p. 59. BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil, p. 73. 285 MOREIRA, Tomás; SCHUSSEL, Zulma; SCHUSSEL, Sílvia. Plano de habitação de interesse social, p. 218. 286 BONDUKI, Nabil. Política habitacional e inclusão social no Brasil, p. 73. 287 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 57. 151 culturais, ambientais e de contexto urbano. A opção pela construção de grandes conjuntos habitacionais, situados nas periferias, em locais distantes e geralmente, sem infraestrutura, gerou verdadeiros bairrosdormitórios, pouco integrados com as cidades. Seguiu-se um modelo de urbanização baseada na expansão horizontal e na ampliação permanente das fronteiras das cidades, na subutilização da infraestrutura já instalada, sob a justificativa de que os preços dos terrenos eram mais baixos nas franjas externas das cidades. Contudo, não foram considerados nessa conta os custos adicionais para se levar a infraestutura urbana e os serviços públicos essenciais, como transporte público, água, iluminação, energia elétrica, coleta de esgoto, para as periferias. Como contraponto às críticas, há que se reconhecer o valoroso papel e o grande avanço alcançado na área de saneamento, mormente para a concretização do Plano Nacional de Saneamento – PLANASA, decisivo para expansão das redes de água e esgoto nas principais cidades brasileiras.288 O período entre a extinção do Banco Nacional de Habitação, em 1986, e a promulgação da Constituição de 1988, é tido como falta de identidade e de continuidade nas políticas habitacionais, desarticulação institucional289, ausência de planejamento estratégico de âmbito nacional e redução dos recursos aplicados em programas de provisão 288 CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 4. Evidência dessa descontinuidade é que as atribuições relativas à política habitacional mudou várias vezes de órgão: Caixa Econômica Federal, Ministério de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, Secretaria Especial da Ação Comunitária, Ministério de Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente, Ministério de Habitação e Bem-estar Social, Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária vinculada ao Ministério do Interior. (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 62; CARDOSO, Adauto Lucio. Política habitacional no Brasil: balanço e perspectivas; SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998). 289 152 de moradias de interesse social. Tem-se, de maneira fragmentada, algumas iniciativas importantes promovidas por Governos Estaduais e Municipais, baseadas em mutirões e cooperativas e financiados com recursos orçamentários próprios. No geral, parcela significativa da população urbana continuou a resolver seus problemas de moradia por vias informais, adquirindo lotes clandestinos, precariamente urbanizados, construindo por eles mesmos, na maioria das vezes sem assistência técnica necessária, suas habitações, com materiais adquiridos em pagamentos parcelados a juros exorbitantes.290 Durante o Governo do Presidente Fernando Collor (1990-1992) aumentaram-se os gastos com financiamento de unidades habitacionais, a serem construídas por empreiteiras privadas, quase metade delas abandonadas antes do seu término. Alguns autores denunciam o uso clientelista desses recursos, intensificado, no final desse Governo, como parte da estratégia, não exitosa, de frustrar o processo de impeachment.291 O Governo do Presidente Itamar Franco colocou como prioridade a conclusão das obras iniciadas na gestão anterior. Em 1994, são lançados os programas Habitar Brasil e Morar Município, custeados com recursos do Orçamento Geral da União e do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira. Porém, com o advento do Plano Real, adotou-se a estratégia do contingenciamento de despesas para a geração de superávits a serem empregados no pagamento da dívida externa. O resultado desta política econômica é que houve muita parcimônia nos gastos governamentais, afetando o desempenho das 290 SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998. SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998, p. 21. CARDOSO, Adauto Lucio. Desigualdades urbanas e políticas habitacionais, p. 4; Política Habitacional no Brasil: balanço e perspectivas, p. 3; 291 153 políticas públicas habitacionais de interesse social. 292 Fernando Henrique Cardoso exerceu dois mandatos de Presidente da República. Nesse período (1995-2003), deu-se prosseguimento à cartilha de austeridade fiscal, prejudicando as ações focadas no provimento de habitações de interesse social. Houve dois programas destinados à população de renda mensal inferior a três salários mínimos, voltados a promover melhorias em assentamentos degradados, o Pró Moradia e o Habitar Brasil, financiados respectivamente com recursos do orçamento geral da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, contudo, os recursos empregados foram diminutos e foram logo paralisados em razão da política de contigenciamento de despesas.293 Durante os mandatos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2004-2010) destacaram-se a criação do Ministério das Cidades, do Conselho das Cidades, do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei 11.124/2005), da parte do Programa de Aceleração da Economia voltada à urbanização de assentamentos precários e implantação de obras de infraestrutura urbana e do Programa Minha Casa Minha Vida (Lei 11.977/2009).294 292 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 62; CARDOSO, Adauto Lucio. Política habitacional no Brasil: balanço e perspectivas; SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964/1998. 293 MARICATO, Ermínia. Política urbana e habitação social, p. 6; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional, p. 64-65; SANTOS, Cláudio Hamilton M. Políticas federais de habitação no Brasil, p. 22-23. 294 BONDUKI, Nabil. Do projeto moradia ao Programa Minha Casa Minha Vida, p. 2-3. Analistas apontam a crise internacional, iniciada nos Estados Unidos, com a falência de várias instituições financeiras que atuavam no mercado imobiliário, como grande fator de deflagração do Programa Minha Casa, Minha Vida. O objetivo maior era mitigar os efeitos da crise nos vários setores da economia nacional, criando um ambiente econômico confiável, que estimulasse o crescimento do mercado foram de habitação, o crédito 154 Também é durante o Governo Lula que se desenvolveu uma relevante experiência de planejamento estratégico nacional para enfrentamento do problema habitacional brasileiro. Trata-se do “Plano Nacional de Habitação”295, elaborado entre julho de 2007 a janeiro de 2009, sob a coordenação da Secretaria de Habitação do Ministério das Cidades. O Plano Nacional de Habitação foi elaborado a partir discussões realizadas no âmbito do Conselho das Cidades, das Conferências das Cidades realizadas nas esferas federal, estadual e municipal e dos Conselhos Gestores ou Curadores dos Fundos Públicos que financiam a produção habitacional, bem como nos cinco seminários regionais, sediados em Goiânia, São Paulo, Foz do Iguaçu, Recife e Belém, entre outubro e dezembro de 2007, além de outros eventos, também nas cidades do Rio de Janeiro, Salvador, Natal, Maceió e Curitiba, como reuniões de trabalho, oficinas técnicas e debates públicos. Buscou-se, assim, garantir a participação das organizações da sociedade civil, como associações, movimentos sociais, fóruns, redes, sindicatos, entidades empresarias, universidades, entidades profissionais. Dessa forma, procurou-se romper como uma tradição de se elaborar planos estratégicos apenas com técnicos e burocratas, buscando incorporar todas as visões presentes na sociedade brasileira imobiliário e a criação de empregos. Tal qual nos Governos Militares, que fomentaram a indústria da construção civil, o Governo Lula também apostou na grande capacidade do setor de absorver mão de obra pouco qualificada. Enxergou na crise internacional uma oportunidade de trazer capitais estrangeiros, os quais, temerosos com o que ocorria nos Estados Unidos e na Europa, precisavam de praças seguras para seus investimentos. 295 Disponível em http://www.cidades.gov.br/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog& id=132&Itemid=159. Acesso em 26.07.2011 às 21h32. 155 sobre a questão habitacional, considerando tanto as diversidades regionais, as visões diferenciadas dos vários segmentos sociais e os distintos olhares técnicos que o tema propicia. Esse novo paradigma está em estreita consonância com os preceitos da Constituição de 1988 e do Estatuto das Cidades (Lei 10.257/01), os quais estabelecem a participação e o controle social como elementos centrais na gestão democrática das políticas de desenvolvimento urbano e moradia. Além disso, essa metodologia participativa de formulação e pactuação teve um caráter emancipatório, por criar oportunidades de capacitar atores sociais importantes, promover a apropriação de novos saberes, políticos, técnicos e populares, superando uma perspectiva exclusivamente técnica na elaboração desta importante política pública. Daí o grande mérito desse plano. Ele não é um documento apenas técnico, elaborado em gabinetes, mas sim fruto de uma construção coletiva, baseada em correlação de forças políticas e de diferentes interesses e objetivos, muitas vezes conflitantes, mas mediados na perspectiva do interesse público. Outra característica de relevo é que o novo Plano Nacional de Habitação leva em conta que a questão habitacional brasileira é bastante dinâmica. Por isso, ele foi elaborado com um horizonte de 15 anos, tendo como limiar o ano de 2023, mas com facticidade assegurada pela articulação com propostas operacionais de médio e curto prazo e pelo monitoramento, avaliações e revisões a cada quatro anos (2011, 2015 e 2019), coincidindo com os períodos de elaboração dos Planos Plurianuais. Previu-se, portanto, a necessária interlocução entre o 156 planejamento e a orçamentação das políticas públicas de habitação, bem como a articulação da política de habitação com as demais políticas públicas, em um contexto de promoção do desenvolvimento econômico e social, com respeito ao meio ambiente e à dignidade humana. No que diz respeito ao atendimento às famílias de baixíssima renda, destacou-se que as ações de provisão de moradia precisam estar articuladas com programas de transferência de renda (Bolsa-Família), de capacitação para a geração de renda própria, bem como outras estratégias pós-assentamento/ocupação, integrando o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social com o Sistema Único de Assistência Social e com o Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tal articulação é imprescindível no intuito de se encontrar soluções para o problema de venda e/ou repassa das unidades habitacionais entregues para as famílias de baixa renda para outras em melhores condições econômicas. Partiu-se da premissa de que o acesso à moradia digna está diretamente relacionado com três fatores: 1) a capacidade de ampliação e disponibilização de terra urbanizada bem localizada para a provisão de unidades habitacionais de interesse social; 2) o estímulo à cadeia produtiva da construção civil e 3) o fomento ao desenvolvimento institucional dos agentes envolvidos no setor habitacional, notadamente no âmbito dos Poderes Públicos municipais e estaduais. Há, com o Plano Nacional de Habitação, uma retomada ao processo de planejamento estratégico, de longo prazo, tratando-se a questão habitacional como uma Política de Estado. Pena não ter se 157 revestido da forma de lei, tal qual previsto pelo artigo 48, IV, da Constituição da República. De fato, a atuação do Poder Público mostra-se indispensável para a regulação do desenvolvimento urbano e do mercado imobiliário, para a provisão de moradias de interesse social e para a regularização dos assentamentos precários. Diagnosticados como obstáculos ao acesso à moradia digna pelos mais pobres as restrições ao crédito e a falta de recursos orçamentários (não-onerosos) para custeio do provimento e/ou subsidio de unidades habitacionais de interesse social, o novo Plano Nacional de Habitação reconhece a necessidade de a identificação de fontes de recursos perenes e estáveis para alimentar a política de habitação, incluindo recursos onerosos para o financiamento habitacional e recursos nãoonerosos para subsídio. Nabil Bonduki estima que para enfrentar satisfatoriamente o déficit habitacional é necessária uma dotação estável de 2% do Orçamento Geral da União e de 1% dos Orçamentos dos Estados e Municípios durante todo o horizonte temporal (quinze anos). Esse percentual é, na esfera federal, três vezes maior do que o previsto no Plano Plurianual 2008-2011, já incorporando a elevação de recursos propiciada pelo PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. 296 Sensíveis a essa necessidade de recursos estáveis para financiar a política de habitação de interesse social, alguns segmentos da sociedade, notadamente entidades empresariais e movimentos de moradia, vem atuando perante o Congresso Nacional, advogando a necessidade de aprovação da Proposta de Emenda Constitucional – PEC 296 BONDUKI, Nabil. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa, Minha Vida. 158 – 285/2008, já apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, estabelecendo a vinculação de receita à área, tal qual ocorre com a educação e a saúde.297 Como cenário de fontes de recursos não onerosos foram considerados, no Plano Nacional de Habitação, para o Orçamento Geral da União os patamares de investimento efetivamente realizados em 2008, consolidados no Balanço Geral da União, e para o triênio 2009, 2010 e 2011, os investimentos previstos na Lei Orgânica Anual, Projeto de Lei Orçamentária Anual e Plano Plurianual. Para os demais exercícios as disponibilidades de recursos foram projetadas com base na manutenção desse percentual de investimento (2,63% da receita corrente líquida) seguido de um crescimento estimado do PIB na ordem de 4% ao ano e manutenção da carga tributária. A projeção dos recursos onerosos dos Estados e Municípios levou em conta as receitas realizadas em 2008, consolidadas no Balanço Geral 297 BRASIL, Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n. 285 de 2008, de autoria do Deputado Paulo Teixeira (PT-SP), Angela Amin (PP-SC), Zezéu Ribeiro (PT-BA), Fernando Chucre (PSDB-SP), Luíza Erondina (PSB-SP), Luiz Carlos Busato (PTB-RS), Arnaldo Jardim (PPS-SP) e Nelson Trad (PMDB-MS). O objetivo é incluir artigo no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para dispor sobre a vinculação de recursos orçamentários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aos respectivos fundos de habitação de interesse social, por um período de 30 anos ou até a eliminação do déficit habitacional. Assim, prevê que anualmente sejam destinados a estes fundos as seguintes verbas: Na União, nunca menos de dois por cento do produto de arrecadação dos impostos, das contribuições de intervenção no domínio econômico, das contribuições sociais, excetuadas as contribuições sociais patronais e dos trabalhadores para o Regime Geral da Previdência Social e contribuição social para a previdência dos servidores públicos, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, nos termos da Constituição. Nos Estados e no Distrito Federal, no mínimo um por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 da Constituição e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea “a”, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios, nos termos da Constituição. Nos Municípios e no Distrito Federal, pelo menos um por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 da Constituição e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea “b” e § 3º. 159 da União e, a partir de 2009, adotou-se o percentual mínimo de 1% do produto da arrecadação dos impostos, deduzidas, no caso dos Estados, as parcelas que forem transferidas aos Municípios, conforme previsto na Proposta de Emenda à Constituição n. 285/2008. Como a garantia de acesso a terra urbanizada é parte fundamental da política de habitação, enfatizou-se durante a elaboração do Plano Nacional de Habitação a relevância de se implantar instrumentos que possibilitem melhor ordenamento e maior controle do uso do solo, de modo a evitar e combater a retenção especulativa, bem como a privatização da mais-valia gerada por investimentos públicos com infraestrutura urbana298, além de zelar para que a propriedade urbana cumpra com sua função social. Com o escopo de formatar estratégias para enfrentar a questão habitacional urbana, reconhecendo-as como um dos mais dramáticos problemas sociais brasileiros, articulando inclusão social e redistribuição de renda com o desenvolvimento econômico do país, o Plano Nacional de Habitação foi estruturado em quatro eixos - 1) modelo de financiamento e subsídios para o provimento de novas habitações e urbanização dos assentamentos precários; 2) política urbana e fundiária; 3) arranjos institucionais e 4) fomento à cadeia produtiva da construção civil299 - prevendo-se ações em cinco linhas programáticas: I) Integração Urbana de Assentamentos Precários; II) Produção e Aquisição da Habitação; III) Melhoria Habitacional; IV) 298 Dentre os instrumentos para evitar que a mais-valia gerada por investimentos públicos seja privatizada por alguns, destacam-se a desapropriação por zona e a cobrança de contribuição de melhoria. 299 A participação do setor da construção civil na economia brasileira é bastante expressiva, aproximadamente 11,3% do PIB – Produto Interno Bruto, garantido mais de 8,2 milhões de empregos, com grande capacidade de absorção de mão-de-obra pouco qualificada. 160 Assistência Técnica e V) Desenvolvimento Institucional. A linha programática para integração urbana de assentamentos precários abrange projetos de urbanização, regularização e integração de assentamentos precários e regularização fundiária. O objetivo das intervenções de urbanização de assentamentos precários é estabelecer padrões mínimos de habitabilidade e integrar o assentamento à cidade por meio de adaptações da configuração existente, viabilizando a implementação e funcionamento das redes de infraestrutura básica (água, esgoto, energia, iluminação), melhorando as condições de acesso e circulação, eliminando situações de riscos e protegendo e recuperando o meio ambiente. O escopo da regularização fundiária é a titulação das terras em nome dos moradores segundo os requisitos exigidos pela legislação. São intervenções, portanto, que abrangem ações de habitação, saneamento ambiental, inclusão social, jurídicas e de registros imobiliários. A linha programática focada na produção e aquisição de habitações busca ofertar novas unidades habitacionais para reduzir o déficit e responder à demanda futura. Merecem destaque as ações que objetivam promover oferta para as famílias de baixa e média renda de unidades habitacionais produzidas em sistema de autogestão, mas com a devida assistência técnica, por entidades privadas sem fins lucrativos, como fundações, associações, sindicatos, cooperativas. Também é digna de destaque a previsão de estratégias de promoção pública de locação social de unidades habitacionais em centros históricos e áreas urbanas consolidadas, com o objetivo de 161 subsidiar parte dos aluguéis para as famílias de baixa renda, rompendose com o paradigma de só produzir unidades habitacionais novas e na periferia. Nesta linha também se insere a previsão de ações de promoção pública e privada de loteamentos urbanos associada com a oferta de materiais de construção e assistência técnica, de modo a viabilizar o atendimento às famílias de baixa renda e mitigar ou neutralizar os impactos de ocupações desordenadas, bem como a aquisição de unidades habitacionais usadas para serem destinadas aos mesmos fins. No âmbito rural, previu-se a promoção pública ou por autogestão de unidades habitacionais que permitam futuras ampliações, integrem as instalações necessárias ao desenvolvimento da produção agrícola e possuam ligação para poço, cisterna e fossa séptica executados segundo padrões adequados, visando à melhoria da qualidade de vida no campo, tendo como público alvo os beneficiários do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, do Plano Nacional de Crédito Fundiário – PNCF, assalariados rurais com registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS ou com contrato de trabalho temporário, trabalhadores rurais aposentados, pensionistas rurais e segurados especiais rurais, observadas as características das atividades da economia rural e a capacidade de pagamento dos beneficiários. A linha programática centrada na melhoria habitacional contempla ações de autopromoção habitacional assistida, tendo por objetivo viabilizar o acesso à aquisição de materiais de construção associados a serviços de assistência técnica para a execução, conclusão, reforma e/ou ampliação de unidades habitacionais promovidas pelos 162 próprios moradores, de modo a garantir boas condições de habitabilidade e salubridade, uso adequado dos materiais e técnicas construtivas, valorização arquitetônica e inserção urbana adequada. O foco de atendimento são as famílias de baixa e média renda que vivem em moradias construídas informalmente, com pouco ou nenhum acompanhamento técnico, resultando em unidades habitacionais com baixa qualidade técnica e arquitetônica e que muitas vezes permanecem inacabadas. A linha programática com foco na assistência técnica tem por objetivo apoiar o desenvolvimento e a implementação de estratégias de capacitação e oferta de serviços de assistência técnica, visando melhorar a capacidade dos agentes envolvidos na produção habitacional. As ações subdividem-se de acordo com o público alvo. Assim, há previsão de assistência técnica nas áreas de arquitetura, engenharia, jurídica, contábil e organizacional tanto para grupos de baixa renda como para cooperativas e organizações não governamentais voltadas à promoção de projetos habitacionais para população de baixa renda. Por fim, na linha programática para desenvolvimento institucional, o que se busca é aumentar a eficiência dos investimentos e das demais linhas programáticas, promovendo-se ações de financiamento e capacitação dos agentes institucionais para exercício de suas atribuições na formulação, implementação, monitoramento, avaliação e revisão das políticas habitacionais. Os alvos são agentes dos Governos Federal, Estaduais e Municipais, participantes e delegados das Conferências das Cidades, membros de conselhos gestores relacionados com a política habitacional. 163 As metas do Plano Nacional de Habitação foram construídas a partir de simulações que consideraram premissas como a tipologia de Municípios300, a estratificação dos grupos de atendimento301, a 300 Adotou-se a tipologia das Cidades Brasileiras elaboradas pelo Observatório das Metrópoles para o Ministério das Cidades, 2005, que serviu de base também para a Política Nacional de Desenvolvimento Regional. A síntese dos tipos de cidades brasileiras é essa: I Faixa dos Municípios com mais de 100 mil habitantes: Tipo A – Regiões Metropolitana do Rio de Janeiro e São Paulo: metrópoles situadas em regiões de alta renda, com alta desigualdade social. São denominadas metrópoles globais pela concentração de atividades e fluxos econômicos e financeiros; Tipo B – Regiões metropolitanas e principais aglomerações e capitais do Centro-Sul: metrópoles, aglomerações urbanas e capitais situadas em regiões de alto estoque de riqueza e grande importância funcional na rede de cidades. São consideradas cidades pólos em suas respectivas regiões; Tipo C – Regiões metropolitanas e principais aglomerações e capitais prósperas do Norte e Nordeste: Principais centros polarizadores do Norte e Nordeste, com estoque de riqueza inferior aos tipos A e B, com maior concentração de pobreza e alta desigualdade; Tipo D – Aglomerados e centros regionais do Centro-Sul: municípios situados em regiões com alto estoque de riqueza, com importância como centros polarizadores em suas microrregiões; Tipo E – Aglomerados e centros regionais do Norte e Nordeste: municípios com baixo estoque de riqueza, porém com grande importância regional; cidades pólos situadas em microrregiões com menor dinamismo; II – Faixa dos Municípios com população entre 20 e 100 mil habitantes: Tipo F – Centros urbanos em espaços rurais prósperos: municípios que estão crescendo moderadamente, situados nas microrregiões mais ricas do país; têm mais condições de enfrenta o déficit com recursos próprios; Tipo G – Centros urbanos em espaços rurais consolidados, com algum grau de dinamismo: Municípios situados em microrregiões historicamente de maior pobreza e relativa estagnação, mas apresentam situações mais positiva em comparação aos demais tipos subsequentes; Tipo H – Centros Urbanos em espaços rurais com elevada desigualdade pobreza: municípios que se destacam pelos níveis mais elevados de pobreza, maior número de domicílios sem banheiro e alto déficit habitacional relativo; III – Faixa dos Municípios com menos de 20 mil habitantes: Tipo I – Pequenas cidades em espaços rurais prósperos; Tipo J – Pequenas cidades em espaços rurais consolidados, mas de frágil dinamismo recente; Tipo K – Pequenas cidades em espaços rurais de pouca densidade econômica. 301 Grupo 1: renda até R$ 797,00 nos Municípios tipos G a K e rural ou de até R$ 930,00 nos Municípios de tipos A a F; atendimento com recursos a fundo perdido públicos ou institucionais; necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda 2008-2023) de 16,9 milhões de domicílios; Grupo 2: renda de R$ 797,00 a R$ 2.790,00 nos Municípios tipos G a K e rural ou de R$ 930,00 a R$ 2.790,00 para os Municípios de tipos A a F; atendimento mediante subsídio parcial (complemento e/ou equilíbrio) ou financiamento com subsídio; fontes de recursos: OGU e FGTS; necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda 20082023) de 12,4 milhões de domicílios; Grupo 3: renda de R$ 2.790,00 a R$ 4.900,00 e/ou imóvel até R$ 130.000,00 e/ou mais de R$ 4.900,00 e/ou imóvel de até R$ 500.000,00; atendimento pelo SFH; fontes de recursos: FGTS e SBPE; necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda 2008-2023) de 1,8 milhões de domicílios; Grupo 4: renda preponderantemente acima de R$ 4.900,00, financiamento acima de R$ 350 mil e imóvel acima de R$ 500.000,00; atendimento pelo mercado; fontes de recursos: SBPE faixa livre/ SFI, financiamento direto com a construtora e recursos próprios das famílias (aquisição sem financiamento); necessidades habitacionais: 0,2 milhões de domicílios. Total das 164 distribuição dos produtos habitacionais por tipologia de municípios e por grupos de atendimento; prioridades de atendimento por grupos; contrapartidas dos beneficiários; modelo de financiamento e subsídio; cenários das fontes de custeio. As metas estabelecidas para 2023 no Plano Nacional de Habitação foram as seguintes: Para as famílias do Grupo 1: 8,4 milhões de atendimento, que corresponde a 50% das necessidades (déficit 2007 + demanda futura) das famílias que não acessam financiamento habitacional. O atendimento dar-se-á por meio de fornecimento de: a) unidades prontas; b) cesta de materiais de construção mais assistência técnica ou c) lote urbanizado mais cesta de materiais de construção mais assistência técnica. O subsídio médio, custeado por recursos públicos orçamentários não onerosos e a fundo perdido é de R$ 22.800,00 por família (subsídios entre R$ 13.000,00 a R$ 52.000,00); Para as famílias do Grupo 2: 12,4 milhões de atendimentos (100% das necessidades habitacionais (déficit 2007 + demanda futura) das famílias que necessitam de subsídio parcial. O atendimento dar-se-á por meio de fornecimento de: a) unidades prontas; b) de cesta de materiais de construção mais assistência técnica; c) lote urbanizado ou e) de lote urbanizado mais cesta de materiais de construção mais assistência técnica. Os valores médios de subsídio é de R$ 10.000,00 (complemento) e de R$ 2.000,00 (equilíbrio) para financiamentos entre R$ 19.500,00 a R$ 45.000,00. As fontes de recursos para esses produtos necessidades habitacionais até 2023: 31,3 milhões de domicílios. No geral, as famílias do Grupo 1 são as mais vulneráveis, que não condições de acesso ao financiamento habitacional nas condições de mercado e que, precisam de maiores subsídios e investimentos de recursos públicos a fundo perdido. As famílias do Grupo 2 são aquelas que têm capacidade de assumir algum financiamento, mas precisam de subsídio parcial/fundo garantidor. As famílias dos Grupos 3 e 4 não têm dificuldades de ter acesso à moradia digna nas condições de mercado. 165 habitacionais são o Orçamento Geral da União - OGU e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS; Para as famílias do Grupo 3: 1,8 milhões de atendimento (100% das necessidades habitacionais) para famílias de renda média-alta e alta, por meio de unidades prontas, cestas de materiais de construção e lote mais cesta de materiais de construção, viabilizados por meio de financiamento, na faixa de R$ 90.000,00 a R$ 120.000,00 com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE, nas condições de mercado; Para as famílias do Grupo 4: 0,2 milhões de atendimento (100% das necessidades habitacionais), por meio de unidades prontas, viabilizados por recursos próprios das famílias e/ou financiamento nas condições de mercado (faixa média de R$ 350.000,00), diretamente com as construtoras ou com recursos do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE ou do Sistema Financeiro Imobiliário – SFI; Para a urbanização e/ou regularização fundiária dos assentamentos precários: 3,2 milhões de domicílios atendidos (100% das necessidades) estimando que 1/3 dos atendimentos (1,1 milhão de domicílios) far-se-á com fornecimento de novas unidades habitacionais. Um ponto que salta aos olhos é a meta de atender apenas 50% das necessidades habitacionais do Grupo 1 (mais vulnerável), nos próximos quinze anos. Ainda que se intensifiquem outras políticas sociais, como transferência de renda e geração de empregos, o déficit habitacional se incrementará, e os problemas urbanos continuarão, sem sobre de dúvida, com padecimento focado nesse contingente mais pobre da população brasileira. Neste particular, o Plano poderia ter sido mais ousado. 166 O Governo Lula encerrou-se com adoção apenas parcial do Plano Nacional de Habitação, notadamente pelo Programa Minha Casa, Minha Vida e pelos projetos do Programa de Aceleração da Economia dedicados à infraestrutura urbana e regularização de assentamentos precários. As estratégias de facilitação do acesso à moradia digna do Programa Minha Casa, Minha Vida contam com instrumentos de subsídio com recursos orçamentários aos financiamentos, isenção total ou parcial do seguro, gratuidade ou redução das custas cartoriais para registro imobiliário e a instituição de um fundo garantidor que oferece cobertura de até 36 parcelas mensais no caso de perda temporária de emprego ou renda. Para atendimento das famílias com renda de até seis salários mínimos mensais, o Programa Minha Casa Minha Vida aposta no incentivo ao crescimento do mercado imobiliário, na realização de operações pelo Sistema Financeiro de Habitação por um período máximo de 30 anos e limitação de comprometimento de até 20% da renda familiar com as contrapartidas/parcelas mensais, viabilizado por meio de subsídios, redução das taxas de juros, custos dos seguros e emolumentos cartoriais, além da cobertura do fundo garantidor. As famílias com renda entre seis e dez salários mínimos mensais, embora não sejam contempladas com subsídio direto, são beneficiadas com taxas de juros reduzidas e descontos significativos nos custos de seguro. Além disso, utilizou-se de incentivos fiscais para os produtores de imóveis para a baixa renda, com redução da alíquota do regime especial 167 de tributação para 1%, e redução de impostos para materiais de construção. No que diz respeito à regularização fundiária urbana de interesse social, a Lei 11.977/2009, do Programa Minha Casa Minha Vida, traz uma inovações importantes trazer a segurança jurídica da posse exercida para fins de moradia por pessoas carentes e melhoria das condições de sustentabilidade urbana e ambiental, como a demarcação urbanística para fins de regularização fundiária, a legitimação da posse dos moradores e a conversão administrativa da legitimação da posse em registro de propriedade (artigos 46 a 71).302 O Governo da Presidente Dilma Rouseff inicia demonstrando que dará seguimento e aprimorará a política nacional de habitação iniciada no Governo anterior. Contudo, enfrenta grandes dificuldades de atendimento das necessidades habitacionais das famílias com renda de até três salários mínimos por mês. É lançada a da segunda fase do Programa Minha Casa Minha Vida, com previsão de aumento dos investimentos e das metas e o Programa Moradia Digna, da área de infraestrutura. A proposta de Plano Plurianual encaminhada ao Congresso demonstra o a intenção de prestigiar a área da habitação, prevendo-se recursos de R$ 390 milhões para o período de 2012 a 2015. Não obstante, os aparentes avanços, iniciados em passado recente, ainda são pertinentes e atuais as críticas de José Reinaldo de Lima Lopes303, alertando para o risco da moradia ser tratada apenas como um direito de propriedade de uma casa, de um apartamento, 302 Para aprofundar, ver LUFT, Rosangela Marina. As duas dimensões das medidas jurídicas de regularização fundiária urbana de interesse social. 303 LOPES, José Reinaldo de Lima. Cidadania e propriedade, p. 126. 168 como domínio sobre um bem imóvel. Nessa abordagem, dar direito a casa como mercadoria é considerada tarefa do Estado. Porém, como o núcleo dessa missão é claramente individualista e capitalista, segue-se a lógica de estimular a indústria da construção civil e de associá-la a um sistema financeiro. Ocorre que, adotando-se somente essa estratégia, todo o esforço estatal de tornar a mercadoria unidade habitacional atraente e acessível no regime de mercado corre o risco de servir às classes superiores, que, afinal, são às que conseguem pagar o financiamento. Assim, paradoxalmente, a luta política para defender um direito que é abstratamente de todos e, também dos mais necessitados – direito a financiamento barato para a casa própria – acaba por beneficiar concretamente os menos necessitados. Enfim, a redução do problema de moradia a um problema de propriedade tem essa consequência de acentuar as desigualdades sociais ao invés de reduzilas. Esse é um alerta importante para no acompanhamento e avaliação das políticas públicas habitacionais. Nem sempre o aumento da previsão de recursos orçamentários para as políticas habitacionais reverterão em termos de justiça distributiva e no atendimento das camadas mais pobres da população. Pode ser que apenas fomentem o crescimento econômico, o nível de emprego de mão de obra de baixa qualificação, as atividades da indústria da construção civil, o comércio de seus insumos, contudo sem lograr-se a universalização do direito à moradia, ou ao menos a redução do déficit habitacional junto aos mais necessitados. Outro aspecto a ser salientado é que, embora o Plano Nacional 169 de Habitação tenha sido uma importante experiência de construção democrática e participativa de um planejamento estratégico, o certo é que ele não foi encaminhado ao Congresso Nacional. Logo, por não se revestir da forma de lei, tal qual exigido pelo artigo 48, IV, da Constituição, não há garantia de que ele venha a ser integralmente adotado pelo Governo. É importante denunciar que não há legislação que garanta que sejam destinados, de maneira estável, e por longo prazo, recursos orçamentários para as políticas públicas habitacionais previstas nesse “Plano Nacional de Habitação”, especialmente para focar a parcela da população da mais baixa renda, mais vulnerável e com menor poder de pressão política. Mostra-se evidente, nesta toada, a necessidade de aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 285/2008, bem como da conversão em lei desse plano setorial que é o plano nacional de habitação. Como as leis orçamentárias, no Brasil, não tem caráter vinculante, mas meramente autorizativa, os verdadeiros instrumentos balizadores de uma política que transborda mais de um Governo são as leis que estabelecem as ações estratégias e as metas de longo prazo. Assim, somente observado o artigo 48, IV, da Constituição, se revestirá o Plano Nacional de Habitação da qualidade de instrumento de política de Estado, de um verdadeiro planejamento estratégico democraticamente concebido, e com um horizonte que transcendam mandados presidenciais. O problema habitacional brasileiro é grave e complexo, necessitando de uma intervenção de longo prazo. Carece-se de perseverança, de constância, de estabilidade. 170 Além disso, a formatação de um arcabouço institucional em todos os níveis da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) para concretizar as políticas habitacionais por todo o território nacional, de modo a universalizar o exercício do direito à moradia digna, ainda é obra incompleta, não obstante os avanços representados pela edição da Lei 11.124/2005, que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social. A maioria dos Municípios não tem capacidade técnica, nem financeira, para estruturar serviços públicos para agir no campo da moradia, o que demonstra que muito ainda há de ser feito nesta seara. Há, sem dúvida, que se trabalhar com a descentralização federativa, mas com atuação conjunta entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com distribuição clara de papéis, funções e competências e distribuição de recursos compatíveis com o tamanho das responsabilidades de cada ente. Por isso, tomando como exemplo o Sistema Único de Saúde, previsto no artigo 198 da Constituição Federal e regulamentado principalmente pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90, apesar de todas as suas vicissitudes, é produtivo pensar na criação de um sistema de gestão integrada e pleno das políticas habitacionais, reunindo e aprimorando os arcabouços normativos do Sistema Financeiro Imobiliário, Sistema de Habitação de Interesse Social e Sistema Financeiro de Habitação e demais programas avulsos, constituindo o Sistema Único de Habitação (o nome pouco importa), com a imprescindível vinculação de receitas nos três níveis da federação para serem aplicadas nas necessárias ações de integração urbana e regularização fundiária dos assentamentos precários, melhoria de habitações precárias e provisão de habitações de 171 interesse social, de modo a realmente incluir e assegurar o direito à moradia digna também as faixas mais pobres da população brasileira. Enfim, os desafios da efetivação prática do direito à moradia ainda estão colocados e precisam ser enfrentados pela cidadania ativa, pela mobilização da sociedade civil e pelos Poderes Públicos. Pelos procedimentos democráticos e pelas ações estatais necessárias, e, se for preciso, também (mas não só) pela via jurisdicional, deve-se buscar concretizar o que a Constituição de 1988 projeta e determina: que todos tenham acesso a uma moradia digna, pois isso é uma das características de uma sociedade justa de pessoas livres e solidárias. 172 3. A EXIGIBILIDADE DE MEDIDAS ESTATAIS DE PROTEÇÃO OU PROMOÇÃO DO DIREITO À MORADIA 3.1. EXIGIBILIDADE À LUZ DA DOUTRINA DO SUPORTE FÁTICO Impõe-se enfrentar o coração do problema e explicitar o que deve ser sindicalizado para verificar se a pretensão apresentada à Administração Pública, ou, se for o caso, ao Poder Judiciário, postulando-se medidas estatais de proteção ou fomento, consubstancia-se ou não um direito exigível. Salienta-se, aqui, que o raciocínio é desenvolvido de maneira ampla, sem reduzir-se ao processo judicial, evitando o erro de considerar o Judiciário como o espaço único, ou prioritário, de reivindicação do direito à moradia. O discurso dos direitos humanos fundamentais deve, ao contrário, estar presente no âmbito do Parlamento e do Executivo, eis que vinculado estritamente com a formulação e execução das políticas públicas. A exigibilidade de medidas estatais de proteção ou promoção a um direito humano fundamental coincide com o conceito normativo de omissão inconstitucional: não fazer o que é devido, injustificadamente. Assim, compreensão dos limites e possibilidades do controle das omissões ou insuficiências do Poder Público na proteção e promoção dos direitos humanos fundamentais pressupõe o aclaramento do sentido e alcance da norma prevista no § 1º do artigo 5º da Constituição. Ao se dispor no § 1º do artigo 5º da Constituição da República que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, o objetivo não foi afirmar o caráter absoluto dos 173 direitos fundamentais, no sentido de imune a restrição, mas sim o reconhecer-lhes força normativa potencializada. Ou seja, na esteira do que defendem Ingo Sarlet304, José Afonso da Silva305, entre outros, a norma do § 1º do artigo 5º da Constituição encerra um mandado de otimização, que impõe aos órgãos estatais a obrigação de reconhecer a melhor eficácia possível aos direitos fundamentais, gerando uma presunção em favor da sua exigibilidade imediata. Porém, o alcance do princípio dependerá do exame do caso em concreto. Direitos fundamentais são dotados da máxima eficácia possível dentro dos condicionantes fáticos e jurídicos presentes nas circunstâncias em que estiverem inseridos. A intensidade ou amplitude da eficácia de cada direito fundamental em um caso concreto tem que ser resolvida como uma questão de colisão entre direitos fundamentais ou de colisão entre direito fundamental e outros princípios, valores e bens jurídicos constitucionalmente protegidos por meio do emprego da ponderação, da concordância prática e da hierarquização axiológica, guiada pelo critério da proporcionalidade. Daí a pertinência, para o estudo da exigibilidade, da distinção feita por Robert Alexy entre direitos prima facie e direitos definitivos. A dicotomia direito prima facie e direito definitivo pressupõe a diferenciação estrutural entre regras e princípios, espécies de normas jurídicas. Robert Alexy306 emprega as categorias princípios e regras não segundo os critérios da fundamentalidade e superioridade hierárquica (isto é, princípios como mandamentos nucleares de um sistema) ou do 304 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p. 248-252. SILVA, José Afonso da. A aplicabilidade das normas constitucionais, p. 165. 306 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 305 174 grau de abstração, mas sim como espécies de normas jurídicas estruturalmente diferentes. Os princípios, no conceito de Alexy, são normas que prescrevem mandados de otimização, são mandamentos de otimização, podendo o preceito ser cumprido em diversos graus de intensidade, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Por identificarem valores a serem preservados ou fins a serem alcançados em graus variáveis, os princípios convivem de maneira integrada, inter-relacionada e harmônica com outros princípios em sentido opostos, impondo limites recíprocos. Daí serem aplicados mediante ponderação, a partir da verificação dos pesos axiológicos de cada princípio em determinado caso concreto. Já as regras têm estrutura normativa mais concreta, na medida em que especificam os atos que devem ser praticados para o cumprimento adequado da norma. Portanto, as regras são mandamentos definitivos que se aplicam por subsunção, no modelo tudo-ou-nada (all-or-nothing). Desta diferença entre regras e princípios decorre a distinção entre direitos definitivos e direitos prima facie: As regras garantem direitos subjetivos e impõem os deveres correlatos na qualidade de direitos definitivos, ao passo que os princípios garantem direitos subjetivos ou impõem deveres apenas de maneira prima facie. Um direito garantido por uma regra deverá ser realizado totalmente caso a regra seja aplicável ao caso concreto. É o caso, por exemplo, dos direitos dos acusados criminalmente decorrentes da regra 175 da retroação da lei penal mais benéfica, enunciada no artigo 5º, XL, da Constituição de 1988.307 Já no caso de direitos garantidos por normas que tem a estrutura de princípios, que são mandamentos de otimização, isto é, normas que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, a amplitude do direito subjetivo que será realizado em definitivo dependerá das interações com outros direitos e princípios, de modo que aquilo que é previsto prima facie poder-se-á concretizar em diferentes graus, de acordo com as condições fáticas e jurídicas presentes na situação concreta. Havendo colisão entre princípios, o problema jurídico de aplicação das normas em conflito dá-se por meio da ponderação cujo resultado será a fixação de relações condicionadas de precedência de um princípio sobre o(s) outro(s). Assim, no caso de direitos garantidos por princípios poderá haver uma diferença significativa entre o que Alexy denomina de direito prima facie e o direito definitivo. O direito prima facie é aquele contemplado em abstrato, que ainda não restringido, e o direito definitivo é o contemplado no plano concreto, após ter sido restringido em razão da necessidade de harmonização com outros princípios (ou direitos garantidos por princípios). Restrição essa que, para ter validade, deve operar-se de modo compatível com a Constituição. 307 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 45. O enunciado do inciso XL, do artigo 5º, da Constituição “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” há de ser compreendida como norma (regra) que determina o seguinte: “é proibida a retroação de leis penais, a não ser que elas sejam mais benéficas para o réu que a lei anterior; nesses casos, deve haver retroação”. 176 Tais conceitos e dicotomias de regras e princípios, direito prima facie e direito definitivo, são basilares para a verificação da exigibilidade de medidas estatais de proteção e/ou promoção de um direito fundamental, o que se dá por meio de um procedimento de ponderação, que Robert Alexy organiza utilizando a categoria dogmática que denominou de “suporte fático” de um direito fundamental. Suporte fático é uma categoria empregada na teoria de Alexy308 que corresponde aos conceitos de tipo, utilizado no Direito Penal, ou de fato gerado e hipótese de incidência, usados no Direito Tributário. No âmbito do Direito Civil, Pontes de Miranda já se referia ao suporte fático como “conceito da mais alta relevância para as exposições e investigações científicas”309. O suporte fático pode ser visto na perspectiva abstrata e na perspectiva concreta. Em linhas gerais, o suporte fático abstrato é formado por fatos ou atos do mundo que são descritos por determinada norma como sendo aqueles cuja realização ou ocorrência deflagra a consequência jurídica. Preenchido o suporte fático, ativa-se a consequência jurídica. Já na perspectiva concreta, o suporte fático é a ocorrência concreta, no mundo da vida, dos fatos ou atos que a norma, previu em abstrato.310 Virgílio Afonso da Silva afirma que a forma de aplicação dos direitos fundamentais depende da extensão do suporte fático. Salienta também que as exigências de fundamentação nos casos de restrição a direitos fáticos dependem da configuração do suporte fático e que, a 308 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 302. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 65-67. 310 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 67. 309 177 própria existência de colisão entre direitos fundamentais decorre precisamente da determinação do conceito de suporte fático. 311 Por meio de distinção analítica, identificam-se no conceito de suporte fático seus elementos constitutivos, os quais mudam, em se tratando de direitos protegidos por regras ou por princípios, bem como em se tratando de um direito de defesa ou em se tratando de um direito a uma ação positiva. Em se tratando de um direito de defesa (também chamado de uma liberdade pública), vê-se que sua função principal é proteger algo contra intervenções indevidas (decorrentes de atos estatais ou de atos entre particulares). Ao contrário, quando estiver em jogo um direito prestacional, o objetivo é a proteção contra omissões ou insuficiências no cumprimento do dever de proteção ou promoção de determinado bem jurídico fundamental. Em uma norma de Direito Penal que veda a prática de homicídio, como a do artigo 121 do Código Penal brasileiro – “Matar alguém. Pena: 311 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 68 - 69. Para ilustrar, apresenta o autor seguinte exemplo: “Determinado grupo musical, frustrado com a impossibilidade de demonstrar ao grande público seu talento, resolve, recorrendo a seu direito constitucional de reunião (CF, art. 5º, XVI), fazer um concerto em local aberto ao público no horário de maior movimento de automóveis, na avenida mais movimentada de sua cidade, em cujas cercanias se encontram dezenas de hospitais importantíssimos. As autoridades locais, com fundamento no transtorno para o trânsito, na possibilidade de mortes ou piora no quadro de saúde daqueles que têm que ser transportados por ambulâncias para os referidos hospitais e, por fim, em vista da dimensão meramente individual, festiva e interesseira do evento, resolvem proibi-lo. Diante desse cenário, várias perguntas são possíveis: (a) O ato “show de rock no meio da rua” é exercício do direito de reunião? (b) Há colisão entre o exercício do direito de reunião e o direito à vida daqueles que podem morrer nas ambulâncias em vista dos problemas no trânsito de automóveis? (b) Quais são as formas de resolver o problema? Sopesamento entre direitos? Delimitação de um deles? Exclusão de determinadas situações – por exemplo, “show de rock no meio da rua” – da garantia de algum dos direitos envolvidos?” As respostas a essas perguntas dependem, entre outras coisas, da definição do que seja suporte fático, da análise dos elementos que o compõem e, por fim, da fundamentação de sua extensão. Assim, definir o conceito de suporte fático dessa ou daquela maneira tem importantes consequências na forma de conceber o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. 178 reclusão de seis a vinte anos”- tem-se que o suporte fático para que a consequência jurídica prevista (imposição da pena) seja aplicada concretamente é que alguém seja morto por outra pessoa. Nesse caso, trata-se de um suposto fático de uma regra, isto é, de um mandamento definitivo, aplicado no modelo tudo-ou-nada, por mera subsunção. Já as disposições que garantem as liberdades fundamentais (direitos fundamentais de defesa), a exemplo das que garantem a liberdade de expressão312 ou o direito à privacidade313, têm a estrutura de princípios. Tendo a estrutura principiológica, a definição do suporte fático demanda resposta a quatro inexoráveis perguntas: 1) O que é protegido (prima facie e em definitivo)? 2) Contra o quê? 3) Qual é a consequência jurídica que poderá ocorrer se ocorrerem, no mundo da vida, os fatos ou atos que a norma jurídica, em abstrato, juridicizou? 4) O que é necessário ocorrer para que a consequência jurídica prevista na norma advenha?314. Tais perguntas permitem identificar os elementos constitutivos do suporte fático. A resposta à primeira pergunta constitui aquilo que Alexy chama de “âmbito de proteção” do direito fundamental. Compreender o que é protegido é uma parte importante, mas apenas uma parte do suporte fático. Será necessário também responder à segunda pergunta: “Contra o quê é protegido?” A resposta a essa segunda pergunta consiste no elemento do suporte fático denominado “intervenção”. Isso porque, nas liberdades fundamentais, ou, mais rigorosamente, na dimensão 312 BRASIL, Constituição de 1988. Art. 5º, IV – é livre a manifestação do pensamento. BRASIL, Constituição de 1988. Art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. 314 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 71. 313 179 funcional de direito de defesa, a “consequência jurídica” prevista na norma é a exigência de cessação de uma intervenção indevida. 315 Nas palavras de Alexy: “Bens protegidos316 são ações, características ou situações, ou ainda posições de direito ordinário, que não podem ser embaraçadas, afetadas ou eliminadas. O conceito de intervenção constitui o supraconceito para os conceitos de embaraço, afetação e eliminação. Os direitos a ações negativas são, portanto, direitos à não-realização de intervenções em determinados bens protegidos. A esse direito à não-realização de uma intervenção corresponde (...) o dever de não realizar essa intervenção”.317 Virgílio Afonso da Silva aprimora a formulação de Alexy quanto ao conceito “suporte fático”, nele agregando um terceiro elemento: a “fundamentação constitucional”, cuja ausência dá ensejo à consequência jurídica prevista: a exigência de cessação da intervenção. Se houver fundamentação constitucional para a intervenção estar-se-á diante de uma não violação, mas de uma legítima restrição, de uma restrição constitucional ao direito fundamental, o que impede a ativação da consequência jurídica: declaração de inconstitucionalidade e retorno ao status quo ante. Daí porque é mais correto (e mais completo) definir o suporte fático não apenas como sendo composto pelos elementos “âmbito de 315 Virgílio Afonso da SILVA (Direitos fundamentais, p. 71) dá um exemplo bastante claro para ilustrar que o suporte fático é composto tanto pelo âmbito de proteção como pela intervenção: “Aquele que todos os dias, antes de dormir, ora em agradecimento ao seu deus exerce algo protegido pela liberdade religiosa. A ação “orar antes de dormir” é abarcada, sem dúvida alguma, pelo âmbito de proteção da liberdade religiosa (art. 5º, VI, da CF). Mas a conseqüência jurídica típica de um direito de liberdade – como é o caso da liberdade religiosa – não ocorre. Como direito de defesa, essa conseqüência é a exigência de cessação de uma intervenção. Isso simplesmente porque o suporte fático dessa liberdade não foi preenchido, pois não houve qualquer intervenção naquilo que é protegido pela liberdade religiosa.” 316 Expressão utilizada no sentido de âmbito de proteção. 317 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 303. 180 proteção” e “intervenção”, incluindo nesse conceito a “ausência de fundamentação constitucional”. 318 A análise realizada até agora levou em conta as normas de direito fundamental permissivas, ou seja, a que garantem liberdades ou direito de defesa. Prossegue-se na exposição para agora tratar-se do suporte fático dos direitos prestacionais, isto é, das normas que impõem um correlato dever de agir ao sujeito passivo. Paulo Gilberto Cogo Leivas319, mantendo-se nos trilhos da dogmática de Robert Alexy, explica que no âmbito dos direitos prestacionais, a passagem das obrigações prima facie para obrigações definitivas depende da devida ponderação, guiada para preceito da proporcionalidade. Em se tratando de um direito de defesa, isto é, diante de obrigação de omissão estatal, o preceito da proporcionalidade é aplicado no sentido de proibição de excesso.320 Diante das obrigações de fazer, isso é, junto aos direitos prestacionais, o preceito da proporcionalidade é aplicado no sentido inverso, como proibição de omissão ou de insuficiência.321 A proibição de insuficiência exige que o destinatário do dever de agir (legislador, julgador, gestor público, etc.) não deixe de alcançar limites mínimos de atividade ou de resultado. Nessa linha, método adequado para verificar se ocorre ou não omissão inconstitucional ou atuação estatal insuficiente na proteção ou promoção de um direito fundamental prestacional, que é uma espécie 318 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 73-75. LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais e o direito fundamental ao mínimo existencial, p. 282-286. 320 Übermaβverbot, em alemão. 321 Untermaβverbot, em alemão. 319 181 de procedimento de ponderação, é aquele apresentado por Robert Alexy322 e aprimorado por Virgílio Afonso da Silva323, denominado de verificação dos elementos do suporte fático (âmbito de proteção, intervenção e fundamentação constitucional). Como já visto, o suporte fático de um direito fundamental deve conjugar todos os elementos que, quando preenchidos, dão ensejo à realização da consequência jurídica prevista na norma que garante esse direito. No caso de direitos que exigem prestações, e não meras omissões, os elementos do suporte fático terão conteúdos distintos, em comparação ao suporte fático dos direitos de defesa. É que, os problemas relacionados aos direitos prestacionais é a falta de realização dos direitos, decorrentes em geral de uma omissão estatal ou de uma ação insuficiente. Assim, tanto o conceito do que é protegido, quanto o conceito de intervenção tem outros conteúdos.324 São direitos de polaridades diversas, uns negativos, outros positivos. O âmbito de proteção de um direito prestacional é composto pelas ações exigidas do sujeito passivo (Estado ou particular, conforme o caso) porque fomentam a realização desses direitos. Por sua vez, o elemento “intervenção” na estrutura normativa dos direitos prestacionais se mostra invertida em comparação à dimensão negativa das liberdades públicas (direitos de defesa). Nos direitos prestacionais, “intervir” significa não agir ou agir de forma insuficiente.325 322 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 303 e ss. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 73 e ss. 324 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 77. 325 Vê-se, portanto, que o conceito dogmático de suporte fático de Alexy foi criado para dar conta das restrições a direitos de defesa e, posteriormente, foi adaptado para atender as problemas de omissão ou atuações insuficientes no cumprimento dos deveres de proteção e promoção dos direitos fundamentais (direitos prestacionais). 323 182 Por fim, o último elemento do suporte fático dos direitos prestacionais é a sua “fundamentação constitucional”. A diferença aqui, em relação aos direitos de defesa, é que o que se terá que fundamentar, justificar, embasar, não é uma ação, mas sim uma omissão ou atuação mitigada. Neste particular aspecto, é valiosa a invocação da lição de Teori Albino Zavascki326 que enfatiza que o reconhecimento pelo Poder Judiciário da inconstitucionalidade por omissão deve ser cercado dos mesmos cuidados do exame da inconstitucionalidade por ação. Se há uma presunção de constitucionalidade dos atos do Poder Público também há uma presunção de constitucionalidade da conduta omissiva. 327 Ou seja, em respeito ao princípio democrático e à representação política, é preciso demonstrar, com argumentos consistentes, aptos a convencer uma universalidade de pessoas bem intencionadas e 326 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo, p. 236. Para dar embasamento à sua exposição, Teoria Albino Zavascki cita doutrina de Carlos MAXIMILIANO (in Hermenêutica e aplicação do Direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 307) de seguinte teor: “Todas as presunções militam a favor da validade de um ato, legislativo ou executivo; portanto, se a incompetência, a falta de jurisdição ou a inconstitucionalidade, em geral, não estão acima de toda a dúvida razoável, interpreta-se e resolve-se pela manutenção do deliberado por qualquer dos três ramos em que se divide o Poder Público. Entre duas exegeses possíveis, prefere-se a que não infirme o ato de autoridade. Os tribunais só declaram a inconstitucionalidade de leis quando esta é evidente, não deixa margem à séria objeção em contrário. Portanto, se, entre duas interpretações mais ou menos defensáveis, entre duas correntes de idéias apoiadas por jurisconsultos de valor, o Congresso adotou uma, o seu ato prevalece. A bem da harmonia e do mútuo respeito que devem reinar entre os poderes federais (ou estaduais), o Judiciário só faz uso de sua prerrogativa quando o Congresso viola claramente ou deixa de aplicar o estatuto básico, e não quando opta apenas por determinada interpretação não de todo desarrazoada”. Pode-se, ainda, invocar as palavras de Sérgio Moro: “(...) o julgador não deve substituir a interpretação da Constituição realizada pelo Parlamento pela sua própria, a não ser que reúna argumentos substanciais no sentido de que a primeira estaria equivocada (o que é bastante difícil em se tratando de interpretação de regras constitucionais abertas). Entretanto, mesmo aqui, deve ser empregado o teste da razoabilidade. As opções legislativas não podem ser arbitrárias. Ato normativo que não passe pelo crivo da razoabilidade não é lei. (Legislação suspeita? Afastamento da presunção de constitucionalidade da lei. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2003, p. 55). 327 183 razoavelmente bem informadas, que as escolhas alocativas feitas pelo Poder Público, na formulação ou execução de uma política pública, estão em desconformidade com o sistema constitucional de direitos fundamentais, deixando sem proteção ou promoção suficiente o direito em questão para privilegiar ou atender outros interesses menos valiosos segundo a pauta axiológica acolhida pelo Pacto de 1988. Não se conseguindo demonstrar argumentativamente que a distribuição (ou alocação) dos recursos públicos disponíveis foi a melhor do ponto de vista da ordem constitucional, mantém deferência à decisão política tomada. Em alguns casos, concluída a ponderação, chegar-se-á à conclusão de que do Estado, na situação concreta em análise, não é exigido em definitivo nenhuma conduta protetora ou promocional (ou nenhuma medida outra além das que já vem empregando). Se assim resultar da ponderação, não se estará diante de uma omissão inconstitucional. O não-agir estará justificado, tem fundamentação constitucional. Noutros casos, ao final do procedimento de ponderação, verificar-se-á há que está havendo omissão inconstitucional ou atuação estatal insuficiente, também censurada pela Constituição, na proteção ou promoção de determinado direito fundamental. Preenchido o suporte fático, aciona-se a sanção jurídica para impelir o Poder Público a cumprir com o seu dever de agir. Ocorre que neste procedimento de ponderação, através do qual se dá a passagem de um direito prestacional prima facie para um direito definitivo, também há que se tecerem considerações a respeito da necessidade e adequação dos meios frente à pluralidade de opções. 184 Seguindo os ditames da proporcionalidade, uma atuação estatal será adequada, no sentido de obedecer à proibição de insuficiência, caso os meios empregados sejam aptos a alcançar ou promover o objetivo exigido pela norma que obriga o Estado a agir. No plano da aferição da necessidade dos meios, verificar-se-á, se há ou não outros meios aptos para alcançar em igual ou maior medida a realização do objetivo exigido pela norma e que causem menos afetação a outros direitos fundamentais ou a outros interesses também constitucionalmente tutelados. Saliente-se que, por serem assegurados por normas que tem estrutura de princípio, isto é, de mandados de otimização, os direitos fundamentais prestacionais devem ser atendidos pelos meios que apresentarem a mais alta intensidade de proteção ou promoção do estado de coisas desejado pela norma, salvo se houver necessidade de alguma restrição, justificada pela necessidade de partilhar os meios disponíveis para atender outro(s) direito(s) fundamental(is) igualmente valioso(s)/importante(s). A complexidade resulta de que tudo depende da necessária ponderação ou sopesamento, cuja solução implica atribuição de pesos aos direitos/princípios/valores/interesses/bens jurídicos colidentes. Atribuição de pesos esta que está sujeita a controle racional, fundamentando-se a decisão a motivação, que deve ser formulada à luz das diretrizes constitucionais. Por isso, depois de concluídos os juízos de adequação e de necessidade, adentra-se no juízo da proporcionalidade em sentido estrito, cujo critério guia é aquele que determina que quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um direito fundamental, 185 tanto maior de ser a importância do direito fundamental que está sendo satisfeito com os meios de que o Estado dispõe. Isso leva em conta as escolhas alocativas, ou seja, é preciso verificar quais foram os meios empregados para se atingir determinada finalidade e que poderiam ter sido empregados para outro escopo. Ainda assim pode ocorrer que, concluída a ponderação, existam vários meios, igualmente adequados, necessários e proporcionais, para atingir o fim de proteger e promover o bem jurídico ou direito fundamental em tela. Como ensina o próprio Alexy: “Se mais de uma ação de proteção ou fomento é adequada, nenhuma delas é, em si mesma, necessária para a satisfação do dever de proteção ou de fomento; necessário é somente que alguma delas seja adotada.”328 Ou seja, nesses casos em que se verifica a existência de vários meios aptos, reconhece-se um espaço de discricionariedade para a escolha daquele que será empregado. Percebe-se que a metodologia do suporte fático, defendida por Robert Alexy e Virgílio Afonso da Silva, busca organizar a argumentação jurídica e, portanto, propiciar uma estruturação da motivação da decisão de aplicação do Direito diante de uma pretensão de tutela a direito fundamental. Enfim, objetiva-se facilitar o controle racional, intersubjetivo, a verificação da correição da decisão tomada, dando-lhe, assim, mais transparência a todo o processo decisório329. 328 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais, p. 462. Alguns julgados recentes são bastante expressivos quanto ao dever de transparência na gestão da coisa pública no atual sistema constitucional brasileiro: 1) STF, RHD 22, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19 set. 1991: “A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos, enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial a caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível. O modelo políticojurídico, plasmado na nova ordem constitucional, rejeita o poder que oculta e o poder que 329 186 É claro que não se elimina de todo – até porque isso é na prática inalcançável – os riscos de decisões equivocadas, ou pautadas em juízos subjetivos do julgador. Porém, a necessidade de explicitação dos fundamentos sujeita o julgador à crítica pública pela decisão tomada. Portanto, a exposição decorrente do dever de bem fundamentar propiciar maiores chances de acertos. A rigor, a análise do suporte fático de um direito fundamental, para fins de juízo acerca da exigibilidade em determinada situação concreta, não deixa de ser uma espécie de raciocínio por ponderação. Sendo assim, um problema que fica aberto é que a ponderação, enquanto estrutura de raciocínio, não deixa de ser uma fórmula meramente formal e, por isso, vazia de conteúdo. Por isso, quando de sua aplicação, ela deve ser preenchida com critérios substanciais que guiem o intérprete-aplicador-do-Direito na sua tarefa de atribuir pesos e, com isso, decidir qual dos interesses em jogo deve prevalecer no caso concreto. Neste sentido, Ana Paula de Barcellos, após considerar que ponderar tem o sentido de atribuir peso a diversas grandezas para calcular a médica ponderada; de examinar com atenção e minúcia; de avaliar, apreciar as vantagens e as desvantagens; de levar em se oculta”; 2) STF, DJU 09 dez 2003, MS 24.725-8, Rel. Min. Celso de Mello: “Assiste, aos cidadãos e aos meios de comunicação social (“mass media”), a prerrogativa de fiscalizar e de controlar a destinação, a utilização e a prestação de contas relativas a verbas públicas. (...) Não custa rememorar que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério, eis que a legitimidade político-jurídica da ordem democrática, impregnada de necessário substrato ético, somente é compatível com um regime do poder visível, definido, na lição de BOBBIO, como “um modelo ideal do governo público em público”. Ao dessacralizar o segredo, a nova Constituição do Brasil restaurou o velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, cuja incidência – sobre repudiar qualquer compromisso com o mistério – atua como fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais”. 187 consideração, ter atenção sobre alguma coisa, sopesar; e de que toda decisão humana minimamente racional envolve algum tipo de ponderação, de avaliação de vantagens e desvantagens, dos prós e contras, cuja conclusão condiciona à tomada de decisão em um ou outro sentido, reconhece que a ponderação em si é uma técnica instrumental vazia de conteúdo, incapaz de responder às seguintes questões: 1) Que peso deve ser atribuído a cada elemento? 2) Por que uns receberão um peso maior que outros? 3) Por qual razão uma solução deve prevalecer sobre outra?330 No mesmo sentido, explica Luiz Guilherme Marinoni, citando Karl Larenz que “ponderar” e “sopesar” direitos ou bens jurídicos são apenas imagens. Não se trata de grandezas quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações que deve ser feito no caso concreto, não se podendo, de antemão, catalogar em uma tabela a ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos.331 Igualmente, Humberto Ávila ressalta que ponderação e concordância prática são estruturas exclusivamente formais, despidas de critérios materiais para solução do conflito dos elementos que se imbricam. 332 De fato, há uma preocupação muito grande de que a ponderação se torne um procedimento fluído, estruturado com argumentos vazios, formulados em linguagem rebuscada, que apenas servem para dissimular os déficits de fundamentação racional, com o propósito de camuflar, de escamotear decisionismos subjetivistas.333 330 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 1-3 e 124. 331 MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da Tutela, p. 256. 332 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, p. 96-97. 333 FERRAZ, Sergio Valladão. Hermenêutica constitucional estruturante, p. 117-118. 188 Dito isso, percebe-se que a controlabilidade racional das decisões de aplicação do Direito tomadas com base em ponderação depende não apenas da exposição estruturada do raciocínio, mas principalmente da fundamentação substancial que é dada para justificar a precedência de um interesse sobre outro, o que leva à questão da motivação das sentenças, bem como à imprescindível abertura do processo que levou à construção da decisão judicial a uma boa instrução probatória multidisciplinar e a um debate racional, com ampla participação quando se tratar de questão interesse geral. Enfim, imprescindível que a ponderação esteja inserida em um procedimento de debates e produção de provas que permita o amadurecimento das questões em jogo. Nesta linha, o próprio Alexy334 reconhece que a ponderação pode não conduzir a um único resultado, nem elimina certa dose de discricionariedade judicial. Contudo, defende seu método, aduzindo que a possibilidade de múltiplas respostas não implica concluir que se trate de um método desprovido de parâmetros racionais. Segundo a lei da ponderação, devem-se apresentar argumentos racionais, com pretensão de correção, demonstrando um grau de não cumprimento, prejuízo ou restrição de um princípio, depois, comprova-se a importância do cumprimento do princípio oposto. Depois, ainda, há de se comprovar que importância do cumprimento do princípio que justifica a mitigação do outro. Assim, conclui Alexy que a utilização da técnica ponderativa proporciona controle sobre as decisões já que exige a exposição de argumentos racionais. 334 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 108-116. 189 Ao contrário do que se poderia até cogitar, a ponderação não enfraquece a normatividade dos direitos fundamentais, antes a reforça, uma vez que, pela lei da ponderação, quanto maior a intensidade de uma intervenção estatal no âmbito de um direito fundamental, maior será a necessidade de justificação. Ou seja, quanto maior o sacrifício, menos autorizada ela estará e menor probabilidade terá de ser permitida, e isso preserva a força normativa do direito fundamental em questão. 335 Como coloca Manuel Atienza, o modelo que Alexy propõe não permite alcançar sempre uma única resposta correta para cada caso, mas é o que leva a um maior grau de racionalidade prática, sendo também o mais compatível com o modelo de racionalidade incorporado pelo Direito de um Estado Democrático e Constitucional.336 O grande valor da teoria da argumentação, na visão de Alexy, é contemplar o discurso jurídico como uma espécie do discurso prático em geral. Um discurso cujas características são a de que as razões e as contrarrazões são postas a prova, buscando-se, ao final, trazer uma decisão fundamentada tão somente na força do melhor argumento. Diante da tessitura aberta dos textos normativos, notadamente dos chamados princípios constitucionais, o controle racional das decisões jurídicas depende muito de critérios materiais de ordenação hierárquica entre os diversos tópicos, argumentos, princípios, regras e/ou versões de concretização normativa. Observa Manuel Atienza que os critérios de racionalidade prática apresentados pelas diversas teorias da argumentação jurídica que já foram publicadas são apenas critérios mínimos, que só permitem 335 336 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo, p. 115-116. ATIENZA, Manuel. As razões do Direito, p. 182. 190 descartar como irracionais determinadas decisões ou formas de argumentação.337 Portanto, como há muito que ser descoberto e sistematizado, está-se diante de um campo profícuo para investigações e pesquisas: o da teoria da argumentação jurídica. Porém, não se pode deixar de lado o que já se conquistou nesse âmbito para tornar as decisões mais controláveis, menos suscetíveis a subjetivismos ou casuísmos. Nos casos de interpretação, de atribuição de sentido, a textos normativos de tessitura aberta, como é o caso das normas garantidoras de direitos fundamentais, além da rigorosa observância do devido processo legal, que assegure, ao máximo possível, a observância de um debate racional e embasado; além do respeito aos limites das possibilidades semânticas dos textos normativos interpretados, três critérios materiais já revelados pelas teorias da argumentação parecem fundamentais: 1) o da universalidade ou isonomia (as decisões para um caso concreto devem ser definidas levando-se em conta que elas deverão também valer para outros casos futuros iguais aquele, não devem ser casuísticas ou idiossincráticas)338; 2) e o da "reserva de consistência" das interpretações, que significa que para se preencher o conteúdo dos termos vagos constantes nos textos normativos, se deve buscar o auxílio de outros saberes técnicos não jurídicos (medicina, biologia, psicologia, sociologia, economia, administração, 337 ATIENZA, Manuel. As razões do Direito, p. 223. Nesse sentido: BARROSO, Luís Roberto. contemporâneo, p. 343-344. 338 Curso de Direito Constitucional 191 etc.), de modo a demonstrar-se, solidamente, o acerto da solução proposta339 e 3) o da coerência da solução proposta com o sistema de textos normativos em vigor, levando em conta, precipuamente, as finalidades e os direitos fundamentais previstos na Constituição, sendo que, no caso do Brasil, têm especial relevo os princípios, os objetivos e as finalidades fundamentais – e vinculantes – da República, previstos nos artigos 1º e 3º do Texto Maior.340 Por conseqüência, tem importância indiscutível a argumentação jurídica apresentada para a solução de um caso concreto envolvendo direitos fundamentais. Por meio dela é que se verifica se houve sério compromisso com a implementação dos direitos fundamentais, tal qual ordenado pela Constituição, ou se, ao contrário, de forma indevida, ignorou-se o mandamento do § 1º do artigo 5º da Constituição de 1988, negando eficácia ao direito fundamental em questão. Enfim, a doutrina do suporte fático de um direito fundamental consegue organizar metodologicamente o processo para se sindicar se há ou não exigibilidade, em determinado caso concreto, de medidas protetoras ou fomentadoras de um estado de coisas aprioristicamente contemplado por uma norma-princípio. Favorece-se a elaboração de discursos mais consistentes, que respeite as enunciações dos direitos, as condições da realidade e a imperiosa necessidade de conciliação entre interesses conflitantes. E isso se aplica para fins de justiciabilidade do direito à moradia em sua dimensão de direito prestacional. No caso do direito à moradia, manifestar-se-á a dimensão 339 É, o que defende, v.g. MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia, p. 225 340 Nessa linha, FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito, p. 171-181. 192 prestacional quando se demandar, por exemplo, a estruturação de órgãos e a edição de normas que estabeleçam procedimentos de tutela e promoção do direito à moradia; o fornecimento pelo Estado de auxílio financeiro, a prestação de serviço público ou a entrega de bens materiais, entre outras ações comissivas; prestações de tutela contra danos potenciais, eminentes ou efetivos, causados por condutas ilegais ou abusivas de agentes públicos ou privados (direito de proteção). O direito humano fundamental à moradia em sua dimensão prestacional é previsto em norma constitucional que tem a estrutura de princípio. Os princípios, como mandados de otimização, determinam a utilização dos meios adequados para o alcance ou promoção de determinado objetivo. A finalidade colimada é o asseguramento de acesso e fruição de uma moradia digna ou a efetiva proteção desse direito quando ameaçado ou lesado por agente público ou particular. Para atingir esses objetivos, em determinada situação concreta, vários meios mostram-se a priori adequados, úteis, necessários, como, por exemplo: fornecimento de um abrigo provisório, fornecimento de dinheiro a título de auxílio aluguel, fornecimento de habitação para venda a preços acessíveis, fornecimento de terreno, fornecimento de materiais de construção, fornecimento de assistência jurídica ou de assistência técnica para edificação e/ou regularização fundiária, o fornecimento de um provimento judicial de proteção com o cumprimento assegurado por meios inibitórios ou coercitivos, ações de melhoria das habitações ou das estruturas de serviços públicos essenciais como fornecimento de água, luz, coleta de esgoto, etc. Assim, antes da ponderação, nenhum meio que possa promover a realização do princípio pode ser desconsiderado. Todo e qualquer 193 meios é apto a proteger e promover a moradia é, portanto, considerado objeto do mandado prima facie contido na norma constitucional. Assim, todos esses meios devem ser submetidos à ponderação, que é guiada pelo preceito da proporcionalidade, levando em conta a necessidade de se atender, de maneira equilibrada, outros direitos humanos fundamentais, com os recursos disponíveis, os quais, por óbvio, não são ilimitados. Portanto, a questão da análise da “fundamentação constitucional”, enquanto elemento do suporte fático do direito prestacional à moradia, em face do Poder Público, se conecta com os dilemas da escassez de recursos e com as escolhas alocativas, a seguir analisados. 3.2. EFETIVIDADE DO DIREITO À MORADIA, EFICÁCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL GARANTIDORA, ESCASSEZ E ESCOLHAS ALOCATIVAS José Casalta Nabais lembra que a ideia de direitos fundamentais está atrelada a de deveres dos cidadãos, de tal forma que todos os membros da comunidade devem contribuir para o suporte financeiro desses direitos. Trata-se de um binômio direito-dever. Um binômio que precisa ser salientado, já que, no dizer do mencionado autor, a dimensão dos deveres vem se mantido como a “face oculta dos direitos fundamentais”.341 A respeito dessa relevante discussão sobre os custos da proteção dos direitos, Stephen Holmes e Cass Sunstein trazem contribuições 341 NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. 194 valiosas, ao demonstrarem que não apenas os direitos sociais342 implicam dispêndio de recursos públicos. A dimensão econômicofinanceira está presente em todo e qualquer tipo de direito. É que qualquer direito mostrar-se-á oco se não for protegido pelo Estado. Como esta proteção demanda dispêndio de recursos do erário, todo e qualquer direito são onerosos. Não se trata de uma exclusividade dos direitos sociais. Até mesmo os chamados direitos negativos, ou de liberdade, porque seus remédios, suas garantias, importam em gastos. Assim, a dimensão financeira, de encargos para os cofres públicos, está presente em qualquer tipo de direito: do direito ao tratamento de saúde ao direito de propriedade; do direito de liberdade de expressão ao direito à moradia digna. 343 Na mesma linha adotada por Holmes e Sunstein, Daniel Sarmento leciona que envolver custos não é uma característica exclusiva dos direitos sociais: “... fazendo-se presente também nos direitos individuais e políticos, cuja plena exigibilidade judicial ninguém questiona. Afinal, proteger a propriedade, prestar a jurisdição, promover eleições, etc., são atividades que também importam em gastos públicos”.344 Alceu Maurício Jr. concorda com Holmes e Sustein que as chamadas liberdades públicas também demandam do Estado 342 O termo “direitos sociais” é empregado como denominação genérica aos direitos positivos, isto é, os direitos a uma prestação ou uma atividade estatal relacionada à educação, ao atendimento à saúde, à previdência e à assistência social entre outras incumbências que os Estados-Nações ocidentais passaram a assumir, principalmente após o segundo Pós-Guerra. A denominação “direitos sociais” é utilizá-la para contrastá-los com os “direitos civis e políticos”, substituindo a expressão “direitos econômicos, sociais e culturais”, consagrada nos Pactos das Nações Unidas. 343 HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The cost of rights, p. 15-20, 55 e 234-236. 344 SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais: Alguns parâmetros éticojurídicos, p. 533-554. 195 prestações positivas que oneram o orçamento público, porém, entende que a distinção entre direitos negativos e direitos positivos ainda deve permanecer eis que as liberdades em si não têm custos, apenas suas garantias é que são gravosas ao Estado, enquanto os direitos prestacionais não se realizam se sua execução não for custeada pelos cofres públicos.345 Mas saliente-se: a distinção deve ser feita não entre direitos e liberdades civis e políticas, de um lado, e direitos econômicos, culturais e sociais, de outro, mas entre as dimensões funcionais de direito de defesa e de direitos prestacionais presentes em qualquer uma das categorias anteriores (liberdades e direitos civis e políticos e direitos sociais lato sensu). De fato, os chamados direitos negativos, voltados a resguardar esfera de autonomia privada contra intervenções do Estado ou de particulares, blindando um espaço de liberdade individual em face dos outros e do Poder Público, não implicam gastos imediatos para se realizarem na prática. Mas isso não implica em dizer que, mesmo assim eles não implicam gastos públicos. Mesmo quando não são violados ou ameaçados os direitos negativos (ou dimensão funcional negativa dos direitos de liberdade) importarão em despesas para o Estado para o custeio da criação e manutenção de organizações estatais que foram estruturadas justamente para garantir esses direitos (Polícia, Bombeiros, Defesa Civil, Judiciário, Ministério Público, etc.). É certo, porém, que os chamados direitos sociais de cunho eminentemente prestacional estão mais intensamente ligado ao custeio pelo erário na medida em que eles não se realizam no mundo dos fatos caso o fornecimento estatal do bem ou do serviço pertinente não 345 MAURÍCIO JR., Alceu. A revisão judicial das escolhas orçamentárias, p. 59, 196 ocorra. Logo, são direta e imediatamente dependentes do emprego de recursos públicos.346 Contudo, a diferença entre direitos sociais e os chamados direitos negativos, no que diz respeito à dependência do custeio estatal, é apenas relativa e circunstancial. Logo, é equivocado relacionar os direitos e liberdades civis às normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata e os direitos sociais às normas programáticas, dependentes - para terem aplicabilidade - da complementação pelo legislador ordinário. Vicente de Paula Barreto, a respeito, sustenta que o pensamento neoliberal criou três falácias para negar a exigibilidade dos direitos sociais: 1) que os direitos sociais seriam direitos de segunda ordem, por que não participaram do momento fundador do Direito, tais quais os direitos civis e políticos; 2) que os direitos sociais têm sua exigibilidade condicionada a uma economia forte; e 3) que só direitos sociais teriam custos e, portanto, estariam sujeitos à escassez dos recursos. 347 Ocorre que, os direitos sociais não são apenas instrumentos de compensação das desigualdades, mas integram um núcleo fundamental sem o qual não se pode garantir a segurança, a liberdade, a sustentação e a continuidade da vida humana em sociedade. Logo, os direitos sociais também participam do momento fundador do Direito. Por outro lado, a efetivação dos direitos sociais não depende de uma “economia forte”, mas, sobretudo, de escolhas políticas que definirão a destinação dos 346 Discussão interessante que esse tópico suscita é se os gastos na realização de direitos sociais são custos ou investimentos? Ao se considerar que a maior riqueza de um país é o seu povo, investir na implementação dos direitos sociais – educação, saúde, moradia, assistência social, principalmente – vale a pena. Tratar-se-á não de meros custos, mas sim de investimentos. Afinal, prosperidade depende de pessoas qualificadas e talentosas, com boa qualidade de vida. 347 BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais, p. 117-121. 197 recursos e das políticas públicas necessárias. Por fim, ter custo não é uma característica exclusiva dos direitos sociais, bastando se lembrar dos altos encargos à Fazenda Pública para manter e fazer operar o aparelho estatal - administrativo e judicial - necessário para garantir os direitos civis e políticos348. A percepção que a proteção e promoção dos direitos envolvem custos ilumina a questão da correlação entre as despesas geradas pelo fornecimento das prestações estatais de bens e/ou serviços com os recursos que a sociedade é capaz de carrear ao Estado. Essa dimensão traz também à baila a importância de se verificar a maneira pela qual os recursos públicos estão sendo utilizados, não só à luz dos aspectos da eficiência e probidade, mas, notadamente, pelo critério da compatibilidade com o estabelecido na Constituição, que busca combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, reduzir desigualdades sociais, assegurar igualdade de acesso às condições básicas de vida através do caminho do desenvolvimento socioambientalmente sustentável. Consoante destaca Lafayete Josué Petter: “o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de garantir o desenvolvimento nacional, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a marginalização e promovendo o bem de todos com redução das desigualdades (CF, art. 3º), por certo está umbilicalmente relacionado com os preceitos voltados para a atividade econômica (CF, arts. 170 e ss.). A falta de desenvolvimento, ou, dito de outro modo, o estado de subdesenvolvimento, deve ser tida como a antítese do receituário constitucional, reclamando redobrados esforços de superação na atividade afeta a todos os operadores do Direito, v.g., impondo aos administradores públicos um mínimo de 348 BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais, p. 117-121. 198 programação de políticas públicas de longo prazo”349 Daí a relevância de verificar se as políticas públicas que vem sendo formuladas e executadas pelo Poder Público, e que se encontram espelhadas no orçamento público e nos planos estratégicos de transformação da realidade, mostram-se compatíveis ou não com objetivos fundamentais da República brasileira, centrada na dignidade da pessoa humana, e com um claro propósito de eliminar a miséria e reduzir as desigualdades (preâmbulo, artigo 1º e 3º da Constituição). Poder-se-ia cogitar que a menor efetividade dos direitos sociais estrutura-se numa contraposição, entre as normas que consagram liberdades públicas e direitos políticos, entendidas como normas de eficácia plena, e as normas que consagram direitos sociais, tidas como de eficácia limitada. Por esse prisma, a maior efetividade das liberdades públicas e dos direitos políticos decorreria da característica desses direitos de não dependerem de regulamentação e intervenção estatal para serem respeitados, bastando uma abstenção do Estado e do legislador ordinários, ao passo que, diferentemente, os direitos sociais estariam contemplados em normas de eficácia limitada, revelada pela dimensão dos custos que esses direitos implicam para o Estado, o qual, por isso mesmo, não teria condições de agir da forma esperada. Por essa maneira de olhar, a baixa efetividade seria mais uma demonstração da eficácia limitada das normas que consagram os direitos sociais. Virgílio Afonso da Silva responde que esta explicação para a menor efetividade dos direitos sociais, apesar de frequente na doutrina, 349 PETTER, Josué Lafayete. Princípios constitucionais da ordem econômica, p.165. 199 e apenas parcialmente correta. Primeiro porque qualquer direito implica custos, às vezes altíssimos ao Estado. Também as liberdades públicas e os direitos políticos exigem uma ação onerosa do Estado. Segundo porque as razões para algumas normas conseguirem, no plano prático, produzir mais efeitos do que outras são extrínsecas ao texto ou à estrutura normativa, não estão na dimensão jurídica da eficácia, mas em outro plano. A explicação para maior ou menor efetividade encontra-se nas opções político-ideológicas que foram feitas no curso da história de um país não sendo algo intrínseco às normas constitucionais.350 Portanto, a explicação está na história, nas decisões alocativas de recursos, nas estruturas institucionais e procedimentais que foram sendo consolidadas, e nos volumes de recursos que foram sendo tradicionalmente aplicados em determinada área de atuação do Estado. Os primeiros exemplos que Virgílio Afonso da Silva trabalha para demonstrar suas assertivas é o direito ao sufrágio, comparando-o com o direito à saúde. No plano do texto constitucional, nada diferencia o direito ao sufrágio universal e às eleições livres, cujo voto de igual valor para todos os eleitores, enunciado no artigo 14 da Constituição brasileira de 1988 e o direito à saúde, garantido pelo artigo 6º da mesma Carta. Para que a norma expressa pelo artigo 14 produzisse os efeitos desejados houve necessidade da criação e manutenção de seções eleitorais e de juntas de apuração, a organização e manutenção de um órgão responsável pela organização e bom funcionamento das eleições, no caso, o Tribunal Superior Eleitoral, a elaboração de uma legislação 350 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 231-232. 200 eleitoral e partidária, a criação e manutenção de alguma forma de financiamento partidário, entre outras exigências. Sem tudo isso, o mero texto constitucional é despido de qualquer possibilidade de produzir efeitos. Para a norma expressa pelo artigo 6º da Constituição – direito à saúde – produzir os efeitos desejados, mostra-se necessária a construção de hospitais e a contratação de médicos para o serviço público de saúde, a elaboração de uma legislação que discipline a forma de financiamento e de utilização desse serviço público, a definição de prioridades no combate a doenças, etc. Portanto, como se percebe, nem uma nem outra norma é bastante em si mesma. Ambas dependem da ação estatal para produzir efeitos. E a diferença básica entre elas no que diz respeito à efetividade, não está no plano jurídico-analítico, mas no plano jurídico-empírico. Não está no plano da eficácia, mas sim no plano da efetividade. Portanto, a explicação para atual crise de efetividade dos direitos sociais é outra da tradicionalmente apresentada. No caso do direito ao sufrágio, as condições institucionais, legais e financeiras necessárias já existem, pois, no curso da sua história, o Brasil já estruturou um órgão que organiza eleições, já existem funcionários para trabalhar nesses órgãos e pessoas para trabalhar nos dias de eleições, já existe dotação orçamentária suficiente para organização das eleições. Já no caso do direito à saúde, as condições institucionais, legais e financeiras ainda não são ideais, pois faltam hospitais, não se dispõe de um plano de carreira e salários para atrair médicos, notadamente longe dos grandes centros urbanos, faltam recursos para comprar 201 medicamentos e material hospitalar, etc. A diferença entre os dois casos, com efeito, é fática e temporal, e não porque as normas que asseguram o direito ao sufrágio são de eficácia plena e bastam em si mesmas e as normas que contemplam o direito à saúde são de eficácia limitada, reduzida. A única diferença é que em um caso, as condições fáticas para a produção dos efeitos já existem, e no outro, ainda não.351 No caso do direito político ao sufrágio e o direito à saúde, acima analisado, ambos apresentam dimensão funcional positiva, prestacional. Mas no caso de liberdades públicas comparadas com os direitos sociais, haveria alguma diferença? A explicação para a menor efetividade dos direitos sociais em comparação às liberdades públicas decorre da diferente eficácia das respectivas normas constitucionais que os salvaguardam? Conforme apresentado por Virgílio Afonso da Silva, a explicação que geralmente se encontra na doutrina é apenas parcialmente correta. Se as liberdades públicas continuarem sendo compreendidas como meros direitos de cunho liberal, que garante um direito subjetivo dos indivíduos a uma abstenção estatal, aí sim, poder-se-ia entender que as normas constitucionais que as garantem bastariam em si mesmas. Contudo, e no caso de violação, de não observância espontânea do dever de abstenção? Tal peculiaridade mostra que as liberdades públicas só são efetivas se o Estado cumprir o seu dever de protegê-las. Por isso, se visualiza que os direitos e liberdades públicas além da dimensão funcional de direito de defesa ou direito a uma abstenção/não351 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 232-234. 202 interferência, também apresentam as dimensões funcionais de direitos de proteção e de direitos a organização e procedimentos, ambos como inequívoco conteúdo prestacional. Nesta linha, o direito de propriedade só será pleno se, de fato, o Estado cumprir o seu dever de protegê-lo contra atentados de agentes públicos ou privados. Para tanto, é necessário legislar, criar e manter organizações, como a Polícia, o Poder Judiciário, etc., é preciso criar um registro de imóveis, é necessário estabelecer os procedimentos para aquisição e transferência da propriedade, dentre outras ações estatais necessárias. Sem tudo isso, a norma constitucional que protege o direito à propriedade não tem capacidade de produzir os efeitos desejados no plano empírico, no mundo dos fatos. Vale dizer: sem regulamentação, sem intervenção estatal, nem mesmo a norma constitucional que garante um direito individual ou uma liberdade pública tem capacidade de produzir seus efeitos. Portanto, a criação das condições materiais e jurídicas para a produção de efeitos dos direitos e liberdades individuais, via regulamentação e via criação e manutenção de organizações e procedimentos equivale ao que é demandado para a efetivação dos direitos sociais. Nesta linha, por exemplo, o direito à educação demandaria a construção de escola, a contratação e treinamento de professores e auxílio aos estudantes carentes na compra de material escolar, ou, noutro exemplo, o direito à moradia, aqui tratado, cuja efetividade demandaria a construção de casas, a abertura de linhas populares de financiamento, entre outras ações estatais.352 Daí 352 porque o destino das classificações das normas SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 235-237. 203 constitucionais segundo a eficácia, levando em conta os aspectos semânticos do texto normativo, tende a ser o do abandono paulatino, já que não consegue dar conta da realidade do fenômeno sociológico e jurídico da efetividade. 353 O desafio de efetivação dos direitos sociais apresenta um instigante paradoxo, também apontado por Virgílio Afonso da Silva: depende-se em larga medida das decisões alocativas dos recursos escassos disponíveis ao Poder Público, alocação essa que é feita, sobretudo, com base em critérios políticos, demando pressão social por 353 Nessa linha, a classificação de Ruy Barbosa, inspirada nos trabalhos do americano Thomas Cooley (self-executing provisions e not-self-execution provisions, isto é, normas autoaplicáveis ou autoexecutáveis ou não), de Pontes de Miranda (normas bastantes em si mesmas ou não), de José Horácio Meirelles Teixeira e de José Afonso da Silva (normas de eficácia plena ou reduzida), de Ingo Wolfgang Sarlet (normas de alta ou de baixa densidade normativa). Se todos os direitos dependem de atuações estatais, meios institucionais e condições fáticas e jurídicas para se realizarem, não se justifica a identificação de normas de eficácia limitada, porque todas assim o são. O texto constitucional não basta por si só, depende sua efetivação da atuação do legislador democrático, bem como da atuação cívica dos vários segmentos da sociedade. Por outro lado, não há normas ou direitos fundamentais absolutos, no sentido de imunes a restrições, portanto, sem sentido falar-se em normas de eficácia plena. Por fim, aponta-se o grave risco de, mediante simples invocação às classificações em testilhas, o julgador elaborar discurso estratégico para fugir do enfrentamento do cerne da questão que é o de verificar, mediante ponderação, se uma postulação de medidas protetoras ou fomentadoras traduz-se ou não, diante das circunstâncias concretas, um direito exigível, isto é, se há ou não omissão ou atuação pública insuficiente em descompasso com a Constituição. Para aprofundar ver: FERRARI. Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais programáticas: normatividade, operatividade e efetividade. MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. SILVA NETO, Manoel Jorge e. O princípio da máxima efetividade e a interpretação constitucional. CUNHA, Dirley da. Controle judicial das omissões do Poder Público. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. BERCOVICI, Gilberto. A Constituição Dirigente e a crise da Teoria da Constituição. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. BASTO, Celso Ribeiro; BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas; Curso de Direito Constitucional contemporâneo. SILVA, Luís Virgílio Afonso. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. O Constitucionalismo Contemporâneo e a Instrumentalização para a Eficácia dos Direitos Fundamentais. DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo dirigente e pós-modernidade. 204 parte justamente daqueles que, em geral, têm menos meios de fazer essa pressão.354 De relevo é, assim, a importância da atuação de instituições como o Ministério Público, a Defensoria Pública e Associações Civis na defesa judicial e extrajudicial dos interesses dessa população hipossuficiente. A diferença do grau de efetividade entre os diversos tipos de direitos fundamentais contemplados na Constituição de 1988, e, mais especificamente, a atual crise de efetividade do direito à moradia, não se assenta numa suposta diferença de estrutura normativa, ou no maior e menor grau de eficácia das normas constitucionais que consagram esses direitos fundamentais. A explicação correta é outra, e está em outro plano: no plano sociológico, histórico, do político, e pode ser sintetizada da seguinte forma: Enquanto as condições institucionais, legais, materiais, etc. para a produção de efeitos dos direitos e liberdades individuais e dos direitos políticos, em geral, já existem, já foram conquistadas/realizadas, as condições institucionais, legais, materiais, etc. para a produção dos efeitos dos direitos sociais ainda não existem, ou ainda não atingiram um patamar minimamente satisfatório. O problema não é da norma, mas sim dos desafios práticos de sua efetivação. Abre-se então o campo das políticas públicas como terreno para efetivarem-se os direitos humanos fundamentais, inclusive o da moradia digna. Portanto, levar a sério a dimensão econômica dos custos da proteção e promoção do direito à moradia e da vinculação entre 354 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais, p. 242. 205 efetividade dos direitos e as políticas públicas é condição sem a qual não passara de uma enunciação retórica desprovida de sentido prático a previsão deste direito na Constituição brasileira de 1988, como um direito humano fundamental, como um direito da personalidade, essencial à dignidade humana. E a dimensão econômica dos custos da proteção e promoção dos direitos fundamentais prestacionais, cotejada com a força normativa da Constituição, indica que a verificação da exigibilidade de determinado direito fundamental de cunho prestacional implica averiguar se a omissão ou atuação estatal insuficiente justifica-se ou não à luz da própria Constituição de 1988 e da conjuntura que estabelece os limites e possibilidades da atuação estatal. Quanto a esse particular aspecto, Clèmerson Merlin Clève ensina que a omissão inconstitucional não é conceito naturalístico (“não fazer”), mas normativo (“não fazer algo devido”). Assim, as ordens constitucionais de legislar e as imposições constitucionais podem ser descumpridas pelo silêncio transgressor (“um não atuar o devido”), e também pelo agir insuficiente (“um não atuar completamente devido”).355 Enfrentar o cerne do problema (ou desafio) da efetivação do direito à moradia, rumo à sua universalização de fato, implica, inicialmente, tomar consciência da dimensão econômica dos custos dos direitos e da relação de dependência de uma proteção ou promoção eficaz de um direito com as políticas públicas, como o planejamento estratégico da ação estatal. E, numa etapa posterior, impõe-se perceber que as políticas 355 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro, p. 327. 206 públicas devem ser planejadas e executadas em conformidade com a Constituição, sendo, por isso, passíveis de controle de constitucionalidade difuso ou concentrado. Em uma Constituição substancializada como a é a brasileira em vigência, em que, parafraseando o constitucionalista espanhol Pablo Lucas Verdú356, a Grundnorma, isto é, a norma fundamental kelseniana, é a dignidade humana e os direitos que lhe são inerentes, o controle jurídico das políticas públicas, quer nas instâncias judiciais, quer nas demais instâncias (Parlamento e Executivo), não pode ficar restrito aos aspectos formais, relativos à observância das regras de competência e de procedimento, adentrando a sindicalização em aspectos materiais, isto é, na compatibilidade do conteúdo dessas políticas aos valores, ideais e metas contemplados no Pacto Fundamental. Ou seja, as políticas públicas devem estar em coerência com o programa de desenvolvimento cujo sentido humanista e de justiça social está claramente delineado no Texto de 1988. Portanto, o que está em jogo é saber se há ou não omissão inconstitucional, um juízo complexo, que deve ser formado em um procedimento de argumentação racional (ponderação) consistente quanto ao conteúdo e participativo quanto à forma. Nesta análise da constitucionalidade de uma política pública, dentre elas a habitacional, deve-se levar em conta as escolhas alocativas dos recursos disponíveis, tendo em conta a questão da escassez, sempre presente ante a multiplicidade de demandas de atuação do Estado. De acordo com a Constituição de 05 de outubro de 1988, a 356 VERDÚ, Pablo Lucas. La Constitutión en la encrucijada, p. 66. 207 República do Brasil se organiza como um Estado Fiscal. Esse tipo de Estado, segundo escólio de José Casalta Nabais, é aquele financeiramente suportado pela arrecadação de impostos de seus cidadãos. São os impostos que dão conta de um bom número de tarefas – funções e serviços públicos - impossíveis de serem custeadas pela cobrança de taxas, quer por satisfazerem necessidades coletivas, insusceptíveis de serem individualizadas; quer porque são destinadas às pessoas que não possuem capacidade contributiva. Vislumbra-se, assim, que, nesses casos, a arrecadação e a aplicação de impostos pelo Estado fiscal têm efeitos de redistribuição de riqueza.357 Sendo o Brasil um Estado Fiscal, suportado financeiramente por tributos, em grande sua maioria impostos e contribuições358, e diante da vinculação entre efetividade dos direitos e as prestações estatais pertinentes, tem-se que a busca por uma maior efetividade na proteção dos direitos demanda uma atenção à política tributária, que há de ser aprimorada para levar a um maior grau de justiça e eficiência na 357 O autor aborda também outros tipos de Estado, como o Patrimonial, primeira forma apresentada pelo Estado Moderno, na época do Absolutismo Iluminista, que era suportado financeiramente pelas receitas do seu patrimônio ou propriedade e pelos rendimentos da atividade comercial e industrial por ele desenvolvida; e o Estado Socialista, que monopoliza a atividade econômica, razão pela qual não é sustentado por impostos lançados sobre seus cidadãos. Anota também que ainda hoje há Estados que, em virtude do grande montante de receitas que auferem com a exploração de matérias-primas, como petróleo, gás natural, ouro, ou com a concessão do jogo, como Mônaco ou Macau, podem dispensar a cobrança de impostos de seus cidadãos (NABAIS, José Casalta. Estudos de Direito Fiscal, p. 41-44). 358 Para demonstrar que o Brasil é efetivamente um Estado Fiscal, Alceu MAURICIO JR. (Revisão judicial das escolhas orçamentárias, p. 84-85), toma por base o orçamento anual da União do exercício de 2005, que evidencia que o Poder Público brasileiro é financiado basicamente por tributos (impostos, taxas e contribuição). A arrecadação tributária corresponde a aproximadamente 95% do total das receitas. Dentre os tributos, os impostos e as contribuições são predominantes, pois as taxas (federais, estaduais e municipais) – que nada mais são do que receitas vinculadas a uma contraprestação estatal específica e dirigida diretamente ao contribuinte - respondem por menos de 1% da carga tributária brasileira. Situação essa que não se alterou de 2005 para hoje. 208 arrecadação de tributos. Além disso, na outra ponta da atividade financeira estatal, exigese um cuidado especial na qualidade dos gastos públicos, evitando-se os pecados da ineficiência, do desperdício e da corrupção. O olhar atento sobre as políticas públicas ressalta que o planejamento da ação estatal e a alocação equilibrada e eficiente dos recursos disponíveis mostram-se essenciais para a consecução dos resultados almejados pela Constituição de 1988, inclusive o de tornar o direito à moradia digna um direito de acesso universal para todos os brasileiros, ricos ou pobres. Diante do postulado basilar da ciência econômica de que as aspirações humanas tende ao infinito, ao contrário dos recursos disponíveis em determinado tempo e lugar, isto é, diante da escassez dos recursos, surge para o administrador o desafio de encontrar a medida mais adequada para alocá-los, o que importa em fazer escolhas. Escolhas sobre o que será implementado e o que não o será; sobre o que será atendido e o que não o será; sobre o que será priorizado e o que ficará em um segundo plano ou para um momento subsequente. Gustavo Amaral e Danielle Melo explicam o significado de bem escasso e os vários tipo de escassez: "Dizer que um bem é escasso significa que não há o suficiente para satisfazer a todos. A escassez pode ser, em maior ou menor grau, natural, quase-natural ou artificial. A escassez natural severa aparece quando não há nada que alguém possa fazer para aumentar a oferta. A escassez natural suave ocorre quando não há nada que se possa fazer para aumentar a oferta a ponto de atender a todos. As reservas de petróleo são um exemplo, a disponibilização de órgãos de cadáveres para transplante é outro. A escassez quase-natural ocorre quando a oferta pode ser aumentada, talvez a ponto de satisfação, 209 apenas por condutas não coativas dos cidadãos. A oferta de crianças para adoção e de esperma para inseminação artificial são exemplos. A escassez artificial surge nas hipóteses em que o governo pode, se assim decidir, tornar o bem acessível a todos, a ponto da satisfação. A dispensa do serviço militar e a oferta de vagas em jardim de infância são exemplos".359 Considerando a escassez de recursos, as escolhas alocativas dos recursos públicos disponíveis, aspecto central das políticas públicas e que são definidas no processo orçamentário, repercutem no plano da proteção dos direitos. Se as escolhas alocativas são determinantes para a maior, menor ou até mesmo nenhuma efetividade dos direitos, dentre os quais, o direito à moradia, emerge dessa constatação a imprescindibilidade de a sociedade participar dos processos em que são tomadas decisões sobre essas escolhas. Também há a necessidade da cidadania fiscalizar e atuar para que essas escolhas estejam em consonância com o Pacto Fundamental de 1988, que estabelece um programa de inclusão e desenvolvimento humano, contendo, como um dos seus elementos, a universalização do direito à moradia. Com efeito, para analisar a influência da chamada “reserva do possível” na exigibilidade de um direito fundamental e, in casu, na do direito à moradia, primeiramente, cumpre colocar esse conceito nos seus devidos termos, evitando interpretações excessivas – e distorcidas - que sirvam para frustrar a efetividade dos direitos sociais. 359 AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos?, p. 96-97 (negritos não constantes do original). 210 3.3. RESERVA DO POSSÍVEL E EXIGIBILIDADE DO DIREITO À MORADIA A doutrina aponta como leading case na experiência jurídica dos países de tradição romano-germânica, o primeiro caso em que foi utilizada a expressão “reserva do possível”, o julgamento, pelo Tribunal Constitucional Alemão, do denominado caso numerus clausus, em 18 de julho de 1972 (BVerfGE 33,303). Nesse julgamento, deu-se à expressão o sentido daquilo que um indivíduo poderia razoavelmente esperar fosse oferecido pelo Estado, pela comunidade política à qual ele pertence, levando em conta os investimentos que o Estado estava fazendo na área de educação superior para anteder a demanda e a capacidade e limites de financiamentos das políticas públicas. 360 360 A questão posta para julgamento, em suma, era a seguinte: Entre 1952 e 1967, o número de estudantes nas universidades da Alemanha Ocidental praticamente dobrou, saltando de 25 mil alunos para 51 mil. Todavia, o Governo não conseguiu acompanhar esse crescimento no que diz respeito à estruturação das universidades para atender esse aumento de demanda. Não conseguiu criar novas vagas para dar conta desse novo contingente de alunos. Para fazê-lo, teria que gastar mais de 7,7 bilhões de marcos em pleno período de crise (pós-guerra). O resultado foi que, nos anos 60, cada vez mais instituições recorreram à regra numerus clausus, limitando o número de vagos para o ensino superior. O impacto social foi significativo, mormente levando em conta de que, por decisão constitucional, a oferta de ensino superior era monopólio estatal. Nesse contexto fático é que as Cortes Administrativas solicitaram a manifestação da Corte Constitucional em dois processos envolvendo a pretensão de cidadãos em acessarem, respectivamente, os cursos de medicina nas Universidades de Hamburgo e Munique. O objetivo era esclarecer se as regras das legislações estaduais que restringiam o acesso à universidade ao número de vagas disponíveis (regra numerus clausus) estaria ou não em compatibilidade com a Lei Fundamental. O Tribunal Constitucional entendeu que sim, porque verificou, concretamente, que, apesar do déficit de vagas, o Governo estava, desde o reconhecimento das dificuldades, realizando intensos esforços para a sua superação. Em outras palavras, estava fazendo tudo o que estava ao seu alcance a fim de tornar o ensino superior mais acessível, de modo que, exigir judicialmente mais do Poder Público importaria em prejudicar, com ofensa ao postulado da razoabilidade, outros programas sociais ou políticas públicas. Enfim, entendeu a Corte Constitucional alemã que, de acordo com os valores adotados pela Lei Fundamental, o monopólio do ensino não implicava exigência constitucional de prestação estatal no sentido de prover vagas de ensino para os 211 Portanto, sindicou o Poder Judiciário no caso numerus clausus o próprio conteúdo substancial das escolhas alocativas, o aspecto material das políticas públicas. Assim, percebe-se que, em países que adotam Constituições com conteúdos substanciais, axiológicos, que condicionam as decisões democráticas, como é o caso, contemporaneamente, por exemplo, da Alemanha, Portugal, Espanha e Brasil, o controle judicial não se restringe aos aspectos procedimentais da elaboração das políticas públicas, vez que pode atingir o conteúdo substancial das escolhas alocativas, para anular e corrigir aquelas que foram tomadas em dissonância com as normas constitucionais, principalmente levando em conta os critérios da razoabilidade ou proporcionalidade na distribuição dos recursos entre as diversas áreas de atuação do Estado. A respeito, consigna Daniel Sarmento que: “numa ordem jurídica centrada na dignidade da pessoa humana não se pode conceber a realização de despesa pelo Estado como um campo livre para as decisões do legislador orçamentário e do administrador. Pelo contrário, há prioridades que a eles se impõe por força de princípios constitucionais revestidos de elevado teor moral (...). Assim, me parece que o Poder Judiciário está plenamente legitimado para fiscalizar o cumprimento destas prioridades pelos demais poderes estatais.”361 diferentes cursos, com o correlato direito individual de obtenção de uma vaga universitária. A oferta de vagas universitárias estava sujeita à “reserva do possível”, com o significado daquilo que um indivíduo pode razoavelmente esperar da sociedade política organizada. Portanto, a expressão “reserva do possível”, cunhada nesse julgamento, e que se mantêm na jurisprudência alemã, passado mais de 30 anos do julgamento do caso numerus clausus significa um parâmetro de razoabilidade quanto à exigência de prestações estatais, levando em conta o que o Estado efetivamente tem condições de realizar e o que realmente precisa ser garantido em respeito às normas constitucionais. KRELL, Andreas Joachin. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha, p. 52. SARLET, Ingo Wolgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde, p. 29. OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível, p. 215-225. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 569. 361 SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 578. 212 Assim, quando provocado para julgar um pedido de tutela que obrigue o Poder Público a fornecer alguma prestação positiva (bem ou serviço) individual ou coletiva, o Poder Judiciário analisará escolhas alocativas, expressas nas dotações orçamentárias e nas despesas efetivamente realizadas pelo Poder Público, as quais podem revelar em quais casos a efetividade da proteção de um direito restou prejudicada por escassez ou inexistência dos recursos necessários e em quais outros a causa foi uma decisão política sobre a destinação dos meios disponíveis a outros fins. No caso do prejuízo à realização de um direito ter sido causado por uma decisão de alocar os meios disponíveis para outros fins, dá-se ensejo à investigação se essa escolha está ou não em consonância com a Constituição, adentrando o Judiciário na sindicalização de uma política pública. A respeito da “reserva do possível”, José Reinaldo de Lima Lopes, invoca a expressão Impossibilium nulla obligatio est (Celso, D. 50, 17, 185), incorporada à compilação que Justiniano mandou fazer no século VI d.C e que foi transmitida à tradição ocidental. Lembra também da outra versão corrente do mesmo preceito: impossibilia nemo tenetur. Portanto, não é novidade o atual debate sobre a reserva do possível, a discussão é antiga, e evidencia que não é sensato esperar de quem quer que seja o impossível. Se a obrigação é do Estado, a mesma ideia deve valer. Seja nos contratos administrativos, seja nas obrigações políticas em geral, não é de se esperar que o Estado, só por ser pessoa jurídica de direito público, esteja obrigado ao impossível. 362 362 LOPES, José Reinaldo de Lima. Em torno da “reserva do possível”, p. 173. 213 Quanto a esse particular aspecto, Ana Carolina Lopes Olsen trabalha a diferença entre o não atendimento a uma pretensão de direito em razão da escassez ou inexistência de meios (escassez natural) e aquela decorrente de escolhas alocativas (a escassez artificialmente criada), elucidando as nuances por meio de exemplos. Assim, ilustra que atender uma pretensão ao fornecimento de medicamente capaz de curar definitivamente a AIDS é algo impossível no estágio atual da medicina. A efetividade dessa pretensão resta prejudicada em razão da inexistência dos recursos adequados para o seu atendimento. Ou seja, trata-se de um caso em que a inexistência de meios ou a impossibilidade de atendimento à pretensão subjetiva se dá no campo dos fatos. Não há como obrigar o Estado a fornecer aquilo que é faticamente inviável. Aliás, não se pode exigir de alguém aquilo que é absolutamente impraticável.363 Há também as situações em que o não atendimento a uma pretensão subjetiva decorre não de inviabilidade fática de realização da prestação demandada, mas sim em virtude da escassez natural dos recursos adequados, isto é, por não existir, circunstancialmente, disponibilidade do meio em determinado tempo e local. Em outras palavras, nesses casos, o atendimento à pretensão é frustrado não em decorrência da inexistência absoluta dos meios, mas da sua indisponibilidade em determinado tempo e lugar. É o que ocorre, por exemplo, com órgãos humanos para transplante, que são naturalmente escassos, não podendo o Estado ser impelido a tirar a vida de um cidadão para disponibilizar o fígado necessário ao transplante em outro. Assim, poderá ocorrer de não 363 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível, p. 188 e 204. 214 existir no momento adequado disponibilidade de órgãos para se concretizar o transplante.364 Consoante afirmam Gustavo Amaral e Danielle Melo, tratando-se de escassez natural, não há nada que se possa fazer para aumentar a oferta a ponto de atender a todos.365 É fundamental enfatizar que, a rigor, somente nesses dois sentidos é que se pode falar, propriamente, em “reserva do possível”, ou seja, estará justificada a omissão (a não-atuação) do Estado porque demonstrada ou a impossibilidade fática por inexistência absoluta do recurso/bem apto à suprir a pretensão/necessidade (1) ou impossibilidade de agir em razão do recurso/bem adequado à suprir a pretensão/necessidade não estar disponível/acessível no momento em que é necessário. Portanto, a rigor, não se subsume na “reserva do possível” aquelas situações em que a escassez é artificial, ocasionada não em razão da natureza das coisas, mas sim de uma escolha alocativa, de uma decisão sobre a destinação que será dada aos recursos disponíveis. A escassez artificial surge quando uma decisão política pode tornar o bem acessível a todos, a ponto da satisfação. Quanto a este particular aspecto, lembra Flávio Galdino que, no caso de recursos financeiros, o que usualmente frustra a efetividade de determinado direito não é a exaustão da capacidade orçamentária, mas sim a opção política de não se gastar dinheiro com aquele direito.366 Nos casos em que a escassez é artificial, porque decorrente de 364 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível, p. 205. 365 AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos?, p. 96-97. 366 GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: Direitos não nascem em árvores, p. 235. 215 uma decisão política, abre-se campo para a correção, inclusive pela via judicial, de escolha alocativa de recursos públicos que não esteja em consonância com os ditames constitucionais, tendo em vista que estes são normativamente vinculantes. A respeito, José Reinaldo de Lima Lopes explicita: “Há sim limites orçamentários que se pode alegar, mas como orçamentos não são coisas da natureza mas frutos de decisões políticas, é bem possível que eles também estejam sujeitos a regras de elaboração e que, portanto, possam ser jurídica e judicialmente impugnados”.367 Um exemplo bastante claro desse tipo de situação em que a realização de um direito é frustrada por escolhas alocativas geradoras de escassez artificial é trazido no escólio de Daniel Sarmento: a injustificável não extensão do saneamento básico para uma comunidade carente, que impacta direta e positivamente as condicionantes da adequabilidade da moradia, quando o Poder Público estiver gastando maciçamente com publicidade ou obra faraônica.368 Outro exemplo é o usado por Lenio Streck, referente a um caso concreto julgado pelo Juízo de Direito da Comarca de Joinville, Santa Catarina, em que o Município deixou de criar vagas necessárias no ensino fundamental por ter optado por destinar verbas para subvencionar o clube de futebol local que disputava a terceira divisão do campeonato brasileiro, em montante suficiente para custear a criação de 2.948 vagas escolares.369 Recentemente, a imprensa divulgou que, em 25 de novembro de 2010, o Juiz José Eduardo Vilar Filho, julgando ação civil pública 367 LOPES, José Reinaldo de Lima. Em torno da “reserva do possível”, p. 179. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 579. 369 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso, p. 103-104. 368 216 proposta pelo Ministério Público Federal, proibiu a União Federal, o Estado do Ceará e o Município de Fortaleza em realizar gastos para promover festas e fazer propagandas institucionais antes de solucionarem o problema da fila de espera para cirurgias eletivas ortopédicas de alta complexidade em dois hospitais da capital cearense. Para redução gradual da fila de espera, de mais de 2.400 pessoas, que podem aguardar mais de quatro anos para serem atendidas, a Justiça fixou metas a serem atendidas no prazo de 3 a 36 meses para que atendimento da decisão ocorra de maneira gradual.370 Esse é mais um exemplo claro de escassez artificial, ocasionada por escolha alocativa, que impactou negativamente a realização de outro direito, mais relevante segundo a pauta axiológica constitucional. Os exemplos acima que mostram com nitidez casos de decisões alocativas dissonantes das preferências estabelecidas na Constituição de 1988 com força juridicamente vinculante, notadamente ao se considerar que no Pacto Fundamental foram estabelecidas as finalidades básicas da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I); garantir o desenvolvimento nacional (artigo 3º, II); erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III). Diante destas metas, às quais o Poder Público está condicionado, maior aporte de recursos públicos deverá ser realizado no atendimento das demandas de saúde, educação, saneamento ambiental, moradia. Somente depois de atendidos razoavelmente as necessidades fundamentais da sociedade é que se tem lugar para a realização de gastos (módicos) com o incentivo a clubes esportivos, com lazer e com 370 Folha de São Paulo. Sexta-feira, 26 de novembro de 2010. Cotidiano – C7. 217 o embelezamento da cidade. As situações patológicas acima retratadas, hiperbólicas mesmo, e por isso selecionadas, dada a sua força didática, constituem escolhas alocativas que seguem em direção contrária ao sentido mostrado pela Constituição. Por isso, merecem correição jurisdicional. Evidenciam igualmente os exemplos supra também que nem sempre o Poder Público estará diante de “escolhas trágicas”, isso é, naquelas que, frente a escassez de recursos, se vê forçado a eleger prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas, prejudicando uma delas.371 Muitas vezes, o caso é de uma má escolha, de uma opção por atender uma demanda ilegítima ou menos valiosa do ponto de vista constitucional. Não se nega que a ideia de escassez traga consigo a noção de trade-off372, isto é, que a alocação de recursos escassos envolve 371 Há casos, porém, em que estar-se-á frente a “escolhas trágicas”. Atender determinada pessoa com o órgão para transplante é também decidir não atender os demais que poderiam ser beneficiados. Expõe Daniel Sarmento que: “A escassez obriga o Estado em muitos casos a confrontar-se com verdadeiras “escolhas trágicas”, pois, diante da limitação de recursos, vê-se forçado a eleger prioridades dentre várias demandas igualmente legítimas. Melhorar a merenda escolar ou ampliar o número de leitos na rede pública? Estender o saneamento básico para a comunidade carente ou adquirir medicamentos de última geração para o tratamento de algumas doenças raras? Aumentar o valor do salário mínimo ou expandir o programa de habitação popular? Infelizmente, no mundo real nem sempre é possível ter tudo ao mesmo tempo”. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 555-556. Concorda-se com o referido autor, no sentido de que, em quadro de escassez, não há como realizar imediatamente todos os direitos que impliquem prestações estatais, e que são necessárias escolhas, priorizações. Observa-se, porém, que tais escolhas não se dão de maneira bipolar – ou isso ou aquilo – escolha apenas entre duas alternativas de cada vez - como uma interpretação literal do trecho acima pode indicar, mas sim de maneira global, buscando equilibrar ou harmonizar no orçamento público todos os setores da atuação estatal, porém priorizando-se sempre o custeio da proteção e da promoção dos direitos humanos fundamentais. 372 Tradução livre: escolha inexorável entre duas coisas que se quer ou se necessita, mas que são incompatíveis entre si, porque não podem se realizar simultaneamente. 218 simultaneamente a escolha do que atender e do que não atender373. Toda escolha alocativa implica uma escolha desalocativa. Isso é certo. Todavia, em alguns casos é fácil perceber que não se está diante de uma escolha trágica e sim frente a uma má-escolha, uma decisão alocativa juridicamente inválida porque seu conteúdo destoa da Constituição. Nessas hipóteses dá-se ensejo ao remanejamento dos recursos públicos à luz das diretrizes e prioridades constitucionais, o que pode ser obtido inclusive por via judicial. Desmistifica-se, assim, o orçamento, muitas vezes visto como um dogma, um preceito absoluto. Como é colocado por Osvaldo Canela Júnior: “O orçamento, assim como qualquer ato estatal, deve estar estritamente vinculado aos objetivos inscritos no art. 3º da Constituição Federal. Tal afirmação é consentânea com o pressuposto inarredável de que os fins do Estado somente poderão ser efetivamente atingidos por meio da utilização dos dinheiros públicos. (...) - Do ponto de vista do Estado social, o orçamento não pode ser óbice à concessão dos direitos fundamentais sociais, mas seu instrumento de realização. A ausência de recursos não é indicativo de que o direito fundamental social não poderá ser concedido, mas fator que determinará a redistribuição dos recursos existente e a promoção das decisões políticas que elegerão os financiadores deste gasto público. (...). Constatada eventual incapacidade financeira 373 AMARAL, Gustavo; MELO, Danielle. Há direitos acima dos orçamentos?, p. 101. Quanto a este particular aspecto, Egon Bockmann Moreira (Escolhas Trágicas) expõe de maneira elucidativa que: “não há direitos gratuitos: todos custam dinheiro – desde a propriedade e segurança privada (basta a lembrança dos alarmes e vidros escuros nos carros, além das despesas públicas com policiamento), até o direito à saúde e à educação públicas. Alguns custam mais, outros menos, mas todos exigem a disponibilidade atual de receita. E o dispêndio para fazer frente aos custos de determinado direito proíbe que a mesma verba faço o atendimento de outros direitos. Por exemplo, a verba gasta neste medicamente pode impossibilitar que outro seja comprado; a compra de ônibus escolares pode impedir a construção de escola”. 219 atual para a satisfação da decisão judicial, a solução não será o julgamento de improcedência do pedido ou mesmo a extinção do processo por ausência de condições de ação (falta de interesse de agir ou impossibilidade jurídica do pedido). Comprovada a lesão a direito fundamental social, impositivo que os efeitos da sentença transitada em julgado se projetem para fora do processo, vinculando o orçamento, a fim de que os poderes Executivo e Legislativo atuem nas finanças públicas, programando o custeio dos gastos gerados no tempo.”.374 Em se tratando de dinheiro, portanto, a questão da reserva do possível mostra-se como relativa, e, portanto, não é obstáculo para que se sindicalize, à luz dos preceitos da proporcionalidade e da razoabilidade (vale dizer, sem excessos, exageros e subjetivismo), a adequação da programação financeira do Estado ao programa e às diretrizes da Constituição de 1988. Nessa abordagem, deve ser lembrado que a Constituição impõe tarefas ao Poder Público para promover e proteger, mediante políticas públicas sérias, consistentes e eficientes, os direitos humanos fundamentais. Há, portanto, um projeto de desenvolvimento, de construção de uma ordem econômica e social mais justa, isto é, com menos desigualdades, exclusões e pobreza. Tais aspectos limitam a discricionariedade. Angela Cassia Costaldello observa que o Administrador Público frequentemente parece não ter claros os limites do exercício da discricionariedade, ao tratar da escassez de recursos para adotar políticas públicas condizentes com a construção da cidade e o exercício do direito à cidade, do qual o direito à moradia é elemento componente dos mais importantes. Não lembra que, a rigor, quando elabora o 374 CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas, p. 107-109. 220 orçamento e, na sequência, ao executá-lo, sua “margem de liberdade” é ínfima ante a realidade que se sobrepõe pelas exigências de eliminação de uma exclusão social perversa.375 Com efeito, o argumento da reserva do possível, quer no sentido de escassez fática de recursos, quer no sentido de ausência de programação orçamentária, não é obstáculo à proteção jurídica direito à moradia em sua dimensão prestacional. A escassez de recursos e a programação orçamentária devem ser levadas em conta, porém, ponderadas com outros argumentos para verificar, ao final, se há um direito definitivo à medida protetora postulada. Quando tratar-se de pedido de adjudicação individual de prestação estatal relacionada ao direito à moradia, a ausência de dotação orçamentária pode ser superada, desde que, após a devida ponderação, perceba-se que não justificativa constitucional para o não atendimento de um direito prestacional prima facie garantido. Preenchido o suporte fático, verificado que há omissão inconstitucional (ou atuação insuficiente), faz-se incidir a sanção jurídica, para que se cumpra com o dever de agir, com a obrigação de prestar a medida apta a promover ou promover o direito fundamental. E quando o que estiver em jogo for a proteção do mínimo existencial, a ausência de dotação orçamentária é o menor dos obstáculos. É o que será demonstrado no próximo item. 375 COSTALDELLO, Angela Cassia. A supremacia do interesse público e a cidade, p. 248. 221 3.4. EXIGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL DO DIREITO À MORADIA No âmbito do direito à moradia, situação bastante evidente de tutela jurisdicional que pode ser concedida independentemente de existir prévia dotação orçamentária para a prestação pelo Poder Público de bens e/ou serviços é a que ocorre nos casos em que está em questão a proteção ao denominado mínimo existencial. Prestações estatais para assegurar o direito à moradia com lastro no mínimo existencial podem ser evidenciadas em situações em que determinada pessoa, por força de desemprego, doença, invalidez, velhice, desastres naturais ou outros casos de perda dos meios de subsistência, em circunstâncias fora de seu controle, fica ou corre o eminente risco de ficar desalojada. De acordo com Ricardo Lobo Torres, o direito ao mínimo existencial corresponde ao direito “às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. 376 A Sentença C-776, de 2003, da Corte Constitucional da Colômbia,377 traz uma excelente definição do mínimo existencial: “El objeto del derecho fundamental al mínimo vital abarca todas las medidas positivas o negativas constitucionalmente ordenadas con el fin de evitar que la persona se vea reducida en su valor intrínseco como ser humano debido a que no cuenta con las condiciones materiales que le permitan llevar una existencia digna. Este derecho fundamental busca garantizar que la persona, centro del ordenamiento jurídico, no se convierta en instrumento de otros fines, 376 TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 8. Essa decisão invalidou parcialmente uma lei tributária que instituía imposto sobre o valor agregado sobre uma séria de produtos, sem excepcionar bens e serviços de primeira necessidade. Disponível em http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2003/C-77603.htm . Acesso em 08.01.2011 às 14h03. 377 222 objetivos, propósitos, bienes o intereses, por importantes o valiosos que ellos sean. Tal derecho protege a la persona, en consecuencia, contra toda forma de degradación que comprometa no sólo su subsistencia física sino por sobre todo su valor intrínseco. (...) el derecho fundamental al mínimo vital presenta una dimensión positiva y una negativa. La dimensión positiva de este derecho fundamental presupone que el Estado, y ocasionalmente los particulares (...) están obligados a suministrar a la persona que se encuentra en una situación en la cual ella misma no se puede desempeñar autónomamente y que compromete las condiciones materiales de su existencia, las prestaciones necesarias e indispensables para sobrevivir dignamente y evitar su degradación o aniquilamiento como ser humano. Por su parte, respecto de la dimensión negativa, el derecho fundamental al mínimo vital se constituye en un límite o cota inferior que no puede ser traspasado por el Estado, en materia de disposición de los recursos materiales que la persona necesita para llevar” una existencia digna.”378 Nas palavras de Daniel Sarmento: “O direito mínimo existencial corresponde à garantia das condições materiais básicas de vida. Ele ostenta tanto uma dimensão negativa como uma positiva. Na sua dimensão negativa, opera como um limite, impedindo a prática de atos pelo Estado ou por particulares que subtraiam do indivíduo as referidas condições materiais indispensáveis para uma vida digna. Já na sua dimensão positiva, ele envolve um conjunto essencial de direitos prestacionais”.379 378 Tradução livre: O objeto do direito fundamental ao mínimo existencial abarca todas as medidas positivas ou negativas constitucionalmente ordenadas com o fim de evitar que a pessoa se veja reduzida em seu valor intrínseco como ser humano devido a não contar com as condições materiais que a permitam levar uma existência digna. Este direito fundamental busca garantir que a pessoa, centro do ordenamento jurídico, não se converta em instrumento de outros fins, objetivos, propósitos, bens ou interesses, por mais importantes ou valiosos que estes sejam. Tal direito protege a pessoa contra toda forma de degradação que comprometa não só a sua existência física senão todo o seu valor intrínseco. (...) o direito fundamental ao mínimo existencial apresenta uma dimensão positiva e uma negativa. A dimensão positiva deste direito pressupõe que o Estado, e ocasionalmente os particulares (...) estão obrigados a fornecer à pessoa que se encontra em uma situação na qual ela mesma não pode agir autonomamente e que comprometa as condições materiais de sua existência, as prestações necessárias e indispensáveis para ela sobreviver dignamente e evitar sua degradação ou aniquilamento como ser humano. Na sua dimensão negativa, o direito fundamental ao mínimo existencial se constitui em um limite ou cota mínima que não pode ser ultrapassada pelo Estado em matéria de disposição dos recursos materiais que a pessoa necessita para levar uma existência digna. 379 SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 576. 223 Por seu turno, Paulo Gilberto Cogo Leivas380 traz como a definição mais completa aquela formulada por Corinna Treisch381: O mínimo existencial é a parte do consumo corrente de cada ser humano, seja criança ou adulto, que é necessário para a conservação de uma vida humana digna, o que compreende a necessidade de vida física, como a alimentação, vestuário, moradia, assistência de saúde, etc. (mínimo existencial físico) e a necessidade espiritual-cultural, como educação, sociabilidade, etc. Compreende a definição do mínimo existencial tanto a necessidade física como também cultural-espiritual, então se fala de um mínimo existencial cultural. Destaca Ricardo Lobo Torres que o problema do mínimo existencial se confunde com a questão da pobreza no decorrer da história. No Estado Patrimonial os pobres não eram imunes aos tributos, resultando daí uma estrutura impositiva essencialmente injusta, que prejudicava a liberdade e a dignidade do homem. Incumbia a Igreja, com uma parcela dos dízimos, e aos cristãos ricos dar assistência social aos pobres. 382 No Estado de Polícia, alteram-se as concepções, procurando-se aliviar a tributação dos pobres e transferir para o Estado a sua proteção. Inicia-se a defesa da progressividade da tributação e da imunidade do mínimo existencial, retirando-se do campo da incidência tributária aquelas pessoas que não possuem riquezas mínimas para o seu sustento, e, no âmbito da proteção, faz-se a distinção entre as causas da pobreza: preguiça ou outra causa. Distinção essa que vai ter uma 380 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais e o direito ao mínimo existencial, p. 301. 381 TREISCH, Corinna. Existenzminimum und Einkommesbesteureung. Aache: Shaker, 1999, p. 1. 382 TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7. 224 importância decisiva na política assistencialista do liberalismo. 383 No Estado Social Fiscal, correspondente à fase do Estado do BemEstar Social ou do Estado-Providência, a proteção ao mínimo existencial se faz com lastro na concepção de justiça social. 384 Atualmente, no Estado Democrático de Direito, aprofunda-se a meditação sobre o mínimo existencial sob a ótica dos direitos humanos e do constitucionalismo.385 Na visão de Daniel Sarmento, o direito ao mínimo existencial decorre da ideia de que é papel do Estado assegurar as condições materiais mínimas de vida para as pessoas mais necessitadas. Para alguns, como o filósofo John Rawls386, o economista Armartya Sen387, e os juristas Robert Alexy388 e Ricardo Lobo Torres389, adeptos do liberalismo igualitário, o fundamento da proteção estatal ao mínimo existencial é instrumental. Trata-se de uma exigência necessária para a garantia da liberdade real. Isso porque, sem o atendimento de certas condições básicas, restaria esvaziada a liberdade, pela impossibilidade concreta do seu exercício. Para outros, como o filósofo Jürgen Habermas390 e o jurista Friedrich Müller391, o mínimo existencial é protegido em razão de um 383 Por exemplo, na Inglaterra, o Poor Law Ammendment Act (1834) se esforçou no sentido de distinguir entre indigência e pobreza com o fito de limitar a obrigatoriedade do auxílio estatal aos indigentes, assim entendido aqueles que eram incapazes de obter meios para a sobrevivência, ao contrário dos pobres que poderiam conseguir recursos pelo trabalho. TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7. 384 TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7. 385 TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial, p. 3-7. 386 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. RAWLS, John. Justiça e democracia. 387 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 388 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 389 TORRES, Ricardo Lobo. Direito ao mínimo existencial. 390 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, 391 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? Destaca Müller que, quando o povo 225 argumento democrático. Ocorre como meio de garantia a pressupostos da democracia, na medida em que, sem a satisfação das necessidades materiais básicas das pessoas carentes restaria comprometida a capacidade real de elas participarem, como cidadãos, das deliberações adotadas pela sociedade no espaço democrático. Outros ainda, como os doutrinadores brasileiro Paulo Giberto Cogo Leivas392 e Daniel Sarmento393, fundamentam a proteção estatal ao mínimo existencial com lastro em um argumento não-instrumental, mas ético. Defendem o atendimento das necessidades humanas básicas como uma exigência autônoma de justiça, como um fim em si mesmo, e não um meio para obtenção de qualquer outra finalidade. Como explicita Daniel Sarmento: Reconhecer que a proteção ao direito ao mínimo existencial é um fim em si mesmo, uma exigência autônoma de justiça, não implica negar que ela também influi positivamente no exercício da cidadania política e no gozo das liberdades individuais. É que há situações, como a de um indivíduo que padeça de deficiência mental severa e incurável e que esteja em situação de absoluta penúria material, em que há o dever estatal de proteção ao mínimo existencial, bem como o direito subjetivo a essa proteção, mesmo sabendo-se que as prestações e os gastos públicos realizados não possibilitaram à pessoa atendida o exercício da liberdade individual ou do direito à participação política, mas apenas lhe padece de exclusão, além da pobreza econômica sofre, em reação de cadeia da exclusão, a pobreza política. O povo então, se degenera e se converte em mero ícone, e daí as referências a vontade do povo, à constituição, ao poder constituinte, acaba cumprindo função apenas ideológica de neutralizar as reivindicações de integração efetiva dos grupos marginalizados, e superação das contradições que caracterizam as sociedades arcadas por profundas desigualdades materiais. 392 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais e o direito fundamental ao mínimo existencial. 393 SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais. 226 assegurará um mínimo de dignidade.394 No Brasil contemporâneo, a positivação constitucional do direito ao mínimo existencial decorre, dentre outros dispositivos, da proteção da vida e da liberdade (preâmbulo, artigo 3º, I, artigo 5º caput, II, etc.), do objetivo fundamental da República de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (artigo 3º, III), da explicitação dos direitos sociais (artigo 6º), e das emendas n. 14/1996, 29/2000, 31/2000, 41/2003, 42/2003, 45/2003 e 53/2007 que estabeleceram vinculação de receitas públicas à realização de despesas com educação, saúde e pobreza (assistência social), além de declarações e tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, incorporados à Constituição brasileira por força do artigo 5º, § 2º. A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (1948) estabelece em seu artigo XXV, que “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços sociais necessários, e o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência, em circunstâncias fora de seu controle”. O Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (1966),395 prevê em seu artigo 2º que: “ Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por espaço próprio como pela assistência e 394 SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 574-576. Aprovado no Brasil pelo Decreto legislativo 226, de 12.12.1991 e promulgado pelo Decreto 591, de 06.07.1992. 395 227 cooperação internacionais, principalmente nos planos econômicos e técnicos, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas”. E, em seu artigo 11, item 1, que: “Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, neste sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento”. Na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) (1960)396, artigo 26, está explicado que: “Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”. E o artigo 34 a Carta da Organização dos Estados Americanos397 proclama que: "Os Estados membros convém em que a igualdade de oportunidades, a eliminação da pobreza crítica e a distribuição eqüitativa da riqueza e da renda, bem como a plena participação de seus povos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento, são, entre outros, objetivos básicos do desenvolvimento integral. Para alcançá-los convém da mesma forma, em dedicar seus maiores esforços à consecução das seguintes metas básicas: 396 Aprovado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgado pelo Decreto 678, de 06.11.1992. 397 Aprovada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo 63, de 07 de dezembro de 1949. 228 (...) j) Alimentação adequada, especialmente por meio da aceleração dos esforços nacionais no sentido de aumentar a produção e a disponibilidade de alimentos; k) habitação adequada para todos os setores da população; l) Condições urbanas que proporcionem oportunidade de vida sadia, digna e produtiva (...)". Convém salientar que as condições mínimas de existência digna integra o núcleo essencial dos direitos da liberdade. A respeito, Eduardo Cambi398 consigna: “A liberdade jurídica se converte em liberdade real, quando as pessoas conseguem desfrutar dos bens sociais materiais básicos para viverem dignamente. Neste sentido, a liberdade não é apenas a ausência de interferência ou de coação externa, mas principalmente a ausência de dependência, que permite que a pessoa seja capaz de se autogovernar, criando as condições mínimas para o seu desenvolvimento pessoal e social. Sem isto, a pessoa não tem condições de viver dignamente ou de ser considerada um cidadão livre”. A miséria é uma das principais causas da supressão das liberdades básicas. Em casos mais graves, pode-se estar em jogo a própria vida. Neste prisma, estando ligado aos direitos à vida, à integridade física e psicológica e à liberdade, o mínimo existencial constitui direito público subjetivo para o cidadão, gerando obrigatoriedade de prestação por parte do Estado, de modo a assegurar as condições mínimas de existência humana digna. O direito ao mínimo existencial é dotado de jusfundamentalidade em sua dupla dimensão: a de proteção negativa, contra a incidência de tributos ou qualquer outra imposição do Estado (inclusive atos jurisdicionais expropriatórios da propriedade mínima com vistas à 398 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, p. 388. 229 satisfação de direito de crédito de outrem) e a de proteção positiva, consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres no sentido de assegurar-lhes as condições mínimas para uma vida digna. É plenamente garantido, inclusive pela jurisdição, independentemente de prévia reserva orçamentária, por ter como fundamento a proteção à vida, à liberdade, à cidadania e à dignidade da pessoa humana. Daí se falar que o mínimo existencial é o núcleo duro dos direitos fundamentais, a sua parte irrestringível, tendo, portanto, a natureza jurídica de regra, e não apenas de princípio. Exemplo de relevo recolhido da experiência jurisdicional estrangeira é o da decisão da Corte Constitucional África do Sul, proferida em 04 de outubro de 2000, no caso Grootboom399. Entendeuse que programa governamental de habitação não poderia ser considerado válido, de acordo com a Constituição, por não incluir medidas emergenciais para atender pessoas desabrigadas em situação de carência desesperadora (desesperade need). Então, a Justiça determinou que parcela razoável do orçamento para moradia fosse alocada para atender aquela situação emergencial. Ou seja, determinou que a política pública fosse reformulada, nomeando um órgão independente, no caso, a Comissão de Direitos Humanos, para fiscalizar o cumprimento da decisão. De acordo com Ana Paula de Barcellos, o mínimo existencial corresponde a um conteúdo básico do princípio da dignidade humana 399 Disponível em http://www.constitutionalcourt.org.za/Archimages/2798.PDF. Acesso em 10.01.2011 às 10h48. Este caso vem merecendo atenção da doutrina brasileira, a exemplo de: MAURICIO JR., Alceu. A revisão judicial das escolhas orçamentárias: p. 253-258. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos sociais, p. 582-583. BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André Rodrigues. O direito à moradia e a penhorabilidade do bem único do fiador em contratos de locação: Limites à revisão judicial e prognósticos legislativos, p. 1011-1013. 230 que assume o caráter de regra, não mais de princípio. Para além desse núcleo, a norma mantém a sua natureza de princípio devendo das opções feitas pelo Legislativo e Executivo, em cada momento histórico, porém em consonância com as pautas constitucionais. Vale dizer, somente as prestações que compõem o mínimo existencial é que poderão ser exigidas judicialmente de forma direta, sendo que as prestações restantes são reconhecidas tão somente se previstas pelo legislador infraconstitucional ou a título de vedação do retrocesso. Defende Ana Paula de Barcellos essa posição ao argumento de que é necessário manter um espaço próprio para a política e para as deliberações majoritárias. 400 Sendo o direito ao mínimo existencial, já de início, um direito definitivo, porque assegurado por norma constitucional que tem a estrutura de regra, no caso de exaustão das dotações orçamentárias, para viabilizar a prestação material necessária, o Poder Executivo tem legítimo motivo para prontamente utilizar recursos previstos no orçamento-programa para outras finalidades. Posteriormente, realizase a formalização da retificação do orçamento, mediante emenda na Lei Orçamentária Anual, enviando-se projeto de lei ao Poder Legislativo para abertura do crédito adicional extraordinário. Assim, a inexistência ou exaustão das dotações orçamentárias não é empecilho à proteção do mínimo existencial. James Giacomoni põe relevo na circunstância de o orçamento público poder ser retificado visando atender a situações não previstas quando de sua elaboração ou mesmo viabilizar a execução de novas 400 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana, p. 248 e 305-306. 231 despesas que só se configuraram como necessárias durante a própria execução orçamentária. Isso se dá por meio da abertura de créditos adicionais, regulamentados pelos artigos 40 a 46 da Lei 4.320/64. Há três modalidades de créditos adicionais: os suplementares, os especiais e os extraordinários. O crédito adicional suplementar destina-se a reforçar dotações orçamentárias quando o orçamento contém o crédito adequado, mas a dotação respectiva apresenta saldo insuficiente para o atendimento da despesa necessária e imprevista. O crédito adicional especial é destinado ao atendimento de despesas para as quais a lei orçamentária não conta com crédito específico. Por fim, o crédito extraordinário que tem por finalidade atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.401. É a partir dessa visão mais ampla dos créditos orçamentários que deve ser interpretadas as disposições do artigo 167, II, da Constituição, que enuncia ser vedada “a realização de despesa ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos adicionais” e do inciso V do mesmo artigo, que reza também a vedação da “abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondente”. A interpretação sistemática revela que o que depende de prévia autorização legislativa é a abertura de créditos suplementares e especiais, não a abertura de créditos extraordinários, motivados por situações de urgência. 401 GIACOMONI, James. Orçamento público, p. 309-310. 232 A abertura de créditos suplementares e especiais depende de prévia autorização legislativa. É isso que diz os mencionados dispositivos da Constituição, e também os artigos 42 e 43 da Lei 4.320/64, recepcionada pela ordem vigente com força de lei complementar: “Art. 42. Os créditos suplementares e especiais serão autorizados por lei e abertos por decreto executivo”. Art. 43. A abertura dos créditos suplementares e especiais depende da existência de recursos disponíveis para ocorrer à despesa e será precedida de exposição justificativa. § 1º. Consideram-se recursos para o fim deste artigo, desde que não comprometidos: I – o superavit financeiro apurado em balanço patrimonial do exercício anterior; II – os provenientes de excesso de arrecadação; III – os resultantes de anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de créditos adicionais, autorizados em lei; IV – o produto de operações de crédito autorizadas, em forma que juridicamente possibilite ao Poder Executivo realizá-las. § 2º. Entende-se por superavit financeiro a diferença positiva entre o ativo financeiro e o passivo financeiro, conjugando-se, ainda, os saldos dos créditos adicionais transferidos e as operações de crédito a eles vinculadas. § 3º. Entende-se por excesso de arrecadação, para os fins deste artigo, o saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês, entre a arrecadação prevista e a realizada, considerando-se, ainda, a tendência do exercício. § 4º. Para o fim de apurar os recursos utilizáveis, provenientes de excesso de arrecadação, deduzir-se-á a importância dos créditos extraordinários abertos no exercício.” Em suma, essas são as principais regras de disciplinamento dos créditos adicionais suplementares e especiais. Diferente é o regime jurídico a que estão sujeitos os créditos adicionais extraordinários. 233 Em razão da imprevisibilidade e da urgência de atendimento à situação que gerou a necessidade da despesa pública, não há exigência de prévia autorização legislativa, nem mesmo da existência de recursos em caixa, para a abertura do crédito orçamentário extraordinário. A abertura diretamente pelo Executivo de créditos orçamentários extraordinários não ofende os incisos I e V do artigo 167 da Constituição porque estes dispositivos dizem respeito apenas aos créditos suplementares e especiais, não aos extraordinários. O que a lei exige, nos casos de abertura de créditos extraordinários, é apenas que o Poder Executivo dê imediato conhecimento ao Poder Legislativo (artigo 43 da Lei 4.320/64)402. Na esfera de atuação da União Federal, inclusive o regramento constitucional (§ 3º do artigo 167)403 prevê União, o uso de medida provisória (artigo 62)404 para viabilizar a prontidão no atendimento da situação pelo Poder Executivo e ensejar o controle a posteriori do Poder Legislativo. Para garantir certa flexibilidade na execução orçamentária, a lei orçamentária anual, inclusive, pode autorizar de antemão o Poder Executivo, com lastro no § 8º do artigo 165 da Constituição405, e no 402 BRASIL, Lei 4.320/64. Art. 44. Os créditos extraordinários serão abertos por decreto do Poder Executivo, que deles dará imediato conhecimento ao Poder Legislativo. 403 BRASIL, Constituição de 1988. Art. 167. (...) § 3º. A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62. 404 BRASIL, Constituição de 1988. Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. 405 BRASIL, Constituição de 1988. Art. 165. A lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei. 234 artigo 7º da Lei 4.320/64406, a abrir créditos suplementares até determinada importância. Portanto, eventual inexistência ou exaurimento de crédito ou de dotação orçamentária não é obstáculo para as despesas necessárias para o Poder Público dar atendimento a uma situação fática em que está em risco o direito ao mínimo existencial. O orçamento público será retificado por meio da abertura de crédito adicional extraordinário. Portanto, estando em jogo o mínimo existencial, caso haja omissão de atendimento pelo Poder Executivo, o prejudicado poderá obter a prestação material necessária para asseguramento do seu direito postulando tutela ao Poder Judiciário. Releva acentuar, que nestes casos, o exaurimento ou inexistência de crédito/dotação orçamentária para a despesa pública necessária é aspecto irrelevante, que não integra o thema probandum et decidendum.407 Nem mesmo os limites de despesas impostos pela chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar n. 101/2000, é 406 BRASIL, Lei 4.320/64. Art. 7º. A Lei de Orçamento poderá conter autorização ao Executivo para: I – abrir créditos suplementares até determinada importância, obedecidas as disposições do art. 43; II – realizar, em qualquer mês do exercício financeiro, operações de crédito por antecipação da receita, para atender a insuficiência de caixa. § 1º. Em caso de deficit, a Lei de Orçamento indicará as fontes de recurso que o Poder Executivo fica autorizado a utilizar para atender a sua cobertura. § 2º. O produto estimado de operações de crédito e de alienação de bens imóveis somente se incluirá na receita quando umas e outras forem especificamente autorizadas pelo Poder Legislativo em forma que juridicamente possibilite ao Poder Executivo realizá-las no exercício. § 3º. A autorização legislativa a que se refere o parágrafo anterior, no tocante a operações de crédito, poderá constar da própria Lei de Orçamento. 407 Em tradução livre: os assuntos/aspectos/temas que serão objeto da instrução probatória e da decisão judicial. Embora não enfrentando a questão da possibilidade de retificação do orçamento pela abertura de créditos extraordinários, merece menção o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, no Recurso 283.834/RS (relatoria do Min. Marco Aurélio), que, encampando fundamentação expedida no acórdão impugnado, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, consignou que “A falta de previsão orçamentária não deve preocupar o juiz que lhe incumbe a administração da justiça, mas apenas o administrador que deve atender equilibradamente as necessidades de seus súditos, principalmente os mais necessitados e doentes”. 235 obstáculo à concretização de prestações públicas relacionadas a asseguramento do mínimo existência. Não bastasse toda a argumentação de nível constitucional, podese ainda invocar o artigo 8º, § 2º, do referido Diploma Legal, que exclui da regra geral limitadora de despesas públicas aquelas que se constituírem obrigações constitucionais e legais do ente, e assim, são aquelas vinculadas à satisfação de direitos fundamentais da pessoa humana, já que, proteger o mínimo vital é dever constitucional impostergável do Poder Público.408 Tal situação, porém, é restrita aos casos referentes à proteção do mínimo existencial. As prestações estatais que ultrapassarem esse mínimo têm sua eficácia de possibilitar adjudicação individual dependentes da interpositio legislatoris409 infraconstitucional. Não decorrem diretamente da Constituição. Por isso, devem ser obtidas por via da cidadania reivindicatória, a partir do processo democrático, de modo a integrar políticas públicas e previsões orçamentárias. Sendo assim, a adjudicação jurisdicional das pretensões que ultrapassem o mínimo existencial demandam a verificação da existência do direito subjetivo à luz das políticas públicas e das legislações infraconstitucionais editadas, sem prejuízo do controle jurisdicional de constitucionalidade das políticas públicas. Assim, no que tange ao direito à moradia digna, no que se referir ao mínimo existencial, quando a pessoa, por circunstâncias alheias à sua vontade, estiver desalojada ou estiver na eminência de ficar, a adjudicação individual da prestação estatal pertinente pode ser postulada e obtida jurisdicionalmente 408 409 SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento, p. 152. Em tradução livre: intervenção do legislador. 236 Porém, é importante salientar que o controle judicial e a possibilidade de adjudicação de tutela favorável ao direito à moradia em sua dimensão prestacional em face do Poder Público não se limitam à proteção do mínimo existencial. Não é isso que se está afirmando, mas apenas que o mínimo existencial está protegido por uma norma constitucional que tem a estrutura de regra, e, portanto, é aplicada mediante subsunção, sendo assim, plenamente judicializável porque prontamente exigível. Nos demais casos, quando se estiver diante de uma pretensão que ultrapasse o mínimo existencial, a cognição é horizontalmente mais ampla, pois se terá que realizar um juízo de ponderação para verificar se o que se postulada com lastro em um direito prima facie traduz-se ou não, ao final do sopesamento dos argumentos fáticos e jurídicos, em um direito definitivo. É a partir das justificativas apresentadas é que se afere se há omissão inconstitucional ou insuficiência na atuação do Poder Público, conforme método já explicitado. Contudo, levando em conta a realidade brasileira, universalizar o mínimo existencial do direito à moradia já se consubstancia num enorme desafio. Enfrentá-lo demanda lançar mão do planejamento estratégico participativo, condição imprescindível para formulação e implementação das políticas públicas legítimas, afinadas com as promessas constitucionais. A Constituição brasileira de 1988, na qualidade de pacto social fundante da República, elaborado em especial momento de legitimação constituinte, e com ampla participação dos diversos segmentos da sociedade, como decisão política de maior envergadura, estabelece vinculações normativas ao planejamento e à execução das políticas 237 públicas, reduzindo assim o espaço de liberdade do legislador na elaboração dos planos de atuação governamental e dos orçamentos públicos, o que torna possível os controles democrático e jurisdicional, de modo a garantir a proteção e a promoção dos direitos humanos fundamentais, inclusive a moradia digna. Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição não depende apenas do seu conteúdo, da justiça de seus preceitos, mas, sobretudo, de uma prática constante que garanta que as normas constitucionais sejam vivenciadas no cotidiano, orientando condutas e a vida política, dando rumos à almejada transformação da realidade. Enfim, servindo-se da expressão de Pablo Lucas Verdú410, uma práxis que revele um verdadeiro sentimento constitucional, sempre alimentado. Precisa ser a Constituição um pacto vivo dos valores que a sociedade brasileira, em determinado momento histórico resolveu, soberanamente, compartilhar. E isso exige uma cultura política e jurídica que busque, nos espaços públicos, decisões compatíveis com as diretrizes constitucionais. O Poder Judiciário é um desses espaços de atuação cívica, mas não pode ser a única trincheira para proteger os cidadãos das arbitrariedades ou omissões do Estado. Ou seja, o recurso aos Tribunais não pode causar desmobilização ou desarticulação dos movimentos sociais, nem enfraquecer a atuação nos demais espaços públicos democráticos em que são definidas as políticas públicas e os conteúdos dos direitos fundamentais que serão protegidos e promovidos pelo 410 VERDÚ, Pablo Lucas. El sentimento constitucional; La Constitución en la encrucijada. 238 Estado411. O que se quer salientar é que o discurso dos direitos humanos fundamentais deve estar presente em todos os espaços públicos, sejam eles Fóruns e Tribunais, Parlamentos ou órgãos da Administração Pública. Sobreleva-se, portanto, também no campo da efetivação do direito à moradia digna, rumo à almejada universalização, o papel da cidadania ativa e a defesa da solidariedade para uma distribuição mais justa das riquezas e das oportunidades, para a promoção de um desenvolvimento com respeito às limitações ambientais e com maior justiça social. 411 Sobre tal perigo na experiência da Colômbia, mas com lições aplicáveis ao Brasil, ver: YEPES, Rodrigo Uprimy. A judicialização da política na Colômbia: Casos, potencialidades e riscos. 239 CONCLUSÕES Capítulo 1. Constatou-se que o regime contemporâneo de proteção e promoção jurídica da moradia resulta de uma longa construção que, durante muito tempo, trilhou duas vertentes paralelas: como direito da personalidade no campo do Direito Privado e como direito humano fundamental, no Direito Público. Caminhos que se encontraram com a constitucionalização do Direito e com o reconhecimento da plena normatividade dos preceitos constitucionais, sejam eles regras ou princípios, consolidando-se uma tutela integral e prioritária da pessoa humana e das situações existenciais. Estando a moradia positivada no ordenamento jurídico brasileiro como um direito humano fundamental, não pode ela ser tratado apenas como mercadoria, acessível apenas àqueles que têm condições econômicas de pagar seu preço. Daí a importância de políticas públicas para universalizar a moradia digna enquanto necessidade essencial de todo e qualquer ser humano, como bem jurídico extrapatrimonial indispensável à proteção e promoção da dignidade. Capítulo 2 A efetividade do direito à moradia em um país marcado pelas desigualdades, como é o Brasil da atualidade, depende das políticas públicas redistributivas. Daí a importância de estratégias de universalização do direito à moradia digna estarem contempladas nos 240 planos de desenvolvimento econômico e social, no planejamento da atuação estatal, contando com aporte de recursos adequados e estáveis nos orçamentos públicos. Quando não há planejamento, ou quando se excluir das políticas habitacionais parcela significativa da população, que é pobre, esta terá que resolver por si só sua necessidade de moradia, autoconstruindo habitações precárias nos espaços que sobram da cidade, como as beiras de córregos, rios e lagos, morros e encostas sujeitas a desabamentos, áreas contaminadas ou insalubres, embaixo de pontes e viadutos, loteamentos clandestinos, produzindo-se resultados socioambientais desastrosos. Capítulo 3 Em uma Constituição substancializada, em que a norma fundamental é a dignidade da pessoa humana e os direitos que lhe são inerentes, o controle jurídico das políticas públicas não se restringe aos aspectos formais, de observância da competência e dos procedimentos, adentrando-se na sindicalização material, isto é, da compatibilidade do conteúdo aos valores, ideais e metas acolhidos pelo Pacto Fundamental de 1988 e seu programa de desenvolvimento, cujo sentido está claramente delineado. Daí a possibilidade de controle das políticas habitacionais e de tutela contra omissões ou insuficiências na proteção e promoção do direito à moradia digna. A moradia digna na qualidade de direito humano fundamental tem a estrutura normativa de princípio, dotado da máxima eficácia possível dentro dos condicionantes fáticos e jurídicos presentes nas 241 circunstâncias em que estiverem inseridos. Neste prisma, a exigibilidade de medidas estatais de proteção e promoção do direito à moradia digna é verificada através do método da ponderação dos direitos, valores ou bens jurídicos em jogo. Robert Alexy apresenta uma proposta – aprimorada por Virgílio Afonso da Silva – chamada de análise do suporte fático, que contribui para dar maior transparência e possibilitar maior controle das decisões tomadas sobre omissões ou atuações estatais insuficientes na proteção e promoção de um direito humano fundamental. Defende-se o emprego de tal método de ponderação, lastreado na teoria da argumentação jurídica, para verificação da exigibilidade do direito à moradia, porque, não obstante as suas limitações, é o que melhor responde aos preceitos de transparência e controlabilidade. A reserva do possível influi na efetividade do direito à moradia. Porém, ela só se configura nos casos em estiver demonstrada a impossibilidade de agir em razão da inexistência absoluta do recurso apto a suprir a necessidade em questão, ou quando o meio adequado não estiver acessível/disponível no momento em que é necessário. Na reserva do possível não se subsumem situações em que a escassez é artificial, ocasionada não em razão da natureza das coisas, mas sim de uma decisão alocativa, de uma escolha sobre a destinação que será dada aos recursos disponíveis. Escolha essa que pode ser sindicada à luz da pauta axiológica constitucional. Quando a tutela ao direito à moradia estiver fundada na garantia do mínimo existencial, ter-se-á desde logo um direito definitivo, previsto em norma constitucional que tem a estrutura de regra, ensejando o pronto atendimento, eis que em questão estará um 242 conteúdo mínimo e irredutível da dignidade humana, quando não da manutenção da própria vida. Conclusão geral A atual crise de efetividade do direito à moradia junto às camadas mais pobres da população brasileira não decorre de um menor grau de eficácia da respectiva norma constitucional garantidora. A explicação não está no plano da norma, mas sim no da história política: decorre das escolhas alocativas que foram feitas no decorrer do tempo, refletidas nas estruturas institucionais, procedimentais e financeiras que já foram consolidadas em algumas áreas, estão no meio do caminho em outras, mas que noutras ainda não atingiram um patamar minimamente adequado, como é o caso das políticas públicas de universalização do direito à moradia digna. Portanto, a universalização do direito à moradia deve estar contemplada nas estratégias de promoção do desenvolvimento nacional. Desenvolvimento esse que não se reduz a mero crescimento econômico, de geração de riqueza, mas sim como um processo mais amplo, de melhoria da qualidade de vida, de apropriação de direitos humanos fundamentais, sendo, portanto, uma questão de justiça distributiva. 243 BIBLIOGRAFIA AINA, Eliana Maria Barreiros. O fiador e o direito à moradia: Direito fundamental à moradia frente à situação do fiador proprietário de bem de família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Ziulda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. ______. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ______. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ALFONSIN, Jacques Távora. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. 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