1 O ser humano é mais que um organismo: uma problematização do campo das neurociências e da psiquiatria científica Leila Ripoll1 Resumo: O trabalho discute a consistência de certas afirmações do campo das neurociências e de uma psiquiatria dita científica, mediante a análise dos requisitos mínimos de um modelo científico, suas exigências de precisão na delimitação de seu objeto e sua relação com a verdade. Introdução Inicio este texto com um poema de Ferreira Gullar pretendendo que funcione como um exergo, uma demarcação política do lugar de onde me proponho a problematizar o campo das neurociências e da psiquiatria (dita) científica. Segundo Derrida, “Citar antes de começar é dar o tom deixando ressoar algumas palavras cujo sentido ou forma deveria dominar a cena. (...) Um exergo estoca por antecipação e préarquiva um léxico que, a partir daí, deverá fazer a lei e dar a ordem contentando-se em nomear o problema, isto é, o tema.”2. INSETO3 Um inseto é mais complexo que um poema Não tem autor Move-o uma obscura energia Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica Também mais complexo que uma hidrelétrica é um poema (menos complexo que um inseto) e pode às vezes (o poema) com sua energia iluminar a avenida ou quem sabe uma vida. 1 Psicanalista, membro do EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos – RJ. Bacharel em Matemática, UFRGS, 1972, Mestre em Teoria da Computação, PUC/RJ, 1976. Doutora em Inteligência Artificial, Engenharia de Sistemas, COPPE/UFRJ, 1990. 2 DERRIDA, J. Mal de arquivo – uma impressão freudiana, Rio de janeiro, Relume Dumará, 2001. P.17. 3 GULLAR, F. Em alguma parte alguma, Rio de janeiro, José Olympio,2010.P.49 2 A partir deste exergo poderíamos propor uma brincadeira, uma gradação de complexidade (do ponto de vista do homem, é claro, já que os insetos, os poemas e as hidrelétricas não são capazes de um ponto de vista perspectivo). O homem, sendo criador, é mais complexo do que os insetos, que não fazem poemas nem constroem hidrelétricas. Já as hidrelétricas, que se baseiam em certo conhecimento científico, são criações humanas tanto quanto o poema, porém a ciência, institucionalizada e formalizada em uma determinada linguagem, está totalmente contida na esfera da representação enquanto que o poema aponta para os limites da representação e para a criação de novos sentidos. No entanto, tanto a verdade do poema, como a da ciência, estão ambas subordinadas à atribuição de sentido que é prerrogativa do humano. A evitação do risco e, em última instância a negação da morte, faz com que na atualidade os sujeitos busquem cada vez mais os cuidados estabelecidos pela ciência para uma vida saudável. A intolerância a qualquer tipo de dor aliada à medicalização do social e à crença nos poderes ilimitados da ciência resulta numa demanda crescente por cuidados em busca de proteção. Em contrapartida, estes pacientes oferecem ativamente seus corpos dessubjetivados à normalização operada por uma medicina dita científica. Colocamo-nos, então, a pergunta: de onde vem esta crença religiosa na verdade da ciência? Por que, para algumas ciências humanas, a formulação de um modelo matemático formal confere aos resultados um estatuto de certeza comprovada, quase um “espelho exato do real”, permanecendo ocultas ou impensadas as escolhas valorativas que qualquer modelo pressupõe? Vou focalizar a minha argumentação na questão de que o discurso de verdade das neurociências e da psiquiatria científica encontram sua força na suposta certeza de resultados inquestionáveis, porque sendo « cientificamente comprovados», seriam universais, neutros e irrefutáveis. Tudo o mais seria da ordem da ficção ou da crença obscura. Não contestamos a existência de resultados científicos no campo experimental estrito da neurociência, apenas questionamos que os recortes teóricos e os pressuposots que delimitam a experiência são pouco explícitos e, mediante esta naturalização do experimento científico, produz-se uma interpretação desses resultados para o campo do comportamento, numa atribuição de valor aos resultados que é estranha a um experimento científico. Evidentemente, o campo da ciência é um campo discursivo como outro qualquer e, portanto, com efeitos de poder tanto mais evidentes quanto mais seus enunciados forem caucionados por um discurso assumido pelo senso comum como comprovadamente verdadeiro. Se considerarmos o amplo apelo midiático para divulgação de resultados espetaculosos e salvadores, abre-se um espaço inesgotável de produção de verdades apoiadas na pretendida consistência e seriedade da ciência. Darei alguns exemplos do que desejo problematizar nesses campos, a partir de discursos de cientistas reconhecidos, acerca de seus próprios trabalhos : 3 1) Entrevista4 de Suzana Herculano-Houzel do PAN - Programa Avançado de Neurociência / UFRJ: Mariluce Moura (diretora de redação na Revista Pesquisa FAPESP): Eu peguei ao acaso (um trecho de seu livro “Fique bem com seu cérebro” para divulgação dos resultados das pesquisas sobre o cérebro): “Quando o mundo lhe sorri, você sorri automaticamente de volta e esse simples ato já prepara o corpo para a felicidade. Além disso, como o sorriso é contagioso, a felicidade estampada em seu rosto contamina os seus vizinhos e aumenta as chances que eles têm de sorrir. Assim, se forma um círculo vicioso dos mais saudáveis. Procure estar próximo a pessoas felizes e seja uma companhia feliz para elas também”. Para mim isso parece alguma coisa muito distante da divulgação científica efetiva. Suzana Herculano-Houzel: Mas não é, é justamente isso. Tem estudos fantásticos que mostram isso que está escrito. Quando você vê uma pessoa sorrindo, as áreas do seu cérebro responsáveis – não a totalidade da felicidade, do sorriso, isso não basta, é claro –... mas as áreas do cérebro envolvidas em fazer você sorrir, quer dizer, na expressão da sua felicidade, do seu sorriso genuíno, espontâneo, elas são ativadas também. Outras [pesquisas] muito bacanas mostram que a gente acha mais bonitas imagens de pessoas que sorriem. Você pode comparar, você pode fazer esse estudo de uma maneira controlada. Você pega a imagem de uma pessoa, a mesma pessoa com a cara séria, né? E depois a pessoa sorrindo com o sorriso genuíno estampado no rosto. Isso é fato, o cérebro da gente responde ao sorriso do rosto dos outros e responde começando a preparar o seu próprio sorriso. O que está escrito aí nesse parágrafo que você leu não é “achismo”. Isso é o que os estudos mostram. 2) Laboratório de Neurociências da USP – Temas em Neurociências5 Causas (da Depressão) A depressão é uma doença. Há uma série de evidências que mostram alterações químicas no cérebro do indivíduo deprimido, principalmente com relação aos neurotransmissores (serotonina, noradrenalina e, em menor proporção, dopamina), substâncias que transmitem impulsos nervosos entre as células. Outros processos que ocorrem dentro das células nervosas também estão envolvidos. Ao contrário do que normalmente se pensa, os fatores psicológicos e sociais muitas vezes são conseqüência e não causa da depressão. Vale ressaltar que o estresse pode precipitar a depressão em pessoas com predisposição, que provavelmente é genética. Diante de afirmações como estas, é preciso perguntar: como se estabelecem estas relações causais entre um experimento físico-químico de laboratório, realizado em um cérebro morto, ou uma imagem produzida computacionalmente, e um determinado comportamento? O resultado de um experimento mensurável realizado no laboratório é da ordem da ciência experimental. Para que possa ser repetido e comprovado, não deve haver nenhuma interferência de valor estranha ao experimento. Já um comportamento é, por excelência, algo inserido numa história e numa determinada configuração geográfico-social e sua avaliação sempre pressupõe uma atribuição de valor. 4 5 http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/311/entrevistados/suzana_herculanohouzel_2008.htm http://www.neurociencias.org.br/pt/544/depressao-2/ 4 Problematizações das verdades das neurociências e da psiquiatria científica 1º problema : A neurociência e a psiquiatria não produzem verdades científicas quando toleram e ignoram os deslizamentos conceituais de seu objeto em proveito da « comprovação » de seus resultados. As experiências são realizadas em um organismo ou mapeadas em uma simulação matemática e os resultados são generalizados para um corpo. Há um deslizamento conceitual importante quando se confunde o organismo com o corpo, confunde-se o cérebro morto do laboratório e as medições segundo um determinado modelo, com o sujeito vivente. O corpo é construção de um sujeito singular que, na sua luta pela sobrevivência, constituiu um corpo pulsional/erógeno. É deste corpo (e não do organismo biológico) que Freud fala quando afirma que o eu é antes de tudo corporal. É também esse corpo que Merleau Ponty designa como um corpo próprio, resultado da necessidade humana de construção de um mundo dotado de sentido. Este deslizamento conceitual é evidente, por exemplo, no discurso de Antonio Damasio (University Professor and David Dornsife Professor of Neuroscience and Director of the Brain and Creativity Institute at the University of Southern California) quando em entrevista ao jornal O Globo(10/12/2011)6 afirma : (...)A identificação da base neural exata dos sentimentos é o problema neurocientífico que mais me interessa, mas ainda está em desenvolvimento. Acredito que nos próximos cinco ou dez anos teremos resultados notáveis sobre como o cérebro constrói o eu.”. E prossegue: “Ao se aproximar dessas grandes questões de que falamos, a filosofia formulou inúmeras teorias. Nas últimas três décadas, com os avanços da neurociência, podemos verificar cientificamente algumas delas. William James e, em certo sentido, Freud, podem ser apontados como precursores da neurociência atual. A diferença é que hoje podemos testar hipóteses que há cem anos não eram verificáveis.” Esta afirmação é falaciosa, as neurociências não verificam as teses freudianas e não creio que estas não tenham sido provadas por Freud devido a uma impossibilidade da ciência de sua época. Em 1915, no artigo sobre o inconsciente, Freud afirma: “Todas as tentativas para descobrir, a partir daí (das localizações cerebrais) uma localização dos processos psíquicos, todos os esforços para conceber ideias armazenadas em células nervosas e excitações que percorrem as fibras nervosas, têm fracassado redondamente”7. E acrescenta que, no momento, a tópica psíquica (distinção dos sistemas Ics., Pcs., Cs.) “nada tem a ver com a anatomia”. Portanto, trata-se antes da honestidade e do rigor conceitual presentes na obra freudiana quando aponta para o fosso que existe entre o cérebro na sua materialidade 6 http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2011/12/10/antonio-damasio-neurociencia-lida-comquestoes-da-filosofia-420732.asp 7 FREUD, S. O Inconsciente. In: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996 [1914-1916] (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XIV). P. 179. 5 orgânica e as manifestações da consciência, que são os elementos disponíveis para descrição da experiência. No início do Esboço de psicanálise de 1938, Freud reafirma esta posição: Conhecemos duas espécies de coisas sobre o que chamamos nossa psique: em primeiro lugar, seu órgão corporal e cena de ação, o cérebro (ou sistema nervoso), e, por outro lado, nossos atos de consciência, que são dados imediatos e não podem ser mais explicados por nenhum outro tipo de descrição. Tudo o que jaz entre eles nos é desconhecido, e os dados não incluem nenhuma relação direta entre estes dois pontos terminais de nosso conhecimento. 8 As hipóteses da neurociência, da forma como são formuladas, não são verificáveis no sentido rigoroso de um experimento científico, exceto se seus resultados e seu objeto se ativerem aos materiais orgânicos, suas reações no laboratório e seus modelos matemáticos. Qualquer generalização das experiências para avaliação do comportamento humano são interpretações, atribuições de valor aos resultados das experiências, não são verdades científicas no sentido estrito. A relação da neurociência com a patologia ocupa o mesmo lugar, amplamente discutido por Canguilhem9, da relação da fisiologia com a patologia. A fisiologia como conhecimento dos processos funcionais normativos só existe por causa da patologia. É a infração que permite a regulação por uma norma e esta norma é indissociável de uma atribuição de valor e, por isso mesmo, sempre passível de ser alterada. Portanto, quando as neurociências se referem a “sentimentos” ou “ao cérebro construindo o eu” há uma selvageria conceitual inadmissível que desqualifica este saber. 2º problema: A correlação entre os resultados da pesquisa de laboratório e as experiências de adoecimento é feita sob uma valoração implícita que sustenta a própria construção do campo que se deseja estudar. Esta confusão na delimitação do modelo e de seus objetos inviabiliza a replicação do experimento e inclui uma verdade prévia à experiência que é estranha ao pensamento científico. As ponderações de Lacan, em seu texto Para além do ‘princípio da realidade’, ao fazer a crítica dos fundamentos da psicologia como ciência positiva são extremamente atuais e poderiam ser transpostas para algumas argumentações da neurociência como ciência positiva cujo objeto parece se oferecer “naturalmente” ao olhar, como por exemplo, as alterações no cérebro de um deprimido. Lacan afirma: “(...)a partir do momento em que os fenômenos se definem em função de sua verdade, eles ficam submetidos, em sua própria concepção, a uma classificação de valor.”10 Ainda segundo Lacan, para um resultado se dizer científico deve ser passível de ser inserido em uma cadeia simbólica onde o seu campo científico unifica a diversidade de 8 ______, Esboço de Psicanálise. In: Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996 [1937-1939] (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XXIII). P. 157. 9 CANGUILHEM, G. O normal e o patológico, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 4ª edição, 1995. 10 LACAN, J. Para além do ‘princípio da realidade’ In: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, P.78. 6 seu objeto próprio dentro de uma ordem racional. Portanto, para que uma teoria científica seja consistente (dentro de seu modelo) é preciso estabelecer com rigor esta unificação de seu objeto feita sobre a diversidade inesgotável do real. Por exemplo, a análise newtoniana do movimento tem como pré-requisitos as coordenadas de espaço e tempo e a invenção de um observador fixo fora da cena observada. Há uma unificação pontual da matéria na representação do experimento: um corpo é representado por um ponto sem extensão. Einstein irá trabalhar justamente num modelo que questiona alguns destes pressupostos e acrescenta outros. A mecânica quântica é a teoria física que obtém sucesso no estudo dos sistemas físicos cujas dimensões são próximas ou abaixo da escala atômica, logo, para Einstein não há sentido pensar em um ponto sem extensão em um esquema euclidiano. Portanto, Newton e Einstein realizaram diferentes unificações de seus objetos. Nenhum dos dois modelos é verdadeiro fora de seu escopo rigorosamente definido, ou seja, não se pretende que a sua verdade espelhe o real. Comentando a sua descoberta em relação aos físicos dos séculos XVIII e XIX, Einstein11 sustenta o caráter ficcional das verdades científicas: “Em geral, os físicos da época acreditavam de bom grado que os conceitos e as leis fundamentais da física não constituem, no sentido lógico, criações espontâneas do espírito humano, mas antes que se pode deduzi-los por abstração, portanto por um recurso da lógica. Na verdade, somente a teoria da relatividade geral reconheceu claramente o erro dessa concepção.(...) O caráter fictício dos princípios torna-se evidente pela simples razão de que se podem estabelecer dois princípios radicalmente diferentes, que no entanto concordam em grande parte com a experiência.” No entanto, o próprio Einstein destaca que os cientistas, muitas vezes, equivocam-se ao situar suas descobertas quando diz: “(...)o criador tem esta característica: as produções de sua imaginação se impõem a ele, tão indispensáveis, tão naturais, que não pode considerá-las como imagem do espírito, mas as conhece como realidades evidentes. ” Segundo Lacan, a psicologia que, no final do século XIX, apresentava-se como científica baseia-se numa concepção associacionista do psiquismo e recebe do senso comum uma série de postulados que determinam os problemas em sua própria formulação. O contexto em que ela classifica os fenômenos como sensações, percepções, imagens, crenças, operações lógicas, juízos, etc. são retirados de uma elaboração do corpo teórico da filosofia. Estes contextos, não estabelecem uma concepção objetiva da realidade psíquica, mas evidenciam os resquícios dos percalços do esforço humano ao buscar para seu próprio ato de conhecer uma garantia de verdade. Esta formulação é dominada pelas funções do verdadeiro em oposição ao que se chama função do real: 11 EINSTEIN, Albert “Sobre o Método da Física Teórica” In: Como vejo o mundo disponível no link http://pt.scribd.com/doc/7611076/Albert-EinsteinComo-Vejo-o-Mundo 7 “Tal concepção, portanto, distingue duas ordens nos fenômenos psíquicos: de um lado, os que se inserem em algum nível das operações do conhecimento racional, e de outro, todos os demais, sentimentos, crenças, delírios, assentimentos, intuições, sonhos. Os primeiros exigiram a análise associacionista do psiquismo; os últimos devem explicar-se por algum determinismo estranho à sua “aparência” e chamado de “orgânico”, por reduzi-los, quer ao suporte de um objeto físico, quer a relação de um fim biológico.(...) Assim, nos fenômenos psíquicos não se reconhece nenhuma realidade própria: aqueles que não pertencem à realidade verdadeira não têm realidade senão ilusória.”12 Então, parafraseando Lacan quando ele sustenta que a psicologia não é uma ciência objetiva e afirma: Verdade da psicologia e psicologia da verdade, podemos nos interrogar: Verdade da neurociência e Neurociência da verdade? Os pressupostos assumidos e naturalizados da psicologia positiva eram uma concepção associacionista do psiquismo e uma concepção mecanicista, visão atomística da memória. Creio que alguns desses mesmos pressupostos perpassam o discurso de muitos neurocientistas, ainda que encobertos por um complexo ferramental matemático. Grosseiramente falando, o engrama, elemento psicofísico da psicologia, ressurge repaginado, de modo mais refinado, pelo neurônio e as ligações associativas, podem ser reencontradas nas sinapses. As redes neuronais, os modelos probabilísticos e estocásticos, os modelos que simulam o caos e o acaso, os modelos de processamento das imagens apoiam-se no caráter simbólico/atomístico que todo modelo matemático supõe, já que só podem ser definidos precisamente e calculados se puderem ser expressos num sistema formal onde a especificação simbólica é expressa em uma lógica, onde a continuidade e o acaso são mensuráveis e podem ser graduados com maior ou menor desvio. São modelos abstratos. Não são a replicação fiel da experiência do vivente. São conceitos-limite que tentam simular a questão do contínuo e do acaso da experiência que se desenrola no campo do real. No campo da Física, as controvérsias sobre o bóson de Higgs (não por acaso chamada por alguns cientistas de “partícula de Deus”), que teria a capacidade de dotar de massa tudo o que vemos no universo, impedem qualquer afirmação categórica ingênua sobre as relações entre matéria, massa e energia, em particular sobre a matéria viva. Logo, se as questões relativas à positividade real da matéria são questões em aberto para a Física, porque não se coloca para os neurocientistas como impeditivo da associação causal direta entre a mente do vivente (matéria desconhecida) e as suas imagens computacionais necessariamente montadas com um modelo lógico de representação finita? 3º problema: Se a impossibilidade de separação entre o sujeito e objeto da experiência já se colocou para a Física, desde Einstein, com mais razão esta questão exige uma abordagem rigorosa do ponto de vista do modelo de qualquer ciência humana, quando o sujeito e o objeto têm o mesmo estatuto, quando o homem é objeto de estudo do homem. 12 LACAN, J. Para além do ‘princípio da realidade’ In: Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, P.79. 8 Merleau-Ponty13, em seu livro A Estrutura do Comportamento, estabelece um novo estatuto da objetividade, criticando a ontologia inerente a toda ciência. Para este autor, o sujeito conhece o mundo com o corpo e o conhecimento não se instaura na relação de exterioridade de uma consciência conhecedora. A percepção do mundo é ativa, o sujeito percebe e constrói a realidade com a sua história. Portanto, mesmo a percepção supostamente neutra e desinteressada do cientista não é fundada em um conhecimento lógico-causal do mundo e numa suposta realidade objetiva. O sujeito conhecedor é parte da experiência e sua visão é parcial e valorativa. A noção de corpo-próprio, desenvolvida por Merleau-Ponty, obriga a pensar a condição humana para além do ponto de vista reflexivo e também do ponto de vista objetivo, fundando-a no solo da experiência. Assim, o que distingue o comportamento humano é a sua capacidade de visão perspectiva e valorativa sendo que este comportamento circula de forma indissociável entre duas ordens: 1) reações mecânicas que se desenrolam no espaço/tempo objetivo e socialmente compartilhado 2) reações que dependem do ponto de vista da situação, da possibilidade de visão perspectiva e de imaginação de um futuro. Não pertence mais à ordem do em si, mas à ordem do para si. A inteligência transita nas duas ordens e não se situa especificamente em nenhuma delas. O comportamento não se desenrola no tempo e no espaço objetivos, como uma série de acontecimentos físicos. O que ocorre com o homem é que em determinado momento o comportamento se liberta da ordem do em si e torna-se a projeção fora do organismo em uma possibilidade que lhe é inerente. Aí se coloca a questão da liberdade da resposta singular de cada um que escapa, necessariamente, ao escopo da ciência. Além disso, é também aí que aparece a questão ética da produção de conhecimento sobre um igual, produção essa que tem efeitos concretos de verdade na submissão dos corpos ao poder da ciência. 4º problema: Finalmente, para não excluir a própria psicanálise desse questionamento acerca de seu objeto: qual o objeto da psicanálise? É o que se pergunta Althusser14 no ensaio Freud e Lacan. Para ele o objeto da psicanálise é “um dos ‘efeitos’ do devir-humano do serzinho biológico saído do parto humano” e dizia: para este serzinho biológico tornar-se uma criança humana, houve uma guerra surda que a humanidade prefere esquecer, fazendo de conta que nunca foi travada. É dos sobreviventes dessa guerra surda que se ocupa a psicanálise. Sobreviver não é viver. 13 14 MERLEAU-PONTY, M. A Estrutura do Comportamento, Belo Horizonte, Interlivros, 1975. ALTHUSSER, L. Freud e Lacan / Marx e Freud, Edições Graal, 4ªedição, Rio de Janeiro, 2000. 9 Joel Birman15, no seu livro “As pulsões e seus destinos – do corporal ao psíquico”, mostra que Freud não acreditava que nenhuma ciência se iniciasse por descrições e observações regulares dos fenômenos para só posteriormente serem reunidas em relações explicativas dentro de um determinado modelo. De fato, estas ações ocorreriam simultaneamente, sendo o objeto da ciência delimitado pela mediação das ideias abstratas que vão ordenando o campo dos fenômenos. Desse modo, qualquer campo científico seria marcado pela indeterminação desse jogo entre as ideias abstratas e a observação dos fenômenos. A afirmação da verdade será sempre perspectiva, interna ao próprio campo e dependente de um determinado recorte do objeto, com todas as implicações éticas daí decorrentes. Para concluir, em relação ao objeto da clínica médica, em particular, a psicanalítica, creio que é fundamental notarmos que este também não se oferece naturalmente ao nosso olhar ou à nossa escuta. O corpo do doente nem sempre foi considerado a sede, a localização individualizada, da doença ou do mal. Foucault16 mostra, no Nascimento da Clínica, que esta surgiu, no final do século XVIII, mediante a construção de um novo olhar que instituiu o corpo do doente como sede da doença. Ao contrário de uma versão romântica desse acontecimento histórico, este olhar surge, não de um despertar do médico para uma atitude mais humanista e dedicada ao doente, buscando a sua singularidade, mas de uma socialização do campo da medicina. Surge da colocação da vida como objeto da política, de uma biopolítica. Surge da análise da doença num processo serial que viabiliza uma diferenciação estatística das características da doença e da inclusão da história no processo de adoecimento. Conclusão Hoje constatamos que houve um deslocamento importante dessa clinica assim construída, baseada na história do paciente e no golpe de vista sobre este corpo, para uma medicina baseada em evidências ditas científicas e em exames que se supõe serem um retrato fiel da realidade corporal, mapas coloridos dos corpos e das mentes. A medicina científica incide, então, sobre um indivíduo fixado no presente, objetivado nos registros das imagens, assujeitado e sem história. A questão da história de vida do paciente, cujas marcas constroem o corpo erógeno desse paciente e o tornam singular, é fundamental para qualquer gesto terapêutico. Portanto, as escolhas que se colocam para um médico, cientista ou qualquer sujeito que se proponha a produzir um saber sobre o sofrimento do outro estabelecem os parâmetros éticos de sua prática. Como psicanalistas, devemos nos perguntar se é eticamente aceitável uma ingerência ativa buscando a eliminação da angústia, do conflito e da dor, quer pela via da medicação, quer mediante um diagnóstico tranquilizador ou um acolhimento protetor atendendo, desse modo, ao pedido do paciente. Estaríamos assim desconsiderando a 15 BIRMAN, J As pulsões e seus destinos – Do corporal ao psíquico, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009. 16 FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1998, 5ª edição. 10 advertência de Freud de que o sentimento mais perigoso para um psicanalista é o da ambição terapêutica visando algum fim e, ao mesmo tempo, apostando que a Regra de Abstinência é supérflua, que não há consequências desse tipo de ação. Portanto, para situar corretamente a questão, é preciso qualificar o que é demanda. De fato: ou somos psicanalistas e buscamos ouvir a queixa num lugar diferente da realidade objetiva compartilhada, aceitando um desconhecimento fundante do que está em jogo e do que está por vir, ou vamos aderir a uma psicologia e uma ciência normalizadoras que se situam do lado da polícia médica. Esta promessa de proteção maternal ou de um medicamento que acalme a angústia mostra apenas a persistência do nosso ideal de cura, algo que Pontalis17 diz ser uma idéia incurável entre os psicanalistas. É esta ideia incurável que faz com que muitos apelem para um diagnóstico redutor e um medicamento, tornando o paciente dócil diante de um processo de normalização e cura. 1. 17 PONTALIS, J.-B.(org.) L’idée de guérison [1978] . Printemps 1978, Nouvelle Revue de Psychanalyse (No 17), Gallimard -rev. ISBN 2070298132.