Descentralização e Participação Social no Sistema Público de Saúde Autoria: Maria Gabriela Monteiro, Thais Soares Kronemberger Resumo A participação social e a descentralização político-administrativa constituem as principais diretrizes do Sistema Público de Saúde, contribuindo para aprofundar a democratização do país. O fortalecimento da sociedade a nível local e o surgimento de novos espaços institucionais de participação social podem possibilitar uma maior eficiência da gestão pública. Contudo, torna-se fundamental a abertura de estruturas Estatais para a participação efetiva da sociedade nas decisões públicas, criando um processo democrático de co-gestão. O presente artigo tem por objetivo verificar se o processo de descentralização da saúde, juntamente com a participação social contribuiu para as modificações nas estruturas governamentais na área de saúde e na forma de gestão pública, possibilitando a inserção de setores anteriormente excluídos da condição de cidadania. Palavras-chave Descentralização da política de saúde, Participação social na saúde, Relações intergovernamentais, Conselhos de Saúde. 1 - Introdução A Constituição Federal de 1988 representou uma grande mudança nas organizações governamentais brasileiras. Ela estabeleceu um conjunto de princípios a partir do qual se impôs a transição de uma Administração Pública de viés autoritário para uma outra que privilegia o cidadão. Na área de políticas sociais, Fleury (2006) acredita que o padrão constitucional da proteção social inovou ao subordinar os setores componentes da seguridade social a dois princípios básicos: a participação da sociedade e a descentralização político-administrativa, aprofundando assim o duplo movimento de democratização, qual seja, do nível central em direção ao nível local e do Estado em direção à sociedade. Com a descentralização e o redesenho das relações entre os entes federativos, houve um fortalecimento do poder local. Os municípios ganharam autonomia políticoadministrativa, novas responsabilidades, competências legislativas e recursos tributários. Com a participação da sociedade se propõe a criação de uma nova forma de conceber a relação entre o Estado e a sociedade, de forma a incluir os cidadãos em uma comunidade política, ampliando dessa forma a esfera pública e permitindo o exercício da cidadania. A descentralização permite o fortalecimento da sociedade local e a criação de novos espaços institucionais de participação social que podem possibilitar maior eficiência da gestão pública. No entanto, torna-se necessário a abertura das estruturas Estatais à participação efetiva da sociedade local nas decisões públicas, criando assim um processo democrático de co-gestão. A divisão de poder é fundamental para a governabilidade social. A saúde foi a área de políticas sociais em que o modelo proposto pela Constituição de 1988, de participação da sociedade e descentralização político-adminitrativa foi mais amplo e radicalmente aplicado, tendo sua maior expressão no Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse sentido, este artigo tem por objetivo verificar se o processo de descentralização da saúde combinado com a participação social contribuiu para transformações nas estruturas governamentais da área da saúde e na forma de gestão pública, permitindo, dessa forma, a inclusão dos setores anteriormente excluídos da condição de cidadania. 2 - O Brasil e a questão da participação e da descentralização No Brasil, a Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova institucionalidade democrática, tão almejada pelos movimentos sociais. Segundo Fleury (2006), na área social, a Constituição de 1988 representou uma profunda transformação no padrão de proteção social brasileiro, consolidando as pressões democratizantes que já se faziam sentir há mais de uma década. Inaugura-se um novo período, no qual o modelo da seguridade social (que, a partir de então, inclui a previdência, saúde e assistência) passa a estruturar a organização e formato da proteção social brasileira, em busca da universalização da cidadania. A autora afirma que, O novo padrão constitucional da política social caracteriza-se pela universalidade na cobertura, o reconhecimento dos direitos sociais e a afirmação do dever do estado na sua garantia, a subordinação das práticas privadas à regulação em função da relevância pública das ações e serviços nestas áreas, uma perspectiva publicista de co-gestão governo/sociedade, um arranjo organizacional descentralizado e participativo (FLEURY, 2006, pág. 53). As políticas sociais assumem, portanto um caráter descentralizante e participativo. Segundo Arocena (1989), as propostas descentralizadoras buscam criar sistemas alternativos à burocracia centralizada partindo do princípio da necessidade de liberar a capacidade criadora das sociedades locais. É nesse sentido que o autor afirma que as políticas descentralizadoras têm forte relação com as iniciativas de caráter local. Se por um lado, a descentralização é uma condição necessária para o potencial desenvolvimento de iniciativas, por outro lado, não haverá uma autêntica descentralização se não existir uma sociedade civil densa, rica em iniciativas. Assim, o autor alega que a descentralização político-administrativa é uma condição necessária, mas não suficiente para lograr efeitos reais da descentralização do sistema, pois se precisa também de uma sociedade civil rica em iniciativas capazes de receber as transferências operadas pela reforma político-administrativa. Desta forma, para que se produza efetivamente uma modificação do sistema, será necessário articular as reformas político-administrativas geradas no centro com as ações originadas na periferia. Para tanto, Arocena (1989) afirma que a existência de atores locais capazes de iniciativas é uma condição de êxito para as políticas descentralizadoras, ou ainda, para que as reformas políticoadministrativas modifiquem realmente o sistema centralizado de poder, deve existir, portanto, um tecido social denso a nível local. Associado à descentralização está, portanto, o fortalecimento da sociedade local, vista como um espaço de inclusão social e expansão da cidadania, que, segundo Arocena (1995) supõe o respeito a uma identidade coletiva expressa em valores e normas interiorizadas por seus membros, conformando um sistema de relacionamento de poder constituído em torno do processo local de geração de riqueza. A descentralização, para Carvalho et al (1999), se constitui num processo de alavancagem de uma forma de governar mais participativa, democrática, comprometida, do ponto de vista do Estado e da sociedade. Permite-se a criação de novos espaços institucionais de participação social que além de possibilitar maior eficiência da gestão pública, expande as oportunidades de acesso ao poder de novos sujeitos sociais, favorecendo a ampliação do espaço público. 2 3- Política Pública de Saúde: descentralizada e participativa A área da saúde, organizada como movimento social – o Movimento Sanitário –, fruto de uma larga luta pela democratização, chegou ao processo constitucional com uma agenda preparada e socialmente legitimada (FLEURY, 1997). A autora afirma que, ao longo de várias décadas, o sistema de saúde brasileiro foi estruturado em meio a uma conjuntura políticoeconômica internacional e nacional desfavorável à consolidação de políticas sociais abrangentes e redistributiva. Os programas e políticas de saúde sempre se submeteram muito mais à lógica clientelista que às necessidades e demandas da população. Na primeira metade do século XX, a elaboração de programas de saúde esteve intimamente relacionada ao movimento geral de criação de um mercado nacional de trabalho. Sob a égide da política previdenciária instituída pelo Estado, o Sistema Nacional de Saúde teve suas raízes na privatização da assistência médica. A política pública em saúde de abrangência nacional foi, nesse período, apenas um conjunto de programas nacionais pouco articulados entre si. Uma primeira tentativa de integração dos serviços de saúde foi a transferência de toda a rede de serviço da saúde, bens e profissionais, da Previdência Social para o Ministério da Saúde, criado em 1953. A partir de então, surgiram várias propostas de implantação de uma rede de serviços para a atenção primária à saúde, com hierarquização, descentralização e universalização, iniciando-se com o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), em 1976, seguido pelo Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV-SAÚDE) em 1980 - que, na realidade, nunca saiu do papel -, sendo substituído pelo plano do Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária (CONASP), em 1982, a partir do qual foi implantada a política de Ações Integradas de Saúde (AIS), em 1983. Em 1986 foi criado o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), que funcionou como o principal instrumento de descentralização operacional, administrativa e financeira dos programas de saúde, entre os anos de 1986 e 1987 (COUTTOLENC e ZUCCHI, 1998). O capítulo dedicado à saúde na nova Constituição Federal, promulgada em outubro de 1988 (CF/88), retrata o resultado de todo o processo desenvolvido ao longo dessas duas décadas. O Movimento da Reforma Sanitária, que reuniu atores diversificados em uma batalha política pelo reconhecimento da saúde como direito social, pela universalização do acesso aos serviços de saúde e pela integralidade da atenção à saúde, na luta mais ampla pela construção da cidadania e pela democratização, que marcou o final do regime militar, conseguiu influenciar o processo constitucional e plasmar na CF/88 o texto aprovado na 8ª Conferência Nacional de Saúde que garante que a “Saúde é um direito de todos e dever do Estado”. Entre outros, a Constituição de 1988 prevê o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, com regionalização e hierarquização, descentralização com direção única em cada esfera de governo, participação da comunidade e atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Para assegurar esse direito, a CF/88 criou o Sistema Único de Saúde (SUS), sistema público descentralizado, integrado pelas três esferas de governo, que foi regulamentado pelas Leis Orgânicas da Saúde, Leis nº 8080/90 e nº 8.142/90. 3.1 A descentralização da saúde Passados 17 anos do surgimento do Sistema Único de Saúde, pôde-se observar grandes avanços e dificuldades nos diversos âmbitos estratégicos para sua implantação, sendo que, um dos principais avanços se encontra no âmbito da descentralização. O acelerado 3 processo de descentralização no Brasil, na década de 1990, foi segundo Levcovitz et al. (2001) do tipo político-administrativo, envolvendo não apenas a transferência de serviços, mas também de responsabilidade, poder e recursos de esfera federal para a estadual e municipal. Foi, porém, a partir da segunda metade da década de 1990, que o processo de descentralização se acelera, devido, em grande medida, a adesão dos municípios ao SUS expressos na Norma Operacional Básica 1996 (NOB/96) em prol da municipalização da saúde. Essa norma além de dar um tratamento especial para as ações básicas de saúde altera as modalidades da gestão local do SUS para: Plena de Atenção Básica e Plena do Sistema de Saúde. Sendo que na primeira, o poder público municipal tem governabilidade apenas sobre a rede de atendimento básico e na segunda, a responsabilidade do município é ampliada para a gestão de todo o atendimento à saúde no seu território, dando plena assistência ambulatorial e hospitalar. A municipalização da gestão dos serviços foi, segundo Arretche (2002), o elemento central da agenda de reformas do governo federal na área da saúde ao longo da década de 1990. A autora afirma que, deste ponto de vista, a reforma foi um sucesso. Em 1998, ano em que, na prática, a NOB/96 entrou em vigor, de março até o mês de outubro, 90,85% dos municípios habilitaram-se a alguma das modalidades de gestão da NOB/96, sendo 4.553 na Gestão Plena da Atenção Básica e 449 na Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde. Já em maio de 2002, 99,6% dos 5.560 municípios brasileiros já estavam habilitados no Sistema Único de Saúde, sendo a maioria em Gestão Plena da Atenção Básica e 564 municípios em Gestão Plena do Sistema Municipal (LEVCOVITZ et al., 2001, p.280). Esse acelerado processo de habilitação das gestões municipais de saúde no Sistema Único de Saúde, principalmente em 1998 quando ocorreu a maior parte das habilitações, expressa a aceitação das normas da política de descentralização do governo federal. Essa elevada taxa de adesão dos governos locais à NOB/96 é, de acordo com Arretche (2003, p.341), “expressão dos efeitos cumulativos do longo processo de implantação da descentralização na saúde no Brasil, mas também dos incentivos à adesão envolvidos em suas regras”. Segundo a autora, duas são as principais razões para esse resultado. Em primeiro lugar, as novas regras para as transferências de recursos federais acrescentavam recursos aos cofres da maioria dos municípios e em segundo lugar “o Ministério da Saúde foi capaz de conferir credibilidade ao cumprimento de seus compromissos com os governos locais” (ARRETCHE, 2002, p. 341). Segundo Levcovitz et al. (2001, p.284) “o expressivo processo de habilitação, principalmente dos municípios, resultou em um marcante aumento das transferências automáticas do fundo nacional para fundos de saúde das esferas subnacionais, em substituição à lógica de pagamento por produção de serviços, do gestor federal direto aos prestadores”. De acordo com os autores, o número de municípios recebendo recursos “fundo a fundo” aumentou significativa de 1997 (144 municípios) para 1998 (5049 municípios). Sendo que, no final de 2000 as transferências diretas entre fundos de saúde, principalmente para os fundos municipais, já correspondiam a 60% dos recursos federais da assistência. Desta forma, constata-se uma significativa mudança das transferências diretas de recursos da esfera federal para a municipal. Em 1992, 72,3% dos gastos em saúde correspondiam à União; 14,9%, aos estados e 12,8%, aos municípios; já em 1998, do total dos recursos federais do SUS, 55,4% foram gastos pela federação, 0,4% pelos estados e 44,2% pelos municípios. Sem dúvida a década de 1990 foi marcada por grandes avanços na área de saúde. Porém, não se havia encontrado ainda uma saída para a dificuldade de financiamento vivida pelo Sistema Único de Saúde praticamente desde sua criação. Como mais uma tentativa de enfrentar a crise de financiamento do SUS foi aprovada no final de 2000 a Emenda Constitucional nº 29 (EC 29), que estabeleceu a vinculação de recursos para ações e serviços 4 públicos de saúde para os três níveis de governo. Segundo o Ministério da Saúde (2005b), a EC 29 propôs enfrentar tanto as dificuldades referentes aos recursos destinados a saúde tradicionalmente insuficientes e inferiores aos alocados em todo país quanto a necessidade de estabilização do financiamento, de modo a se evitar a descontinuidade de ações, serviços e investimentos. Esse instrumento permitiu que a previsão constitucional de responsabilidades compartilhadas fosse efetivamente concretizada. Para a União, os recursos destinados à saúde passaram a ser corrigidos pela variação nominal do Produto Interno Bruto – PIB. Para os estados, Distrito Federal e municípios o montante mínimo de recursos aplicados em saúde deve corresponder a um percentual da receita dos impostos e transferências constitucionais e legais. Este percentual foi gradualmente aplicado até alcançar 12%, para os governos estaduais e distrital, e 15%, para os governos municipais, de 2004 em diante (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005b, p. 2). Após a implantação da EC 29 observa-se um aumento crescente dos recursos aplicados em saúde pelas três esferas governamentais (Tabela 1). Os gastos dos três níveis de governo passaram de aproximadamente 34 bilhões em 2000 para 53 bilhões em 2003, o que corresponde a um aumento de cerca de 57%. Observa-se que os estados e municípios tiveram um aumento de quase 100% na aplicação de recursos em saúde, no período apresentado. Os percentuais de crescimento dos recursos federais foram mais homogêneos que nos demais níveis de governo. TABELA 1 - Despesa com Ações e Serviços Públicos de Saúde por Nível de Governo, 2000 a 2003 2000 2001 2002 2003 2000 2001 2002 2003 Em R$ Milhões Nominais Índice 2000 = 100 União 20.351,5 22.474,1 24.736,8 27.181,2 100,0 110,4 121,5 133,6 Estados 6.313,4 8.269,8 10.309,3 12.224,3 100,00 131,0 163,3 193,6 Municípios 7.403,6 9.268,9 11.759,0 14.218,5 100,00 125,2 158,8 192,0 Total 34.068,6 40.012,8 46.805,1 53.623,9 100,00 117,4 137,4 157,4 Fonte: SIOPS/SCTIE/MS, Notas Técnicas 10/2004 e 09/2005. Em Brasil, Ministério da Saúde (2005b). Já as despesas per capita com saúde dos três níveis de governo passaram de R$ 200,64 para R$ 303,17, entre 2000 e 2003, o que corresponde a uma variação de 51,1%. Com relação aos recursos federais, a variação foi de 28,2%, para os estados de 85,9% e, para o conjunto dos municípios, de 84,4% (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005b, pág. 4). A coleta de dados realizada pelo Siops, além dos dados relativos à despesa em saúde dos entes federados também contempla os dados sobre a receita, de modo a calcular os percentuais aplicados nos termos da EC 29. Dessa forma, tem-se, na Tabela 2, a participação da despesa com ações e serviços públicos de saúde na receita vinculada, segundo a EC 29, para estados e municípios selecionados. No caso da União, essa participação foi calculada tomando-se a Receita Corrente. Houve uma queda na participação das despesas com ações e serviços públicos de saúde nas receitas correntes da União, passando de 8,1% das receitas correntes, em 2000, para 7,1%, em 2003. Já para os estados, distrito federal e municípios há um crescimento na participação da despesa na receita. Nos estados e distrito federal, esse crescimento evolui de 5 7,1%, em 2000, para 9,6%, em 2003. E para o conjunto de municípios o percentual alcança valores superiores, sendo de 13,9%, em 2000, para 17,4%, em 2003. Esses valores demonstram que os estados, em seu conjunto, ainda estão distantes do percentual de 12% estabelecido constitucionalmente. Já os municípios selecionados, em seu conjunto, alcançaram o percentual mínimo de 15% das receitas de impostos e transferências constitucionais e legais já em 2001. TABELA 2 - Participação da Despesa com Ações e Serviços Públicos de Saúde na Receita Corrente da União e da Receita Vinculada (1) de Estados e Municípios, 2000 a 2003. 2000 2001 2002 2003 Em % da Receita União 8,1 7,8 7,2 7,1 Estados 7,1 5,2 9,0 9,6 Municípios(2) 13,9 15,0 16,6 17,4 Fonte: SIOPS/SCTIE/MS, em Brasil, Ministério da Saúde (2005b). (1) Segundo a EC 29 e Resolução CNS no 322 (2) Para os 4.447 municípios que informaram ao SIOPS, em todo o período 2000 a 2003, com despesa própria positiva. Atualmente a mobilização ocorre pela aprovação do projeto de lei complementar nº 01/2003 que regulamenta a Emenda Constitucional nº 29. O projeto já foi aprovado em todas as comissões da Câmara dos Deputados, faltando apenas a votação no Plenário da Casa para que seja encaminhado ao Senado Federal. A não regulamentação da EC 29 possibilita a introdução de outras despesas de programas governamentais considerados prioritários dentro dos orçamentos para os quais há recursos constitucionais definidos. No que se refere à composição dos gastos com saúde, a introdução do PAB (Piso de Atenção Básica), responsável por alterar a lógica de repasse de recursos federais para o sistema de prestação de ações médico-sanitárias, se constitui, segundo Bodstein (2002, p.406), como “uma medida decisiva na perspectiva da descentralização financeira do sistema de saúde no Brasil, incentivando os municípios a assumirem, progressivamente, a gestão da rede básica de serviços de saúde”. O resultado é que, a partir de 1998, as transferências para a atenção básica mais que duplicaram seu valor, passando de 1,8 bilhões, em 1998, para mais de 5 bilhões em 2004 (BRASIL, MINISTÉRIO DA SÁUDE, 2005a). Criado inicialmente como Piso de Assistência Básica, esse teto era baseado em média calculada sobre a produção do período anterior, gerando um quadro de concentração de renda e desigualdades sociais. A implantação do Piso de Atenção Básica traz como principal mecanismo, na opinião dos autores supracitados, “a transferência regular e automática, traduzida em um repasse federal feito diretamente aos municípios”, o que representa um passo importante no sentido de maior equidade. Para Bodstein (2002), a importante inovação trazida pelo PAB está no incentivo de redirecionar uma parcela dos recursos federais para o custeio de procedimentos básicos em atenção primária, em uma clara tentativa de organizar a porta de entrada da rede municipal de saúde. O PAB, como mecanismo de repasse de recursos a municípios para ações de atenção básica, é composto por uma parte de recursos fixos (PAB-fixo), destinados à assistência básica, e de uma parte variável (PAB-variável), relativa a incentivos para o desenvolvimento de programas executados nesse nível de atenção, como ações básicas de vigilância sanitária, assistência farmacêutica básica, Programa de Saúde da Família (PSF) e Programa de Agente Comunitário de Saúde (PACS). Em setembro de 2004, o Ministério da Saúde aumentou o valor per capita do Piso de Atenção Básica (PAB-fixo) de R$ 10,00 para no mínimo R$ 13,00 por habitante ao ano e no máximo R$ 18,00, para efeito do cálculo do montante de recursos a 6 ser transferido do Fundo Nacional de Saúde aos municípios e ao Distrito Federal. Os repasses são realizados proporcionalmente a população residente por meio do critério per capita. Segundo Bodstein (2002), a adoção do PSF e do PACS é um poderoso mecanismo de indução utilizado pelo governo federal para priorizar a atenção básica. Gerschman (2004, p.420) afirma que “as inovações na gestão local relacionadas à incorporação, especificamente, de programas tais como Saúde da Família e outros são associados à adequação do município às exigências colocadas pelas Normas Operacionais Básicas que regulam a política”. Criado em 1994, incorporando a experiência anterior do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), a institucionalização do PSF ganha evidência significativa com a aprovação da NOB/96, que enfatiza a implantação do PSF, explicando ser ele parte de um conjunto de medidas e iniciativas que visam o fortalecimento da Atenção Básica, segundo os princípios e diretrizes do SUS (MARQUES e MENDES, 2002). Segundo os autores, o estímulo dado pela NOB/96 à implantação do PSF foi significativo: o número de equipes de saúde da família cresceu de 328 em 1994, para 1.623 em 1996 e para 3.147 em 1998, ano que os municípios passam a receber o incentivo financeiro criado pela NOB/96, o PAB. Os efeitos do PAB e dos diferentes incentivos que estimulam os municípios a incorporar os programas que lhes acrescentam a receita financeira é um fato preocupante. A vinculação dos recursos aos programas incentivados pelo Ministério da Saúde não permite o redirecionamento para outros fins na área da saúde, em um contexto no qual os municípios enfrentam situações em que falta o necessário até mesmo para manter sua rede de unidade básica, quanto mais para os demais serviços de atenção à saúde. Isso é, segundo Marques e Mendes (2002, p.171), “o reflexo da política tutelada da descentralização, que ao incentivar a despesa em determinados programas, impede que os municípios definam livremente sua política de saúde, introduzindo o paradoxo da existência da ‘pobreza’ em um quadro de recursos ‘abundantes’ e garantidos pelos incentivos”. Segundo Levcovitz et al (2001): Em especial os incentivos do PACS e PSF estimularam a implantação do modelo de agentes comunitários e médicos de família em um número expressivo de municípios, representando, por vezes, um real estímulo à ampliação da cobertura assistencial e à adoção de praticas inovadoras, mesmo naqueles com uma ampla rede assistencial básica já constituída. Por outro lado, destaca-se o forte poder de indução do nível federal sobre o modelo assistencial a ser adotado nos municípios, observado a partir de então na política de saúde (LEVCOVITZ ET AL, 2001, p.289). Souza (2002) investiga os resultados da descentralização em dois aspectos: primeiro referente à tendência ao maior envolvimento dos governos locais na prestação de serviços sociais e o segundo referente ao debate se a descentralização aumentou o poder de segmentos da sociedade local antes excluídos do processo decisório. O autor chega à conclusão que: As disparidades inter e intra-regionais moldam os resultados da descentralização e das relações intergovernamentais, criando contradições e tensões. As mudanças no ambiente político e financeiro promoveram a emergência de novos atores políticos e de novas instituições de ação coletiva no cenário local [...] (SOUZA, 2002, p.441). Para Bodstein (2002), os incentivos são cruciais para os municípios mais pobres e inteiramente dependentes dos repasses federais, já que eles apresentam capacidade técnica 7 limitada para planejar, organizar e montar uma estrutura de serviços. Já os municípios maiores e com maior capacidade técnica reivindicam maior autonomia na aplicação dos recursos, mas são igualmente dependentes dos repasses federais. Esse argumento é compatível com a pesquisa realizado por Melamed e Costa (2003, p.400), que demonstra que “os municípios de menor capacidade instalada para a oferta de atenção ambulatorial básica no âmbito do SUS foram os mais favorecidos pelos novos mecanismos de transferência propostos pelas NOBs” pois, não prestavam assistência básica à saúde, por não disporem de capacidade instalada e/ou recursos próprios para produzirem serviços na proporção das necessidades da população local. Em pesquisa que avalia as inovações gerencias que se produziram no setor da saúde no processo de descentralização da política de saúde (Gerschman, 2001), apresenta resultados extremante diferenciados. Em alguns municípios, o tipo de inovação gerencial incorporada significa um claro avanço no processo de descentralização e implementação do SUS através de iniciativas da própria gestão municipal, indo além das diretrizes federais/estaduais, injetando recursos orçamentários próprios do município na implementação da política de saúde. Enquanto em outros, observa-se a implantação de programas e experiências formuladas exclusivamente no nível federal/estadual que são incorporadas pela gestão municipal como uma maneira de injetar recursos externos – principalmente do nível federal – no município (GERSCHMAN, 2001, p.430). Desta forma, apesar dos avanços do processo de descentralização da saúde, a forte possibilidade de indução dos governos central, por meio dos recursos financeiros, constitui-se numa principal limitação ao desenvolvimento de iniciativas locais inovadoras. Em 2006, após 17 anos de implantação do SUS, cabe se questionar: até que ponto os secretários municipais de saúde foram capazes de adaptar-se às novas responsabilidades gestoras e conseguiram ir além do que foi proposto pelo governo central, ao implementarem iniciativas inovadoras? O processo de descentralização da década de 1990 foi caracterizado fortemente por um padrão de relações intergovernamentais verticalizado entre União e Municípios com baixa inserção da esfera estadual e sem nenhuma interface com a questão da regionalização. Por essa razão, foi instituída em 2001 uma estratégia de reconfiguração do modelo de descentralização adotado pelo SUS até então, publicada pela Norma Operacional Assistência à Saúde (NOAS), reeditada em 2002. Segundo Ouverney (2005) essa norma “propunha a construção de um modelo de gestão em rede desenvolvido em torno de dois eixos estratégicos: a articulação regional de municípios adjacentes e o planejamento integrado das políticas de saúde sob coordenação do gestor estadual”. Segundo o autor, A articulação regional de municípios adjacentes envolve a delimitação de unidades fundamentais de integração intermunicipal, que são as regiões/ microrregiões de saúde e os módulos assistenciais, a partir das quais serão estruturadas as funções relativas ao conjunto da atenção à saúde envolvendo a organização e gestão do sistema, a alocação de recursos e a articulação das bases de provisão de serviços por meio de fluxos de referência intermunicipais. O planejamento integrado das políticas de saúde sob coordenação do gestor estadual envolve três aspectos principais no estabelecimento da regionalização que são a concepção, implantação e monitoramento do 8 Plano Diretor de Regionalização – PDR, o desenvolvimento de uma estratégia de obtenção de racionalidade econômica no emprego de recursos e o estabelecimento de um pacto de compromisso entre o gestor estadual e os gestores municipais (OUVERNEY, 2005, p. 163). A articulação dos municípios por meio da criação de Consórcios Intermunicipais de Saúde, presente na NOAS 2001, tem se apresentado em diversas regiões do país, segundo Marques e Mendes (2002, p.2002), “como o instrumento mais utilizado para a implementação do processo de municipalização da saúde e pode estar se constituindo na forma de racionalização na qual se encaixa o modelo de atenção à saúde”. Os impasses verificados no processo de implantação das diretrizes da NOAS 01/02 motivaram reflexões em torno de uma nova estratégia regulatória para orientar um novo formato de descentralização do SUS, as quais, após amplos debates entre os atores governamentais e representantes da sociedade civil, foram expressos e tornados oficiais mediante o estabelecimento do Pacto pela Saúde 2006. O documento das Diretrizes do Pacto pela Saúde em 2006, foi publicado na Portaria/GM nº 399, de 22 de fevereiro de 2006 e que contempla o Pacto firmado entre os gestores do SUS, em suas três dimensões: pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Este Pacto representa, portanto, o resultado da luta e fortalecimento dos gestores do SUS, como fortes atores políticos, representados nas Comissões Intergestores e nos Conselhos de Secretários de Saúde. Dentre as mudanças significativas para a execução do SUS apresentadas nesse Pacto pela Saúde, ressalta-se: - - a substituição do atual processo de habilitação, conforme estabelecidos na NOB/96 e NOAS/2002, pela adesão solidária aos Termos de Compromisso de Gestão; a Regionalização solidária e cooperativa como eixo estruturante do processo de Descentralização. Nesse novo formato de regionalização a preponderância do gestor estadual na coordenação das atividades é substituída pela ampliação do processo de ação colegiada dos gestores municipais, que emerge de um processo de pactuação e articulação intermunicipal na busca pela realização de objetivos comuns. Para tanto, foram estabelecidos como mecanismos de gestão regional os Colegiados de Gestão Regional, as Câmaras Técnicas Permanentes e grupos eventuais de trabalho. O gestor estadual também se encontra presente nestes mecanismos; e a integração das várias formas de repasse dos recursos federais. O novo formato do sistema de financiamento objetiva reunir os diversos instrumentos setoriais existentes e gerar um sistema unificado em torno de uma quantidade limitada de blocos de financiamento. Este formato proposto permite aos Gestores de Saúde maior flexibilidade no manejo dos recursos financeiros, reduzindo assim o papel indutor das instancias centrais do SUS, possibilitando maiores iniciativas locais. Como parte da reestruturação do Sistema Único de Saúde, o Pacto pela Saúde também destaca a importância do fortalecimento do processo de participação e controle social na área da saúde. A democratização do Sistema Único de Saúde sempre foi a bandeira principal do Movimento de Reforma Sanitária, possuindo um projeto de saúde inserido em uma política de construção da democracia que visa à ampliação da esfera pública, à inclusão social e à redução das desigualdades. 9 3.2 A participação social na saúde O projeto de Reforma Sanitária de cunho democratizante introduziu um modelo de pacto federativo que privilegiou a participação tanto em relação à gestão compartilhada entre Estado e sociedade quanto ao desenvolvimento de uma relação cooperativa dentro do próprio espaço estatal, entre os entes governantes. Neste sentido foram criadas as Comissões Intergestores Bipartites (CIBs), entre o Estado e os Municípios, e a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), entre a União, os Estados e os Municípios. Desta forma, o governo federal e os governos estaduais são impedidos de estabelecer unilateralmente as regras de funcionamento do SUS que afetam os governos locais. Os gestores do SUS também estão representados no Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), no Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) e nos Conselhos Estaduais de Secretários Municipais de Saúde (COSEMS). A outra grande inovação democrática introduzida pelo Sistema Único de Saúde foi a criação de mecanismos de institucionalização da participação da sociedade civil na gestão das políticas públicas, nos três níveis de governo - os Conselhos e as Conferencias de Saúde. Na área de saúde, os conselhos encontram seu antecedente mais remoto em 1937, quando a Lei 378, de 13 janeiro, institui o Conselho Nacional de Saúde (CNS), dando-lhe a atribuição de, junto com o Conselho Nacional de Educação, “assistir” o ministério. A representação no Conselho era controlada pelo Poder Executivo, fazendo com que a idéia de participação da sociedade por meio de representações autônomas de seus setores organizacionais passasse longe do CNS de então. Dessa forma, o CNS constituiu-se em um órgão técnico com funções normativas, enquanto sua legitimidade funda-se no próprio Estado, na medida em que seus membros, direta ou indiretamente, dependem da indicação dos detentores do Poder Executivo (CARVALHO, 1995). No início da década de 1970, foram tomadas medidas no sentido de estimular o envolvimento da “comunidade” no setor saúde. Segundo Cortes (2002, p.26), “as primeiras medidas nesse sentido, no entanto, foram implementadas na área de saúde pública, cujos serviços destinavam-se àquela parcela da população excluída do acesso a serviços de saúde previdenciários”. Nesse sentido, a Conferencia Nacional de Saúde, em 1975, aprova a tese da “participação popular” como estratégia ao sucesso das ações de saúde a serem implementadas sob a responsabilidade dos níveis estaduais, regionais e municipais (PASSOS, 1995). Como proposta ambiciosa dessas iniciativas inovadoras no setor saúde surge em agosto de 1980 o Prev-Saúde (Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde), por meio de mecanismos interministeriais, geridos pela OPAS (Organização Panamericana de Saúde). Segundo Oliveira e Teixeira (1986), o Prev-Saúde foi criado com vista à reestruturação e ampliação dos serviços de saúde, compreendendo também as áreas de saneamento e habitação. Os autores identificam esse programa como o ápice da “crise ideológica” da Previdência, “é um espelho das contradições que atravessa a sociedade brasileira neste momento: gestado como projeto tecnocrático de cunho progressista [...]”. Quanto à questão da participação, Carvalho (1995) salienta que o Prev-Saúde, em sua versão original, dá um tratamento inédito ao tema. Segundo Oliveira e Teixeira (1986) o programa considera a participação, articulada à proposta de democratização da sociedade como um todo, “um componente fundamental do desenvolvimento político da sociedade [...] devendo permear todos os processos sociais que se desenvolvem no país”, não podendo ser reduzida à necessidade de obter apoio/consentimento comunitário ou diminuir custos. Desde meados da década de 1970 desenvolvem-se “por fora” do Estado diversos movimentos reivindicatórios nas periferias urbanas tematizados pela questão saúde (CARVALHO, 1995). Para esses movimentos tornava-se necessário uma reorganização do sistema público de saúde no sentido de uma maior democratização da política, 10 descentralização do poder, universalização do acesso e integração. Segundo Cortes (2002), a reforma do sistema público de saúde era almejada de forma diferente: Para os que defendiam a redução do tamanho do Estado e da proporção de gastos com proteção social pública, o objetivo principal era o corte de custos. Em contraste, aqueles que defendiam a democratização do acesso a serviços e a ampliação do controle estatal sobre os sérvios financiados com recursos públicos, ressaltavam a importância de estimular a participação dos usuários (CORTES, 2002, p.29). A proposta dos “oposicionistas” de se ter uma maior participação dos usuários é uma proposta de grande transformação que não se limita a sua forma isolada, mas sim caminha em direção a uma participação no poder. Com a criação em 1976 do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e em 1979 da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), a questão da democratização ganha destaque especial. O Movimento Sanitário surge no cenário como catalisador da mobilização de profissionais de saúde e de diversas forças políticas de esquerda, em favor da democratização do sistema de saúde. A legitimação dos princípios e da doutrina do Movimento da Reforma Sanitária foi expressa, em 1986, na VIII Conferência Nacional de Saúde, que reuniu pela primeira vez uma gama diversificada de representantes sociais de todo o País (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). O resultado de toda essa luta do movimento sanitário está representado na Constituição de 1988. No seu artigo 198, da Seção II, a questão da participação aparece como uma das principais diretrizes do Sistema Único de Saúde: “as ações e serviços de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade”. Segue-se a Constituição de 1988, as Leis Orgânicas da Saúde – Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990 - que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, ao mesmo tempo em que define os parâmetros para o modelo assistencial e estabelece os papéis das três esferas de governo – e a Lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990 - que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde. O seu artigo 1º reza: “Art. 1º - O Sistema Único de Saúde – SUS de que trata a Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990, contará, em cada esfera de governo, sem prejuízo de funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas: I – a Conferencia de Saúde, e II – o Conselho de Saúde”. 11 No que se refere a Conferência de Saúde, a Lei define que esta se reunirá a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais, com o objetivo de avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes. Quanto ao Conselho de Saúde, a Lei 8.142 define seu caráter permanente e deliberativo, com a função de atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera de governo. Com a função de exercer o controle social do SUS, os Conselhos de Saúde têm composição paritária, sendo 50% do número total de conselheiros representantes dos usuários e os outros 50% divididos igualmente entre representantes dos trabalhadores de saúde e entidades ou instituições de prestação de serviço público, privado, filantrópicos, desde que contratados ou conveniados ao SUS e governo. Cria-se portanto, um espaço institucionalizado de participação da sociedade civil na esfera estatal. Os Conselhos de Saúde, agora caracterizados como Conselhos Gestores de Saúde, ganharam caráter deliberativo, não são mais um órgão técnico normativo como o Conselho Nacional de Saúde criado na década de 1930, com pouca importância para a vida setorial. Esses Conselhos de Saúde foram a grande inovação da década de 1990. Em pesquisa a que responderam 1/3 do total nacional de secretários de saúde, 75,2% identificaram o Conselho Municipal de Saúde como a força social mais importante. Esse foi considerado, também, o mais importante procedimento para definição de prioridades e o segundo em relação à prestação de contas, sendo o primeiro a prestação de contas ao prefeito (FLEURY, 1997). A partir da década de 1990 vê-se uma proliferação dos Conselhos Municipais de Saúde em todo o Brasil. De acordo com Carvalho (1995), no ano de 1993, foram cadastrados 3376 Conselhos de Saúde no Brasil, sendo que 2108 ou 62% (dos cadastrados) revelaram dispor já de Conselho de Saúde constituído. Em pesquisa mais recente, Carvalho (1997) volta a acentuar o fenômeno da proliferação dos conselhos: “em julho de 1996, uma estimativa [...] sugere que cerca de 65% do universo dos municípios brasileiros dispõem de Conselhos [...] isso significa a existência de algumas dezenas de milhares de conselheiros, número equivalente ao de vereadores” (CARVALHO, 1997, p. 153-154). Já em 2006, segundo o Cadastro de Conselhos de Saúde (2006), praticamente dos os municípios do Brasil possuem Conselhos de Saúde. Dos 5564 municípios brasileiros, 5554 tem seus Conselhos cadastrados no Ministério da Saúde, ou seja, apenas 10 municípios não foram cadastrados. 4 – Considerações finais sobre a descentralização e a participação social no sistema público de saúde O processo de descentralização e de participação da sociedade nas políticas públicas de saúde trouxe grandes avanços para o sistema de saúde, mas também, muitas limitações. É um processo constante de luta pela transformação dos princípios constitucionais inovadores em práticas políticas eficazes. Os avanços da descentralização da saúde se devem principalmente à publicação das Normas Operacionais Básicas (NOBs). No entanto, a adesão dos municípios ao SUS expressos nas NOBs foi fortemente marcada pela indução dos governos federais por meio dos incentivos financeiros. A indução via incentivos ao mesmo tempo em que fere a autonomia local, desobriga esses níveis de buscarem alternativas próprias de condução dos sistemas de saúde, limitando a possibilidade de inovações significativas. O Pacto pela Saúde de 2006 trás 12 uma nova proposta de transferência financeira que propõe uma flexibilização do processo e ampliação da autonomia local. No entanto, as possibilidades de expansão do sistema esbarram nas restrições financeiras do modelo econômico vigente. Atualmente a mobilização ocorre pela regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 – esta impede que sejam introduzidas outras despesas de programas governamentais considerados prioritários dentro do orçamento da saúde, onde há recursos constitucionais definidos - e pela redução do percentual da DRU (Desvinculação das Receitas da União) que, alegando maior flexibilidade ao governo central, desvincula 20% dos recursos constitucionalmente destinados à área social. O que o debate atual tem apresentado a respeito da participação da sociedade é que apesar da criação de novos mecanismos institucionais de participação, como os Conselhos Municipais de Saúde, terem representado uma democratização do processo ainda é difícil constatar sua eficácia nas políticas públicas. A operacionalização dos Conselhos Municipais de Saúde esbarra na falta de um amparo legal que obrigue o executivo a acatar as decisões dos Conselhos (normalmente nos casos em que essas decisões venham a contrariar interesses dominantes). A tradição de participação e de cultura cívica da sociedade brasileira, bem como o fortalecimento dos canais de participação também podem ser apontados como problemas para o funcionamento dos Conselhos de Saúde. Os canais de participação permitem que os interesses de cada cidadão possam ser levados às instituições da sociedade civil que por sua vez podem criar condições de interação com o poder público local formando assim a esfera pública, onde as decisões são tomadas segundo os objetivos comuns. Toda essa discussão sobre a participação da sociedade na gestão pública conduz a uma série de questões ainda a serem resolvidas. Porém, isso não impede que se reconheçam os Conselhos Municipais de Saúde como espaços de ampliação e democratização da gestão estatal, que possibilitam a constituição de identidades coletivas e sujeitos políticos. 5 – Referências Bibliográficas AROCENA, José. Descentralización e iniciativa, una discusión necesaria. Cuadernos del CLAEH. Revista Uruguaya de Ciencias Sociales, no. 51, 2ª série, Ano 14, pp.43-56, 1989. ARRETCHE, Marta. Financiamento federal e gestão local de políticas sociais: o difícil equilíbrio entre regulação, responsabilidade e autonomia. Ciência & Saúde Coletiva. v.8, n.2, p.331-345, 2003. ARRETCHE, Marta. Relações federativas nas políticas sócias. Educação & Sociedade. Campinas, v.23, n.80, p. 25-48, set. 2002. BODSTEIN, Regina. Atenção básica na agenda da saúde. Ciência & Saúde Coletiva. v.7, n.3, p. 401-412, 2002. BRASIL, Constituição federal. Título VIII, da ordem social. Seção II, da saúde. Artigo 196. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.saude.gov.br>. Acesso em 15 fev. 2006. BRASIL, Lei n. 8.080, 19 set. 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.saude.gov.br>. Acesso em: 4 jul. 2005. BRASIL, Lei n. 8.142, 28 dez. 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde -SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos 13 financeiros na área de saúde e dá outras providencias. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.saude.gov.br>. Acesso em: 15 fev. 2006. BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria Executiva. Caderno de informação de saúde, 2005. Disponível em <http://tabnet.datasus.gov.br >. Acesso em: 14 ago 2005a. BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Siops. A ampliação da EC 29: apresentação dos dados do Siops, 2000 a 2003. Brasília: Ministério de Saúde, 2005b. CARVALHO, Antônio Ivo de. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de janeiro: FASE/IBAM, 1995. _____. Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária como reforma do Estado. In: FLEURY, Sonia. Saúde e Democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. CARVALHO, J.; CASTRO, R.; REGO, V.; MASSOQUETTE, B. B. Conselhos municipais: sua contribuição para o desenvolvimento local. In: Encontro Nacional dos Estudantes de pós-graduação – ENANPAD, 1999, Foz do Iguaçu. Anais...Foz do Iguaçu, 1999. CD-ROM. CORTES, Soraya Maria Vargas. Construindo a possibilidade da participação dos usuários: conselhos e conferencias no Sistema Único de Saúde. Sociologias. Porto Alegre, ano 4, n. 7, jan/jun 2002. p. 18-49. COUTTOLENC, Bernard F.; ZUCCHI, Paola. Gestão de Recursos Financeiros. São Paulo: Petrópolis/USP, 1998. FLEURY, Sonia. Saúde e Democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. _____. Democracia, poder local y ciudadania em Brasil. In: GOMÀ, Ricard; JORDANA, Jacint [org.] Descentralización y políticas sociales en América Latina. Barcelona: Fundació CIDOB, 2004. _____. Democracia, Descentralização e Desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. GERSCHMAN, Silvia. Municipalização e inovação gerencial. Um balanço da década de 1990. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.6, n. 2, p. 417-434, 2001. _____. Conselhos Municipais de Saúde: atuação e representação das comunidades populares. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro, n. 20, v. 6, nov/dez 2004. p. 1670-1681. LEVCOVITZ, Eduardo; LIMA, Luciana Dias de; MACHADO, Cristiani Vieira. Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 6, n.2, p.269-291, 2001. MARQUES, Rosa Maria; MENDES, Áquilas. A política de incentivos do Ministério da Saúde para a tenção básica: uma ameaça à autonomiia dos gestores municipais e ao principio da integralidade? Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v.18 (suplemento), p. 163171, 2002. 14 MELAMED, Clarice; COSTA, Nilson do Rosário. Inovação no financiamento federal à atenção básica. Ciência & Saúde Coletiva. v.8, n.2, p. 393-401, 2003. OUVERNEY, Assis Mafort. Em busca dos princípios do SUS: uma análise da estratégia de regionalização da saúde no Brasil à luz da literatura internacional de administração pública sobre redes. Rio de Janeiro, 2005. Dissertação (Mestrado), EBAPE/FGV. Rio de Janeiro, 2005. PASSOS, Iana Maria Campello. Participação popular na gestão pública da saúde: um estudo de caso. Rio de Janeiro: FGV/Ebape, 1995. Dissertação (mestrado) – Escola Brasileira de Administração Pública. SOARES, José Arlindo & GONDIM, Linda. Novos modelos de gestão: lições que vêm do poder local. In: SOARES, José Arlindo & BAVA, Silvio Caccia (Orgs). Os desafios da gestão municipal democrática. 2 ed. São Paulo: Cortez, p. 61-96, 2002. SOUZA, Celina. Governos e sociedades locais em contextos de desigualdades e de descentralização. Rio de Janeiro, Ciência e Saúde Coletiva, v.7, n.3, p.431-442, 2002. 15