Crónica (2) Todos compreenderão que um professor de técnicas de expressão e comunicação em língua portuguesa esteja atento à reflexão que se vai produzindo sobre como comunicamos na língua que é a nossa, mesmo que essa reflexão não seja proveniente de domínios propriamente linguísticos. No que me diz respeito, há muito que me interessam as reflexões dos escritores africanos de expressão portuguesa. Sigo com particular interesse a reflexão que o escritor moçambicano Mia Couto vai publicando em livros, jornais ou revistas. Nesta crónica, evidentemente, apenas poderei abordar um assunto, que, no meu entender, deve contraporse à normatividade a que o professor de técnicas não pode deixar de fazer apelo. É, de resto, por causa dela que o professor de técnicas tem a fama de ser intransigente, de não “deixar passar uma”. O assunto de hoje é a ‘transgressão poética’. Face à normatividade e à fama de intransigente do professor de técnicas, muitos compreenderão mal este seu interesse. Mas explico, em primeiro lugar, a ‘transgressão poética’, defendida teoricamente e colocada em prática por Mia Couto. Não devo abusar das citações, mas devo anunciar que elas serão retiradas do mais recente livro de Mia Couto, publicado pela editora Caminho em Janeiro de 2009 – E se Obama fosse africano e outras interinvenções. (Não há gralha neste título, é mesmo assim.). Logo no título, a ‘transgressão’. Quem folhear a obra constatará que se trata de uma recolha de palestras, de intervenções proferidas em ocasiões e lugares diversos pelo autor. Em vários momentos da obra se encontra justificada a ’transgressão’ presente no título. Para Mia Couto, a «transgressão poética é o único modo de escaparmos à realidade» (p. 115). E esta faculdade é permitida pela própria língua, na medida em que ela não «serve» apenas para comunicar, ela faz-nos ser (p. 16). 1 Assim vistas as coisas, ‘transgressão poética’ e normatividade não são incompatíveis? Como pode o professor de técnicas constituir a primeira num dos seus interesses e ser intransigente no que à normatividade diz respeito? A resposta a estas questões sobre a admissibilidade da ‘transgressão’ surge clara e rapidamente: a ‘transgressão’ não se confunde com o erro, embora o erro seja também uma transgressão. No erro há desconhecimento. No erro há descuido. Na ‘transgressão’ existe um propósito. No título, leio, por exemplo, a palavra ‘invenção’, que penso poder retratar aquilo que o autor produziu ao proferir as suas palestras, as suas intervenções. Esclarecidos, portanto. O dever do professor de técnicas não se confina, pois, ao apelo à normatividade no que diz respeito ao uso da língua. Quanto à ‘transgressão poética’, Mia Couto é sempre uma ajuda preciosa para o professor de técnicas. Digam-me se ele tem ou não tem razão… Estamos todos amarrados aos códigos colectivos com que comunicamos na vida quotidiana. Mas quem escreve quer dizer coisas que estão para além da vida quotidiana. Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitámos tão pouco. (COUTO, 2009: 16) Carlos Castilho Pais 2