O ETHOS DISCURSIVO NO JORNALISMO MUSICAL: ENTREVISTAS DIGITAIS
Camila Cristina de Oliveira Alves (UNESP-FCLAr)
[email protected]
Introdução
O objetivo deste trabalho é observar como o ethos discursivo é construído e
trabalhado em sites que veiculam informação cultural, matérias voltadas para o jornalismo
musical no gênero entrevista. Os dados em que baseamos nossa reflexão foram coletados das
revistas Bravo! e Rolling Stone, em suas versões online, além de uma matéria extraída do
caderno “Ilustrada” do jornal Folha de S. Paulo, no site FOLHA.com.
Revistas e jornais atualmente têm mantido sites na internet nos quais divulgam
matérias do conteúdo impresso de modo resumido, dessa forma há uma rede de informação
pela qual a empresa de comunicação pode divulgar seu material. Procuramos observar nesse
tipo de matéria, a diferenciação no ethos e estilo, por meio da contextualização e do públicoalvo de cada um, ora voltado a jovens, ora a adultos, ou ainda, um público mais erudito.
Observamos também como o sujeito da enunciação cede a voz ao artista entrevistado, mas ao
mesmo tempo, continua sendo o manipulador do discurso, imprimindo em sua fala opinião e
ideologia, arquitetando o discurso a seu modo e atuando como mediador entre artista e leitor
(destinatário) na construção do sentido, de modo que o ethos se torna nosso principal foco.
Para realizar esse tipo de análise dispomos de conceitos provindos da filosofia bakhtiniana a
cerca do discurso, bem como outros autores, como a Profª Drª Norma Discini da Universidade
de São Paulo, que apresenta em sua obra discussões acerca do gênero jornalístico, e
Maingueneau, já que segundo este último o ethos é deduzível de uma maneira de dizer e
emerge do dito, e é justamente nesse modo de dizer que reside o efeito de identidadeidentificação; já que, ao se reconhecerem, enunciador e enunciatário se reconstroem
mutuamente, o que demonstra certas regularidades a respeito de um determinado olhar sobre
o mundo.
Enunciação, ethos e discursividade
De acordo com Discini (2003), o jornal deve ser pensado como uma totalidade de
discursos, o conjunto de mais de um texto, que supõe uma unidade de sentido. De modo que
há uma depreensão de um “eu” pressuposto a uma totalidade enunciada. A presença desse
“eu” no discurso demonstra seus valores implicitamente sob a responsabilidade do “narrador”,
havendo uma espécie de referencialização no enunciado por meio de “apreciações
moralizantes”.
Após a definição acima, poderia se colocar em pauta que duas das três reportagens
coletadas em nosso corpus se tratam de entrevistas, dessa forma não poderiam estas serem
analisadas segundo esses conceitos de enunciação de um “eu” implícito, já que esse “eu” cede
voz ao entrevistado. Entretanto, nos pautamos na ideia de que “a língua no seu uso prático, é
inseparável de seu conteúdo ideológico” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009, p.99) e, sabendo
que o jornalista é quem edita as falas do entrevistado1, podendo censurá-la e reinterpretá-la a
seu modo, pode-se afirmar que sua ideologia e “apreciações moralizantes” também se
encontram presentes nessa outra voz do discurso. “É preciso depreender o autor implícito a
uma totalidade, como um sujeito que não só reorganiza o mundo a seu modo, como é
arquitetado pelo próprio discurso.” (DISCINI, 2003, p.111)
1
“Todo enunciado [...] é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve),
isto é, pode ter estilo individual.” (BAKHTIN 2003, p.265).
A obra bakhtiniana propõe um estudo dialógico da linguagem que pode propiciar a
reflexão sobre o diálogo que se produz entre enunciador e destinatário de um enunciado e
entre enunciadores e o contexto sócio-histórico em que se enunciam. “A situação social mais
imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir
do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009, p.117).
Partindo dessa ideia, analisamos que as três revistas das quais extraímos os dados para esta
análise (vide Anexos) moldam seus discursos de acordo com o leitor (destinatário) e, a fim de
estabelecer um diálogo com o público-alvo, cujas ideias simpatizam com a revista, moldam
seus discursos visando à comunicação bem sucedida com esse auditório. Assim, esse ethos
fala enquanto se cumpre um simulacro de cumplicidade de saber partilhado entre enunciadordestinatário, firmando um partilhamento pressuposto de informações com o leitor criando um
efeito de sentido que atua na identificação do leitor pela revista e/ou jornal.
O efeito de identidade firma-se no todo e nas partes, de modo que um
conjunto de procedimentos recorrentes na construção de duas ou mais
páginas de determinado caderno de um jornal constrói um sentido comum a
esse jornal. Esse efeito pressupõe outro, o da identificação ou o do
reconhecimento. Ao se reconhecerem, enunciador e enunciatário se
reconstroem mutuamente. Por meio de estereótipos identificadores, ambos
os estrategistas discursivos procedem a uma interação concertada [...] Os
estereótipos referidos radicam-se em regularidades imanentes, como resposta
a uma regularidade de um determinado olhar sobre o mundo.
(DISCINI, 2003, p.111)
Relação enunciativa (identidade-identificação/revista-leitor): construção do sentido e do
estilo2 no texto
Segundo Bakhtin, o enunciador determina o estilo de seu discurso levando em conta
a especificidade de um dado campo de comunicação discursiva, inclusive no que diz respeito
à composição pessoal dos seus participantes.
Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui um auditório
organizado de uma certa maneira e consequentemente um certo repertório de
pequenas fórmulas correntes. A fórmula estereotipada adapta-se, em
qualquer lugar, ao canal de interação social que lhe é reservado, refletindo
ideologicamente o tipo, a estrutura, os objetivos e a composição social do
grupo. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2009, p.130)
Nossa análise demonstra que cada uma das reportagens coletadas dirige-se a um
público-alvo diferente, de acordo com o que veremos a seguir.
Iniciando nossa leitura pela Revista Bravo!, já pode-se observar que esse tipo de
reportagem se difere das demais por se tratar de uma crítica musical e não de uma entrevista.
O próprio autor se auto-intitula crítico, de acordo com a última frase da matéria “Pedro
Alexandre Sanches é crítico de música”. Ainda que em alguns trechos o autor ceda voz ao
entrevistado, pode-se afirmar que o sujeito desse discurso se apresenta de modo mais retórico,
pois é isso que se esperado pelo leitor dessa revista, cujas características estão em crítica
literária, musical e de artes em geral.
A proposta desse discurso é apresentar o público ao artista e seu trabalho, mas de um
modo crítico.
2
Para Bakhtin, “estilo é o conjunto de procedimentos de acabamento de um enunciado.” (FIORIN, 2008, p.46)
Vejamos os seguintes trechos: “A habilidade e a inteligência exibidas em seu cantofala são de fato impressionantes. A partir de um universo (só) aparentemente caótico de
informações e referências.” e “[...] o músico leva o hip hop adiante em várias frentes. Ainda
que muitas de suas composições não abdiquem da crítica social que caracteriza o gênero,
Emicida lança mão de rimas mais elaboradas, de um canto mais dolente, de bases mais suaves
e, às vezes, de um lirismo incomum entre os rappers.”
No excerto acima, grifamos alguns trechos que demonstram a opinião pessoal do
enunciador. Essa opinião invade o discurso de maneira estratégica, a fim de que o destinatário
concorde com essa opinião advinda de um crítico especialista na área e que, segundo podemos
analisar no último trecho, não gosta de outros artistas de rap (que é o gênero musical do artista
da matéria), mas cabe a ele, enquanto crítico, dizer que o músico em questão é um talento à
parte. Essa estratégia discursiva provavelmente convencerá o leitor dessa revista, já que é
exatamente isso que esse destinatário procura nessa revista, críticas artísticas que apresentem
novidades no meio artístico. É possível que muitos leitores não possuam conhecimento de
outros rappers para comparar com a informação dada pelo autor, o que pode fazê-lo acreditar
na referência dada pelo enunciador. Desse modo, as artimanhas discursivas desse discurso
foram bem sucedidas, tendo em vista o seu interlocutor.
A revista Rolling Stone, por sua vez, é claramente direcionada a um público jovem,
que possivelmente conhecerá o rapper que está sendo entrevistado. Desse modo, o
entrevistador dispõe seu discurso de maneira bem mais direta, deixando escapar os palavrões
do artista à edição, além de abordar assuntos polêmicos, mas presentes no cotidiano do jovem
brasileiro. Apesar de sabermos que a revista certamente passou pelo crivo dos editores,
podemos constatar que o público leitor dessa revista espera do texto uma matéria mais
transparente e democrática, e é justamente esse efeito de sentido que o enunciador tentou
passar ao destinatário.
Já no site do jornal Folha de S. Paulo, ainda que o gênero musical abordado também
seja a música rap, encontramos um entrevistado de maior renome e não um rapper, como nas
demais revistas anteriores, sendo essas; uma voltada ao campo artístico e outra ao público
jovem. Dessa vez quem fala sobre o gênero musical não é mais um rapper e sim o cantor
Gilberto Gil, que além de famoso por sua vasta obra musical, na data em que foi feita a
entrevista era ministro da cultura, o que eleva os valores de sua opinião. Desse modo, o ethos
construído pelo jornal Folha de S. Paulo visa atender as expectativas do leitor típico desse
jornal. Apresenta um gênero musical tido como marginal e exclusivo do público jovem,
contudo, sob a ótica de uma autoridade no cenário artístico cultural e musical brasileiro.
Assim, fala-se de um assunto que não é familiar aos leitores desse dado jornal, entretanto ao
selecionar uma pessoa que é recebida com grande respeito pelo leitor, refaz-se a significação.
O rap (música marginal) é mostrado, segundo as estratégias discursivas dessa matéria, como
uma experimentação musical explicada por um músico de renome que interessa ao leitor.
Considerações finais
Procuramos demonstrar neste trabalho, através de nossas análises comparativas
utilizando teorias linguísticas aplicadas aos dados coletados, o funcionamento de algumas
estratégias discursivas presentes no âmbito jornalístico, demonstrando através de exemplos,
como se constrói o ethos nesse gênero discursivo. Desse modo, é possível não somente
observar o efeito de imparcialidade que é fabricado e construído pelos sujeitos desses
discursos, como também a participação do destinatário que é determinante na construção
desse ethos, tornando-se participante na cadeia de interação discursiva.
Referências
BAKHTIN, M./VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de M.
Lahud; Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2006.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de P. Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
DISCINI, N. Jornal: um modo de presença. Galáxia, São Paulo, n.5, p.109-127, abr. 2003.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
GIL, Gilberto. Entrevista com o ministro Gilberto Gil. [abr.2006]. Entrevistador: Adriana
Ferreira Silva. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2006. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u59314.shtml >. Acesso em: 15
nov.2008.
MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
MARCELO D2. Entrevista RS: Marcelo D2. [ago. 2010] Entrevistador: Ricardo Franca Cruz.
Revista Rolling Stone Brasil online. 47 ed. Disponível em:
<http://www.rollingstone.com.br/edicoes/47/textos/4352/>. Acesso em: 29 jan. 2011.
SANCHES, P. A. Emicida: Nossa aposta. Revista Bravo! online. Disponível em:
<http://bravonline.abril.com.br/conteudo/musica/emicida-nossa-aposta-510156.shtml>.
Acesso em: 27 ago.2010.
ANEXOS
ENTREVISTA 1:
Emicida - Nossa Aposta
Influenciado pela eloquência dos pastores evangélicos, o cantor se sobressai nas batalhas
em que rappers se provocam com rimas improvisadas
Por Pedro Alexandre Sanches
Leandro Roque de Oliveira, de 24 anos, veio ao mundo pouco antes do estouro dos Racionais
MC's, a banda mais popular e influente do hip hop nacional. Como boa parte dos garotos de
periferia (nasceu no Jardim Fontalis, zona norte de São Paulo), ele não conheceu o Brasil sem
o discurso indignado de Mano Brown, o líder do grupo. Sobretudo por isso, já na
adolescência, começou a transformar o próprio cotidiano em rimas. Hoje, é estrela ascendente
do rap e um craque quase imbatível nas batalhas de freestyle - competições em que rappers se
desafiam por meio de improvisos. As sucessivas vitórias nessas brigas de palavras lhe
renderam a alcunha de Emicida, neologismo que significa algo como "o matador (ou
homicida) de MCs".
A habilidade e a inteligência exibidas em seu canto-fala são de fato impressionantes. A partir
de um universo (só) aparentemente caótico de informações e referências, Leandro constrói o
sistema lógico sólido que norteia os 25 raps reunidos num disco artesanal (uma "mixtape",
como chama), batizado de Pra Quem já Mordeu um Cachorro por Comida, até que Eu
Cheguei Longe... O jovem artista conta que lançará o primeiro álbum oficial apenas no ano
que vem, mas é difícil ouvir a mixtape e não compreendê-la como um disco pronto, completo
e muito bem fundamentado.
Ali, percebe-se que o músico leva o hip hop adiante em várias frentes. Ainda que muitas de
suas composições não abdiquem da crítica social que caracteriza o gênero, Emicida lança mão
de rimas mais elaboradas, de um canto mais dolente, de bases mais suaves e, às vezes, de um
lirismo incomum entre os rappers. "Hoje de manhã/ atravessando o mar/ vou me perder, vou
me encontrar/ a cada vento que soprar", avisa o refrão de A Cada Vento. Já em Pra não Ter
Tempo Ruim, a base cantada por Mariana Timbó é parte da letra de Suíte do Pescador, de
Dorival Caymmi.
Afável de maneira oposta à que pode sugerir o agressivo apelido, Leandro diz que o rap e
Mano Brown não foram suas únicas referências. "Não posso negar que também cresci
ouvindo a Xuxa na televisão..." Tampouco a influência dos perseguidos pagodeiros dos anos
90 ele teme reconhecer, e o faz sem distingui-los de sambistas de maior prestígio entre a
classe média. "É parte da minha história essa parada, Exaltasamba, Katinguelê, Art Popular,
Negritude Jr., Leci Brandão, Zeca Pagodinho, Martinho da Vila." O rapaz descreve com gosto
um outro ponto de referência de quando era bem pequeno. "Meu pai trabalhava como
pedreiro. Quando ele morreu, em 1991, minha mãe estava sem emprego e começou a levar a
gente aos cultos evangélicos, sem ser evangélica, mais porque depois do culto sempre rolava
um rango. A gente colava na macumba também, onde tivesse comida de graça. Eu achava a
macumba mais divertida, ficava ligado no batuque. Acho que minha noção de ritmo veio dali.
Mas o texto dos pastores, o lance de persuadir as pessoas, acabou me ajudando no freestyle."
Fã de cordéis, Leandro revela total percepção do parentesco maluco entre os seus desafios
improvisados e o "rap" bem mais antigo dos repentistas nordestinos. "Um lado da minha
cabeça me diz sempre que alguém [dos EUA] estava aqui, viu o repente, voltou pra lá e fez o
rap." Ele não usa a expressão "um lado da cabeça" em sentido figurado: "Fazendo freestyle,
com o tempo, o seu cérebro começa a ficar dividido. Várias vezes estou cantando no palco e
minha cabeça está em outro rolê, fico olhando as pessoas, pensando: 'Ó o chapéu desse
maluco, como tem coragem de sair com isso?'. E estou aqui, cantando ou improvisando".
-----Pedro Alexandre Sanches é crítico de música.
ENTREVISTA 2:
Entrevista RS: Marcelo D2
Por Ricardo Franca Cruz
O rapper carioca assume o samba em grande estilo, homenageando o mestre e parceiro
Bezerra da Silva em novo disco solo.
Marcelo D2 presta homenagem a Bezerra da Silva
A carreira solo de Marcelo Maldonado Peixoto está entre as mais bem sucedidas do país.
Depois de cinco discos azeitando a mistura de rap com samba, ele se entrega de corpo, alma e
voz ao mais brasileiro dos ritmos, homenageando um de seus mestres, Bezerra da Silva, em
um disco só de sambas de verdade - sem rimas, scratches, samples ou batidas eletrônicas.
Criticado por grande parte da cena hip-hop, se diz excluído pela imprensa de São Paulo,
cidade que concentra seu maior número de fãs. Marcelo D2 não é Zagalo, mas sentencia:
"Eles têm de me engolir!", correndo à margem das críticas e deslizando suave pelo caminho
do sucesso que escolheu lá atrás, antes de fazer parte do hoje quase lendário Planet Hemp,
"uma banda tensa", segundo o seu mais famoso integrante. É um D2 tranquilo, alguns
casamentos nas costas, quatro filhos e 42 anos, que abre a porta do quarto de hotel, no bairro
paulistano dos Jardins, pausando o videogame. Cervejas depois, ele está à vontade para falar
de drogas, Bezerra da Silva, a volta do Planet Hemp, as diferenças entre rap e samba, a
confusão com os Racionais, as eleições e os sonhos que ainda pretende realizar.
Você já realizou seus sonhos?
Meus sonhos de quê?
Aqueles que você tinha antes de fazer sucesso.
Os sonhos que eu tinha, sim. Mas eu tenho outros, né, cara? Eu sou um sonhador fodido.
Sonho acordado direto, sabe qual é? Minha vida é um sonho legal mesmo... Sei lá, cara, meus
sonhos são outros agora. O que era pra mim antigamente, hoje eu sonho mais pros meus
filhos, tá ligado? Agora em fevereiro, por exemplo, vou com a família toda pra Los Angeles,
pra morar uns dois anos lá. Vai eu, minha mulher, nossos dois filhos, o Luca e a Maria Joana,
e o meu filho mais velho, o Stephan. Lógico, eu tô indo pra fazer um disco de rap lá, cantar
com os caras de lá, mas, porra, tô indo mais por eles, sabe qual é? Pra eles estudarem inglês.
O Stephan tá começando a fazer som, tem banda e tal, vai estudar engenharia de som, tá
ligado?
Ele está com quantos anos?
18.
E as conversas sobre drogas já rolaram?
Já, cara, mas o Stephan é sossegado.
Ele fuma erva?
Maconha ele fuma, cara. Tá com 18 anos, não dá nem pra proibir mais. E quer saber, cara?
Não tenho muita preocupação com isso, não. O Stephan é um moleque muito com a cabeça no
lugar, tranquilão pra caralho. Só não gosta de estudar, mas isso é normal. Ele repetiu o ano
passado.
E álcool ou cocaína?
Eu falo pra ele: "Se quiser experimentar, cara, é comigo. Cuidado aí! Vai cheirar não sabe o
quê, pó vagabundo, essas coisas". Mas é o tipo de coisa, cara, o moleque tem 18 anos, tem a
galera dele, não é uma coisa muito que o pai... Só fico ali do lado, vendo o que tá
acontecendo, com quem que ele tá andando. O Stephan é mesmo muito sossegado, tipo: "Tá
tranquilo, pai. Você acha que eu vou cheirar essa merda?"
Você já foi o usuário de maconha mais notório do país. Como lidar com isso perante os seus
filhos?
Primeiro que meus filhos mais novos nem sabem disso, né, cara? Não pegaram essa época.
Quantos anos eles têm?
A Lourdes tem 11 anos; o Luca, 9; e a Maria Joana, 5. Eu não sou o tipo de pai que proíbo as
paradas, sacou? Com os mais novos é lógico que imponho coisas, limites. Mas com o Stephan
eu não vou proibir nada. Sento com ele e converso. Este ano falei: "Ó, tu repetiu, era pra ter
terminado o ano passado e tu repetiu. Não vou ficar pagando R$ 30 mil, R$ 20 mil de escola
por ano pra tu repetir, tá ligado? Agora, acaba essa porra! Vai pra uma escola mais barata, um
supletivo, de dia, acaba essa porra logo, meu irmão, e aí vê o que tu quer fazer da tua vida.
Quer ser músico? Então vamos investir nisso".
Como surgiu a ideia do disco em homenagem ao Bezerra da Silva, com sambas que ele
gravou?
Quando ele morreu, cheguei no velório e o Zeca [Pagodinho] tava lá, sentado com a
cervejinha aberta. O caixão ali, o Zeca sentado perto, lá no [teatro] Carlos Gomes. Eu cheguei
sozinho, às 10 da manhã, com o olho cheio de lágrima, e o Zeca: "Ô, D2! Ta chorando? Tá
maluco, rapaz? Em enterro de sambista a gente não chora, não! Em enterro de sambista a
gente comemora! Senta aí e pega um copo, parceiro!" Peguei um copo e começamos a beber.
Porra, aí chegou o Dicró contando história: "Esse é um 171 mesmo! Morreu em 17 de janeiro,
17 do 1!" [risos] Aí chega não sei quem, chega outro, e mais outro, e daqui a pouco tava a
maior galera, a gente conversando, contando história do Bezerra. A gente chorava de rir. E no
velório mesmo veio esse papo, tá ligado? "A gente tinha que fazer uma coisa pro Bezerra",
não lembro exatamente quem falou. "Porra, o Marcelo é quem tinha que fazer o disco. Todo
mundo já gravou pra caralho com o Bezerra, todo mundo conhece o Bezerra há muito tempo.
Marcelo era o amigo mais novo dele. Tu tinha que fazer o disco!" Saí de lá, cara, sem
sacanagem, às 7 da noite, bêbado, exausto. Fui pra casa, dormi e sonhei com ele pra caralho.
Sonhei que a gente tava no palco.
E você abraçou essa ideia na hora?
No dia seguinte, eu acordei, peguei todos os meus vinis dele e fiquei ouvindo. Fiz uma lista
das músicas que eu queria gravar dele. Fiquei amarradão, mas também fiquei meio com medo.
Nunca tinha feito um disco cantando e tal. Mas aí, cara, fiquei meio que esperando. Pensei:
"Vai chegar a hora", tá ligado? Porque com todos os meus discos e todos os meus projetos é e
sempre foi assim. Tinha uma música que quase ninguém conhece, e que eu sempre gostei e
dizia para ele: "Essa música foi feita pra mim, não foi feita pra você, não, Bezerra" [cantando] "...partideiro indigesto, sem nó na garganta / Defensor do samba verdadeiro que
nasce no morro, fonte de inspiração / É, eu sou assim, sem papa na língua meu bom camarada,
não soucaôcaô,nemconversafiada/Etambémnãogostode acaguetação / Sei que na minha
ausência os invejosos me malham sem pena e sem dó / Eles dizem até que eu fumo maconha,
que ando com a venta entupida de pó". [risos] É de um disco bem antigo dele. Foi a primeira
música dele que eu pensei em gravar.
Foi difícil para você, que faz rap, cantar samba?
Foi tranquilo gravar a voz, sabia? Mas fiquei um pouco nervoso. Me deu uma rouquidão, cara,
que eu nunca tive na minha vida. Nunca fiquei rouco três dias seguidos.
Insegurança, talvez?
Acho que foi um nervosismo, uma energia estranha. Gravei quatro músicas num dia e fiquei
tão nervoso, cara,
que no dia seguinte não consegui gravar nenhuma.
Ficou de fora algum clássico do Bezerra?
Porra,cara,o Bezerra tem clássico pra caralho![risos]. Tem neguinho que falou: "Porra, tu não
colocou 'Zé
Fofinho de Ogun'?" Tem uma que ele diz: [canta] "Se quiser cafungar ou dá dois vai na
sacristia com o
sacristão", essa também não gravei. Vou te falar: eu fugi um pouco das músicas de pó, cara.
Eu não queria
cantar "Cocada Boa".
Por quê?
Ah, cara, eu tô meio de saco cheio de pó. Não sou contra ninguém nem contra nada. Se quiser
cheirar aí pode
cheirar, tá ligado? E não vou nem falar que eu parei totalmente, que nunca mais. Mas é que
agora eu não gosto
mais dessa balada, todo mundo falando pra caralho, cada um falando de si e ninguém se
entendendo, a mesma
coisa a noite inteira. Aí falei: "Aaaaah, não vou gravar essa, não!" Pó antes era uma parada
mais yuppie, festa de
rico, depois era mais normal e hoje tem pó de 5 [reais], porra! Era uma coisa mais escondida,
tá ligado? Hoje é t
odo mundo no banheiro. Mas aí o Leandro [Sapucahy, cantor, compositor e produtor do
disco]encheua porra do
saco pra gravar "Cocada Boa". Eu gravei a voz dessa meio na má vontade. Aí, quando a gente
acabou, o
Leandro falou: "Beleza, essa daqui tá boa. Agora, faz com vontade que ela entra no disco"
[riso,/i>].
Como você conheceu o Bezerra da Silva?
Conheci a obra do Bezerra muito cedo. Lembro que lá em casa tocava muito Bezerra da Silva,
tá ligado? Era no meu quintal. Meu pai, principalmente, ouvia muito com os amigos. Era mais
coisa de homem. A minha família morava em casa, com quintal e tal, e, antigamente, não
existia essa parada de churrasco. Hoje em dia que tem essa fartura fodida de carne, todo
mundo só quer fazer churrasco. Antigamente, era tudo ensopado, mocotó, rabada, peixada,
feijoada, todas essas paradas, comidas mais baratas. Fazer uma feijoada em vez de churrasco
tu gasta um terço do dinheiro. Ia maior galera lá em casa e eu lembro muito disso, Bezerra da
Silva rolando. Lembro sobre a volta do Planet Hemp que eu queria falar. Primeiro: nós não
somos mais aqueles moleques. Ia ficar ridículo, tá ligado? Pulando no palco igual a
97[risos].Não dá mais, tá ligado? Meio ridículo eu acho, tá ligado? Por mais que eu pule
fazendo o meu som atual, entendeu?
Doem os ossos.
Doe mas costas,doemosjoelhos,dóiaporratoda![risos]. Se fosse um show ou uns shows pra que
a gente se reunisse de novo, pra galera tomar uma cerveja e ver a gente tocan- do de novo, eu
acharia interessante, cara.
Mas, pô, cara, eu tenho um receio tão grande disso.Doem os ossos.
Por quê?
Porque o Planet Hemp foi uma parada daquela época, sacou? Daquelas pessoas que a gente
era. Um disco maconha lançado menos de dez anos depois que a ditadura tinha acabado?
Foda, cara, é uma parada muito importante pra você ficar, sabe qual é?, remexendo. E, porra,
cara, dinheiro não é o caso, tá ligado? Acho que mesmo que se tivesse faltando pra mim ou
pra quem tiver duro, tenho certeza de que ninguém entraria nessa só pra ganhar um dinheiro,
tá ligado? Com o Planet Hemp ninguém vai fazer isso. Todo mundo tem um carinho muito
grande com a banda. E todo mundo consegue se virar fora, sem precisar disso. Ninguém vai
morrer de fome e ninguém vai ficar milionário com o Planet Hemp. Sei lá, tenho medo de
mexer, sabe qual é? E ficar parecendo essas bandas que voltam com os caras velhinhos e os
fãs vão lá e falam: "Puta, que merda! Era tão legal antes" [risos].Melhor que fiquem só com
aquela imagem que, porra, era tão legal antigamente. Mesmo os caras que dizem que
"Marcelo D2 era legal quando era do Planet Hemp" prefiro que continuem pensando assim do
que voltar pro Planet Hemp pra agradar esse tipo de gente. E, outra coisa, cara, o Planet Hemp
dava muito problema. Voltar pra tudo isso, cara? [risos]. A coisa de Justiça, puta que o pariu,
cara! Imagina, a Justiça batendo na minha porta de novo... puta merda, cara! Processos e
processos. E só eu que assinei os processos. Foram 18 processos. O Planet era meu, é meu, né,
cara? O bagulho é meu, eu registrei tudo.
Mas e um show como os Los Hermanos fizeram, abrindo para uma banda como o
Radiohead?
Isso aí é legal. Sei lá, se vem um Rage Against the Machine aí, bota o Planet pra abrir. Ou
Beastie Boys. Ao mesmo tempo, é muito difícil mexer com tudo isso, foi há muito tempo e
era muito intenso, cara. Não é que nem ser Raimundos ou Rappa. Os caras ganharam dinheiro
pra caralho, a gente não. A gente só se fodeu. Tomava porrada da polícia, foi preso, não sei o
que lá. E a gente vendia disco pra caralho, os shows lotavam, mas era uma merda. Não tinha
garantia de que ia ter o show. Ao mesmo tempo, no Planet a gente não tinha essa mentalidade
de fazer sucesso a qualquer custo. Por exemplo, a gente não ia no Faustão porque eu não
queria, tá ligado?
A banda foi chamada?
Três vezes. A única vez que a gente falou que ia, eu disse que a gente ia porque tava
envolvido com o MST - "Mas eu quero levar 50 integrantes do MST, com bandeira do que é é
meio babaca. Quando fui tocar na Daslu, cara, o que caiu de pedrada. Hoje, dez anos depois
tão aí, agora, neguinho indo atrás disso tudo, tá ligado? E fazendo a mesma coisa. Quer dizer,
perdeu dez anos nessa.
Que diferenças você vê entre o povo do rap e o povo do samba?
No rap existe um pouco de vergonha de assumir ídolos, sabe qual é? Parece que tem medo de
babar ovo, de falar: "Esse cara é foda!" Entre os outros rappers ninguém fica falando muito,
né. É muito babaca. Minha mulher falou uma coisa muito, muito séria, cara, que isso é um
prejuízo pro rap, tá ligado? Numa mesma noite a gente foi num baile de rap e no pagode do
Arlindo [Cruz]. Chega no rap, fica todo mundo te olhando de cima a baixo, que tênis você tá,
qual a tua roupa, não sei o que, ninguém vem apertar a mão, sabe, olha pra tua mulher com
um preconceito fodido, tá ligado? - " Olha o cara, tá com a loira..." Pô, chega no samba, os
caras puxam a cadeira pra minha mulher, me dão um abraço que quase quebra a porra das
costelas - "Caralho, D2! Desce um frango à passarinho, desce uma cerveja. Aqui não vai
pagar, não, D2". Então essa relação, cara, é quetinha que ter no rap, de , parece um pouco
babaca esta palavra, mas não é: respeito pelo outro, pelo que o outro tá fazendo, cara.
O que houve entre você e os Racionais?
Ah, cara, foi uma besteira muito grande,sabe qualé? Porque, pô, eu usei um pedaço de uma
música deles e os caras nunca me falaram nada. De repente, vieram falando uma coisa que eu
tinha que ter pago os direitos, não sei o que lá. Aí, pô, saiu uma confusão fodida. Mas, cara,
pra mim isso foi uma besteira fodida, tão grande quanto a que eu fiz com o Caetano. Um tipo
de briga dessas é um puta atraso de vida. Eu fiquei maior chateado porque, pô, sou o maior fã
dos caras, mas eles vieram com essa coisa de querer intimidar na porrada, sabe qual é?
Mas você os procurou?
Lógico que não, cara! Os caras querendo me jantar, querendo me pegar e eu vou atrás? Falei:
"Vou procurar? Vou ligar? Não!" Eu sempre falei que a minha música preferida dos
Racionais é "Voz Ativa", tá ligado? Eu achava aquela música foda. Foi uma das músicas que
me fizeram cantar rap. E eu usei o começo em "Qual É?" Porque eu vi o Guru num show
começando uma r ima cantando Public Enemy e achei demais, cara. Falei: "Caralho, que
sacada!" É tipo uma homenagem, sacou? Pensei: "Vou pegar essa música dos Racionais que
eu acho foda e começar a minha música com ela". Pô, nunca tinha dado problema. Sei lá,
cara, acho que foi alguma outra coisa que não isso.
Você fez os caminhos normais nesses casos?
Cara, eu procurei a editora, que é o caminho legal que eu faço sempre. Se eu sampleio o
Arlindo Cruz, que é meu parceiro, porra, não vou falar assim: "Arlindo! Sampleei você e tal".
Acho uma falta de educação até. Vou lá procurar a e ditora e s e tiver algum problema e a
editora não quiser liberar eu falo pro Arlindo: "Pô, dá um papo lá". Não sei o que aconteceu.
Mas isso aí, eu vou te falar, cara, não é trabalho meu, é trabalho da minha editora com a
editora dos caras. Fiquei meio decepcionado porque eu sempre fui fã dos Racionais. Me senti
um pouco... é... agredido. Mudou um pouco a minha visão sobre a banda. Eu achava os caras
meio intocáveis, os caras que nunca vacilam, sa- cou? Mas acho que comigo deram um
vacilo, cara.
Você segue a Marina Silva no Twitter. Ela é a sua candidata a presidente?
Não é minha candidata. Vou te falar por quê: porque ela é muito religiosa. Tenho medo de
pessoas religiosas. Mas acho que dentro da coerência dela ali foi o que sobrou mesmo, cara,
porque é a que tem um plano legal, tá preocupada com a educação. Mas porra, cara, vou te
falar: se a Dilma ganhar, vou ter que fugir desse país. Não aguento. Imagina a Dilma
presidente do Brasil. O Serra a mesma coisa. Mas eu nunca votei na vida.
Por quê?
Porque eu nunca tive candidato de fato. O Gabeira é o único cara que me tiraria de casa pra
votar.
ENTREVISTA 3:
Leia baixo a íntegra da entrevista concedida por e-mail à Folha pelo Ministro da Cultura
Gilberto Gil. (ADRIANA FERREIRA SILVA)
Folha - O que o senhor acha sobre as letras de rap? Há uma elaboração poética nessas
composições?
Gilberto Gil - Em geral, são letristas muito hábeis, falo dos mais destacados. Como o rap é
ritmo e poesia, poesia e ritmo, as questões da métrica e da prosódia acabam virando
exigências muito óbvias. Por exemplo, os americanos, como o Public Enemy, e vários outros
que começaram a fazer com que o rap se destacasse no mundo. Ainda bem antes, o grupo The
Last Poets, na década de 70, e os jamaicanos do raggamuffin, que, na época, já faziam o que
veio a ser chamado de rap. Enfim, todos eles desenvolveram técnicas muito interessantes,
habilidades de tratar a questão da rima, as rimas de cascata e a prosódia, em geral muito bem
encaixada e dançante, dançando junto com as mudanças de acentuação.
O rap, diferentemente do padrão básico da canção popular, varia muito nas acentuações, na
métrica mesmo, no metro dos versos. Numa hora, há um metro em dez; em outra, um metro
em sete; em outra, um metro em oito. A métrica varia muito, não tem aquela rigidez dos
metros clássicos, como os alexandrinos e os vários outros.
Acho que os letristas de rap desenvolveram uma habilidade muito grande e fazem isso com
muita beleza. Essa é uma característica própria deles, que hoje têm uma excelência em todo
mundo. O rap se tornou uma linguagem muito forte em vários idiomas. O francês tem suas
formas de incidir o rap, o inglês tem outras, variando os vários dialetos, seja da África do Sul,
da Jamaica, dos Estados Unidos. Enfim, o rap ganhou sua diversidade em todo o mundo. Hoje
os letristas de rap têm o domínio sobre a capacidade de variar. É tudo muito variado mas, ao
mesmo tempo, tudo muito amarrado.
Folha - No ano passado, durante uma conversa com o escritor, Paul Auster em Nova
York, Chico Buarque disse que o rap "é o tipo de música que uma vez foi feita, por mim
e por outros, com uma temática social, eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles
falam para sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os tipos de pessoas. Eles
têm algo a dizer muito sério (...)". O senhor concorda com essa opinião?
Gil - Sim, concordo. Eles basicamente procuram passar para as letras e as canções toda essa
vivência, direta ou lateral, que eles têm da vida pobre, da vida difícil, da presença da
violência, da discriminação e do embate constante com setores incluídos da sociedade. O rap
é uma linguagem que basicamente vem prestando serviço a isso, a uma expressão de uma
marginalidade, de uma excepcionalidade, de um mundo social à parte, apartado. Eu não diria
confinado, mas apartado, já que tem brechas para dialogar, para fustigar, para interagir com os
setores incluídos.
A música é uma das formas de interação, uma das formas de dizer, de se comunicar, de
denunciar, de buscar ser ouvido, escutado e atendido. É uma ferramenta forte que, em alguns
casos, pode ser vista como uma arma; em outros, como um instrumento de reivindicação; já
em outros momentos, como discurso mesmo, oratória, tribuna. Há todas essas dimensões.
Folha - Houve um debate na revista eletrônica "Trópico" em que um grupo batizado de
Coletivo MPB levantava a discussão sobre o fim da canção. O senhor acha que a
importância do rap é um sintoma disso?
Gil - Não vejo não. É mais uma forma que vem se somar a tantas outras manifestações de
música. Há várias canções, o rap é uma delas. Eu vejo o rap como uma nova forma de canção,
uma canção mutante, uma canção que descarta alguns elementos da canção anterior e traz
novos elementos. Por exemplo, descarta muito fortemente a melodia, mas acentua o
compromisso com o ritmo.
O rap é uma canção variante, é uma variação da criação da canção. Eu me lembro que a
palavra canto, se eu não me engano, está associada aos recitais dos poetas romanos. Cantar
era recitar poesia. Nesse sentido, o rap é uma forma de resgate, é a coisa mais fiel a essa
forma original, ao conceito original da canção.
Folha - O senhor acha que as letras de rap hoje são acima da média das letras de MPB
atuais?
Gil - Não vejo nada superior ou inferior, são outras formas, outras maneiras de incidir a
palavra e a canção.
Numa letra de rap, como você tem uma cascata de coisas que vão sendo ditas, você acaba
tendo a chance de trabalhar mais extensamente uma idéia... de trabalhar um assunto de modo
mais abrangente. Mas, ao mesmo tempo, o verso da canção continua tendo um poder
extraordinário de concentração de conteúdo e significado. Eu acho que pode se encontrar
coisas de alta e baixa qualidade, tanto na canção, quanto no rap.
Folha - Como foi sua experiência com Rappin'Hood?
Gil - A experiência foi muito boa, tangencial, pois não compomos nada juntos, só cedi uma
canção minha: "Andar com Fé". Ele fez uma versão Zrapeada e juntou seus versos. Foi
bacana, porque adoro ele.
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Camila Cristina de Oliveira Alves (UNESP-FCLAr).