CRÍTICA
LIVROS
A TRANSVALORAÇÃO
REALIZADA
A maldição transvalorada. O problema da civilização
em O Anticristo de Nietzsche, de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Discurso/Unijuí, 2002 (col. Sendas & Veredas), 204 pp.
Oswaldo Giacoia Junior
Num de seus erráticos passeios pelos arrabaldes
da cidade, em profunda solidão noturna, ao depararse com um insólito anúncio luminoso, destacando-se
despudoradamente contra o austero fundo de um
vetusto muro, o personagem-título de O Lobo da
Estepe se pergunta: "Por que deixar aquelas letras
correrem, naquele muro situado numa ruela escura
da parte velha da cidade, àquela hora, com um
tempo tão chuvoso, quando ninguém passava por
ali, e por que eram letras tão extravagantes, tão
fugazes, trêmulas e ilegíveis? Mas, espere! Por fim eu
conseguia ler, uma após outra, várias palavras que
diziam: TEATRO MÁGICO / ENTRADA SÓ PARA OS RAROS/ SÓ PARA
OS RAROS".
Creio que, sob vários aspectos, pode-se comparar O Anticristo, de Nietzsche, com esse luminoso
extravagante de Herman Hesse. Também ele se
projeta sobre um muro, que pode bem ser uma tela:
o muro e a tela do tempo, em que se exibem e de-
marcam as fronteiras da modernidade; ambos são um
enigma, escrito por algum "lobo da estepe" a esgueirar-se furtivamente por ruelas escuras nas mais remotas e tempestuosas noites do espírito; em ambos os
casos as letras são extravagantes e ilegíveis. Isso, no
entanto, apenas para os muitos, para os supérfluos;
não para os raros. Para estes, somente, aquela fachada impenetrável revela, em luminosidade fugidia, as
maravilhas de um teatro mágico. Fernando de Moraes Barros é certamente um desses raros.
Isso já se deixa pressentir pelo título de seu livro,
preciso e certeiro como uma incisão cirúrgica, exato
e rigoroso como a metáfora poética. Afinal, o que
pode ser uma "maldição transvalorada" senão o ápice
da afirmação, a soberana gratuidade da bênção?
Nesse sentido, A maldição transvalorada pode ser a
fórmula concisa e pregnante da heterodoxa tese
central de Barros. Para ele, O Anticristo — maldição
contra o cristianismo não constituiria apenas o prelúdio ou o primeiro livro da tetralogia planejada por
Nietzsche no crepúsculo de sua vida intelectual
lúcida, e que deveria conter sua transvaloração de
todos os valores, pois já realizaria, em vez de preparar, aquela mesma transvaloração: "A hipótese de
que a transvaloração já está pressuposta e, de certa
forma, realizada em O Anticristo está, pois, por ser
justificada. E é justamente isso o que se pretende
levar a efeito" (p. 23).
Daí decorre, como legítima conseqüência, que a
mais estridente e paroxística diatribe do mestre da
polêmica — na qual, aliás, muitos julgaram perceber
os sinais inequívocos do delírio megalômano ou o
supremo esforço de um espírito agonizante na tentativa desesperada de evitar o mergulho da subjetivi-
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dade no abismo da desrazão — deve ser vista como
inseparável da vertente afirmativa e positiva da filosofia nietzschiana: aquela cuja tarefa própria consiste
em instituir novas referências ou tábuas de valor.
Assim é que o autor se propõe a mostrar "que a visão
de mundo incapaz de 'separar o dizer Sim do fazer
Não' se exprime de maneira muito peculiar em O
Anticristo, pois de acordo com nossa hipótese interpretativa é o dizer Sim que acaba, pela própria negação, por ocupar o lugar de destaque em tal contexto"
(p. 23). Será então com o máximo proveito intelectual, assim como com o raro prazer que a boa leitura
proporciona, que o leitor acompanhará Barros em
sua empreitada de sustentar filosoficamente essa
ousada tese hermenêutica, que determina a forma e
o conteúdo de A maldição transvalorada.
Para tornar plausível que O Anticristo — a
despeito da contundência crítica, da artilharia pesada
que mobiliza para fulminar e como que fazer implodir o cristianismo — não deve ser lido apenas em
chave disruptivo-negativa, senão que também num
registro de intensiva positividade e afirmação, a bem
dessa desconcertante plausibilidade talvez possa ser
útil empregar uma metáfora. Nessa obra Nietzsche
procede como se, do tensionamento máximo do arco
espiritual, a seta lançada devesse trespassar a negatividade visceral de todas as modalidades de valoração
extramundanas, não em direção a outras paragens de
além metafísico, mas em certeira linha reta para a
celebração das entranhas da terra; como se à probidade intelectual da consciência moderna não restasse
outra escolha senão consumir-se por inteiro em sua
própria chama — no sentido mais autêntico e pessoal
do termo — para assim fazer brotar, literalmente de
suas cinzas, as primícias de uma nova criatura, de
uma nova figura do humano, ou ainda um novo
horizonte de esperança para a aventura humana na
história. Aliás, é como o formula o próprio Barros: "Se
o propósito geral é ensejar o surgimento de uma
nova tábua valorativa e, assim sendo, um tipo cultural de homem fundamentalmente diverso, pode-se
mesmo dizer que a agudeza da aniquilação deve estar, aqui, a serviço e à altura da tarefa a ser realizada.
A importância e a envergadura do contra-ideal a ser
almejado exigem, pois, que elementos declaradamente condenatórios terminem por confluir em direção à vertente construtiva" (p. 24).
conjunto o autor apresenta o lado destrutivo e
negativo da maldição lançada por Nietzsche contra o
cristianismo, primeiramente apresentando-nos a refutação histórico-psicológica do cristianismo, complementada, na seqüência, com o diagnóstico genealógico dos rumos da civilização no Ocidente. Barros
reconstitui com notável requinte exegético e acuidade filosófica a derradeira crítica de Nietzsche ao
cristianismo eclesiástico, tal como esta se articula em
O Anticristo. Ao fazê-lo, em momento algum elide ou
suaviza a virulência do que Nietzsche considerava
seu mais radical libelo acusatório da moralidade
cristã, mas também traz à tona as finas nuanças, a
multifacetada profusão de perspectivas e planos, a
delicadeza refinada das distinções fundamentais.
Como, por exemplo, aquelas presentes na análise
do tipo psicológico de Jesus de Nazaré — para
Nietzsche, o único autêntico cristão, negado e renegado para que o cristianismo ortodoxo pudesse
triunfar como potência espiritual hegemônica, cujas
supremas referências de valor (e, mais ainda, cujo
modo fundamental de avaliação) configuram o tipo
ideal de homem, desejado e alcançado pelo projeto
civilizatório do Ocidente, nascido da confluência
entre platonismo e cristianismo.
Em sua estrutura, A maldição transvalorada se
equilibra harmonicamente sobre dois conjuntos, cada
um deles constituído por dois capítulos. No primeiro
É à energia impalpável dessa potência cultural,
que impõe como absolutos ao Ocidente não apenas
seus valores, entronizados como referências carde-
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Por essa razão, a minuciosa e competente reconstituição da "psicofisiologia do cristianismo" paroxisticamente negativa — a ponto de culminar
numa "Lei contra o cristianismo", cujo raivoso ímpeto
na detração atinge as raias do intolerável — tem de
ser seguida, na lógica que inspira a economia d'O
Anticristo, pela sintomatologia da cultura ocidental.
"Diante desse quadro, a filosofia anticristã de Nietzsche irá colocar-se fundamentalmente enquanto crítica à civilização e [...] o propósito civilizatório irá ser
entendido como a execução gradual e triunfante do
conteúdo normativo da moralidade cristã" (p. 67).
Novo acerto interpretativo, pois o que explica os
possíveis excessos verbais de O Anticristo é a meta
estrategicamente escolhida: ali não toma a palavra o
livre pensador laico, para expor acintosamente ao
ridículo os rígidos cânones da cristandade estatutária.
A Nietzsche, o cristianismo interessa como força
moral, potência ético-política, e principalmente em
seu triunfo secularizado na forma dos movimentos e
instituições da sociedade civil burguesa, com a Revolução Industrial.
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ais, mas também e principalmente sua perspectiva de
avaliação, é a ela que se deve o amesquinhamento do
"tipo homem" moderno, seu rebaixamento de valor,
a banalização de uma existência que, no entanto, se
jacta em tomar-se como o sentido do progresso
histórico, fazendo dele o herdeiro visado pelo apocalíptico final dos tempos. Por isso, é necessária a
denúncia e revelação dos condicionamentos desse
suposto incondicional, da origem impudica e interessada daquilo que pretende valer como divino e inefável, como o núcleo racional da moralidade em si. Se
os valores são "estimativas por meio das quais cada
grupo avalia um bem lhe atribuindo valor positivo ou
negativo segundo a perspectiva de sua condição de
vida, então o valor dos valores não pode ser o mesmo para todos, já que as condições de vida não são
as mesmas para todos os viventes" (p. 37).
Essa é a tese que orienta o segundo capítulo,
concluindo, a meu ver, a parte crítico-negativa de A
maldição transvalorada. Valores morais são as referências supremas para a cultura e a civilização; estas,
por sua vez, ainda que não sejam sinônimas, devem
ser interpretadas como processo formativo que se
caracteriza como uma economia e uma dietética das
pulsões. Ao escrutínio da sintomatologia psicofisiológica, o platonismo/cristianismo se caracteriza, antes de tudo, como uma economia da castração, que
esteriliza, pelo veneno do ressentimento, as mais
poderosas correntes de energia pulsional. Por isso, a
mais vigorosa condenação da moral platônico-cristã
não pode deixar de ser também — e no mesmo
movimento — uma elegia em glorificação da vida.
Em complemento ao virtuosismo de seu senso
analítico, o livro de Barros tem também esse mérito
de tocar numa questão da mais viva atualidade e
aguda dramaticidade: civilização e cultura são processos de conformação de forças instintivas e pulsionais. São, pois, instâncias de cultivo e seleção, estufas
e formas de modelagem. Do modo como se esculpe
aquela explosiva e problemática matéria-prima pulsional, resultam tipos históricos distintos de homem.
Aqui, metáforas agrícolas, botânicas e zoológicas só
retoricamente têm um sentido eugênico e racial —
como por vezes se distorceu ideologicamente e malentendeu o pensamento de Nietzsche. A acepção
dominante é a educativa, aquela antropológico-cultural da paideia, como trabalho social e lingüístico de
autopromoção da humanidade.
É sob tal perspectiva que se pode entender a
dupla face de O Anticristo. A conclusão da genealo-
gia do cristianismo é que o ideal de homem da moral
cristã tem como preço uma irracional e predatória
economia da extirpação e do exaurimento, que traz
consigo uma diminuição de potência, um esgotamento do "tipo homem", autocomplacente com a
própria mediocridade. A face ominosa desse ideal é
a mesquinhez do "último homem". Nesse sentido, é
com grande pertinência que Barros traz para o centro
de sua abordagem de O Anticristo o expressivo
contraste feito pelo genealogista entre megaempreendimentos civilizatórios, para fixar-lhes a diferença
tipológica. É curioso observar como, nesse contexto,
cabe dar o primeiro plano não imediatamente aos
gregos, mas a exemplos históricos de momentos
afirmativos e glorificadores dos impulsos, em formações culturais açodadamente identificadas com a negatividade e o ressentimento, como as dos hebreus
do Antigo Testamento, dos hindus do Código de
Manu e mesmo o budismo.
E com isso tocamos o elemento que opera a
transição e transvalora a negatividade d' O Anticristo.
Violenta, a condenação da modernidade cristã se
articula em vista e a serviço de um contra-ideal. É ao
afirmar e instituir as condições que tornam possível a
emergência de um novo "tipo homem" que adquire
sentido a destruição dinamítica da moral cristã. Assim, faz sentido o aparente paradoxo nietzschiano:
"Nego como jamais alguém negou — e a despeito
disso sou o contrário de um tipo negativo". Enganam-se porém os que pensam que esse contra-ideal
seria alcançado na trajetória linear de uma melhoria,
de um progresso do tipo histórico alcançado pelo
homem moderno — no registro das esperanças
emancipatórias e humanitárias da antiga Aufklärung.
Também não por retroação à Idade de Ouro dos
heróis homéricos. Menos ainda como "retorno a uma
determinada horda primordial, [...] como fuga retroativa ao estado pré-cristão de coisas. Mas como reapropriação consciente e transfiguradora das forças
criadoras do inteiro animal homem, ou, para trazer à
baila as palavras de A gaia ciência, como conquista
da 'pura natureza, descoberta como nova, redimida
como nova'" (p. 150).
Como prova de sutileza na decifração dos enigmas nietzschianos, Barros recorre à narrativa legendária sobre o país dos hiperbóreos, exibindo assim,
figurativa e plasticamente, o alvo da crítica cultural de
O Anticristo: um tipo de homem afortunado, cuja
refinada espiritualidade não é fruto da repressão, da
extirpação dos "maus impulsos", mas da espiritualiJULHO DE 2003
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CRÍTICA
zação e divinização, da organização artística daquelas
forças telúricas de sua animalidade. Não por acaso,
Dioniso é também uma das últimas palavras que
Nietzsche encontra para exprimir esse seu anseio por
uma nova grandeza do homem, em que o sofrimento, a morte, a transitoriedade — o mundo, enfim —
não são mais vampirizados, a modo socrático-platônico-cristão, pelo anátema fundado numa significação e ordenação moral do universo.
O que há de afirmativo em Nietzsche anseia
"novos filósofos", não pela regressão à bestialidade
cega, pelo bárbaro desenfreio dos impulsos desgarrados. Por outro lado, seus hiperbóreos não são
delicados parasitas sociais, que se comprazem na
alienação e na exploração do produto do trabalho
alheio. Trata-se, isto sim, dos espíritos de escol,
daqueles pouquíssimos entre os raros que estão em
condições de contemplar os dramas do destino da
alma pelo caleidoscópio do "teatro mágico", fortes o
suficiente para assumir a esmagadora tarefa de explorar novos caminhos para a experiência do homem
consigo mesmo, instituindo novas tábuas de valor
para doar à humanidade mais uma epopéia de autosuperação. Esses espíritos muito livres podem ser
entrevistos no horizonte sombrio do niilismo extremo, em que a moralidade cristã é ultrapassada, por
auto-supressão, ao extrair a inexorável conseqüência
lógica de seus próprios valores fundantes.
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NOVOS ESTUDOS N.° 66
É nesse ponto de inflexão — não acessível aos
que odeiam os percursos labirínticos e permanecem
imantados nas fachadas sedutoras — que a maldição
se converte em afirmação. "Águas transvaloradas,
sem dúvida. De um lado, a exaltação da figura do
criador; de outro, a contemplação de um futuro para
o devir humano. Como minas recém-desobstruídas,
irrompem os elementos positivos de que falávamos.
Sob o influxo de motivações hiperbóreas, certificamo-nos de sua possibilidade teórico-especulativa"
(p. 150). Com base nessa interpretação talvez se torne mais fácil compreender, como o sugere argutamente Fernando Barros no final do penúltimo capítulo do livro, que a famigerada "Lei contra o cristianismo" — com a qual o filósofo legislador encerra
sua "transvaloração de todos os valores" — pode
também ser lida como uma expressão paródica e
caricata, certamente desfigurada, dos rudimentos de
uma nova construção legislativa, a edificar-se sobre
ruínas calcinadas.
Por tudo isso, A maldição transvalorada é uma
contribuição inestimável para os estudos qualificados
e para a meditação atenta e responsável sobre o
legado nietzschiano.
Oswaldo Giacoia Junior é professor do Departamento de
Filosofia da Unicamp.
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