A Competência Intercultural em Ações de Responsabilidade Social Empresarial: Uma Reflexão Teórica sobre Desafios de Gestores Expatriados Autoria: Grace Kelly Marques Rodrigues, Lucas Lopes Pinheiro Resumo Num momento em que o mundo volta as atenções para economias em desenvolvimento como é o caso do Brasil, as organizações buscam se posicionar competitivamente em escala global. Os avanços do país no âmbito político, cada vez mais presente nas discussões em nível mundial, somados à estabilidade da economia nacional, à elevação de investimentos em tecnologia, à qualificação e eficiência das operações comerciais têm construído um cenário favorável à inserção de empresas brasileiras no mercado internacional. Dessa forma, ao passo que a internacionalização de negócios se intensifica, aprofunda-se, também, a dinâmica das trocas culturais destas junto a realidades culturais distintas de seu país de origem. Nesse contexto, a temática da diversidade cultural e da vivência intercultural ganha corpo e se intensifica em debates no campo dos estudos organizacionais, definindo como objetivo para o presente artigo, refletir sobre os desafios colocados aos gestores que assumem posição de liderança na internacionalização de negócios fora de seu país de origem, com ênfase na competência intercultural que lhes é demandada, em particular, quando relacionada a decisões voltadas a responsabilidade social empresarial em localidades com referências culturais diversificadas. O recurso metodológico utilizado neste trabalho foi a apresentação de um case simplificado de estudo, envolvendo a ação de gestores em diferentes contextos culturais. O aporte teórico do artigo fundamenta-se nos conceitos de cultura, etnocentrismo e competência intercultural, a fim de embasar a discussão pretendida. Como resultados dessa reflexão, considerou-se que, ao entrar em contato com realidades culturais diversificadas, o gestor se depara com situações inusitadas e/ou inesperadas resultantes de um conjunto de valores, tradições, costumes, enfim, de particularidades que devem ser levadas em consideração quando da definição de modos de intervenção local, no caso, via ações de responsabilidade social. Concluiu-se, também, que, não obstante o preparo técnico e gerencial dos gestores expatriados, as diferentes premissas culturais a que são expostos tornam esse desafio muito mais complexo, solicitando a esses uma competência diferenciada, aqui entendida como competência intercultural. Concluiu-se, ainda, que a principal dificuldade associada a internacionalização de negócios é o desconhecimento do outro, das referências culturais locais e do consequente despreparo para dialogar com o diferente. Por fim, são apresentadas considerações acerca da necessidade de se pensar continuamente a competência requerida aos gestores que vivenciam diretamente a dinâmica de trocas interculturais, atentando para a importância de se buscar compreender uma realidade segundo a lógica do outro e não segundo a sua de origem ou a lógica da organização, unicamente. Entende-se, assim, que a internacionalização de negócios se traduz como um fenômeno muito mais complexo do que possa parecer. 1 1 Introdução A história recente do Brasil tem evidenciado os avanços político-econômicos que o país tem alcançado no cenário internacional. Ainda que de forma simbólica, tem sido reconhecida a atuação do país no cenário externo, seja por um processo de intensificação diplomática - tendo em vista os diversos programas de cooperação estabelecidos com países vizinhos e de outros territórios -, seja por seu posicionamento mediador em conflitos políticos, a exemplo do episódio recente ocorrido em Honduras. Tal posicionamento sinaliza o crescimento de sua importância em discussões políticas em nível mundial. Somado a isso, o crescimento dos investimentos em tecnologia no país, a melhoria na qualificação e eficiência das operações comerciais e a estabilidade na economia brasileira, têm sido decisivos no processo de inserção de empresas brasileiras no mercado internacional. Assim, embora o Brasil ainda figure como um dos países com maior grau de desigualdade de renda no mundo1 e, muitas vezes, associado a casos de corrupção, vislumbra-se um cenário cada vez mais favorável ao seu desenvolvimento em uma economia globalizada. Nesse contexto, a internacionalização de negócios de grandes transnacionais brasileiras tem se mostrado cada vez mais frequente, fato que as insere em uma dinâmica de trocas constantes sejam econômicas, políticas, sociais e culturais, entre outras - intensificada pelo processo de globalização da economia, a qual, segundo Roberston (1999, p.23), refere-se “ao mesmo tempo, à compressão do mundo e à intensificação da consciência do mundo como um todo”. Além disso, os inúmeros avanços tecnológicos, a exemplo da atualização constante dos meios de comunicação, têm deixado claro que, apreciando ou não, estando preparados ou não, vivenciamos, cada vez mais, a experiência intercultural - seja no nível internacional ou intranacional - aproximando negócios e culturas diversas. Um estudo sobre internacionalização de empresas brasileiras (SILVA 2003, apud WOOD JR e CALDAS, 2007) referente ao período de 1989 a 2000 revelou que, naquele momento, ainda era pequeno o número de organizações que haviam internacionalizado seus negócios, sendo, em geral, dos setores de energia, siderurgia, metalurgia, celulose e papel e aeronáutico; que haviam iniciado sua expansão por proximidade geográfica ou de língua (países da América Latina, Africa e Portugal); e que apenas um grupo pequeno encontrava-se em avançado grau de internacionalização. Contudo, o breve panorama exposto no parágrafo anterior nos atenta para o potencial de expansão de empresas brasileiras no mercado internacional. Segundo Canclini (2008), ainda que a expansão negocial de diversas empresas se inicie por países mais próximos geograficamente ou de mesma língua, e mesmo que o fenômeno da globalização sugira um movimento de homogeneização cultural, através das facilidades trazidas pelos meios de transporte e comunicação, pode-se dizer, também, que são enormes as diferenças que permeiam toda a população de diferentes países. O autor ressalta que não é fácil organizar o conhecimento vivencial de tantos grupos em tantos países, nem sequer integrar as diversas experiências dentro de cada nação. Como exemplo pode-se citar o Brasil que tem uma grande diversidade cultural em seu povo: são índios, brancos negros, mestiços, mulatos e caboclos demonstrando valores, costumes e culturas diferentes que podem, em alguns casos, parecer antagônicas. Isto posto, é objetivo do presente artigo refletir sobre desafios relacionados à competência intercultural demandada aos executivos expatriados que, inseridos em realidades culturais distintas de sua origem - saberes, tradições, visões de mundo, comportamentos e necessidades 2 diversas, ancoradas em realidades e premissas de cada cultura -, assumem a liderança de políticas e práticas sociais e ambientais em contextos culturalmente diversificados. 2 A Competência Intercultural Associada a Ações de Responsabilidade Social Empresarial Segundo Cushner (1996), as organizações contam, cada vez mais, com equipes de trabalho altamente diversificadas, que misturam nacionalidades, gêneros, etnias, orientações sexuais e habilidades (ou falta de) variadas. Nesse sentido, a temática da diversidade cultural e da vivência intercultural ganha corpo e se intensifica nos debates de estudos organizacionais, refletindo sobre a internacionalização de empresas brasileiras, sobre o papel de gestores diretamente envolvidos nesses processos - os expatriados2 e, a relação de empresas com a sociedade, a exemplo de ações de responsabilidade social empresarial3. Sabe-se que ações empresariais de cunho social não são novas. Tais práticas já eram desenvolvidas por empresários, como Robert Owen (1771-1858), há séculos. Entretanto, na maior parte das vezes, ocorriam de maneira não estruturada e decorrentes de motivações religiosas. Os empresários compreendiam que sua verdadeira responsabilidade social era gerar lucros, os quais, ainda que indiretamente, repercutiriam por toda a sociedade. Entretanto, com o passar do tempo, foi se consolidando o entendimento que organizações e sociedade são interdependentes e que aquelas ao desenvolverem suas atividades produtivas acabam por produzir nesta efeitos ambientais e sociais diversos. Como o fortalecimento desta perspectiva, governo, sociedade, clientes, funcionários, entre outros stakeholders, passaram a cobrar cada vez com mais intensidade que as empresas atuassem com ética e responsabilidade social (TENÓRIO, 2006). Segundo pesquisa do IPEA (2006), em 2004, 69% das empresas brasileiras aproximadamente 600 mil - desenvolviam alguma ação social, destinando cerca de R$ 4,7 bilhões para investimentos sociais; no que se refere às grandes empresas, 94% possuíam ações de responsabilidade social empresarial, sendo que a maior parte se estruturava em departamentos ou estruturas especialmente criadas para tal finalidade. Com a consolidação do entendimento acerca da complexa relação entre organizações e sociedade, assim como da ampliação das práticas empresariais de ação social, verifica-se também uma complexificação no entendimento conceitual do que se trata responsabilidade social empresarial (RSE), como pode-se perceber no conceito elaborado pelo Instituto Ethos (2010), o qual é adotado como referência neste trabalho: responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais (INSTITUTO ETHOS, 2010). A realização de atividades de RSE é um desafio para qualquer gestor, pois implica pensar o desenvolvimento a partir de valores da própria comunidade. Tal desafio é ainda maior no que se refere a executivos expatriados que têm o objetivo de pensar ações e programas de RSE em realidades (idiomas, valores, crenças, modos de pensar e agir etc.) muito distintas das suas. 3 No entendimento de Pedersen (1995) a experiência intercultural deve ser analisada em pelo menos cinco estágios: (a) o encontro intercultural é um processo e não um evento; (b) se manifesta em diferentes níveis simultaneamente na medida em que o indivíduo interage com um ambiente complexo; (c) se torna mais forte ou enfraquece ao passo que o indivíduo aprende, ou falha, ao lidar com situações culturais atípicas; (d) ensina ao indivíduo habilidades estratégicas que possam contribuir para o sucesso de toda essa experiência; (e) e por fim, se aplica a toda mudança radical presentes em circunstâncias não familiares ou inesperadas. Entende-se, assim, a necessidade de pensar continuamente a competência requerida aos gestores que vivenciam a dinâmica intercultural, partindo do pressuposto de que a internacionalização de negócios se traduz como um desafio muito mais complexo do que possa parecer - ou seja, transcende a coordenação de atividades técnicas de produção e comercialização -, estando mais próxima do campo simbólico contido nas relações sociais. Trata-se do exercício da expatriação vivida em nível diferenciado, que segundo Freitas (2009, p. 249), “coloca o indivíduo em interação com um outro, diferente de si, permitindo-lhe vivenciar a alteridade no seu exercício profissional e na sua vida pessoal”. Pois bem, e que competência seria essa? Aqui referimo-nos à competência intercultural, entendida como uma capacidade do gestor de reconhecer e compreender a existência de crenças e valores próprios de cada cultura, assim como estabelecer diálogos produtivos com a população local, além de dirimir conflitos resultantes de possíveis choques interculturais. Lidar com negócios no nível intercultural refere-se a algo muito mais pessoal e orientado às relações do que ao negócio propriamente dito (LANE & DISTEFANO, 1988). Os autores observam que nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas preferem fazer negócios primeiro e, após isso, uma relação pode vir a se estabelecer. Já em países latinos, é natural que se priorize o estabelecimento das relações primeiramente para, então, fechar negócios. Isto posto, reforça-se nosso entendimento de que o desenvolvimento dessa competência é fatorchave em processos de internacionalização de negócios. Compartilha-se, ainda, neste trabalho, a concepção de competência intercultural apresentada por Friedman e Antal (2005), os quais a compreendem como um conjunto de habilidades que envolvem, basicamente: o saber reconhecer e otimizar as diferenças culturais como recursos para o aprendizado e para a criação de ações efetivas em contextos específicos; pensar e agir com base nas premissas de adaptação e na empatia com o outro, bem como na consciência de que compartilhamos a todo tempo e espaço, um complexo cultural; engajar o outro (equipes de trabalho, parceiros, comunidades, governos, entre outros stakeholders) a explorar demandas tácitas que permeiam comportamentos e necessidades da organização e da sociedade. E o que dizer quando estes gestores são responsáveis pela implementação de ações no âmbito da responsabilidade social e ambiental? Nesse caso, entendemos que a competência de gestores interculturais é notadamente desafiadora quando envolvidos em ações ligadas à responsabilidade social e ambiental das organizações que representam. Muitas vezes, são projetos em nível mundial, mas que requerem diferentes posicionamentos e diferentes ações a depender de cada cultura. Dessa forma, somado aos objetivos negociais, como a consolidação de uma posição vantajosa em novos mercados, é também solicitado a esses gestores uma compreensão sutil acerca das necessidades locais, o que significa dizer, saber o que é importante para uma comunidade, assim como o que esta espera da organização. Tal compreensão se dá pela empatia cultural, que busca entender uma realidade segundo a lógica 4 do outro e não segundo a sua de origem ou a lógica da organização, unicamente. Daí depreende-se que a forma com que o indivíduo desempenha essa competência está intimamente relacionada à sua referência de cultura, tema ao qual apresentam-se breves noções a seguir. 3 Cultura, Etnocentrismo e Responsabilidade Social Empresarial Segundo Tylor (1871 apud LARAIA, 2005 p. 30), a cultura seria “todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética”. Desse modo, a cultura pode ser entendida como processo ininterrupto, compondo um universo complexo de símbolos e significados que se transforma continuamente por meio das interações humanas. Ao tratar sobre tal conceito, faz-se necessário resgatar a visão de cultura apresentada por Geertz (1989) que a compreende como: sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível - isto é, com densidade (GEERTZ, 1989, p. 10). De acordo com o autor (op. cit., 1989, p. 62), “nossas ideias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais”. Desse modo, percebe-se como todas as ações humanas - desde a forma como este enxerga a si próprio e aos outros, até como toma suas decisões e interpreta o mundo a sua volta - são orientadas por suas referências culturais. Em geral, sua bagagem cultural é composta por um histórico de valores, princípios, hábitos e normas de convivência social provenientes de gerações passadas e que serão (no todo ou em parte) transmitidos às gerações futuras. Essa dinâmica constrói uma espécie de ciclo que orienta o comportamento do indivíduo na sua interação com os outros. Segundo Laraia (2005), nossa herança cultural sempre nos condicionou ao comportamento depreciativo em relação ao diferente, ou seja, aqueles que agem fora dos padrões aceitos para a sociedade da qual fazemos parte. Isto posto, ao considerar que cada cultura possui suas normas de conduta e padrões de significado, aquilo que é comum para membros de um grupo social pode causar estranhamento para membros de outra cultura, fato que pode resultar em dificuldades quanto à compreensão de modos de pensar e agir distintos. Define-se esse tipo de comportamento por etnocentrismo. O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais (LARAIA, 2002, p. 7273). Assim, a partir de uma visão de mundo onde as referências culturais do indivíduo - ou o gestor expatriado - são tidas como o centro de tudo, o modo de pensar e agir seja interpretado pela lente daquele primeiro. Nesse contexto, é provável que o “diferente” cause desconforto na medida em que vai de encontro a uma herança cultural legitimada por um grupo. A partir disso, é mais provável, ainda, que um gestor encarregado de definir políticas de responsabilidade empresarial em uma realidade cultural completamente distinta da sua, não 5 consiga captar quais são os valores, os princípios, as necessidades, enfim, o que é de estima para aquele povo. Estar atento ao comportamento etnocêntrico - exercitar a empatia - revelase como característica fundamental para o desenvolvimento da competência intercultural em ações de responsabilidade social empresarial. Para ilustrar essa reflexão, tomemos como exemplo a história a seguir: 4 Paul, Pablo e Paulo em Terras Estrangeiras O que há de comum entre Paul, Pablo e Paulo, executivos da companhia Transnacional Zeta, uma das maiores do mundo no setor de energia? Paul, americano, atua na Colômbia, na cidade de Bogotá. O governo local solicita da empresa que seja parceira de um projeto com repercussão internacional que garanta a segurança urbana; um dos principais problemas do país. Paulo, brasileiro, está sendo solicitado pelo governo de Istambul, na Turquia, a colaborar com recursos da empresa para programas de geração de emprego e renda. E Pablo, venezuelano, atua em Angola onde é solicitado por vários organismos governamentais para financiar diversas ações de educação de jovens e adultos, bancos populares e micro-crédito, reflorestamento e prevenção de AIDS etc. Os três desenvolvem projetos solicitados pelos governos ou sociedades locais, nos territórios em que atua a empresa, presente em 25 países em quatro continentes. A Zeta iniciou suas atividades na América Latina, internacionalizando negócios desde a década de 70. No momento, desenvolve uma agressiva estratégia de internacionalização. O plano estratégico de expansão da empresa prevê a “reinvenção” de si mesma até 2020, considerando os desafios da descoberta de novas fontes de energia. Como fator decisivo de sucesso, a empresa investe em novos quadros técnicos e gerenciais, devendo contratar o dobro do quadro atual. O atual quadro dirigente é alvo de diversas ações de capacitação realizadas pela própria empresa ou por parceiros nacionais e internacionais. Esses gestores têm sido preparados para tais funções por meio de programas de treinamento tradicionais que exploram, basicamente, um conjunto de ações e padrões de comportamento guiados, quase que exclusivamente, pela lógica de mercado priorizando a competição. O tema da capacitação para a gestão internacional tem sido objeto de diversos estudos (KETS de VRIES, 1997; DOWLING E WELCH, 2005; BOHLANDER et al, 2005; DAVEL et al, 2008; DERESKY, 2008; BARMEYER, 2007; CALVEZ e GUENETTE, 2006; FLEURY e FLEURY, 2007; D’IRIBARNE, 2009). Por que executivos assumem projetos de apoio ao desenvolvimento dos territórios em que atuam, já que sua principal missão refere-se aos negócios da empresa? Estariam estes gestores preparados para estas atribuições? É possível pensar em formas de gestão apropriadas ao cosmopolitismo e sensibilidade cultural que ações, projetos e programas de responsabilidade corporativa em culturas distintas requerem? Pode-se pensar em soluções relativas à ações de responsabilidade social corporativa similares em territórios tão diferenciados como Houston, Buenos Aires, Iraque e Luanda? 5 Responsabilidade Empresarial e Paradoxos da Gestão Intercultural Empresas transnacionais são organizações de alta complexidade, que operam interconectadas em múltiplos ambientes e, ao chegarem a outros países conjugam missões paradoxais: competir, lucrar, vencer e, simultaneamente, cooperar com programas, projetos e ações do 6 governo e da sociedade voltadas ao desenvolvimento social e ambiental dos territórios onde a empresa atua. As empresas adotam políticas e ações de responsabilidade social e ambiental por várias razões. A primeira delas, parece ser o efeito mimético e coercitivo que os pactos globais exercem. A Zeta, por sua vez, é signatária de diversos acordos internacionais de responsabilidade social empresarial e que busca se posicionar ativamente quanto às suas obrigações em um mundo globalizado e cada vez mais interligado e interdependente, tanto em relação à sociedade quanto ao meio ambiente. A retórica utilizada nos acordos internacionais aponta para múltiplos sentidos e significados. O que predomina, no entanto, é um chamado à ação e a intervenções em que a empresa assume papéis de parceria, co-autoria e, por vezes, gestora de ações de desenvolvimento social e preservação ambiental. No entanto, é importante questionar por que as empresas aderem a este ideário e como seus gestores executam práticas para as quais não foram preparados. No caso da Zeta, algumas de suas motivações podem nos dar pistas para essa reflexão. Na empresa Zeta, dentre as razões de seus executivos se engajarem em ações, projetos e programas de desenvolvimento socioterritorial, destaca-se: o entendimento destes de que o desenvolvimento de tais ações agrega valor à empresa, fortalecendo a imagem e a marca no país de destino, o que contribui para aliviar a pressão social sobre a mesma; os ganhos políticos de relação com governos nacionais e locais, bem como com a sociedade organizada. Como se observa, os executivos da Zeta mostram-se muito mais próximos da lógica de negócios ao exercerem ações de responsabilidade corporativa do que de compreensão de premissas culturais e desenvolvimento social. Ainda investigando as motivações da Zeta para envolvimento em políticas e práticas de responsabilidade socioambiental, outras respostas são interessantes para nossa reflexão. Por exemplo, as relacionadas à natureza das ações desenvolvidas, as quais são abaixo resumidas: - Sobre a natureza das ações que desenvolvem, os executivos referem-se as ações educacionais de crianças, jovens e adultos, criação e construção de escolas, inclusão digital e oferta de bolsas de estudo. Esta é a área predominante das atividades (93% dos executivos registram estas ações). - Em segundo lugar, com 37% de registros, encontra-se o apoio às atividades de geração de emprego e renda, incluindo a criação de bancos populares, o estímulo a micro-empresas e a qualificação de mão de obra local para o trabalho. - Em terceiro lugar (31%), consta a preservação ambiental, desde os projetos de distribuição de sementes até a preservação de recursos naturais. - Em quarto lugar, encontra-se o apoio à ações culturais, isto é, o patrocínio de espetáculos, grupos culturais, apoio a museus e bibliotecas e à artistas. Apoio a saúde, a obras de infraestrutura, à organizações não governamentais e a movimentos sociais são também mencionados. O caso Zeta é ilustrativo deste paradoxo, ao mesmo tempo em que permite refletir sobre as lacunas existentes nos estudos organizacionais quando abordam a gestão intercultural na perspectiva da responsabilidade social corporativa. 6 Territórios Estrangeiros e Gestão Intercultural 7 Gestores expatriados são aqueles que deixam seus territórios de origem por outros. Território, conceito consagrado nas ciências sociais, especialmente na geografia são locais de relações sociais, mais do que extensões de terra delimitadas. Neste sentido, a territorialidade humana aparece como o conjunto de relações mediadas pelo poder entre os distintos agentes sociais (Estado/Governo), empresas, instituições sociais e cidadãos que se interessem por algum objetivo comum localizado numa dada porção de espaço geográfico. A territorialidade implica a capacidade desses agentes de produzirem e/ou organizarem sistematicamente territórios, segundo um projeto originado por um agente hegemônico (GRAMSCI, 2000). A competência de gestores expatriados é particularmente desafiada nos projetos designados como de “responsabilidade corporativa global”. Portanto, em paralelo com a agressiva política de internacionalização com vistas a conquista de novos mercados, executivos devem dividir o tempo com ações de responsabilidade social e ambiental, o que evoca necessidades de desenvolver competências especiais. A principal delas seria entender a lógica do outro. Esse processo de compreensão do outro, de seu modo de pensar e compreender o mundo, nos leva a refletir sobre aspectos-chave tratados no âmbito dos estudos organizacionais, como a construção e reconstrução de identidade nas organizações. Identidade essa que, de acordo Caldas e Wood Jr. (1997) pode ser analisada sob diferentes perspectivas - seja a partir da forma como a organização é percebida externamente (ou seja, com atores com os quais se relaciona), ou pela percepção compartilhada por seus próprios membros. Assim, compreende-se que as organizações, segundo sua trajetória de desenvolvimento, constroem mais do que sua história, mas também são atores ativos na construção da cultura local - tanto influenciam como são influenciadas por ela (RODRIGUES e CHILD, 2008). Dessa forma compreende-se o papel transformador das organizações no processo de desenvolvimento social e econômico por meio de ações de responsabilidade social e ambiental nessas localidades. A capacitação de gestores para a gestão internacional apresenta dificuldades especiais quando combina gestão multicultural e diversidade como referem Frenkel (2008). Se no plano dos negócios a diversidade cultural tem alto impacto, o que dizer da atuação dos gestores quando esta interfere no desenvolvimento social de territórios? A diversidade das nações já tão explorada por estudos cross-cultural4 (BLACK e MENDENHALL, 1990; ADLER, 2002; BARTLETT e GHOSHAL, 1998; HOFSTED, 2001) deve ser analisada em escalas menores tais como regiões, cidades, lugares. O reconhecimento da diversidade cultural entre nações tem sido o foco dos estudos da linha cross-cultural, que criticam as organizações multinacionais ao replicarem práticas de gestão em “contextos estrangeiros” (STEPHEN, 2001) bem como dos estudos na perspectiva intercultural, de forte acento interpretativo e interacionista. Nas duas correntes, distinguidas não apenas por questões semânticas, mas de natureza epistemológica, o território é a nação e as nações são percebidas como totalidades simbólicas. A diversidade dos territórios e a sensibilidade para as diferenças entre o urbano e o rural, entre bairros de mesma cidade, entre enclaves culturais de uma mesma região ocupada por descendentes de imigrantes de diferentes origens, criam os híbridos culturais que nos fala Canclini (2001). 8 Gestores expatriados lidam com hibridização cultural quando assumem projetos de responsabilidade social corporativa. Um programa de geração de emprego e renda ou de profissionalização de jovens envolve governos locais, movimentos sociais, instituições educacionais, outros financiadores nacionais e internacionais estabelecendo-se relações muito complexas, por vezes conflituosas. Os riscos e desafios vividos pelos executivos estendem-se do desconhecimento da realidade local às dificuldades de priorizar projetos, uma vez que a empresa é solicitada em todas as áreas de políticas sociais. Visualizam-se neste processo diversos desafios, entre os quais pode-se ressaltar: o de assumirem, simultaneamente, papéis e funções de governo em alguns países e, em outros, enfrentarem grande resistência à ajuda estrangeira; a necessidade de assegurar posição de vantagem competitiva frente à concorrência de outras empresas; conseguir o apoio financeiro da sede da empresa para estes projetos; e, não sendo descartados, riscos como chantagem, extorsão, revoltas civis, presença de guerras e guerrilhas e terrorismo, entre outras situações de conflito que podem ser frequentes a depender da localidade. Neste universo complexo de políticas. Arrisca-se dizer, porém, que a principal dificuldade provém do desconhecimento do outro, da cultura local e do consequente despreparo para dialogar com as diferenças. Não se pode esperar que um indivíduo que foi formado para ser gerente de negócios transforme-se em gestor social de desenvolvimento de territórios estrangeiros. Corre-se o risco de que este gestor atue mais como uma espécie de colonizador ou, ainda, que se submeta a pressões locais inadequadas, comprometendo a si mesmo e à empresa negativamente. Segundo Santos (2007), em tempos pós-coloniais não é tolerável que um executivo aja como um colonizador, impondo modelos de desenvolvimento, ou se alie a governos e organizações não governamentais em projetos inadequados quer pela fragilidade destes, quer pelos riscos envolvidos em alianças com governos ditatoriais, corruptos, e sociedades com significados culturais distintos para problemas ambientais, políticas sociais relacionadas a emprego, gênero e etnicidade, educação de jovens e adultos e apoio cultural. 7 Considerações Finais Por meio de uma reflexão teórica, este artigo objetivou discutir e estimular as reflexões acerca da competência intercultural requerida a gestores expatriados que lideram ações de responsabilidade social empresarial nas localidades para as quais a organização expanda seus negócios. Considerou-se que, quando em contato com realidades culturais diversificadas, o gestor se depara com situações inusitadas e/ou inesperadas resultantes de um conjunto de valores, tradições, costumes, enfim, de particularidades que devem ser levadas em consideração quando da definição de modos de intervenção local. A reflexão aqui apresentada, buscou evidenciar os desafios implícitos nesse processo, como o fato de que, a despeito da experiência gerencial e conhecimento técnico, demanda-se ao gestor expatriado o desenvolvimento de uma competência que vai além de suas habilidades técnicas e racionais, mais próxima do campo simbólico e fundamentada na compreensão do outro, do diferente. O suporte teórico deste trabalho procurou resgatar, principalmente, os conceitos de cultura, etnocentrismo e competência intercultural, de forma a embasar a discussão acerca dos principais desafios ao gestor que vivenciam a experiência intercultural, quanto à implementação de políticas e práticas de responsabilidade social empresarial. 9 A metodologia empregada nesta reflexão foi a apresentação de um breve case envolvendo a ação de gestores em culturas locais diferentes, a fim de discutir a importância da competência intercultural para o gestor, e como esta pode influenciar a relação da organização com a sociedade, na medida em que seja possível à empresa conhecer as referências culturais estimadas pela comunidade e, assim, possa empreender ações de responsabilidade social e ambiental condizentes com as características e necessidades daquela comunidade, segundo o entendimento daquele grupo social. As análises do case ilustrativo procuraram enfatizar o paradoxo existente entre gestão no nível intercultural e responsabilidade empresarial, que se resume em um desafio duplo: dar respostas à comunidade e preservar os interesses de negócios da organização. Procurou-se, ainda, analisar os motivos pelos quais as organizações aderem a políticas voltadas ao desenvolvimento de comunidades e preservação ambiental, concluindo que tal envolvimento se fundamenta, mais por motivações de ganhos para o negócio do que pela compreensão de valores culturais locais e preocupação com o desenvolvimento social. Por fim, espera-se que o presente artigo figure como uma oportunidade de se aprofundar no campo dos estudos organizacionais as análises sobre a competência intercultural em processos de internacionalização de empresas, sob a perspectiva da responsabilidade social empresarial. Referências ADLER, J. A. International Dimensions of Organizational Behavior. Toronto: SouthWestern. 2002. 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Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2009_PT_Complete.pdf.>. 2 Expatriação é um termo que significa “ir para outro país”, mas também pode ser entendido como “desterro, exílio ou expulsão da pátria” (AURÉLIO, 2007). 3 Quando empregada no texto, a expressão Responsabilidade Social Empresarial refere-se a toda a ação, por parte das organizações para com a sociedade, voltada ao desenvolvimento social e preservação ambiental. 4 Refere-se a relação entre duas ou mais pessoas com diferentes referências culturais (BLACK e MENDENHALL, 1990). 11