O ENSINO DA LÍNGUA DE SINAIS PARA CRIANÇAS OUVINTES:
UMA PROPOSTA DE BILIGUISMO ÀS AVESSAS
LACERDA, Lúcia Loreto1 - PMF/SC
MORAIS, Cristina Richter Costa 2 - PMF/SC
Grupo de Trabalho – Diversidade e Inclusão
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Este trabalho apresenta o relato de experiência de um projeto de ensino de Língua Brasileira
de Sinais (LIBRAS), implementado em uma turma de educação infantil, na Rede Municipal
de Florianópolis. No grupo de crianças, com faixa de idade entre três e quatro anos, tinha uma
criança surda incluída. A criança surda era acompanhada por uma professora de LIBRAS.
Referida criança tinha dificuldade de interação com as outras crianças da turma por utilizar
uma língua diferente. Em contrapartida, o contato entre a criança surda e a professora de
LIBRAS na sala despertou nas crianças ouvintes o interesse em aprender a língua de
LIBRAS. A partir dessas verificações, foi criado um projeto de ensino de LIBRAS, como
segunda língua, para as crianças ouvintes. O projeto foi elaborado com a intenção de
qualificar as interações da turma com a criança surda e, dessa forma, proporcionar às crianças
ouvintes a aprendizagem de uma segunda língua. Além disso, o ensino da língua de LIBRAS
teve também o objetivo de sensibilizar as crianças quanto as diferenças e incentivá-las a
utilizar a língua de LIBRAS no cotidiano da turma. A proposta pedagógica do projeto pautouse na releitura do poema de Dulce Rangel, chamado “Um amor de confusão”. A partir da
adaptação da história do poema, criou-se uma personagem surda, que foi inserida no cotidiano
da turma. A presença da personagem surda possibilitou a professora de LIBRAS
contextualizar o ensino da língua de sinais e proporcionar, às crianças, dinâmicas que
problematizaram as diferenças. O ensino da segunda língua na turma envolveu a apresentação
de histórias da cultura surda, músicas, rodas de conversa e brincadeiras, em LIBRAS. Ao final
do projeto constatou-se que o ensino da LIBRAS resultou em aprendizagens significativas
para as crianças ouvintes, bem como qualificou as relações da criança surda com seus pares.
Palavras-chave: Língua de Sinais. Bilinguismo. Inclusão.
1
Formada em Educação Especial pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) e Especialista em Gestão
Educacional pela UFSM. Professora de Língua de Brasileira de Sinais na Prefeitura Municipal de Florianópolis.
E-mail: [email protected].
2
Formada em Pedagogia UFSC (Universidade Federal de Santa Catariana) e Especialista em Desenvolvimento e
aprendizagem da criança de 0 a 6 anos UNISUL. Cursando Mestrado em Educação na UNIVALI (Universidade
do Vale do Itajaí) E-mail: [email protected].
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Introdução
Muito se tem discutido sobre a importância da aprendizagem de uma segunda língua
na educação infantil, mas pouco se tem pensado sobre o ensino da Língua Brasileira de Sinais
(LIBRAS) 3, como segunda língua, para crianças ouvintes.
Este trabalho apresenta o projeto de ensino de LIBRAS para crianças ouvintes,
realizado em uma Unidade de Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de
Florianópolis. O grupo de crianças, com idade entre três a quatro anos, possuía uma criança
surda incluída. Diante desse contexto inclusivo, surgiu a proposta de ensinar a língua de
LIBRAS como segunda língua, na intenção de qualificar a interação entre a criança surda e as
crianças ouvintes. Ao longo da realização do projeto, alguns questionamentos e reflexões
foram abrindo espaço para uma nova temática: o ensino da LIBRAS como segunda língua na
educação infantil.
Tendo essa temática como eixo central de discussão, esse artigo está dividido em
quatro partes. A primeira parte apresenta os aspectos históricos e as Políticas Públicas atuais
sobre a educação de surdos. A segunda parte dedica-se ao relato do projeto e a socialização
das reflexões elaboradas durante a prática pedagógica sobre o ensino da LIBRAS como
segunda língua na Educação Infantil. Na terceira parte aborda-se o conceito de bilinguismo,
refletindo sua proposta na educação infantil, bem como seu impacto no processo de inclusão.
A parte final do artigo apresenta os resultados do projeto e aponta algumas conclusões sobre o
ensino da LIBRAS como segunda língua.
Educação de Surdos no contexto da Inclusão
A história do povo surdo no Brasil inicia com a chegada de Hernest Huet, em 1855.
Huet era surdo e fundou em 1857, com o apoio de Dom Pedro II, o Imperial Instituto de
Surdos Mudos, que hoje é chamado de Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES.
Desde esta época, a história do povo surdo4 tem sido marcada por lutas para garantir o direito
de utilizar a língua de sinais.
A educação de surdos foi marcada por três filosofias: oralismo, comunicação total e
3
Ao longo do artigo, para se referir a Língua Brasileira de Sinais iremos utilizar a sua sigla LIBRAS.
O termo povo surdo se refere, de acordo com Strobel (2009, p. 33), “aos sujeitos surdos que não habitam no
mesmo local, mas que estão ligados por uma origem, por um código ético de formação visual,
independentemente do grau de evolução linguística, tais como a língua de sinais , a cultura surda e quaisquer
outros laços”.
4
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bilinguismo. No Brasil, o ensino da Língua de Sinais origina-se com Huet, que inicialmente
mesclou a Língua de Sinais Francesa com a Língua de Sinais usada pelos surdos brasileiros.
Em 1880, a Conferência Internacional de Milão discutiu a educação de surdos e defendeu que
a educação oralista era a mais adequada para os surdos. A partir desse momento, apenas o
EUA manteve o uso da Língua de Sinais. Os demais países adotaram a filosofia oralista,
dentre eles o Brasil.
No Brasil, a tendência mundial do oralismo se instalou no INES em 1911. Mesmo com
a imposição do oralismo puro, a Língua de Sinais sobreviveu até 1957, momento em que
passou a ser estritamente proibida em sala de aula (GOLDFELD, 2002).
A filosofia oralista defende a normalização do sujeito surdo, ou seja, a surdez é vista
sob o viés da deficiência, da falta. Nesta perspectiva, a metodologia de ensino utiliza terapias
intensivas de oralização para que, aprendendo a língua (oficial do país) oral e escrita, o aluno
surdo passe a integrar a sociedade ouvinte.
Após a tendência oralista, surge a Comunicação Total. Essa filosofia chega, no Brasil,
na década de 70, sob influência da Universidade de Gallaudet, dos Estados Unidos
(GOLDFELD, 2002). Em contraponto à tendência oralista, a Comunicação Total tira o foco
da reabilitação e centra o objetivo na comunicação. Porém, ela não se distancia da tendência
oralista, uma vez que se preocupa com a aprendizagem da língua oral pela criança surda, “mas
acredita que os aspectos cognitivos, emocionais e sociais não devem ser deixados de lado em
prol do aprendizado exclusivo da língua oral” (GOLDFELD, 2002, p. 38).
Percebe-se que há um avanço na filosofia da Comunicação Total quando ela deixa de
ver a surdez sob a perspectiva da falta e passa a compreendê-la como uma marca que tem um
significado na vida sócio-afetiva e no desenvolvimento da pessoa surda. A língua de sinais
retorna ao contexto educacional, no entanto, na comunicação total privilegiava-se toda e
qualquer forma de comunicação (códigos manuais, mímicas, linguagem oral).
O Bilinguismo, tendência que surge após a Comunicação Total, vem para contrapor as
filosofias Oralista e Comunicação Total. Na perspectiva do Bilinguismo o surdo deve
aprender duas línguas: a Língua de Sinais e a língua escrita oficial do seu país. No Brasil, o
Bilinguismo surge na década de 80 com as pesquisas de Lucinda Ferreira Brito. Essa filosofia
acredita que a língua de sinais é a língua natural do surdo e, por utilizar uma língua de
modalidade diferente, ele possui uma cultura e uma identidade própria. O bilinguismo desloca
o foco da deficiência, da falta e da normalização, para o estudo da Língua de Sinais, da
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Cultura, Identidade e Comunidade Surda.
No contexto atual de educação de surdos, não há a prevalência total de uma das três
tendências apresentadas acima. Mas as Políticas Públicas Educacionais indicam o
direcionamento da educação de surdos para a proposta bilíngue. Em 2002, a Lei nº 10.436
torna legal o uso da Língua Brasileira de Sinais, reconhecendo seu status linguístico. A
regularização da situação da Língua Brasileira de Sinais no Brasil abre caminhos para a
intensificação de discussões sobre a educação de surdos.
Com o advento da Inclusão, que toma força em 2001, os alunos surdos começam a
migrar das instituições especializadas para as escolas regulares. Vale esclarecer que muitas
escolas especializadas de educação de surdos foram fechadas nesse período, pois na
perspectiva da inclusão toda a criança “com deficiência” deve frequentar a escola regular.
Em 2005, o Decreto nº 5.626, dispõe sobre aspectos relacionados à inclusão do aluno
surdo. Dentre eles estão: formação do professor de LIBRAS; formação do intérprete de
LIBRAS; inserção da LIBRAS na grade curricular dos cursos, em nível médio (magistério) e
superior (licenciatura e fonoaudiologia). A garantia ao aluno surdo de acesso ao conhecimento
na sua língua materna (LIBRAS); Garantia de ensino de LIBRAS no contra turno do período
escolar;
Considerando as Políticas Públicas atuais, a educação de surdos acontece em escolas
regulares, com exceções de escolas especiais de surdos, que ainda se mantém pelo esforço e
luta da comunidade surda. Ainda hoje, a comunidade surda luta e defende a criação de escolas
bilíngues para surdos.
A inclusão dos alunos surdos, no município de Florianópolis, segue as orientações
nacionais e garante o direito da criança surda de aprender a LIBRAS, da Educação Infantil à
Educação Fundamental. Além disso, garante-se à criança o acesso aos conhecimentos em
LIBRAS, com a presença do intérprete em sala de aula.
Considerando os aspectos históricos e o cenário atual da educação de surdos, o tópico
seguinte irá contextualizar como o projeto de ensino de LIBRAS surgiu e como ele foi
implementado no cotidiano de um grupo de crianças, da Creche Waldemar da Silva Filho, na
rede Municipal de Florianópolis.
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O ensino da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) para crianças ouvintes
De acordo com a proposta de educação inclusiva da rede municipal de Ensino de
Florianópolis-SC, o ensino da LIBRAS é inserido no cotidiano da criança surda. Nessa
perspectiva, a criança surda é incluída em um grupo de crianças ouvintes e a LIBRAS passa
também a fazer parte do cotidiano das crianças ouvintes.
Esse foi o cenário educativo de uma das turmas da Creche Waldemar da Silva Filho,
na Rede Municipal de Florianópolis. Na sala, com crianças com idade entre três a quatro anos,
tinha uma criança surda incluída, que estava em processo de aquisição da LIBRAS. A turma
contava com a presença de uma professora de LIBRAS que ensinava a Língua de Sinais para
a aluna surda. Após dois meses de imersão, da professora de LIBRAS, percebeu-se que a
criança surda interagia pouco com as crianças ouvintes, ainda que mediações fossem
realizadas, tanto da professora regente da turma quanto da professora de LIBRAS. Nesse
momento surgiu uma questão: o que fazer para superar a barreira linguística que havia entre a
criança surda e as crianças ouvintes?
Por outro lado, a presença da professora de LIBRAS despertou nas crianças ouvintes o
interesse em aprender os sinais. Nos momentos em que a professora ensinava a Língua de
Sinais para a criança surda, as crianças da turma se aproximavam, tentavam repetir os sinais
feitos pela professora direcionando-se a criança surda na tentativa de comunicar-se com ela.
Em outros momentos se aproximavam da professora pedindo ajuda para fazer os sinais e para
saber os sinais dos objetos da sala.
A necessidade de qualificar as relações da criança surda com a turma e o interesse das
crianças ouvintes em aprender LIBRAS foram os motivadores da criação da proposta de
ensino de LIBRAS como segunda língua.
Nesse contexto surgiu o projeto “Um amor de confusão: aprendendo LIBRAS a partir
das diferenças”. O objetivo do projeto foi promover nas crianças ouvintes a aprendizagem da
LIBRAS a fim de qualificar a inclusão da criança surda na turma. Sobre isso, Lacerda (2000,
p.4-5) afirma que:
[...] quando se opta pela inserção do aluno surdo na escola regular, esta precisa ser
feita com muitos cuidados que visem garantir sua possibilidade de acesso aos
conhecimentos que estão sendo trabalhados, além do respeito por sua condição
linguística e por seu modo peculiar de funcionamento. Isso não parece fácil de ser
alcançado e, em geral, vários desses aspectos não são contemplados. A criança,
frequentemente, não é atendida em sua condição sociolinguística especial, não são
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feitas concessões metodológicas que levem em conta sua surdez, o currículo não é
repensado visando incorporar aspectos significativos à ótica da pessoa surda,
culminando com um desajuste sócio educacional.
A educação da criança surda envolve aspectos que vão para além do ensino da
LIBRAS como primeira língua. Ela perpassa pelo respeito a sua identidade, cultura e ao modo
particular de vivenciar o mundo. Dentro dessa perspectiva, o processo de inclusão da criança
surda é um grande desafio, uma vez que ele deve dar conta não só da sua inserção efetiva no
grupo, mas precisa adequar o ensino de modo que ele respeite a diversidade sociolinguística
da criança.
Ao iniciar o projeto, sabíamos da complexidade que um processo de inclusão da
criança surda envolveria. Porém, sabíamos que não poderíamos promover a inclusão sem
envolver e sensibilizar todas as crianças da turma. Dessa forma, era urgente e necessário que a
LIBRAS fizesse parte do cotidiano da turma e se tornasse a língua de comunicação da criança
surda com seus pares.
Com os objetivos bem delimitados nos deparamos com uma problemática: Como
ensinar a LIBRAS como segunda língua na turma?
Um desafio surgiu diante de nós
professoras e, foi no poema “Um amor de confusão”, de Dulce Rangel, que encontramos um
caminho para apresentar a LIBRAS para a turma.
A partir da releitura e adaptação da história do poema, criou-se uma personagem
surda, que passou a fazer parte do cotidiano da turma. A história do poema, adaptada, passou
a ser a história vivida pelos alunos. Um belo dia a galinha surda chegou à sala da turma, mas
não conseguia se comunicar com as crianças porque ela era surda. Muitas crianças se
espantaram e outras logo já identificaram a semelhança da personagem com a criança surda.
Com o auxilio da professora de LIBRAS a galinha, que falava em LIBRAS, convidou a turma
a procurar seus ovos perdidos. As crianças saíram pela creche em busca dos ovos da galinha,
e vários ovos perdidos eles encontraram. Já com seus ovos a galinha passou a morar na sala e
integrar a rotina do grupo.
A galinha surda instigou ainda mais os alunos a aprenderem a LIBRAS para
comunicar-se com ela. No primeiro contato com a personagem surda, as crianças tentavam
conversar com ela, oralizando. Com o tempo, as crianças foram percebendo que a
comunicação só poderia acontecer através da Língua de Sinais. “- Não adianta falar com ela,
tem que fazer os sinais”. Disse uma criança para o colega que tentava falar com a galinha.
As crianças se envolveram no faz de conta e, com interesse acompanharam o ninho da
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galinha aguardando o próximo ovo a ser chocado. A cada nascimento as crianças interagiam
em LIBRAS com a galinha, interessadas em saber sobre o que sinal do bichinho, o que ele
comia, onde ele vivia, etc. Mesmo com o vocabulário ainda restrito as crianças se
comunicavam com a galinha surda e, quando não sabiam os sinais utilizavam mímicas e
gestos criados por eles.
Como a galinha tinha seu ninho dentro da sala, frequentemente as crianças pediam
para brincar com ela nos momentos de brincadeira livre. Nesses momentos as crianças
utilizavam os sinais que aprendiam o que possibilitou a inserção da criança surda nas
brincadeiras.
Além disso, através da personagem a professora de LIBRAS apresentou ao grupo
histórias da cultura surda, músicas e brincadeiras em LIBRAS. A música proporcionou as
crianças não só a aprendizagem dos sinais, mas também desenvolveu a atenção, percepção
visual e expressão corporal. As histórias possibilitaram um contato com a realidade da
comunidade surda, ou seja, compreender as especificidades da cultura surda. As brincadeiras
preferidas do grupo foram adaptadas e eram realizadas em LIBRAS. Dessa forma,
possibilitou-se às crianças ouvintes fazer uso da língua que estavam aprendendo e à criança
surda uma participação mais efetiva nas brincadeiras.
Paralelamente ao ensino de LIBRAS, a professora regente da turma problematizou as
diferenças, trabalhando com pesquisas sobre a vida dos diferentes animais que chocavam dos
ovos. As crianças aprendiam sobre o habitat, as características, a alimentação e
comportamento de cada animal.
O ensino da LIBRAS foi implementado na turma durante oito meses e as intervenções
da professora de LIBRAS aconteciam duas vezes por semana.
Bilinguismo na Educação Infantil: uma proposta às avessas
O ensino da LIBRAS como segunda língua se tornou, ao longo do projeto, uma
temática emergente. Deste modo, as reflexões sobre o projeto foram além dos limites da
inclusão e adentraram em outro campo teórico: o bilinguismo. Antes de discutir o ensino da
Língua de Sinais para crianças ouvintes, é preciso conceituar o que é bilinguismo e mapear
estudos sobre o ensino da LIBRAS como segunda língua na educação infantil.
De acordo com Flory, várias são as definições do termo bilinguismo.
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O termo Bilinguismo representa uma infinidade de quadros diferentes, os quais
remetem à esfera social, política, econômica, individual, à aceitação e valorização de
cada uma das línguas faladas e das culturas com as quais se relacionam, à exposição
e experiência com a língua, entre outros fatores. São inúmeras as configurações que
levam, aparentemente, ao mesmo ponto: Bilinguismo (FLORY; SOUZA, 2009, p.
29).
O bilinguismo vai além do uso de duas línguas, ele envolve, principalmente, os
aspectos culturais e sociais de cada língua. Respeitando a complexidade do termo
bilinguismo, mas entendendo a importância de uma definição clara para fundamentarmos
nossa prática, utilizaremos a palavra bilinguismo no sentido atribuído por Quadros (2005, p.
27) “Bilinguismo, então, entre tantas possíveis definições, pode ser considerado: o uso que as
pessoas fazem de diferentes línguas (duas ou mais) em diferentes contextos sociais”.
Entendemos que o bilinguismo é fazer uso de duas línguas em contextos
diversificados, estar em contato com diferentes culturas e experimentar o mundo sob outro
prisma.
No Brasil o bilinguismo começa a ganhar espaço, mais ainda estamos distante de uma
cultura que valorize o bilinguismo no sentido pleno da palavra (GOLDFELD, 2002). O ensino
de outras línguas está se consolidando nas séries iniciais e na educação infantil. Hoje, o
inglês, francês e o alemão já fazem parte do cotidiano de instituições de educação infantil e
muitas pesquisas já indicam o benefício da aquisição de uma segunda língua nesse período.
Nesse contexto, a LIBRAS ainda é pouco acessada como opção de segunda língua. A
presença da LIBRAS no contexto educacional, na grande maioria dos casos, está vinculada ao
processo de inclusão dos alunos surdos.
Na educação de surdos, o bilinguismo se refere à aquisição de LIBRAS como primeira
língua e a aprendizagem da Língua Portuguesa escrita como segunda língua. Sabemos da
importância do bilinguismo na educação de surdos, pois ele garante o direito do surdo de
adquirir a sua língua materna5, bem como prevê a aprendizagem da segunda língua, no caso a
língua oficial do país, garantindo que esse sujeito possa participar e ser incluído na sociedade
ouvinte.
O processo de inclusão da criança surda é complexo, pois na grande maioria das vezes
ela está inserida em um contexto familiar ouvinte e aprende tardiamente a LIBRAS. Dessa
5
A língua materna é a “língua que as pessoas adquirem naturalmente quando expostas, desde cedo (primeiros
meses de idade), a relações dialógicas em contextos informais do dia-a-dia” (GORSKI; FREITAG; 2010). No
caso dos surdos, a LIBRAS é considerada a língua materna, pois pesquisas confirmam que um bebê surdo,
inserido em um contexto onde se fala LIBRAS, aprende a língua de sinais no mesmo tempo que um bebê
ouvinte.
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forma, a criança chega à escola sem uma língua constituída, o que acaba dificultando a
aprendizagem da Língua Portuguesa escrita.
Considerando a importância da criança surda fazer uso da LIBRAS no contexto
educativo, dentro da perspectiva da inclusão, colocamos em discussão o ensino da LIBRAS
nesse cenário. Por que se fala em contexto educacional bilíngue para surdos, mas não se
discute o ensino de LIBRAS, como segunda língua, para as crianças ouvintes?
O ensino da LIBRAS no contexto inclusivo possibilita as crianças ouvintes o
aprendizado de uma segunda língua e garante que a criança surda possa utilizar sua língua
materna no espaço escolar.
O debate muda o foco do bilinguismo na educação de surdos, para o bilinguismo na
educação infantil. Isso significa uma proposta bilíngue às avessas, em que as crianças
ouvintes adquirem uma segunda língua, de modalidade diferente6, tendo a oportunidade de
conhecer os aspectos socioculturais que a ela estão relacionados.
Considerações Finais
Muitos estudos já apontam os benefícios da aprendizagem da segunda língua na
educação infantil, mas raros estudos se dedicam a estudar sobre a aquisição da LIBRAS como
segunda língua.
Mais de 150 pesquisas realizadas nos últimos 35 anos evidenciam o que Goethe,
filósofo alemão, disse uma vez: a pessoa que conhece apenas uma língua, não a
conhece de fato. As pesquisas sugerem que crianças bilíngues também podem
desenvolver mais flexibilidade cognitiva, em função de terem o processamento de
informação através de duas diferentes línguas (CUMMINS apud QUADROS, p. 27,
2005).
Tais inferências confirmam os resultados obtidos ao longo do projeto “Um amor de
confusão: aprendendo LIBRAS a partir das diferenças”.
Durante a realização do projeto percebeu-se um envolvimento significativo do grupo
nas atividades de LIBRAS e um crescente interesse dos alunos ouvintes em comunicar-se
com a colega surda. Percebeu-se que o ensino de LIBRAS, como segunda língua,
proporcionou aos alunos ouvintes o desenvolvimento de aspectos relacionados à motricidade,
além do respeito à especificidade linguística e cultural da criança surda.
Dentre as aprendizagens adquiridas a partir da segunda língua, FLORY destaca que “o
6
A LIBRAS pertence à modalidade visual espacial e a Língua Portuguesa à modalidade oral auditiva.
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contato com outras culturas pode ampliar nossa forma de ver o mundo, proporcionando
experiência de vida, cultura geral e, possivelmente, erudição, entre outros fatores”.
Vale ressaltar também que o ensino da LIBRAS foi para além dos limites da sala de
aula. Muitas famílias relataram que as crianças estavam ensinando LIBRAS em casa,
indicando que a LIBRAS é a língua de comunicação da pessoa surda.
Ao final do projeto, constatou-se que o ensino da LIBRAS resultou em aprendizagens
significativas para as crianças ouvintes, além de qualificar as relações da criança surda com
seus pares. A LIBRAS, por ser uma língua de modalidade visual-espacial, desenvolveu nas
crianças ouvintes habilidades relacionadas à percepção e atenção visual, coordenação motora
fina, expressão corporal e facial. No primeiro contato com a LIBRAS, muitas crianças não
conseguiam fixar o olhar para uma narrativa em LIBRAS e, ao final conseguiram estabelecer
o olhar atento aos sinais em uma conversação. As dificuldades de fazer a configuração de mão
de um sinal, foram superadas pelas crianças ao longo do projeto.
Após o contato frequente com a LIBRAS, o grupo apresentou avanços significativos,
quanto a coordenação motora fina, ao superar a dificuldade inicial de compor a configuração
de mão do sinal. Tais evidências confirmam a importância do ensino da LIBRAS para o
processo de inclusão da criança surda, bem como para o desenvolvimento de habilidades nas
crianças ouvintes. Logo, é possível se pensar o ensino de LIBRAS para crianças ouvintes,
dentro de uma proposta de ensino bilíngue.
O estado da arte aponta que poucos estudos sobre o ensino da língua de sinais, como
segunda língua, são realizados no contexto acadêmico. Considerando a importância e a
complexidade dessa temática, finalizamos este trabalho na certeza de que as discussões não se
esgotam neste artigo. Nossa intenção é que ele signifique uma flecha, que um pensador atira,
assim como no vazio, para que outro pensador a recolha e possa também enviar a sua na
mesma ou em outra direção (CORAZZA, 2007).
REFERÊNCIAS
CORAZZA, Sandra. Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. 3.
ed. Rio de Janeiro: Ed. Lamparina, 2007.
FLORY, Elizabete Villibor; SOUZA, Maria Thereza Cost. Coelho de. Bilinguismo:
Diferentes definições, diversas implicações. Revista Intercâmbio, volume XIX: 23-40, 2009.
São Paulo: LAEL/PUC-SP. ISSN 1806-275x
GOLDFELD, Marcia. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sócio-
20774
interacionista. 2. ed. São Paulo: Plexus Editora, 2002.
GORSKI, Edair; FREITAG, Raquel Meister Ko. O ensino da Língua Materna. 1. ed.
Florianópolis: CCE/UFSC, 2008. V. 1. Disponível em:
<http://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoEspecifica/ensinoDePrimeiraLi
ngua/assets/249/TEXTO-BASE_ELM_2010.pdf>. Acesso em 2 abril de 2013.
LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. A inserção da criança surda em classe de crianças
ouvintes: focalizando a organização do trabalho pedagógico. In: REUNIÃO ANUAL DA
ANPED, 23., 2000, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPED, 2000. p. 1-17.
QUADROS, Ronice Muller de. O ‘BI’ em bilinguismo na Educação de Surdos. In
FERNANDES, Eulália (organizadora). Surdez e Bilinguismo. Porto Alegre: Mediação, 2005.
cap. 2, p. 26-36.
STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. 2. ed. rev. Florianópolis:
Ed. da UFSC, 2009.
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O ENSINO DA LÍNGUA DE SINAIS PARA CRIANÇAS OUVINTES