nº1 arcádia revista de literatura e crítica literária Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária é uma revista-laboratório do curso de Estudos Literários do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. É uma publicação eletrônica, de submissão aberta, publicada anualmente pelos alunos de graduação do Departamento de Teoria Literária, mas aceita contribuições de toda a comunidade, independente de filiação institucional ou formação acadêmica. Arcádia publica textos de criação literária (prosa ou poesia), textos críticos (resenhas, artigos ou ensaios) sobre obras literárias ou relacionadas à teoria, à crítica e à história literária, e traduções em uma dessas áreas. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor: José Tadeu Jorge Vice-Reitor: Alvaro Penteado Crósta INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM Diretora: Matilde Virgínia R. Scaramucci Diretor-Associado: Flávio Ribeiro de Oliveira COORDENAÇÃO DE GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS Marcos Aparecido Lopes Jefferson Cano COMISSÃO EDITORIAL Ana Maria Côrtes Elisa Pagan Jessica Sallasa Júlia Mota Laís Calusni Luísa Alvarenga Thaís Soranzo Índice | 2014 crítica literária A vingança de Diónysos: uma análise do prólogo d’As Bacantes Lidiane Garcia Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo ambivalente Marcella Abboud Tempus tradução O Truque do grilo [Das Grillesnpiel], de Gustave Meyrink, traduzido por Júlia Ciasca Os Mendigos [The beggars], de Lord Dunsany, traduzido por Thiago Andreuzzi fugit: o mecânico e o orgânico no Manifesto Futurista Matheus Romanetto O conceito de Kleos em Ilíada e Os Lusíadas Odorico Leal Prosa, poesia e linguagem em Giorgio Agamben Fernanda Valim Na contramão: Toda Poesia - Paulo Leminski Ricardo Gessner Jogos Vorazes e a romantização do universo distópico Ana Maria Côrtes Romances expressos e amores em Ithaca Road Elisa Pagan A reelaboração dos jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita Jessica Sallasa criação literária A existência não vence em teu peito Rogério Sáber Alquimia, Criação, Vermelho Victor Simões Cantador, Rugas João Miguel Moreira Empresa Laníficios Tejo LDA Daniel Serrano Finalmente me tornei um poeta contemporâneo, Triângulo de Acrílico sobre Praia João Gabriel Mostazo Hábito Tiago Donoso Humanizador Thiago Andreuzzi In Memorian Matuyama Noite Quente Pedro Couto Quatro Ventas Suene Honorato Tempo no Espelho Rodrigo de Faria Travessia Fábio Mariano Fernanda Valim Doutoranda em Estudos Literários na UFMG, tendo realizado seu mestrado e graduação em Letras pela UNICAMP. É professora da Faculdade Interdisciplinar de Humanidades da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (Diamantina-MG). Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 4 Prosa, Poesia e Linguagem em Giorgio Agamben resumo Este ensaio esboça uma tentativa inicial de (re)pensar o lugar que a linguagem ocupa nas reflexões do filósofo italiano Giorgio Agamben, revisitando alguns conceitos de seu pensamento, em especial os de prosa e poesia, a partir dos ensaios-fragmentos que constituem Ideia da Prosa (1999) e o “O fim do Poema”, capítulo que integra Categorie Italiane (2010). Contando com o amparo teórico da leitura de outras obras do autor é acrescida à discussão central uma série de tematizações relacionadas e que contribuem para reflexões teóricas ao campo dos estudos filosóficos e literários. Pensar as categorias conceituais da prosa e da poesia em Giorgio Agamben é, antes de tudo, estabelecer questionamentos que passam necessariamente pela questão da narratividade de sua obra e ainda pela reflexão sobre qual a escrita/escritura promovida pelo autor italiano. É notório o fato de que as discussões que envolveriam o lugar da prosa e da poesia nesse contexto apontam ainda para uma outra questão fundamental que diz respeito ao lugar da linguagem no pensamento de Giorgio Agamben. Com o objetivo de promov promover um diálogo que aponte para o desenvolvimento desta questão central - igualmente cara ao pensamento do filósofo -, partimos das discussões promovidas nos ensaiosfragmentos de Ideia da Prosa e o “O fim do Poema”, capítulo que integra Categorie italiane1, além do estudo de outras obras, tais como A Linguagem e a morte2, Estâncias3 e do capítulo IX, de A comunidade que vem4. Ao longo das leituras que percorrem o pensamento agambeniano, parece não haver distinção precisa entre pensamento e linguagem e a importância do que é pensado/dito ao leitor torna-se também indissociável da forma escolhida para dizê-lo. Logo no prefácio de Ideia da Prosa, João Barrento aponta para essa qualidade inclassificável do discurso do autor, e para as potencialidades da linguagem dessa espécie de "prosa reflexiva-narrativapoética nascida para a modernidade"5 - nem literatura, nem filosofia convencional - e que mais se aproximaria da bela imagem de "um jardim de muitos canteiros em que se semeiam ideias esperando que daí nasça alguma coisa"6. jjjjjjjjjj _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 1 AGAMBEN, Giorgio. Categorie Italiane. Studi di poética e di letteratura. Bari: Laterza, 2010. Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 3 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 4 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby. In: A comunidade que vem. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993. 5 BARENTO apud AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.10. 6 Ibidem, p.10. 2 AGAMBEN, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 De fato, depois dos poemas em prosa de Baudelaire, da prosa filosófica de Nietzsche e de Imagens de pensamento7 de Walter Benjamin, há muito nesses ensaios-fragmentos que permanecem mesmo na ordem do não dito e que apontam verdades como enigmas do homem moderno. Como propõe Barrento, a única forma legítima de escrita parece ser aquela capaz de imunizar o leitor contra a ilusão de verdade8. Em Ideia da prosa, Agamben parte da tensão estabelecida entre prosa e poesia, e a questão central parece ser a tentativa de estabelecer algum critério demarcatório possível e reconhecível para a diferenciação de tais gêneros ou instâncias. Agamben parte da tese de que a poesia viveria na tensão e no contraste entre som e sentido, entre unidades sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas, ou ainda, entre a série semiótica e a série semântica. É curioso notar que o termo "série semiótica" não aparece de fato no texto de Ideia da prosa, mas somente em texto posterior, mais especificamente em “O fim do poema”. O que teria motivado o autor a incluir este termo – que ampliaria a noção de linguagem aparentemente por ele mobilizada – ao tratar novamente da temática comentada? Esta é uma questão pontuada ao longo das leituras e que nos parece significativa parala 5 para a compreensão do lugar ocupado pela linguagem no pensamento do autor. Nesse contexto, a possibilidade do que Agamben denominou de enjambement constitui o único critério que permitiria distinguir a prosa da poesia. Dessa forma, consideraríamos como poesia o discurso poético no qual o enjambement existe. O enjambement seria um complemento do sentido de um verso no verso seguinte: a oposição/desconexão entre um limite métrico e um limite sintático; entre o ritmo sonoro e o sentido; uma pausa prosódica e uma pausa semântica. Nicolò Tibino, no século XIV, definiu o termo da seguinte maneira: “Com efeito, muitas vezes ocorre que, finda a consonância, o sentido da oração ainda não chegou ao fim”9. De acordo com Agamben, o enjambement traria “à luz o andamento originário, nem poético, nem prosaico, mas, por assim dizer, bustrofédico da poesia, o essencial hibridismo de todo discurso humano”10. A possível ausência do enjambement constituiria um verso com enjambement zero, como aconteceria com frequência, por exemplo, nos poemas de Petrarca, utilizados pelo autor para ilustrar seu comentário. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ ____ 7 BENJAMIN, Walter. Imagens de Pensamento/Sobre o haxixe e outras drogas. Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 8 Ibidem, p.15. 9 TIBINO apud AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. In: Cacto. 1. Trad. de Sérgio Alcides. São Paulo, 2002. 10 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.32. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Agamben propõe uma primeira consequência dessa condição do poema, nessa disjunção entre som e sentido, que seria a importância decisiva do fim do verso - lugar da versura -, termo latino que designa o lugar em que o arado dá a volta no fim do campo. A versura constituiria o cerne do verso - cuja manifestação é o enjambement - e se orientaria ao mesmo tempo para duas direções opostas, para trás (verso) e para diante (prosa). Seria, inclusive, uma suspensão, uma hesitação entre o sentido e o som. Mas o que aconteceria no ponto em que o poema finda, ou seja, na última estrutura formal perceptível de um texto poético? Esta outra questão será levantada pelo autor em “O fim do poema”, tendo em vista que no ponto em que o poema finda, a oposição entre um limite métrico e um limite semântico já não é mais possível e o enjambement também não é mais pensável. Segue-se, a partir das considerações anteriores, que, se o verso se define precisamente através da possibilidade do enjambement, o último verso de um poema não é um verso. Walter Benjamin e Dante Alighieri são citados por Agamben como observadores da significativa questão da finalização do poema, como se este, enquanto estrutura fomall 6 formal, não pudesse ou devesse findar, já que implicaria “esse impossível poético que é a coincidência exata de som e sentido”11. Talvez, algumas problematizações poderiam ser possíveis, como espécies de jogos de linguagem capazes de colocar tais conceitos em atividade. Vejamos o exemplo a seguir: ... seis três nove ... seis três três ... seis três dois ... Poderíamos classificar o texto anterior como uma espécie de poema ou de prosa? Haveria presença ou ausência de enjambement? Caso observemos atentamente, existiria nele uma sonoridade (a própria sonoridade das palavras através da disposição dos grafemas) em tensão com um sentido (a soma dos números do primeiro verso resulta o número do segundo verso; a subtração dos números do terceiro _________________________________________________________________________________________________________________________________________ Giorgio. O fim do poema. In: Cacto. 1. Trad. de Sérgio Alcides. São Paulo, 2002. 11 AGAMBEN, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 terceiro verso resulta no do quarto; e a divisão dos números do quinto, resulta no número expresso no último verso). Poderíamos atestar a presença do enjambement, uma vez que o sentido dos versos se dá a partir do verso subsequente, indicando, portanto, que estaríamos diante de um poema. No entanto, qualquer leitor mais experiente ou um estudioso mais aguçado logo desconfiaria da criação do texto esboçado acima, podendo criar outras conjecturas e conceitos para manifestar sua discórdia em relação ao gênero em questão, ou ao menos em relação à qualidade estético-literária do suposto poema. O que os conceitos problematizados por Agamben poderiam esclarecer sobre alguns poemas concretos, como o seguinte? Qual seria sua versura? Poderíamos pensar num fim de verso efetivo para o poema em questão? Ou ainda, poderíamos considerá-lo uma prosa ao invés de um poema? 7 Giro, Marcelo Moura Obviamente, o tratamento questionador dado ao poema concreto de Marcelo Moura é apenas uma provocação para que pensemos as categorias expostas pelo autor de maneira curiosa e não redutiva12. Ao final de ambos oos textos, _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 12 A discussão sobre os conceitos mobilizados por Agamben nos remetem ao conhecido texto Como reconhecer um poema ao vê-lo, de Stanley Fish, no qual o ___ autor cria uma brincadeira com seus alunos, sem que eles a saibam, fazendo com que o grupo interprete uma disposição específica de palavras – que semanticamente apontavam para referências da Idade Média, tema da aula em questão – como se elas, em sua totalidade, representassem de fato um poema em sua forma e composição. Após uma série de hipóteses interpretativas para o texto criado, o autor problematiza a questão dos supostos limites interpretativos, motivando uma série de reflexões interessantes. FISH, Stanley. Como reconhecer um poema ao vê-lo. In: PaLavra 1. Rio de Janeiro: PUC, 1993, p. 156-165. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 os textos, Agamben parece apontar mais categoricamente para a necessidade e a existência mútua da prosa e da poesia, para um “essencial hibridismo de todo discurso humano”13. No texto-fragmento “Ideia da cesura”14, o autor segue a discussão, passando agora a refletir sobre o ritmo do poema. A cesura seria a pausa/silêncio/quebra no ritmo do verso; a interrupção do transporte rítmico do poema; o elemento que faz parar o lance métrico da voz; a palavra pura e a interrupção anti-rítmica necessária, como nos diz Hölderlin. Agamben utiliza-se do simbolismo da imagem de um cavalo que transporta o poeta: o cavalo seria a voz, o elemento sonoro e vocal da linguagem, e o poeta seria o logos que torna a voz inteligível e clara. Através do jogo simbólico com esta imagem, em dois exemplos distintos, o autor faz com que a ideia de cesura do verso possa indicar não mais unicamente a noção de suspensão rítmica do poema, mas também uma suspensão do movimento do cavalo e uma suspensão do próprio pensamento (do ato de pensar). A razão, portanto, estaria no humano, simbolizado pela figura do cavaleiro, e o cavalo seria a voz que o logos tornaria inteligível. 8 Agamben, a partir da analogia com o conceito de cesura na métrica em poesia, dá voz ao pensamento de Hölderlin, comentando suas anotações à tradução do Édipo Rei, de Sófocles. Haveria no trágico, de acordo com o poeta e tradutor alemão, a predominância de um equilíbrio entre os episódios. O transporte trágico (que para Aristóteles, na Poética, seria a reviravolta/peripécia) se daria pela cesura, pela quebra do ritmo e do movimento aparente da tragédia, a dividiria em duas partes desiguais: tanto em Édipo quanto em Antígona, Hölderlin observa que a cesura é introduzida pela palavra e intervenção divinatória de Tirésias, personagem mediador do mundo dos homens e do todo do cosmos. Em Édipo, a ruptura do ritmo da tragédia se daria justamente no momento em que, através das palavras de Tirésias, o protagonista toma consciência de si (de ter cometido incesto e de ser o assassino do próprio pai). A partir daí, a questão da circularidade temporal - de um suposto ritmo criado pelos deuses - é rompida e o personagem do início da tragédia, rei de Tebas, passa a ser incompatível com a figura final da peça, o homem exilado que tirou sua própria ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 13 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.32. _____ 14 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da cesura. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 34-36. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 incompatível com a figura final da peça, o homem exilado que tirou sua própria visão. O início e o fim da tragédia tornam-se, assim, irreconciliáveis. Em Antígona, é Tirésias quem avisa Creonte sobre seu futuro infortúnio e este é também o momento de redenção tardia do personagem, já no final da tragédia, e que culminará na morte da protagonista. Hölderlin afirma que “Como ponto de inflexão, a cesura é onde a tensão entre a forma e o conteúdo se supera na presença de uma esfera mais elevada e portadora de equilíbrio”15. A cesura se estabelece como signo autoreferente da articulação do divino e do humano, pela pura palavra (o silêncio) ou mesmo pelo momento indizível da consciência de si. Finalizando “O fim do poema”, Agamben escreve a seguinte passagem: Wittgenstein escreveu certa vez que “a filosofia deve-se apenas propriamente poetá-la” [Philosophie dürfte man eigentlich nur dichten]. Talvez a prosa filosófica, ao fazer-se como se o som e o sentido coincidissem no seu discurso, se arrisque a decair na banalidade, se arrisque portanto a falta 9 faltar com o pensamento. Quanto à poesia, pode-se dizer, ao contrário, que está ameaçada por um excesso de tensão e de pensamento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein, que “a poesia deve-se apenas propriamente filosofá-la”. Do mesmo modo que para Wittgenstein o discurso filosófico, no seu intento de se distinguir do discurso poético, acaba anunciando o seu próprio fim prosaico, Agamben, no seu intento de distinguir o discurso poético do prosaico, acaba anunciando o próprio fim do discurso poético. O modo como Agamben parece nublar as fronteiras entre o filosófico e o literário aproxima-se, num certo sentido, da discussão de autores que exerceram influência notória em seus estudos, procurando igualmente desconstruir a tradição metafísica e essencialista dominantes no discurso filosófico. Nesse movimento desconstrucionista, autores como o austríaco Ludwig Wittgenstein e o franco-argelino Jacques Derrida acabaram sugerindo – tanto no estilo de se pensar filosoficamente quanto no de expressar esse pensamento através de uma escrita filosófica - uma impossibilidade de distinção entre o filosófico e o literário. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 15 HÖLDERLIN apud CASTRO, Claudia Maria de. Deleuze, Hölderlin, e a cesura do tempo. In: Revista O que nos faz pensar, nº22, maio de 2007, p. 9. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 O modo como Derrida desconstrói as fronteiras entre literatura e filosofia fica caracterizado pelo reconhecimento de rastros ficcionais em todo tipo de escritura. De fato, como assinalou Haddock-Lobo a partir da leitura do artigo de Elizabeth Duque-Estrada, “A literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais interessante que o mundo”: O que se entende, então, por uma espécie de estrutura do literário em geral rege-se de acordo com uma lógica do não aparecimento que se define pelo fato de que toda narrativa, todo relato, ficcional ou não, é uma relação com aquilo que ela narra. Nesta relação, tanto o relato, a narrativa, quanto o relatado, o que é narrado, não aparecem em sua presença efetiva. O que Beth herda de Derrida nesta “teoria da literatura” é a constatação de que este não aparecimento estrutural não é exclusividade da literatura, mas de todo relato, constituindo uma espécie de “ficcionalidade constitutiva” de todo discurso16. 10 Talvez não coincidentemente Agamben dedique o fragmento “Ideia do pensamento”17 a Jacques Derrida, afirmando que “todo acto de pensamento acabado, para o ser – ou seja, para poder referir-se a qualquer coisa que está fora do pensamento –, deve dissolver-se inteiramente na linguagem”, nos remetendo também à própria discussão sobre a linguagem, citação e tradução, especialmente da obra Torres de Babel. Em “Ideia do Único”18, no qual Agamben discute a questão do bilingüismo na poesia, é retomada a questão da experiência da língua, que pressupõe as palavras, mas a língua falada por nós são seria única, estaria presa na série infinita das metalinguagens e, nessa experiência, o homem ficaria sem palavras diante da linguagem. A língua para a qual não teríamos palavras seria justamente a língua da poesia e ao poeta cumpriria o papel de recordar e preencher o suposto vazio da vã promessa de propor ou encontrar nela um sentido19. A mesma ausência de fronteiras rígidas entre os discursos filosóficos e literários parece ser sugerida pelo cach ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 16 HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido: a filosofia a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: NAU; Ed. PUC-Rio, 2011, p.159 e 174. 17 AGAMBEN, Giorgio. Ideia do pensamento. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 101-103. 18 AGAMBEN, Giorgio. Ideia do Único. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 39-42. 19 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 40-42. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 estilo terapêutico-aforístico de pensar desenvolvido pelo filósofo Ludwig Wittgenstein, na qual o filosófico e o literário tornam-se, de fato, inseparáveis. A postura crítica do autor diante da grande teoria e da ambição totalizante que é normalmente identificada com a filosofia é representada na conclusão do Tractatus pelo aforismo “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”20. Reconhece, sensatamente, a existência de aporias metafísicas e éticas que nenhuma discussão, explicação ou argumentação lógico-racional seria capaz de justificar ou fundamentar. E é justamente a pretensão do discurso filosófico de adentrar racionalmente nesse domínio do que não pode ser dito, mas apenas mostrado, o que faz da “filosofia” wittgensteiniana uma “antifilosofia” que se propõe a determinar em que circunstâncias a filosofia deve questionar-se a si mesma, impondo-se limites. Isso não significa que esse domínio do não dito – do inefável – não possa se deixar mostrar por exempl 11 outras formas não racionalizadoras de linguagem, como é o caso de certas encenações artísticas da linguagem: “Há por certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico”21. O modo como Wittgenstein tenta resolver problemas filosóficos, a tendência anticonclusiva no modo de praticar sua investigação seria mais adequadamente adjetivada de “estética”, seja pela disposição criativa de exemplos ao longo especialmente de sua obra póstuma, seja ainda pelas imagens selecionadas, com suas parataxes e “repentinos arroubos de fé”22. É justamente este estilo estético não racionalizante, anti-dogmático e anti-conclusivo que caracteriza igualmente, numa primeira aproximação, a filosofia agambeniana. A possível aproximação tensional, por vezes controvertida, estabelecida neste ensaio especialmente entre Wittgenstein e Derrida leva em conta tentativas mais abrangentes, já realizadas, como é o caso da apresentada pelo _______________________________________________________________________________________________________________________________________ _____ 20 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010, TLP – 7. 21 Ibidem, TLP - 6.522. 22 BOUVERESSE apud PERLOFF, Marjorie. A Escada de Wittgenstein: a Linguagem poética e o Estranhamento do Cotidiano. Trad. de Elisabeth Rocha Leite; Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p.36. ARCÁDIA | Nº 1 |2014 pelo crítico Henry Staten23, que argumenta especialmente em favor do fato de que ambos os filósofos rejeitam a determinação transcendental do ser, bem como a noção de que seja possível existir qualquer coisa fora do domínio da linguagem. Stanley Cavell, um dos críticos fundamentais para os estudos sobre Wittgenstein, recuperando o antigo debate e a crítica de Derrida a J. Austin, manifestou-se com clareza sobre essa questão24. Como apontou Marjorie Perloff25, a existência de homologias entre os pensamentos de Wittgenstein e Derrida não exclui, em hipótese alguma, a existência de diferenças irreconciliáveis entre suas reflexões filosóficas, tais como a questão da fala/escrita, da base ontológica das formas de vida e daquela referente ao fato de Wittgenstein ter tido pouca influência no trabalho de Derrida. 12 A passagem anterior, em que Agamben estabelece uma comparação entre o discurso filosófico e o discurso literário, nos remete a uma outra citação, agora de autoria de Walter Benjamim, na qual o autor apresenta uma concepção de temporalidade que parece se aproximar daquela que perpassa o pensamento filosófico agambeniano. Benjamin, no seu texto Paris, capital do séc. XIX, conclui: Desta época é que se originam as passagens e os interiores, os salões de exposição e os panoramas. São reminiscências de um mundo onírico. A avaliação dos elementos oníricos à hora do despertar é um caso modelar de raciocínio dialético. Por isso é que o pensamento dialético é o órgão do despertar histórico. Cada época não apenas sonha a seguinte, mas, sonhando, se encaminha para o seu despertar. Carrega _________________________________________________________________________________________________________________________________________ Henry. Wittgenstein and Derrida. Lincoln: University of Nebraska Press, 1986. 24 “Subjacentes à oposição contra a voz metafísica, que eu acho que Austin e Wittgenstein compartilham com Derrida, existem todas as diferenças entre os mundos das tradições das filosofias anglo-americana e continental, diferenças entre suas concepções de (e entre suas relações com) ciência, arte, cultura, religião, educação, leitura, cotidiano. Enquanto Derrida e Wittgenstein vêem a metafísica e o cotidiano como ligados por contrastes, em Derrida, de forma diferente do que ocorre em Nietzsche e em Platão, a filosofia guarda uma determinada realidade, uma vida cultural, intelectual e institucional autônoma, o que em Wittgenstein não existe”. CAVELL, Stanley. A Pitch of Philosophy, Autobiographical Exercises. Cambridge; Londres: Harvard University Press, 1994, p. 63. 25 PERLOFF, Marjorie. A Escada de Wittgenstein: a Linguagem poética e o Estranhamento do Cotidiano. Trad. de Elisabeth Rocha Leite; Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 32. 23 STATEN, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 despertar. Carrega em si o seu próprio fim e – como Hegel já o reconheceu – desenvolve-o com astúcia. Nas comoções da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem26. A presença tutelar também do pensamento Benjaminiano na vasta obra de Agamben é evidente, neste caso, não apenas por trazer no próprio título – Ideia da Prosa – seu programa, apontando para uma aparente indistinção de fundo entre linguagem e pensamento, mas talvez por nos conduzir a uma aproximação sobre o lugar da linguagem no pensamento de ambos os autores. A Ideia da prosa, nesse sentido, representaria uma utopia de linguagem, a própria língua experienciada, na qual, hipoteticamente, todos se entenderiam, apontando para uma impossibilidade de existência de uma língua pura, universal e transparente. lindaaa 13 Assim como as ruínas reconhecidas por Benjamin a partir do olhar sob os edifícios modernos, o conhecimento hermenêutico, para Agamben, seria uma ocupação com as ruínas do sentido e seus enigmas. Ambos os fragmentos parecem carregados de uma visão que se afasta tanto da lógica clássica aristotélica, cujas leis postulam a impossibilidade das coexistências e contradições, quanto do pensamento dialético mais ortodoxo. Eliminam-se aqui tanto as oposições/polaridades categóricas, quanto a ideia de uma tese e uma antítese remeterem a uma síntese: interior e exterior passam a integrar-se mutuamente, como no exemplo matemático de uma faixa de Möbius, expressa a seguir através de uma gravura de Escher27. Parece não haver também uma linearidade, nem histórica nem temporal, mas, ao contrário, uma mudança significativa na concepção da temporalidade, o que será interessante, em certo sentido, para pensarmos a noção de cesura, retomada por Agamben. jjjj ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 26 Grifos nossos. BENJAMIN. Walter. Paris, die Hauptstadt des XIX. Jahrhunderts. In: Gesammelte Schriften. v. 5, pt. 1. Org. por Rolf Tiedemann. Frankfurt: ____ Suhrkamp Verlag, 1982, p. 43. Apesar de ter em mente que outras citações de W. Benjamin poderiam clarificar sua evidente presença na obra de G. Agamben, como suas Teses sobre o conceito da história, por exemplo, o trecho em questão torna perceptível a aproximação do pensamento dos autores, em especial sobre uma aparente concepção de linguagem, ao discutir a questão de ato e potência não como uma oposição, mas como uma coexistência (Ideia do estudo). Nesse sentido, para Agamben, toda potência é impotência e esta noção anfíbia acaba transitando entre o sim e o não e corroborando com a imagem que temos na citação de Benjamin, a permanência da tensão, da latência, da coexistência. 27Gravura “Swans” (1956), de Maurits Cornelis Escher. Disponível em: http://www.mcescher.com/Gallery/gallery-recogn.htm. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Em Infância e História28, o autor afirma ser “na linguagem e através da linguagem que o homem se constitui como sujeito” e a linguagem de cada indivíduo pertenceria à comunidade com quem convive, pois a infância instauraria nela a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, entre o sistema de signos e o discurso. Isso indicaria ser o sujeito da linguagem o fundamento da linguagem 14 experiência. Assim como a origem da linguagem se manifestaria na infância do homem, para o filósofo italiano seria improvável pensarmos na existência de um sujeito prélinguístico, pois infância e linguagem estariam intrinsecamente relacionadas. Como afirmou André Dick29, parece-nos que a infância, para Agamben, seria o início da profanação e da descoberta da linguagem - principalmente a poética - e carregaria o sentido de toda uma existência. Já no capítulo IX de A Comunidade que vem, intitulado “Bartleby”, Agamben retoma a discussão do modo como se daria a passagem da potência ao acto. A potência suprema seria aquela que poderia se dar enquanto potência e impotência. Retomando Aristóteles, o pensamento seria a potência pura (isto é, também potência de não pensar) e é comparado a uma pequena tábua de escrever na qual nada está escrito (a célebre tabula rasa)30. Agamben propõe ser “graças a esta potência de não pensar que o pensamento pode virar-se para si próprio (para sua própria potência) e ser, no seu auge, pensamento do pensamento”31. _______________________________________________________________________________________________________________________________________ 28 _______ AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.56. 29 DICK, André. Poesia e linguagem em Giorgio Agamben. Disponível em: http://unisinos.br/blog/ihu/2009/02/19/poesia-e-linguagem-em-giorgio-agamben. 30 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby. In: A comunidade que vem. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.34. 31 Ibidem, p.35. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Dessa forma, o ato perfeito de escrita proveria não de uma potência da escrita, mas de uma impotência que se realiza como um ato puro. A figura de Bartleby é citada justamente como este “escrivão que não deixa simplesmente de escrever, mas prefere não”32, representando a figura extrema de quem escreve sua potência de não escrever. Aliado a esta arqueologia da potência é importante pontuar o modo como Giorgio Agamben, partindo do discurso linguístico de Benveniste (semântica da enunciação), coloca a língua como o lugar do evento de uma subjetividade, já que a primeira pessoa do discurso simbolizaria aquilo que há de mais singular, vazio e genérico. Agamben convoca o processo, a desconstrução/embate do/com (o) eu e, nesse lugar, nos apresenta a impossibilidade de dizer “eu”. Portanto, ao refletirmos sobre que sujeito seria esse de que fala o filósofo, passaríamos necessariamente da noção de corpo às sensações e seguiríamos para além do “eu”, através da linguagem da Voz. 15 Em Estâncias33, retomando novamente o pensamento de Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco alemão34, Giorgio Agamben explora o tema da melancolia, recuperando este conceito a partir do sentimento condenatório imposto pela religião, passando por um clássico texto de Freud35, Luto e Melancolia, sobre o assunto até iniciar um diálogo com o conceito de “fantasma”, sobretudo a partir da análise de uma obra de Dante (Vita Nuova): “Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece que nunca possui Beatriz – mas lamenta sua perda. Essa perda do ‘fantasma’ que nunca possuiu indica uma melancolia particular [...] A imagem – ou o fantasma da melancolia – é gerada a cada instante de acordo com o movimento ou a presença de quem a contempla”36. Para Agamben, entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela haveria um intervalo que os poetas medievais denominavam amor: poesia e amor são lugares da negatividade evidente para o filósofo. A descoberta do amor como rreal e fantasmagórico também o coloca como _________________________________________________________________________________________________________________________________________ 32 Ibidem, p.35. __ 33 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 34 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. 35 Freud, Sigmund. Luto e Melancolia. Trad. de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 36 DICK, André. Poesia e linguagem em Giorgio Agamben. Disponível em: http://unisinos.br/blog/ihu/2009/02/19/poesia-e-linguagem-em-giorgio-agamben. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 como irreal e fantasmagórico também o coloca como inalcançável. Dessa forma, o “fantasma” remeteria à melancolia, a qual, por sua vez, indicaria a voz negativa da morte, bastante explorada em A linguagem e a morte. O motivo de retomarmos brevemente este panorama da melancolia e do fantasma da linguagem para Agamben torna-se significativo para compreendermos de que maneira, em A linguagem e a morte, o autor propõe – partindo das leituras de Hegel, de Heidegger e Derrida – que a voz seria a própria representação negativa da morte. Retomando as discussões sobre a metafísica para esses autores, o filósofo italiano parece apresentar não o seu fim, mas uma fusão ou aproximação à própria linguagem, o que enriquece a proposta do ensaio. Giorgio Agamben reivindica o problema da Voz como questão metafísica fundamental para a discussão sobre a linguagem e a morte, e como estrutura originária da negatividade. Retomando o conceito de enunciação para Benveniste, o autor relembra que ela não deve ser confundida 16 confundida com um simples ato de fala37. Nesse contexto, a dimensão da palavra “ser” seria aquela do “ter-lugar da linguagem, e metafísica é aquela experiência da linguagem que, em cada ato de fala, colhe o abrir-se desta dimensão e, em todo dizer, tem, antes de mais nada, experiência da maravilha que a linguagem seja”38. Mas o que, na experiência do evento da linguagem, lançaria algo na negatividade? Na tentativa de resposta a esta questão, Agamben se posiciona afirmando que “a enunciação e a instância de discurso não são identificáveis como tais senão através da voz que as profere”39. O problema da voz passa a ser, portanto, a dimensão ontológica fundamental do pensamento do autor: ela mostra-se como “pura intenção de significar, como puro querer-dizer”40. O ser é e está na voz e não é simplesmente um mero fluxo sonoro emitido pelo aparelho fonador humano: a voz animal, por exemplo, poderia ser associada ao mero som e ser o índice de quem a emite, mas não remeteria à instância de discurso, nem à esfera da enunciação, como faz questão de pontuar Agamben. Assim, “o ter lugar da linguagem ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 37AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.43. _____ 38 Ibidem, p. 44. 39 Ibidem, p. 52. 40 Ibidem, p. 53. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 linguagem entre suprimir-se da voz e o evento de significado é a outra Voz [...] que na tradição metafísica, constitui a articulação originária da linguagem humana”41 e constitui necessariamente uma dimensão negativa de pura temporalidade, “aquilo que articula a voz humana em linguagem é uma pura negatividade”42. Num certo momento de seu seminário sobre a negatividade, Agamben afirma que a experiência poética parece coincidir com a experiência da linguagem da filosofia: o elemento métrico-musical, diz ele, mostra o verso como lugar de uma memória e de uma repetição. O verso informanos que as palavras já aconteceram e que retornarão ainda, que a instância de palavra que nele tem lugar é, portanto, inapreensível43. Musa seria justamente o nome dado pelos Gregos a esta experiência da inapreensibilidade do lugar originário da palavra poética. Assim, proferir a palavra poética significaria ser “possuído pela Musa”, ter experiência do lugar originário da palavra implícita em todo falar humano44. Agamben retoma Platão, justificando o motivo de ter ele considerado a musa da filosofia como “a verdadeira musa”, apontando, assim, a questão que se prolonga desde sempre entre poesia e filosofia, já que ambas tentam apreender o inacessível lugar original da palavra e, igualmente 17 igualmente, mostram este lugar como inencontrável. Nas palavras do autor: A filosofia, que nasce exatamente como tentativa de liberar a poesia da sua inspiração, consegue, afinal, reter a própria Musa, para fazer dela, como espírito, o seu próprio sujeito; mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das Negative), e a voz mais bela, que segundo Platão, compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem som. (Por esta razão, talvez, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a prosa possa jamais levar a cabo por si a própria empresa milenar. Talvez apenas uma palavra na qual a pura prosa da filosofia interviesse, a certa altura, rompendo o verso da palavra poética na qual o verso da poesia interviesse, por sua vez, dobrando em anel a prosa da filosofia seria a verdadeira palavra humana)45. Pensamos ser esta uma maneira considerável de encerrar este breve ensaio reflexivo, atentando novamente para o modo extremamente particular com que Giorgio Agamben promove a discussão e a dissolução categórica entre os limites da filosofia e da literatura, mostrando-se um autor verdadeiramente limítrofe ao se situar nesta interseção. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 41 Ibidem, p. 56. 42 Ibidem, p. 57. 43 Ibidem, p.107. 44 Ibidem, p.107. 45Ibidem, p.108. Rodrigo de Faria Arquiteto e Urbanista, Mestre e Doutor em História pelo IFCH-UNICAMP, Pós-Doutorado pela FAU- USP e pela ETSAM-UP Madri. Professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB), e Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade – CIEC/UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 19 O Ruído do pensamento Rompe a Razão Resiste ao seu desejo Reluta e Relativiza Recriando o pensar Recomeça o Revelar Retorna ao seu lugar Reforça a Respiração Regulando a sua intenção Retilínea e (ir)regular ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 20 Um poema branco Escrito com letras brancas Na página branca do livro que não tem palavras Mas apenas folhas brancas Ainda está por ser escrito. A próxima página branca Quer a tinta negra que exala do seu pensamento Quer a tinta vermelha que escorre do seu corpo ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 21 Nos livros que leio Nos livros que odeio Nos poemas que creio Nos versos que anseio Na palavra que não veio Na letra como meio Escrevo sem por que Escrevo sem pensar Escrevo pra dizer Que os livros que não leio Não tenho coragem de abrir Que nos livros que não leio Não tenho coragem de entrar Tiago Donoso É graduado em Letras Vernáculas pela UEL e mestrando em Teoria Literária pela UNICAMP. Trabalha como secretário na ANPOLL. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 23 Hábito Você se esqueceu de me vestir. Não vê que aos poucos tornome transparente? Por que troco de roupa? Por que você me vê tantas vezes no quarto, sempre me trocando, e trocando, e trocando? É uma deflagração religiosa, é meu confessionário. Porém, era você quem deveria trocar-me, dar-me roupas, dizer a mim – quem poderia fazê-lo, eu? – que aquela roupa me assenta, que aquela outra roupa não sou eu; que sim, que estou pronta para existir, que posso voltar a apaixonar-me por mim mesma... Troquei você por uma música, por outros, por roupas que eu mesma vesti, porém os momentos não existem. Você não me reconhece? Você não me reconhece. E, contudo, pedi; pedi que me provasse seu amor todos os dias, mas você considera um capricho da vontade o ato de dar atenção. Dar atenção, para você, é um esforço penoso sobre todos os outros. A atenção é um segredo que você não quer contar, e quão irritado não fica quando tento extraí-lo? Seu amor, ou seu extravio relapso, a atenção, me são imprescindíveis. Porém, eu não preciso amar. A palavra amor, quando sai dos meus lábios, é apenas um pedido. E, aliás, o que haveria de errado? A palavra conceder não é estritamente feminina? Talvez você não me ame mais. Mas sei que não sou uma desconhecida para você, porque se a fosse, você me desejaria. Mas pedi tão pouco! Concedi, e você nunca imaginou que a concessão tem seu repuxo? Você se xxx afoga em meu oceano feminino, e sua única saída para a total incompreensão em que se encontra é fingir desinteresse, encarnar o cansaço, representar toda a dignidade da indiferença – e estranha lógica a sua, a de que a indiferença é superioridade. Você pensa que não quer participar do meu mundo, quando na verdade o que faz é exaltar sua incapacidade. Vi você alardear que quem é bom é também mau, porém não pode conceber que quem concede pode também pedir? – eu compreendo que minto, que sou também você quando te nego... Quando no fundo te pedi tão pouco! Sua confusão é memorável, e quando não choro sobre ela é dela que rio: você crê que quero segurança; não é você quem quer segurança, quando se vicia em palavras que encaixotam o mundo, manufaturando pílulas? Segurança? Proteção? Relacionamento? Ah... Você tenta dizer que o oceano é natural enquanto se afoga. Pedi que me trouxesse roupas e, sem entender, era apenas isso que poderia fazer. Eu existo com símbolos; cada presente que você me dá é uma oferta a uma divindade, divindade que não sou eu, embora eu a represente. Traga-me roupas todo o tempo, é como se eu te ofertasse indicações. Cada vez que me traz um presente, é uma chance de olhar a fechadura do absurdo que sou eu, sua mulher. Mas você acha apenas que se livrou de um dever. Isso não é assustador, eu o compreendo: foram os homens que ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 quem conseguiram, no alto de sua impassibilidade, queimar animais para Deus em gestos anestesiados. Deus tampouco é digno de sua atenção. Você não entende. Dão-se flores apenas para as mulheres e para os mortos. Nós temos sgredos... E pedi apenas para que me vestisse... Pedi à costureira que me fizesse roupas que eu, sozinha, não poderia vestir ou despir. Não vê você que são tristes todas as incontáveis vezes que uma mulher, para prender ou livrar os seios, deve tatear-se às costas, como uma habituada cega? Não vê as melancólicas omoplatas apontando sob o tecido da pele? E não vê que deveria ser você quem me daria as minhas costas? É isso o que é um homem, a parte da mulher que ela não pode ver. É você quem me dá as minhas costas e eu duvidaria de seu amor se você não amasse minhas vértebras – se não as tornasse as escadas dos teus dedos – e o meu avesso, e a minha bunda, e a minha nuca. Não vê que para existir devo existir também onde não me vejo? Não preciso de sua segurança, de sua hombridade; preciso apenas lutar, e lutar muito, porque desconfio de mim mesma. Não sou capaz de amor. Quer a prova? Aqui está: sou também incapaz de tédio. Uma mulher entediada é uma mulher que enlouquece. Traio, sim. Eu o traí! E por quê? De certa maneira, para poder conjugar verbos. Preciso existir, preciso de seu carinho noturno, porque se você não toca a minha pele – eu não quero 24 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 quero teu sórdido desejo, sintoma de sua total incompreensão – ela aos poucos desaparece. Preciso de roupas, mas preciso também da pele do meu corpo. Ela existe? Minha pele existe? Ela tem a cor que deve, que as peles devem ter? Devo queimá-la de sol, oferecê-la a você – e a todos os homens – para que em troca vocês digam: é pele, e está aí? Preciso das palavras, também. Não tenho seu filho em mim e estou vazia, porém assim sou. Se o espaço é uma das formas do vácuo, outra é a mulher. Você, que me despreza, – desejo, piedade, desprezo; é preciso que você escolha uma entre essas emoções, sabendo que o que você sente é também o que é, e quem sentiria por você? Você, que me despreza, saiba que sou sua salvação; a fonte de tuas orações, do teu amor; do teu desespero; a forma encarnada do teu caos; o monumento que pensou construir, e que abdicou sabiamente pelas minhas formas que te enganaram tanto que nunca pensou seriamente no fato de que não eram imutáveis senão quando já principiavam a mudar. Eu sou seu totem absurdo, agora saiba: você ora para o vazio, você ama o vazio. E é o vazio fundamental de um buraco negro o que transforma retas em curvas, cores que indicam veneno. A porta dos imensos arabescos, que levava à nossa casa, você se lembra? Entrava-se e, ao pedir licença ao dono da casa – acreditavam que era você o dono, quando, na verdade, falava 25 e procurava meu consentimento –, logo se ouvia o eco, essa espécie de espelho sonoro. E os visitantes sentavam-se nas cadeiras curvas, enroscadas de primaveras e cigarras mortas. Em seguida, olhavam-me – ignoro se você notava, isso não me era importante. Olhavam-me, e então eu me sentia diferente. Existia mais uma vez, porém, agora era distinto: como se o visitante me chamasse por outro nome e esse nome me assentasse. Descobria agora meu outro nome, que seu companheiro amistoso me emprestava e que era oriundo de sua infância, de uma sua vizinha, há muito tempo esquecida e que desaparecera de seu mundo, deixando apenas um rastro, essa nomenclatura empoeirada. E esse nome me possuía, ou melhor, para que eu não caia em engano mais uma vez: eu possuía esse outro nome, tão íntimo, e tão impróprio... Em casa, pedia apenas para que você me vestisse, mas saiba agora que não preciso de suas roupas. Saiba agora que nunca falei com você. Eu sou o círculo; você é o adubo mudo, a jornada rápida do camareiro. Você tem a existência, porém, não sabe o que fazer dela. Eu sou a fêmea da existência, a concavidade. Sem mim você encarna a inutilidade da arte, dos grandes engenhos, da impaciência – formas de fugir de mim para me encontrar. Já vi – entre meus inúmeros amantes – o artista. Ninguém foi mais patético. Eu o assistia com um sutil e malévolo riso interno. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 interno. Era risível: todas as vezes que criava parava para masturbar-se. Era como se chorasse. Seu membro era uma prova de que toda arte era um equívoco, um desvio de conduta. E eu esparramava-me, a mim e ao meu sorriso – meu sorriso desenhava úteros dentados – pelo sofá, esperando que falasse. Cada palavra, então, me enchia um pouco, e eu me abria, lançava aromas de flor e de pântano no quarto, bem aos poucos, numa obediência obscena e controlada – ah, nunca fui assim com você?! Talvez porque você não me tenha merecido. Eu era o vazio aberto, o oco que ele desejava. Então, abria meu olho, meus lábios, e pronunciava qualquer coisa que não me interessava. Mas se ele, por outro lado, me pedisse um pouco do meu gosto salgado e do meu sublime vazio sem que houvesse participado – como quem crê que elabora – de todo o ritual em homenagem ao nada, então principiaria nossa minúscula guerra. E ele, que crê que a guerra é seu território, não veria que era eu quem transformava lágrimas em munição. Nem ele nem você nunca notaram. Eu sou a reconhecedora de talentos, a que se subleva, a insurreta que exalta os feios e os caprichos – quantas vezes precisarei dizer que não amo, que não preciso amar? Amar não faz parte de meu obstinado oco, e não preciso da beleza senão em mim; a beleza alheia é uma roupa que visto: logo não me servirá mais. Meu ciúme o prova, 26 prova, quero possuir seu amor: me nomeie quem deseja o que possui? Você acreditava, seriamente, que quando eu gemia: “Ai, amor”, estava a dizer que o amava? Ou conseguiu compreender que eu mencionava aquilo que você me oferecia? Nunca! Não te obedeço! Dê-me a existência, e com ela povoarei o mundo com outros seres introvertidos. Agora, que nos abandonamos, usarei vez ou outra as roupas que você me deu, junto com as cartas, suas e dos outros, e os animais – meus irmãos de caos – que você reduziu a clichês de pelúcia. E não me toque demais! Tenho saudades de apodrecer lentamente com as cascas da fruta. Onde estava com a cabeça quando pedi que me vestisse? Tire suas mãos de mim, só a mulher tem mãos humanas. Gravatas, golas, cintos, cadarços: a arte de vestir-se é para vocês a evolução do nó, prima civilizada da arte do enforcamento. E saiba que sofro sempre para me despir, porque a nudez é minha penúltima transparência. E que no fundo não disse a verdade – posso ainda me arrepender? Assim me visto: meu hábito é ser cruel comigo mesma. Ana Maria Côrtes Cursa Letras no Instituo de Estudos da Linguagem (IEL), na UNICAMP. Contato: [email protected]. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 28 Capital de treze distritos unidos que trouxe paz e prosperidade a seus cidadãos”. A realidade nos distritos, porém, pouco se alterou com a formação do novo Estado e, o que talvez seja mais importante, a população não se deixou convencer pela doutrina da Capital. Subjugado e explorado, o povo de Panem organizou um levante que ficou conhecido como os Dias Escuros, cujo resultado foi a manutenção do poder pela Capital, que destruiu o décimo terceiro distrito e elaborou novas leis, mais severas, com o objetivo de garantir a ordem nos doze restantes. Além disso, “como uma lembrança anual de que os Dias Escuros jamais deveriam se repetir”, criou os Jogos Vorazes, competições nas quais dois jovens de cada distrito, O romance se constrói, a partir daí, com base em um garoto e uma garota, com idade entre 12 e 18 anos, eram referências que vão desde a mitologia grega e a história da sorteados e compulsoriamente arrastados a um campo de Roma Antiga até os clássicos da ficção científica, como 1984 e batalha do qual somente um deles sairia com vida. Como se Admirável mundo novo. Panem surgiu das cinzas, após uma guerra sangrenta não fosse suficiente, o governo ainda decidiu transmitir os pela sobrevivência, em uma América do Norte devastada por Jogos Vorazes para toda a Panem, transformando a morte calamidades naturais semelhantes àquelas que vêm sendo, anual de 24 de seus mais jovens cidadãos em um espetáculo nas últimas décadas, prenunciadas por ambientalistas das televisivo, mostrando o extremo a que o culto aos reality mais diversas partes do globo. “O resultado”, de acordo com a shows e à exposição intensa de nossas vidas privadas pode propaganda de seu governo, “foi [...] uma resplandecente chegar. Os Jogos Vorazes representam, na narrativa, a nidu ljgljhyvljvh ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Jogos Vorazes, de autoria da escritora e roteirista americana Suzanne Collins, é o primeiro romance de uma trilogia homônima, narrado por Katniss Everdeen, jovem de 16 anos que vive em Panem, nação erigida, em um futuro impreciso e pós-apocalíptico, sobre os escombros daquilo que, hoje, corresponde aos Estados Unidos da América. ¹ COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Trad. de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010, p. 24. 2 Ibidem, p. 24. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 dimensão à qual o Big Brother (de Orwell) pode alçar o Big Brother (o programa): um meio muito mais intenso, perigoso e útil a seus propósitos de alienação e controle dos cidadãos. Nesse sentido, a autora concebeu uma sociedade com pontos de intersecção com a nossa, na qual as vidas dos habitantes da Capital giram em torno da aparência (própria e alheia), de julgamentos estéticos e de factoides criados por uma espécie de órgão de imprensa que se ocupa das celebridades do momento, tal qual ocorre na sociedade do entretenimento e do espetáculo da contemporaneidade. Há, ainda, outras questões contemporâneas que a autora procura abordar, mas sem sucesso, tais como a exploração de classes; os experimentos com plantas e animais; a utilização de Aparelhos Ideológicos do Estado, nos termos de Althusser, para garantir a manutenção da ordem; o controle das classes dominantes; e o Estado policialesco, antecipado por George Orwell em 1984. Esses pontos, que aparecem em evidência no início do romance, servem, ao longo da narrativa, mais como pano de fundo, do que como temas a serem de fato desenvolvidos. A descrição do Distrito 12, no início do romance, por exemplo, se assemelha àquela feita por Orwell ao apresentar 29 a Londres de 1984: fria, cinzenta, habitada por homens e mulheres abatidos e que sofrem com os constantes “esforços de economia”3 do Governo, responsável pelos cortes de energia e racionamento dos mantimentos. Contudo, o governo da Capital não chega nem perto de ser forte e repressor como aquele descrito por Orwell, não havendo real controle sobre alta tecnologia as mentes dos cidadãos, nem uso da força estatal ou da disponível como formas de dominação; a única exceção a essa regra é a realização anual dos Jogos. Assim, um possível debate sobre a autoridade do Estado acaba deixado de lado na narrativa. O uso da tecnologia também está presente em Jogos Vorazes, mas, novamente, o tema é abordado de maneira superficial. A tecnologia, no romance, é um luxo, responsável por melhorar a aparência dos habitantes da Capital, de acordo com as últimas tendências da moda, ou por fornecer-lhes os pratos mais refinados com apenas um clique. Não há, como em Admirável Mundo Novo, o emprego da técnica com o intuito de aprimorar geneticamente alimentos e indivíduos, o que permitiria discutir questões como o papel da tecnologia no aumento e na maior eficiência e produtividade da indústria e as garantias de controle social que isso propiciaria. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3 ORWEL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 11. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 No romance de Collins encontram-se apenas de tentativas frustradas manipulação genética, responsáveis, por exemplo, pelo aparecimento do mockinjay (traduzido como tordo, expressão que não carrega a origem dessa espécie, criada por acidente a partir do cruzamento de tordos com gaios tagarelas) – que se voltará contra a Capital, ao invés de ser utilizado por ela, apontando, mais uma vez, para a constituição frágil do Governo de Panem, a despeito dos instrumentos que tem a sua disposição. A divisão da sociedade em grupos responsáveis por determinadas tarefas, análogos às castas da obra de Huxley, também aparece no livro como uma oportunidade desperdiçada de se discutir os extremos a que se poderia chegar com a especialização do trabalho. Ainda assim, a partir do panorama acima descrito, pode-se afirmar que a obra constrói uma distopia, na medida em que “a realidade”, em Jogos Vorazes, “não apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação da estrutura de um mundo grotesco”4. parale 30 Além dos paralelos com o mundo atual, contribuíram também para a arquitetura desse cenário distópico as referências de caráter histórico, que apontam, não para onde nossa sociedade se situa, mas para os caminhos que ela já percorreu, em termos de espetáculo, violência e exploração. Um dos exemplos cabais encontrados na narrativa é o do próprio nome da nação na qual se desenvolve o romance, Panem. Panem et circenses designa uma política da Roma Antiga de financiamento, por parte das elites, de lutas de gladiadores que entretinham a plebe -e também as classes dominantes-,5 transformando a morte em um espetáculo, à semelhança do que se dá com os Jogos Vorazes em Panem, a nação. Além do sugestivo nome do país, a autora se preocupou em tornar a descrição dos Jogos próxima à dos combates entre gladiadores, em que se luta em uma arena pela vida. Ainda no espectro da história da Roma Antiga, podemos destacar a personagem Cinna, estilista de Katniss. Seu nome remete a Lucius Cornelius Cinna, político romano do _____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4 BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Utopia, distopia e história. In: MORUS – Utopia e Renascimento 2. Campinas: 2005, p. 6. 5 GUARINELLO, Norberto Luiz. Violência como espetáculo: o pão, o sangue e o circo. In: HISTÓRIA. São Paulo, v. 26, n. 1, p. 128. 6 Informações sobre a vida de Lucius Cornelius Cinna disponíveis em: http://social.rollins.edu/wpsites/mosaic-witness/2013/10/20/lucius-cornelius-cinna-war-against-the-state-to-save-the-state/. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 31 do século I. a.C. e líder do partido popular. Sua notoriedade histórica se deve ao fato de ter dado, ao lado de Gaius Marius, um golpe de Estado que culminou no período conhecido como “A Dominação de Cinna”6. Do mesmo modo que a personagem histórica, o Cinna de Jogos Vorazes é um grande líder e articulador político, ao mesmo tempo em que suas ações se restringem à aparência, à superficialidade, sendo o responsável pelo sucesso de Katniss e Peeta diante do público, em virtude dos figurinos que elabora para o casal, a cada nova aparição, e pela suposta imagem de rebeldia da protagonista. Há, também, uma referência mitológica que parece central na construção do enredo. Em Panem, 24 jovens são forçados a se entregar aos Jogos Vorazes, do mesmo modo que, na Creta da mitologia grega, sete rapazes e sete moças eram imolados a cada ano, tendo de enfrentar o Labirinto do Minotauro, em virtude dos arbítrios do rei Minos. Além disso, assim como Teseu, que se ofereceu para sacrificar sua vida ao Minotauro7, Katniss decide se entregar como tributo para os Jogos, a fim de poupar, ao menos por mais um ano, a vida de sua irmã mais nova, que havia sido originalmente sorteada, e esse ato é o ponto de partida da narrativa. Apesar da grande quantidade de referências, falta, em Jogos Vorazes, desenvolvê-las, de modo a explorar a base fértil sobre a qual foi construída a narrativa, que, inicialmente, aparenta ser bastante pretensiosa em suas críticas aos valores da sociedade contemporânea, mas, ao final, é incapaz de desprender-se deles. Não se pode negar, porém, que o texto de Collins se encontra plenamente desenvolvido, de uma perspectiva de sua construção ideológica. Os paralelos entre a política e a história dos Estados Unidos e a nação fictícia criada para o romance são inúmeros e apontam para uma argumentação de cunho conservador e republicano por parte da autora, que cria, com seu texto, uma espécie de alegoria da sociedade americana. Panem é uma nação erigida a partir de treze Distritos, assim como as Treze Colônias deram início aos Estados Unidos. A Capital, cuja autoridade deve ser contestada, é governada e habitada por homens e mulheres com nomes latinos8, em oposição aos cidadãos dos Distritos rebeldes, com nomes anglo-saxões e relacionados à natureza, entre eles, a heroína Katniss. Já as referências à história de Roma traçam um paralelo entre essa sociedade e a de Panem, reforçando a ideia ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ A versão do mito de Teseu e o Minotauro aqui apresentada baseia-se no texto disponível em O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. BULFINCH, Thomas. O livro de outro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, pp.153-156. 8 Citamos, a título de exemplo, Flavius, Octavia e Venia, equipe responsável pela preparação de Katniss; Seneca Crane, realizador dos Jogos; e Plutarch Heavesbee, presidente de Panem. 7 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ideia de que o romance descreve um momento de decadência e barbárie, no qual a aparência e o espetáculo estão em primeiro plano – não é de se surpreender, portanto, que a Capital se situe justamente a oeste das Montanhas Rochosas, onde se assenta Hollywood, coração da indústria cultural norte-americana. Além disso, o termo original para Capital é Capitol, ou, em português, Capitólio, mesmo termo utilizado para designar a sede do governo dos Estados Unidos. Na narrativa, o Capitólio deve ser derrubado, por ser um poder autoritário que mobiliza todos os esforços da Nação em torno dos interesses de sua própria classe – os latinos. Considerandose que o texto de Collins foi publicado originalmente em 2008, período de ascensão Democrata no Congresso e ano da eleição de Barack Obama como presidente, pode-se questionar se ela não escreve contra um governo e um partido apoiados pelas populações imigrantes, especialmente aquelas de origem latina, em um momento no qual esses grupos iniciavam um processo de empoderamento respaldado pelas autoridades, cujas ações passaram a levar em conta sua situação nos Estados Unidos, indo de encontro à posição Republicana de restrição de direitos e da entrada de imigrantes no país. 32 Percebe-se, assim que, em termos políticos, as referências presentes na narrativa apontam para uma visão bastante conservadora da situação política dos Estados Unidos, ainda que as críticas se deem de modo muito mais simbólico do que explícito. No entanto, no que tange à construção da narrativa, as relações de intertextualidade permanecem subaproveitadas e surgem como pouco relevantes para o desenvolvimento das personagens. Parece que isso se dá porque, em primeiro plano na narrativa, encontra-se a história pessoal de Katniss. A realidade de Panem acaba relegada ao segundo plano, pois todas as informações reveladas ao leitor passam por Katniss, narradora-personagem cujas preocupações, em inúmeros momentos, se distanciam das questões políticas e sociais de seu país. Na realidade, a maior parte de seus questionamentos se aproxima daqueles de um adolescente estereotípico dos dias atuais, para quem a vida pessoal e, mais especificamente, a vida amorosa, está no topo de suas prioridades. Em grande parte da narrativa, por exemplo, ela discute consigo mesma seus sentimentos em relação a Gale, seu melhor amigo, e Peeta, o outro tributo do Distrito 12, com quem a orgulhosa Katniss sente que tem uma dívida, por ele tê-la ajudado anos antes. Além disso, em diversas passagens ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 passagens, seu comportamento soa conformista e ela ainda faz questão de frisar sua falta de engajamento político e preocupação exclusiva com a sobrevivência de sua família. O leitor acaba, assim, vendo o universo de Panem de maneira bastante limitada, por ter acesso somente ao que a narradora-protagonista sabe e revela. Por um lado, isso se dá por ser essa uma característica do narrador em primeira pessoa, e, por outro, pelo fato de a protagonista não enxergar – porque não deseja, ou, simplesmente, porque é incapaz de fazê-lo – além de seu próprio umbigo. Desta forma, parece improvável que as ações supostamente rebeldes de Katniss tenham algum efeito sobre os telespectadores dos Jogos Vorazes. Pode ser que, realmente, as atitudes de Katniss tenham motivado as manifestações. Para o leitor, porém, nada indica que a participação do tributo do Distrito 12 nos Jogos tenha causado impactos reais nos cidadãos de Panem. Sua preocupação com as câmeras e com a maneira como será retratada são constantes e, até mesmo, repetitivas, o que faz parecer que ela quer chamar a atenção do público, mas para vencer, não para iniciar uma guerra contra a Capital. O leitor também não tem nenhum retorno sobre como ela está sendo percebida pelo telespectador. 33 As informações de que dispomos são aquelas anteriores a sua entrada na Arena - as quais não argumentam a favor da popularidade de Katniss. A opção pelo foco narrativo em primeira pessoa falha, nesse aspecto, uma vez que a autora baseia sua história em fatos que, em momento algum, são mostrados ao leitor. Assim, este se vê forçado a acreditar que a garota sem nenhum carisma e cujos interesses e ações passam muito longe de disputas políticas, em um passe de mágica, tornouse o símbolo nacional da rebeldia contra a ditadura da Capital. Também não sabemos como foi a cobertura dos Jogos, nem de que maneira o presidente Snow e os Idealizadores dos Jogos interpretaram as ações de Katniss, ou o que fizeram para tentar minimizar seus supostos efeitos. Tudo de que dispomos é a interpretação dela de sua participação no programa, que é bastante limitada. Por esse motivo, o crescimento da personagem junto à população de Panem, se de fato houve, como pretende fazer acreditar a autora, escapa ao leitor – e uma das principais causas é o foco narrativo escolhido. Por outro lado, ainda que, após todas as críticas levantadas, a protagonista e a opção por narrar a história exclusivamente de seu ponto de vista parecem adequados em termos mercadológicos, se considerarmos as tendências dos ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 dos últimos anos, no que diz respeito à literatura infantojuvenil. Livros como Crepúsculo (Edições Galivro, 2006), Hell (Editora Intrínseca, 2003) e, agora, Jogos Vorazes, que vem alcançando um sucesso estrondoso9, apostam em protagonistas femininas e discutem questões próprias do universo adolescente, como a descoberta do amor, o medo em relação ao presente e ao futuro e a morte, a partir de uma das narrativas em primeira pessoa. As protagonistas, porém, ao contrário do que se poderia esperar, não são jovens fortes e decididas, mas garotas extremamente passivas e egocêntricas, incapazes de tomar decisões e que insistem em se autoproclamar diferentes, únicas, como se fossem seres especiais aos quais nenhum outro pudesse ser comparado. Katniss se autodefine, ao longo do romance, precisamente assim, como uma garota diferente das demais, com qualidades e defeitos que fazem dela, mesmo que involuntariamente, mais interessante, bonita e inteligente. Esse retrato condiz com aquele das produções culturais que, segundo Aline Valek, redatora, roteirista e bloguqie 34 blogueira de livros e quadrinhos da cultura pop, vem sendo construído nas últimas décadas acerca dos adolescentes na sociedade contemporânea. De acordo com a blogueira, livros e seriados que retratam a juventude mostram jovens que Não sabem reagir aos nãos da vida, porque foram ensinados que são especiais; ou a de pessoas tão obcecadas por elas mesmas que têm dificuldades em lidar com o outro [...]; ou ainda a de jovens que foram tão sufocados pelas exigências da sociedade que não sabem mais o que fazer e assim se rendem a um conformismo [...].10 Mesmo em se tratando, no caso de Jogos Vorazes, de um universo distópico, com regras próprias e bastante diversas daquelas que regem as relações políticas e sociais na atualidade, predomina, por parte das personagens -e, em particular, da protagonista, pois é através de seu discurso que temos acesso à sociedade em que vive-, um descolamento em relação à realidade e uma predominância de conflitos internos e alheios à vida que as cerca. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 9 De acordo com a Wikipédia, já foram vendidas mais de 23 milhões de cópias por todo o mundo, fazendo com que a trilogia integre a lista dos livros mais vendidos no mundo. Informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_livros_mais_vendidos. Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo de 04/01/2014, Suzanne Collins, autora de Jogos Vorazes, é recordista de vendas no Kindle, aparelho de leitura de livros digitais da Amazon. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1392972-segmento-juvenil-vive-boom-de-formula-dos-romances-distopicos.shtml. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Collins parece, assim, ter optado pelo caminho mais fácil, colocando um ótimo enredo de lado, para dar destaque a um romance juvenil que, apesar de se passar no futuro, mantém, como mencionamos, a mesma estrutura de outros romances adolescentes atuais de sucesso. Além disso, o livro parece apontar para um movimento maior, de revolta, tendo em vista a insatisfação popular que a protagonista relata desde as primeiras páginas, mas do qual o leitor não possui nenhum vislumbre. 35 Nesse contexto, o primeiro livro da série surge como um prólogo de 400 páginas para um outro romance no qual o universo distópico será substituído por um universo eutópico, que aponte “o que fazer após a ditadura e seu sistema de apoio ruírem”.1 Pode ser que Em chamas, livro que dá sequência a Jogos Vorazes, seja uma alusão à Panem incendiada por revolucionários que será retratada. Mas também pode ser que seja apenas a continuação da história da Garota em chamas, Katniss Everdeen, e seu dilema amoroso. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 11 SARGENT, Lyman Tower. Do Dystopias Matter? In: VIEIRA, Fátima (ed.). Dystopia(n) Matters: On the Page, on Screen, on Stage. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2003, p. 10. Tradução minha. O excerto original, que apresenta uma definição de eutopia, é o que segue: “But the problem is what to do after the dictatorship and its supportive apparatus go, and that is where we need eutopia.” João Gabriel Mostazo Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 37 Finalmente me tornei um poeta contemporâneo Como disse Humberto Mendes Como disse Roberto Bibini Como disse Robinson Crusoé Em A porta do Diabo Em Por qué comer duraznos Em Tomber dans le restaurant Traduzido por Ricardo Bosch Traduzido por Marcos Palhures Traduzido por Juan Almostásin Como Devil’s Door Como Por quê comêr pêssegos Como La queda en el comedor Citado por Lázslo Vega Citado por Lawrence Chad Citado por Jean-Pierre Langlois Aujourd’oui Em Da poética esclarecida Em The formidable structure Em Deux problèmes ordinaires Sobre Letícia T. M.: Sobre Luana Maldini: Sobre Inês Conrado das Dores Côrtes Sóbria: Não raspe, querida. Deixe assim. Por trás. Eu quero por trás. Aí. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 38 Triângulo de acrílico sobre praia Uma mulher muda uma vela de lugar Pela décima vez. Outra ergue um totem de madeira Sem nem saber que o faz; Devia agradecer a deus Pelos joelhos que tem. Enquanto isso numa taboa de corte Um corte aguarda um fio que lhe abra – Já palpita em hipótese E parece entusiasmado com isso (Deseja cumprir com competência Mas competência ele não pode ter). Um deus de uma classe dominante Toma a forma de um cisne atrapalhado Para subverter a Inutilidade, Durante os quais, numa boate da corte, Instantes como esse são ignorados. Longos episódios mitológicos Desconsiderados Quando os garçons oferecem conjuntos de blocos de montar Sobre bandejas de prata. Em uma casa (que está aqui Na falta de melhor imagem De falsa geometria de acrílico), Cada um dos espetáculos Ocupa o vértice que lhe cabe. Cada qual respeitosamente alheio Aos outros e à maré cheia Pesquisa minucioso O silêncio que melhor lhe cabe. Eu os observo, ileso, Mastigando bolachas de areia Fábio Mariano Graduado em Estudos Literários pela Unicamp e professor. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 40 Travessia Não foi na estrada. Quando vi Bernardo pela primeira vez, pensei que seria uma espécie de ruína aquilo de conhecer alguém cuja beleza não se pode superar. Não sei até que ponto as coisas se transformavam em escudo, em trauma, em para-raio, em pedra ou em barril de nitroglicerina: os olhos dele despedaçavam as pessoas a quem se direcionavam, não em arrogância, mas numa espécie de suspensão que me lembrava um caderninho que eu roubara de um professor de literatura, em cuja capa li pela primeira vez os versos preferidos de Ezra, Let us go then, you and I, When the evening is spread out against the sky Like a patient etherized upon a table, e então nada; o caderninho em branco que guardei para rabiscar, de vez em quando, alguns retratos. Tentei algumas vezes esboçar aquele rosto, mas só alguns dias depois de conhecer Germano Mabel e a mãe de Bernardo, Heloísa Dantas (sobre quem preferiria não ter que falar, se essa escolha me fosse dada), é que pude finalmente conhecer a criação perfeita de um ventre perfeito num invólucro perfeito. Heloísa, que me foi apresentada por Germano no segundo café que tomamos, era alta, muito alta, e altiva; era, em poucas palavras, um desses membros inconfundíveis de uma aristocracia milenar, que será reconhecido pela própria radiação da bomba atômica, à qual se revelará, na hora decisiva, imune. E só de uma mulher como aquela é que poderia surgir um homem como Bernardo Dantas Moura. ocinema O cinema, que já fora a ponte entre mim e Germano Mabel, foi também a ponte entre mim e Bernardo, embora ele só tenha sido informado disso algum tempo depois. Durante nossa infância, Cartago abrigou, por certo tempo, um cinema bastante interessante (que fora, em primeiro lugar, um cineclube universitário) localizado numa antiga escola profissionalizante na Rua Lírio Negro, entre um açougue e uma loja de aluguel de trajes de gala. Foi ali que, pela primeira vez, vi: um filme de Costa-Gavras; o documentário A Sociedade do Espetáculo, de Guy Débord; Exílios, filme argelino que me fez compreender o que significava uma metáfora, numa cena em que um dos personagens enterra o próprio violino ao decidir abrir mão de sua roupagem cultural francesa e buscar suas origens argelinas; e as obras primas do cinema britânico dos anos 60. Lá também, na sala única e de cadeiras duras de madeira do Kino, foi que o vi. Germano, depois de me descrever seu melhor amigo e irmão, me fez compreender que logo eu o conheceria. E embora minha relação com Bernardo fosse a mais distante possível, tínhamos a mesma sede incurável de filmes; como eu, ele não tinha visto nem um décimo dos filmes que Germano conhecia. Éramos, assim, parceiros naturais do Kino, que contava com um café/bar para discussão depois de cada sessão. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 O dono, Décio, conhecia de longa data Heloísa Dantas, e costumava conversar conosco sempre. Sobre o pai de Bernardo pouco sabíamos, e me parecia que nenhum dos dois estava interessado na troca de informações sobre quem fora ou o que fizera. Órfão Bernardo não era, mas era como se fosse. Diante de Décio, se comportava do modo como esse gostava, conversando numa relação bastante horizontal. Os anos que ele e o outro dono (cujo nome não sabíamos e quem não conhecíamos) demoraram pra conseguir uma sala própria foram, a passos largos, sendo carcomidos pela própria cidade. Aos poucos o cinema esvaziava; cada vez menos pessoas compareciam. As conversas, que quase sempre contavam com algum metido a intelectual que, no fundo, era só um aluno de cursinho ainda desprovido do seu miraculoso ingresso para a universidade, foram se tornando triângulos entre mim, Bernardo e Décio. Depois disso, o próprio Décio, firme, se tornou mais calado. Não tínhamos idade nem malícia suficiente para perceber o que estava acontecendo, e nem mesmo para ver aqueles filmes; mas tínhamos o ímpeto, e o sonho de que o ímpeto bastasse. E no rosto de Décio o que víamos era só cansaço, talvez porque a seleção de filmes se tornasse cada vez mais difícil, já que o mundo parecia (como sempre parece) caminhar para um abismo e a qualidade do Kino continuava impecável; talvez porque a ausência significasse mais esforços de publicidade, captação, o tipo de 41 captação, o tipo de linguagem empresarial que aprendíamos nas festas a repudiar sem ter aprendido a compreender. Bernardo, após termos visto um filme argentino sobre um professor, se lembrou de uma bronca que foi dada em um babaca de sua sala, um desses metidos a intelectual que sonha desbancar o professor de história, mas sabe menos história que o professor de biologia. Tita, Décio, o professor virou pra ele e disse É, o sonho acabou, mas ainda vende na padaria, Eu já volto, foi assim que Décio disse, Eu já volto, e de fato voltaria, alguns minutos depois, justificando, com muita polidez, que tivera um problema burocrático, expediente ao qual sempre recorria. Décio ainda conversou conosco por mais duas vezes; depois, saiu em turnê com sua banda por alguns meses; quando voltou, o Kino já tinha assumido a condição de sonho estilhaçado, a impossibilidade (dolorosa) de se manter. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Eu e Bernardo já tínhamos nos aproximado fatalmente, e já nos tornáramos, nesse ponto, algo mais que companheiros de cinema. Só não naqueles momentos. Era um processo alquímico: íamos ao cinema e, quando saíamos, éramos eu e um filme, ele e um filme, mas nunca eu e um passado e um filme ou eu e um presente ou eu ou ele e qualquer coisa a mais; nada do que nos acontecera até ali servia a não ser que passasse, fundamentalmente, por uma evocação do filme, uma comparação. Qualquer pessoa que tentasse compreender uma conversa entre nós três (e mais tarde nós dois) precisaria ter visto o filme; qualquer uma que o tivesse visto só precisaria se sentar e escutar com atenção. O que acontecia depois daqueles filmes não era só insubstituível, era a prova de que existe uma espécie de aproximação no mundo, algo que poderia parecer adolescente ou infantil, não fosse tão frágil quanto a fase entre a infância e a adolescência. Miriam, que sempre insistia em me acompanhar ao Kino, não compreendia o que acontecia ali, e nas duas vezes em que tentei levá-la, ela tentou fazer algum tipo de relação entre o que acontecia em sua vida e algum aspecto do filme, e não o inverso. E isso, na nossa gramática das exceções ao mundo, dos sonhos (ainda que dilacerados), não era só completamente proibido; era absolutamente imperdoável. 42 Foi por isso que não pude, por mais que quisesse compartilhar a dor disso com ela, convidá-la à última sessão do Kino, ao piccolo finale que o cinema se reservou. Décio já não estava mais presente, a banda o ocupava cada vez mais, e a sensação de que algo aconteceria foi a única coisa que nos manteve firmes em presenciar aquela espécie de funeral. O último filme que vimos, combinamos na entrada, não seria discutido, a não ser que o Décio estivesse lá, o que era uma forma de garantir pelo menos um de dois confortos: o de que não teríamos de ver, na cara de Décio, o choro que ele sempre nos escondera ou o de termos recebido uma espécie de sinal de que as coisas seriam reversíveis. Não o vimos. Quando saímos, Bernardo quis ir ao café, e tomamos, pela primeira vez, cervejas numa quantidade razoável para termos de voltar de táxi, e não caminhando, para casa. A sessão teve pessoas chorando, um sentimentalismo piegas, que quase estragou a tristeza de verdade, aquela que se pede que seja piegas para se ver a recusa ao papel da pieguice; de resto, havia ali pessoas que vieram sinceramente dar um último adeus, entre elas algumas que, não por hipocrisia, mas por alguma circunstância, faziam parte das estatísticas de esvaziamento da sala de cadeiras duras. Em algum ponto da conversa, que fatalmente se voltou ao filme que víramos, percebi que Bernardo tentava me dizer algo, e que, no entanto, falhava. Ele olhava com os olhos duros para uma garrafa, que girava apoiando com o indicador, inclinada, para a esquerda e ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 entanto, falhava. Ele olhava com os olhos duros para uma garrafa, que girava apoiando com o indicador, inclinada, para a esquerda e de novo para a direita. Tita, ele disse, Você sabe que minha mãe conhece o Décio, e eu disse Claro Bernardo, ele vive falando e você também sempre fala disso, acho que ele é até, e então percebi que estava atrapalhando, calei-me, ao que ele, olhando para mim, mas não mais como alguém que gira uma garrafa, e sim como quem já perdeu a passagem de volta para essa dimensão, que já sabe que não vai voltar, ou que acredita piamente que não vai voltar, e tendo se conformado com isso, é incapaz de se reconhecer na mesma dimensão de onde nunca deveria ter saído, Ela teve um caso com ele alguns anos atrás, e então me bateu uma vontade louca de perguntar mais sobre isso, perguntar, enchê-lo de perguntas, ali, depois de um filme, de devorar toda a informação que ele tinha sobre isso, mas o que eu consegui foi só ouvi-lo, como que sussurrando, perguntar Por que você não trouxe a Miriam hoje?, o que era um pouco cruel da parte dele, e mais cruel da minha parte, permitir essa pergunta, ou permitir que a situação natural que essa pergunta cria, Por que sua namorada não está aqui enquanto nós compartilhamos a ligação mais intensa que existe no universo, e que pode não ter absolutamente nada a ver com amor ou com paixão ou com tesão, mas que fatalmente desemboca em algo desse gênero (pelo menos para alguém deve ser assim), e então foi a minha vez de apoiar com o indicador um copo (e não uma garrafa) de cerveja, de girá-lo 43 deve ser assim), e então foi a minha vez de apoiar com o indicador um copo (e não uma garrafa) de cerveja, de girá-lo para a direita e para a esquerda, e dizer Eu não amo a a Miriam, eu não amo Miriam Gagliardi, Bernardo, com o que ele pareceu de alguma forma satisfeito, não como um abutre que espera a sua vez, mas simplesmente satisfeito por eu ter finalmente conseguido dizer isso, ainda que, até aquele momento, não houvesse nenhum indício, na minha cabeça, de que eu não amasse minha namorada, e a verdade é que até ali eu a amava, mas logo depois Bernardo me diz Meu pai nunca ficou sabendo, embora ele tenha sabido de outros casos dela, Bernardo, qual é a última lembrança que você tem do seu pai?, Ele falava muito “fode”, “foder”, “foda-se”, mesmo quando eu era criança, o que não é merda nenhuma de situação temporal, mas que pode ajudar, e então, por algum momento, pensei no modo como Décio evitava constantemente falar qualquer coisa derivada de foda-se, fodido, foder, e como preferia falar buceta, caralho, cú sujo, qualquer coisa, mas não foda-se, sempre era elegante e dizia “acabar”, “dilacerar”, “dilacerado”, “deixa isso para lá”, mas nunca um foda-se, e então, olhando para Bernardo, percebi que ele deixava a cabeça cair um pouco sobre os ombros, tentando pensar no que Miriam ou Ezra falariam se vissem essa cena num filme, e acho que Ezra citaria seu poeta preferido novamente, ou tergiversaria a citação, diria They had the experience but missed the meaning, and approach to the meaningrestores the experience in a different form, beyond ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 had the experience but missed the meaning, and approach to the meaningrestores the experience in a different form, beyond any meaning they can assign to happiness, ou eu mesma é que diria isso; o fato é que olhando para Bernardo, não pude pensar em não pensar, e nem pensar em não dizer, e então olhei para aquele par de olhos pastosos, que em tantos momentos pareciam tão duros, e perguntei, vendo-o quase cair de sono e de desatenção, Bernardo, o Décio é seu pai?, coisa da qual imediatamente me arrependi, e olhando para ele, o vi, mais uma vez, imerso em seus olhos pastosos como só um verdadeiro aristocrata pode estar, e ele, olhando para o lado, me disse A menina tropeçou e caiu, de um jeito gratuito e inocente e cheio de preocupação como só uma criança pode dizer, referindo-se a uma das putas que chegava para trabalhar na rua detrás, e então olhou para mim, como quem pensa em ajudar, mas desistindo por preguiça, cansaço, tédio. Não sei dizer se ele ouviu minha pergunta, e embora eu tenha feito um esforço para fazê-la de novo, as palavras já não saíam. Se reencontrei Décio depois disso? Sim. Algum tempo depois. Não foi na estrada. Num bar, onde ele era muito conhecido, que serve acarajé e fica nos arrabaldes da cidade, cuja travessia, saindo-se exatamente da minha casa, passa invariavelmente pelo Kino. Eu, Tita Munhoz (sobrenome inventado pelo meu irmão, apropriado por mim), Eu, Tita Munhoz, não amo Miriam Gagliardi. 44 Eu, Tita Munhoz (sobrenome inventado pelo meu irmão, apropriado por mim), Eu, Tita Munhoz, não amo Miriam Gagliardi. Odorico Leal Graduado em Letras pela UFC e mestre em Teoria Literária pela UFMG. Atualmente, é doutorando em Literatura Brasileira pela USP, desenvolvendo pesquisa sobre o épico na poesia moderna, sob a orientação do professor João Adolfo Hansen. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 46 O conceito de kleos em Ilíada e Os Lusíadas Na Ilíada, afirma o pesquisador húngaro Gregory Nagy, “kleos” significa não apenas glória, mas, mais Partindo do conceito de “kleos”, termo grego para “fama” (em tradução especificamente, a glória do herói tal como conferida pelo aproximada) tal como observado na poesia homérica, o presente artigo épico. Quando Aquiles escolhe a glória (kleos) ao invés do procura explorar a representação que o discurso épico, tradicionalmente, regresso (nostos, “regresso à casa”, mas também “canto sobre faz de si próprio dentro de sua cultura, tratando, de início, da poesia homérica e, em seguida, mais detidamente, da épica camoniana. o regresso à casa”), ele alcança “o maior objetivo do herói: sua identidade é posta em registro permanente através de kleos”2. É significativo que Aquiles seja representado no papel de aedo justamente quando se retira da batalha com os Em uma passagem do nono canto da Ilíada, os heróis troianos, isto é, quando se afasta do campo autêntico de sua Ajax e Odisseu encaminham-se à tenda de Aquiles, para kleos, pois, nesse momento, é pelo canto que ele procura oferecer tributo em nome de Agamenon, como modo de sanar manter-se ligado ao mundo épico da batalha. O que o a ofensa que fizera com que Aquiles se retirasse do campo de diferencia dos demais heróis gregos é que nenhum outro se batalha. Ajax e Odisseu encontram o filho de Peleu cantando encontra tão dramaticamente acossado pela consciência de façanhas de heróis de tempos passados, acompanhado de uma que, para alcançar a glória, deverá morrer: sua própria mãe lira: imortal lhe comunica seu fado. Até a morte de Pátroclo, contudo, o destino de Aquiles parece ainda em aberto. Chega, Quando chegaram às tendas e naves dos fortes Mirmídones, sem muita convicção, a considerar a ideia de partir de Tróia Aí enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora De cavalete de prata, toda ela de bela feitura, com os Mirmídones, divisando e desejando por um Que ele do espólio do burgo de Eecião para si separara. momento seu próprio nostos. Aquiles, no entanto, não pode O coração deleitava, façanhas de heróis decantando.1 ser Odisseu. Na Ilíada, é ele quem canta os heróis e deve elevar-se, em sangrenta batalha, ao mesmo plano deles. ,jjjjjjjjoogg _______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ resumo 1 2 HOMERO. Ilíada. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2011, canto IX, 185-189. NAGY, Gregory. The Epic hero. In: A companion to ancient epic. Malden: Blackwell, 2005. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Há outras instâncias ao longo do poema que reforçam essa espécie de consciência dos heróis em relação à imagem pela qual os cantores os representarão. Em uma ocasião, o tópico é observado negativamente, quando Helena lamentase para Heitor sobre o destino que lhes sobreveio: Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem, Nas gerações porvindouras, os cantos excelsos dos vates3. No universo da tradição épica da Grécia arcaica, portanto, o tema da conquista de imortalidade por parte dos heróis através do canto dos poetas é parte da estrutura social da comunidade ali representada: trata-se de uma reciprocidade fundamental para a caracterização de seu ethos. As ações dos heróis encontram sua justificativa última na imortalidade do epos, pelo qual são transmutados para uma dimensão simbólica, tornando-se exemplares dignos de culto. Ao mesmo tempo, os heróis fornecem a matéria para os poetas, os grandes feitos. Nesse universo, sem o canto, a memória se dispersa e, com ela, o próprio espaço cultural que uma comunidade habita e compartilha; os homens ononono 47 veem-se em um vácuo cósmico. Mesmo com o advento da escrita, no mundo grego antigo, em meio aos constantes perigos de desintegração social devido a guerras e invasões, o canto funciona como o modo de um povo fixar, contra a mutabilidade feroz do tempo, uma imagem eterna de si, daí a importância da recitação dos poemas homéricos nos grandes festivais. O poeta ocupa, desse modo, uma posição central dentro da comunidade. Uma das passagens mais emblemáticas da Ilíada é a descrição do escudo de Aquiles, que sua mãe Tétis encomenda a Hefesto, o ferreiro dos deuses. Hefesto prepara um gigantesco escudo e, nele, grava variadas cenas da vida grega, desde cenas de guerra até cenas de disputas judiciais e casamentos, além de cenas pastoris. Trata-se de uma síntese das atividades do mundo grego, o que, de certo modo, denota a característica essencial da narração épica no Ocidente - a da criação de um grande painel do universo cultural de uma comunidade. É de uma beleza poética sublime que esse escudo, que carrega a imagem de todo o mundo grego, seja empunhado pelo herói que deve encarnar os valores mais altos desse mundo. Na descr ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3 HOMERO, op. cit., canto VI, 357-368. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ‘ descrição do escudo, há uma breve imagem que sugere a centralidade do canto para tal cultura. Se, na abertura da Ilíada, encontramos os aqueus, em meio à guerra, cantando em honra de Apolo, como forma de sanar a fúria mortífera do deus ofendido, aqui os encontramos cantando em um contexto de paz, em honra do filho do mesmo deus: Moços e moças, no viço da idade, de espírito alegre, o doce fruto carregam em cestas de vime trançado. Com uma lira sonora, no meio do grupo, um mancebo O hino de Lino entoava, com voz delicada, à cadência Suave da música, e todos, batendo com os pés, compassados, Em coro, alegre, o canto acompanhavam, dançando com ritmo4. O que se sugere nessa passagem é a condição harmoniosa de uma comunidade em que todas as esferas de vida estão entrelaçadas – o trabalho, a cultura, o culto aos deuses. No centro, um jovem com a lira, cantando o hino de Linos, filho de Apolo e da musa Calíope, a musa da poesia épica, filha de Zeus e da Memória – como se pode atestar, na 48 na própria genealogia dos deuses gregos, essa relação entre poesia e memória, poesia e imortalidade é sugerida. Na Ilíada, o motivo da imortalidade é mais do que uma mera utilização de um topos retórico convencional. É um elemento definidor em uma cultura que, como nota Gregory Nagy, se apresenta como uma cultura do canto, isto é, uma cultura que depende da celebração através do canto para plasmar sua identidade5. Em Homero se estabelece, portanto, a relação entre canto e imortalidade, subjacente à desejada harmonia entre todas as esferas de vida do povo. Em Os Lusíadas, por sua vez, Camões também fará da imortalidade pela celebração poética um tema fundamental. A abertura de seu poema conjuga memória, canto e imortalidade. O poeta cantará as armas e os barões assinalados que se lançaram ao mar, E também as memórias gloriosas Daqueles reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando; E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da morte libertando6. ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4 HOMERO, op. cit., canto XVIII, 567-572. 5 Sobre o conceito de “cultura do canto”: NAGY, Gregory. The Ancient Greek Hero in 24 Hours. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2013. 6 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003, canto I, estrofe 2. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 A lei da morte é o desaparecimento e o esquecimento. Ao longo do poema Camões retomará a compreensão dos feitos heroicos como libertação da lei da morte. Ao alcançarem as Índias, os portugueses passam a existir sob nova lei: Vós, que à custa de vossas várias mortes A lei da vida eterna dilatais7 O conceito de kleos como glória conferida pelo canto épico permeia a épica camoniana, sendo fundamental para a compreensão das queixas do poeta ao final do sétimo canto. Quando o Catual visita a frota portuguesa, observa os feitos dos homens que “em retrato breve / a muda poesia ali descreve”. É o momento oportuno para que Camões faça seu herói narrar, como antes, diante do rei de Melinde, a memória dos heróis portugueses. Nesse preciso momento, contudo, a narração é súbita e rispidamente interrompida pela voz na primeira pessoa do poeta: “Mas, ó Cego! / Eu, que cometo insano e temerário / sem vós, Ninfas do Tejo”. A visão do poeta é momentaneamente perdida no instante de descrever o que há na muda poesia dos retratos, isto é, no ininini 49 instante da evocação dos heróis. Nisso, o modo épico se desestrutura e dá lugar à expressão lírica do conflito que divide a persona de Camões no poema: a tarefa de cantar heróis que não aspiram por kleos, barões “tão austeros, / tão rudos, e de engenho tão remisso”, como escreve no canto V, e cantá-los ainda para um povo que lança seu poeta ao desterro, “com pobreza avorrecida / Por hospícios alheios degradado”. Toda essa passagem é elaborada como um diálogo entre poeta e Musas, em tom de súplica, e aquilo pelo que Camões suplica é a reconciliação com sua própria tarefa. Essa reconciliação só lhe advém através da reafirmação da ética em que baseia seu poema – “Que não no empregue em quem o não mereça” -, que lhe reconduz de volta à matéria épica: Aqueles sós direi que aventuraram Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida, Onde, perdendo-a, em fama a dilataram, Tão bem de suas obras merecida. Apolo e as Musas, que me acompanharam, Me dobrarão a fúria concedida, Enquanto eu tomo alento, descansado, Por tornar ao trabalho, mais folgado8. _____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 7 CAMÕES, op. cit., canto VII, estrofe 3. 8 Idem, canto VII, estrofe 87. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 50 A determinação dessa ética é inspirada pela confiança que o poeta sustenta em relação ao poder do próprio canto épico, em relação à “kleos” que concede àqueles a quem celebra. Esse conflito acompanha a persona épica de Camões até o último canto. Uma das estrofes mais belas de Os Lusíadas é atormentada pelas forças de oposição à “kleos” – o esquecimento e a morte, que o poeta, o distribuidor de fama, volta contra si mesmo, pondo em risco o cumprimento de sua missão para Portugal: Vão os anos descendo, e já do Estio Há pouco que passar até o Outono; A fortuna me faz o engenho frio, Do qual já não me jacto nem me abono. Os desgostos me vão levando ao rio Do negro esquecimento e eterno sono. Mas tu me dá que cumpra, ó Grã Rainha Das Musas, co’o que quero à nação minha9. Esse conflito infla de pessoalidade a épica camoniana. Na poesia homérica, como notamos, o narrador mantém uma atitude impessoal em relação à matéria que trata, não se onononon ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 9 CAMÕES, op. cit., canto X, estrofe 9. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 projetando para dentro da narrativa. Camões o faz, largamente, evocando suas próprias peregrinações a serviço da coroa portuguesa, pelos mesmos mares de Vasco da Gama e companhia, como demonstra a célebre estrofe: Olhai que há tanto tempo que, cantando O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, A fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo, e novos danos: Agora o mar, agora experimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual Canace, que à morte se condena, Numa mão sempre a espada, e noutra a pena10. Embora haja muitas ponderações sobre os destinos e padecimentos dos personagens na Ilíada, tais ponderações têm elas próprias caráter impessoal: pertencem à sabedoria da comunidade. Homero não se põe em conflito com o seu mundo e seus heróis. Já Camões se coloca, abertamente, em conflito com Vasco da Gama. Na poesia homérica, reina o “desapego sereno” como princípio da narração épica, em que o poeta oculta-se por trás de sua narração, permitindo que os 51 eventos e os diálogos sejam o foco de atenção constante11. A atitude de Camões, contudo, afasta-se bastante disso. Em Os Lusíadas, há um conflito explícito entre a narração impessoal dos feitos portugueses e a experiência e as preocupações pessoais de Camões. O temperamento do poeta espalha-se pelos cantos, e o ponto básico pelo qual fundamenta sua inserção e sua autoridade dentro da narrativa relaciona-se exatamente à kleos. No épico luso, como se sugere pela breve análise do desfecho do canto VII acima, o tema será, contudo, modernamente problematizado pela reflexão crítica que explicita, em última instância, a separação entre canto e comunidade. “Kleos” é um valor que só adquire objetividade se inserido dentro de um ethos, de uma experiência comum que lhe possibilita exercer uma função real como fundamentador das ações e dos comportamentos dentro de um grupo. Esse contexto pragmático não existe para o épico camoniano. Ainda assim, um motivo que anima Os Lusíadas é o elogio de “kleos” e, com isso, do próprio poeta, como elemento basilar para a harmonia do povo português. Pela glória que o canto épico concede aos feitos e homens ononononono ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 10 CAMÕES, op. cit., canto VII, estrofe 79. 11 Ver: On epic and dramatic poetry. Disponível online em: http://www.schillerinstitute.org/transl/schil_epic_dram.html. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 históricos interpenetram-se a história e o mito, a ação e a ideia. Essa reconciliação entre a espada e a pena, que Camões representa em sua própria figura, é central em Os Lusíadas, e não por acaso se manifesta eloqüentemente nos decisivos cantos V e VII, em que os portugueses atravessam o Cabo das Tormentas e em que chegam às Índias, respectivamente. O fecho do canto V é particularmente significativo nesse sentido. Vasco da Gama conclui sua narração ao rei de Melinde com a afirmação jactanciosa da superioridade do feito português, pelo seu caráter verídico, em relação às ficções épicas dos antigos: Cantem , louvem e escrevam sempre extremos Desses seus Semideuses, e encareçam, Fingindo Magis Circes, Polifemos, Sirenas que com o canto os adormeçam; Dêem-lhe mais navegar à vela e remos Os Cicones, e a terra onde se esqueçam Os companheiros, em gostando o Loto; Dêem-lhe perder nas águas o piloto; 52 Ventos soltos lhe finjam, e imaginem Dos odres e Calipsos namoradas; Harpias que o manjar lhe contaminem; Descer às sombras nuas já passadas: Que por muito e por muito que se afinem Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas, A verdade que eu conto nua e pura Vence toda grandíloqua escritura12. Embora Camões, já na abertura do poema, compartilhe da jactância do navegador, absorvendo para seu discurso a alegação da superioridade dos feitos portugueses e, consequentemente, de sua narração em relação à tradição, a apropriação desse discurso por Vasco da Gama, ao final de sua fala ao rei de Melinde, é seguida por uma reflexão do poeta sobre os efeitos perniciosos do descaso de Portugal e de seus barões pela poesia, que culmina em uma crítica direta à Vasco da Gama: Enfim, não houve forte capitão, Que não fosse também douto e ciente, Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação, Senão da Portuguesa tão somente. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 12 CAMÕES, op. cit., canto V, estrofe 88-89. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 53 Sem vergonha o não digo, que a razão De algum não ser por versos excelente, É não se ver prezado o verso e rima, Porque, quem não sabe arte, não na estima. Por isso, e não por falta de natura, Não há também Virgílios nem Homeros; Nem haverá, se este costume dura, Pios Eneias, nem Aquiles feros. Mas o pior de tudo é que a ventura Tão ásperos os fez, e tão austeros, Tão rudos, e de engenho tão remisso, Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso. Às Musas agradeça o nosso Gama o Muito amor da Pátria, que as obriga A dar aos seus na lira nome e fama De toda a ilustre e bélica fadiga: Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Calíope não tem por tão amiga, Nem as filhas do Tejo, que deixassem As telas douro fino, e que o cantassem13. O discurso de Camões, aqui, entra em conflito direto com o de Vasco da Gama, exatamente no canto central do poema. O navegador português celebra o próprio feito, julgando-o acima das “fábulas vãs, tão bem sonhadas” da antiguidade. Contudo, sua jactância é indiretamente explicada na máxima justa e simples: “quem não sabe arte, não na estima”. Esta é a ironia camoniana: Gama rebaixa a popopo ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 13 CAMÕES, op. cit., canto V, estrofe 97-99. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 glória dos antigos, associando a invenção poética ao fingimento, contudo sua própria glória só é plenamente atingida em uma “grandíloqua escritura”, que dá “aos seus na lira nome e fama”, comunicando aos portugueses não apenas os fatos e as datas históricas, mas o sentimento e o significado da aventura nacional, acordando o país para o seu próprio mito. Ao final do Canto IX, para enaltecer o poder de “kleos”, Camões acena ainda para a origem histórica destes “semideuses” que Vasco da Gama desanca, associando-os diretamente à Fama, “trombeta de obras tais”: 54 Todos foram de fraca carne humana. Mas a Fama, trombeta de obras tais, Lhe deu no mundo nomes tão estranhos De Deuses, Semideuses imortais, Indígetes, Heróicos e de Magnos14. Estes mortais, “de fraca carne humana”, libertaram-se da lei da morte pelos feitos heroicos conjugados à kleos, a fama de tais feitos eternizada no canto épico, tornando-os fundamento para o ethos do povo. Embora o canto V revele essa tensão entre herói e Sobre as asas ínclitas da Fama, poeta, Camões celebra Vasco da Gama e os demais Por obras valorosas que fazia, portugueses navegantes, pois seu compromisso é com “o Pelo trabalho imenso que se chama muito amor da pátria” que obriga as Musas e, indiretamente, Caminho da virtude alto e fragoso, o poeta, ao canto nacional. Esta obrigação, contudo, Camões Mas no fim doce, alegre e deleitoso: assume como missão, confiante, como se disse, na função transcendente de kleos, base de sua autoridade no poema, Não eram senão prémios que reparte que lhe permite, ao fim do último canto, dirigir-se ao infante Por feitos imortais e soberanos Dom Sebastião, agora não para louvá-lo, como na abertura do O mundo com os varões, que esforço e arte poema, mas para orientá-lo, convocando-o para sua visão de Divinos os fizeram, sendo humanos. Portugal, alicerçada na reintegração do canto à comunidade. Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, Essa reintegração é efetuada exatamente por Os Lusíadas, o Eneias e Quirino, e os dois Tebanos, Ceres, Palas e Juno, com Diana, que Camões parece querer representar simbolicamente pela jhfg ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 14 CAMÕES, op. cit., canto IX, estrofe 90-92. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 simbiose entre o feito português e sua obra, manifesta no paralelismo entre a travessia portuguesa do Cabo das Tormentas, ao meio do globo, e a estrofe exatamente ao meio de Os Lusíadas, no canto V, que dá voz ao “Cabo Tormentório”. Camões encerra o poema retomando a sua própria figura como português em quem o plano da ação e o plano da ideia se harmonizam, agora em um tom mais sereno, humilde, diante do rei, e ciente do feito heróico de sua própria obra máxima: Pera servir-vos, braço às armas feito, Pera cantar-vos, mente às Musas dada; Só me falece ser a vós aceito, De quem virtude deve ser prezada. Se me isto o Céu concede, e o vosso peito Dina empresa tomar de ser cantada, Como a pressaga mente vaticina Olhando a vossa inclinação divina, 55 A minha já estimada e leda Musa Fico que em todo o mundo de vós cante, De sorte que Alexandro em vós se veja, Sem à dita de Aquiles ter enveja15. A contradição entre canto e comunidade, contudo, não é superada em Os Lusíadas. A narração da aventura nacional que mostrou “novos mundos ao mundo” é o épico moderno por excelência justamente por essa percepção crítica de uma ruptura dentro da cultura do próprio povo celebrado. O épico, na medida em que busca erigir uma visão global, tende, por esse princípio constitutivo, a pôr em conflito a variedade de discursos que se debatem dentro de uma cultura. Desse modo, o épico será tanto mais harmônico quanto mais harmônica for a cultura do povo de que trata. Nesse ponto, convém citar a reflexão de Schlegel sobre a obra de Camões, que contém insight valioso sobre a psicologia do povo português. Camões não se confina ao Gama e à descoberta da Índia ou mesmo ao poder e conquistas dos portugueses de seu tempo; o que de cavalheiresco, grandioso, belo ou nobre pudesse ser recolhido das tradições de seu país foi entretecido e incorporado à teia de seu poema. Ele abarca toda a poesia de sua ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 15 CAMÕES, op. cit., canto X, estrofe 155-156. nação; entre todos os poetas heróicos Ou fazendo que, mais que a de Medusa, A vista vossa tema o monte Atlante, Ou rompendo nos campos de Ampelusa Os muros de Marrocos e Trudante, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 teia de seu poema. Ele abarca toda a poesia de sua nação; entre todos os poetas heróicos tanto dos tempos antigos quanto dos modernos, nunca houve, desde Homero, nenhum outro tão intensamente nacional, ou tão amado e honrado por seus compatriotas quanto Camões. É como se os sentimentos nacionais dos portugueses, excluídos de qualquer outro tema de meditação pela degradada condição de seu império, se centrassem e repousassem na pessoa desse poeta, considerado por eles, e digno de ser considerado por nós, como capaz de figurar em lugar de todo um grupo de poetas, e ser, em si mesmo, uma literatura completa para seu país17. 56 uma reconciliação com a kleos com a qual Camões cobriu a história do país, e que, não realimentada pela nação, a assombra, contudo, como fantasmagoria. O sebastianismo é a resposta mística a essa condição, e é esse dilema que Fernando Pessoa, séculos depois, em diálogo silencioso e constante com Os Lusíadas, tentará resolver em sua própria obra, especialmente em Mensagem, cujo tema é justamente o imperativo de uma nova descoberta, de um novo empreendimento nacional: “Dá o sopro, a aragem, - ou desgraça ou ânsia -, / com que a chama do esforço se remoça, / e outra vez conquistemos a Distância – do mar ou outra, mas que seja nossa!”. Pode-se dizer que esse quadro que engloba tudo o que há de nobre e belo na história de Portugal é a visão camoniana de Portugal, para qual o poeta convoca Dom Sebastião e todos os portugueses, visão, contudo, constantemente abalada pela percepção daquela ruptura. Por esse ponto de vista, pode-se pensar a história posterior de Portugal como uma contínua autoavaliação à luz do mito da nação tal como imortalizado no grande épico nacional. Os portugueses posteriores a Camões terão de buscar uma nova rota, descobrir um novo caminho pelo qual possam chegar a jjjjj 17 SCHLEGEL, Friedrich. Lectures on the History of Literature. T. Dobson and son, 1818, p.102. Tradução minha. João Miguel Moreira Graduado em Letras pela UNICAMP. Mestre em Linguística na área de Letras Clássicas. Traduziu o livro “Diógenes, o cínico”, de Luis E. Nevia, para a editora Odysseus. Publicou o livro “Mausoleu” pela Editacuja, em 2009. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 58 Rugas As rugas que escrevinham minha cara são o que me divulga e me separa. É um texto tramado em minha pele, forjado pelo corpo e o atrito dele. É um emaranhado que nasce como o buço A cortina da janela em que debruço. É a erosão das águas e do vento A pegada do sentir que experimento. Gaforinha de escolhas e trajetos, acúmulo de vidas e dejetos. Dança dos encontros, capoeira, turbilhão humano numa feira. Matagal de gatafunhos estrangeiros desbravado a foice, por grileiros. Mescla de gritos, correria e vozes numa caçada aos monstros ferozes. Estalactite do que a mente pensa, sina que assina uma sentença. Mapa de circuitos e trilhas de onde nascem gentes e famílias. Música de pedra, poema concreto, tatuado em meu rosto por decreto. Rastro de passeios vadios, cinza da queima de pavios. Fluxo de sons que por aí falei, quando vira leito e letra e lei. O poema do que a gente erra e que, com a gente, o povo enterra. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 59 O Cantador O homem que passa cantando aqui por Sta. Isabel, enche o mundo com seu canto que sobe do chão ao céu. Ele vem sempre à tardinha de bicicleta ou a pé e canta uma ladainha que não entendo qual é. Inda ontem ele veio com seu canto calmo e alto, cantado de peito cheio, olho longe e pé no asfalto. De onde sai essa voz que enche a rua se ele passa cantando, assim, para nós, com tanto gozo e de graça? O homem, soltando o canto, enche o mundo, o peito, a rua; enche tudo e enche tanto que enche também a Lua. Seu canto, sereno e firme, é tão claro, fácil e certo que dá vontade de ir-me ouvi-lo e vê-lo de perto. Porque ele canta forte, canta simples e tão bem, que já não existe morte e eu não sou mais ninguém. Ricardo Gessner Doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Sua dissertação de mestrado versa sobre o livro Distraídos Venceremos, de Paulo Leminski, e foi defendida na mesma instituição, com o seguinte título: “Paulo Leminski e uma poética da distração”. Atualmente desenvolve sua tese de doutorado, também sobre a poesia de Leminski. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 61 Na contramão: Toda Poesia – Paulo Leminski Completa-se um ano da publicação do volume Toda poesia – Paulo Leminski, pela Companhia das Letras. A coletânea obteve sucesso de vendas a ponto de desbancar livros do porte de 50 tons de cinza, da autora Erika Leonard James, permanecendo no topo da lista dos mais vendidos¹. Mas, apesar de se falar em “sucesso de vendas”, talvez não seja possível falar em “sucesso editorial”, no que tange à organização do volume. A coletânea tem como proposta contemplar toda a produção poética de Paulo Leminski (1944 – 1989), com a inclusão de comentários críticos e depoimentos sobre o poeta e sua obra. Finalmente divulgam-se poemas praticamente desconhecidos, como os de Polonaises e Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, além de trazer um texto de jjjj José Miguel Wisnick abordando de maneira geral as composições musicais de Leminski, faceta ainda pouco conhecida do autor. Até hoje, livros como Caprichos e Relaxos (1983), Distraídos Venceremos (1987) e La vie en close (1991), por exemplo, estão fora de circulação. Além disso, há as raridades bibliográficas de 40 clics em Curitiba (1976) – o primeiro livro de poesia de Leminski, composto junto com o fotógrafo Jack Pires e com tiragem limitada² –, bem como Polonaises e Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, ambos publicados em edição independente, em 1980. Talvez seja esse o motivo imediato do sucesso de vendas, afinal, há anos os livros de Leminski permanecem esgotados. Em cada obra é possível identificar se não um projeto, ao menos uma preocupação organizacional, explicitada em suas apresentações e prefácios. Tendo isso em mente, a coletânea atual torna-se problemática em alguns aspectos. 40 clics em Curitiba, por exemplo, é um livro de poemas e fotos. Na verdade, são 40 plaquetes compostas por uma fotografia e um poema. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ ¹ O acontecimento foi divulgado em diversos meios; eis duas reportagens: http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2013/05/17/mais-pop-que-50-tons-de-cinza-livro-apresenta-leminski-complexo-a-geracao-do-facebook.htm; http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1355441. ² O livro teve uma reedição em 1990, também com tiragem limitada – de três mil exemplares –, permanecendo como item raro. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 por uma fotografia e um poema. Na coletânea Toda Poesia, constam somente os poemas, sob a alegação do próprio editor, de que foram escritos antes das fotos e por isso optou-se por não incluí-las. Ora, uma “opção” como essa escamoteia a proposta inicial do livro, que é justamente estabelecer um diálogo intersemiótico – para utilizar um termo afeito a Leminski – entre duas manifestações artísticas diferentes. Na mesma nota introdutória o editor ainda cita Leminski: “Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada a relação/contradição texto/foto. Os poemas estavam prontos jᔳ. Ao fazer essa citação – retirada da introdução de 40 clics em Curitiba que, por sua vez, não está na seção “apêndice” da coletânea –, o editor tenta justificar sua opção, mas indiretamente reforça a mutilação da obra, pois, se a “relação/contradição texto/foto” foi o motivo de escolha dos poemas, essa é antes uma justificativa de inclusão. O mesmo se aplica se nos reportarmos ao que Alice Ruiz⁴ fala na apresentação de Toda Poesia: 62 entre os poemas curtos, quais conversavam ou rimavam com aquelas imagens. Se os poemas foram escritos antes, durante, ou depois das fotos; se foram escritos pensando nelas ou não, pouco importa – o importante é que poema e imagem dialogam, relacionam-se. O atrito e/ou a convergência entre as duas linguagens produzem novos sentidos, significações e possibilidades de interpretação. Se do ponto de vista editorial a inclusão das fotos ocasionaria outras dificuldades, não é o que diz o editor. Grande parte dos poemas pertencentes a Polonaises e Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase foram posteriormente incluídos em Caprichos e Relaxos. Talvez por esse motivo os dois livros ficaram relegados ao título de “raridade bibliográfica”. Na coletânea, os poemas não inclusos em Caprichos e Relaxos foram incorporados numa seção intitulada “Poemas esparsos”. Em relação a isso, duas questões podem ser levantadas: 1) No caso de Não fosse isso Em 1976, quando o fotógrafo Jack Pires chegou com a e era menos não fosse tanto e era quase, há um trabalho proposta de fazer um livro em conjunto com Paulo, gráfico com a diagramação dos poemas: eles estão espalhamos as fotos dele pelo chão e fomos procurando expandidos de tal forma que a granulosidade da tipografia entre torna-se aparente, os poemas aparecem como se fossem ________________________________________________________________________________________________________________________________________ anúncios, placas comerciais ou peças publicitárias. É um ³LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia – Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 14característico (ênfase minha). e importante numa obra como a de dado 4 Ibidem, p. 8 (ênfase minha). Leminski ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 torna-se aparente, os poemas aparecem como se fossem anúncios, placas comerciais ou peças publicitárias. É um dado característico e importante numa obra como a de Leminski, que sempre se preocupou em relação aos meios de comunicação em massa, e que deles procurou se aproximar. Em Toda Poesia, isso é mencionado en passant na apresentação; 2) a seção “poemas esparsos” traz os poemas de Polonaises e Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e era quase não incluídos em Caprichos e Relaxos. Acontece que originalmente eles fazem parte de um conjunto, e, se não foram incluídos posteriormente, há algum motivo para isso, o que também indica uma preocupação organizacional de Leminski. Portanto, não são esparsos. Winterinverno é um livro póstumo, publicado em 2001. Traz poemas escritos espontaneamente durante as “noites de boemia”, em guardanapos, pedaços de papel, maços de cigarro, com desenhos de João Suplicy. Novamente temos a interação entre poema e imagem. A edição original traz os fac-símiles dos textos; já a coletânea Toda poesia, não: as imagens foram suprimidas sem nenhuma justificativa. Eis o que diz o editor em nota⁵: 63 Winterinverno foi publicado em 2001 pela editora Iluminuras, na forma de um ‘álbum’ em que dialogavam poemas de Paulo Leminski e desenhos de João Suplicy. Optamos por manter somente os poemas, sem imagens, e apenas os que ainda não haviam aparecido em livros anteriores do autor. O editor reconhece o diálogo entre poema e desenho, mas mesmo assim “opta” pela exclusão das imagens sem nenhuma justificativa. É possível verificar, portanto, que os projetos poéticos de Leminski ocupam um lugar menor nessa coletânea. Isso tem seu ápice na seção “Apêndice”, da qual constam as apresentações e prefácios de cada livro, misturados a depoimentos e textos críticos. Ou seja, há um desmembramento dos livros, que perdem sua organicidade. Além disso, é importante lembrar que a introdução de 40 clics em Curitiba não consta da coletânea, mesmo sendo citada pelo editor. Leminski é largamente conhecido por sintetizar em sua poesia aspectos eruditos e populares. Falar em “projeto poético” é algo delicado na crítica especializada. Ao considerar os estudos publicados em livro (apenas os que tratam especificamente de sua poesia), a maior parte enfoca a constituição intertextual, seja em relação a movimentos ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 5 Ibidem, p. 360 (ênfase minha). artísticos ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 64 tratam especificamente de sua poesia), a maior parte enfoca É possível identificar, em vários momentos, a a constituição intertextual, seja em relação a movimentos preocupação de Leminski não só a respeito de sua dicção artísticos ou teóricos. Identificam-se concretismos, poética, como também da elaboração de projetos de livros. tropicalismos, semioticismos à la Peirce, modernismos à la Basta, por exemplo, reportar-se às cartas enviadas a Régis Oswald de Andrade, haicaísmos e orientalismos, poesia beat, Bonvicino para constatar. Logo na primeira epístola, diz6: sintetismos, etc... na capa da frente Desse amontoado intertextual, uns se preocupam em na capa de trás uma foto da minha cara demarcar uma dicção leminskiana – caracteristicamente com um e colado no vidro do óculos esquerdo leminskiana, de combinar aspectos eruditos e populares –, outros empreendem esforço intelectual para demonstrar a e o ? no outro originalidade do Leminski-poeta em seu repertório múltiplo, simétricos à capa da frente e alguns até mesmo intentam enquadrá-la como sendo uma poesia de vanguarda. Desse modo, para verificar como a O projeto “e?” não foi levado a cabo, mas demonstra o poesia de Leminski se constitui, estabelecem um corpus interesse de Leminski até mesmo na apresentação gráfica de poético que abarca toda a sua produção. Isso resulta numa seu livro, ao insinuar que haja uma simetria entre os visão esparsa, e a noção de “projeto” torna-se perigosa. Isso caracteres e sua foto. Sugere-se uma íntima relação entre reverbera na estruturação editorial da coletânea Toda texto e figura, bastante coerente à sua proposta de um Poesia: todos os indícios de um projeto poético estão livro/álbum e que demonstra claramente a importância do relegados a uma seção isolada, um mero “Apêndice”, diálogo entre poema e imagem. Na própria carta isso se torna misturados com textos de outros autores, escritos em épocas ainda mais evidente com os rabiscos que Leminski faz: ele diferentes, e que podem não ter relação com o que Leminski circula o “e” (7ª linha) e o “?” (8ª linha), cada um com um planejava para seus livros. traço perpendicular É possível identificar, em vários momentos, a ________________________________________________________________________________________________________________________________________ preocupação de Leminski não só a respeito de sua dicção 6 Ibidem, p. 360 (ênfase minha). poética ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 traço perpendicular, compondo a imagem de um óculos. Mais à frente, na mesma carta, Leminski continua7: ... voltei disposto a só produzir o mais radical que eu pudesse só o meu melhor só aquilo de que sou capaz se é que há isso mas se houver eu vou fazer e acho que é: o e? que ia se chamar rarefeito que ia se chamar radar mas vai ser essa conjunção difícil de dizer que responde também aos que perguntam e (depois do catatau) ? 65 Outro exemplo: no prefácio de Distraídos Venceremos, Leminski diz: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, [...] arrisco crer ter atingido um horizonte longamente almejado: a abolição [...] da referência através da rarefação”9. Ora, “rarefação” reverbera seu antigo projeto, que ia se chamar “rarefeito”. E, mais do que isso, fala-se em atingir “um horizonte longamente almejado”, ou seja, sugere-se (“arrisco crer”, ele diz) a consolidação de um projeto. Se Leminski faz essa declaração ironicamente, não anula a questão. No decorrer da década de 1980, Leminski logrou sucesso editorial com a publicação de Caprichos e Relaxos (1983) e Guerra dentro da gente (1986)10, conseguindo relativa projeção também como letrista de música popular. A diferença é que, naquele contexto, o poeta tinha um projeto articulado, ao menos em relação a sua poesia, de torná-la acessível ao grande público e, ao mesmo tempo, sem deixar de lado a possibilidade de constituir efeitos de sentido mais sutis. A poesia como simples mercadoria, objeto vendável e fonte de lucro, Ressalto de imediato a consciência icônica de Leminski ao colocar entre parêntesis8 a indagação “depois do catatau” na última linha, deixando de fora os caracteres “e” e “?”, e fazendo com isso uma remissão ao título de seu projeto. Outro exemplo: no prefácio de Distraídos Venceremos, Leminski diz: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, [...] ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 7arrisco atingido um longamente LEMINSKI,crer Paulo;ter BONVICINO, Régis. Enviehorizonte meu dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999. 8 O parêntesis está desenhado à mão, e, portanto, foi feito depois de Leminski ter datilografado a carta. almejado: a abolição [...] da referência através da 9 LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 7. Ênfase minha. 9. rarefação” 10 Livro em prosa, infanto-juvenil. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 A poesia como simples mercadoria, objeto vendável e fonte de lucro, é uma questão com que Leminski se preocupou e sobre a qual refletiu. No texto “Arte inútil, arte livre?” (2012), por exemplo, faz um breve apanhado histórico, contrapondo a função da arte nos tempos da Idade Média, Renascença e Modernidade. A principal diferença é que, tanto na Idade Média quanto na Renascença, a arte cumpria uma função pré-estabelecida: “deleitar e instruir” (Idade Média), ou simplesmente “deleitar” (Renascença). Com a ascensão social da burguesia, inaugura-se a Modernidade. A arte deixa de ter uma função pré-determinada e torna-se mercadoria nas mãos da classe burguesa; com exceção de uma, a literatura11: 66 A dificuldade da literatura em se tornar mercadoria reside no fato de a palavra ser “... essencialmente, política. Portanto, ética”12. E isso é levado a um grau extremo na poesia13: O puro valor da palavra está na poesia. Por isso é sempre considerada mercadoria difícil. ‘Poesia não vende’ é um dos mandamentos do Decálogo mínimo de qualquer editor sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser outra coisa, além ou aquém da mercadoria e do mercado. Retomando Theodor Adorno, Leminski diz: “Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros Certas artes, pintura, escultura, se prestaram melhor a essa e radicais, de uma ‘negatividade’”14. Essa “negatividade” é transformação em mercadoria eticamente neutra, nada menos do que a “negação” de tornar-se fonte de lucro e, buscadora apenas de qualidades plásticas e cromáticas, por conseguinte, de inserir-se na dinâmica de consumo. A técnicas e sintáticas. (...) Ao ouvir falar em arte moderna, o arte, e principalmente a poesia, tornam-se objetos de burguês puxa o talão de cheques. Mas uma arte resistiu com particular vigor a essa comercialização. E essa foi a resistência a esse contexto. Podem não ter uma função préliteratura, a arte que tem a palavra como matéria prima. Em estabelecida, mas resistem a essa sociedade mercantil. Isso especial, a poesia, lugar onde a palavra atinge vigência não significa que a poesia não produza outros tipos de lucros. plena, máxima, substantiva. No ensaio “Inutensílio” (2012), Leminski diz: “O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 11 LEMINSKI, 12 Ibidem, Paulo. Arte inútil, arte livre? In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 45. 13 Op. Cit.. p. 46. 14 Ibidem, p. 49. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 No ensaio “Inutensílio” (2012), Leminski diz: “O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade.” 15. Em outras palavras, o que Leminski diz é: a poesia tem a capacidade de não se tornar um utensílio, que atende às necessidades de um mundo pragmático. A literatura, e principalmente a poesia, podem escapar dessa contingência e tornarem-se objetos de resistência. Se Leminski logrou sucesso editorial, não foi por ter feito de sua poesia objeto mercantil. É importante lembrar que Leminski também foi redator e conhecia as técnicas publicitárias. Seu interesse nesse campo era principalmente, pelas relações intersemióticas no diálogo entre as várias linguagens midiáticas. Noutra carta a Bonvicino, diz16: a propaganda meu meio de vida me dá algumas satisfações afinal todo layoutman é um pouco poeta concreto e aliás é fantástico como os homens de arte das agências 67 entendem um trabalho concreto na hora enquanto os literati dizem: - o que é isso? que quer dizer? isso não é poesia. Só me dou com cartunistas fotógrafos cineastas desenhistas Tudo menos escritores Dos quais acabei por ter grande horror (1999, p. 34) Leminski utiliza-se dessas técnicas para elaborar a sua poesia. E o faz para produzir outros efeitos, outros sentidos. E isso não se aplica, necessariamente, a toda sua obra. Se por outro lado um livro como Distraídos Venceremos não obteve o mesmo êxito de vendas, não significa que não tenha obtido êxito editorial, afinal, trata-se de outro projeto, como diz no prefácio17: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, resultado do impacto da poesia de Caprichos e Relaxos (19831987) sobre a fina e grossa cútis da minha sensibilidade lírica (...)”. Leminski inclusive estabelece um período, 1983 – 1987, que é o período entre a publicação dos dois livros, o que evidencia sua preocupação programática. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 87. 16 LEMINSKI, Paulo; BONVICINO, Régis. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 34. 15 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Em “Arte inútil, arte livre?” Leminski disse18: Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da renitência das casas editoriais em publicar poesia. Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última trincheira onde a arte se defende das tentações de virar ornamento e mercadoria, tentações a que tantas vezes sucumbiram prazerosamente. Mas o apelo comercial de Toda Poesia – Paulo Leminski é evidente. Possui página no Facebook19 e não é para explorar os recursos intersemióticos que essa “nova mídia” proporciona. Serve como meio de aproximação com o público, porém se realiza mais como divulgação de um produto. As pessoas podem interagir com postagens de poemas, relatar suas impressões, render homenagens. O público não tem obrigação de ler um criticamente um autor, mas o projeto de Leminski permanece em segundo plano, afinal, no volume Toda Poesia seus livros estão desmembrados e suas partes, misturadas. Nesse sentido, uma afirmação como a de Alice Ruiz, na apresentação da coletânea, perde seu sentido: “Este livro é antes de tudo uma ffff 68 vida inteira de poesia. Uma vida totalmente dedicada ao fazer poético. Curta, é verdade, mas intensa, profícua e original” 20. A publicação da coletânea reforça uma imagem que se construiu em torno de Leminski: a de um poeta despojado e despretensioso diante da escrita de poesia. E isso talvez pelo fato de muitos estudos críticos projetarem na poesia leminskiana essa imagem, sem levar em conta as especificidades de cada livro. Cabe olhar mais de perto para cada obra, para os efeitos de sentido que podem proporcionar; elaborar interpretações ou chaves interpretativas de seus livros ou até mesmo de poemas específicos. Ao contrário de restringir sua obra em amarras academicistas, esse gesto pode ampliar as possibilidades de interpretação para outros horizontes “ainda não atingidos”. Talvez trilhar outros caminhos que não passem pelo bordão do “erudito popular”. E desse modo, constituir outros meios de compreender sua poesia. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 17 LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense. 1987. p. 07. 18 LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, p. 46. 19 Disponível em: https://pt-br.facebook.com/pages/Toda-Poesia-Paulo-Leminski/119334238256651. 20 LEMINSKI, Toda Poesia – Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 07. Suene Honorato Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora do Departamento de Literatura da UFC. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 70 Quatro Ventas: A saga do menino bicho — Se esse deus pôs no mundo, homem não tira – retrucou cuspindo na cara do padre João a índia brava. Não mandassem matar assim filho seu, que não queria. Vez em quando também as plantas botam frutos enfezados, que a gente tira antes de vingar; nem por isso planta é igual gente. O menino ia viver! Ora, se não. Tinha juntado um bando vindo da aldeia Gato Preto pra levar o coisa estranha pro padre batizar. Mas o padre santo quase cícero disse que não benzia bicho, e que bicho ruim era melhor matar, pra não salgar a terra de pecado, porque certamente era pecado que a mãe cometera pra ter nascido um filho assim. A mãe ficou de lado, olhando enviesado a sentença dele. Não sabia que o menino lhe nascera bicho em paga das surras que o marido lhe dera por um punhado de borra que se esfarelara, achando que ali podia ler a traição que não cometera? Quando a criança nasceu, já o marido havia se refugiado no mato com outros índios. Pois tava, que quando é que deixaria? Sempre ela, durante os sete anos de vida que o menino-bicho ia completando, o tinha protegido. Foi assim desde que nascera, com a cara atrapalhada e as mãos retorcidas, parecendo que a mucura ou outro bicho fedido ficasse passando o rabo pela boca meio rasgada. Na sanha de fome esmerilenta, o meninobicho ia crescendo mais do que as outras crianças índias. Em alguns meses, parrudo como tora de pau, ele já podia sentar alguns meses, parrudo como tora de pau, ele já podia sentar no chão de terra esperando o que lhe trouxessem pra comer devorado. Nem choro se ouvia; somente o barulhar dos dentes destroçando o que lhe davam, fosse ou não de comer. A mãe o chamava Dominguinhos, mas não os outros da aldeia, que cunharam na cara dele o nome de Quatro Ventas, tantos eram os buracos do nariz. Não sabiam onde a índiamãe tinha ido chocar aquele menino-bicho, com o qual aparecera uma manhã, de volta ao casebre à esquerda da aldeia, e que logo foi abandonado pelos outros parentes. No estranhamento que Dominguinhos punha em todos, iam achando que era melhor matar logo o menino e enterrá-lo sentado, como a todos, no buraco perto do rio. Os parentes disseram que ela devia passar veneno no bico do peito pra criança definhar sozinha, sem culpa. Pois tava. Fingiu que sim e ficaram pensando que a força do menino botava melindre no feitiço. A mãe ia resistindo, e cada um faz o que acha mais devido sem ficar ouvindo que assim não, assim sim, dos outros seus parentes. E crescendo Dominguinhos, ia crescendo também a fome desarvorada. Labigós pedaços de pau setas com pena pra ave nenhuma, tudo sumia na garganta enorme de Quatro Ventas. A mãe cuidava de se apartar dos parentes, pensando na vida que alimentava, evitando que ele comesse a palhoça do casebre e morressem os dois enterrados sob a própria desgraça. Se ficasse de pé agora, passava do seu ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 os dois enterrados sob a própria desgraça. Se ficasse de pé agora, passava do seu tamanho. E ela nem podia mais carregá-lo escanchado no cinto de embira. Foi por essa época que resolveram levar o menino ao padre João, na insistência da mãe de que o batismo cristão tinha serventia pra colocar modos de gente no menino-bicho. O evento encheu as ruas da cidade. Veio povo de todas as paragens do Tocantins espiar o que diria o padre, com seu bando de índios e caboclos postos ao lado em armamento mirado, e as putas por detrás das casas pequenas protegidas a um seu olhar. Todos esperavam a palavra definitiva, a ordem de apagar da história da aldeia Gato Preto aquela aberração que assombrava a vizinhança da cidade e das outras aldeias, portanto que já ia comendo o sossego das gentes nas conversas que sobre ele se esparramavam. E tinha até missa aprontada: pra batismo ou velório? A mãe, índia paramentada pra grande decisão, vestia roupa de branco, com pintura de jenipapo por debaixo do manto azul de santa que vai ter o filho salvo. Nas ruas gritavam que era pra matar. Pediam em coro o sacrifício, cada um na multidão rememorando o pecado maior que a imolação expiaria. Veio vindo então a carroça com o menino quase gigante amarrado, a mãe à frente do cortejo com ar piedoso. Padre João esperava no largo da matri 71 matriz, vendo de lá o rio tomado de barquinhos com mães levantando seus filhos em oferecimento por alguma graça a ser alcançada, pescadores sem o braço ou a perna levados pela cobra d’água pedindo cura de aflição, moças de ventre volumoso suplicando que a criança não nascesse com cara de boto, plantadores com ramos de mandioca pra serem benzidos, e enxadas pro alto, mulheres com gamelas sobre as cabeças pedindo fartura. E o padre João, ao ver o menino-bicho de olhos alheados amarrado nas tábuas fortes da carroça, levantou a mão direita em riste e declarou: – A comunidade de Boa Vista não deve padecer os pecados alheios, dessa mãe que aqui se posta de branca santa! Quatro Ventas não batizo. Deve morrer e ser enterrado pelos seus parentes. – Se esse deus pôs no mundo, homem não tira – retrucou cuspido na cara do padre João a índia brava, já arrancando a roupa de branca e o manto azul e botando no lugar a cara de bicho que protege a cria, ensinando padre a rezar missa, sendo por deus segundo seu entendimento, e não pelo povo. Daquela vez, o padre mandou baixar as armas. Que fosse embora então a comitiva apinajé e não voltasse ali até que se perdesse por completo a história desinfeliz daquela gente. lalalala ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Isolado na cabana à esquerda da aldeia, perto do ribeirão onde vicejavam muriçocas e varejeiras, Dominguinhos perseguia kukrens. Na fúria da fome, viu passar um cachorro, que com ele se solidarizou na procura da presa. Olhando ingênuo a graça do bicho prestativo, apetitou dele. A mãe o surpreendeu já com os dentes afiados a morder a barriga do cão que latia em desespero. Correu pra apartá-los, como fazia com a palha do casebre os utensílios domésticos as roupas pra lavar. Mas Quatro Ventas reagiu opinioso, mantendo a mãe à distância com a mão grande espalmada contra os golpes dela, comendo pacientemente o cachorro até sumirem os seus latidos, até ficarem no chão as patas sem carne que já nem lembravam o bichinho de minutos atrás. A mãe fugiu, temendo que ela própria pudesse ser comida aos gritos dali a alguns dias. Quatro Ventas, cada vez maior, exigia alimento mais graúdo. Sozinho por uns dias, andou coxeando por volta da casa, rodeando as outras da aldeia e pondo susto a toda gente, embora uma ou outra criança viesse atentá-lo. A mãe reapareceu depois, já reunida ao cacique pra decidirem como impedir que a Gato Preto fosse toda engolida pela fome de Quatro Ventas. Na ameaça dos olhos vermelhos dele, a mãe assuntou que se punha em perigo; não podia mais defendê-lo. Decidiram, então, trapacear a morte e ir direto ao enterro. Vivo, foi posto sentado em cova aberta na mata, muitos 72 muitos palmos abaixo, e cada um da aldeia jogava um punhado de terra por sobre. Quatro Ventas não resmungava, só lambendo em volta a terra que lhe sujava as bochechas. Quando tamparam o buraco por completo, viram que nada se movia. Debaixo da terra, enterravam a memória ruim da Gato Preto, que voltaria à vida dos tempos antigos, sem susto nem fama difamada. No dia seguinte, todo o povo retornou ao lugar do enterro pra chorar o morto e terminar os rituais de esquecimento. Ao chegarem, deram com a cova aberta, sem terra por detrás, nos lados e ao fundo. Os mais fortes saíram à cata do agora já bicho gigante, batendo mato sem cães, sem pássaros, tudo silenciado. Ao final de alguns dias, nada encontraram. A vida na aldeia foi escurecendo. De quando em quando, se ouvia um pio trágico de algum bicho que morria. As criações sumiam dos cercados. As crianças ficavam guardadas dentro de casa. E a mãe de Quatro Ventas abilolada, a arrancar os cabelos. O cacique decretou que migrassem, pondo na terra a malsância daquela gente, pois ali um bicho gigante tornara noite o dia. Fundaram outra aldeia, distante alguns tantos de terra, mas ainda nas cercanias da cidade do padre João. Lá se chamam Mariazinha e pensam que todo dia seguinte o sol nasce nas bandas do babaçual, onde Quatro Ventas não pode se esconder. Marcella Abboud Doutoranda em Teoria e Crítica Literária pela UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 74 Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo ambivalente com a linguagem, visto que seu texto é inteiramente construído em prosa poética, e mesmo que haja um filicídio O presente artigo tem como objeto de estudo o romance Lavoura na conclusão do enredo, o incesto é a principal marca e o Arcaica (1975), de Raduan Nassar, cuja narrativa gira em torno da saída do personagem André da casa da família, após um grande embate do romance. relacionamento incestuoso com a irmã Ana. Tal relação entre Em Lavoura Arcaica, os consanguíneos que praticam o irmãos tem sido constantemente analisada pelo viés da interpretação do tabu social e da desordem causada na família: o incesto são irmãos e, para alguns críticos, é visto como a romance resulta em filicídio, cometido pelo pai de André e cuja derrocada da família, uma vez que André, o protagonista e vítima foi Ana. irmão incestuoso, vai embora de casa, deixando os familiares O principal intuito deste texto é dar um estatuto diferente ao incesto e desprovê-lo da predominância de uma predicação desolados e a lavoura abandonada. Em artigo dedicado ao totalmente negativa. Para atingir tal desiderato, a presente reflexão romance de Raduan Nassar e ao seu filme homônimo, se valerá do respaldo teórico de Paul Ricoeur, em especial sua Henrique Codato e Miguel Heitor Braga Vieira reconhecem análise acerca da questão do símbolo. Para Ricoeur, todo símbolo tem um sentido escamoteado e é, por excelência, dúbio. Em certa dois modos de encarar o ato incestuoso: o incesto como medida, é a garantia da dubiedade que permite deslocar o símbolo contravenção social – a partir da quebra do tabu, visto como do âmbito do negativo e realocá-lo no da ambivalência. ato de desordem familiar. Propomos, com o presente artigo, uma terceira via: o incesto como ato de amor, Introdução necessariamente ambivalente, uma vez que carrega uma forte demonstração de afeto que não pode (e não consegue) Se, em uma pesquisa, o título Lavoura Arcaica fosse se desvincular da repulsa social. lançado em um mecanismo de busca online, de certo que Para atingir tal desiderato, recorreremos a Paul Ricoeur e a teríamos como resultado imediato o termo incesto. Ainda sua Simbólica do Mal². O modo como Ricoeur trata o conceito que não se desconsidere o domínio ímpar de Raduan Nassar de símbolo e a reelaboração do seu acervo simbólico nos com a linguagem, visto que seu texto é inteiramente permite rever esse pensamento, visto que é preciso construído compreender que, para Ricoeur ________________________________________________________________________________________________________________________________________ resumo ¹CODATO, Henrique; VIEIRA, Miguel Heitor Braga. O incesto no livro e no filme Lavoura Arcaica. In : Todas As Musas: Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte. São Paulo, 2011: v. 2, n. 2, p.76-93. 2 RICOEUR, Paul. A simbólica do Mal. Trad. de Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 simbólico nos permite rever esse pensamento, visto que é preciso compreender que, para Ricoeur, ele possui sempre dois sentidos. Além disso, o Mal, para o autor, é algo que não se pode conhecer diretamente, e que só permite uma interpretação necessariamente simbólica: ele é o símbolo por excelência. Esse duplo sentido constitui a natureza do ato mais comentado do romance, o incesto. Assim, a relação sexual e amorosa entre os irmãos André e Ana pode ser considerada ambivalente, pois carrega um discurso negativo, ainda que fale majoritariamente de amor (e seja uma possível demonstração de sua existência). Dessa forma, poderemos deslocar a temática do incesto, em Lavoura Arcaica, da ordem do monstruoso3 e realojá-la no campo que lhe é de direito: da ambivalência, que também inclui o amor. Ao fazer isso, reelaboramos a própria cultura, por meio das reinterpretações possíveis, considerando do conceito de símbolo. O caminho interpretativo que nos permite esse novo olhar e essa nova reinterpretação do símbolo está relacionada à presença constante da natureza na descrição do romance, a qual faz parte da constituição familiar - e pessoal - da própria personagem. 75 Lavoura Arcaica O livro de Raduan Nassar data de 1975 e é o primeiro da escassa, porém marcante, produção literária do autor. Seu enredo é simples e pode ser resumido em um parágrafo: narra a história de André que, infeliz com a vida que tinha com sua família, em uma fazenda de lavoura, foge de casa. Depois da fuga, Pedro, o irmão mais velho (e primogênito) vai à procura de André e o encontra num quarto sujo de pensão. Ao contrário do esperado, a conversa acalentadora do irmão mais velho não sensibiliza o filho pródigo: declarações desestabilizadoras são feitas pelo irmão fugido que, apesar disso, retorna ao seio familiar4, como convém a parábola. Se há simplicidade na descrição do romance, ela se esvai completamente na construção das personagens, os quais is constituem um núcleo familiar rural, com sete filhos. O texto é construído, quase em sua totalidade, em primeira pessoa e o narrador é André, o filho que foge da família. bababa ________________________________________________________________________________________________________________________________________ ³ Esse adjetivo é correntemente utilizado para se referir ao incesto. Um exemplo disso é o artigo “Filicídio e incesto como atos monstruosos, em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar”, do Professor Doutor Paulo R. B. Caetano (UFMG). 4 A intertextualidade com o texto bíblico foi amplamente explorada pelo autor e, no presente texto, não será objeto de análise. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Praticamente todo acesso que temos à história de sua fuga, da opressão e de seu incesto é feito a partir do olhar de André e, por essa razão, não é possível adjetivar o incesto do romance como monstruoso, a não ser com a devida vênia, isto é, que é claramente um adjetivo dado a posteriori pelos críticos, imbuídos do tabu que marca a sociedade contemporânea. O incesto, em Lavoura Arcaica, é da ordem do dúbio. Os outros personagens que aparecem no romance são; Ana, a irmã por quem André se apaixona; Lula, o caçula, com quem André também tem um relacionamento incestuoso; Iohánna, o pai; a mãe; e as três irmãs, Rosa, Zuleika e Huda: 76 tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, em um enxerto junto ao tronco protuberância mórbida, em um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família.5 Esse trecho é bastante paradigmático da visão que o autor faz da sua própria imagem: ele é parte do lado negativo da família, a ala sinistra, para fazermos alusão ao tronco esquerdo. Essa parte, como demonstrado no trecho, opõe-se ao direito: do lado funesto, está o afeto; do outro, a tradição. Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, A dubiedade já aparece no tom irônico deste trecho, dado ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por que o afeto apresenta uma conotação negativa. ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Ademais, tal dicotomia é muito relevante para a Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida Presente investigação, haja vista a tentativa de evidenciar eu, Ana, e Lula; à sua direita, por ordem de idade, vinha que há na derrocada familiar a opressão da tradição, muito primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua mais que o amor. A anomalia, a protuberância mórbida seria, esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. de fato, um enxerto ao tronco. Contudo, o tronco não é O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do apresentado como sinônimo de firmeza, mas como de força tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de bruta e complemente imóvel. Essa imagem da rigidez uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância bastante alegórica ao se falar em tradição - é reiterada pelo ________________________________________________________________________________________________________________________________________ mórbida, em um enxerto junto ao tronco talvez funesto, narrador, que constrói sua tentativa de fuga na distância que 5 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp.154-155. pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a estabelece de casa, da qual ele tenta sair completamente distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do embora nunca consiga de fato: 5 tempo) definia as duas linhas da família. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 bruta e complemente imóvel. Essa imagem da rigidez bastante alegórica ao se falar em tradição - é reiterada pelo narrador, que constrói sua tentativa de fuga na distância que estabelece de casa, da qual ele tenta sair completamente embora nunca consiga de fato: Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”. 6 (grifo nosso) 77 sombras: o avô, que aparece como uma espécie de penumbra assustadora no romance7 e no primogênito Pedro, cujo nome não esconde uma espécie de rigidez tão naturalmente imagética como um tronco, isto é, uma pedra. Quando o pai, em algum momento é mencionado, sempre lhe são atribuídos os sermões que se repetem como forma de negativar uma atitude. Seus valores, repassados por parábolas e ensinamentos, procuram falar em comedimento e paciência. Aos olhos de André, o pai sempre oprimiu com seus ensinamentos, podando toda sombra de dúvida, anseio e criatividade: ...tudo, Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente impregnado pela palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai que dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra angular, era essa a pedra em que tropeçávamos quando crianças, essa pedra nos esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as marcas no corpo...8 A relação forte com a tradição – marcada desde o título do romance pelo adjetivo “arcaica” – está ancorada especialmente na figura paterna, Iohánna, e tem duas sombras: o avô, que aparece como uma espécie de penumbra ________________________________________________________________________________________________________________________________________ assustadora no romance7 e no primogênito Pedro, cujo nome 6 Ibidem, pp.33-34. não esconde uma espécie de rigidez tão naturalmente 7 Diz o pai, em um sermão: “na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o outro exemplo: é na memória do imagética comoasum tronco, é, umaque pedra. avô que dormem nossas raízes,isto no ancião se alimentava de água e sal para nos prover um verbo limpo” em Ibidem,, p.60. 8 Ibidem, p.41 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” eu disse de repente com a frivolidade de quem se rebela, sentindo por um instante, ainda que fugaz, sua mão ensaiando com aspereza um gesto de reprimenda, mas logo se retraindo calada e pressurosa, era a mão da família saída da mesa dos sermões; que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira...9 As referências à tradição têm fundamentação na cultura árabe, que é visível nos nomes das personagens, bem como na referência a palavras do léxico. A figura do avô, por exemplo, aparece repetindo a palavra Maktub (em árabe, o verbo escrever no pretérito, comumente traduzido por “está escrito” numa referência cultural e religiosa à ideia de (pre)destinação). Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e aos ventos, assim como a outras manifestações da natureza que faziam vingar ou destruir nossa lavoura, o avô, ao contrário dos discernimentos promíscuos do pai – em que apa 78 apareciam enxertos de várias geografias, respondia sempre com um arroto toso que valia por todas as ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: “Maktub”10. A ascendência sutilmente mencionada pelo texto (que é a do próprio autor, filho de imigrantes libaneses) não aparece como sendo a causadora da dicotomia entre pai e filho. Os valores que impregnam o discurso do pai poderiam ser visíveis em diferentes sociedades e não cultuam qualquer relação com a cultura árabe, necessariamente, tendo inclusive maior relação com o distanciamento urbano. Na realidade, é recorrente, dentro da cultura brasileira, que os imigrantes e filhos de imigrantes sejam responsáveis por parte considerável da produção agropecuária nacional, especialmente aquela voltada para subsistência. Este dado é fundamental para se pensar na própria relação da personagem com a natureza e com a sua sexualidade: André tem seu primeiro ato sexual com uma cabra, e depois se envolve com a irmã. ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 8 Ibidem, p.41. 9 Ibidem, pp.46-47. 10Ibidem, p.89. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Além disso, reitera-se, dentro dessa circunstância, uma preocupação constante do pai: o cuidado com a lavoura, que lhe parece tão fundamental (e fundante) como a própria família. Ela é parte constitutiva daquela realidade, e é preciso dedicar-se à ela para pertencer ao seio familiar. A relação com a lavoura, mote preferido dos sermões paternos e parte da fúria revoltosa de André, está na necessidade de participar, a todo custo, da vida tão predestinada como a fala predestinada como a fala do avô: Maktub, isto é, quem nasce ali, nela necessariamente labuta. Não só André se sentia perturbado e oprimido, Lula, o filho caçula, revolta-se com a volta do filho pródigo, e diz a André: 79 Diante de uma opressão tão forte e rígida como a exercida na lavoura, grande parte da fuga de André se dava, curiosamente, nos elementos da natureza: tirar seus pés do sapato e colocá-los na terra úmida é uma ação constante que marca sua liberdade, seu desejo e a necessidade de calma. A natureza de Lavoura Arcaica possui poder significativo e é a partir dela que consideramos a duplicidade de sentidos do incesto. Se ela é o ponto de fuga da opressão, então a liberdade, a felicidade e o regozijo, não podem ser partes de um ato considerado necessariamente mal e negativo. A natureza como chave interpretativa Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono dos meus próprios passos; não nasci pra viver aqui, sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, nem dos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva (...) André, vou sair de casa para abraçar o mundo, vou partir para nunca mais voltar, não vou ceder a nenhum apelo, tenho coragem, André, não vou falhar como você...11 É possível afirmar que a natureza é, para Raduan Nassar, fonte de um arsenal quase inesgotável de referências e imagens utilizadas na construção do romance. Os personagens, as paisagens, e inclusive os sentimentos mais abstratos, ganham forma material no texto, a partir dos aspectos naturais. Esse recurso tem forte poder imagético e permite a compreensão da carga simbólica do incesto. incestooo ________________________________________________________________________________________________________________________________________ Ibidem, pp.177-179. 11 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 80 O filósofo francês Paul Ricoeur falava da movimento inevitavelmente redutor de uma interpretação impossibilidade de o sujeito conhecer-se diretamente única, e é nesse sentido que ele propõe o conflito: “a completamente: há sempre os signos que constroem a sua interpretação parte da determinação múltipla dos símbolos memória e o seu acervo cultural e são os intermediários (...) mas cada interpretação, por definição, reduz essa desse conhecimento. Seus textos hermenêuticos resultaram riqueza, esta multivocidade e “traduz” o símbolo segundo em uma preocupação sincera em compreender os signos. uma grelha de leitura que lhe é própria”13. O que se está em Nessa empreitada, Ricoeur formulou diferentes estudos, discussão é uma dialética da interpretação. entre eles, uma hermenêutica dos símbolos, cuja principal Há um sentido primeiro – literal – e um sentido oculto 12 conclusão é “o símbolo faz pensar” . O que Ricoeur dizia era no incesto na obra nassariana. O segundo pode ser que o símbolo possui um duplo sentido: um opaco e literal e apreendido a partir da relação que o narrador estabelece outro existencial e oculto. O primeiro guiaria a revelação do com a natureza. Desde o início do texto, já no segundo segundo, haja vista que o símbolo comunica uma mensagem capítulo, André aponta os elementos da natureza como fonte e, concomitantemente, escamoteia outra. de calmaria ao seu espírito agitado: É nesse sentido escamoteado que residiria, então, a possibilidade de interpretar que nos é tão cara para discutir Na modorra das tardes vazias na fazenda, era num sítio lá romance nassariano a partir de uma nova visão. Para no bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da Ricoeur, surge deste pensamento a alternativa de haver um família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, “conflito de interpretações”: em seu texto, o autor opõe uma cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso interpretação psicanalítica de um texto à outra, hegeliana: de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos àquela denomina arcaica – porque busca interpretar na todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de própria origem do ser - e a esta, preceptora, porque tem sua paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas preocupação no que sucede do ser. Ricoeur é consciente do eram essas liberando as vozes protetoras que me movimento inevitavelmente redutor de uma interpretação ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 12 No original, “le symbole donne à penser”. Optamos por essa tradução porque nos parece mais chamavam varanda? depossível, que adiantavam adequada.da Outra tradução como a utilizada na versão única, e é nesse sentido que ele propõe o conflito: “a portuguesa de A Simbólica do Mal, é “o símbolo dá que pensar”. 13 RICOEUR, Paul. O conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Trad. de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1978. p.16. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).14 A natureza é, para André, um refúgio: nela, ele fica livre e protegido, distante daquilo que lhe causa febre, dor e sofrimento, sendo um elemento de positividade em diferentes momentos. O capítulo 4 é significativo para evidenciar a relação de André com a natureza, pois apresenta a cabra Sudanesa como primeiro objeto de desejo e cuidado do personagem: Sudanesa (ou Schuda) era assim: farta; debaixo de uma cobertura de duas águas, de sapé grosso e dourado, ela vivia dentro de um quadro de estacas bem plantadas (...) a primeira vez que vi Sudanesa com meus olhos foi em um fim de tarde que eu a trouxe para fora, ali entre arbustos floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu a conduzi com cuidado de amante extremoso15. 81 Os sentimentos nutridos por Sudanesa redundam numa extrema personificação da cabra e num ato sexual entre os dois: ...tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza, cílios longos e negros, era nessa postura mística uma cabra predestinada (...) Schuda, paciente, mais generosa, quando uma haste túmida, misteriosa e lúbrica, buscava no intercurso o curso do seu corpo...16 A presença da natureza também é notada é quando André descreve a primeira dança de Ana: ela é descrita com elementos naturais, como os olhos de tâmara, capaz de tumultuar dores, “arrancando gritos de exaltação”17 de quem assistia. O que acomete André não é a culpa pelo tabu, mas o sofrimento perene com as regras e imposições da família. Quem oprime é a tradição, as regras do pai, os sermões sobre perseverança e paciência. O que há no incesto, aos olhos de André, é amor e positividade, marcado pela presença da natureza na cena em que o ato sexual é descrito. Verbis: descrev ________________________________________________________________________________________________________________________________________ NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp.11-12. 15 Ibidem, pp. 17-18. 16 Ibidem, p.18. 17Ibidem, p.30. 14 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 “...e era, Ana ao meu lado, tão certo, tão necessário que assim fosse, que eu pensei, na hora fosca que anoitecia, descer ao jardim abandonado da casa velha, vergar o ramo flexível de um arbusto e colher uma flor antiga para os seus joelhos; em vez disso, com mão pesada de camponês, assustando dois cordeiros medrosos escondidos nas suas coxas, corri sem pressa seu ventre humoso, tombei a terra, tracei canteiros, sulquei o chão, semeei petúnias no seu umbigo; e pensei também na minha uretra desapertada como um caule de crisântemo, e fiquei pensando que muitas vezes, feito meninos, haveríamos os dois de rir ruidosamente feito meninos, haveríamos os dois de rir ruidosamente, espargindo a urina de um contra o corpo do outro, e nos molhando como há pouco, e tocando sempre através das nossas línguas laboriosas a saliva de um com a saliva de outro, colando nossos rostos molhados pelo nosso olhos, o rosto de um contra o rosto do outro, e só pensando que nós éramos de terra, e que tudo que havia em nós só germinaria em um com a água que viesse do outro...18”. 82 Seria uma leitura ingênua pressupor que só o amor comove André. Há culpa nesse relacionamento e, por isso ele possui caráter ambivalente. Poucas coisas são mais ocultas que o silêncio e foi o silêncio a marca que caracterizou Ana. Ao longo de todo livro, não há nenhuma fala de Ana. Ao mesmo tempo, ela é a personagem que permeia toda narrativa: praticamente todas as ações de André envolvem Ana, direta ou indiretamente. O seu mutismo talvez seja um outro grande símbolo, uma vez que existe uma primeira leitura, de culpa, e outra, escamoteada, que envolve o amor por André, mas que não podemos apreender completamente. O silêncio de Ana não é compreendido pela família. Pedro, o primogênito, conta para André: mas ninguém em casa mudou tanto como Ana” ele disse “foi só você partir e ela se fechou em preces na capela, quando não anda perdida num canto mais recolhido do bosque ou meio escondida, de um jeito estranho, lá pelos lados da casa velha; ninguém em casa consegue tirar nossa irmã do seu piedoso mutismo...19 ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 19 Ibidem, p.37. Ibidem, pp. 113-114. 18 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Duas leituras nos são dadas: a de Pedro, que ainda sem saber de nada, narra o sofrimento da irmã como metonímia do sofrimento de toda família – um irmão foi embora e o tronco rígido da união familiar se rompeu. Além da leitura de Pedro, há o olhar do leitor de que o ato sexual se deu na casa velha e que, quando André acordou, Ana já não estava ao lado dele, mas na capela, rezando em silêncio. Rezava por culpa? Rezava de saudade? Há um forte interdito cultural na religião: o sexo é pecaminoso, especialmente se praticado com alguém proibido pelo tabu social, ou seja, o próprio irmão. No entanto, considerar o silêncio de Ana apenas como culpa seria reduzir outro símbolo em mera alegoria, descartando seu poder oculto e sua segunda interpretação. Afinal, o leitor sabe que Ana rodeia a casa velha, bem como sabe que se deu lá o ato sexual de André e Ana. É provável que a culpa seja o sentido mais evidente do mutismo de Ana, mas é também da natureza dúbia desse símbolo carregar a ambivalência de significado: o silêncio de Ana é também saudade, ausência, pois se viu afastada de seu amor, André. 83 Considerações Finais Duas cenas do livro ainda merecem destaque para que se possa considerar diferentes olhares sobre o símbolo do incesto. A primeira delas é o encontro de Ana e André na capela, após terem tido a relação sexual; a segunda é o assassinato de Ana pelo próprio pai. Quando André desperta, percebe que Ana não está ao seu lado – “eu que não sabia que o amor requer vigília”20 – e a encontra, de joelhos na capela, rezando enquanto chora. Pensando nisso, vislumbrando o possível desejo de redenção por parte de Ana, André afirma, em seu discurso, que o acontecido, ao contrário de um pecado, era um milagre: foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a certeza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no instante de alegria e nas horas de adversidade; foi um milagre, querida irmã, descobrirmos que somos tão conformes em nossos corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas memórias, sem trauma para a nossa história; foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos ______________________________________________________________ bastamos dentro dos limites da nossa própria 20 Ibidem, p.114. ______________________________________________________________ palavra, confirmando a palavra do pai de que a ____________ felicidade só pode ser encontrada no seio da família; foi um milagre, querida irmã...” 21 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria palavra, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família; foi um milagre, querida irmã... 21 André fala em termos positivos: foi um milagre, uma felicidade, alegria. A imagem do pai aparece como forma de justificativa, afinal, o pai havia dito que a felicidade está no seio da família. E Ana era, para André, felicidade. Ainda que houvesse culpa, o negativo, o monstruoso e o inadequado não são atributos justos para o incesto. Por fim, a volta de André, que é acolhido pela família, causa um último furor: Ana foge e só reaparece na cena final do livro. Ela reaparece vestindo acessórios de prostitutas que André colecionava em uma caixa, e que Ana roubou. Esse roubo Esse roubo evidencia o ciúmes e o desejo de Ana em provocar André, elucidando assim, seus sentimentos de desejo e amor pelo irmão. É preciso notar que, aos olhos de André, Ana sempre apresenta uma imagem muito sensualizada, sendo protagonista de cenas de danças sensuais ao longo de todo o livro. A dança aparece recorrentemente como um ritual de sedução entre os dois. sedu 84 Esse ritual se repete, ainda com mais ênfase e nutrido pelo ciúme, na festa de André, a recepção do filho pródigo: ...foi assim que Ana, converta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência (...) os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lendo, mais ondulante...22 A dança petulante e sexual de Ana desconcertava as tradições da família: as irmãs tentavam impedi-la, Pedro vociferava ao Pai, a mãe chorava. O primogênito, cuja honra da família devia proteger, solicitou a vinda do patriarca. O pai veio ao encontro de Ana e não se conteve: matou a própria filha, cuja sensualidade desafiava a rigidez da tradição. André não esconde, ao final do livro, durante o assassinato de Ana, que era visível o peso da tradição até sobre aquele homem que a cumpria como se lhe fosse tão natural. A força da Lavoura Arcaica se esvai. O patriarca sucumbe à violência da tradição e comete filicídio: violenciada ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 22 21 Ibidem, p.118. Ibidem, p.189. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ...o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guiado, era a tábua solene, era a lei que se incendiava – essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era descanada como eu pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea, resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre família a nossa, prisioneira de fantasmas tão persistentes!), e do silêncio fúnebre que desabara atrás daquele gesto, surgiu primeiro, como de um parto, um vagido primitivo Pai! O livro se encerra com um capítulo em “Memória de meu pai”. O capítulo possui um tom misterioso que oscila entre a ironia e a compaixão, refletindo sobre os acasos e caprichos do tempo. A conclusão da trama nassariana será também a nossa: a tradição é inevitavelmente opressora, como “o gado sempre vai ao poço”.23 _____________________________________________________________ 23 Ibidem, p.194. _____________________________________________________________ ______________ 85 Rogério Sáber Mestre em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Docente da Universidade do Vale do Sapucaí, e Pesquisador do grupo “Minas Gerais: diálogos” (Unincor). Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 A existência não vence em teu peito O nevoeiro funde-se à minha arquitetura. As vigas não são mais maciças, mas há permanência. A névoa oculta o semblante da mansão e há ruídos e há permanência. Os ruídos são a tentativa de desvelamento. Névoa: queda lenta e úmida e os segredos não são postos às claras. A neblina é cúmplice do mistério, criadora do mistério. A casa permanece: decadente, nostálgica, mas permanece. O ser humano passa. Insistentes monossílabos ecoam à distância enquanto percorro o vale desertado, forçado a contemplar meu próprio fado, coagido a aceitar minha inútil errância. A audição torna-se apurada, e o som, denso: a alma absorve, de fora para dentro, os obstinados barulhos. Os alvéolos do espírito permanecem ocos e em silêncio; enquanto a carne é fustigada pela crueldade dos pedregulhos. Há miradouro a se alcançar quando tudo é deformado por excelência? Haveria fuga da triste música carregada pelos ventos estivais? Como ser o intérprete dos sons da própria existência, se cada passo nos conduz a veredas infernais? Replica o vale: “Conforma-te com minha areia e vaga como tu podes! Lembra-te de que minhas dunas se movem e cobrem os caminhos que estavam desnudos. Prisioneira, a existência em teu peito não vence: limita-se a um coração que explode – e que acompanha o meu batuque, até que os golpes se tornam fracos, fracos, – mudos.” 87 Elisa Pagan Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 89 Romances expressos e amores em Ithaca Road 1. Antes de qualquer consideração sobre Ithaca Road1, talvez seja interessante comentar as curiosas condições em que o livro foi escrito. Em 2007, o produtor Rodrigo Teixeira idealizou a coleção “Amores Expressos”, em parceria com a editora Companhia das Letras. O projeto: 16 escritores vão para mamamam diferentes partes do mundo colher uma história de amor que será convertida em umdiferentes romance, num estilo que deve ser adaptável para o cinema. A coleção também conta com uma série de televisão, que estreou na TV Cultura em 2011. O orçamento do projeto foi, inicialmente, de 1,2 milhão de reais, para comprar as passagens e hospedar seus escritores. Num primeiro momento, o projeto seria subsidiado pela lei Rouanet; diante do volume de reclamações de escritores, jornalistas e blogueiros, que acharam injusto o uso de tal quantia de dinheiro para hospedar pessoas em hotéis pelo mundo mundo, Rodrigo Teixeira resolveu financiar o projeto com o próprio dinheiro, juntamente com dois sócios, reduzindo então o orçamento para 500 mil reais. E foi quase um fracasso total. Alguns escritores desistiram, entre eles, Reinaldo Moraes, encarregado de escrever sobre a Cidade do México, que disse em entrevista para a Folha, já em Julho de 2013: “Livro sob encomenda só aceito se estiver passando fome.” Lourenço Mutarelli chegou a terminar o trabalho, mas ficou tão insatisfeito com o resultado final de seu romance sobre Nova York que preferiu nem publicá-lo, em 2009.2 Adriana Lisboa terminou, em 2008, seu romance sobre Paris, porém, segundo entrevista para a Folha, deparou-se com uma “questão estrutural indissolúvel”, e não foi publicado3. Atualmente, a série conta com 10 livros publicados pela Companhia das Letras, sendo que o último é o romance de Paulo Scott. Ithaca Road é o mais novo livro desta coleção que tenta, aos poucos, se reestruturar e ganhar espaço no mercado literário. O romance, no entanto, possui questões internas que podem ser extrapoladas para a própria proposta da coleção Amores Expressos, o que será explorado adiante. Comecemos pelo livro. _______________________________________________________________________________________________________________________________________ Paulo. Ithaca road. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013. 2 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1317373-encomenda-travou-escritores-da-colecao-amores-expressos.shtml 3 Ibidem. 1 SCOTT, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Narelle, protagonista do romance, é uma jovem cidadã neozelandesa, mestiça maori, que viaja para Sydney a pedido do irmão Bernard. Este, que é dono do restaurante do qual Narelle será a gerente provisória, some misteriosamente sem deixar pistas. No cenário dessa metrópole, Ithaca Road conta como é – e foi – a relação de Narelle com esse país. O livro é curto e enxuto; cerca de 100 páginas escritas numa linguagem bem direta, com um excessivo e repetitivo uso de pronomes pessoais, que confere ao romance um clima maquinal, bem pouco natural. Os diálogos, no mesmo estilo, se dão por meio do discurso indireto, ou entre aspas no meio dos parágrafos, sempre num ritmo acelerado. Tal proposta de estilo se encaixa muito bem no clima frenético e metropolitano que rege o romance. 90 Narelle tem todo um estilo tomboy4; alta, morena, descendente maori, anda de skate e não se importa com bolsas e sapatos. Existe nela todo um estereótipo de mulher moderna, exótica, que não liga tanto assim para a aparência, que faz sexo casual, bissexual, que quer ser independente e bem sucedida: um verdadeiro fetiche sexual da juventude moderna. Dentro do universo do romance, Narelle é tão sedutora que absolutamente todos os personagens importantes, ocasionalmente, se sentirão atraídos e estarão em alguma situação de tensão sexual com ela. Mas, de todos que a desejam, três figuras são particularmente interessantes para o romance: o síndico, um desconhecido e uma jovem com “autismo leve” (como descreve Paulo Scott na série de televisão baseada no livro). Ao entrar no restaurante de seu irmão, o Paddington Em Ithaca Road, Narelle se encontra com vários Sour, Narelle conhece o síndico responsável pelo amigos de seu passado. Na pressa de se libertar de sua rotina estabelecimento. Ela descobre que o restaurante está num e de sua família, quando mais nova, viajou para Sydney, processo de falência e é avisada pelo síndico de que ela, por entrou numa faculdade, depois desistiu, e no meio de tanta ser a gerente provisória, se responsabilizará pelos problemas indecisão decide que irá ser uma espécie de “caçadora de do estabelecimento e deverá cooperar. E ela não poderá, em estampas”: uma pessoa que viaja pelo mundo à procura de hipótese alguma, sair do país. Logo na primeira metade do estampas exóticas para grandes grifes. Ao mesmo tempo, 4 Narelle tem todo um estilo tomboy ; alta, morena, livro o síndico vai à casa em que Narelle está morando (a de descendente maori, anda de skate e não se importa com seu irmão) para fazer o levantamento de bens, sob a ameaça 4Tomboy: menina que possui comportamentos masculinos; usa algumas roupas masculinas (como bermudas ou camisas) e gosta de brincadeiras "de rapazes", bolsas e sapatos. Existe nela todo um estereótipo de mulher de que, se ela não cooperar, ele chamará força policial. É neste ou seja, que envolvam elevada competitividade ou força física, tais como futebol, lutas ou subir em árvores. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria-rapaz moderna, exótica, que não liga tanto assim para a aparência, momento que Narelle sofre o seu primeiro abuso. O síndico que faz sexo casual, bissexual, que quer ser independente e encontra um cofre no apartamento. Narelle não conhece o bem sucedida: um verdadeiro fetiche sexual da juventude código. Continua: ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 livro o síndico vai à casa em que Narelle está morando (a de seu irmão) para fazer o levantamento de bens, sob a ameaça de que, se ela não cooperar, ele chamará força policial. É neste momento que Narelle sofre o seu primeiro abuso. O síndico encontra um cofre no apartamento. Narelle não conhece o código. Continua: Ele disse que não se preocupasse, não chamaria os policiais desta vez, queria só a palavra dela de que não abriria aquele cofre sem que ele estivesse presente. Ela se negou. Então ele segurou firme seu pulso direito. Pediu que lhe mostrasse o celular. Ela obedeceu. Pegou o aparelho, desligou, deixou sobre o tampo da mesa, deu uma olhada ao redor como se procurasse. Pareceu mais jovem e atlético do que antes, mais alto e ameaçador. “Não se preocupe... não vou ser violento... Quero só que voce preste bem atenção no que eu vou dizer... A partir deste minuto, deste exato minuto, voce vai me respeitar e vai me obedecer. Estamos acertados?” Poderia ter avançado com as unhas contra seu rosto, buscado uma faca na cozinha, gritado, reagido como se não houvesse consequências, mas concordou, apenas concordou. Depois de mais de uma hora de trabalho disse estar satisfeito e que chegaria ao Paddington Sour às onze e meia da noite em ponto, bbbbbbb 91 destrancou a porta do apartamento por sua própria conta, agradeceu por estarem se entendendo e saiu. 5 Depois deste momento, o livro continua com a mesma linguagem mecânica, tranquilamente. Este trecho sugere uma cena de abuso, mas o excessivo distanciamento com que ele é narrado confunde o leitor, que, incrédulo, fica sem saber se o abuso realmente aconteceu. Ao final do livro, o síndico ataca novamente Narelle, que, desta vez, foge correndo deixando-o sozinho numa sala do Paddington Sour; a cena acaba sem explicações e confirma as suspeitas do leitor. Após este primeiro contato violento com o síndico, Narelle conhece uma menina autista chamada Anna, e sua irmã Lakini, num parque da cidade. Anna gostava de desenhar; ao final do livro, seus desenhos são a chave para que Narelle entenda o que está acontecendo com o restaurante de seu irmão. Esta menina, desenhando pessoas aleatórias no parque, tem a sorte de retratar várias cenas onde está seu irmão, o que fará Narelle descobrir de um funcionário do restaurante que seu irmão está por perto e que tudo não passa de um plano, que ela deve relaxar e continuar com as coisas normalmente. O curioso é que é bbbbb _____________________________________________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________________________ _____________________________________________________ 5 SCOTT, Paulo. Ithaca road. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.31. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Anna quem fará o esforço para ter contato com Narelle, com quem começa a passear regularmente. Num desses passeios, as duas vão passar a noite em uma pousada e, durante a madrugada, Anna seduz Narelle, elas se relacionam e dormem juntas. Não pretendo, nesta resenha, analisar a cena do ponto de vista moral; descrevo-a, simplesmente, pela grande tranquilidade com que Paulo Scott tratou esse assunto tão delicado e tão polêmico, e pela importância que esta menina tem na construção da personagem principal, conforme irei argumentar. Por fim, no final do livro, Narelle conta a seu amigo Justin uma história antiga. Alguns anos antes, ela estava em uma casa durante uma invasão policial na época das Olimpíadas de Sydney, quando, segundo o livro, estava ocorrendo grande repressão contra as comunidades aborígenes que moravam na parte urbana da cidade. Nessa parte, tão surpreendente quanto os abusos do síndico e a cena de sexo com a jovem Anna, Narelle conta que foi espancada violentamente por policiais, após discutir com um deles. Ensanguentada e debilitada, foi levada para o hospital, onde um desconhecido – que ela sugere ser um dos policiais – coloca a mão em suas partes íntimas enquanto lhe fala obscenidades em voz baixa. Estas cenas nas quais Narelle é tratada com excessiva brutalidade são completamente avessas ao comportamento que o leitor espera. A maneira como ela é impotente frente aos abusos e aos outros personagens não condiz com a sua personalidade tomboy e 92 como ela é impotente frente aos abusos e aos outros personagens não condiz com a sua personalidade tomboy e independente, nem com o ideal de heroína romanesca moderna. Somado a isso, a linguagem mecânica do livro faz com que as cenas fiquem ainda mais inesperadas e frias. É possível entender a relação dela com Anna como uma relação também impotente: Narelle foi chamada por Lakini para ajudar a animar Anna, uma menina vista como frágil, que necessita de cuidados especiais. Porém, é essa quem seduz Narelle, trazendo-a para seu mundo. Com o passar do livro, essa grande impotência de Narelle parece ser aquilo de mais peculiar no romance. O livro possui, na maior parte do tempo, uma leitura fácil; conta a história de uma meninafetiche qualquer, numa cidade qualquer. Mas estas partes em particular representam uma força destrutiva para aquilo que a personagem possui de mais clichê e previsível, colocando-a em situações que conseguem gerar um verdadeiro desconforto no leitor, conferindo a ela uma profundidade psicológica inesperada. No desfecho do livro, após Narelle saber que seu irmão está em Sydney e que tudo não passa de um plano, após ter que ligar para seus pais e não conseguir lhes contar sobre seu irmão, após viver e relembrar histórias de abuso cada vez piores, ela é convidada por Lakini para dormir em sua casa com Anna, sugerindo que as duas terminariam juntas. Narelle toma poucas decisões por conta própria; ela é seduzida o tempo todo, de maneira passiva, para vários ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 93 um retrato fiel dessa juventude, que é semelhante entre si em qualquer metrópole do mundo, seja em Sydney, Paris, Nova York ou São Paulo. Em seu famoso texto “O narrador” 7, Walter Benjamin diz que existem dois modelos de narrador: o do camponês sedentário e o do marinheiro viajante. Enquanto o primeiro reconta as narrativas que acumulou durante a vida, o outro, justamente por viajar pelo mundo, é aquele que viveu as próprias histórias e encontrou outros viajantes semelhantes a ele com quem dividiu histórias. O ato de ser um viajante, de não possuir uma rotina fixa, de se colocar em um modo de vida que é visto, pela pessoa comum, como extraordinário e 2. imprevisível, confere a ele um status de autoridade. Pode-se Dentre as críticas feitas ao livro recém-saído do prelo, dizer que esta é a ambição da coleção Amores Expressos: um fator parece ser consenso: Ithaca Road consegue fazer transformar o escritor comum, sedentário, em um viajante. um retrato interessante e coerente da chamada geração Z: Segundo Walter Benjamin, o surgimento da imprensa jovens que não querem se fixar em algum lugar ou a alguém; é um fator decisivo para a consolidação da forma romance na desejo sexual sem preconceitos, aberto a novas – e polêmicas tradição literária. Em seu texto, ele faz uma diferenciação – experiências; ausência do desejo de constituir família; entre narrativa e romance: enquanto a narrativa está ligada capacidade de manter relações, sejam amorosas, amigáveis à tradição oral, o romance está intrinsecamente ligado ao ou profissionais, com diversas pessoas em diversas partes do papel, seja livro ou folhetim. A narrativa é a arte de contar mundo. Podemos dizer que o livro é, antes de qualquer coisa, devidamente uma história, seja à maneira do marinheiro ou à ...........................................................................................................um 6 Deus ex machina: expressão latina, que significa literalmente "Deus surgido da máquina". É utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável e maneira do camponês; é uma forma ligada ao intercâmbio de retrato fiel dessa juventude, que é semelhante entre si em mirabolante para terminar uma obra de ficção ou drama. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Deus_ex_machina experiências vividas. O romance, por sua vez, é um produto do mundo, seja em Sydney, Paris, 7qualquer BENJAMIN,metrópole Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nova Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da íntimo do autor. York ouSão São Paulo. cultura.. Paulo: Brasiliense, 1985, p. 197-221. Narelle toma poucas decisões por conta própria; ela é seduzida o tempo todo, de maneira passiva, para vários lugares e pessoas. E assim, numa espécie de deus ex machina6 às avessas, no auge de sua passividade, o livro termina. Quando ela percebe que todos a estavam manipulando de alguma forma, ela se vê finalmente livre para tomar uma decisão por si só. Assim, decide nunca mais voltar ao Paddington Sour – por mais que o síndico a tenha alertado de que ela não poderia fazer isso. Com quem ela ficará, isso o livro não responde. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 devidamente uma história, seja à maneira do marinheiro ou à maneira do camponês; é uma forma ligada ao intercâmbio de experiências vividas. O romance, por sua vez, é um produto íntimo do autor. Com a imprensa, surge um conceito novo: a informação. O poder da informação depende do quanto ela é verídica; ela só é válida se vier acompanhada de uma explicação. Com ela, aparece a ideia de “intercâmbio de informações”, força absolutamente destrutiva para o “intercâmbio de experiências” – a narrativa. Neste ponto, Walter Benjamin fala sobre a incapacidade que temos, nos tempos que correm, de trocar experiências. Ouvir uma história com o intuito de se fazer mais sábio, dar um conselho, escrever um livro com “moral da história”, são coisas que nos parecem completamente antiquadas. E isto ocorre porque a ideia de troca de experiências – a ideia de sabedoria – foi perdida e substituída pelo ideal moderno de acúmulo de informações. É neste ponto que a coleção Amores Expressos encontra um sério problema. A ideia de que escritores, em contato com diferentes culturas e pessoas, seriam capazes de escrever uma história de amor que fosse, de alguma forma, própria ou típica do lugar visitado, é antiquada. Vários escritores, em suas viagens, mostraram não ter conseguido obter de suas cidades mais do que 8 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1703200707.htm informações cenográficas. Na série de televisão baseada na 9 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2205201016.htm coleção, Daniel Galera comentou que, 94 não ter conseguido obter de suas cidades mais do que informações cenográficas. Na série de televisão baseada na coleção, Daniel Galera comentou que, enquanto escrevia A Cordilheira em Buenos Aires, pretendera escrever um “romance universal”. "Dá para ambientar romances até na Lapônia, como no filme ‘Os Amantes do Círculo Polar’”8, disse Adriana Lisboa, em entrevista para a Folha. O mesmo problema é evidenciado também por Alcir Pécora, em sua resenha sobre o romance Do Fundo do Poço se Vê a Lua, de Joca Terron: A vantagem evidente de mandar os autores às cidades estrangeiras era que as conhecessem e fizessem ambientações menos canhestras. No caso de Terron, a viagem foi inútil: dançarinas do ventre, cafetões charmosos, tempestades de areia, vielas labirínticas, cortesãs misteriosas, aristocratas e hotéis decadentes, garotos pedintes, milícias fundamentalistas, xeiques tarados... Há tantos estereótipos do Cairo que faz duvidar do interesse de ter ido até lá. 9 Da mesma forma, o livro de Paulo Scott não conta uma história que possui real ligação com a cidade de Sydney; a história faz um retrato da sociedade capitalista e absolutamente globalizada que a geração Z habita. Narelle ............................................................................................................................. uma cidadã neozelandeza, descendente de maoris, que trabalha numa empresa de moda que vende estampas do ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 absolutamente globalizada que a geração Z habita. Narelle é uma cidadã neozelandeza, descendente de maoris, que trabalha numa empresa de moda que vende estampas do mundo todo para grifes também do mundo todo, e cujo namorado é um jornalista austríaco que está trabalhando no Brasil. Todos esses substantivos que se referem a países e nacionalidades, no livro, podem ser randomicamente substituídos até a exaustão; o romance permanecerá, grosso modo, o mesmo. Troquemos Sydney por São Paulo, Opera House pelo Teatro Municipal, ou a repressão policial nas Olimpíadas pelas UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, e Narelle pode sentar em escadas que desempenharão seu papel da mesma forma, aqui ou lá, e poderá pensar as mesmas coisas e tomar as mesmas decisões. O papel dessa ambientação, da overdose de nomes de ruas, redes de fastfood, lojas, shoppings e praias, funciona antes como uma ambientação exótica, um figurino que irá dar um toque de requinte, uma falsa autoridade para a obra. O que vem sem explicações, a narrativa dentro do romance, é a história de Narelle. A ambientação e tudo o que pode vir sobre Sydney nos vem invariavelmente na forma de informação; o que exemplifica a extrema dificuldade, ou até impossibilidade, de se narrar uma história própria de ............................... 10Vídeo “'Ithaca Road' de Paulo Scott”, disponível em www.youtube.com 95 Sydney. A cidade aparece como cenário, como figurino; o livro dá ao leitor pequeninos relatos informativos de como é, atualmente, a vida mundana de uma metrópole australiana: onde comem, o que ouvem, o local onde andam de skate, a praia onde praticam surf, a rua que possui bares badalados. A importância de Sydney é meramente informativa e cenográfica; a viagem só foi necessária para a criação do livro na medida em que encorajou o autor a escrevê-lo. 3. Ithaca Road é visto pelo próprio Paulo Scott como a trajetória do crescimento pessoal de Narelle. Segundo o autor, em entrevista 10: Esse retorno a Sydney desencadeia uma série de encontros e situações limites que colocam ela em uma perspectiva diferente, e a faz reavaliar ou ter de enfrentar coisas que ficaram escondidas, esquecidas, apagadas, coisas que aconteceram em Sydney. E também: Ithaca Road é uma espécie de momento de acerto de contas de Narelle com o passado. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Narelle, pintada como mulher independente e decidida, é impotente até as últimas páginas do romance. A sugestão de que ela terminaria com a sedutora e frágil Anna é uma espécie de atestado final de sua incapacidade de tomar decisões por si só. O que o autor descreve como um acerto de contas com o passado aparece, no livro, como um desabafo: Narelle descreve o que lhe aconteceu no episódio do “Quarteirão” (no qual ela foi abusada sexualmente por um policial). Seria o ato de proferir em voz alta o que ocorreu um ato de superação, de crescimento pessoal, como diz o autor? Será que, ao final do romance, Narelle se torna independente, 96 dona de si, ou, ao contrário, parece ser exatamente a mesma pessoa, imutável, incapaz de absorver alguma experiência com o que ocorre com ela? Se a segunda hipótese for verdadeira, podemos ver, encenada por Narelle, a impotência central da coleção Amores Expressos. O desabafo, ou o oferecimento de mais uma informação sobre a vida de Narelle para o leitor funciona como um arremedo de mudança real e efetiva da personagem; da mesma forma, a grande disponibilidade de informações – o conjunto, às vezes estereotipado, do figurino e do cenário das cidades visitadas – funciona como um arremedo da experiência no sentido benjaminiano. Lidiana Garcia Cursa Letras no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Bolsista SAE do projeto “Bibliografias sobre Vanguardas Artísticas no século XX no Brasil”, sob a orientação de Maria Eugenia da Gama Boaventura Dias do Departamento de Teoria Literária do IEL/UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 98 A vingança de Diónysos: uma análise do prólogo d’As Bacantes Introdução O artigo proposto tem por objetivo analisar o prólogo d’As Bacantes com o intuito de investigar os elementos mítico-rituais da religião dionisíaca, presentes nessa seção da tragédia. Tais elementos fornecem subsídios para se detectar a influência da religião dionisíaca, praticada na Grécia Antiga, sobre a composição do prólogo d’As Bacantes. Sendo assim, a hipótese que orienta este estudo é que o prólogo d’As Bacantes apresenta ao leitor² da peça algumas práticas rituais relacionadas à religião dionisíaca, que eram desempenhadas pelas mulheres na Antiguidade Grega, e aborda os principais mitos gregos que embasam tais práticas rituais. O prólogo d’As Bacantes, e a tragédia em sua totalidade, dramatiza o mito de introdução da adoração de Dioniso em Tebas. Alguns estudiosos, como Kraemer³, compartilham da tese de que As Bacantes, de Eurípides, escrita no século V a.C, combina os elementos religiosos fixados pelo mito dionisíaco com as próprias observações de Eurípides sobre as práticas rituais realizadas em seu tempo. resumo O principal objetivo deste artigo é analisar o prólogo (v. 1-58) d’ As Bacantes, de Eurípides, seção na qual o deus Dioniso narra as razões que o levaram a elaborar um projeto de vingança contra a família real de Tebas. Além de analisar os elementos ficcionais do prólogo, o artigo focou-se na análise dos elementos míticos e históricos da religião dionisíaca, abordando alguns mitos relacionados com o deus delirante e alguns estudos que investigam as práticas rituais dionisíacas que ocorriam na Antiguidade Grega. O artigo se divide em duas partes: a primeira explica a função do prólogo na peça e apresenta o mito dionisíaco, no qual a tragédia se baseia. Nessa parte, realiza-se uma análise do mito, elucidando as razões que induziram o deus Dioniso a planejar uma vingança contra a família real tebana. A segunda parte do artigo analisa a natureza dionisíaca e a sua manifestação mítico-ritual na Antiguidade Grega, recorrendo a estudos históricos que investigam a prática do culto dionisíaco na sociedade helênica. A análise do artigo visa identificar a influência da religião dionisíaca sobre a composição do prólogo d’As Bacantes, seção rica em significados mitológicos e históricos. Entretanto, o helenista Dodds⁴ acredita que havia pouco ou nada no culto oficial ateniense para inspirar Eurípides nas descrições do culto dionisíaco presentes na sua tragédia. Para o _________________________________________________________________________________________________________________________________________ ¹ Este artigo é parte de uma monografia, ainda em desenvolvimento, sobre a tragédia As Bacantes. ² É importante salientar que a tragédia As Bacantes foi produzida para ser encenada para o público ateniense que viveu no século V a.C. Dessa forma, o público ideal da tragédia já conhecia, muito bem, o mito no qual a tragédia se baseava e conhecia, também, as práticas da religião dionisíaca que eram desempenhadas nesse período da Antiguidade. ³ KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 57-61. ⁴ DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XXII-III. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 o autor, as referências tradicionais e primitivas sobre a religião dionisíaca n’As Bacantes devem-se, em alguma medida, às coisas que Eurípides viu ou ouviu na sua estadia na Macedônia⁵, onde a tragédia foi escrita. De acordo com Plutarco⁶, na Macedônia o culto dionisíaco estava em seu quarto século suficientemente primitivo para incluir na adoração os ritos de manipulação de cobras. Dessa forma, os ritos nos quais as mulheres, convertidas em bacantes, são possuídas pela loucura dionisíaca estão expostos no prólogo d’As Bacantes. Para Kraemer⁷, a peça de Eurípides fornece explicações relativamente francas sobre tais ritos praticados no culto de Dioniso; para o autor, de acordo com as passagens da tragédia, pode-se inferir que Eurípides conhecia os ritos dionisíacos restritos aos iniciados na religião dionisíaca. As descrições detalhadas na peça As Bacantes permitem argumentar que a tragédia descreve os rituais praticados pelas mulheres gregas anteriores ou contemporâneas a Eurípides. 99 I. Aspectos mitológicos no prólogo d’As Bacantes: a vingança por trás do mito A tragédia As Bacantes foi escrita por Eurípides, o terceiro e último dos grandes trágicos que a tradição consagrou na Grécia (entre eles estão Ésquilo e Sófocles). A obra foi representada pela primeira vez em Atenas no ano de 405 a.C., um ano após a morte de seu autor Eurípides (Salamina, 480 a.C. – Pela, 406 a.C.). O prólogo d’As Bacantes é um monólogo recitado pelo próprio deus Dioniso e tem a função de situar a ação da peça em consonância com o contexto da tradição mitológica, já conhecida pela comunidade grega, apresentando o tempo e o lugar em que ocorre a tragédia, além de resumir os acontecimentos que ocasionaram a ira do deus e as suas consequências. Segundo Dodds⁸, o tom e o conteúdo desse prólogo podem ser associados a Afrodite na tragédia Hipólito, de Eurípides: ambos os prólogos (de Hipólito e d’As Bacantes) se iniciam com a afirmação enfática da divindade do personagem e mostram como essa divindade é menosprezada e ________________________________________________________________________________________________________________________________________ ⁵ Em 408 a.C. Eurípides retirou-se de Atenas para viver na corte do rei Arquelau, em Pela, na Macedônia, onde morreu em 406 a.C. (EURÍPEDES. As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011). ⁶ PLUTARCO. Alexander, 2 (apud DODDS, 1986, p. XXII-III, cf. nota 1). ⁷KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 59-60. ⁸ DODDS, E. R. Commentary. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. 62. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 e desrespeitada por um mortal, razão pela qual o deus elabora um projeto de vingança. Porém, Dioniso difere de Afrodite, e de outros deuses familiares ao público, pois ele não irá desaparecer da ação depois que sua mensagem for entregue: o deus se apresentará para Tebas em forma humana e cada membro do público deve estar ciente deste fato, por isso Dioniso salienta esse ponto três vezes na sua fala: “(...) minha forma divina pela de um mortal trocada” (v. 4). “(...) de mortal vesti o semblante e minha forma divina mudei em natureza humana” (v. 53-54). Nos primeiros dez versos do prólogo, Dioniso narra milagres relacionados à sua origem divina. Um deles se refere ao fogo sempre a arder em torno do túmulo e das ruínas da casa de sua mãe Sêmele, que foi fulminada pelo raio de Zeus (v. 5-8), infortúnio ocasionado pela vingança de Hera⁹. ____________________________________________________________________________________ ⁹ No mito grego, Zeus se apaixonou pela princesa tebana Sêmele, filha de Cadmo, o rei de Tebas. Quando Zeus procurou a jovem pela primeira vez, não o fez na forma divina, mas sim na forma de um mortal. Quando Hera soube da traição de Zeus e que ele teria um filho com a princesa tebana, a esposa irada disfarçou-se na ama de Sêmele e a persuadiu para que desejasse ter Zeus na sua forma divina, como Hera o tinha. Enganada pela deusa, Sêmele pediu a Zeus que lhe concedesse a satisfação de apenas um desejo e o deus prometeu fazê-lo. Quando a princesa tebana lhe pediu para que aparecesse como ele aparecera para Hera, o deus visitou-a com um raio, fulminando o corpo de Sêmele e tirando-lhe a vida. Zeus, então, retirou do corpo da jovem o filho imaturo, o infante Dioniso. O pai divino abrigou na própria coxa o deus prematuramente nascido, costurando-o dentro dela e quando chegou o momento adequado do segundo nascimento do filho, o deu à luz no monte Nisa. Após o nascimento, Zeus confiou o infante Dioniso a Hermes para que o levasse às amas divinas (ninfas) que tomariam conta da criança em uma caverna. 100 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Segundo Kitto, esse milagre deveria ter sido suficiente para calar os sofismas de Cadmo acerca do envolvimento amoroso de sua filha com Zeus, além de instilar alguns questionamentos, sobre a natureza divina de Dioniso, no espírito dogmático de Penteu. O segundo milagre refere-se à videira que o deus fez crescer em torno do túmulo de sua mãe. Dioniso – Chegado sou a esta terra tebana, eu, Dioniso, filho de Zeus, dado à luz pela cria de Cadmo, Sémele, partejada pelo fogo do relâmpago. (...) Vejo o túmulo de minha mãe, fulminada pelo raio, beirando o palácio e as ruínas de sua casa, esfumaçando ainda pela chama sempre viva do fogo de Zeus: vingança de Here (...). Louvores a Cadmo que o lugar erigiu em inviolável recinto: eu o velei sob racimadas frondes da vinha¹⁰. [sic]. (v. 1-11). De acordo com Kitto¹¹, os versos seguintes a essa passagem (v. 12-20) reivindicam a universalidade da nova religião que chega à Grécia. Dioniso relata as regiões da Ásia que percorreu e por onde difundiu os mistérios báquicos e narra, também, que, a caminho da Grécia, chegou primeiramente 101 primeiramente a Tebas, terra de seu avô Cadmo, para que se tornasse divindade manifesta e cultuada entre os mortais gregos. Segundo Dodds¹², os cultos dionisíacos não eram originários da Hélade, e Eurípides os representa, n’As Bacantes, como uma religião universal realizada por adoradores estrangeiros que chegavam a uma nova terra e introduziam o culto a Dioniso. De acordo com Eurípides, os ritos dionisíacos são originários das montanhas da Lídia e da Frígia, tal como é relatado em sua tragédia: Dioniso: (...) Tendo deixado os campos preciosos da Lídia e da Frígia, e percorrido os altiplanos da Pérsia, dardejados pelo sol, as cidades muradas da Báctria e as paragens sinistras dos Medas, a Arábia toda feliz, toda a Ásia que orla o mar salgado com os altos muros de suas cidades repletas de Gregos misturados com Bárbaros, venho a esta terra grega, mas só depois de fazer que todos aqueles povos dançassem e de haver fundado os mistérios meus, para que divindade manifesta me torne entre os mortais.[sic]. (v. 12-20). _________________________________________________________________________________________________________________________________________ ¹⁰ EURÍPEDES. As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011, p. 19-139. ¹¹ KITTO, H. D. F. op. cit., 1990, p. 327. ¹² DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XX. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Ainda de acordo com Dodds¹³, uma descoberta moderna revela que o nome Bákkhos é o equivalente lídio de Dioniso. Segundo Souza¹⁴, nos versos 13-54 é esboçada uma situação contraditória. Por mais que Dioniso queira difundir a fama de sua natureza divina e ser considerado como tal, propagando por toda a terra os seus mistérios, ou seja, os rituais que o revelam como deus, são suas tias, as irmãs de Sêmele, as primeiras que na Grécia o rejeitam, pois não acreditam que as histórias do amor de Zeus por Sêmele e a consequente vingança de Hera sejam verdadeiras. Ágave, Autônoe e Ino creem que a história é apenas “astuciosa mentira de Cadmo” (v. 27), inventada para encobrir uma vergonhosa mácula: Sêmele teria se apaixonado por qualquer mortal e imputado a culpa das núpcias a Zeus, sendo este o motivo pelo qual o deus a fulminou com seu raio. Dioniso: (...) as irmãs de minha mãe – as que menos o deviam ter feito – diziam que Dioniso não nascera de Zeus, e que Sémele, seduzida por qualquer mortal, ao grande deus imputava a mácula em seu leito (astuciosa mentira de 102 Cadmo!), e que de haver propagado as falaciosas núpcias a fulminara Zeus (...). Ainda que não o queira, sabedora será esta cidade de a quanto importa ignorar os mistérios báquicos, e eu, tendo que defender minha mãe, hei de mostrar-me aos homens como a divindade nela gerada por Zeus. [sic]. (v. 23-28 e v. 34-38). Neste prólogo, portanto, encontra-se o escopo da peça tematizado, sendo apresentada a razão pela qual Tebas deverá ser subjugada para aceitar e cultuar Dioniso como um deus. Para tanto, Dioniso tornou Ágave e suas irmãs insanas, e incutiu a loucura em todas as mulheres tebanas. (...) Dioniso dispõe de forças irresistíveis e avassaladoras; apresenta-se, ele próprio, como o mais enérgico dissolvente dos poderes negativos da vontade, e, contra o que querem, todas as mulheres de Tebas agora são Bákkai (Bacantes), uma vez que se revestiram das insígnias de Bákkos (Dioniso). Restam agora os homens e, à frente deles, Penteu, o tirano que ousava travar, contra os deuses, o “combate iníquo” (theomakhei)¹⁵. [sic]. _________________________________________________________________________________________________________________________________________ ¹³ Ibidem, p. XX ¹⁴ SOUZA, E. Comentário. In: As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011, p. 77. ¹⁵ Ibidem, p. 77. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 103 Penteu, filho de Ágave e primo de Dioniso, é o ímpio para quem o velho Cadmo confiou o governo de Tebas. O jovem rei é aquele que combate Dioniso “com o combate iníquo” (v. 42), pois desrespeita e duvida da divindade do deus, declarando guerra contra Dioniso e suas bacantes. Por tal motivo sacrílego, Penteu se torna o particular adversário de Dioniso que deverá ser obrigado a reconhecê-lo como deus. distante e a memória disso só sobreviveu na forma mítica, pois a nova religião tinha sido enraizada e aceita como parte da vida grega. De acordo com Seaford¹⁷, o nome de Dioniso decifrado em uma tábua escrita no Linear B de Pilos indica que os elementos históricos dos mitos de resistência ao deus são de origens muito remotas e se referem a práticas rituais milenares (a escrita micênica Linear B corresponde ao século XIV a.C.¹⁸). Kraemer¹⁹ afirma que a adoração de Dioniso na Grécia, Dioniso: Penteu, a quem Cadmo confiou o cetro régio – que por volta do século VII a.C., foi inicialmente associada aos de filha sua nascera –, em mim combate o combate iníquo: festivais rurais que ocorriam no início da primavera. As de suas libações me aparta, em suas preces me olvida. Mas representações do deus nos mitos e na arte o retratavam de hei de mostrar-lhe que deus eu sou, a ele e a todo o povo de três formas: como uma criança, como um jovem andrógino Tebas! (...) E se Tebas em fúria, de armas nas mãos intenta com belos cachos e pele alva e, também, como um homem das montanhas arrancar as Bacantes, na batalha lançarei as Mênades. (...). [sic].(v. 39-43 e v. 45-47). maduro com barba. Dioniso era frequentemente relacionado com representações fálicas, incluindo uma procissão chamada II. A natureza de Dioniso e a manifestação mítico-ritual phallophória, na qual os adoradores desfilavam pelas ruas carregando imagens em forma de falos. Os festivais Segundo Dodds¹⁶, As Bacantes é uma peça sobre um dionisíacos compartilhavam de uma licença temporária para evento histórico: a introdução na Grécia de uma nova religião. a embriaguez e para a expressão sexual – características dos Quando Eurípides a escreveu, o evento estava em um passado festivais rurais. Dioniso também era considerado uma das _________________________________________________________________________________________________________________________________________ MAIS ¹⁶ DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XI ¹⁷ SEAFORD, R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Trad. de Richard Seaford. Warminster: Aris & Phillips Ltd, 2001, p. 44. ¹⁸ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 50. ¹⁹ KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 57. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 divindades responsáveis pela fertilidade dos homens, dos campos e rebanhos de animais. Essas Dionísias rurais não eram restritas a um só sexo, mas envolviam a participação de toda a comunidade na invocação da proteção do deus, ocasião na qual pediam bênçãos e agradeciam a abundância nas colheitas. 104 Porém, ainda de acordo com Kraemer²⁰, a adoração dionisíaca era também associada a outros ritos de natureza, aparentemente, mais restrita se comparados com os grandes festivais rurais. A tragédia de Eurípedes, encenada pela primeira vez no século V a.C., fornece uma rica descrição desses ritos praticados, em sua maioria, por mulheres. A tragédia As Bacantes, cujo título significa “mulheres adoradoras do deus Bákkhos”, dramatiza o mito que narra a introdução do culto de Dioniso em Tebas, cidade no norte da Grécia. De acordo com Burkert²¹, Dioniso pode ser considerado como o deus do vinho e do êxtase embriagante: a embriaguez provocada pelo vinho era considerada a intervenção de algo divino. Porém, pode-se acrescentar, segundo Dodds²², que, para os gregos da idade Clássica, Dioniso não era unicamente o deus do vinho. Ao citar Plutarco, o autor revela: (...) seu domínio é o todo – não só o fogo líquido na uva, mas a seiva que se lança em uma árvore jovem, o sangue pulsando nas veias de um animal jovem, todas as misteriosas e incontroláveis marés que fluem e refluem na vida da natureza²³. _________________________________________________________________________________________________________________________________________ ²⁰ Ibidem.1979, p. 57-58. ²¹ BURKERT, W. op. cit., 1993, p. 318. ²² DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XI-XII. ²³ Ibidem. 1986, p. XII. Minha tradução (inglês-português). ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Em outras palavras, Dioniso era a abundância da vida. De acordo com Burkert²⁴, a experiência dionisíaca excedia largamente o aspecto alcoólico e podia ser independente dele. A manía, palavra grega que nomeia o estado de devaneio, designava a “loucura, o entusiasmo, o frenesi inspirado”²⁵ pela experiência dionisíaca nos ritos. Esse êxtase dionisíaco não era algo alcançado por um único indivíduo, mas sim um fenômeno de massas que se propagava de modo contagioso. Em termos mitológicos, isto significa que o deus está constantemente rodeado do enxame e frenesim dos seus adoradores e adoradoras. Quem se entrega a este deus arrisca-se a perder a sua identidade social e a “ser louco”. Isto é ao mesmo tempo divino e terapêutico²⁶. [sic]. 105 tirso envolto com hera – as insígnias de Dioniso). Com as mentes insanas e entregues a devaneios, elas vagueavam pelos montes do Citeron e dançavam em íntima consonância com a natureza: essas mulheres dominadas pelo poder do deus haviam perdido a sua identidade social. Pode-se notar, assim, que a tragédia de Eurípides retrata o ritual de adoração a Dioniso, ao narrar detalhadamente o êxtase dos órgia²⁷ dionisíacos: Dioniso: Primeira cidade na Hélade, foi Tebas que soltei ululante! As mulheres revesti de pele de corço e em suas mãos depus o tirso, dardo de hera envolto. Já que as irmãs de minha mãe – as que menos deviam ter feito – diziam que Dioniso não nascera de Zeus (...) por isso mesmo para fora de portas as toquei com o aguilhão da insânia. Agora, de mente alheadas, vagueiam pelos montes. Impus-lhes os paramentos das minhas orgias, e toda a feminina estirpe de Tebas, todas as mulheres que na cidade havia (...) lá estão com as filhas de Cadmo, no meio das fragas, sob os verdes pinhos. [sic] (v. 21-35). Essa passagem de Burkert relaciona-se com alguns trechos do prólogo d’As Bacantes (v. 28-34), nos quais Dioniso narra o seu poder para incutir a loucura e o frenesi (manía) nas mulheres tebanas convertidas em bacantes (portavam o corpo vestido com pele de corço, seguravam o tirso envolto com hera – as insígnias de Dioniso). Com a _________________________________________________________________________________________________________________________________________ mentes insanas e ²⁴ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 318. ²⁵ LIDDELL & SCOTT. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1079. Minha tradução (inglês-português). ²⁶ BURKERT, W. op. cit., 1993, p. 318. ²⁷ Práticas de iniciação, cultos secretos. LIDDEL & SCOTT. op. cit., 1996, p. 1246. Minha tradução (inglês-português). ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Segundo Burkert²⁸, o sinal exterior e o instrumento da metamorfose provocada pelo deus é a máscara que reflete a fusão entre Dioniso e o seu adorador. Nesse sentido, Bákkhos é o nome que se refere tanto ao deus quanto ao adorador. Sendo assim, pode-se afirmar que, na tragédia de Eurípides, as bacantes portadoras das insígnias de Dioniso estão possessas pelo deus e refletem a divindade e o poder de Dioniso, pois elas são a manifestação divina do próprio Bákkhos. De acordo com Kerényi²⁹, quando cultuavam a Dioniso, as mulheres adoradoras ficavam sozinhas. Nenhum homem podia estar presente enquanto elas representavam os papéis das deusas (ninfas que cuidaram do infante Dioniso) associadas ao deus. Quem as observasse de longe as veria nas formas discerníveis do frenesi, ou seja, da manía delirante imposta pelo deus. Por isso, as mulheres que rodeavam Dioniso eram chamadas de mainades³⁰ (termo que deriva do radical do verbo grego maínomai³¹) que significava “furiosas, frenéticas, mulheres loucas”³², ou de bakkhaí, o termo feminino de bákkhoi, que identificava tanto o deus quanto as suas adoradoras. 106 De acordo com Lesky³³, Dioniso era considerado o deus-máscara – a máscara transferia ao portador a força e as propriedades do deus e dos demônios por ela representados. Nesse sentido, o Dioniso d’As Bacantes reveste-se com a máscara humana, com a forma humana de seu adorador (que utiliza as insígnias dionisíacas), sem que por isso deixe de ser o deus, já que Bákkhos é o próprio Dioniso e, ao mesmo tempo, o próprio adorador. Dioniso: (...) Por isso, de mortal vesti o semblante e minha forma divina mudei em natureza humana. Mas, vinde vós, ó Tíaso meu, mulheres que deixastes o Tmolo, baluarte da Lídia, e desde as bárbaras nações a meu lado estais e por companheiras tenho. Vinde! Erguei os vossos tamborins oriundos da Frígia, por Reia-Madre e por mim achados. Que em redor da morada de Penteu ressoem e toda a cidade de Cadmo vos olhe! Por mim, nas quebradas do Citeron me ajuntarei às Bacantes, a dirigir os seus coros. [sic]. (v. 48-58). _________________________________________________________________________________________________________________________________________ ²⁸ BURKERT, W. op. cit., p. 318. ²⁹ KERÉNYI, K. Os deuses gregos. Trad. de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Editora Cultrix, 2000, p. 201. ³⁰ Mênades. Minha tradução (grego clássico-português). ³¹ No dicionário A Greek-English Lexicon, “mênades” corresponde ao verbo grego maínomai (LIDDELL & SCOTT. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1073). ³² Ibidem. 1996, p. 1073. Minha tradução (inglês-português). ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Versényi³⁴ faz uma análise sobre a representação de Dioniso como um deus-máscara e os significados dessa simbologia para a natureza dionisíaca. Segundo o autor, enquanto os deuses tradicionais do panteão olímpico mantêm as distinções que os separam dos homens e insistem na distância entre o divino e o mortal, Dioniso é o único deus que faz o oposto. O deus delirante abole os obstáculos que o separam do humano, ele rompe com todas essas distâncias em seu culto. A união com o deus nos ritos extáticos, provocada pela “loucura”, é o presente de Dioniso para o homem, e é aquilo que o eleva acima do mundo humano. Isso significa que a natureza divina pode ser compartilhada pelo homem, e significa, também, que, ao transformar o homem, Dioniso transforma a sua própria imagem. Na realidade, a própria natureza dionisíaca define-se na transformação e na contradição; nas palavras do autor, Dioniso é: (...) o deus da vida, da geração, do poder criativo, e o deus da morte, da degeneração, da destruição; deus da bemaventurada transformação, alegria e terror extático, selvageria; curador, benfeitor, salvador, alegria dos mortais, 107 deus dos muitos deleites, e o desmembrador de homens, devorador de carne crua, assassino frenético. Homem-mulher (...), por Dioniso é a existência antes da separação dos opostos³⁵. Sendo assim, de acordo com Versényi³⁶, Dioniso é o deus da metamorfose. Ele transforma a si mesmo e aparece com “o aspecto que lhe aprouve” [sic] (Bacantes, v. 482). Esse entendimento da natureza dionisíaca é apropriado para a representação de Dioniso como um deus-máscara, uma vez que a máscara pode representar tudo aquilo que o deus transforma. A máscara não tem essência, ela pode ser colocada e descartada, pode ser completada com qualquer conteúdo. Além de representar a dualidade do deus, a máscara tem a função de dissolver uma identidade, uma personalidade: Nas mãos de Dioniso todo homem se transforma em mera máscara (...), possuído, inspirado e completado por nada além do deus. O êxtase revela o próprio indivíduo como uma máscara, um veículo sem essência para a divindade. Nesse sentido, vemos o possuído rasgando, freneticamente, os laços que o ligam com essa (...) mascarada existência (mortal)³⁷. _________________________________________________________________________________________________________________________________________ ³⁴ VERSÉNYI, L. Dionysus and Tragedy. In: The Review of Metaphysics, 1962, vol. 16, n.1, p. 85-86. ³⁵ Ibidem. 1962, p. 86. Minha tradução (inglês-português). ³⁶ Ibidem.1962, p. 86-87. ³⁷ VERSÉNYI, L. Dionysus and Tragedy. In: The Review of Metaphysics, 1962, vol. 16, n.1, p. 85-87. Minha tradução (inglês-português). ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Como deus do vinho, Dioniso é o “deleite dos mortais” e “dador de muita alegria”, como relatado na Ilíada³⁸. O deus desfaz todas as preocupações, traz o sono e o esquecimento da miséria cotidiana. Porém, de acordo com Lesky³⁹, é necessário salientar que para Dioniso não bastam orações e sacrifícios; a relação do homem com ele não se limita a dar e receber: o deus deseja o homem por inteiro, e, quando contrariado ou menosprezado, torna-se terrível, como na vingança narrada no prólogo d’As Bacantes. Todavia, quando é devidamente cultuado, Dioniso arrasta o homem para o êxtase do seu culto e o eleva acima de todas as misérias humanas. ______________________________________________________________ ³⁸ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de ______________________________________________________________ Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, _____________ 1993, p. 322. ³⁹ LESKY, A. A Tragédia Grega. Trad. de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 74. 108 Considerações Finais O estudo proposto teve como objetivo analisar o prólogo da tragédia As Bacantes. Na análise, foi salientada a função do prólogo na peça: situar a ação da tragédia em consonância com o contexto da tradição mitológica. Dessa forma, o prólogo tem o papel de apresentar ao público o mito dionisíaco e resumir os acontecimentos que ocasionaram as ações vingativas de Dioniso na tragédia. Após a exposição, por parte do deus, do sacrilégio que a família real de Tebas cometera contra ele, aludindo ao seu mito de nascimento, as razões de sua cruel vingança estão justificadas. Depois disso, Dioniso pode colocar seu projeto de vingança em prática: primeiro enlouquece todas as mulheres tebanas, inclusive suas insolentes tias: Ágave, Autônoe e Ino. A próxima etapa da vingança concentra-se na queda de seu principal inimigo: o jovem rei Penteu. Portanto, pode-se concluir que o prólogo d’As Bacantes é uma seção constituída por expressivos elementos dionisíacos que aludem às práticas rituais do culto a Dioniso praticado na Hélade. A tragédia As Bacantes é uma peça que tematiza a introdução na Grécia de uma nova religião, e o prólogo apresenta ao seu público ou, no caso contemporâneo, ao leitor, uma forma mais restrita do rito dionisíaco, aquele associado aos cultos de mistérios que eram praticados, em sua ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 maioria, por mulheres denominadas “bacantes”. Outro elemento dionisíaco importante presente no prólogo é a máscara dionisíaca que reflete a fusão entre Dioniso e o seu adorador. É mascarado como um mortal que Dioniso se apresenta ao público no prólogo, sendo que este fato não faz com que o deus perca a sua natureza divina, uma vez que, em sua religião, Dioniso transfere sua divindade ao adorador por meio da máscara ou pela possessão báquica. Dessa forma, o artigo procurou elucidar e analisar os elementos da religião dionisíaca presentes no prólogo, investigando tais práticas mítico-rituais. Na análise, ficou clara a influência da religião dionisíaca na composição do prólogo d’As Bacantes e a importância de se conhecer, ainda que brevemente, os significados relacionados com essa religião praticada na Antiguidade Grega. Tal conhecimento pode auxiliar na leitura e compreensão do prólogo d’As Bacantes. Considerar o contexto no qual a tragédia estava inserida, no momento de sua concepção, contribui para a compreensão do texto literário e também possibilita ao leitor o contato com o conhecimento proveniente de uma diferente cultura. 109 Pedro Couto Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Unicamp. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 111 Noite Quente Padilha abriu o documento em branco. "Noite quente do inferno, já é madrugada e nem sombra de sono". Desde que chegou em casa, aquele mormaço, aquela coisa de deixar suado e fazer vestir-se só pra entrar em contato com algo que sirva de absorvente. Ficou por tempos estirado na cama, depois no chão. Aí se levantou para andar. "Noite quente da porra, não dá nem pra ficar aqui fora." Sentou e ficou recostado na parede chapiscada até sentir coceira. "Não tem solução aqui nesse lugar, vou dar um tapa." Custou mesmo a achar o cigarro. "Orra, onde é que tá esse demônio? Nem dois parágrafos e três xingamentos, quem me ler é certeza de chamar de pseudo-bukowski, de acha-que-palavrão-vai-te-fazer-beatnik.". Achou! "Noite com sol! Vou fumar até me pegar dormindo com o cigarro na boca". E recostou-se na parede chapiscada; sentiu coceiras e não se levantou. Lá, chupando o cigarro, quieto, no escuro, como um pontinho vermelho que parecia câncer, pastou. Pensou em ereção. Negócio magnífico esse de ereção. "Eu não penso em nada e a coisa já fica rija. Não, não estou de pau duro, mas às vezes acontece". Continuou a pensar sobre ereções, sobre a biologia desinteressante da coisa. A verdade é que estava quente e o diabo não conseguia dormir, nem Padilha. Levantou, foi andar na varanda. "De noite nessa varanda é uma coisa de louco, quem tem cachorro sabe como é se sentir um vietnamita plantando arroz num campo huhuhhu minado. Da minha varanda quem ler que imagine como é, quem narra é que não vai ficar perdendo tempo com descrição, assim como todo o resto". Foi lá Padilha caminhar na varanda como qualquer coisa imaginada, onde só se sabe que há um cachorro e um monte de cocô no escuro. Ontem acordou com dor de cabeça. Faltou ao trabalho e ficou na sua casa chupando cigarro. "Vou tacar esses cigarros na privada". Não jogou. Ficou lá pensando como seria louca a experiência de ver todo o mundo implodindo. "Deitei e fiquei assim, esperando minha empregada entrar tanto dentro de si que no final parecesse uma bola de gude. Se todo mundo ficasse assim, que caralho de festa a vida seria". Refletiu um sobre ser boca suja, estirado no sofá. "Dor de cabeça da porra, só me faz pensar em merda". Hoje, ainda estava a andar na varanda e a se recostar na parede. "Juro que vou mandar arrancar esse inferno da parede! Puta coceira que dá". Levantou e foi fumar mais um cigarro enquanto pensava em frases soltas. "Pirão rima com leitão. Perdiz rima com imperatriz". E a coisa toda se dava em um calor insuportável. "Quarenta graus às três da manhã, mas não é possível uma brincadeira dessas. Tivesse um ventilador, nem isso. Estranhe o leitor, né? Tenho empregada, mas não presto nem pra arranjar um ventilador de teto". A empregada não era exclusivamente da casa, era uma diarista. "Já pensei em trepar com ela, mas tem filho, e ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 esse negócio de sair com gente que já tem filho me dá medo". O Padilha chupava um cigarro pensando agora no quanto amava trabalhar. "Carimbo papel, rodo na cadeira e tenho ar condicionado. Grande merda. Sou feliz?" Não era. Não era nem ao menos no trabalho, girando na cadeira feito uma criança, nem em casa nessa noite quente. Noite quente demais pra dormir, pra não pensar em palavra de baixo calão, pra organizar a cabeça e pra se sentir feliz. "Calor filho da puta". Já pensou em rezar, mas no meio voltou a pensar em ereção. Vinha na sua cabeça a imagem de um pinto muito, muito, muito grande; e um mar de fogo atrás e o diabo acordado. "Mas nem pensar em mulher eu consigo nesse calor, meu Deus? Pra que isso? Pra quê? Pra quê?" E foi fumar mais. E viu com desconsolo que, se a coisa seguisse assim, o maço não ia dar conta. "E quem me lê deve estar pensando também que 1) não sei narrar, ou o narrador não sabe 2) cigarro é tão démodé, coisa de quem quer parecer legal, parecer "cool", intelectual das menininhas. Vícios são vícios, até os da prosa. O narrador coloca o que ele quiser na prosa, mesmo coisas da moda, se quiser reclamar, liga pra ele". Não sabia mais no que pensava. Decidiu deitar-se pra ver se agora o bonde do sono andava. Deixou o corpo cair no colchão e veio a piada: "Não olha pro lado, Gaetaninho, quem tá passando é o bonde". Riu sozinho. "Bosta de calor". Queria uma medição de temperatura, porque aquilo era insuportável. 112 insuportável. "Ô Diabo, te vendo a alma da minha empregada". O Diabo não respondeu. "Tonto é quem pensa que só se delira no Saara". Estava vendo a miragem de um copo cheio de cerveja. Cerveja o deixava sonolento. Bateu para a cozinha procurar. Cantarolou: nessa merda de geladeira não tem cerveja, não tem cerveja, não tem cerveja. Voltou pra varanda só pra pisar no cocô. Deu menos importância do que o mundo todo esperava que fosse dar, e partiu pra mamar outro cigarro. Fumou a coisa toda e foi lavar o pé. A água estava quente. "Mas não pode ser verdade! Mil vezes inferno nesse caralho!" E lotou a área de serviço com palavrão. De pés lavados, pôs-se a pensar na casa. Iria para algum lugar mais perto da cidade. Lá, "longe" de tudo, nos bairros de subúrbio, não tinha o que fazer. Quarta noite sem dormir, outras por outros motivos, e em um lugar no centro estaria se acabando nos botecos, nas baladas, onde fosse. "Na balada faz calor, não faz? Mas dane-se, faz calor até em casa". E pensava já no absurdo de que tanto faz um calor com um monte de bêbado pulando como um calor com um são, sozinho, fumando até ficar roxo. Sentou na parede chapiscada e ficou a pensar no seu bom humor, repetindo: "eu sou o engraçadão da turminha, sou o fanfarrão do trabalho, sou..." E lá passou por um tempo inenarrável. Que horas eram? “Que horas são” “Nem a droga do narrador sabe” ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 sabe! Mas agora também tanto faz". O cigarro não acabava, e Padilha já se sentia enjoado. Com dor de cabeça e enjoado. Foi deitar-se e no caminho pro colchão espantou pensamentos sobre ereções. "Minha cuca tá que tá impossível hoje!" Começou a achar que era por causa dos palavrões invocando símbolos fálicos a todo momento. E de fato era. "A gente repete muito alguma coisa e fica pensando em coisa parecida depois". Mas sentiu-se aliviado porque durante o dia só pensava em desgraças. "Desgraça de vida, desgraça de cachorro, desgraça de vizinha gostosa da rua da frente". Padilha fazia o tipo galã. Fazia errado. "E no fim das contas vai me sobrar a empregada mesmo". "Tem muita porra errada na vida. Começando por ela própria". Resmungava perambulando pela cozinha. "Quem ligar pro narrador que avise que ela, a vida, tá mesmo estragada desde o começo". Levantou e foi puxar outro cigarro, espantando-se que tinha bastante ainda. Fumou dentro do quarto mesmo, não esperava mais nada. Queria ele entrar dentro de si e virar uma bola de gude. E as horas congeladas. "A única coisa que essa porra de calor não derreteu ainda". Começou a pensar no seu cérebro derretendo como um sorvete de morango e escorrendo pelas suas orelhas. Começou a ver turvo, os olhos foram tornandose pesados, uma leseira bateu na cabeça. Era sono que começara a sentir. "Mentira! Com esse calor de bosta é mesmo 113 mesmo meu cérebro derretendo". Não dormiu. Fumou mais outros cigarros, dois ao mesmo tempo. Desconsolo. Imaginou que, se estivesse vivo amanhã, xingaria a mãe do chefe, e iria começar a encher a cara ao meio dia. Quis vender sua alma. O Diabo não respondeu. Nem sei mais que horas são! Vou deixar estar, hora ou outra essa desgraça acaba, e eu desmaio. Aí sabe-se lá quando eu acordo. Grande merda essa de dormir. Fecho os olhos e só vejo a terra esturricando e a visão turvada de calor. Mas que noite quente! Esse sol que todo mundo chama de lua. Eu não compro, eu sei o que é uma mentira, uma palhaçada, eu tô ficando paranoico". E riu-se. Onde estava? Não sabia se era o quarto ou se era a varanda. Era a varanda, porque sentiu coceira. Ruminava a bunda da empregada. A essa hora ela não representava tanto perigo assim, e o moleque podia até cuidar. Batia no rosto e pensava na porra que estava dizendo pra si mesmo. "Cuidar de cria dos outros? Só amarrado! Prefiro ficar acordado pra sempre". Pegou no maço e sentiu que tinham mais cigarros, viu graça. Era uma piada na sua concepção, era o Diabo que não conseguia dormir. Quem visse Padilha aceitar aquela loucura não acreditaria. Encostou-se e não sentiu mais coceira. Com a boca seca e tossindo, pegou mais um cigarro. Passou a brincar com os fósforos e ver como aquele palito parecia-se com um pênis duro ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 duro. "Ah, mas que porra é essa? Será que eu curto a coisa e não sei?" Estava aceitando as coisas que o cérebro derretido lhe impunha. Fechou os olhos. Abriu num estalo. Quanto tempo passou? "Nada, evidentemente. Ainda está escuro e ainda tenho cigarros". E perguntava-se pra que tanto calor. Falou com Deus. Deus dormia. Uma vez leu num livro que Deus existia e era um canalha. Nunca acreditou tanto. Pegou-se pensando em um daqueles pênis eretos atravessando o coração de Deus feito uma flecha. E tudo atrás ardendo em chamas. "Feito essa noite do capeta". E nada do Capeta. "Porqueira de vida! Como é que pode tanto tempo nesse calor?" Estava no escuro e não ia acender as luzes; na sua cabeça, o aquecimento das lâmpadas só iria agravar o calor. Não enxergava o relógio, por consequência. Dilema. "Acendo a luz pra ver as horas enquanto ardo em chamas ou fico como estou e espero essa porra toda clarear?" Aí sentiu um medo irracional: ia amanhecer e com a manhã ia a vir a porra do inferno daquele sol maldito e o Diabo ia começar a trabalhar. "É bom que o dia não foi feito pra dormir". Depois pensou que a luz do dia quem sabe o aliviasse, apesar do calor maior. "Bobagem! Nunca mais vou ver o dia". Levantou-se e foi pro interruptor. Quis ligar as luzes, enxergar além do fracasso da noite, as coisas na varanda e os 114 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 cocôs de cachorro. Hesitou e viu no escuro as luzes se acendendo e um incêndio em tudo. O mundo está acabando, só pode ser! E o maço, o maço... Quantos cigarros vêm num maço? Essa bosta não acaba". Deu pra contar cigarros no escuro. Perdeu a conta quatro vezes, mas imaginou bastantes, dezenas, milhares. Nunca mais gastaria na droga do cigarro, nem negaria pros transeuntes na rua. "Engraçado, fumar nesse calor me dá vontade de me acabar numa poça da água". Parou um minuto. Lembrou das coisas sobre ereções que tinha pensado. "Porra! Não senti vontade de mijar ainda. Será?" Deu pra andar. Não queria pensar na ideia do xixi. Sentiu nojo de si mesmo. E a impressão era da noite esquentar mais. "Banheiro. Banheiro. Banheiro". Bateu pro banheiro e se fechou lá. Sentiu tudo fresco e pensou no chuveiro como o grande herói da noite. "Desgraça de água quente. Chuveiro de suor do diabo". Fedia. Cheirou suas axilas e pensou em crianças. Quando era menor, diziam que era bastante fedido, nunca se importou. "Cruzes. O jeito é esse chuveiro". Hesitou por não se sabe quanto. Quanto valia a higiene? Muito? Deu pra querer tomar banho mesmo e abriu o chuveiro. A coisa foi caindo e ele olhando horrorizado. "Essa água parece tão fresquinha". Estava reticente, foi se aproximando e alguma coisa nele queria entrar de uma vez. Entrou. "Porra! Porra! Porra! Sai, sai, sai, sai". Pulou pra fora aos escorregões. Arrependeu-se até os ossos. Sentia a água fervendo nas carnes. "Puta que pariu me socorre". Quem socorreu? O 115 Arrependeu-se até os ossos. Sentia a água fervendo nas carnes. "Puta que pariu me socorre". Quem socorreu? O diabo estava acordado. "Exatamente o que pensei: banho de suor! Da porra do suor!" Ao sair do banheiro, fez careta e parou. Já se sentia sujo. Um porco. Porco. Já o chamaram disso antes. Porco. Que era um porco? Era tudo muito engraçado. Pensou por minutos na palavra "porco". Mais uma palavra pra pensar. Porco. Saiu do banheiro. "Puta que pariu que cheiro de desolação”. Foi para a sala sentar-se. Pegou no maço para fumar outro cigarro, mas distraiu-se com a escuridão. Via as partes superiores das paredes de fronte para a janela se clareando e teve a súbita convicção de que amanhecia. Saiu feito um raio pra fora e deparou-se com o breu. "É a pupila dilatada dando pião em mim. Ou esse narrador bunda-mole. Ou eu estou voltando a ficar paranoico, ou é tudo coisa desse desgranhento. Pode ser que. Não. Aliás, e se. Sim, só tem dois acordados aqui. Eu e o Diabo. O Diabo é o narrador. Diabo de narrador!" Entrou na sala da mesma forma que saiu. Pegou os cigarros, mas não fumou. "Ahá! Quem vai me fazer fumar agora? Quem? Quem?". Deixou o maço na camisa e pôs-se a ruminar sobre narradores, providência e Deus. Lembrou-se da canalhice Dele. Esbravejou palavrões e ficou quedado na cozinha, pois tinha caminhado até lá. “E se Deus for o narrador ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 narrador, e não o Diabo, como pensei?". Sentiu sede. O pobre do Padilha sentia sede. Já havia fuçado na geladeira em busca de cerveja e sua memória o rememorara que não havia água. Desolou-se. "Beber xixi". Ecoou na cabeça dele tal período. "Não. Xixi não!" E voltou ao banheiro como que resmungando. "Nada de beber xixi, Padilha! Nada. Água da torneira, tem água da torneira". Com as ideias embaralhadas, imaginou-se urinando nas mãos. Chegou ao banheiro com o aspecto de quem subiu uma ladeira infinita. Lá, abriu a torneira. "E sem surpresa nenhuma o Padilhão aqui descobre que a bosta da água da torneira está quente”. Mas xixi não beberia. Estava resoluto, os delírios que cessassem. "De quantos delírios é feita uma noite dessa? Quente de te fazer filosofar, rapaz!". Uma cadeira, um vaso sanitário e um Padilha numa noite quente. Diabo. Levantou-se. De frente ao vazo, examinou-o com pausados suspiros. Pensou em cigarros. Tirou do bolso da camisa e acendeu. Enquanto tragava a fumaça dentro do banheiro, pensou em suicidar-se fumando com tudo fechado até sobrar monóxido de carbono e um cadáver contente. "Morrer com o cu cheio de nicotina... Quem vai dar falta? O filho da empregada que nunca criei, mas que poderia criar?". Achou melhor que ninguém sentisse falta. Não teve coragem de fechar a porta e sentou-se na cadeira. Voltou a examinar o vaso. Sentia-se demente. "Aguinha sujinha, paradinha, fresquinha". Levantou e bruscamente deu descarga. Apreciou o barulho. "Barulho 116 "Aguinha sujinha, paradinha, fresquinha". Levantou e bruscamente deu descarga. Apreciou o barulho. "Barulho rima com entulho. Sede rima com água". Voltou a sentar. Sentia-se tremelicando. De olhos fechados, via uma fonte com mil jorros de água, amarelos. Bateu no rosto e foi dar outra descarga. "Duas descargas, para garantir, para garantir". Ficou um tempo em pé pensando um pouco em nada, um pouco em morrer. Minutos depois lá estava o Padilha de quatro em cima do vaso. "Se alguém me pega de quatro agora... Que mal há? Estou sozinho. Hoje só presto contas a Deus; nem a ele. Estou sozinho. Já me vi fazendo coisa pior, que mal há? Nem Deus. Poderia estar fodendo gente casada, poderia estar casado (hirc), mas estou sozinho. Não há mal, não". E botou os dedos na água do vaso. "Tá fresca essa porra, não é possível". Suspendeu o ato. Imóvel, de quatro, achou tudo aquilo muito suspeito. E se fosse pegadinha? "É uma pegadinha!". Olhou de novo para o vaso. Quarenta e poucos anos de vida na malandragem pra numa noite quente se prestar a isso. Padilha indignava-se. Decidiu esperar para comprar água. Já ia se levantando quando, ao tirar o maço do bolso, deu-se a tragédia. Ploc foi o barulho. E lá, dentro do vaso, flutuavam vários cigarrinhos, todos molhados, todos inúteis. "Quero muito chorar!". E o homem de ontem foi a criança do agora. Não chorou. Fez beiço, fez birra e cara feia. “E morrer já não da ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 dá mais. Nossa senhora, eu mereço realmente isso?". E foi sendo acometido por um crescente sentimento de "não tenho bosta nenhuma a perder." Deu uma terceira descarga. E o mesmo Padilha estava, momentos depois, protagonizando a a cena memorável. Abraçado ao vaso, mergulhou a cabeça e começou a beber a água feito um cachorro. Estava realmente fresca. E ele arfava. Que o Diabo lembre-se pra sempre do dia em que o Padilha bebeu água da privada. Há mais! Ficou lá por dez ou quinze minutos se esbaldando! Bebeu até se afogar e se afastar do vaso numa crise de tosse. Não cria . Mais um momento e lá estava enfiando os braços no vaso. Dando descarga com a cabeça dentro e outras mil peripécias. Ao fim, sentou-se na cadeira, encharcado do peito para cima. Sentiu um alívio, como se a noite inteira fosse gradualmente refrescando-se. E ao fechar os olhos, viu a verdade. O cosmos, e a sua passagem de menino pra homem. Sentiu-se revigorado. Caminhou para a sala. A noite continuava quente. Sentou-se no sofá e começou a sentir-se pequeno. Como se tivesse bebido, se esbaldado em toda a humilhação do mundo. E todo aquele sentido que havia encontrado esvaiuse. "Não há ninguém. Que mal há?". Sentiu-se apertado. "Não devo nada a ninguém". De olhos fechados via suas pernas entrando dentro do seu umbigo, lenta e dolorosamente. E o diabo, a empregada, o pênis em ereção, todos rindo. Gargalhando. Jurou ver um pênis rolando no chão, feito moleque. E o som da risada. E aquele sentir humilhar-se que inundou tudo. 117 moleque. E o som da risada. E aquele sentir humilhar-se que inundou tudo. A vontade de viver foi-se esvaindo, esvaindo. "Ah...". E nem palavrão queria mais dizer. Padilha sentiu vergonha, mas tanta vergonha, que desistiu de lutar. Cochilou, recostado no sofá, derrotado. E o que restou da noite quente foi aquilo de mais humilhante que fica na peleja com si mesmo. Aquele sentimento de impotência contra coisas tão banais e tão gigantes ao mesmo tempo. Matheus Romanetto Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 119 Tempus fugit: o Mecânico e o Orgânico no Manifesto Futurista A publicação do opúsculo “Le Futurisme”, de F. T. Marinetti, no jornal parisiense Le Figaro, em 20 de fevereiro de 1909, é tradicionalmente considerada importante por no mínimo dois motivos. Do ponto de vista da historiografia da arte moderna, trata-se do momento fundador de um dos movimentos de maior proeminência do começo do século XX. Do ponto de vista dos estudos literários, o texto amplifica um dos embates (ou acordos) que percorriam as vanguardas de então – aquele entre política e estética –, valendo-se de um gênero que suas edições posteriores fariam questão de assinalar no título: o manifesto. O impacto da obra chegou a tal ponto que, já na época de sua primeira aparição, essa opção ajudou a redefinir o destino da arte europeia que estava por vir: resumo Por meio da análise das teses, narrativas e jogos metafóricos contidos no “Manifesto Futurista”, busca-se delimitar a relação que se estabelece entre as figuras da máquina, do homem e da natureza, tomadas como sujeitos com funções e atributos diferentes, dentro da poética do texto. Construídas a partir da oposição entre três qualidades diferenciais – vida, energia, poder –, elas reúnem traços fundamentais do pensamento estético e político de Marinetti, tornando-se subsequentemente disponíveis para elaborações e desconstruções, na continuidade do movimento futurista. desse gênero, que se consolidou gradualmente como um distintivo do movimento. O desenvolvimento do futurismo integrou sua elaboração massiva de manifestos a um sistema de performances, em que as obras eram espalhadas na forma de panfletos ou declamadas publicamente. Nesse contexto, Movimentos subsequentes, como o vorticismo, dadaísmo, surrealismo, ou os situacionistas, produziram diferentes os dois olhares que transformam “Le Futurisme” em um combinações de manifestos e obras de arte, mas todos eles marco da mentalidade artística moderna são, na verdade, partilham com o futurismo o que deveria ser considerada a sua polos de uma cisão mais ampla na produção teórica que se herança: a centralidade do manifesto (tradução nossa).1 defronta com essa estruturação da prática futurista, e de De fato, não só o futurismo é lançado ao público por modo geral com a de todos os grupos do mesmo período. As meio de um manifesto, como boa parte da produção de seus abordagens historiográficas tomam o texto como documento principais artistas – Marinetti, Carrà, Boccioni, dentre outros nu dos projetos motrizes do movimento; garantem a – consiste em uma sucessão de textos trabalhados dentro validade da análise enfatizando seu caráter diretivo, “na deess ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________ medid ¹ PUCHNER, Martin. Poetry of the revolution: Marx, manifestoes and the avant-garde. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 93. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Medida em que, na práxis escrituária vanguardista, manifesto e programa se articulam, na maioria dos casos, indissoluvelmente”2. As abordagens literárias, preocupadas não só com o conteúdo exposto, mas também com a forma em que ele é expresso, e a maneira como ela participa da constituição histórica do gênero em questão, definem como leitura mais apropriada aquela que trata o texto como objeto em si, e não meramente como antecipação da produção de outras obras, na medida em que, segundo uma metalinguagem particular, a forma textual reproduz aquilo que se proclama ou defende: O manifesto constitui-se em obra de vanguarda por excelência na medida em que articula uma proposta estética crítica (a antiarte) e, ao mesmo tempo, é sua práxis (gesto polêmico e contestatário)3. Tamanha é a proeminência dessa estratégia no futurismo que o formato do gênero é assimilado por alguns autores como equivalente da própria proposta do movimento: “a forma do manifesto se torna o próprio conteúdo do futurismo”4; “o gênero central futurista transforma a arte, então, em uma mistura de arte e manifesto, que poderia ser chamada arte-manifesto” (traduções nossas)5. Assim, qualquer análise que se debruce sobre 120 sobre o “Manifesto Futurista” (título que substituirá doravante o original) insere-se em um contexto maior de significação, em que as obras individuais se entrelaçam em um todo cuja coerência não pode ser garantida a princípio, mas que estabelece relações de continuidade e descontinuidade sensíveis entre elas. Abrem-se inúmeras questões sobre as operações textuais que garantem a constituição do grupo, a teatralidade futurista, seu imaginário e suas relações com a política europeia do início do século passado. O que aqui se propõe é avaliar o texto de Marinetti de um ponto intermediário entre as concepções historiográfica e literária da teoria, tratando-o como de natureza artística e tendo em mente a maneira complexa como se integra, tanto aos outros escritos do autor, quanto à própria formação do gênero que ajudou a consolidar como momento essencial da modernidade artística, mas sem desprezar o modo como é possível enxergar, no caráter programático com que se apresenta, um caminho específico para essa própria integração. Trata-se, em outras palavras, de avaliar o conteúdo que ali se apresenta, não como pura norma de toda a produção futurista, mas como arcabouço de imagens, temas e teses que se acumulam, disponibilizando-se na continuidade ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 2 GELADO, Viviane. Poéticas da transgressão. São Paulo: EdUFSCar, 2006. p. 38. 3 Ibidem, p. 39. 4 PUCHNER, op. cit., p. 75. 5 Ibidem, p. 93 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 121 sobrecarga simbólica sensível, que deve ser compreendida continuidade do movimento como fonte de caso desejemos atingir uma leitura clara dos traços acima desenvolvimentos possíveis, que podem reafirmar, adaptar apontados. ou negar suas versões originais. Quando da publicação do manifesto no Le Figaro, a Esse processo se justifica pela presença, carreira de Marinetti encontrava-se em um período de particularmente na obra de Marinetti, de constantes transição, tanto política quanto esteticamente. De particular reutilizações e reelaborações de ideias que já haviam surgido relevância é que sua produção poética concentrava-se ainda em momentos anteriores, com a liberdade típica daquilo que sobre os mesmos paradigmas simbolistas que o futurismo Marjorie Perloff aponta como “a ênfase no artista como 6 viria a negar mais tarde, com as propostas da parole in improvisatore” (tradução nossa) . Assim, a título de exemplo, libertà e outros recursos textuais. “[Marinetti] estava uma das teses do manifesto de 1909 – “Nós queremos escrevendo, ainda em 1909, versões decadentes de lírica glorificar a guerra – única higiene do mundo”7 – torna-se Baudelairiana” (tradução nossa)9. A densidade título de um texto publicado posteriormente, “Guerra, a única surpreendente de imagens que se sobrepõem e encadeiam higiene do mundo”8. em “Le Futurisme” pode ser, portanto, remetida aos Como objeto de estudo particular, propõe-se mecanismos propostos pelos próprios simbolistas e ao seu esclarecer a relação que o “Manifesto Futurista” estabelece louvor da obscuridade e da sugestão. Não se deve daí entre tecnologia, homem e natureza. Ao longo do texto, depreender, entretanto, que a escrita de Marinetti possa ser surgem imagens e metáforas envolvendo a máquina, nunca reduzida a uma atualização de velhas metas estéticas. Pelo como ser isolado, mas como corpo que interage com os contrário: aqui, o jogo imagético é reapropriado objetivando mundos animal e humano, em última instância com o uma redação que produza impacto forte: para que um texto desenvolvimento da história como fruto de determinadas se torne um manifesto, “é necessário violência e precisão” disposições de força. Essa interação se dá em meio a uma (trad lmfrfr ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ PERLOFF, Marjorie. The futurist moment: avant-garde, avant guerre, and the new language of rupture. Chicago: The University Of Chicago Press, 2003. p. 81. Filippo Tommaso. O manifesto futurista. In: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas metalinguísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 92. 8 Ver PERLOFF, op. cit. 9 PERLOFF, op. cit., p. 67. 6 7 MARINETTI, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 (tradução nossa)10, diz o autor a Henri Maasen, em uma carta enviada ainda naquele ano. As metáforas, metonímias e jogos que preenchem o manifesto operam sempre ao lado de outra figura de linguagem, qual seja, a hipérbole. É o constante exagero do que se diz ou descreve que dá ao texto sua potência primária, sua velocidade. É nesse quadro, aliás, que surge uma de suas qualidades mais interessantes: um elemento plástico muito presente nas descrições. O vermelho e o negro, em particular, saltam à vista se nos permitirmos alguma sinestesia. Há o “ferro vermelho da alegria”11, “caldeiras infernais”, “negros fantasmas que se mexem no ventre vermelho”12, o Sol que surge de posse de uma “espada vermelha”13 em oposição à noite que se passava em vigília. Surge gradualmente por trás dessa coloração forte a ideia de fervor, calor, de fogo. Aqui é Hjartarson quem dá uma primeira direção à análise, ao sugerir que “Marinetti se apropria de teorias ocultistas contemporâneas, integrando seus elementos mágicos e proféticos ao projeto futurista e à sua concepção estética de eleme 122 externalização da vontade” (tradução nossa).14 Os quatro elementos naturais, figuras presentes no ideário ocultista, surgem no “Manifesto Futurista” como significantes bem delimitados por um código de oposições mútuas. As menções ao fogo são inúmeras, passando, além dos exemplos que já demos, pelas imagens de “frutos apimentados”15, “violência (...) incendiária”16, pela denominação dos futuristas como “incendiários de dedos carbonizados”, e até pela concreta aparição de um “fogo nas prateleiras das bibliotecas”17. De modo geral, esse elemento está associado à impetuosidade criativa. A água, em oposição, determina eventos destrutivos: são as “corredeiras e redemoinhos de um dilúvio”, que levam os lugarejos festivos “até o mar”; é o velho canal”18 que abaterá as bibliotecas; é a morte que “escorre olhares veludosos do fundo das poças”19; a sensibilidade que se verte na “urna funerária”20; o tubarãoautomóvel cuja destruição os pescadores assistem perplexos. À terra, liga-se um gênero mais passivo de dano, quando não uma conservação mumificante. Quando os futuristas ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 10 HJARTARSON, Benedikt. Myths of rupture. In: Modernism: volume 1. Philadelphia: John Benjamin’s Publishing Company, 2007. p. 182. 11 MARINETTI, op. cit., p. 91. 12 Ibidem, p. 89. 13Ibidem, p. 90. 14HJARTARSON, op. cit., p. 187. 15 MARINETTI, op. cit., p. 90. 16 Ibidem, p. 92. 17 Ibidem, p. 93. 18 Ibidem, p. 89. 19 Ibidem, p. 90. 20 Ibidem, p. 93. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 futuristas sofrem seu acidente, a “lama” é “fortificante” 21; nas enchentes, é o Pó, conteúdo que a água carrega, aquilo que destrói; dão-se aos opositores do movimento picaretas e martelos para que escavem “os fundamentos das cidades veneráveis”22. O ar é, enfim, símbolo de um estado de transição, que compreenderemos mais adiante. Marinetti quer ver os Anjos primeiros voarem, cantar o “voo deslizante dos aeroplanos”23, e mesmo estar ao lado de seu aeroplano quando seus herdeiros matarem-no, sucedendo o “voo brilhante de suas imagens”24. É às “estrelas inimigas”25, para o “céu violeta”26, para o alto, enfim, que se lança seu movimento e desafio. Que atribuamos à aparição do céu e das estrelas a presença do elemento aéreo, justifica-se por uma outra característica desse conjunto semântico: os elementos definem, além de princípios ativos, uma topologia própria, que liga determinados tipos de ocorrência dos fenômenos naturais a posições diferentes no espaço. Assim, a chama é fenômeno interior, e a água destrói exteriormente; o ar situase acima, a terra situa-se abaixo. ___________________________________________________________________________________ 21 Ibidem, p. 91. 22 Ibidem, p. 93. 23 Ibidem, p. 92. 24 Ibidem, p. 93. 25Ibidem, p. 89. 26 Ibidem, p. 90. 123 Ao longo de nossa análise, surgirão os usos dessa estrutura. Esboçamo-la adiante, num diagrama composto de dois eixos: um vertical, que se poderia chamar transitivo, e outro horizontal, que se poderia chamar criativo. O círculo denota a interioridade do corpo que engendra a criação, seja ele o do futurista ou o da máquina. Os pontos extremos do espaço cartesiano assim obtido corresponderão a momentos futuros da interpretação: as combinações entre conservação e destruição (terra + água), transitividade e destruição (ar + água), entendidas como representantes de maneiras diferentes de arruinar, antecipam já o que diremos do maquinismo, posteriormente. Figura 1: Estruturação dos quatro elementos ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Para começar a sondar o sentido do “Manifesto Futurista”, é preciso situar esse imaginário natural em relação a outros recursos de que Marinetti se vale ao longo da obra. A oposição (grosso modo) entre elementos criativos e destrutivos, encontra um primeiro eco interessante na relação que o autor estabelece entre biologia e tecnologia. Aqui, a natureza e os frutos da sociedade não se dividem. Pelo contrário, confundem-se forçosamente: “a ênfase na matéria e sua interpenetração com o sujeito humano equivale à fusão dos mundos orgânico e inorgânico” (tradução nossa)27. As máquinas despontam, tanto como agentes, quanto como objetos de fascínio. Mas ao mesmo tempo em que ajudam os homens a dominar o mundo anímico (“nós íamos esmagando sobre o umbral das casas os cães de guarda”28), elas guardam aspectos animais: acariciam-se seus peitos, e é afinal em um “tubarão atolado”29 que culmina o acidente de Marinetti. São as locomotivas como “enormes cavalos de aço”30 e os automóveis com “grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo”31 que ele quer cantar. A natureza (que compreende os quatro elementos e o reino animal) é signo de energia e descontrole, especialmente quando assimilada (sob a forma da metáfora ou da analogia) pela tecnologia e pelos homens. 124 Estes, nos momentos em que se confundem com o maquinário, fazem-no por outro caminho, compondo-se em uma associação concreta, que não confunde suas individualidades (o futurista sobre o veículo, por exemplo). Daí a ambiguidade de uma poética que, como veremos, procura promover “um assalto violento contra as forças desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante dos homens”32, mas que em última instância subjuga os próprios humanos. A relação entre os três componentes que aparecem nas citações acima pode ser compreendida a partir de um conjunto mais amplo de oposições permutáveis, em que os termos em questão associam-se em duplas opostas ao elemento restante, a partir de um traço discriminante, producente de hierarquia. Quando máquina e animal se assimilam, ganham controle sobre o fator humano. Quando máquina e homem se compõem, ganham controle sobre o fator natural. Mas homem e animal nunca se unem em um combate contra a máquina. Neste caso, a assimilação permite que os futuristas cacem como “novos leões”33 a própria Morte, porém nada mais. ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 27 WELGE, op. cit., p. 550. 28 MARINETTI, op. cit., p. 90. 29 Ibidem, p. 91. 30 Ibidem, p. 92. 31 Ibidem, p. 91. 32 Ibidem, p. 91. 33 Ibidem, p. 90. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Essa súbita emergência de uma figura antes estranha, que impede que completemos um círculo de rivalidades perfeito com a tríade já conhecida, é sintoma de uma fratura mais profunda. Hewitt já a delineia ao reconhecer, como oposição primordial na obra de Marinetti, a própria luta entre o natural (como força de discórdia, particularmente na figura do corpo biológico) e o humano (como polo de concordância, particularmente na figura do Estado). A máquina aparece como síntese desses dois potenciais: É nos trabalhos iniciais que a máquina representa todas as energias que tornam o capitalismo tão curiosamente autotransgressor e produtivo. Ela é o símbolo dos antagonismos produtivos que confrontam Homem e Natureza e alimentam a produtividade histórica, por meio de sua regeneração dos recursos naturais e energias, e dos objetos materiais que produz (tradução nossa).34 125 a máxima de Lefebvre segundo a qual “[a] história desdobrase em ‘natureza’ e ‘humano’. O homem desdobra-se em ‘natureza’ e ‘história’”36. Por um lado, a continuação da história se dá com a união da energia animal com as qualidades políticas (dominadoras) humanas na forma da máquina; por outro, o homem é ser vivo que se contrapõe aos frutos mecânicos de sua história. De fato, tudo que é louvado no homem é, no “Manifesto Futurista”, remetido àquilo que acentua a vida. Ele é proclamado perante os “homens vivos da terra”37 pelos “jovens, fortes e vivos futuristas”38, em oposição àqueles que “não se lembra[m] mesmo de ter vivido”39. Aqui, o tema da força biológica cruza-se com o da juventude, do novo. Em nosso tratamento, optamos por pensar sua construção investigando os motivos que o transformam em um traço pertinente da identidade do grupo artístico. O “Manifesto Futurista” pode ser encarado como um grito de independência, um esforço de afirmação contrário aos velhos. O plano pronominal é particularmente revelador quanto a isso. Durante a primeira metade do texto, há uma divisão entre “eu e meus amigos”40, e Marinetti lidera seus companheiros. A partir do momento em que a declaração do Eis o “nascimento do Centauro”35: compósito de homem e animal, a máquina executa essa mediação, no caminho do texto, justamente com a predicação da tecnologia, ora como potência semelhante à do mundo animal, ora como extensão do movimento humano. Aqui, vale a______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ máxima de Lefebvre hhuhu HEWITT, op. cit., p. 147. MARINETTI, op. cit., p. 89. 36 LEFEBVRE, Henri. Introdução à modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 158. 37 MARINETTI, op. cit., p. 91. 38 Ibidem, p. 93. 34 35 39 Ibidem, p. 94. 40 Ibidem, p. 89. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 manifesto se anuncia explicitamente, porém, o texto se cinde entre um “nós” – os futuristas – e um “você”, cisão que introduz uma rica ambiguidade. Sempre que o “você” é evocado, não se lhe dá a voz (“Suas objeções? Basta!”41), ou fala-se por ele (“Você quer portanto apodrecer?”42). O diálogo nunca é permitido, e inclusive o grupo ou indivíduo representado por esse pronome é excluído do público alvo do texto. Os futuristas surgem já como autoridade – “ditamos nossas primeiras vontades”43 –, mas falam exclusivamente para os “homens vivos”44, não para o interlocutor a quem negam participação. Mas se “você” não é alguém “vivo”, quem é ele? Poderíamos pensá-lo como o próprio leitor, caso em que o texto estabeleceria uma relação belicosa com ele desde o início. Há, entretanto, mais a ser dito. O elemento bélico está certamente presente, mas sua aparição no plano da interlocução resolve-se no da nacionalidade e temporalidade. Embora seja possível ver aí uma apologia do conflito entre nações, prefigurando a retórica que faz do movimento “ao mesmo tempo expansivo e centrado nacionalmente” (tradução nossa)45, a briga principal do futurismo é da Itália contra ela mesma, contra seu passado, mais especificamente. Historicamente, podemos identificar esse conflito como uma 126 característica da nação recém-unificada, ambiciosa de fortalecer-se e criar uma face que lhe seja própria. Assim, Marinetti lança-se em uma discussão contra o acúmulo das coisas velhas em seu país. Os alvos diretos da polêmica pertencem à materialidade estética: põem-se em questão os museus, os quadros, as esculturas, tomados como instituições ou objetos cuja função principal é conservar. Não obstante, o tema nacional revela-se subjacente a várias das imagens que já mencionamos, completando a polissemia do texto. Falar em canais ou em urnas funerárias é, sem sombra de dúvidas, falar da herança romana da Itália. O futurismo quer uma nação desembaraçada de si mesma, de tudo que é idoso (na classificação de Marinetti, as coisas com mais de 40 anos de idade, e lembrando que a unificação completou 39 anos em 1909). Nesse sentido, pedir que “desviem o curso dos canais para inundar as sepulturas dos museus” é pedir que mudem o curso da história, da velharia romana, por assim dizer. Alguns outros fatores são evocados, ainda que em vínculo indireto com a nação ou em oposição a ela, simbolizando o mundo que se quer abandonar. O primeiro deles é o Oriente, que aparece associado ao marasmo e à morte nas figuras da mesquita e sua preguiça nativa, e das huhu ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 41 Ibidem, p. 94. 42 Ibidem, p. 92. 43Ibidem, p. 91. 44Ibidem, p. 91. 45WELGE, op. cit., p. 550. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 127 argolas bizantinas que envolvem os cadáveres. O segundo é a a lógica e a matemática. Enquanto é noite e a vigília prossegue, os futuristas discutem nas “fronteiras extremas da lógica”46, mas com o raiar do dia e sua saída alucinada, as lâmpadas lhes ensinam a menosprezar seus “olhos matemáticos”. No limite, é a atenção prestada aos “raciocínios persuasivos”47, representados pela bela imagem dos ciclistas contra o automóvel, que provoca o acidente. Na verdade, o uso desse termo não pode passar de uma meiaverdade: Marinetti não bate o veículo por descontrole, mas porque fica entediado com as discussões dos dois, e prefere sair logo delas. Um terceiro fator é a religião, tema forte pela presença do Vaticano em solo italiano, e que surge nas imagens dos sonhos crucificados nos museus, na morte salpicada de cruzes, na prece extenuada do canal. Pode-se concluir dessa série que Marinetti rejeita o interesse pelo conhecimento de suas máquinas ou pela espiritualidade. Propõe uma filosofia da ação, do movimento de certo modo desprovido de cálculo, como fica claro na ordem de que ele e os amigos “saiamos da Sabedoria”, rumando à “embriaguez dos cães raivosos”48. Essa teoria da pura ação antecipa um dos canais que tornará posteriormente possível a aliança entre futuristas e huhu fascistas. Puchner49 assinala que a ênfase que os partidos comunistas punham no conhecimento teórico recebia à direita uma contrapartida que figurava como estímulo à prática imediata, potente, desimpedida das barreiras do pensamento. O sujeito futurista é aquele que se entrega à potência criativa até seus limites, que maximiza sua ação com doses cada vez maiores de energia. Seu vínculo com a questão da máquina é o que nos acompanhará até o final da análise. A menção à “velha Itália” retoma a questão vitalista/biológica num terceiro viés. Os museus são cemitérios, diz-se, e os profissionais que lidam com o passado, como professores e arqueólogos, são a “gangrena”50 da nação. Aí revela-se um traço fundamental do texto. A gangrena é a falência por falta de circulação, por falta de movimento. Na menção a esse detalhe, o manifesto encontra sua constituição basilar: este é um texto sobre morte, e nele não se opõem vida e necrose, mas tipos diferentes de morte, como resultados de vidas distintas. Pensemos na sequência temporal da obra. Marinetti abre no presente, falando do que fazia até passar por sua experiência de quase-morte, que lhe serve de inspiração para declarar aquilo que quer e fará no futuro. O discurso vai, entãh ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 46 MARINETTI, op. cit., p. 89. 47 Ibidem, p. 90. 48 Ibidem, p. 90. 49 PUCHNER, op. cit., p. 82. 50 MARINETTI, op. cit., p. 92. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 então, ao pretérito, falando como a Itália era; volta ao presente, com a reprovação da contemplação artística atual, e salta para um futuro ainda mais distante, em que o grupo futurista é extinto. Uma vez mais, enfim, retorna-se ao presente para lançar o desafio às estrelas. Nessa sequência, repete-se duas vezes uma estrutura que parte de um relato pretérito, passando pelo momento atual e ultrapassando-o. Mas o futuro aparece, ora como mero projeto, ora como fim definitivo. O texto não narra o desenvolvimento desse projeto, que fica, por assim dizer, a ser contado pelos próprios atos dos artistas. Mas afinal por que isso tudo? Por que lançar um mito escatológico sem uma gênese? É que “a Mitologia e o Ideal místico estão ultrapassados”. Marinetti quer “abalar as portas da vida”51. Viver, no futurismo, não significa experimentar o mundo tal qual um plano ótimo, mas esgotar essa própria vida, dar-se “de comer ao Desconhecido”52. Ora, o desconhecido não é a própria morte? Mas temos aqui duas mortes diferentes. Marinetti pretende evitar a morte letárgica, ou seja, a degenerescência pela imobilidade, pela retenção, pela atenção ao passado, ou, mais simplesmente, a morte natural: terra + água, destruição por definhamento. O que os futuristas 128 futuristas desejam é a morte por esgotamento, a exaustão de quem fez muito e se esvaiu: ar + água, destruição pelo movimento. Se cantam o prazer, o trabalho e a revolta53, é somente na medida em que eles consomem suas multidões. Apenas assim se compreende a apologia da violência e da velocidade. Ambas constituem movimentos centrífugos, que retiram o homem de si mesmo. De certo modo, retiram-no do próprio mundo. Se para Perloff “o manifesto é situacional por operar no tempo e espaço reais” (tradução nossa)54, a ambição do documento é justamente abolir essas categorias, levando a experiência ao absoluto55, onde o ser se esvai; e o meio para essa superação é a velocidade, que se equivale à beleza56, assim como a arte se equivale à Injustiça57, no compasso exato de sua desmedida. Nota-se que o próprio manifesto perde sua função com a concretização do ideal futurista – morre, por assim dizer –, na medida em que, se sua capacidade performativa é o processo de extinção de tudo aquilo que se situa de maneira estanque em relação a um referencial temporal ou espacial, o cumprimento de sua meta nada mais é que a inscrição do caráter “manifestário” huhuhu ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 51 Ibidem, p. 89. 52 Ibidem, p. 90. 53 Ibidem, p. 92. 54 PERLOFF, op. cit., p. 90. 55 MARINETTI, op. cit., p. 92. 56 Ibidem, p. 91. 57 Ibidem, p. 94. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 na história, que passa a ser eterno movimento e aniquilação, e elimina a necessidade de um objeto textual que execute essa tarefa: [O Futurismo] celebra a emoção não pelo aqui e agora, mas pelo momento de seu desaparecimento. […] Nada deve ser transformado em ontologia, nem mesmo a temporalidade que nega toda ontologia, […] E o Futurismo não odeia nada mais do que a nostalgia (tradução nossa).58 A oposição dinâmica entre homem, natureza e máquina retorna, portanto, embasada em um ponto de vista anterior ao que apresentamos, e que o engloba. Lembremos: a tecnologia, quando assimilava características animais, contrapunha-se ao homem na medida em que amplificava a energia violenta daquilo que não é humano; quando associada a caracteres humanos, contrapunha-se ao animal na medida em que potencializava o impulso dominador do homem. Ora, o esquema faltante, que associaria homem e animal contra a máquina, pode ser finalmente entendido como o conflito que torna possível as situações anteriores: aquele que se dá entre vida e morte. A máquina surge como aquilo que, não sendo orgânico, e portanto, do ponto de vista da decomposição natural, “eterno 129 “eterno”, supera as limitações da biologia. Sua única fraqueza é a necessidade do toque humano para que possa ser gerada. Ambos os princípios podem ser ilustrados com a cena do acidente de carro: “A gente o acreditava morto, meu bom tubarão [o automóvel], mas eu o despertei com um só carinho no seu dorso todo-poderoso, e ei-lo ressuscitado, correndo a toda velocidade sobre suas barbatanas”59. O mecânico torna possível aquilo que Marinetti concebe como a abolição do tempo e do espaço. Tomados como os limites da própria vida, tempo e espaço são também limites da criatividade humana; daí o interesse do futurista em ultrapassá-los. A máquina se lhe afigura, portanto, como ideal máximo, pois é ser que chega ao topo da ambição do artista/político: cria incessantemente e exponencialmente. Mas como para os seres vivos não é possível, apesar de tudo, superar a mortalidade, resta-lhes apenas a alternativa de aproximar-se incessantemente da condição maquínica, sem nunca atingi-la inteiramente. Para o animal, essa não é realmente uma escolha. Ser irracional, limita-se a viver, na força de seus impulsos comuns, algo próximo da potência da tecnologia. Para o homem, há a possibilidade de fazer uso da máquina como amplificador de suas capacidades reais. É nesse sentido que a tecnologia aparece no “Manifesto Futurist _____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 58 HEWITT, op. cit., p.108-109. 59 MARINETTI, op. cit., p. 91. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 130 Futurista”, como canal que potencializa a ação. Mas essa seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e amplificação acarreta, inevitavelmente, uma decomposição máquina geram-se um ao outro em um circuito fechado que do corpo humano, pois o submete a cargas de energia que ele antecipa o desdobramento de uma genealogia linear” não foi concebido para suportar: “em sua economia, o corpo (tradução nossa)61 – no sentido de que a máquina, filha do torna-se um meio, um processo, e entra em um sistema de homem, altera sua condição, mas no limite o supera em sua troca energética que necessariamente destruirá sua entidade linhagem. 60 autônoma” (tradução nossa) . A caminhada rumo ao ideal De fato, do ponto de vista político (nacional), como futurista vem à custa do esvaimento do homem. Marinetti aponta Welge, “o futurismo vai em geral contra a julga isso sem dúvida preferível à alternativa de conservar a descentralização e dissolução do sujeito humano. (…) essas vida, mas torná-la medíocre. Assim chegamos à oposição tendências, em última análise, reforçam, e não debilitam, a entre letargia e esgotamento, e encontramos seu lugar na autonomia do sujeito” (tradução nossa)62, pois não se trata estrutura semântica do texto. A morte lenta é característica de mergulhar a subjetividade em uma homogeneidade do animal, que vive mais intensamente, mas degenera pelas ideológica, que a extingue como parte do todo. Mas, em todo mãos da própria natureza. O homem está a princípio âmbito produtivo, o desenvolvimento da criatividade só pode submetido ao mesmo processo, sem nem a possibilidade de ser concretizado como pura “dissolução” do sujeito. A morte viver os ímpetos enérgicos da irracionalidade animal – violenta é o mais próximo que o homem consegue chegar da quanto mais nos momentos em que se prende à lógica, sem imortalidade, propriedade exclusiva do ser mecânico. ultrapassar suas “fronteiras extremas”. É o caso do professor Procuramos sintetizar nossas conclusões na Figura 2. e do arqueólogo. O sujeito futurista, indo na contramão, é Os vértices do triângulo maior correspondem aos três polos aquele que deplora essa condição, e incrementa sua vivência de nossa discussão. Cada lado forma uma dupla constituída com o uso da tecnologia, dominando o mundo à sua volta pelos elementos em suas extremidades. As alturas partindo tanto mais criativamente quanto mais acelera a chegada de de cada vértice e extrapolando os lados opostos indicam a seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e oposição que se estabelece entre a dupla correspondente ______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ máquina 60 HEWITT, op. cit., p. 155. 61 SOMIGLI, Luca. Legitimizing the artist: manifesto writing and European modernism, 1885-1915. Toronto: Toronto University Press, 2003. p. 125. op. cit., p. 551. 62 WELGE, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 oposição que se estabelece entre a dupla correspondente (lado) e o terceiro elemento (vértice), do ponto de vista daquilo que é comum à dupla, e que está representado em itálico no fim das setas. Nos pares de opostos resultantes, o primeiro termo é sempre aquele equivalente à dupla, e o segundo o equivalente ao termo restante. O triângulo interno indica a morte como princípio de uma estruturação mais básica, que opõe os três termos em função da maneira como falecem (ou deixam de falecer), e que é indicada nos parênteses abaixo dos nomes de cada elemento. Figura 2: Diagrama estrutural do “Manifesto Futurista”. 131 Diz Hjartarson: “os manifestos dos movimentos avantgarde são performances retóricas complexas, visando à transformação do sujeito moderno” (tradução nossa)63. Compreende-se assim o espírito antimatemático dos futuristas, e também o porque de retratarem seu fim. É que a autodestruição (lembremos que a juventude futura admirará a atual) é a real concretização do projeto de Marinetti para a dupla subjetividade político-artística. Esse télos revela-se mesmo na definição das fronteiras de seu grupo. Não são todos que chegaram aos 30 anos, mas porque alguns já o fizeram, Marinetti diz que “nós já dissipamos os tesouros, os tesouros de força, de amor, de coragem e de áspera vontade (...) a perder o fôlego”64. Vem então à tona a curiosa geografia do fim do documento – aquilo que apontamos anteriormente como uma topologia demarcada segundo os quatro elementos naturais. Em seus últimos parágrafos, os futuristas situam-se no cume do mundo. Falam de cima para baixo, ordenam que seus ouvintes (os homens da “terra”) “levantem antes a cabeça”65. Falam com o coração nutrido de fogo, da potência criadora (portanto autodestruidora) do presente, e lançam seu desafio às estrelas, ao “céu (...) palpável e vivo”66, aos ares que anunciam a novidade mortífera. _____________________________________________________________ 63 HJARTARSON, op. cit., p. 178. 64 MARINETTI, op. cit., p. 94. 65 Ibidem, p. 94. 66 Ibidem, p. 90. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Quando já estiverem esgotados, os jovens de hoje terão seus últimos momentos ao lado de uma fogueira miserável – e o último som que ouvirão será o da chuva, que traz em sua monotonia o anúncio do fim. Eis, finalmente, a natureza “transitória” do ar: ele demarca justamente a passagem da criação máxima à destruição máxima; o momento da morte mesma, que, já em suas primeiras aparições, anunciava-se indiscriminada na “boca imensa e torta do vento”67. _____________________________________________________________ 67Ibidem, p. 90. 132 Daniel Serrano Professor de língua portuguesa. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 134 Empresa Lanifícios Tejo LDA. um prédio ardido não tem miolo nem carne interna nem polpa janelas serão orifícios de uma caixa não tem recheio um prédio ardido é pele apenas embalagem orifícios laterais na parede de uma praça uma piscina vazia poderá ser um prédio que ardeu buraquinhos enfim por onde a fábrica vazava será talvez o prédio que ardeu uma praça com parede sim uma praça uma caixa sem tampa uma praça que é uma caixa vazada, o prédio ardido diz-se dos buracos na fachada: janelas (não vazam as fábricas ardidas porque não são piscinas) vazava barulho de máquina vazava talvez cheiro de fábrica e vazava gente pela porta ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 gente que todo dia enchia e vazava entrava e saía e que não passa mais passa gente pela rua de trás que agora vê-se pelas janelas da frente e de trás mesmo do outro lado da rua mesmo da outra margem do rio (passa gente e passa mais passa vento que sacode a roupa nos varais e perto das roupas passa um carro pela rua de trás 135 vê-se enfim tudo que se passa pela janela de uma fábrica que não vaza mais) por entre os buracos de um prédio ardido um olho acha muito do que ali não se acha acha o que por trás se passa e acha – pensa que acha – o que ali se achava acha mesmo barulho de máquina cheiro de fábrica ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 e acha que houve e que estava uma fábrica queimada vaza uma vila vara uma vida vira uma vala 136 na cabeça de que quem via e vê nada (a rigor vê o que não via antes de arder) uma fábrica ardida passa a ter o que não tinha e perdeu Jessica Sallasa Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 138 A reelaboração dos jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita 1. O rótulo propagado aqueles que, apesar de nunca terem lido nada da autora britânica, se sentem instigados a conhecer esse novo romance pela promessa de uma trama supostamente mais bem elaborada. Assim, ao darem tal rotulação, o único objetivo não desejado pelas editoras seria proibir a leitura de Morte Súbita, pois o fato de ser um romance para adultos é mais um atrativo comercial do que uma advertência aos leitores. De acordo com a contracapa da editora Nova Fronteira, o romance atrairia o público adulto por narrar os acontecimentos de uma pequena cidade cercada de mistérios, intrigas, suspenses e revelações. Mas esse vilarejo, Pagford, seria, “num primeiro momento, apenas uma pequena cidade, como outra qualquer, a qual pode ser comparada ao nosso bairro, ou à cidade de cada um de nós”. A partir dessa descrição, podemos depreender que aquilo que a editora utiliza para caracterizar esse romance como adulto é o fato de Rowling distanciá-lo da descrição fantástica que permeia a saga Harry Potter e aproximá-lo do mundo do leitor. Seria o compromisso com a realidade e com os problemas do cotidiano que o afastariam do universo juvenil. Além disso, o vídeo comercial veiculado na internet pela editora2 destaca a ________________________________________________________________________________________________________________________________________ complexidade das personagens de Morte Súbita. Em tom de ¹Disponível em: www.littlebrown.co.uk/TheCasualVacancy.page. suspense, o locutor inicia: “Você acha que você se conhece. As pessoas acham que te conhecem. Todo mundo tem um segredo...”. O romance Morte Súbita, publicado recentemente no Brasil pela editora Nova Fronteira, é de autoria de J. K. Rowling, a mesma da famosa saga juvenil Harry Potter. Entretanto, a contracapa do livro já previne: esse é um romance para adultos. Essa preocupação da edição brasileira (e também da edição original da Little, em Brown and original da Little, Brown and Company) distanciar em distanciar da Rowling da reputação Company) de escritora juvenil Rowling pode ser juvenil pode compreendida como umareputação estratégiade de escritora divulgação para atrair ser compreendida diferentes públicos. A princípio, são atraídos como aqueles uma que divulgação atrair leram algum livro de J. K.estratégia Rowling de e que esperampara encontrar diferentes em Morte Súbita uma nova públicos. trama arquitetada por mecanismos já conhecidos. Nesse caso, inserem-se os jovens adultos que acompanharam Harry Potter na infância e que hoje buscam uma evolução da obra à altura do amadurecimento dos seus antigos leitores. A posteriori, estão aqueles que, ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Além disso, o vídeo comercial veiculado na internet pela editora2 destaca a complexidade das personagens de Morte Súbita. Em tom de suspense, o locutor inicia: “Você acha que você se conhece. As pessoas acham que te conhecem. Todo mundo tem um segredo...”. As personas desse romance surpreendem o leitor e a si próprias a todo instante, estabelecendo outra relação de verossimilhança capaz de igualar a nossa complexidade à das novas personagens de J. K. Rowling. Dessa forma, até que ponto as situações despidas de eufemismos, o relato das nódoas do cotidiano e a elaboração de personagens complexos existem e sustentam um relato experiente, de acordo com o que a editora compreende por essa definição, é o que pretendemos analisar. 139 Em Morte Súbita, embora não fique evidente, o enredo do romance também é regido pelas ações de personagens jovens. Porém, ao contrário dos livros anteriores, o que possibilita a esses o poder de alterar o mundo ao redor não é a prática da coragem e benevolência, mas da covardia e egoísmo diante de conflitos familiares. Com receio de crescerem e se tornarem iguais aos pais, eles agem impulsivamente e, muitas vezes, até se surpreendem com os resultados dos próprios atos. Além disso, são personagens complexos e em constante modificação, de maneira que dificultam ao leitor a plena compreensão da coerência de seus comportamentos. Stuart Hall, filho da orientadora educacional, Tessa, e do vice-diretor do colégio, Colin, procura ir de encontro aos padrões de comportamentos que impedem a prática de sua 2. Convicções antigas em estilo renovado autenticidade. Conscientemente determinado a ser fiel aos A saga Harry Potter ficou estereotipada por enaltecer seus instintos, o jovem busca, na verdade, fazer aquilo que os o altruísmo e a amizade, especialmente entre adolescentes. seus pais desaprovariam. Junto com o seu amigo Andrew Harry, Roni e Hermione, junto com o auxílio de outros alunos Price, ele fuma, usa drogas e é caracterizado como um garoto de Hogwarts, são os responsáveis, no final da saga, pelo problemático. retorno da paz no mundo dos bruxos, depois de afastarem Andrew, por sua vez, apesar de também não ter uma Voldemort, um bruxo maligno. boa relação familiar, procura, em direção contrária à do Em Morte Súbita, embora não fique evidente, o enredo amigo, não fazer nada que desagrade o seu desequilibrado do romance também é regido pelas ações de personagens ________________________________________________________________________________________________________________________________________ pai, Simon. O menino que tem em casa, pelas atitudes do 2 Disponível em: http://www.mortesubitaolivro.com.br. jovens. Porém, ao contrário dos livros anteriores, o que próprio pai, exemplos do que é agir irracionalmente, o possibilita a esses o poder de alterar o mundo ao redor não é repudia apenas ocultamente, sem a intrepidez de Stuart. a prática da coragem e benevolência, mas da covardia e Diferentemente de Colin, Simon não é adepto do diálogo, da egoísmo diante de conflitos familiares. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 amigo, não fazer nada que desagrade o seu desequilibrado pai, Simon. O menino que tem em casa, pelas atitudes do próprio pai, exemplos do que é agir irracionalmente, o repudia apenas ocultamente, sem a intrepidez de Stuart. Diferentemente de Colin, Simon não é adepto do diálogo, da paz familiar e das aparências. Já a terceira adolescente destacada nessa trama é Sukhvinder Jawanda, uma garota com Q.I. e beleza abaixo do padrão familiar, que sofre bullying na escola e em casa. Os pais, Parminder e Vikram, embora médicos, não notam que a filha faz cortes no pulso todas as noites com a lâmina de uma gilete. Ocultados pela aparência de jovens revoltosos, são esses personagens que enxergam e apresentam aos leitores de Morte Súbita os conflitos que os outros habitantes do pequeno vilarejo Pagford fingem não ver. Imersos em seus problemas particulares e mantendo uma boa imagem pública, muitos fecham os olhos para fatos que acontecem até dentro de casa. É apenas por esses adolescentes que descobrimos que a aparentemente pacata Pagford esconde segredos, perversidades, injustiças, traumas infantis e uma alta taxa de exclusão social. No enredo, entretanto, a importância dessas personagens não é evidente, sobretudo nos primeiros capítulos. Os adolescentes são pincelados aos poucos no meio da descrição dos segredos e angústias dos habitantes do vilarejo Pagford e do bairro periférico Fields, com os quais 140 meio da descrição dos segredos e angústias dos habitantes do vilarejo Pagford e do bairro periférico Fields, com os quais o narrador procura familiarizar quem lê. À vista disso, cada capítulo do romance transmite a sensação de ser uma cena regida pelo ponto de vista de uma personagem específica, sem a presença de interpelações narrativas e juízos de valor daquele que narra. Quem de fato parece controlar o universo ficcional e recebe destaque desde as primeiras páginas é Barry Fairbrother, um sujeito que passa o seu último dia escrevendo um artigo sobre a jovem marginalizada Krystal Weedom e que morre subitamente no estacionamento do clube de golfe com uma hemorragia cerebral. Apesar do seu falecimento no começo do romance, Barry é o eixo conector de todas as personagens e intrigas que ocorrerem em Pagford após a sua morte. É o sujeito que dá título ao romance Morte Súbita e ao original em inglês, The Casual Vacancy. Por ter sido em vida conselheiro na administração do Conselho Local, a sua súbita morte abre uma vaga que será acirradamente disputada por três candidatos da cidade: Miles, Colin e Simon. Mas além da desestabilidade na política local, a falta de Barry Fairbrother também influenciará na vida de jovens que pouco se interessam pelos assuntos formais do vilarejo, pois o antigo representante político tinha consciência social. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Howard Mollison, diretor do Conselho, promove a candidatura do seu filho Miles para ter apoio na sua proposta de fazer com que o bairro periférico Fields deixe de fazer parte das obrigações do vilarejo, junto com a clínica de reabilitação para dependentes químicos, de modo que Pagford volte a ser habitado apenas por famílias tradicionais. Em contrapartida, a Dra. Parminder Jawanda, antiga amigade Fairbrother e também membro do Conselho Distrital, conta com a candidatura de Colin Wall para a defesa do bairro e de seus moradores, em memória das lutas políticas do falecido amigo. Já o terceiro interessado na vaga, Simon Price, não é apadrinhado por nenhum membro do Conselho e não deseja influenciar nas questões políticas do vilarejo, pois seu interesse é puramente financeiro. Quando as campanhas eleitorais começam, mensagens caluniosas surgem no site do Conselho. Simon Price é acusado de comprar mercadorias roubadas e de interceptar notas na gráfica onde trabalha. Colin Wall, que guarda o segredo de ser portador de um transtorno obsessivo compulsivo, é acusado de sonhar fantasias e de tocar nas crianças da escola onde é vice-diretor. Até Parminder, que é conhecida na cidade pelo seu comportamento resguardado, é denunciada por nutrir uma paixão pelo falecido Fairbrother. Entretanto, o que no ambiente pré-eleições parece ser uma artimanha política para prejudicar os candidatos favoráveis à defesa de Fields e denegrir a conselheira que defende o bairro, é na verdade consequência de vinganças 141 favoráveis à defesa de Fields e denegrir a conselheira que defende o bairro, é na verdade consequência de vinganças particulares dos filhos dos envolvidos. Andrew procura abortar os planos de Simon como revide pelas tantas vezes que ele, o irmão mais novo e a mãe foram espancados. Sukhvinder também posta uma mensagem anônima em vingança às ofensas de sua mãe Parminder, enquanto Colin é exposto pelo filho adotivo, após descobrir que Stuart é usuário de drogas. Embora postadas por motivos e autores diversos, as mensagens são enviadas pelo perfil invadido de Barry Fairbrother, que foi alterado para “O Fantasma de Barry Fairbrother”. Neste e em outros momentos de Morte Súbita, as personagens sentem a presença do fantasma do falecido que, mesmo ausente, controla a trama. As suas boas ações são lembradas, a sua presença é sentida e temida, e o seu caráter auxiliador é exposto aos leitores pelas lembranças que vêm à tona no cotidiano dos habitantes do vilarejo. Nem mesmo nessa vingança juvenil o seu nome é preservado. Entre o receio e a saudade, Krystal Weedon parece ser quem mais lastima a morte de Barry Fairbrother. A menina de Fields, sobre quem Barry escrevia o artigo no seu último dia, tem medo da possibilidade de um fantasma que vigie e julgue suas atitudes, mas também sofre pela falta de Barry, a única pessoa a quem podia recorrer em momentos de urgência. Fairbrother, por também ter nascido em Fields e ter tido a ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 142 Fairbrother, por também ter nascido em Fields e ter da narrativa, a jovem Krystal passa a ter relevante papel no tido a oportunidade de estudar nos excelentes colégios do restante da trama. Em determinado capítulo, ao ser agredida vilarejo de Pagford, defendia, em vida, a continuidade desse por um dos homens que mantinha relações sexuais com privilégio para as crianças carentes que, assim como ele, Terri, a garota verbaliza a falta que a proteção de Barry lhe poderiam mudar o rumo do seu futuro tendo uma educação faz: “– Eu vou contar pro Sr. Fairbrother – se ouviu dizer, de qualidade. O artigo que escrevia para o jornal no dia em soluçando. Não sabia de onde tinha tirado aquilo. Era a coisa que morreu era sobre como estudar na mesma escola que os mais idiota que podia ter dito” 3. Sem ninguém que pudesse pagfordianos poderia transformar a vida de tantos jovens ajudá-la, ou no mínimo entendê-la, a única alternativa que carentes, como a de Krystal Weedon. encontra para proteger e sustentar Robbie é engravidar de A menina, criada pela mãe, Terri, e sem conhecer o pai, Stuart Wall. convive com o vício dessa e com as suas tentativas falhas de Nesse ponto, porém, a composição narrativa que vinha reabilitação de uma dependência química. Com o receio sendo composta anteriormente é reelaborada. A constante de a mãe perder a guarda do seu irmão de três complexidade das personagens que se revelava ao leitor anos, Robbie, Krystal ainda tem que conviver com a quando este acompanhava as suas reflexões contraditórias insalubridade do lar e com a entrada constante de homens deixa de ser trabalhada, pois os capítulos param de fornecer que vão ter relações sexuais com Terri. E, assim como os diferentes perspectivas dos fatos, de acordo com o indivíduo outros jovens de Pagford, Stuart, Andrew e Sukhvinder, em destaque, e o narrador passa a emitir indiretos juízos de Weedon também almeja um futuro diferente daquele de sua valor. As personagens não entram mais em conflito consigo mãe, porém deseja isso para que Robbie não seja mais uma mesmas realizando ações e tendo pensamentos que as vítima da mesma situação deplorável. surpreendem, pois o foco narrativo está dedicado Na dinâmica interna do enredo, que aumenta o unicamente ao desenvolvimento de Krystal, e não mais em destaque dado a determinadas personagens com o decorrer todos os conflitos de um pequeno vilarejo. da narrativa, a jovem Krystal passa a ter relevante papel no Além disso, abandona-se a descrição do contexto ________________________________________________________________________________________________________________________________________ restante da trama. Em determinado capítulo, ao ser agredida coletivo, do conflito político e dos problemas públicos de 3 ROWLING, J. K. Morte Súbita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p.329. por um dos homens que mantinha relações sexuais com Pagford que vinham sendo desenvolvidos em primeiro plano Terri, a garota verbaliza a falta que a proteção de Barry lhe narrativo, para fornecer uma solução dicotômica ao romance faz: “– Eu vou contar pro Sr. Fairbrother – se ouviu dizer, e às suas complexidades. Os moradores de Pagford, inclusive ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 143 Além disso, abandona-se a descrição do contexto futuro melhor pelo remo, esporte que praticava, ou por coletivo, do conflito político e dos problemas públicos de qualquer outra profissão, que se mostram como alternativas Pagford que vinham sendo desenvolvidos em primeiro plano para Krystal após a morte de Fairbrother. Apenas a presença narrativo, para fornecer uma solução dicotômica ao romance dele possibilitava algumas dessas escolhas. Mas sem a figura e às suas complexidades. Os moradores de Pagford, inclusive masculina protetora, a menina se degrada ao tentar mudar a os jovens de lá, que desde o início do romance são retratados sua realidade. A única saída que consegue enxergar para a como mesquinhos e até medíocres – já que a morte de Barry ascensão social é engravidar de um menino rico. representa apenas uma vaga aberta no Conselho Distrital –, Essa decisão é tomada ao chegar um dia em casa e são contrastados aos de Fields, na qual a maioria da encontrar o homem que a estuprou deitado no seu colchão população, apesar de ser descrita como lasciva, é sem camisa e Robbie, de apenas três anos, nu. Decide caracterizada como ingênua e benévola. Com isso, Morte engravidar de Stuart naquela manhã. Deixa Robbie no banco Súbita, que até então estabelecia um vínculo com a temática da praça e vai com o adolescente para o matagal. O social, ao descrever o corte de benefícios sociais imposto a garotinho sujo e mal-encarado ficou algum tempo sozinho na pequenos vilarejos, como Pagford, e a complexidade interna praça e foi visto por muitos habitantes de Pagford, mas das personagens, com segredos revelados, dúvidas e caráter ninguém se preocupou com ele. Talvez “se a criança fosse dúbio, passa a descrever uma sociedade simplista. mais limpinha”, as pessoas não teriam confundido “aqueles A representante máxima da classe oprimida e sinais evidentes de negligência com a desenvoltura, a dureza moralmente boa do romance é Krystal Weedom. O narrador e a capacidade de se virar sozinho”4. Algum tempo depois, dá ênfase à sua história de menina submissa em virtude de porém, cansado de ficar esperando, Robbie vai procurar sua situação econômica e pelo fato de ser mulher. Não é a Krystal e cai em um riacho. Sukhvinder, que passava perto, inserção social a partir da escola e nem a esperança em um tentou socorrê-lo, mas trouxe à superfície apenas o corpo futuro melhor pelo remo, esporte que praticava, ou por ainda quente do pequeno defunto. Desesperada com a morte qualquer outra profissão, que se mostram como alternativas do irmão por conta do seu descuido, Krystal injeta heroína na ________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4 ROWLING, para Krystal a morte de Fairbrother. Apenas a presença op.após cit., p.491. própria veia: sabia que não ia resistir, e era esse o seu desejo, dele possibilitava algumas dessas escolhas. Mas sem a figura só pensava que “tentando salvá-lo, ela o tinha matado” 5. masculina protetora, a menina se degrada ao tentar mudar a ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 144 ainda quente do pequeno defunto. Desesperada com a morte da trama altera também a forma como tal relato vinha sendo do irmão por conta do seu descuido, Krystal injeta heroína na elaborado. Em determinada parte do romance, o narrador foca própria veia: sabia que não ia resistir, e era esse o seu desejo, em Krystal e esquece-se da disputa política e da temática dos 5 só pensava que “tentando salvá-lo, ela o tinha matado” . segredos que todos guardam. Para fortalecer a crítica social Depois desse clímax, Stuart abandona a sua obsessão sobre as injustiças que uma menina sem possibilidades como pela autenticidade e até acaba se aproximando do pai. ela enfrenta, opta-se por simplificar o relato e personagens Começa a sentir, como Colin, medo das suas atitudes. criando um ambiente dicotômico e dramático que contrasta ao Sukhvinder vira a heroína do vilarejo e dos Jawandas. E até relato verossímil do início do romance. Andrew acaba se aproximando de Simon por outros motivos. Entretanto, ainda com essa mudança de perspectiva, é Apenas a jovem Krystal teve a sua imagem denegrida e importante afirmar que a personagem adolescente continua morreu sem conseguir se reconciliar com a mãe. sendo quem guia o movimento narrativo e com quem o Dessa forma, o novo romance adulto de J. K. Rowling narrador fica mais próximo e empenhado em acompanhar, possui, de fato, situações com nódoas, relatos descritivos e desde que guardadas as devidas proporções, já que os jovens ausência de eufemismos, como a descrição do estupro que complexos e contraditórios de Morte Súbita enfrentam conflitos Krystal sofreu e dos sofrimentos e angústias que a falta de e problemas mais próximos à realidade, pois, conforme afirmou perspectiva causa nos moradores de Fields. A elaboração das Alcir Pécora6, esse romance de Rowling recusa a “mágica” de personagens é também mais complexa do que daquelas da Harry Potter e preocupa-se em relatar a dureza das situações, saga Harry Potter, pois, como foi exposto, é complicado atitude que só enriquece a obra. Além disso, os jovens do determinar os sentimentos que os guiam e por vezes os romance, ao contrário de lutarem contra o mal, o procuram na surpreendem em determinados momentos. Porém, a esperança de se encontrar. São jovens com máculas, e os suposição de uma possível alteração no conflito central da responsáveis por esse romance ser destinado para adultos. trama altera também a forma como tal relato vinha sendo elaborado. Em determinada parte do romance, o narrador 6 PÉCORA, Alcir. Romance adulto de J. K. Rowling acerta ao se dedicar a tema social, mas erra em estilo. São Paulo, 2012. Disponível em: foca em Krystal e esquece-se da disputa política e da http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/84410-livro-adulto-de-jk-rowling-acerta-ao-se-dedicar-a-tema-social-mas-erra-em-estilo.shtml temática 5 Ibidem, p. dos 480. segredos que todos guardam. Para fortalecer a crítica social sobre as injustiças que uma menina sem possibilidades como ela enfrenta, opta-se por simplificar o Victor Simões Lobato Cursa Estudos Literários no IEL/UNICAMP, é músico e explorador das artes. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 146 Alquimia Do sombrio apego ao chão pés correntes estéreis abandono, solidão caótica de vozes submissão ao subsolo aterrado em desconsolo cava-se mais fundo e além do chumbo, longe da gris angústia de células de areia, de ervas, de órgãos, de cadeias de ideias, E a alheia lógica superficial ganhou fôlego, proporção, vida virou natural Entendendo Sinapses são raízes Um brilho fugidio um lume, vislumbre, um maleável minério: Da macia terra intocada irrompe um mistério. Suspensos tensos tons, vibrou uma cor rara. Escavada uma nova escala, Despertas harmonias soaram através de dúvidas, de grés, de esferas, de grãos Estendendo pra beber direto das nuvens lúcidas águas, espiralando diretrizes, Inspirar ar virgem, desafiando vertigens Até Sol frutificar Como aprendeu da Terra, Ouro de dentro brota. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 147 Criação A Ausência Chama A Essência Queima O Nada Diz: Luz! A Presença Espiral Condensa imensa potência A sentença: Ser que sente E pensa. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 148 Vermelho A cor do nosso interior que aflora em vigorosa rosa mística fonte de vida entre meus braços sente que é teu sangue que condensa força e iniciativa que Pulsa e incentiva a existência Vermelho vida Calor latente Fogo que sente Thiago Andreuzzi Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 150 O Humanizador O humanizador é uma máquina revolucionária dessa época moderníssima. Sua função consiste em humanizar o ser humano, que, perdido no meio da multidão, ou trancado em seu escritório/casa trabalhando compulsivamente e, nas pausas, vendo o noticiário da TV, perdeu a capacidade da empatia e da compreensão verdadeira do mundo. Seu funcionamento se dá pela inserção de sentimentos, sobretudo a compaixão e o amor, no caráter mecanizado do doente. É uma máquina de cerca de dois metros de altura, de modo que pessoas muito baixas não sejam capazes de entrar nela para a o processo de reversão de reificação. Até o momento, tem se mostrado um produto muito útil e eficaz, resgatando perfeitamente a humanidade de quem se coloca a passar pelo procedimento, o qual é dolorido e longo. Com a aparência de uma donzela de ferro, seu design evoca terror e erudição, além de converter-se facilmente em uma legítima donzela de ferro, caso o paciente enlouqueça e comece a defender os direitos básicos dos que ainda não foram humanizados. Até hoje, não foi registrado nenhum caso desses em todo o mundo. E, embora os documentos sejam de posse única da empresa, esta é de uma transparência fenomenal. 1A empresa também aceita, no lugar das duas crianças, quatro idosos ou um casal gay. Fragmento 22 T. In: Poetas perdidos. 2 ANÔNIMO. Esta é uma outra parte do tratamento: mediante o pagamento de uma quantia do lucro de um mês de banco e duas crianças, o humanizador passa a funcionar e ajuda a combater o problema da superpopulação em lugares com altíssimas taxas de natalidade, e garante com sucesso que a sociedade mantenha seu funcionamento sem grandes problemas. Apesar desse seu maravilhoso sistema, o humanizador, no começo, encontrou certa resistência por parte de artistas, como o poeta agora desconhecido e de grande sucesso que escreveu os seguintes versos: humanizador humana é a dor2 Em uma clara referência à dor causada durante o processo de cura. Provavelmente, ele teria passado pela grande máquina quando esta ainda não poderia ser convertida em uma donzela de ferro. De qualquer forma, o poeta deixa claro a eficácia da máquina, uma vez que afirma que a dor é humana. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Alguns desses artistas chegaram a propor o absurdo de que o amor não é algo definível ou, segundo os menos pessimistas, algo difícil de se definir. Mas os engenheiros do humanizador o programaram com as emoções mais sinceras encontradas nos filmes de alta bilheteria, na literatura e, sobretudo, nos ensinamentos dos pastores e padres cristãos. Há, portanto, cerca de 99% de chance de ele estar correto em relação ao amor. Sendo assim, quem passa pelo humanizador não corre o risco de se tornar homossexual ou libertino. É totalmente seguro. Eliminam-se sujeitos como o poeta, também já esquecido, do século XXI, que escreveu os seguintes versos: um cigarro aceso no chao proximo da branca estatua lembrava um incenso aceso mas nao se poderia [...]r se ele ali estava para este efeito ou nao 3 ANÔNIMO. Fragmento 69 T. In: Poetas perdidos. 151 e naquele dia [...] deve ter descido a terra aquele lugar pois os amantes logo começaram a se [...] os conhecidos logo começaram a se [...] os es[...]hos logo começaram a se [...] eram homens com mulheres homens com homens e mulheres com mulheres cada um ali […] [...]re3 O humanizador, máquina revolucionária e com alta preocupação com o social, acaba por ser uma das soluções mais belas e concretas para o nosso dia a dia, para podermos aprender a viver a vida da maneira como se deve ser vivida. Matuyama Bacharel em Estudos Literários, revisora e tradutora. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 153 in memorian noventa e um anos outono inevitável duas folhas pendem kyuju issai aki sakerukoto no dekinai ochikakatta niami no ha Júlia Ciasca Brandão Graduanda em Estudos Literários pela Unicamp e professora na escola Kreativ. É pesquisadora do Centro de Pesquisa sobre Utopia (U-topos), do grupo Renascimento e Utopia, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp), e faz parte da equipe de tradução, revisão e diagramação da revista MORUS – Utopia e Renascimento. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 155 O Truque do Grilo Introdução Gustav Meyrink, nascido em 1868, austríaco e ilegítimo, obrigado a exercer, por quase trinta e cinco anos, serviço bancário, finalmente torna-se escritor, editor e tradutor de grandes autores como Dickens e Kipling. 1917. Meyrink publica em Bremen um livro de contos, Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Entre eles, Das Grillenspiel (O Truque do Grilo), o conto que você vai ler a seguir, é uma representação da insensatez humana. O autor, que enfrentava os percalços da primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) e, por esta razão, conhecia o cenário em que reinam a crueldade, a desordem e a insensatez, é crítico, sarcástico e nada piedoso com os seus contemporâneos. Neste texto, Meyrink demonstra sua habilidade em inserir as personagens entre o fantástico e o real, entre o sonho e a vigília. Através das escolhas corretas, o autor incita o medo no leitor, e depois o desconstrói -, muitas vezes com o uso da sátira -, porque, afinal, o medo nasce da superstição e da insensatez, principais elementos que se opõem ao desenvolvimento e ao progresso do espírito humano. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 156 Das Grillenspiel Gustav Meyrink »Nun?« fragen die Herren wie aus einem Munde, als Professor Goclenius rascher, als es sonst seine Gewohnheit war, und mit auffallend verstörtem Gesicht eintrat, »nun, hat man Ihnen die Briefe ausgefolgt? – Ist Johannes Skoper schon unterwegs nach Europa? – Wie geht es ihm? Sind Sammlungen mit angekommen?« – riefen alle durcheinander. »Nur das hier«, sagte der Professor ernst und legte ein Bündel Schriften und ein Fläschchen, in dem sich ein totes, weißliches Insekt in der Größe eines Hirschkäfers befand, auf den Tisch, »der chinesische Gesandte hat es mir selbst mit dem Bemerken übergeben, es sei heute auf dem Umweg über Dänemark angekommen.« »Ich fürchte, er hat schlimme Nachrichten über unsern Kollegen Skoper erfahren«, flüsterte ein bartloser Herr hinter der Hand seinem Tischnachbar zu, einem greisenhaften Gelehrten mit wallender Löwenmähne, der – wie er selbst, Präparator am naturwissenschaftlichen Museum – die Brille auf die Stirn geschoben hatte und mit tiefstem Interesse das Insekt in der Flasche betrachtete. Es war ein seltsames Zimmer, in dem die Herren – sechs an der Zahl und sämtlich Forscher auf dem Gebiet der Schmetterlings- und Käferkunde – saßen. O Truque do Grilo Gustav Meyrink — E então? — perguntaram os senhores como se falassem por uma única boca, quando o professor Goclenius adentrou o salão mais rápido do que de costume, e com uma feição notadamente perturbada. — E então, entregaram-lhe as cartas? O Sr. Johannes Stoper já está a caminho da Europa? Como ele está? As coleções estão vindo com ele? — gritaram todos desordenadamente. — Apenas isto aqui — disse seriamente o professor, estendeu um pacote de anotações sobre a mesa, junto com um pequeno frasco, dentro do qual se encontrava um inseto morto e esbranquiçado, do tamanho de um besouro. — O próprio mensageiro chinês me revelou que ele chegou hoje através do desvio pela Dinamarca. — Temo que ele tenha notícias graves a respeito do nosso colega Stoper — sussurrou um homem com rosto barbeado, disfarçando com as mãos, ao seu vizinho de mesa, um velho cientista com uma grande juba de leão flutuante, que – como ele próprio, taxidermista no museu de ciências naturais – apoiou os óculos na testa testa e escrutinizou o inseto de dentro do frasco com profundo interesse. O salão no qual os senhores se encontravam – em número eram seis, e todos pesquisadores na matéria de borboletas e besouros – era estranho. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Ein stumpfer Geruch von Kampfer und Sandelholz verstärkte aufdringlich den Eindruck des fremdartig Totenhaften, das von den Igelfischen, die an Schnüren von der Decke herabhingen – glotzäugig, wie abgeschnittene Köpfe gespenstischer Zuschauer – von den weiß und rot grellbemalten Teufelsmasken wilder Indianerstämme, von den Straußeneiern, den Hairachen, Narwalzähnen, verrenkten Affenkörpern und all den tausenderlei grotesken Formen einer fernen Zone ausging. An den Wänden über den braunen wurmstichigen Schränken, die etwas Klösterliches hatten, wie das morsche Licht des Abendrots aus dem verwilderten Museumsgarten herein durch das bauschige Gitterfenster spielte, hingen, liebevoll in Gold gerahmt, gleich ehrwürdigen Ahnenbildern verblaßte Porträts ins Riesenhafte vergrößerter Baumwanzen und Maulwurfsgrillen. Verbindlich den Arm gekrümmt, verlegenes Lächeln um die Knopfnase und die gelben, kreisrunden Glasaugen, den Zylinderhut des Herrn Präparators auf dem Haupte, beugte sich in der Haltung eines vorsintflutlichen Dorfschulzen, der sich zum erstenmal im Leben photographieren läßt, ein Faultier aus der Ecke, umwipfelt von baumelnden Schlangenhäuten. 157 Um aroma abafado de cânfora e sândalo exacerbava a impressão de uma atmosfera peculiar e mortífera, em razão dos peixes-espinho que caíam do teto pendurados por barbantes – com olhos esbugalhados, como uma audiência de cabeças decepadas -, das máscaras diabólicas brilhantes, vermelhas e brancas, oriundas de linhagens insulares, dos ovos de avestruz, das goelas de tubarão, dos dentes de baleia, dos corpos contorcidos de macacos e de todas as formas grotescas e vis surgidas de suas zonas remotas. Das paredes atrás dos armários, marrons e repletos de vermes, que tinham algo de mosteiral, como a fraca luz do entardecer vinda do selvagem jardim do museu, que entrava através das grades da janela em forma de bulbo, pendiam quadros amavelmente emoldurados em dourado, os retratos já desbotados de veneráveis percevejos e grilos excessivamente ampliados. Os braços espalhafatosos, o sorriso envergonhado, o nariz pontudo, os olhos de vidro amarelos e redondos, o chapéu cilíndrico de Doutor Taxidermista sobre a cabeça, curvou-se, na atitude do prefeito de uma cidadezinha que se deixa fotografar pela primeira vez, em um canto como um bicho preguiça, brincando com as peles de cobra penduradas. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Den Schwanz in den dämmrigen Fernen des Ganges geborgen und die edleren Teile laut Wunsch des Unterrichtsministers im Frischlackiertwerden begriffen, starrte der Stolz des Institutes, ein zwölf Meter langes Krokodil, mit treulosem Katzenblick durch die Verbindungstür herein ins Gemach. – Professor Goclenius hatte Platz genommen, die Schnur von dem Briefbündel gelöst und die einleitenden Zeilen unter Gemurmel durchflogen. »Datiert ist es aus Bhutan – Südosttibet – und zwar vom 1. Juli 1914 – also vier Wochen vor Kriegsausbruch; der Brief war demnach länger als ein Jahr unterwegs«, setzte er dann laut hinzu. »Kollege Johannes Skoper schreibt hier unter anderem: ›Über die reiche Ausbeute, die ich auf meiner langen Reise aus den chinesischen Grenzgebieten durch Assam in das bisher unerforschte Land Bhutan machte, werde ich Ihnen nächstens ausführlich berichten; heute nur kurz über die seltsamen Umstände, denen ich die Entdeckung einer neuen weißen Grille‹«. – Professor Goclenius deutete auf das Insekt in der Flasche – »›verdanke, die von den Schamanen zu abergläubischen Zwecken gebraucht und ”Phak“ genannt wird, ein Wort, das zugleich ein Schimpfname ist für alles, was einem Europäer oder weißrassigen Menschen ähnlich sieht. 158 Um crocodilo de doze metros, a cauda recolhida no escuro e distante corredor, as partes mais nobres recém-envernizadas em razão do expressivo desejo do ministro da educação, contemplava a arrogância do instituto com seu olhar desleal de felino através da porta de ligação da câmara. O Professor Goclenius tomou lugar, desamarrou o barbante do pacote de anotações e leu as primeiras linhas, entre o murmurar dos presentes: — Datado é de Butão, região sul do Tibete, e do dia primeiro de julho de 1914, isto é, quatro semanas antes da eclosão da guerra: a carta ficou por mais de um ano em trânsito — disse o professor em alto som. — O colega Johannes Stoper escreve aqui, entre outras coisas: “Irei relatar na sequência a respeito da rica exploração que realizei em minha longa viagem às fronteiras chinesas, de Assam às ainda inexploradas terras de Butão; a respeito das estranhas circunstâncias da pequena descoberta, feita hoje, de um grilo branco”. — O professor Goclenius apontou para o inseto no frasco. — “Agradeço aos bhat, chamados deste modo pelos xamãs, que os utilizam para fins supersticiosos, e, simultaneamente, palavra que representa um insulto para tudo o que está nivelado aos europeus e homens da raça branca. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 159 Also: Eines Morgens erfuhr ich von lamaistischen Pilgern, die Pois então: soube certa manhã, por peregrinos budistas que nach meines seguiam para Lhasa, a pouca distância do acampamento no Lagerplatzes ein sehr hoher, sogenannter Dugpa – einer qual me encontrava, que existia por ali um grande sacerdote jener in ganz Tibet gefürchteten Teufelspriester, die, an ihren chamado Dugpa – um pastor diabólico temido em todo o scharlachroten direkte Tibete, reconhecível pela sua capa vermelho-escarlate, do Abkömmlinge des Dämons der Fliegenschwämme zu sein. qual dizem ser descendente direto dos enxames das moscas Jedenfalls sollen die Dugpas der uralten tibetischen Religion diabólicas. De qualquer forma, os dugpas pertenceriam à der Bhons angehören, von der wir so gut wie nichts wissen, religião milenar dos böns, a respeito da qual nós quase nada und Nachkommen einer fremdartigen Rasse sein, deren sabemos; e descendem de uma estranha raça, cuja origem Ursprung sich im Dunkel der Zeit verliert. Jener Dugpa, perdeu-se na escuridão dos tempos. Esses dugpas, contavam- erzählten voll me muito supersticiosamente os peregrinos, enquanto abergläubischer Scheu ihre kleinen Gebetsmühlen, sei ein conservavam-se acanhados em seu pequeno circulo de reza, Samtscheh Mitschebat, das ist ein Wesen, das man nicht obedeciam a um mestre, o Samtscheh Mitschebat, um ser que mehr mit dem Namen Mensch bezeichnen dürfe, das ”binden não pode mais ser designado homem, que conseguia, hábil e und lösen“ könne, dem, kurz und gut, infolge seiner agilmente, como resultado de suas habilidades, ‘atar e Fähigkeit, Raum und Zeit als Wahnvorstellungen zu desatar’ o espaço e tempo, vendo através das ilusões dos durchschauen, nichts unmöglich sei auf Erden zu vollbringen. outros, e para ele nada era impossível de ser realizado em Lhasa zogen, mir es befinde Kappen die kenntlich, Pilger und sich unweit behaupten, drehten dabei terra. _________________________________________________________________________________ 1 Os baht são seguidores da religião bön, seita aborígine do Tibete que coexiste com o budismo e se opõe a esta tradição religiosa em seus preceitos e rituais. Também são chamados de dugpas ou “capasvermelha”. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Es gäbe, sagte man mir, zwei Wege, um jene Stufen zu erklimmen, die über das Menschentum hinausführen: den einen, den des ”Lichtes“ – der Einswerdung mit Buddha – und einen zweiten, entgegengesetzen: den ”Pfad der linken Hand“, zu dem nur ein geborener Dugpa die Eingangspforte wüßte – ein geistiger Weg voll Grauen und Entsetzlichkeit. Solche ”geborene“ Dugpas kämen – wenn auch sehr vereinzelt – unter allen Himmelsstrichen vor und wären merkwürdigerweise fast immer die Kinder besonders frommer Leute. ”Es ist“, sagte der Pilger, der es mir erzählte,”wie wenn die Hand des Herrn der Finsternis ein giftiges Reis aufgepfropft auf den Baum der Heiligkeit“, und man wisse nur ein Mittel, an einem Kinde zu erkennen, ob es geistig zum Bunde der Dugpas gehört oder nicht, das ist – wenn der Haarwirbel auf dem Scheitel von links nach rechts, statt umgekehrt, läuft. Ich sprach sofort – rein aus Neugierde – den Wunsch aus, den erwähnten hohen Dugpa zu Gesicht zu bekommen, aber mein Karawanenführer, selber ein Osttibeter, widersetzte sich mit Hartnäckigkeit. Das alles sei dummes Zeug, Dugpas gäbe es im Bhutangebiet überhaupt nicht, schrie er in einem fort, auch würde ein Dugpa – schon gar ein Samtscheh Mitschebat – nie und nimmer einem Weißen seine Künste zeigen. 160 Haveria, disseram-me, dois caminhos para ascender os degraus e transcender a humanidade: o das ‘luzes’, o da unificação com Buda; ou o segundo, seu oposto: o caminho da ‘mão esquerda’, do qual apenas o nascido dugpa saberia o portão de entrada, um caminho fantasmagórico e cinza, repleto de crueldade. Estes já ‘nascidos’ dugpas - mesmo que em escasso número – proviriam de pontos definidos no céu e, quase sempre, surgiriam estranhamente nas famílias especialmente simples. — É como — disse o peregrino que me contava — se a mão do senhor das trevas pingasse um veneno na Árvore Sagrada. E só havia um meio de reconhecer se o espírito de uma criança estava ligado aos dugpas ou não, que era: se o vértice do redemoinho dos seus cabelos ia da esquerda para a direita, e não ao contrário. Imediatamente, eu revelei – por pura curiosidade - o desejo de estar face a face com o mencionado e grande dugpa, mas o líder de minha caravana, ele próprio um tibetano do oeste, opôs-se com tenacidade. Tudo aquilo seria uma grande besteira, não existiam dugpas no território do Butão coisa nenhuma, exclamou ele sem interrupção, que um dugpa não iria revelar a um branco as suas artes e muito menos o Samtscheh Mitschebat. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Der allzu eifrige Widerstand des Mannes wurde mir immer verdächtiger, und nach stundenlangem Kreuz- und Querfragen brachte ich denn auch aus ihm heraus, daß er selbst Anhänger der Bhonreligion sei und ganz genau wisse – aus der rötlichen Färbung der Erddünste, wollte er mir vorlügen – daß ein ”eingeweihter“ Dugpa in der Nähe weile. ”Aber er wird dir niemals seine Künste zeigen“, schloß er jedesmal seine Rede. ”Warum denn nicht?“ fragte ich schließlich. ”Weil er die – Verantwortung nicht übernimmt.“ ”Was für eine Verantwortung?“ forschte ich weiter. ”Er würde infolge der Störung, die er damit im Reiche der Ursachen anrichtet, von neuem in den Strudel der Wiederverkörperung verstrickt werden, wenn nicht etwas noch viel Schlimmeres.“ Es interessierte mich, Näheres über die geheimnisvolle Bhonreligion zu erfahren, und ich fragte daher: ”Hat ein Mensch nach deinem Glauben eine Seele?“ ”Ja und Nein.“ ”Wieso?“ Als Antwort nahm der Tibeter einen Grashalm und machte einen Knoten hinein: ”Hat das Gras jetzt einen Knoten?“ ”Ja.“ 161 A excessiva ansiedade e oposição do homem me pareciam cada vez mais suspeitas e, após horas de perguntas cruzadas e indiretas, consegui lhe arrancar que ele mesmo pertencia à religião dos bön e que, seguramente, saberia – devido à coloração avermelhada da terra fina – que um ‘informante’ dos dugpas estaria por perto. — Mas ele nunca lhe revelará suas artes — concluindo sempre desta maneira. — Mas por que não? — perguntei finalmente. — Porque ele não assume... A responsabilidade. — Que responsabilidade? — investiguei a seguir. — Pela desordem por ele causada, ele seria enredado em um perene turbilhão e não estaria mais sujeito à encarnação, ou coisa pior. Interessava-me saber mais sobre a misteriosa religião dos bön e, por isto, perguntei: — Segundo sua crença, o homem possui alma? — Sim e não. — Como assim? Como resposta, o tibetano segurou um punhado de grama e laçou um nó: — A grama agora forma um nó? — Sim. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Er löste den Knoten wieder auf. ”Und jetzt?“ ”Jetzt hat es keinen mehr.“ ”Genauso hat der Mensch eine Seele und hat keine“, sagte er einfach. Ich versuchte es auf eine andere Weise, mir ein Bild über seine Ansicht zu machen: ”Gut, nimm an, du wärest auf dem schrecklichen, kaum handbreiten Gebirgspaß, den wir neulich überschritten, in die Tiefe gestürzt – hätte deine Seele weitergelebt oder nicht?“ ”Ich wäre nicht abgestürzt!“ Ich wollte ihm anders beikommen, deutete auf meinen Revolver: ”Wenn ich dich jetzt totschieße, lebst du dann weiter oder nicht?“ ”Du kannst mich nicht erschießen.“ ”Doch!“ ”Also versuch's.“ Ich werde mich hüten, dachte ich bei mir, das wäre eine schöne Geschichte, ohne Karawanenführer in diesem grenzenlosen Hochland umherzuirren. Er schien meine Gedanken erraten zu haben und lächelte höhnisch. Es war zum Verzweifeln. Ich schwieg eine Weile. 162 Ele desfez o nó: — E agora? —Agora não tem mais nada. — Do mesmo modo, a pessoa tem uma alma e também não tem — disse ele simplesmente. Eu tentei, de outra maneira, compor um retrato de sua representação. — Então, se assumíssemos que você, lá do terrível e alto penhasco que acabamos de atravessar, tivesse despencado nas profundezas... Sua alma teria continuado a viver ou não? — Eu não teria despencado! Queria atingi-lo de outro modo, então, apontei-lhe meu revolver: — Se eu lhe desse agora um tiro mortal. Você continuaria a viver ou não? —Você não pode atirar em mim. — Posso, sim! — Então tente! Nem pensar! Pensei comigo mesmo. Seria uma bela história, poder cavalgar por aí, sem um guia de caravana, nestes planaltos sem fronteiras. Ele parecia adivinhar meus pensamentos e sorriu com desdém. Era desesperador. Eu me calei por um momento: ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ”Du kannst eben nicht ’wollen‘“, fing er plötzlich wieder an. ”Hinter deinem Willen stehen Wünsche, solche, die du kennst, und solche, die du nicht kennst, und beide sind stärker als du.“ ”Was ist also die Seele nach deinem Glauben?“ fragte ich ärgerlich; ”habe zum Beispiel ich eine Seele?“ ”Ja.“ ”Und wenn ich sterbe, lebt meine Seele dann weiter?“ ”Nein.“ ”Aber deine, meinst du, lebt weiter, wenn du stirbst?“ ”Ja. Weil ich einen – Namen habe.“ ”Wieso einen Namen? Ich habe doch auch einen Namen!“ ”Ja, aber du kennst deinen wirklichen Namen nicht, besitzest ihn also nicht. Das, was du für deinen Namen hältst, ist nur ein leeres Wort, das deine Eltern erfunden haben. Wenn du schläfst, vergißt du ihn, ich vergesse meinen Namen nicht, wenn ich schlafe.“ ”Aber, wenn du tot bist, weißt du ihn doch auch nicht mehr!“ wandte ich ein. ”Nein. Aber der Meister kennt ihn und vergißt ihn nicht, und wenn er ihn ruft, so stehe ich wieder auf; aber nur ich und kein anderer, denn nur ich habe meinen Namen. Kein anderer hat ihn. Das, was du deinen Namen nennst, das haben viele andere mit dir gemeinsam – so wie die Hunde“, murmelte er verächtlich vor sich hin. Ich verstand die Worte zwar, ließ es mir aber nicht anmerken. 163 — Simplesmente você não pode querer — recomeçou —, por trás de seu querer estão desejos que você conhece, e outros que você desconhece, e ambos são mais fortes que você. — O que é a alma, então, segundo a sua crença? — perguntei irritado — Eu, por exemplo, eu tenho uma alma? — Sim. — E quando eu morrer, minha alma continuará vivendo? — Não. — Mas a sua, você quer dizer, a sua viverá, quando você morrer? — Sim. Porque eu tenho... Um nome. — Como assim um nome? Eu também tenho um nome! — Tem, mas você não conhece o seu verdadeiro nome, porque este você não possui. O que você considera um nome é apenas uma palavra vazia, inventada pelos seus pais. Quando você está dormindo, você o esquece. Eu não esqueço meu nome, enquanto durmo. — Mas quando você estiver morto, não o saberá mais! – retruquei. — Não. Mas meu mestre o conhece e não se esquece dele, e quando ele o chamar, então voltarei a me levantar; apenas eu e ninguém mais, porque apenas eu possuo o meu nome. Nenhum outro o possui. Isto que você chama de seu nome, muitos outros têm em comum com você... Como cachorros — murmurou para si mesmo, com desprezo. Contudo, compreendi suas palavras, e não deixei que ele percebesse. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ”Was verstehst du unter dem ’Meister‘?“ warf ich scheinbar unbefangen hin. ”Den Samtscheh Mitschebat.“ ”Den, der hier in der Nähe ist?“ ”Ja, aber nur sein Spiegelbild ist in der Nähe; der, der er in Wirklichkeit ist, ist überall. Er kann auch nirgends sein, wenn er will.“ ”Er kann sich demnach unsichtbar machen?“ Wider Willen mußte ich lächeln. ”Du meinst: einmal ists er innerhalb des Weltenraumes und dann außerhalb; einmal ist er da – und dann ist er wieder nicht da?“ ”Ein Name ist doch auch nur da, wenn man ihn ausspricht, und nicht mehr da, wenn man ihn nicht ausspricht“, hielt mir der Tibeter vor. ”Und kannst zum Beispiel du auch ein ’Meister‘ werden?“ ”Ja.“ ”Dann wird es also zwei Meister geben, was?“ Ich triumphierte innerlich, denn offen gestanden verdroß mich der geistige Hochmut des Kerls; jetzt hatte ich ihn in der Falle, glaubte ich (meine nächste Frage hätte gelautet: wenn der eine Meister die Sonne scheinen lassen will und der andere regnen, welcher behält recht?); um so mehr verblüffte mich die sonderbare Antwort, die er mir gab: 164 — O que você entende, quando diz mestre? – lancei sem que soasse suspeito. — O Samtscheh Mitschebat. — Aquele que está aqui por perto? — Sim, mas só o seu reflexo está por perto. Aquele que é real está por toda a parte. Pode também não ser, se ele quiser. — Então, ele consegue ficar invisível? — Contra minha vontade, precisei sorrir. — Você quer dizer que ele pode existir, simultaneamente, dentro do espaço-tempo do mundo e também fora dele; isto é: ora ele pode estar aqui, ora não mais? — Um nome só está aqui, quando é pronunciado e não está mais, quando não pronunciado — censurou o tibetano. — E você poderia, por exemplo, tornar-se um mestre? — Sim. — Então, iriam existir dois mestres, não é? Internamente sentia que eu triunfava, e era clara a minha irritação pela arrogância espiritual daquele homem; agora eu o tinha derrubado, pensei. (Minha próxima pergunta seria: Qual dos mestres teria razão, se um deles desejasse fazer o sol brilhar, e o outro desejasse fazer chover?); de modo que perturbou-me ainda mais a estranha resposta que ele me deu: ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ”Wenn ich ein Meister sein werde, dann bin ich doch der Samtscheh Mitschebat. Oder glaubst du, es könnte zwei Dinge geben, die einander vollkommen gleich sind, ohne daß sie ein und dasselbe wären?“ ”Immerhin seid ihr dann zwei und nicht einer; wenn ich euch begegnete, wäret ihr zwei Menschen und nicht einer“, widersprach ich. Der Tibeter bückte sich, suchte unter den in Menge umherliegenden Kalkspatkristallen einen besonders durchsichtigen aus und sagte spöttisch: ”Halte das ans Auge und schau den Baum dort an; du siehst ihn nunmehr doppelt, nicht wahr? Aber sind es deshalb – zwei Bäume?“ Ich wußte ihm nicht gleich etwas zu entgegnen, auch wäre es mir schwer gefallen in mongolischer Sprache, deren wir uns zur gegenseitigen Verständigung bedienen mußten, ein so verwickeltes Thema logisch zu erörtern: ich ließ ihm daher seinen Triumph. Innerlich konnte ich aber nicht genug staunen über die geistige Gelenkigkeit dieses Halbwilden mit seinen schiefen Kalmückenaugen und dem schmutzstarrenden Schafspelz. Es ist etwas Seltsames um diese Hochlandasiaten, äußerlich sehen sie aus wie Tiere, aber rührt man an ihre Seele, kommt der Philosoph zum Vorschein. Ich griff wieder auf den Ausgangspunkt unseres Gespräches zurück: ”Du glaubst also, der Dugpa würde mir seine Künste nicht zeigen, weil er die – Verantwortung ablehnt?“ 165 — Se fosse mestre, eu seria o Samtscheh Mitschebat. Ou você pensa que poderiam existir duas coisas, inteiramente iguais em essência, sem que fossem a mesma coisa? — Mas de qualquer modo, vocês são dois, não apenas um; se os encontrasse por acaso, vocês seriam duas pessoas, não uma — repliquei. O tibetano curvou-se para o chão, onde havia vários cristais de calcita, escolheu um que fosse especialmente transparente, e disse com desdém: — Segure isto próximo aos seus olhos e mire aquela árvore ali; doravante, você a vê em dobro, não é mesmo? Mas seriam, então, por esta razão, duas árvores? Eu não sabia como contradizê-lo, era também difícil discutir um tema tão complicado em mongol, língua da qual ambos nos servíamos para atingir uma compreensão mútua: deixeio, pois, triunfar. No entanto, internamente ainda não me deixara convencer pela parca espiritualidade daquele selvagem, com seus profundos olhos calmucos² e capa suja. Havia algo muito estranho nesse povo proveniente dos planaltos asiáticos: por fora, assemelham-se a animais, mas, no momento em que sua alma é tocada, o filósofo vem à tona. Busquei retomar o ponto de partida de nossa conversa: — Você acredita, então, que o dugpa não me mostraria suas artes, porque ele... se recusa a assumir a responsabilidade? _________________________________________________________________________________ 2 Calmucos são um povo nômade, de origem mongol e adeptos à religião budista, que estabeleceram-se nas antigas terras Nogais, conhecida hoje como a região da Calmúquia. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 166 ”Nein, gewiß nicht.“ ”Wenn ich aber die Verantwortung übernähme?!“ Das erstemal, seit ich den Tibeter kannte, geriet er außer Fassung. Eine Unruhe, die er kaum bemeistern konnte, lief über sein Gesicht. Der Ausdruck wilder, mir unerklärlicher Grausamkeit wechselte mit dem eines tückischen Frohlockens. Wir haben in den vielen Monaten unseres Beisammenseins oft wochenlang Todesgefahren aller Art ins Auge geblickt, haben schauerliche Abgründe überschritten auf schwankenden, nur fußbreiten Bambusbrücken, daß mir vor Entsetzen das Herz stillstand, haben Wüsten durchquert und sind fast verdurstet, aber niemals verlor er auch nur eine Minute sein inneres Gleichgewicht. Und jetzt? Was konnte die Ursache sein, daß er mit einemmal so außer sich geriet? Ich sah ihm an, wie in seinem Hirn die Gedanken sich jagten. ”Führe mich zu dem Dugpa, ich werde dich reichlich belohnen“, redete ich ihm eifrig zu. ”Ich will es mir überlegen“, antwortete er endlich. — Não, é claro que não mostraria. — Mas e se eu assumisse a responsabilidade? Pela primeira vez, desde que conheci o tibetano, vi-o perder o comedimento. Uma inquietação que ele não conseguia dominar revelou-se em sua face. Uma impressão selvagem, uma inexplicável crueldade confundia-se com uma alegria traiçoeira. Ao longo dos muitos meses que passamos na companhia um do outro, muitas vezes enfrentamos, por semanas a fio, vários perigos mortais de todo o tipo. Cruzamos terríveis abismos instáveis sobre meras pontes de bambu, da largura de nossos pés, e o meu coração até parava de bater, tão grande era meu terror, percorremos desertos e quase morremos de sede, mas nunca, nem por um minuto, ele perdeu seu equilíbrio interior. E agora? Qual poderia ser a razão que o fazia sair de si desta vez? Eu observava como na sua mente, os pensamentos se debatiam e perturbavam sua mente. — Leve-me ao dugpa e você será recompensado generosamente. — disse para ele, fervoroso. — Quero pensar a respeito. – Respondeu finalmente. Es war noch tiefe Nacht, da weckte er mich in meinem Zelt. Er sei bereit, sagte er. Er hatte zwei unserer zottigen Mongolenpferde, die nicht viel höher sind als große Hunde, gesattelt, und wir ritten hinein in die Finsternis. Já era madrugada, quando ele me acordou em minha tenda. Estava pronto, disse. Já selara dois de nossos vilosos cavalos mongóis, que não eram muito maiores do que grandes cães, e nós cavalgamos escuridão adentro. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Die Leute meiner Karawane lagen um die verglimmenden Reisigfeuer herum in festem Schlaf. Stunden vergingen, und wir wechselten kein Wort; der eigentümliche Moschusgeruch, den die tibetischen Steppen in Julinächten auszuströmen pflegen, und das eintönige Zischen des Ginsters, wie die Beine unserer Pferde hindurchfegten, betäubte mich fast, so daß ich, um wach zu bleiben, unverwandt emporblicken mußte zu den Sternen, die hier in diesem wilden Hochland etwas Loderndes, Flackerndes haben wie brennende Papierfetzen. Ein erregender Einfluß geht von ihnen aus, der das Herz mit Unruhe erfüllt. Als die Morgendämmerung über die Berggipfel kroch, bemerkte ich, daß die Augen des Tibeters weit offen standen und, ohne zu zwinkern, immerwährend auf einen Punkt am Himmel starrten. – Ich sah, daß er geistesabwesend war. Ob er denn den Aufenthalt des Dugpas so genau kenne, daß er nicht auf den Weg zu achten brauche, frage ich ihn ein paarmal, ohne eine Antwort zu bekommen. ”Er zieht mich, wie der Magnetstein das Eisen anzieht“, lallte er schließlich mit schwerer Zunge wie aus dem Schlaf. Nicht einmal mittags machten wir Rast, immer wieder trieb er stumm sein Pferd zu neuer Eile an. Ich mußte im Sattel meine paar Stücke gedörrtes Ziegenfleisch verzehren. 167 As pessoas de minha caravana permaneceram em torno da já extinta fogueira, em sono profundo. Horas se passaram e nós não trocamos palavra sequer; o cheiro peculiar do almíscar, que domina as estepes tibetanas nas noites de julho, e a monotonia do sibilo das genistas³, com o roçar das patas dos nossos cavalos, me entorpeceram tanto que eu, para me manter desperto, fui obrigado a olhar fixamente as estrelas que, vistas destes planaltos selvagens, tinham algo de fulgurante, vívido, como pedaços de papel incendiados. Uma sensação crescente brotou dentro de mim, a ponto de encher meu coração de inquietude. Quando a aurora rompeu sobre os topos das montanhas, percebi que os olhos do tibetano estavam muito abertos e, sem piscar, miravam constantemente um ponto do céu. – Compreendi que sua alma não estava presente. Perguntei algumas vezes se ele conhecia a morada do dugpa, sem precisar atentar o caminho, mas não obtive qualquer resposta. — Ele me puxa como um imã puxa o ferro — balbuciou, finalmente, sua língua parecia pesada, como se ele estivesse dormindo. No meio do dia não descansamos uma vez sequer, ele continuamente forçava seu cavalo a manter a velocidade. Eu precisei comer sentado na sela meus poucos pedaços de carne de cabra defumada. _____________________________________________________________ 3 Genista é um gênero botânico de noventa espécies de arbustos da família das Fabaceae. Esses arbustos toleram os solos pobres e necessitam poucos cuidados para cultivo. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Gegen Abend hielten wir, um den Fuß eines kahlen Hügels biegend, in der Nähe eines jener fantastischen Zelte, wie man sie im Bhutan zuweilen zu Gesicht bekommt. Sie sind schwarz, oben spitz, unten sechseckig mit aufwärts gebauchten Rändern, und stehen auf hohen Stelzen, so daß sie einer riesigen Spinne gleichen, die mit dem Bauch die Erde berührt. Ich hatte erwartet, einen schmutzigen Schamanen mit verfilztem Haar und Bart zu treffen, eines der wahnsinnigen oder epileptischen Geschöpfe, die unter den Mongolen und Tungusen häufig sind, die sich mit dem Absud von Fliegenschwämmen betäuben und dann Geister zu sehen glauben oder unverständliche Prophezeiungen ausstoßen; statt dessen stand da – unbeweglich – ein Mann vor mir, gut sechs Fuß hoch, auffallend schmal im Wuchs, bartlos, das Gesicht olivgrünlich schimmernd, von einer Farbe, wie ich sie noch nie bei einem Lebenden gesehen, die Augen schräg und unnatürlich weit auseinander. Der Typus einer mir vollkommen fremden Menschenrasse. Seine Lippen, gleich der Gesichtshaut faltenlos wie aus Porzellan, waren scharfrot, messerdünn und so stark geschwungen – besonders an den weit empor gezogenenen Mundwinkeln – wie unter einem erbarmungslosen erstarrten Lächeln, daß sie aussahen, als seien sie aufgemalt. 168 Ao final da tarde paramos ao pé de uma colina nua e arcada, próximo a umas tendas fantásticas, frequentemente encontradas no Butão. Elas eram negras e pontiagudas na parte de cima, tinham forma de hexângulo na parte de baixo, bordas ascendentes e salientes, e estavam sobre altas palafitas, que faziam com que se assemelhassem a aranhas gigantes, cujo ventre encostava na terra. Esperava encontrar um xamã sujo, de cabelos emaranhados e barba, uma dessas figuras desvairadas e epilépticas comuns entre os mongóis e os tungus, que se ocupam com o absurdo de voar, anestesiam os crentes, creem ter visto fantasmas e proferem profecias ininteligíveis: ao invés disso, estava diante de mim – imóvel – um homem - uns bons seis pés de altura -, impressionantemente alto e magro, sem barba, a face verde-oliva brilhante, de uma cor que eu nunca tinha visto antes em toda a minha vida, os olhos caídos e separados de uma forma pouco natural. Na minha concepção, um tipo totalmente estranho à raça humana. Seus lábios, assim como a pele lisa de seu rosto, eram como porcelana, fortemente avermelhados, finos como faca e muito oscilantes – especialmente nos cantos, desenhados para cima, compunham um sorriso impiedoso e atônito. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Ich konnte den Blick nicht von dem Dugpa wenden – lange nicht – und wenn ich jetzt daran zurückdenke, möchte ich fast sagen: ich kam mir vor wie ein Kind, dem der Atem stehenbleibt vor Entsetzen beim Anblick einer plötzlich aus dem Dunkel auftauchenden grauenhaften Maske. Auf dem Kopf trug der Dugpa eine glattanliegende scharlachrote Kappe ohne Rand; im übrigen bis zu den Knöcheln einen kostbaren Pelz aus orangegelb gefärbten Zobel. Er und mein Führer sprachen kein Wort mitsammen, ich nehme jedoch an, daß sie sich durch heimliche Gesten verständigt haben, denn ohne zu fragen, was ich von ihm wolle, sagte der Dugpa plötzlich und unvermittelt, er sei willens mir zu zeigen, was immer ich wünsche, doch müsse ich ausdrücklich alle Verantwortung, auch wenn ich sie nicht kannte, übernehmen. Ich erklärte mich – natürlich – sofort bereit. Ich sollte zum Zeichen dafür mit der linken Hand die Erde berühren, verlangte er. Ich tat es. Schweigend ging er sodann eine Strecke voraus, und wir folgten ihm, bis er uns niedersitzen hieß. Es war eine tischähnliche Bodenerhebung, an deren Rand wir uns lagerten. Ob ich ein weißes Tuch bei mir trüge? 169 Eu não conseguia desviar os olhos do dugpa –por muito tempo – e, se agora torno a pensar nisso, gostaria de dizer de uma vez: sinto-me como se fosse uma criança que prende a respiração de pavor ao ver uma máscara surgir repentinamente da escuridão. Na cabeça, o dugpa vestia uma capa vermelho-escarlate, lisa e sem bordas, no corpo até os tornozelos, uma custosa peliça de zibelina laranja-amarelada. Ele e meu guia não trocaram uma palavra sequer, eu presumo, no entanto, que se entendiam através de gestos secretos, pois, sem perguntar o que eu queria dele, o dugpa, de repente e sem intermédios, declarou-se de acordo em mostrar-me o que eu desejasse, mas eu deveria assumir e afirmar toda a responsabilidade, mesmo desconhecendo-a. Declarei-me - naturalmente – preparado de imediato. Para demonstrá-lo, eu deveria tocar a terra com minha mão esquerda, exigiu ele. Eu o fiz. Calado, ele andou um pouco à frente e nós o seguimos até que ele nos pedisse para nos abaixarmos. Nós nos posicionamos nas bordas de um levantamento do chão, similar a uma mesa. Se eu levava comigo um lenço branco? ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Ich suchte vergeblich in meinen Taschen, fand aber nur im Rockfutter eine alte, verblaßte, zusammenlegbare Karte von Europa (ich hatte sie offenbar die ganze Zeit meiner Asienreise bei mir getragen), breitete sie zwischen uns aus und erklärte dem Dugpa, die Zeichnung sei ein Bild meiner Heimat. Er wechselte einen raschen Blick mit meinem Führer, und wieder sah ich auf dem Gesicht des Tibeters jenen Ausdruck haßerfüllter Bosheit aufleuchten, der mir schon am Abend vorher aufgefallen war. Ob ich den Grillenzauber zu sehen wünschte? Ich nickte und war mir im Augenblick klar, was kommen würde: ein bekannter Trick – das Hervorlocken von Insekten aus der Erde durch Pfeifen oder dergleichen. Richtig, ich hatte mich nicht getäuscht; der Dugpa ließ ein leises, metallenes Zirpen hören (mit einem kleinen, silbernen Glöckchen, das sie versteckt bei sich tragen, machen sie das), und sofort kamen aus ihren Schlupfwinkeln im Boden eine Menge Grillen und krochen auf die helle Landkarte. Immer mehr und mehr. Unzählige. Ich hatte mich schon geärgert, wegen eines läppischen Kunststückes, das ich bereits in China oft genug gesehen hatte, einen so mühvollen Ritt unternommen zu haben, aber was sich mir jetzt darbot, entschädigte mich reichlich: die Grillen waren nicht nur eine wissenschaftlich ganz neue Spezies – daher an und für sich schon interessant genug –, sie benahmen sich auch höchst absonderlich. 170 Eu procurei inutilmente nos meus bolsos, mas encontrei no forro apenas um mapa velho e dobrável da Europa, (carregava-o devidamente comigo por toda a viagem na Ásia). Desdobrei-o entre nós e expliquei ao dugpa que o desenho mostrava o retrato de minha terra natal. Troquei um rápido olhar com meu guia e, novamente, vi na face do tibetano uma expressão de odiosa maldade, que já havia notado na noite anterior. Se eu gostaria de ver a magia do grilo? Concordei com a cabeça e, neste instante, tornou-se claro o que estava por vir: um truque conhecido – a provocação de insetos da terra através de apitos ou algo similar. Correto, eu não estava enganado; o dugpa deixou ouvir um gorjeio baixinho e metálico (produzido por um sino pequeno e prata comum, que eles carregam consigo) e imediatamente surgiram de seus esconderijos no chão vários grilos, arrastando-se sobre o mapa. Sempre mais e mais. Incontáveis. Já estava irritado, em decorrência desta obra de arte boba, que já havia presenciado vezes suficientes na China, e que me custara uma cavalgada tão laboriosa, mas o que se revelaria agora, compensou-a ricamente: os grilos não eram apenas uma espécie cientificamente nova -, o que já os tornava interessantes o suficiente -, como comportavam-se de modo muito estranho. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Kaum hatten sie nämlich die Landkarte betreten, liefen sie zuerst planlos im Kreise herum, dann bildeten sie Gruppen, die einander mißtrauisch musterten. Plötzlich fiel auf die Mitte der Karte ein regenbogenfarbener Lichtfleck (er stammte von einem Glasprisma, das der Dugpa gegen die Sonne hielt, wie ich mich rasch überzeugte), und ein paar Sekunden später war aus den bisher friedlichen Grillen ein Klumpen sich auf die schauderhafteste Weise gegenseitig zerfleischender Insektenleiber geworden. Der Anblick war zu ekelhaft, als daß ich ihn schildern möchte. Das Schwirren der tausend und abertausend Flügel gab einen hohen, singenden Ton, der mir durch Mark und Bein ging, ein Schrillen, gemischt aus so höllischem Haß und grauenvoller Todesqual, daß ich es nie werde vergessen können. Ein dicker, grünlicher Saft quoll unter dem Haufen hervor. Ich befahl dem Dugpa augenblicklich innezuhalten – er hatte das Prisma bereits eingesteckt und zuckte nur die Achseln. Vergebens bemühte ich mich, die Grillen mit einem Stock auseinander zu treiben: ihre wahnwitzige Mordlust kannte keine Grenzen mehr. Immer neue Scharen liefen herbei und türmten den zappelnden, scheußlichen Klumpen höher und höher – mannshoch. Auf weite Strecken war der Erdboden lebendig von wimmelnden, tollgewordenen Insekten. Eine weißliche, aneinandergequetschte Masse, die sich der Mitte zudrängte, nur von dem einen Gedanken beseelt: morden, morden, morden. 171 Mal tinham pisado no mapa, corriam anarquicamente e em círculos, depois formavam grupos, que compunham, entre si, um mosaico suspeito. De repente, no centro do mapa surgiu um foco de luz da cor do arco-íris (oriundo de um prisma de vidro, que o dugpa segurava contra o sol, surpreendendo-me violentamente) e, poucos segundos depois, os, até então pacíficos grilos, amontoavam-se de modo terrível no mapa, tornando-se corpos de insetos reciprocamente mutilados. A visão era mais nojenta do que eu jamais gostaria de descrever. O zumbido das milhões e milhares de asas resultava num tom alto, cantado, que me percorria pela medula até as pernas, um guincho, composto da mistura do ódio diabólico e da morte agonizante, que nunca mais poderei esquecer. Um suco denso e esverdeado escorria debaixo do monte. Eu pedi ao dugpa que parasse por um instante, ele já havia recolhido o prisma e apenas encolheu os ombros. Inutilmente, eu me esforcei em afastar os grilos com um pedaço de madeira: sua desvairada vontade de matar já não conhecia limites. Cada vez mais novos enxames corriam e escalavam nervosamente a massa contorcida, hedionda, mais e mais alta – da altura de um homem. Em uma grande área em meu entorno, o chão tornou-se vivo, repleto de insetos enlouquecidos. Uma massa esbranquiçada, esmagada, que pressionava seu centro, possuída por um único pensamento: matar, matar, matar. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Einige der Grillen, die halbverstümmelt von dem Haufen herabfielen und nicht mehr hinaufkriechen konnten, zerfetzten sich selbst mit ihren Zangen. Der schwirrende Ton wurde bisweilen so laut und grausig schrill, daß ich mir die Ohren zuhielt, weil ich es nicht mehr länger glaubte ertragen zu können. Gott sei Dank, endlich wurden der Tiere weniger und weniger, die hervorkriechenden Scharen schienen dünner zu werden und hörten schließlich ganz auf. ”Was macht er denn noch immer?“ fragte ich den Tibeter, als ich sah, daß der Dugpa keine Miene machte, aufzubrechen, vielmehr angestrengt seine Gedanken auf irgend etwas zu konzentrieren schien. Er hatte die Oberlippe hochgezogen, so daß ich seine spitzgefeilten Zähne deutlich sehen konnte. Sie waren pechschwarz, vermutlich von dem landesüblichen Betelkauen. ”Er löst und bindet“, hörte ich den Tibeter antworten. Trotzdem ich mir beständig vorsagte, daß es ja nur Insekten gewesen waren, die hier den Tod gefunden hatten, fühlte ich mich doch aufs äußerste angegriffen und einer Ohnmacht nahe, und die Stimme klang, als käme sie aus weiter Ferne her:”Er löst und bindet.“ 172 Alguns dos grilos que caíam semi-mutilados do monte e não conseguiam mais rastejar para cima feriam-se a si mesmos com suas pinças. O zumbido se tornou, então, tão alto e tão terrivelmente estridente que eu tapei meus ouvidos, porque pensava não conseguir mais suportá-lo. Graças a Deus, finalmente os animais foram diminuindo e diminuindo, o zumbido tornou-se mais fino e, de repente, parou por completo. — O que ele ainda está fazendo? — perguntei ao tibetano, quando vi que o dugpa não demonstrava ter intenção de parar, parecia esforçar-se em concentrar seus pensamentos em algo. Tinha levantado os lábios superiores, de modo que pude ver claramente seus dentes pontiagudos. Eles eram negros como a peste, provavelmente devido ao hábito desse povo de mascar betel. — Ele separa e une. — Ouvi o tibetano responder. Apesar de repetir para mim que se tratava apenas de insetos, eu havia encontrado a morte aqui e sentia meu exterior atacado e próximo a uma força interna, e a voz soava como se viesse de muito longe: “Ele separa e une”. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Ich begriff nicht, was das bedeuten sollte, und begreife es auch heute nicht; es geschah auch nichts weiter, was auffällig gewesen wäre. Warum ich trotzdem noch – vielleicht stundenlang, ich weiß es nicht mehr – sitzen blieb? Der Wille, aufzustehen, war mir abhanden gekommen, ich kann es nicht anders nennen. Allmählich sank die Sonne, und Landschaft und Wolken nahmen jene schreiend rote und orangegelbe unwahrscheinliche Färbung an, die jeder kennt, der einmal in Tibet war. Man kann den Eindruck des Bildes nur mit den barbarisch bemalten Zeltwänden europäischer Menageriebuden, wie man sie auf Jahrmärkten sieht, vergleichen. – Ich konnte die Worte nicht loswerden:”Er löst und bindet“; nach und nach bekamen sie etwas Schreckhaftes in meinem Hirn; – in der Phantasie verwandelte sich der zuckende Grillenhaufen in Millionen sterbender Soldaten. Der Alp eines rätselhaften, ungeheuerlichen Verantwortungsgefühls, das für mich um so folternder war, als ich in mir vergeblich nach seiner Wurzel suchte, würgte mich. Dann wieder schien es mir, als sei der Dugpa plötzlich verschwunden, und statt seiner stünde da – scharlachrot und olivgrün – die widerwärtige Statue des tibetischen Kriegsgottes. 173 Não compreendi o que isso deveria significar e ainda hoje não compreendo; também não aconteceu mais nada de relevante depois disso. Por que, ainda assim, – talvez por horas, eu não sei mais – permaneci sentado? A vontade de levantar me foi tomada, não consigo justificar isso de outro modo. Gradualmente, o sol se pôs e a paisagem e as nuvens adquiriram uma improvável coloração gritante avermelhada e laranja-amarelada, que só conhece aquele que foi ao Tibete. – A impressão desse quadro só pode ser comparada à das paredes rusticamente pintadas das camadas das Menageriebuden⁴, como aquelas que encontramos nas Jahrmärkten. - Eu não conseguia mais me livrar daquelas palavras: “Ele separa e une”; continuamente, elas se tornavam mais assustadoras na minha mente; - na fantasia, a massa espásmica de grilos transformava-se em milhões de soldados mortos. O ápice de um enigmático e monstruoso sentimento de responsabilidade tornou-se uma tortura para mim, sufocava-me e eu, inutilmente, tentava buscar sua raiz. Então, o dugpa parecia ter desaparecido e, ao invés de sua compleição, - vermelho-escarlate e verde-oliva – estava a estátua tibetana de um deus da guerra. _________________________________________________________________________________ 4 O termo Menageriebuden, de origem francesa, designa o estande no qual ocorria uma apresentação pública de várias espécies para apresentação pública. Isso podia ser visto nas feiras anuais ou quermesses. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Und ich kämpfte gegen den Anblick, bis ich die nackte Wirklichkeit wieder vor Augen hatte, aber es war mir nicht genug Wirklichkeit: die Erddünste, die aus dem Boden stiegen, die zackigen Gletschergipfel der Bergriesen am fernen Horizont,der Dugpa mit der roten Kappe, ich selbst in meinen halb europäischen, halb mongolischen Kleidern, dann das schwarze Zelt mit den Spinnenbeinen – alles konnte doch gar nicht wirklich sein! Wirklichkeit, Phantasie, Vision, was war echt, was Schein? Und mein Denken dazwischen immer von neuem auseinanderklaffend, wenn die drosselnde Angst vor dem unfaßbaren, fürchterlichen Verantwortungsgefühl wieder in mir aufstieg. Später, viel später – auf der Heimreise – wuchs die Begebenheit in meiner Erinnerung wie eine wuchernde Giftpflanze, die ich vergebens ausreißen will. Nachts, wenn ich nicht schlafen kann, dämmert leise in mir eine grauenhafte Ahnung auf, was der Satz bedeuten mag: ”Er löst und bindet“, und ich suche sie zu ersticken, daß sie nicht zu Wort kommen kann, so wie man ein ausbrechendes Feuer im Keim ersticken möchte. – Aber es hilft nichts, daß ich mich wehre – im Geiste sehe ich, wie aus dem toten Grillenhaufen ein rötlicher Dunst aufsteigt und zu Wolkengebilden wird, die sich, den Himmel verfinsternd wie die Schreckgespenster des Monsuns, nach Westen wälzen. – 174 E eu lutava contra a visão, até que apareceu, frente aos meus olhos, novamente a nua realidade: o pó da terra que voava do chão, os picos glaciais irregulares, as montanhas no horizonte, o dugpa com sua capa vermelha, eu mesmo com minhas roupas meio europeias, meio mongóis e, então, a tenda preta com suas patas de aracnídeo, tudo isto não poderia ser real! Realidade, fantasia, ficção, o que era real, o que era aparência? E, em meio a isso, meu pensamento divergia dele próprio à medida em que o medo inseparável e a terrível responsabilidade cresceu novamente em mim. Mais tarde, muito mais tarde - na viagem para casa – o medo cresceu na minha lembrança como uma planta venenosa que eu, inutilmente, quero arrancar. À noite quando não consigo dormir, soa baixinho e pavorosamente em meu interior a frase e o que ela deveria significar: “Ele separa e une.”, e eu procuro sufocá-la, para que ela não consiga tornar-se palavra, como quando queremos sufocar o fogo irrompido no Reno⁵ – Mas nada adianta para que eu me defenda – no espirito, vejo como a morta massa de grilos levanta uma poeira avermelhada, formando uma nuvem que se propaga no céu, como monções fantasmagóricas e assustadoras que valsam para o oeste. __________________________________________________________________________________ 5 O autor se refere aos episódios na guerra, em que se ateava fogo na região do Reno. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Und auch jetzt wieder, wo ich dies schreibe, überfällt's mich – ich – ich – – – –‹ Hier scheint der Brief plötzlich abgebrochen worden zu sein«, schloß Professor Goclenius; »leider muß ich Ihnen jetzt mitteilen, was ich auf der chinesischen Gesandtschaft über das unerwartete Ableben unseres lieben Kollegen Johannes Skoper im fernen Asien ...« Der Professor kam nicht weiter; ein lauter Schrei der Herren unterbrach ihn: »Unglaublich, die Grille lebt ja noch, jetzt nach einem Jahr! Unglaublich! Einfangen! Sie fliegt davon!« rief alles wild durcheinander. Der Forscher mit der Löwenmähne hatte das Fläschchen geöffnet und das anscheinend tote Insekt herausgeschüttelt. Einen Augenblick später war die Grille zum Fenster hinausgeflogen in den Garten, und die Herren rannten in ihrem Eifer, sie einzufangen, an der Tür den greisen Museumsdiener Demetrius, der ahnungslos hereinkam, um die Lampe anzuzünden, beinahe über den Haufen. Kopfschüttelnd sah ihnen der Alte durch das Gitterfenster zu, wie sie draußen mit Schmetterlingsnetzen umherjagten. Dann blickte er zum dämmernden Abendhimmel empor und brummte: »Was in der schrecklichen Kriegszeit doch die Wolken für merkwürdige Formen annehmen! Da sieht jetzt eine wieder mal ganz so aus wie ein Mann mit einem grünen Gesicht und roter Kappe; wenn er die Augen nicht so weit auseinanderstehen hätte, wäre es fast wie ein Mensch. Wahrhaftig, man könnte noch abergläubisch werden auf seine alten Tage.« 175 E agora, novamente, quando eu escrevo isto, cai sobre mim, eu – eu – eu ---.” — A carta aqui parece ter sido interrompida bruscamente. — Concluiu o professor Goclenius — Infelizmente, devo contar aos senhores o que a embaixada chinesa comunicou-me da morte inesperada do nosso querido colega Johannes Stoper na longínqua Ásia. --O professor não seguiu em frente, pois um grito alto, vindo dos senhores, o fez parar: — Incrível, o grilo ainda vive, mesmo após um ano! Incrível! Apanhem-no! Ele está escapando! — exclamou de modo selvagem e confuso. O pesquisador com a juba de leão abrira o pequeno frasco e derramara o inseto aparentemente morto. Um instante mais tarde, o grilo saíra pela janela afora e, em seu entusiasmo para apanhá-lo, os senhores quase atropelaram na porta o zelador do museu, Demetrius que, sem saber de nada, entrava no salão para acender a luz. Sacudindo a cabeça, o velho os observava pela janela gradeada, como tentavam caçar para lá e para cá, munidos com redes de borboletas. Então, mirou o crepúsculo no céu noturno e murmurou: — Como nestes tempos terríveis de guerra as nuvens adquirem formas estranhas! Ali tem uma que é igualzinha a um homem com um rosto verde e capa vermelha; se seus olhos não fossem tão separados, seria quase um homem. Realmente, ainda poderíamos ser tão supersticiosos como nos velhos tempos. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 176 Referências Bibliográficas Edição de Das Grillenspiel utilizada para a tradução MEYRINK, Gustav. “Das Grillenspiel”. In: Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Band VI. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1917. pp. 66-87. Edição de Das Grillenspiel utilizada nesta revista MEYRINK, Gustav. “Das Grillenspiel”. In: Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch.. Disponível em: http://gutenberg.spiegel.de/buch/flederm-5684/9. Dicionários utilizados GRIMM, Jakob und Wilhelm. Deutsches Wörterbuch. Göttingen: Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, 1998-2014. Rheinisches Wörterbuch. Göttingen: Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, 2002-2014. Bibliografia LALOU, M. Les Relions du Tibet. Paris: Presses Universitaires de France, 1957. LOPEZ, D. Religions of Tibet in Practice. Princeton: Princeton University Press, 2007. MEYRINK, G. Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Band VI. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1917. TUCCI, G. Die Religionen Tibets und der Mongolei. Stuttgart: Kohlhammer, 1970. ULRICH, B – ZIEMANN, B. Krieg im Frieden: die umkämpfe Erinnerung an den Ersten Weltkried: Quellen und Dokumente. Frankfurt: Fischer Taschenbuch, 1997. Thiago Andreuzzi Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP. Contato: [email protected] ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 178 Os mendigos Introdução Edward John Moreton Drax Plunkett (24 de Julho de 1878, Londres – 25 de Outubro de 1957, Dublin), 18º Barão de Dunsany, foi um escritor irlandês do fim século XIX e primeira metade do século XX. Seus escritos convergem muito com os escritos do Fantástico, tendo ajudado a consolidar o estilo no século XX, encontrando seguidores como H. P. Lovecraft, J.R.R., Tolkien, C. S. Lewis e outros. Destes, Lovecraft dedicou, a Dunsany, algumas páginas, de seu livro O Horror Sobrenatural em Literatura1, repletas de admiração: Insuperável na feitiçaria da prosa cantante cristalina e supremo na criação de um mundo adorável e langoroso de cenários exóticos iridescentes [...] cujas histórias e peças curtas formam um elemento quase único em nossa literatura. Na citação, é possível observar a importância do irlandês para o escritor estadunidense, que o compara a Poe na sensibilidade a “valores dramáticos e ao significado de palavras e detalhes isolados, e muito melhor equipado retoricamente com um estilo lírico simples, baseado na linguagem da Bíblia do Rei James”2. Lord Dunsany foi veterano da Guerra dos Bôeres e da 1ª Guerra Mundial, deixou uma obra bastante vasta de onde se destacam suas peças para teatro e seus contos e novelas. Entre seus escritos, podemos citar, entre outros, The Gods of Pegana (1905), A Dreamer’s Tale (1910), The Book of Wonder (1912), A Night at na Inn (1916), etc. ____________________________________________________________________________________________________________________________________ 1 LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em Literatura. Trad. de Celso M. Paciornik, São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 115. 2 Ibidem, p. 116. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 The Beggars3 I was walking down Piccadilly not long ago, thinking of nursery rhymes and regretting old romance. As I saw the shopkeepers walk by in their black frockcoats and their black hats, I thought of the old line in nursery annals: “The merchants of London, they wear scarlet.” The streets were all so unromantic, dreary. Nothing could be done for them, I thought — nothing. And then my thoughts were interrupted by barking dogs. Every dog in the street seemed to be barking — every kind of dog, not only the little ones but the big ones too. They were all facing East towards the way I was coming by. Then I turned round to look and had this vision, in Piccadilly, on the opposite side to the houses just after you pass the cab-rank. Tall bent men were coming down the street arrayed in marvelous cloaks. All were sallow of skin and swarthy of hair, and most of them wore strange beards. They were coming slowly, and they walked with staves, and their hands were out for alms. ______________________________________________________________ 3 Disponível em: ____http://www.flashfictiononline.com/fpublic0030-beggars-lord-dunsany 179 Os Mendigos Eu estava descendo a rua Piccadilly4 não há muito tempo, pensando em rimas infantis e lamentando o velho romance. Quando eu vi os lojistas a caminhar por aí em seus sobretudos pretos e seus pretos chapéus, pensei no velho verso das coletâneas infantis: “Os mercadores de Londres, eles vestem escarlate”. As ruas estavam tão desromantizadas, melancólicas. Nada poderia ser feito por elas, eu pensei – nada. E então meus pensamentos foram interrompidos por cães ladrantes. Todos os cães na rua pareciam estar latindo – todo tipo de cão, não apenas os pequeninos, mas também os grandões. Eles estavam encarando o leste, o caminho por onde eu vinha. Então, eu me virei para olhar e tive esta visão, na Piccadilly, do lado oposto das casas, assim que você passa o ponto de táxi. Homens altos e curvados estavam vindo rua abaixo envoltos em capas maravilhosas. Todos tinham um amarelo doentio na pele e cabelos escuros, e a maioria deles ostentava estranhas barbas. Eles vinham vagarosamente, e eles caminhavam com cajados, e suas mãos se estendiam pedindo esmolas. _______________________________________________________________ Uma das principais (e maiores) ruas de Londres, onde se localiza a “Mayfair”, um centro comercial. 4 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 All the beggars had come to town. I would have given them a gold doubloon engraven with the towers of Castile, but I had no such coin. They did not seem the people to who it were fitting to offer the same coin as one tendered for the use of a taxicab (O marvelous, ill-made word, surely the pass-word somewhere of some evil order). Some of them wore purple cloaks with wide green borders, and the border of green was a narrow strip with some, and some wore cloaks of old and faded red, and some wore violet cloaks, and none wore black. And they begged gracefully, as gods might beg for souls. I stood by a lamp-post, and they came up to it, and one addressed it, calling the lamp-post brother, and said, “O lamp-post, our brother of the dark, are there many wrecks by thee in the tides of night? Sleep not, brother, sleep not. There were many wrecks an it were not for thee.” 180 Todos os mendigos vieram à cidade. Eu lhes teria dado um dobrão de ouro gravado com as torres de Castela, mas eu não tinha tal moeda. Eles não pareciam pessoas a quem fosse cabível oferecer a mesma moeda que se usaria para pagar o táxi (Ó palavra maravilhosa, malfeita, certamente a senha de alguma ordem maligna em algum lugar). Alguns deles vestiam capas púrpuras5 com largas bordas verdes, e a borda verde era uma faixa estreita em alguns, e alguns vestiam capas de um velho e desbotado vermelho, e alguns vestiam capas violetas, e nenhum vestia preto. E eles mendigaram graciosamente, assim como deuses possivelmente mendigam por almas. Eu fiquei perto de um poste de luz, e eles surgiram para ele, e um se lhe dirigiu, chamando o poste de luz de irmão, e disse, “Ó poste de luz, nosso irmão do escuro, há muitos naufrágios ao teu redor nas marés da noite? Não durmas, irmão, não durmas. Houve muitos naufrágios, e não foram por ti.” _____________________________________________________________ 5Segundo o dicionário online www.dictionary.com, a cor púrpura se relaciona com um alto nível de hierarquia: “3. The rank or office of a cardinal” e “5. Imperial, regal, or princely rank position”. Pode-se conferir também a segunda entrada: “2. Cloth or clothing of this hue, especially as formerly worn distinctively by persons of imperial, royal, or other high rank”. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 It was strange: I had not thought of the majesty of the street lamp and his long watching over drifting men. But he was not beneath the notice of these cloaked strangers. And then one murmured to the street: “Art thou weary, street? Yet a little longer they shall go up and down, and keep thee clad with tar and wooden bricks. Be patient, street. In a while the earthquake cometh.” “Who are you?” people said. “And where do you come from?” “Who may tell what we are,” they answered, “or whence we come?” And one turned towards the smoke-stained houses, saying, “Blessed be the houses, because men dream therein.” Then I perceived, what I had never thought, that all these staring houses were not alike, but different one from another, because they held different dreams. And another turned to a tree that stood by the Green Park railings, saying, “Take comfort, tree, for the fields shall come again.” 181 Isso foi estranho: eu não havia pensado na majestade da lâmpada de rua e sua longa vigília sobre os homens à deriva. Mas ela não passava despercebida a esses estranhos de capa. E então um deles murmurou para a rua: “Estás cansada, rua? Por algum tempo ainda eles vão subir e descer, e manter-te coberta com piche e tijolos de madeira. Sê paciente, rua. Logo o terremoto vem.” “Quem são vocês?” as pessoas disseram. “E de onde vocês vieram?” “Quem pode dizer o que somos,” eles responderam, “ou de onde nós viemos?” E um deles voltou-se para as casas manchadas de fumaça, dizendo, “Abençoadas sejam as casas, porque homens sonham dentro delas.” Então eu percebi o que eu nunca havia pensado, que todas estas fitantes casas não eram semelhantes, mas diferentes umas das outras, porque elas sustinham diferentes sonhos. E um outro se voltou para uma árvore que ficava em pé próxima ao cercado do Green Park6, dizendo, “Fique tranquila, árvore, pois os campos voltarão uma vez mais.” ____________________________________________________________ 6 Parque que acompanha boa parte da rua Piccadilly. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 And all the while the ugly smoke went upwards, the smoke that has stifled Romance and blackened the birds. This, I thought, they can neither praise nor bless. And when they saw it they raised their hands towards it, towards the thousand chimneys, saying, “Behold the smoke. The old coalforests that have lain so long in the dark, and so long still, are dancing now and going back to the sun. Forget not Earth, O our brother, and we wish thee joy of the sun.” It had rained, and a cheerless stream dropped down a dirty gutter. It had come from heaps of refuse, foul and forgotten; it had gathered upon its way things that were derelict, and went to somber drains unknown to man or the sun. It was this sullen stream as much as all other causes that had made me say in my heart that the town was vile, that Beauty was dead in it, and Romance fled. Even this thing they blessed. And one that wore a purple cloak with broad green border, said, “Brother, be hopeful yet, for thou shalt surely come at last to the delectable Sea, and meet the heaving, huge, and travelled ships, and rejoice by isles that know the golden sun.” Even thus they blessed the gutter, and I felt no whim to mock. 182 E ao mesmo tempo a feia fumaça ia para cima, a fumaça que havia sufocado o Romance e empretecido os pássaros. Isto, eu pensei, eles não podem louvar nem abençoar. E, quando eles a viram, levantaram suas mãos em direção a ela, para as milhares de chaminés, dizendo, “Observa a fumaça. As antigas florestas de carvão, que dormiram tanto tempo nas trevas, e ainda assim permanecem, agora estão dançando e voltando para o sol. Não te esqueças da Terra, ó nossa irmã, e nós te desejamos a felicidade do sol.” Havia chovido, e uma correnteza desmotivada caía de uma sarjeta suja. Ela viera de montes de lixo, asquerosos e esquecidos; havia juntado por seu caminho coisas que estavam abandonadas e que foram para sombrios esgotos desconhecidos do homem e do sol. Foi esta taciturna corrente, tanto quanto todas as outras causas, que me fizeram dizer, em meu coração, que a cidade era vil, que a Beleza estava morta nela, e o Romance fugiu. Até esta coisa eles abençoaram. E um deles, que usava uma capa púrpura com larga borda verde, disse, “Irmã, mantém a esperança, pois tu com certeza chegarás, por fim, ao deleitável Mar, e encontrarás os pesados, enormes, e viajados navios, e regozijar-te-ás por ilhas que conhecem o dourado sol.” Assim, eles abençoaram a sarjeta, e eu não senti ânimo para caçoar. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 And the people that went by, in their black unseemly coats and their misshapen, monstrous, shiny hats, the beggars also blessed. And one of them said to one of these dark citizens: “O twin of Night himself, with thy specks of white at wrist and neck like to Night’s scattered stars. How fearfully thou dost veil with black thy hid, unguessed desires. They are deep thoughts in thee that they will not frolic with colour, that they say ‘No’ to purple, and to lovely green ‘Begone.’ Thou hast wild fancies that they must needs be tamed with black, and terrible imaginings that they must be hidden thus. Has thy soul dreams of the angels, and of the walls of faëry that thou hast guarded it so utterly, lest it dazzle astonished eyes? Even so God hid the diamond deep down in miles of clay. 183 E os transeuntes que iam, em suas capas inconvenientes e seus disformes, monstruosos, brilhantes chapéus, também os abençoavam os mendigos. E um deles disse a um desses cidadãos escuros: “Ó próprio gêmeo da Noite, contigo estão manchas brancas no pulso e pescoço como as dispersas estrelas da Noite. Como temerosamente tu escondes com o preto teus ocultos, indecifráveis desejos. Eles são pensamentos profundos em ti que não se alegram com a cor, que eles dizem ‘Não’ para o roxo, e, ao amável verde, ‘vá embora’. Tu tens selvagens fantasias que precisam ser domadas com o preto, e terríveis imaginações que devem assim ser escondidas. Tem a tua alma sonhos dos anjos, e das muralhas do mundo das fadas que tu guardaste tão inteiramente, por temor ao ofuscamento de olhos atônitos? Assim Deus escondeu o diamante fundo em milhas de barro. “The wonder of thee is not marred by mirth. “A maravilha de ti não é danificada pelo júbilo. “Behold thou art very secret. “Olhe, tu és muito secreto. “Be wonderful. Be full of mystery.” “Sê maravilhoso. Sê cheio de mistério.” Silently the man in the black frock-coat passed on. And I came to understand when the purple beggar had spoken, that the dark citizen had trafficked perhaps with Ind, that in his heart were strange and dumb ambitions; that his dumbness was founded by solemn rite on the roots of ancient tradition; that it might be overcome one day by a cheer in the street or by some one singing a song, and that when this shopman spoke there might come clefts in the world and people peering Silenciosamente, o homem de sobretudo preto passou. E eu vim a entender, quando o mendigo púrpuro havia falado, que o cidadão escuro tinha provavelmente traficado com a Índia, que em seu coração havia ambições estranhas e mudas; que sua mudez foi fundada pelo rito solene nas raízes da tradição antiga; que isto talvez seja superado, um dia, por um estímulo na rua ou por alguém cantando uma canção, e que quando este vendedor tiver falado, fendas no mundo ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 ancient tradition; that it might be overcome one day by a cheer in the street or by some one singing a song, and that when this shopman spoke there might come clefts in the world and people peering over at the abyss. Then turning towards Green Park, where as yet Spring was not, the beggars stretched out their hands, and looking at the frozen grass and the yet unbudding trees they, chanting all together, prophesied daffodils. A motor omnibus came down the street, nearly running over some of the dogs that were barking ferociously still. It was sounding its horn noisily. And the vision went then. 184 da tradição antiga; que isto talvez seja superado, um dia, por um estímulo na rua ou por alguém cantando uma canção, e que quando este vendedor tiver falado, fendas no mundo poderiam vir e as pessoas espiariam, de cima, o abismo. Então, se voltando para o Green Park, onde ainda não era primavera, os mendigos estenderam as mãos e, olhando para a grama congelada e para as árvores ainda sem brotos, eles, cantando todos juntos, profetizaram os narcisos. Um ônibus motorizado veio rua abaixo, quase atropelando alguns dos cães que ainda latiam ferozmente. Ele foi soando a sua buzina ruidosamente. E então a visão se foi. ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Referências bibliográficas Edição de The Begggars utilizada para a tradução DUNSANY, Lord. The beggars. In: A Dreamer’s Tales. Disponível em: http://www.gutenberg.org/cache/epub/8129/pg8129.html Edição de The Beggars utilizada nesta revista DUNSANY, Lord. The beggars. In: A Dreamer’s Tales. Disponível em: http://www.gutenberg.org/cache/epub/8129/pg8129.html Bibliografia LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural em Literatura. Trad. de Celso M. Paciornik São Paulo: Iluminuras, 2007. DUNSANY, Lord. Los Mendigos. Disponível em: http://elespejogotico.blogspot.com.br/2009/08/los-mendigos-lord-dunsany.html SHAKESPEARE, William. Macbeth. Grã Bretanha: Penguin Popular Classics: Penguin Books, 1994. SHAKESPEARE, William. Macbeth. Disponível em: http://www.elivros-gratis.net/livros-gratis-william-shakespeare.asp 185 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 Créditos das imagens Capa; p. 3; p. 21; p. 26; p. 35; p. 38; p. 44; p. 56; p. 59; p. 68; p. 72; p. 85; p. 87; p. 96; p. 109; p. 117; p. 132; p. 136; p. 144; p. 148; p. 151: Fotos da Arcádia do IEL, por Ana Maria F. Côrtes. p. 17: Foto da Arcádia do IEL, por Elisa Pagan. p. 19: (TEMPO NO ESPELHO) Gravura “Portret van Gillis van Breen”(s/d), de Hendrick Goltzius. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/explore-the-collection/overview/hendrick-goltzius/objects#/RP-T-2000-1,3. p. 23: (HÁBITO) Pintura "Nu feminino de costas" (1894), de Eliseu Visconti. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ivan.htm. p. 37: (TRIANGULO DE ACRÍLICO SOBRE PRAIA)Fotografia “Sand und Brandung” (2006), de Tobias Rütten. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sand_und_Brandung.jpg. p. 40/43: (TRAVESSIA) Desenho “Leading to the sea shore” (2007), de Jessica Murrieta. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jessica-m/1264648652/. p. 50: (O CONCEITO DE KLEOS EM ILÍADA E OS LUSÍADAS) Pintura "O Navio de Vasco da Gama" (c1880), de Ernesto Casanova. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vasco_da_Gama%27s_ship.jpg. p. 53: (O CONCEITO DE KLEOS EM ILÍADA E OS LUSÍADAS) Pintura “A Fúria de Aquiles” (1737), de Charles Antoine Coypel. Disponível em: http://pt.wahooart.com/@@/8Y37Q8-Charles-Antoine-Coypel-F%C3%BAria-de-Aquiles-(3). p. 57: (RUGAS) Foto sem nome (s/d), de Roberto Barresi. Disponível em: http://pixabay.com/pt/soro-fisiol%C3%B3gico-o-ch%C3%A3o-rachado-seca-99597/. p. 58: (O CANTADOR) Desenho SEM NOME (2014), de Elisa Pagan. p. 84: (LAVOURA ARCAICA: O INCESTO COMO SÍMBOLO AMBIVALENTE) Gravura “Hibiscus and blue heron on a tree stump (1782), de Matsumura Goshun. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hibiscus_and_blue_heron_on_a_tree-stump.jpg. 186 ARCÁDIA | Nº 1 | 2014 187 p. 86 (A EXISTÊNCIA NÃO VENCE EM TEU PEITO) Gravura: “Solo (Melancholia)” (1881), de Cyprian Kamil Norwid. Disponível em: http://fbc.pionier.net.pl/owoc/results?queryType=6&query=%22rysunek%22&hostsId=n8&roleId=type&action=DistributedSearchAction&QI=07229D60A413C003A0E1A562463F03A 1-7 p. 99: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchus” (1510-1515), de Leonardo da Vinci. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Julius_Kronberg_Bacchanal.jpg. p. 103: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchanal” (1710-1720), de Alessandro Magnasco e Clemente Spera. Disponível em: http://it.wikipedia.org/wiki/Bacco_(Leonardo)#mediaviewer/File:Jean.jpg. p. 108: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchanal” (1921), de Julius Kronberg. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alessandro_Magnasco_and_Clemente_Spera_-_Bacchanal_-_Google_Art_Project.jpg. p. 111: (NOITE QUENTE) Foto “Cigarrete 1” (2007), de Sheilla Tostes. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/sheilatostes/1304332796/. p. 135: (LANIFÍCIOS TEJO LDA.) Foto "Empresa Lanifícios Tejo Lda - 1889", de Pedro Calixto. Disponível em: http://www.panoramio.com/photo/21525662. p. 146/147: (CRIAÇÃO/VERMELHO) Pintura “Sunset” (s/d), de Adelsteen Norman. Disponível em: http://f-picture.net/fp/3652e98d96684f25adab42a972d8eb2d.