nº1
arcádia
revista de literatura e crítica literária
Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária
Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP
Arcádia: Revista de Literatura e Crítica Literária é uma revista-laboratório do curso de Estudos Literários do Instituto de Estudos da
Linguagem da UNICAMP. É uma publicação eletrônica, de submissão aberta, publicada anualmente pelos alunos de graduação do
Departamento de Teoria Literária, mas aceita contribuições de toda a comunidade, independente de filiação institucional ou formação
acadêmica. Arcádia publica textos de criação literária (prosa ou poesia), textos críticos (resenhas, artigos ou ensaios) sobre obras literárias
ou relacionadas à teoria, à crítica e à história literária, e traduções em uma dessas áreas.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Reitor: José Tadeu Jorge
Vice-Reitor: Alvaro Penteado Crósta
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
Diretora: Matilde Virgínia R. Scaramucci
Diretor-Associado: Flávio Ribeiro de Oliveira
COORDENAÇÃO DE GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
Marcos Aparecido Lopes
Jefferson Cano
COMISSÃO EDITORIAL
Ana Maria Côrtes
Elisa Pagan
Jessica Sallasa
Júlia Mota
Laís Calusni
Luísa Alvarenga
Thaís Soranzo
Índice | 2014
crítica literária
A vingança de Diónysos: uma análise do
prólogo d’As Bacantes Lidiane Garcia
Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo
ambivalente
Marcella
Abboud
Tempus
tradução
O Truque do grilo [Das Grillesnpiel], de Gustave Meyrink, traduzido
por Júlia Ciasca
Os Mendigos [The beggars], de Lord Dunsany, traduzido por
Thiago Andreuzzi
fugit: o mecânico e o orgânico no Manifesto
Futurista Matheus Romanetto O conceito
de Kleos em Ilíada e Os Lusíadas Odorico
Leal Prosa, poesia e linguagem em Giorgio
Agamben Fernanda Valim Na contramão:
Toda Poesia - Paulo Leminski Ricardo
Gessner
Jogos Vorazes e a romantização
do universo distópico Ana Maria Côrtes
Romances expressos e amores em Ithaca
Road Elisa Pagan
A reelaboração dos
jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita
Jessica Sallasa
criação literária
A existência não vence em teu peito Rogério Sáber Alquimia,
Criação, Vermelho Victor Simões Cantador, Rugas João Miguel
Moreira Empresa Laníficios Tejo LDA Daniel Serrano Finalmente
me tornei um poeta contemporâneo, Triângulo de Acrílico sobre
Praia João Gabriel Mostazo Hábito Tiago Donoso Humanizador
Thiago Andreuzzi In Memorian Matuyama Noite Quente Pedro
Couto Quatro Ventas Suene Honorato Tempo no Espelho Rodrigo
de Faria Travessia Fábio Mariano
Fernanda Valim
Doutoranda em Estudos Literários na UFMG, tendo realizado seu mestrado e graduação em Letras pela
UNICAMP. É professora da Faculdade Interdisciplinar de Humanidades da Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri (Diamantina-MG).
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
4
Prosa, Poesia e Linguagem em Giorgio Agamben
resumo
Este ensaio esboça uma tentativa inicial de (re)pensar o lugar
que a linguagem ocupa nas reflexões do filósofo italiano Giorgio
Agamben, revisitando alguns conceitos de seu pensamento, em
especial os de prosa e poesia, a partir dos ensaios-fragmentos
que constituem Ideia da Prosa (1999) e o “O fim do Poema”,
capítulo que integra Categorie Italiane (2010). Contando com o
amparo teórico da leitura de outras obras do autor é acrescida à
discussão central uma série de tematizações relacionadas e que
contribuem para reflexões teóricas ao campo dos estudos
filosóficos e literários.
Pensar as categorias conceituais da prosa e da poesia
em Giorgio Agamben é, antes de tudo, estabelecer
questionamentos que passam necessariamente pela questão
da narratividade de sua obra e ainda pela reflexão sobre qual
a escrita/escritura promovida pelo autor italiano. É notório o
fato de que as discussões que envolveriam o lugar da prosa e
da poesia nesse contexto apontam ainda para uma outra
questão fundamental que diz respeito ao lugar da linguagem
no pensamento de Giorgio Agamben. Com o objetivo de
promov
promover um diálogo que aponte para o desenvolvimento
desta questão central - igualmente cara ao pensamento do
filósofo -, partimos das discussões promovidas nos ensaiosfragmentos de Ideia da Prosa e o “O fim do Poema”, capítulo
que integra Categorie italiane1, além do estudo de outras
obras, tais como A Linguagem e a morte2, Estâncias3 e do
capítulo IX, de A comunidade que vem4.
Ao longo das leituras que percorrem o pensamento
agambeniano, parece não haver distinção precisa entre
pensamento e linguagem e a importância do que é
pensado/dito ao leitor torna-se também indissociável da
forma escolhida para dizê-lo. Logo no prefácio de Ideia da
Prosa, João Barrento aponta para essa qualidade
inclassificável do discurso do autor, e para as potencialidades
da linguagem dessa espécie de "prosa reflexiva-narrativapoética nascida para a modernidade"5 - nem literatura, nem
filosofia convencional - e que mais se aproximaria da bela
imagem de "um jardim de muitos canteiros em que se
semeiam ideias esperando que daí nasça alguma coisa"6.
jjjjjjjjjj
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1 AGAMBEN,
Giorgio. Categorie Italiane. Studi di poética e di letteratura. Bari: Laterza, 2010.
Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
3 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
4 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby. In: A comunidade que vem. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993.
5 BARENTO apud AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.10.
6 Ibidem, p.10.
2 AGAMBEN,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
De fato, depois dos poemas em prosa de Baudelaire, da prosa
filosófica de Nietzsche e de Imagens de pensamento7 de
Walter Benjamin, há muito nesses ensaios-fragmentos que
permanecem mesmo na ordem do não dito e que apontam
verdades como enigmas do homem moderno. Como propõe
Barrento, a única forma legítima de escrita parece ser aquela
capaz de imunizar o leitor contra a ilusão de verdade8.
Em Ideia da prosa, Agamben parte da tensão
estabelecida entre prosa e poesia, e a questão central parece
ser a tentativa de estabelecer algum critério demarcatório
possível e reconhecível para a diferenciação de tais gêneros
ou instâncias. Agamben parte da tese de que a poesia viveria
na tensão e no contraste entre som e sentido, entre unidades
sonoras (ou gráficas) e unidades semânticas, ou ainda, entre
a série semiótica e a série semântica. É curioso notar que o
termo "série semiótica" não aparece de fato no texto de Ideia
da prosa, mas somente em texto posterior, mais
especificamente em “O fim do poema”. O que teria motivado
o autor a incluir este termo – que ampliaria a noção de
linguagem aparentemente por ele mobilizada – ao tratar
novamente da temática comentada? Esta é uma questão
pontuada ao longo das leituras e que nos parece significativa
parala
5
para a compreensão do lugar ocupado pela linguagem no
pensamento do autor.
Nesse contexto, a possibilidade do que Agamben
denominou de enjambement constitui o único critério que
permitiria distinguir a prosa da poesia. Dessa forma,
consideraríamos como poesia o discurso poético no qual o
enjambement existe. O enjambement seria um complemento
do sentido de um verso no verso seguinte: a
oposição/desconexão entre um limite métrico e um limite
sintático; entre o ritmo sonoro e o sentido; uma pausa
prosódica e uma pausa semântica. Nicolò Tibino, no século
XIV, definiu o termo da seguinte maneira: “Com efeito,
muitas vezes ocorre que, finda a consonância, o sentido da
oração ainda não chegou ao fim”9. De acordo com Agamben, o
enjambement traria “à luz o andamento originário, nem
poético, nem prosaico, mas, por assim dizer, bustrofédico da
poesia, o essencial hibridismo de todo discurso humano”10. A
possível ausência do enjambement constituiria um verso com
enjambement zero, como aconteceria com frequência, por
exemplo, nos poemas de Petrarca, utilizados pelo autor para
ilustrar seu comentário.
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____
7 BENJAMIN, Walter. Imagens de Pensamento/Sobre o haxixe e outras drogas. Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
8 Ibidem, p.15.
9 TIBINO apud AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. In: Cacto. 1. Trad. de Sérgio Alcides. São Paulo, 2002.
10 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.32.
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Agamben propõe uma primeira consequência dessa
condição do poema, nessa disjunção entre som e sentido, que
seria a importância decisiva do fim do verso - lugar da
versura -, termo latino que designa o lugar em que o arado dá
a volta no fim do campo. A versura constituiria o cerne do
verso - cuja manifestação é o enjambement - e se orientaria
ao mesmo tempo para duas direções opostas, para trás
(verso) e para diante (prosa). Seria, inclusive, uma
suspensão, uma hesitação entre o sentido e o som. Mas o que
aconteceria no ponto em que o poema finda, ou seja, na
última estrutura formal perceptível de um texto poético?
Esta outra questão será levantada pelo autor em “O fim do
poema”, tendo em vista que no ponto em que o poema finda,
a oposição entre um limite métrico e um limite semântico já
não é mais possível e o enjambement também não é mais
pensável. Segue-se, a partir das considerações anteriores,
que, se o verso se define precisamente através da
possibilidade do enjambement, o último verso de um poema
não é um verso.
Walter Benjamin e Dante Alighieri são citados por
Agamben como observadores da significativa questão da
finalização do poema, como se este, enquanto estrutura
fomall
6
formal, não pudesse ou devesse findar, já que implicaria
“esse impossível poético que é a coincidência exata de som e
sentido”11. Talvez, algumas problematizações poderiam ser
possíveis, como espécies de jogos de linguagem capazes de
colocar tais conceitos em atividade. Vejamos o exemplo a
seguir:
... seis três
nove ...
seis três
três ...
seis três
dois ...
Poderíamos classificar o texto anterior como uma
espécie de poema ou de prosa? Haveria presença ou ausência
de enjambement? Caso observemos atentamente, existiria
nele uma sonoridade (a própria sonoridade das palavras
através da disposição dos grafemas) em tensão com um
sentido (a soma dos números do primeiro verso resulta o
número do segundo verso; a subtração dos números do
terceiro
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Giorgio. O fim do poema. In: Cacto. 1. Trad. de Sérgio Alcides. São Paulo, 2002.
11 AGAMBEN,
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terceiro verso resulta no do quarto; e a divisão dos números
do quinto, resulta no número expresso no último verso).
Poderíamos atestar a presença do enjambement, uma vez que
o sentido dos versos se dá a partir do verso subsequente,
indicando, portanto, que estaríamos diante de um poema. No
entanto, qualquer leitor mais experiente ou um estudioso
mais aguçado logo desconfiaria da criação do texto esboçado
acima, podendo criar outras conjecturas e conceitos para
manifestar sua discórdia em relação ao gênero em questão,
ou ao menos em relação à qualidade estético-literária do
suposto poema.
O que os conceitos problematizados por Agamben
poderiam esclarecer sobre alguns poemas concretos, como o
seguinte? Qual seria sua versura? Poderíamos pensar num
fim de verso efetivo para o poema em questão? Ou ainda,
poderíamos considerá-lo uma prosa ao invés de um poema?
7
Giro, Marcelo Moura
Obviamente, o tratamento questionador dado ao
poema concreto de Marcelo Moura é apenas uma
provocação para que pensemos as categorias expostas pelo
autor de maneira curiosa e não redutiva12. Ao final de ambos
oos textos,
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12 A discussão sobre os conceitos mobilizados por Agamben nos remetem ao conhecido texto Como reconhecer um poema ao vê-lo, de Stanley Fish, no qual o
___
autor cria uma brincadeira com seus alunos, sem que eles a saibam, fazendo com que o grupo interprete uma disposição específica de palavras – que
semanticamente apontavam para referências da Idade Média, tema da aula em questão – como se elas, em sua totalidade, representassem de fato um poema
em sua forma e composição. Após uma série de hipóteses interpretativas para o texto criado, o autor problematiza a questão dos supostos limites
interpretativos, motivando uma série de reflexões interessantes. FISH, Stanley. Como reconhecer um poema ao vê-lo. In: PaLavra 1. Rio de Janeiro: PUC,
1993, p. 156-165.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
os textos, Agamben parece apontar mais categoricamente
para a necessidade e a existência mútua da prosa e da poesia,
para um “essencial hibridismo de todo discurso humano”13.
No texto-fragmento “Ideia da cesura”14, o autor segue a
discussão, passando agora a refletir sobre o ritmo do poema.
A cesura seria a pausa/silêncio/quebra no ritmo do verso; a
interrupção do transporte rítmico do poema; o elemento que
faz parar o lance métrico da voz; a palavra pura e a
interrupção anti-rítmica necessária, como nos diz Hölderlin.
Agamben utiliza-se do simbolismo da imagem de um cavalo
que transporta o poeta: o cavalo seria a voz, o elemento
sonoro e vocal da linguagem, e o poeta seria o logos que torna
a voz inteligível e clara. Através do jogo simbólico com esta
imagem, em dois exemplos distintos, o autor faz com que a
ideia de cesura do verso possa indicar não mais unicamente a
noção de suspensão rítmica do poema, mas também uma
suspensão do movimento do cavalo e uma suspensão do
próprio pensamento (do ato de pensar). A razão, portanto,
estaria no humano, simbolizado pela figura do cavaleiro, e o
cavalo seria a voz que o logos tornaria inteligível.
8
Agamben, a partir da analogia com o conceito de
cesura na métrica em poesia, dá voz ao pensamento de
Hölderlin, comentando suas anotações à tradução do Édipo
Rei, de Sófocles. Haveria no trágico, de acordo com o poeta e
tradutor alemão, a predominância de um equilíbrio entre os
episódios. O transporte trágico (que para Aristóteles, na
Poética, seria a reviravolta/peripécia) se daria pela cesura,
pela quebra do ritmo e do movimento aparente da tragédia, a
dividiria em duas partes desiguais: tanto em Édipo quanto
em Antígona, Hölderlin observa que a cesura é introduzida
pela palavra e intervenção divinatória de Tirésias,
personagem mediador do mundo dos homens e do todo do
cosmos.
Em Édipo, a ruptura do ritmo da tragédia se daria
justamente no momento em que, através das palavras de
Tirésias, o protagonista toma consciência de si (de ter
cometido incesto e de ser o assassino do próprio pai). A
partir daí, a questão da circularidade temporal - de um
suposto ritmo criado pelos deuses - é rompida e o
personagem do início da tragédia, rei de Tebas, passa a ser
incompatível com a figura final da peça, o homem exilado
que tirou sua própria
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13 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p.32.
_____
14 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da cesura. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 34-36.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
incompatível com a figura final da peça, o homem exilado
que tirou sua própria visão. O início e o fim da tragédia
tornam-se, assim, irreconciliáveis. Em Antígona, é Tirésias
quem avisa Creonte sobre seu futuro infortúnio e este é
também o momento de redenção tardia do personagem, já no
final da tragédia, e que culminará na morte da protagonista.
Hölderlin afirma que “Como ponto de inflexão, a cesura
é onde a tensão entre a forma e o conteúdo se supera na
presença de uma esfera mais elevada e portadora de
equilíbrio”15. A cesura se estabelece como signo autoreferente da articulação do divino e do humano, pela pura
palavra (o silêncio) ou mesmo pelo momento indizível da
consciência de si.
Finalizando “O fim do poema”, Agamben escreve a
seguinte passagem:
Wittgenstein escreveu certa vez que “a filosofia deve-se
apenas propriamente poetá-la” [Philosophie dürfte man
eigentlich nur dichten]. Talvez a prosa filosófica, ao fazer-se
como se o som e o sentido coincidissem no seu discurso, se
arrisque a decair na banalidade, se arrisque portanto a
falta
9
faltar com o pensamento. Quanto à poesia, pode-se dizer,
ao contrário, que está ameaçada por um excesso de tensão
e de pensamento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein,
que “a poesia deve-se apenas propriamente filosofá-la”.
Do mesmo modo que para Wittgenstein o discurso
filosófico, no seu intento de se distinguir do discurso poético,
acaba anunciando o seu próprio fim prosaico, Agamben, no
seu intento de distinguir o discurso poético do prosaico,
acaba anunciando o próprio fim do discurso poético. O modo
como Agamben parece nublar as fronteiras entre o filosófico
e o literário aproxima-se, num certo sentido, da discussão de
autores que exerceram influência notória em seus estudos,
procurando igualmente desconstruir a tradição metafísica e
essencialista dominantes no discurso filosófico. Nesse
movimento desconstrucionista, autores como o austríaco
Ludwig Wittgenstein e o franco-argelino Jacques Derrida
acabaram sugerindo – tanto no estilo de se pensar
filosoficamente quanto no de expressar esse pensamento
através de uma escrita filosófica - uma impossibilidade de
distinção entre o filosófico e o literário.
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15 HÖLDERLIN apud CASTRO, Claudia Maria de. Deleuze, Hölderlin, e a cesura do tempo. In: Revista O que nos faz pensar, nº22, maio de 2007, p. 9.
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O modo como Derrida desconstrói as fronteiras entre
literatura e filosofia fica caracterizado pelo reconhecimento
de rastros ficcionais em todo tipo de escritura. De fato, como
assinalou Haddock-Lobo a partir da leitura do artigo de
Elizabeth Duque-Estrada, “A literatura é a coisa mais
interessante do mundo, talvez mais interessante que o
mundo”:
O que se entende, então, por uma espécie de estrutura do
literário em geral rege-se de acordo com uma lógica do não
aparecimento que se define pelo fato de que toda narrativa,
todo relato, ficcional ou não, é uma relação com aquilo que
ela narra. Nesta relação, tanto o relato, a narrativa, quanto
o relatado, o que é narrado, não aparecem em sua presença
efetiva. O que Beth herda de Derrida nesta “teoria da
literatura” é a constatação de que este não aparecimento
estrutural não é exclusividade da literatura, mas de todo
relato, constituindo uma espécie de “ficcionalidade
constitutiva” de todo discurso16.
10
Talvez não coincidentemente Agamben dedique o
fragmento “Ideia do pensamento”17 a Jacques Derrida,
afirmando que “todo acto de pensamento acabado, para o ser
– ou seja, para poder referir-se a qualquer coisa que está fora
do pensamento –, deve dissolver-se inteiramente na
linguagem”, nos remetendo também à própria discussão
sobre a linguagem, citação e tradução, especialmente da obra
Torres de Babel. Em “Ideia do Único”18, no qual Agamben
discute a questão do bilingüismo na poesia, é retomada a
questão da experiência da língua, que pressupõe as palavras,
mas a língua falada por nós são seria única, estaria presa na
série infinita das metalinguagens e, nessa experiência, o
homem ficaria sem palavras diante da linguagem. A língua
para a qual não teríamos palavras seria justamente a língua
da poesia e ao poeta cumpriria o papel de recordar e
preencher o suposto vazio da vã promessa de propor ou
encontrar nela um sentido19.
A mesma ausência de fronteiras rígidas entre os
discursos filosóficos e literários parece ser sugerida pelo
cach
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16 HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido: a filosofia a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: NAU; Ed. PUC-Rio, 2011, p.159 e 174.
17 AGAMBEN, Giorgio. Ideia do pensamento. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 101-103.
18 AGAMBEN, Giorgio. Ideia do Único. In: Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 39-42.
19 AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução, prefácio e notas João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1999, p. 40-42.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
estilo terapêutico-aforístico de pensar desenvolvido pelo
filósofo Ludwig Wittgenstein, na qual o filosófico e o literário
tornam-se, de fato, inseparáveis. A postura crítica do autor
diante da grande teoria e da ambição totalizante que é
normalmente identificada com a filosofia é representada na
conclusão do Tractatus pelo aforismo “Sobre aquilo de que
não se pode falar, deve-se calar”20. Reconhece, sensatamente,
a existência de aporias metafísicas e éticas que nenhuma
discussão, explicação ou argumentação lógico-racional seria
capaz de justificar ou fundamentar. E é justamente a
pretensão do discurso filosófico de adentrar racionalmente
nesse domínio do que não pode ser dito, mas apenas
mostrado, o que faz da “filosofia” wittgensteiniana uma
“antifilosofia” que se propõe a determinar em que
circunstâncias a filosofia deve questionar-se a si mesma,
impondo-se limites. Isso não significa que esse domínio do
não dito – do inefável – não possa se deixar mostrar por
exempl
11
outras formas não racionalizadoras de linguagem, como é o
caso de certas encenações artísticas da linguagem: “Há por
certo o inefável. Isso se mostra, é o Místico”21. O modo como
Wittgenstein tenta resolver problemas filosóficos, a
tendência anticonclusiva no modo de praticar sua
investigação seria mais adequadamente adjetivada de
“estética”, seja pela disposição criativa de exemplos ao longo
especialmente de sua obra póstuma, seja ainda pelas
imagens selecionadas, com suas parataxes e “repentinos
arroubos de fé”22. É justamente este estilo estético não
racionalizante, anti-dogmático e anti-conclusivo que
caracteriza igualmente, numa primeira aproximação, a
filosofia agambeniana.
A possível aproximação tensional, por vezes
controvertida, estabelecida neste ensaio especialmente entre
Wittgenstein e Derrida leva em conta tentativas mais
abrangentes, já realizadas, como é o caso da apresentada
pelo
_______________________________________________________________________________________________________________________________________
_____
20 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010,
TLP – 7.
21 Ibidem, TLP - 6.522.
22 BOUVERESSE apud PERLOFF, Marjorie. A Escada de Wittgenstein: a Linguagem poética e o Estranhamento do Cotidiano. Trad. de Elisabeth Rocha Leite;
Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p.36.
ARCÁDIA | Nº 1 |2014
pelo crítico Henry Staten23, que argumenta especialmente em
favor do fato de que ambos os filósofos rejeitam a
determinação transcendental do ser, bem como a noção de
que seja possível existir qualquer coisa fora do domínio da
linguagem. Stanley Cavell, um dos críticos fundamentais para
os estudos sobre Wittgenstein, recuperando o antigo debate
e a crítica de Derrida a J. Austin, manifestou-se com clareza
sobre essa questão24. Como apontou Marjorie Perloff25, a
existência de homologias entre os pensamentos de
Wittgenstein e Derrida não exclui, em hipótese alguma, a
existência de diferenças irreconciliáveis entre suas reflexões
filosóficas, tais como a questão da fala/escrita, da base
ontológica das formas de vida e daquela referente ao fato de
Wittgenstein ter tido pouca influência no trabalho de
Derrida.
12
A passagem anterior, em que Agamben estabelece uma
comparação entre o discurso filosófico e o discurso literário,
nos remete a uma outra citação, agora de autoria de Walter
Benjamim, na qual o autor apresenta uma concepção de
temporalidade que parece se aproximar daquela que
perpassa o pensamento filosófico agambeniano. Benjamin,
no seu texto Paris, capital do séc. XIX, conclui:
Desta época é que se originam as passagens e os interiores,
os salões de exposição e os panoramas. São reminiscências
de um mundo onírico. A avaliação dos elementos oníricos à
hora do despertar é um caso modelar de raciocínio
dialético. Por isso é que o pensamento dialético é o órgão
do despertar histórico. Cada época não apenas sonha a
seguinte, mas, sonhando, se encaminha para o seu
despertar. Carrega
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
Henry. Wittgenstein and Derrida. Lincoln: University of Nebraska Press, 1986.
24 “Subjacentes à oposição contra a voz metafísica, que eu acho que Austin e Wittgenstein compartilham com Derrida, existem todas as diferenças entre os
mundos das tradições das filosofias anglo-americana e continental, diferenças entre suas concepções de (e entre suas relações com) ciência, arte, cultura,
religião, educação, leitura, cotidiano. Enquanto Derrida e Wittgenstein vêem a metafísica e o cotidiano como ligados por contrastes, em Derrida, de forma
diferente do que ocorre em Nietzsche e em Platão, a filosofia guarda uma determinada realidade, uma vida cultural, intelectual e institucional autônoma, o que
em Wittgenstein não existe”. CAVELL, Stanley. A Pitch of Philosophy, Autobiographical Exercises. Cambridge; Londres: Harvard University Press, 1994, p. 63.
25 PERLOFF, Marjorie. A Escada de Wittgenstein: a Linguagem poética e o Estranhamento do Cotidiano. Trad. de Elisabeth Rocha Leite; Aurora Fornoni
Bernardini. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 32.
23 STATEN,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
despertar. Carrega em si o seu próprio fim e – como
Hegel já o reconheceu – desenvolve-o com astúcia. Nas
comoções da economia de mercado, começamos a
reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia
antes mesmo que desmoronem26.
A presença tutelar também do pensamento
Benjaminiano na vasta obra de Agamben é evidente, neste
caso, não apenas por trazer no próprio título – Ideia da Prosa
– seu programa, apontando para uma aparente indistinção
de fundo entre linguagem e pensamento, mas talvez por nos
conduzir a uma aproximação sobre o lugar da linguagem no
pensamento de ambos os autores. A Ideia da prosa, nesse
sentido, representaria uma utopia de linguagem, a própria
língua experienciada, na qual, hipoteticamente, todos se
entenderiam, apontando para uma impossibilidade de
existência de uma língua pura, universal e transparente.
lindaaa
13
Assim como as ruínas reconhecidas por Benjamin a
partir do olhar sob os edifícios modernos, o conhecimento
hermenêutico, para Agamben, seria uma ocupação com as
ruínas do sentido e seus enigmas. Ambos os fragmentos
parecem carregados de uma visão que se afasta tanto da
lógica clássica aristotélica, cujas leis postulam a
impossibilidade das coexistências e contradições, quanto do
pensamento dialético mais ortodoxo. Eliminam-se aqui tanto
as oposições/polaridades categóricas, quanto a ideia de uma
tese e uma antítese remeterem a uma síntese: interior e
exterior passam a integrar-se mutuamente, como no
exemplo matemático de uma faixa de Möbius, expressa a
seguir através de uma gravura de Escher27. Parece não haver
também uma linearidade, nem histórica nem temporal, mas,
ao contrário, uma mudança significativa na concepção da
temporalidade, o que será interessante, em certo sentido,
para pensarmos a noção de cesura, retomada por Agamben.
jjjj
________________________________________________________________________________________________________________________________________
26 Grifos nossos. BENJAMIN. Walter. Paris, die Hauptstadt des XIX. Jahrhunderts. In: Gesammelte Schriften. v. 5, pt. 1. Org. por Rolf Tiedemann. Frankfurt:
____
Suhrkamp Verlag, 1982, p. 43.
Apesar de ter em mente que outras citações de W. Benjamin poderiam clarificar sua evidente presença na obra de G. Agamben, como suas Teses sobre o
conceito da história, por exemplo, o trecho em questão torna perceptível a aproximação do pensamento dos autores, em especial sobre uma aparente
concepção de linguagem, ao discutir a questão de ato e potência não como uma oposição, mas como uma coexistência (Ideia do estudo). Nesse sentido, para
Agamben, toda potência é impotência e esta noção anfíbia acaba transitando entre o sim e o não e corroborando com a imagem que temos na citação de
Benjamin, a permanência da tensão, da latência, da coexistência.
27Gravura “Swans” (1956), de Maurits Cornelis Escher. Disponível em: http://www.mcescher.com/Gallery/gallery-recogn.htm.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Em Infância e História28, o autor afirma ser “na
linguagem e através da linguagem que o homem se constitui
como sujeito” e a linguagem de cada indivíduo pertenceria à
comunidade com quem convive, pois a infância instauraria
nela a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o
semântico, entre o sistema de signos e o discurso. Isso
indicaria ser o sujeito da linguagem o fundamento da
linguagem
14
experiência. Assim como a origem da linguagem se
manifestaria na infância do homem, para o filósofo italiano
seria improvável pensarmos na existência de um sujeito prélinguístico,
pois
infância
e
linguagem
estariam
intrinsecamente relacionadas. Como afirmou André Dick29,
parece-nos que a infância, para Agamben, seria o início da
profanação e da descoberta da linguagem - principalmente a
poética - e carregaria o sentido de toda uma existência.
Já no capítulo IX de A Comunidade que vem, intitulado
“Bartleby”, Agamben retoma a discussão do modo como se
daria a passagem da potência ao acto. A potência suprema
seria aquela que poderia se dar enquanto potência e
impotência. Retomando Aristóteles, o pensamento seria a
potência pura (isto é, também potência de não pensar) e é
comparado a uma pequena tábua de escrever na qual nada
está escrito (a célebre tabula rasa)30. Agamben propõe ser
“graças a esta potência de não pensar que o pensamento
pode virar-se para si próprio (para sua própria potência) e
ser, no seu auge, pensamento do pensamento”31.
_______________________________________________________________________________________________________________________________________
28
_______
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.56.
29 DICK, André. Poesia e linguagem em Giorgio Agamben. Disponível em: http://unisinos.br/blog/ihu/2009/02/19/poesia-e-linguagem-em-giorgio-agamben.
30 AGAMBEN, Giorgio. Bartleby. In: A comunidade que vem. Trad. de António Guerreiro. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.34.
31 Ibidem, p.35.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Dessa forma, o ato perfeito de escrita proveria não de
uma potência da escrita, mas de uma impotência que se
realiza como um ato puro. A figura de Bartleby é citada
justamente como este “escrivão que não deixa simplesmente
de escrever, mas prefere não”32, representando a figura
extrema de quem escreve sua potência de não escrever.
Aliado a esta arqueologia da potência é importante
pontuar o modo como Giorgio Agamben, partindo do
discurso linguístico de Benveniste (semântica da
enunciação), coloca a língua como o lugar do evento de uma
subjetividade, já que a primeira pessoa do discurso
simbolizaria aquilo que há de mais singular, vazio e genérico.
Agamben convoca o processo, a desconstrução/embate
do/com (o) eu e, nesse lugar, nos apresenta a
impossibilidade de dizer “eu”. Portanto, ao refletirmos sobre
que sujeito seria esse de que fala o filósofo, passaríamos
necessariamente da noção de corpo às sensações e
seguiríamos para além do “eu”, através da linguagem da Voz.
15
Em Estâncias33, retomando novamente o pensamento
de Walter Benjamin, em sua Origem do drama barroco
alemão34, Giorgio Agamben explora o tema da melancolia,
recuperando este conceito a partir do sentimento
condenatório imposto pela religião, passando por um
clássico texto de Freud35, Luto e Melancolia, sobre o assunto
até iniciar um diálogo com o conceito de “fantasma”,
sobretudo a partir da análise de uma obra de Dante (Vita
Nuova): “Nesse misto entre poesia e prosa, o poeta esquece
que nunca possui Beatriz – mas lamenta sua perda. Essa
perda do ‘fantasma’ que nunca possuiu indica uma
melancolia particular [...] A imagem – ou o fantasma da
melancolia – é gerada a cada instante de acordo com o
movimento ou a presença de quem a contempla”36. Para
Agamben, entre a percepção da imagem e o reconhecer-se
nela haveria um intervalo que os poetas medievais
denominavam amor: poesia e amor são lugares da
negatividade evidente para o filósofo. A descoberta do amor
como rreal e fantasmagórico também o coloca como
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
32 Ibidem, p.35.
__
33 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
34 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.
35 Freud, Sigmund. Luto e Melancolia. Trad. de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
36 DICK, André. Poesia e linguagem em Giorgio Agamben. Disponível em:
http://unisinos.br/blog/ihu/2009/02/19/poesia-e-linguagem-em-giorgio-agamben.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
como irreal e fantasmagórico também o coloca como
inalcançável. Dessa forma, o “fantasma” remeteria à
melancolia, a qual, por sua vez, indicaria a voz negativa da
morte, bastante explorada em A linguagem e a morte.
O motivo de retomarmos brevemente este panorama
da melancolia e do fantasma da linguagem para Agamben
torna-se significativo para compreendermos de que maneira,
em A linguagem e a morte, o autor propõe – partindo das
leituras de Hegel, de Heidegger e Derrida – que a voz seria a
própria representação negativa da morte. Retomando as
discussões sobre a metafísica para esses autores, o filósofo
italiano parece apresentar não o seu fim, mas uma fusão ou
aproximação à própria linguagem, o que enriquece a
proposta do ensaio.
Giorgio Agamben reivindica o problema da Voz como
questão metafísica fundamental para a discussão sobre a
linguagem e a morte, e como estrutura originária da
negatividade. Retomando o conceito de enunciação para
Benveniste, o autor relembra que ela não deve ser
confundida
16
confundida com um simples ato de fala37. Nesse contexto, a
dimensão da palavra “ser” seria aquela do “ter-lugar da
linguagem, e metafísica é aquela experiência da linguagem
que, em cada ato de fala, colhe o abrir-se desta dimensão e,
em todo dizer, tem, antes de mais nada, experiência da
maravilha que a linguagem seja”38. Mas o que, na experiência
do evento da linguagem, lançaria algo na negatividade? Na
tentativa de resposta a esta questão, Agamben se posiciona
afirmando que “a enunciação e a instância de discurso não
são identificáveis como tais senão através da voz que as
profere”39. O problema da voz passa a ser, portanto, a
dimensão ontológica fundamental do pensamento do autor:
ela mostra-se como “pura intenção de significar, como puro
querer-dizer”40. O ser é e está na voz e não é simplesmente
um mero fluxo sonoro emitido pelo aparelho fonador
humano: a voz animal, por exemplo, poderia ser associada ao
mero som e ser o índice de quem a emite, mas não remeteria
à instância de discurso, nem à esfera da enunciação, como faz
questão de pontuar Agamben. Assim, “o ter lugar da
linguagem
________________________________________________________________________________________________________________________________________
37AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p.43.
_____
38 Ibidem, p. 44.
39 Ibidem, p. 52.
40 Ibidem, p. 53.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
linguagem entre suprimir-se da voz e o evento de significado
é a outra Voz [...] que na tradição metafísica, constitui a
articulação originária da linguagem humana”41 e constitui
necessariamente uma dimensão negativa de pura
temporalidade, “aquilo que articula a voz humana em
linguagem é uma pura negatividade”42.
Num certo momento de seu seminário sobre a
negatividade, Agamben afirma que a experiência poética
parece coincidir com a experiência da linguagem da filosofia:
o elemento métrico-musical, diz ele, mostra o verso como
lugar de uma memória e de uma repetição. O verso informanos que as palavras já aconteceram e que retornarão ainda,
que a instância de palavra que nele tem lugar é, portanto,
inapreensível43. Musa seria justamente o nome dado pelos
Gregos a esta experiência da inapreensibilidade do lugar
originário da palavra poética. Assim, proferir a palavra
poética significaria ser “possuído pela Musa”, ter experiência
do lugar originário da palavra implícita em todo falar
humano44. Agamben retoma Platão, justificando o motivo de
ter ele considerado a musa da filosofia como “a verdadeira
musa”, apontando, assim, a questão que se prolonga desde
sempre entre poesia e filosofia, já que ambas tentam
apreender o inacessível lugar original da palavra e,
igualmente
17
igualmente, mostram este lugar como inencontrável. Nas
palavras do autor:
A filosofia, que nasce exatamente como tentativa de liberar
a poesia da sua inspiração, consegue, afinal, reter a própria
Musa, para fazer dela, como espírito, o seu próprio sujeito;
mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das
Negative), e a voz mais bela, que segundo Platão, compete à
Musa dos filósofos, é uma voz sem som. (Por esta razão,
talvez, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a
prosa possa jamais levar a cabo por si a própria empresa
milenar. Talvez apenas uma palavra na qual a pura prosa
da filosofia interviesse, a certa altura, rompendo o verso da
palavra poética na qual o verso da poesia interviesse, por
sua vez, dobrando em anel a prosa da filosofia seria a
verdadeira palavra humana)45.
Pensamos ser esta uma maneira considerável de
encerrar este breve ensaio reflexivo, atentando novamente
para o modo extremamente particular com que Giorgio
Agamben promove a discussão e a dissolução categórica
entre os limites da filosofia e da literatura, mostrando-se um
autor verdadeiramente limítrofe ao se situar nesta
interseção.
________________________________________________________________________________________________________________________________________
41 Ibidem, p. 56.
42 Ibidem, p. 57.
43 Ibidem, p.107.
44 Ibidem, p.107.
45Ibidem, p.108.
Rodrigo de Faria
Arquiteto e Urbanista, Mestre e Doutor em História pelo IFCH-UNICAMP, Pós-Doutorado pela FAU-
USP e pela ETSAM-UP Madri. Professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
Brasília (FAU-UnB), e Pesquisador do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade –
CIEC/UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
19
O
Ruído do pensamento
Rompe a
Razão
Resiste ao seu desejo
Reluta e
Relativiza
Recriando o pensar
Recomeça o
Revelar
Retorna ao seu lugar
Reforça a Respiração
Regulando a sua intenção
Retilínea e
(ir)regular
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
20
Um poema branco
Escrito com letras brancas
Na página branca do livro que não tem palavras
Mas apenas folhas brancas
Ainda está por ser escrito.
A próxima página branca
Quer a tinta negra que exala do seu pensamento
Quer a tinta vermelha que escorre do seu corpo
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
21
Nos livros que leio
Nos livros que odeio
Nos poemas que creio
Nos versos que anseio
Na palavra que não veio
Na letra como meio
Escrevo sem por que
Escrevo sem pensar
Escrevo pra dizer
Que os livros que não leio
Não tenho coragem de abrir
Que nos livros que não leio
Não tenho coragem de entrar
Tiago Donoso
É graduado em Letras Vernáculas pela UEL e mestrando em Teoria Literária pela UNICAMP. Trabalha
como secretário na ANPOLL.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
23
Hábito
Você se esqueceu de me vestir. Não vê que aos poucos tornome transparente? Por que troco de roupa? Por que você me
vê tantas vezes no quarto, sempre me trocando, e trocando, e
trocando? É uma deflagração religiosa, é meu confessionário.
Porém, era você quem deveria trocar-me, dar-me roupas,
dizer a mim – quem poderia fazê-lo, eu? – que aquela roupa
me assenta, que aquela outra roupa não sou eu; que sim, que
estou pronta para existir, que posso voltar a apaixonar-me
por mim mesma... Troquei você por uma música, por outros,
por roupas que eu mesma vesti, porém os momentos não
existem. Você não me reconhece? Você não me reconhece. E,
contudo, pedi; pedi que me provasse seu amor todos os dias,
mas você considera um capricho da vontade o ato de dar
atenção. Dar atenção, para você, é um esforço penoso sobre
todos os outros. A atenção é um segredo que você não quer
contar, e quão irritado não fica quando tento extraí-lo? Seu
amor, ou seu extravio relapso, a atenção, me são
imprescindíveis. Porém, eu não preciso amar. A palavra
amor, quando sai dos meus lábios, é apenas um pedido. E,
aliás, o que haveria de errado? A palavra conceder não é
estritamente feminina? Talvez você não me ame mais. Mas
sei que não sou uma desconhecida para você, porque se a
fosse, você me desejaria. Mas pedi tão pouco! Concedi, e você
nunca imaginou que a concessão tem seu repuxo? Você se
xxx
afoga em meu oceano feminino, e sua única saída para a total
incompreensão em que se encontra é fingir desinteresse,
encarnar o cansaço, representar toda a dignidade da
indiferença – e estranha lógica a sua, a de que a indiferença é
superioridade. Você pensa que não quer participar do meu
mundo, quando na verdade o que faz é exaltar sua
incapacidade. Vi você alardear que quem é bom é também
mau, porém não pode conceber que quem concede pode
também pedir? – eu compreendo que minto, que sou também
você quando te nego... Quando no fundo te pedi tão pouco!
Sua confusão é memorável, e quando não choro sobre ela é
dela que rio: você crê que quero segurança; não é você quem
quer segurança, quando se vicia em palavras que encaixotam
o mundo, manufaturando pílulas? Segurança? Proteção?
Relacionamento? Ah... Você tenta dizer que o oceano é
natural enquanto se afoga. Pedi que me trouxesse roupas e,
sem entender, era apenas isso que poderia fazer. Eu existo
com símbolos; cada presente que você me dá é uma oferta a
uma divindade, divindade que não sou eu, embora eu a
represente. Traga-me roupas todo o tempo, é como se eu te
ofertasse indicações. Cada vez que me traz um presente, é
uma chance de olhar a fechadura do absurdo que sou eu, sua
mulher. Mas você acha apenas que se livrou de um dever.
Isso não é assustador, eu o compreendo: foram os homens
que
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
quem conseguiram, no alto de sua impassibilidade, queimar
animais para Deus em gestos anestesiados. Deus tampouco é
digno de sua atenção. Você não entende. Dão-se flores apenas
para as mulheres e para os mortos. Nós temos sgredos... E
pedi apenas para que me vestisse... Pedi à costureira que me
fizesse roupas que eu, sozinha, não poderia vestir ou despir.
Não vê você que são tristes todas as incontáveis vezes que
uma mulher, para prender ou livrar os seios, deve tatear-se
às costas, como uma habituada cega? Não vê as melancólicas
omoplatas apontando sob o tecido da pele? E não vê que
deveria ser você quem me daria as minhas costas? É isso o
que é um homem, a parte da mulher que ela não pode ver. É
você quem me dá as minhas costas e eu duvidaria de seu
amor se você não amasse minhas vértebras – se não as
tornasse as escadas dos teus dedos – e o meu avesso, e a
minha bunda, e a minha nuca. Não vê que para existir devo
existir também onde não me vejo? Não preciso de sua
segurança, de sua hombridade; preciso apenas lutar, e lutar
muito, porque desconfio de mim mesma. Não sou capaz de
amor. Quer a prova? Aqui está: sou também incapaz de tédio.
Uma mulher entediada é uma mulher que enlouquece. Traio,
sim. Eu o traí! E por quê? De certa maneira, para poder
conjugar verbos. Preciso existir, preciso de seu carinho
noturno, porque se você não toca a minha pele – eu não
quero
24
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
quero teu sórdido desejo, sintoma de sua total
incompreensão – ela aos poucos desaparece. Preciso de
roupas, mas preciso também da pele do meu corpo. Ela
existe? Minha pele existe? Ela tem a cor que deve, que as
peles devem ter? Devo queimá-la de sol, oferecê-la a você – e
a todos os homens – para que em troca vocês digam: é pele, e
está aí? Preciso das palavras, também. Não tenho seu filho
em mim e estou vazia, porém assim sou. Se o espaço é uma
das formas do vácuo, outra é a mulher. Você, que me
despreza, – desejo, piedade, desprezo; é preciso que você
escolha uma entre essas emoções, sabendo que o que você
sente é também o que é, e quem sentiria por você? Você, que
me despreza, saiba que sou sua salvação; a fonte de tuas
orações, do teu amor; do teu desespero; a forma encarnada
do teu caos; o monumento que pensou construir, e que
abdicou sabiamente pelas minhas formas que te enganaram
tanto que nunca pensou seriamente no fato de que não eram
imutáveis senão quando já principiavam a mudar. Eu sou seu
totem absurdo, agora saiba: você ora para o vazio, você ama
o vazio. E é o vazio fundamental de um buraco negro o que
transforma retas em curvas, cores que indicam veneno. A
porta dos imensos arabescos, que levava à nossa casa, você
se lembra? Entrava-se e, ao pedir licença ao dono da casa –
acreditavam que era você o dono, quando, na verdade, falava
25
e procurava meu consentimento –, logo se ouvia o eco, essa
espécie de espelho sonoro. E os visitantes sentavam-se nas
cadeiras curvas, enroscadas de primaveras e cigarras mortas.
Em seguida, olhavam-me – ignoro se você notava, isso não
me era importante. Olhavam-me, e então eu me sentia
diferente. Existia mais uma vez, porém, agora era distinto:
como se o visitante me chamasse por outro nome e esse
nome me assentasse. Descobria agora meu outro nome, que
seu companheiro amistoso me emprestava e que era oriundo
de sua infância, de uma sua vizinha, há muito tempo
esquecida e que desaparecera de seu mundo, deixando
apenas um rastro, essa nomenclatura empoeirada. E esse
nome me possuía, ou melhor, para que eu não caia em
engano mais uma vez: eu possuía esse outro nome, tão
íntimo, e tão impróprio... Em casa, pedia apenas para que
você me vestisse, mas saiba agora que não preciso de suas
roupas. Saiba agora que nunca falei com você. Eu sou o
círculo; você é o adubo mudo, a jornada rápida do camareiro.
Você tem a existência, porém, não sabe o que fazer dela. Eu
sou a fêmea da existência, a concavidade. Sem mim você
encarna a inutilidade da arte, dos grandes engenhos, da
impaciência – formas de fugir de mim para me encontrar. Já
vi – entre meus inúmeros amantes – o artista. Ninguém foi
mais patético. Eu o assistia com um sutil e malévolo riso
interno.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
interno. Era risível: todas as vezes que criava parava para
masturbar-se. Era como se chorasse. Seu membro era uma
prova de que toda arte era um equívoco, um desvio de
conduta. E eu esparramava-me, a mim e ao meu sorriso –
meu sorriso desenhava úteros dentados – pelo sofá,
esperando que falasse. Cada palavra, então, me enchia um
pouco, e eu me abria, lançava aromas de flor e de pântano no
quarto, bem aos poucos, numa obediência obscena e
controlada – ah, nunca fui assim com você?! Talvez porque
você não me tenha merecido. Eu era o vazio aberto, o oco que
ele desejava. Então, abria meu olho, meus lábios, e
pronunciava qualquer coisa que não me interessava. Mas se
ele, por outro lado, me pedisse um pouco do meu gosto
salgado e do meu sublime vazio sem que houvesse
participado – como quem crê que elabora – de todo o ritual
em homenagem ao nada, então principiaria nossa minúscula
guerra. E ele, que crê que a guerra é seu território, não veria
que era eu quem transformava lágrimas em munição. Nem
ele nem você nunca notaram. Eu sou a reconhecedora de
talentos, a que se subleva, a insurreta que exalta os feios e os
caprichos – quantas vezes precisarei dizer que não amo, que
não preciso amar? Amar não faz parte de meu obstinado oco,
e não preciso da beleza senão em mim; a beleza alheia é uma
roupa que visto: logo não me servirá mais. Meu ciúme o
prova,
26
prova, quero possuir seu amor: me nomeie quem deseja o
que possui? Você acreditava, seriamente, que quando eu
gemia: “Ai, amor”, estava a dizer que o amava? Ou conseguiu
compreender que eu mencionava aquilo que você me
oferecia? Nunca! Não te obedeço! Dê-me a existência, e com
ela povoarei o mundo com outros seres introvertidos. Agora,
que nos abandonamos, usarei vez ou outra as roupas que
você me deu, junto com as cartas, suas e dos outros, e os
animais – meus irmãos de caos – que você reduziu a clichês
de pelúcia. E não me toque demais! Tenho saudades de
apodrecer lentamente com as cascas da fruta. Onde estava
com a cabeça quando pedi que me vestisse? Tire suas mãos
de mim, só a mulher tem mãos humanas. Gravatas, golas,
cintos, cadarços: a arte de vestir-se é para vocês a evolução
do nó, prima civilizada da arte do enforcamento. E saiba que
sofro sempre para me despir, porque a nudez é minha
penúltima transparência. E que no fundo não disse a verdade
– posso ainda me arrepender? Assim me visto: meu hábito é
ser cruel comigo mesma.
Ana Maria Côrtes
Cursa Letras no Instituo de Estudos da Linguagem (IEL), na UNICAMP.
Contato: [email protected].
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
28
Capital de treze distritos unidos que trouxe paz e
prosperidade a seus cidadãos”. A realidade nos distritos,
porém, pouco se alterou com a formação do novo Estado e, o
que talvez seja mais importante, a população não se deixou
convencer pela doutrina da Capital.
Subjugado e explorado, o povo de Panem organizou
um levante que ficou conhecido como os Dias Escuros, cujo
resultado foi a manutenção do poder pela Capital, que
destruiu o décimo terceiro distrito e elaborou novas leis,
mais severas, com o objetivo de garantir a ordem nos doze
restantes. Além disso, “como uma lembrança anual de que os
Dias Escuros jamais deveriam se repetir”, criou os Jogos
Vorazes, competições nas quais dois jovens de cada distrito,
O romance se constrói, a partir daí, com base em
um garoto e uma garota, com idade entre 12 e 18 anos, eram
referências que vão desde a mitologia grega e a história da
sorteados e compulsoriamente arrastados a um campo de
Roma Antiga até os clássicos da ficção científica, como 1984 e
batalha do qual somente um deles sairia com vida. Como se
Admirável mundo novo.
Panem surgiu das cinzas, após uma guerra sangrenta
não fosse suficiente, o governo ainda decidiu transmitir os
pela sobrevivência, em uma América do Norte devastada por
Jogos Vorazes para toda a Panem, transformando a morte
calamidades naturais semelhantes àquelas que vêm sendo,
anual de 24 de seus mais jovens cidadãos em um espetáculo
nas últimas décadas, prenunciadas por ambientalistas das
televisivo, mostrando o extremo a que o culto aos reality
mais diversas partes do globo. “O resultado”, de acordo com a
shows e à exposição intensa de nossas vidas privadas pode
propaganda de seu governo, “foi [...] uma resplandecente
chegar. Os Jogos Vorazes representam, na narrativa, a
nidu
ljgljhyvljvh
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Jogos Vorazes, de autoria
da
escritora
e
roteirista
americana Suzanne Collins, é o
primeiro romance de uma
trilogia homônima, narrado por
Katniss Everdeen, jovem de 16
anos que vive em Panem, nação
erigida, em um futuro impreciso
e pós-apocalíptico, sobre os
escombros daquilo que, hoje,
corresponde aos Estados Unidos
da América.
¹ COLLINS, Suzanne. Jogos Vorazes. Trad. de Alexandre D’Elia. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010, p. 24.
2 Ibidem,
p. 24.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
dimensão à qual o Big Brother (de Orwell) pode alçar o Big
Brother (o programa): um meio muito mais intenso, perigoso
e útil a seus propósitos de alienação e controle dos cidadãos.
Nesse sentido, a autora concebeu uma sociedade com
pontos de intersecção com a nossa, na qual as vidas dos
habitantes da Capital giram em torno da aparência (própria e
alheia), de julgamentos estéticos e de factoides criados por
uma espécie de órgão de imprensa que se ocupa das
celebridades do momento, tal qual ocorre na sociedade do
entretenimento e do espetáculo da contemporaneidade.
Há, ainda, outras questões contemporâneas que a
autora procura abordar, mas sem sucesso, tais como a
exploração de classes; os experimentos com plantas e
animais; a utilização de Aparelhos Ideológicos do Estado, nos
termos de Althusser, para garantir a manutenção da ordem;
o controle das classes dominantes; e o Estado policialesco,
antecipado por George Orwell em 1984. Esses pontos, que
aparecem em evidência no início do romance, servem, ao
longo da narrativa, mais como pano de fundo, do que como
temas a serem de fato desenvolvidos.
A descrição do Distrito 12, no início do romance, por
exemplo, se assemelha àquela feita por Orwell ao apresentar
29
a Londres de 1984: fria, cinzenta, habitada por homens e
mulheres abatidos e que sofrem com os constantes “esforços
de economia”3 do Governo, responsável pelos cortes de
energia e racionamento dos mantimentos. Contudo, o governo
da Capital não chega nem perto de ser forte e repressor como
aquele descrito por Orwell, não havendo real controle sobre
alta tecnologia as mentes dos cidadãos, nem uso da força
estatal ou da disponível como formas de dominação; a única
exceção a essa regra é a realização anual dos Jogos. Assim, um
possível debate sobre a autoridade do Estado acaba deixado
de lado na narrativa.
O uso da tecnologia também está presente em Jogos
Vorazes, mas, novamente, o tema é abordado de maneira
superficial. A tecnologia, no romance, é um luxo, responsável
por melhorar a aparência dos habitantes da Capital, de acordo
com as últimas tendências da moda, ou por fornecer-lhes os
pratos mais refinados com apenas um clique. Não há, como
em Admirável Mundo Novo, o emprego da técnica com o
intuito de aprimorar geneticamente alimentos e indivíduos, o
que permitiria discutir questões como o papel da tecnologia
no aumento e na maior eficiência e produtividade da indústria
e as garantias de controle social que isso propiciaria.
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
3 ORWEL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 11.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
No romance de Collins encontram-se apenas de
tentativas frustradas manipulação genética, responsáveis,
por exemplo, pelo aparecimento do mockinjay (traduzido
como tordo, expressão que não carrega a origem dessa
espécie, criada por acidente a partir do cruzamento de
tordos com gaios tagarelas) – que se voltará contra a Capital,
ao invés de ser utilizado por ela, apontando, mais uma vez,
para a constituição frágil do Governo de Panem, a despeito
dos instrumentos que tem a sua disposição. A divisão da
sociedade em grupos responsáveis por determinadas tarefas,
análogos às castas da obra de Huxley, também aparece no
livro como uma oportunidade desperdiçada de se discutir os
extremos a que se poderia chegar com a especialização do
trabalho.
Ainda assim, a partir do panorama acima descrito,
pode-se afirmar que a obra constrói uma distopia, na medida
em que “a realidade”, em Jogos Vorazes, “não apenas é
assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências
negativas, desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material
para a edificação da estrutura de um mundo grotesco”4.
parale
30
Além dos paralelos com o mundo atual, contribuíram
também para a arquitetura desse cenário distópico as
referências de caráter histórico, que apontam, não para onde
nossa sociedade se situa, mas para os caminhos que ela já
percorreu, em termos de espetáculo, violência e exploração.
Um dos exemplos cabais encontrados na narrativa é o do
próprio nome da nação na qual se desenvolve o romance,
Panem.
Panem et circenses designa uma política da Roma
Antiga de financiamento, por parte das elites, de lutas de
gladiadores que entretinham a plebe -e também as classes
dominantes-,5 transformando a morte em um espetáculo, à
semelhança do que se dá com os Jogos Vorazes em Panem, a
nação. Além do sugestivo nome do país, a autora se
preocupou em tornar a descrição dos Jogos próxima à dos
combates entre gladiadores, em que se luta em uma arena
pela vida.
Ainda no espectro da história da Roma Antiga,
podemos destacar a personagem Cinna, estilista de Katniss.
Seu nome remete a Lucius Cornelius Cinna, político romano
do
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
4 BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Utopia, distopia e história. In: MORUS – Utopia e Renascimento 2. Campinas: 2005, p. 6.
5 GUARINELLO, Norberto Luiz. Violência como espetáculo: o pão, o sangue e o circo. In: HISTÓRIA. São Paulo, v. 26, n. 1, p. 128.
6 Informações sobre a vida de Lucius Cornelius Cinna disponíveis em:
http://social.rollins.edu/wpsites/mosaic-witness/2013/10/20/lucius-cornelius-cinna-war-against-the-state-to-save-the-state/.
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do século I. a.C. e líder do partido popular. Sua notoriedade
histórica se deve ao fato de ter dado, ao lado de Gaius Marius,
um golpe de Estado que culminou no período conhecido
como “A Dominação de Cinna”6. Do mesmo modo que a
personagem histórica, o Cinna de Jogos Vorazes é um grande
líder e articulador político, ao mesmo tempo em que suas
ações se restringem à aparência, à superficialidade, sendo o
responsável pelo sucesso de Katniss e Peeta diante do
público, em virtude dos figurinos que elabora para o casal, a
cada nova aparição, e pela suposta imagem de rebeldia da
protagonista.
Há, também, uma referência mitológica que parece
central na construção do enredo. Em Panem, 24 jovens são
forçados a se entregar aos Jogos Vorazes, do mesmo modo
que, na Creta da mitologia grega, sete rapazes e sete moças
eram imolados a cada ano, tendo de enfrentar o Labirinto do
Minotauro, em virtude dos arbítrios do rei Minos. Além disso,
assim como Teseu, que se ofereceu para sacrificar sua vida
ao Minotauro7, Katniss decide se entregar como tributo para
os Jogos, a fim de poupar, ao menos por mais um ano, a vida
de sua irmã mais nova, que havia sido originalmente
sorteada, e esse ato é o ponto de partida da narrativa.
Apesar da grande quantidade de referências, falta, em
Jogos Vorazes, desenvolvê-las, de modo a explorar a base
fértil sobre a qual foi construída a narrativa, que,
inicialmente, aparenta ser bastante pretensiosa em suas
críticas aos valores da sociedade contemporânea, mas, ao
final, é incapaz de desprender-se deles. Não se pode negar,
porém, que o texto de Collins se encontra plenamente
desenvolvido, de uma perspectiva de sua construção
ideológica. Os paralelos entre a política e a história dos
Estados Unidos e a nação fictícia criada para o romance são
inúmeros e apontam para uma argumentação de cunho
conservador e republicano por parte da autora, que cria, com
seu texto, uma espécie de alegoria da sociedade americana.
Panem é uma nação erigida a partir de treze Distritos, assim
como as Treze Colônias deram início aos Estados Unidos. A
Capital, cuja autoridade deve ser contestada, é governada e
habitada por homens e mulheres com nomes latinos8, em
oposição aos cidadãos dos Distritos rebeldes, com nomes
anglo-saxões e relacionados à natureza, entre eles, a heroína
Katniss. Já as referências à história de Roma traçam um
paralelo entre essa sociedade e a de Panem, reforçando a
ideia
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
A versão do mito de Teseu e o Minotauro aqui apresentada baseia-se no texto disponível em O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis.
BULFINCH, Thomas. O livro de outro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, pp.153-156.
8 Citamos, a título de exemplo, Flavius, Octavia e Venia, equipe responsável pela preparação de Katniss; Seneca Crane, realizador dos Jogos; e Plutarch
Heavesbee, presidente de Panem.
7
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ideia de que o romance descreve um momento de decadência
e barbárie, no qual a aparência e o espetáculo estão em
primeiro plano – não é de se surpreender, portanto, que a
Capital se situe justamente a oeste das Montanhas Rochosas,
onde se assenta Hollywood, coração da indústria cultural
norte-americana.
Além disso, o termo original para Capital é Capitol, ou,
em português, Capitólio, mesmo termo utilizado para
designar a sede do governo dos Estados Unidos. Na narrativa,
o Capitólio deve ser derrubado, por ser um poder autoritário
que mobiliza todos os esforços da Nação em torno dos
interesses de sua própria classe – os latinos. Considerandose que o texto de Collins foi publicado originalmente em
2008, período de ascensão Democrata no Congresso e ano da
eleição de Barack Obama como presidente, pode-se
questionar se ela não escreve contra um governo e um
partido apoiados pelas populações imigrantes, especialmente
aquelas de origem latina, em um momento no qual esses
grupos iniciavam um processo de empoderamento
respaldado pelas autoridades, cujas ações passaram a levar
em conta sua situação nos Estados Unidos, indo de encontro
à posição Republicana de restrição de direitos e da entrada
de imigrantes no país.
32
Percebe-se, assim que, em termos políticos, as
referências presentes na narrativa apontam para uma visão
bastante conservadora da situação política dos Estados
Unidos, ainda que as críticas se deem de modo muito mais
simbólico do que explícito. No entanto, no que tange à
construção da narrativa, as relações de intertextualidade
permanecem subaproveitadas e surgem como pouco
relevantes para o desenvolvimento das personagens.
Parece que isso se dá porque, em primeiro plano na
narrativa, encontra-se a história pessoal de Katniss. A
realidade de Panem acaba relegada ao segundo plano, pois
todas as informações reveladas ao leitor passam por Katniss,
narradora-personagem cujas preocupações, em inúmeros
momentos, se distanciam das questões políticas e sociais de
seu país.
Na realidade, a maior parte de seus questionamentos
se aproxima daqueles de um adolescente estereotípico dos
dias atuais, para quem a vida pessoal e, mais
especificamente, a vida amorosa, está no topo de suas
prioridades. Em grande parte da narrativa, por exemplo, ela
discute consigo mesma seus sentimentos em relação a Gale,
seu melhor amigo, e Peeta, o outro tributo do Distrito 12,
com quem a orgulhosa Katniss sente que tem uma dívida, por
ele tê-la ajudado anos antes. Além disso, em diversas
passagens
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passagens, seu comportamento soa conformista e ela ainda
faz questão de frisar sua falta de engajamento político e
preocupação exclusiva com a sobrevivência de sua família.
O leitor acaba, assim, vendo o universo de Panem de
maneira bastante limitada, por ter acesso somente ao que a
narradora-protagonista sabe e revela. Por um lado, isso se dá
por ser essa uma característica do narrador em primeira
pessoa, e, por outro, pelo fato de a protagonista não enxergar
– porque não deseja, ou, simplesmente, porque é incapaz de
fazê-lo – além de seu próprio umbigo. Desta forma, parece
improvável que as ações supostamente rebeldes de Katniss
tenham algum efeito sobre os telespectadores dos Jogos
Vorazes.
Pode ser que, realmente, as atitudes de Katniss
tenham motivado as manifestações. Para o leitor, porém,
nada indica que a participação do tributo do Distrito 12 nos
Jogos tenha causado impactos reais nos cidadãos de Panem.
Sua preocupação com as câmeras e com a maneira como será
retratada são constantes e, até mesmo, repetitivas, o que faz
parecer que ela quer chamar a atenção do público, mas para
vencer, não para iniciar uma guerra contra a Capital. O leitor
também não tem nenhum retorno sobre como ela está sendo
percebida pelo telespectador.
33
As informações de que dispomos são aquelas anteriores a
sua entrada na Arena - as quais não argumentam a favor da
popularidade de Katniss.
A opção pelo foco narrativo em primeira pessoa falha,
nesse aspecto, uma vez que a autora baseia sua história em
fatos que, em momento algum, são mostrados ao leitor.
Assim, este se vê forçado a acreditar que a garota sem
nenhum carisma e cujos interesses e ações passam muito
longe de disputas políticas, em um passe de mágica, tornouse o símbolo nacional da rebeldia contra a ditadura da
Capital. Também não sabemos como foi a cobertura dos
Jogos, nem de que maneira o presidente Snow e os
Idealizadores dos Jogos interpretaram as ações de Katniss,
ou o que fizeram para tentar minimizar seus supostos
efeitos. Tudo de que dispomos é a interpretação dela de sua
participação no programa, que é bastante limitada. Por esse
motivo, o crescimento da personagem junto à população de
Panem, se de fato houve, como pretende fazer acreditar a
autora, escapa ao leitor – e uma das principais causas é o
foco narrativo escolhido.
Por outro lado, ainda que, após todas as críticas
levantadas, a protagonista e a opção por narrar a história
exclusivamente de seu ponto de vista parecem adequados
em termos mercadológicos, se considerarmos as tendências
dos
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dos últimos anos, no que diz respeito à literatura infantojuvenil. Livros como Crepúsculo (Edições Galivro, 2006), Hell
(Editora Intrínseca, 2003) e, agora, Jogos Vorazes, que vem
alcançando um sucesso estrondoso9, apostam em
protagonistas femininas e discutem questões próprias do
universo adolescente, como a descoberta do amor, o medo
em relação ao presente e ao futuro e a morte, a partir de uma
das narrativas em primeira pessoa.
As protagonistas, porém, ao contrário do que se
poderia esperar, não são jovens fortes e decididas, mas
garotas extremamente passivas e egocêntricas, incapazes de
tomar decisões e que insistem em se autoproclamar
diferentes, únicas, como se fossem seres especiais aos quais
nenhum outro pudesse ser comparado. Katniss se
autodefine, ao longo do romance, precisamente assim, como
uma garota diferente das demais, com qualidades e defeitos
que fazem dela, mesmo que involuntariamente, mais
interessante, bonita e inteligente.
Esse retrato condiz com aquele das produções
culturais que, segundo Aline Valek, redatora, roteirista e
bloguqie
34
blogueira de livros e quadrinhos da cultura pop, vem sendo
construído nas últimas décadas acerca dos adolescentes na
sociedade contemporânea. De acordo com a blogueira, livros
e seriados que retratam a juventude mostram jovens que
Não sabem reagir aos nãos da vida, porque foram
ensinados que são especiais; ou a de pessoas tão obcecadas
por elas mesmas que têm dificuldades em lidar com o outro
[...]; ou ainda a de jovens que foram tão sufocados pelas
exigências da sociedade que não sabem mais o que fazer e
assim se rendem a um conformismo [...].10
Mesmo em se tratando, no caso de Jogos Vorazes, de
um universo distópico, com regras próprias e bastante
diversas daquelas que regem as relações políticas e sociais
na atualidade, predomina, por parte das personagens -e, em
particular, da protagonista, pois é através de seu discurso
que temos acesso à sociedade em que vive-, um
descolamento em relação à realidade e uma predominância
de conflitos internos e alheios à vida que as cerca.
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9 De acordo com a Wikipédia, já foram vendidas mais de 23 milhões de cópias por todo o mundo, fazendo com que a trilogia integre a lista dos livros mais
vendidos no mundo. Informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_livros_mais_vendidos. Segundo reportagem do jornal Folha de
São Paulo de 04/01/2014, Suzanne Collins, autora de Jogos Vorazes, é recordista de vendas no Kindle, aparelho de leitura de livros digitais da Amazon.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1392972-segmento-juvenil-vive-boom-de-formula-dos-romances-distopicos.shtml.
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Collins parece, assim, ter optado pelo caminho mais
fácil, colocando um ótimo enredo de lado, para dar destaque
a um romance juvenil que, apesar de se passar no futuro,
mantém, como mencionamos, a mesma estrutura de outros
romances adolescentes atuais de sucesso. Além disso, o livro
parece apontar para um movimento maior, de revolta, tendo
em vista a insatisfação popular que a protagonista relata
desde as primeiras páginas, mas do qual o leitor não possui
nenhum vislumbre.
35
Nesse contexto, o primeiro livro da série surge como
um prólogo de 400 páginas para um outro romance no qual o
universo distópico será substituído por um universo
eutópico, que aponte “o que fazer após a ditadura e seu
sistema de apoio ruírem”.1 Pode ser que Em chamas, livro
que dá sequência a Jogos Vorazes, seja uma alusão à Panem
incendiada por revolucionários que será retratada. Mas
também pode ser que seja apenas a continuação da história
da Garota em chamas, Katniss Everdeen, e seu dilema
amoroso.
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
11 SARGENT, Lyman Tower. Do Dystopias Matter? In: VIEIRA, Fátima (ed.). Dystopia(n) Matters: On the Page, on Screen, on Stage. Newcastle: Cambridge
Scholars Publishing, 2003, p. 10. Tradução minha. O excerto original, que apresenta uma definição de eutopia, é o que segue: “But the problem is what to do
after the dictatorship and its supportive apparatus go, and that is where we need eutopia.”
João Gabriel Mostazo
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: [email protected]
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Finalmente me tornei um poeta contemporâneo
Como disse Humberto Mendes
Como disse Roberto Bibini
Como disse Robinson Crusoé
Em A porta do Diabo
Em Por qué comer duraznos
Em Tomber dans le restaurant
Traduzido por Ricardo Bosch
Traduzido por Marcos Palhures
Traduzido por Juan Almostásin
Como Devil’s Door
Como Por quê comêr pêssegos
Como La queda en el comedor
Citado por Lázslo Vega
Citado por Lawrence Chad
Citado por Jean-Pierre Langlois Aujourd’oui
Em Da poética esclarecida
Em The formidable structure
Em Deux problèmes ordinaires
Sobre Letícia T. M.:
Sobre Luana Maldini:
Sobre Inês Conrado das Dores Côrtes Sóbria:
Não raspe, querida. Deixe assim.
Por trás. Eu quero por trás.
Aí.
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Triângulo de acrílico sobre praia
Uma mulher muda uma vela de lugar
Pela décima vez.
Outra ergue um totem de madeira
Sem nem saber que o faz;
Devia agradecer a deus
Pelos joelhos que tem.
Enquanto isso numa taboa de corte
Um corte aguarda um fio que lhe abra –
Já palpita em hipótese
E parece entusiasmado com isso
(Deseja cumprir com competência
Mas competência ele não pode ter).
Um deus de uma classe dominante
Toma a forma de um cisne atrapalhado
Para subverter a Inutilidade,
Durante os quais, numa boate da corte,
Instantes como esse são ignorados.
Longos episódios mitológicos
Desconsiderados
Quando os garçons oferecem conjuntos de blocos de montar
Sobre bandejas de prata.
Em uma casa (que está aqui
Na falta de melhor imagem
De falsa geometria de acrílico),
Cada um dos espetáculos
Ocupa o vértice que lhe cabe.
Cada qual respeitosamente alheio
Aos outros e à maré cheia
Pesquisa minucioso
O silêncio que melhor lhe cabe.
Eu os observo, ileso,
Mastigando bolachas de areia
Fábio Mariano
Graduado em Estudos Literários pela Unicamp e professor.
Contato: [email protected]
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Travessia
Não foi na estrada.
Quando vi Bernardo pela primeira vez, pensei que
seria uma espécie de ruína aquilo de conhecer alguém cuja
beleza não se pode superar. Não sei até que ponto as coisas
se transformavam em escudo, em trauma, em para-raio, em
pedra ou em barril de nitroglicerina: os olhos dele
despedaçavam as pessoas a quem se direcionavam, não em
arrogância, mas numa espécie de suspensão que me
lembrava um caderninho que eu roubara de um professor de
literatura, em cuja capa li pela primeira vez os versos
preferidos de Ezra, Let us go then, you and I, When the evening
is spread out against the sky Like a patient etherized upon a
table, e então nada; o caderninho em branco que guardei
para rabiscar, de vez em quando, alguns retratos. Tentei
algumas vezes esboçar aquele rosto, mas só alguns dias
depois de conhecer Germano Mabel e a mãe de Bernardo,
Heloísa Dantas (sobre quem preferiria não ter que falar, se
essa escolha me fosse dada), é que pude finalmente conhecer
a criação perfeita de um ventre perfeito num invólucro
perfeito. Heloísa, que me foi apresentada por Germano no
segundo café que tomamos, era alta, muito alta, e altiva; era,
em poucas palavras, um desses membros inconfundíveis de
uma aristocracia milenar, que será reconhecido pela própria
radiação da bomba atômica, à qual se revelará, na hora
decisiva, imune. E só de uma mulher como aquela é que
poderia surgir um homem como Bernardo Dantas Moura.
ocinema
O cinema, que já fora a ponte entre mim e Germano
Mabel, foi também a ponte entre mim e Bernardo, embora ele
só tenha sido informado disso algum tempo depois. Durante
nossa infância, Cartago abrigou, por certo tempo, um cinema
bastante interessante (que fora, em primeiro lugar, um
cineclube universitário) localizado numa antiga escola
profissionalizante na Rua Lírio Negro, entre um açougue e uma
loja de aluguel de trajes de gala. Foi ali que, pela primeira vez,
vi: um filme de Costa-Gavras; o documentário A Sociedade do
Espetáculo, de Guy Débord; Exílios, filme argelino que me fez
compreender o que significava uma metáfora, numa cena em
que um dos personagens enterra o próprio violino ao decidir
abrir mão de sua roupagem cultural francesa e buscar suas
origens argelinas; e as obras primas do cinema britânico dos
anos 60. Lá também, na sala única e de cadeiras duras de
madeira do Kino, foi que o vi.
Germano, depois de me descrever seu melhor amigo e
irmão, me fez compreender que logo eu o conheceria. E embora
minha relação com Bernardo fosse a mais distante possível,
tínhamos a mesma sede incurável de filmes; como eu, ele não
tinha visto nem um décimo dos filmes que Germano conhecia.
Éramos, assim, parceiros naturais do Kino, que contava com um
café/bar para discussão depois de cada sessão.
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O dono, Décio, conhecia de longa data Heloísa Dantas,
e costumava conversar conosco sempre. Sobre o pai de
Bernardo pouco sabíamos, e me parecia que nenhum dos
dois estava interessado na troca de informações sobre quem
fora ou o que fizera. Órfão Bernardo não era, mas era como
se fosse. Diante de Décio, se comportava do modo como esse
gostava, conversando numa relação bastante horizontal. Os
anos que ele e o outro dono (cujo nome não sabíamos e quem
não conhecíamos) demoraram pra conseguir uma sala
própria foram, a passos largos, sendo carcomidos pela
própria cidade. Aos poucos o cinema esvaziava; cada vez
menos pessoas compareciam. As conversas, que quase
sempre contavam com algum metido a intelectual que, no
fundo, era só um aluno de cursinho ainda desprovido do seu
miraculoso ingresso para a universidade, foram se tornando
triângulos entre mim, Bernardo e Décio. Depois disso, o
próprio Décio, firme, se tornou mais calado. Não tínhamos
idade nem malícia suficiente para perceber o que estava
acontecendo, e nem mesmo para ver aqueles filmes; mas
tínhamos o ímpeto, e o sonho de que o ímpeto bastasse. E no
rosto de Décio o que víamos era só cansaço, talvez porque a
seleção de filmes se tornasse cada vez mais difícil, já que o
mundo parecia (como sempre parece) caminhar para um
abismo e a qualidade do Kino continuava impecável; talvez
porque a ausência significasse mais esforços de publicidade,
captação, o tipo de
41
captação, o tipo de linguagem empresarial que aprendíamos
nas festas a repudiar sem ter aprendido a compreender.
Bernardo, após termos visto um filme argentino sobre um
professor, se lembrou de uma bronca que foi dada em um
babaca de sua sala, um desses metidos a intelectual que
sonha desbancar o professor de história, mas sabe menos
história que o professor de biologia. Tita, Décio, o professor
virou pra ele e disse É, o sonho acabou, mas ainda vende na
padaria, Eu já volto, foi assim que Décio disse, Eu já volto, e
de fato voltaria, alguns minutos depois, justificando, com
muita polidez, que tivera um problema burocrático,
expediente ao qual sempre recorria. Décio ainda conversou
conosco por mais duas vezes; depois, saiu em turnê com sua
banda por alguns meses; quando voltou, o Kino já tinha
assumido a condição de sonho estilhaçado, a impossibilidade
(dolorosa) de se manter.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Eu e Bernardo já tínhamos nos aproximado
fatalmente, e já nos tornáramos, nesse ponto, algo mais que
companheiros de cinema. Só não naqueles momentos. Era
um processo alquímico: íamos ao cinema e, quando saíamos,
éramos eu e um filme, ele e um filme, mas nunca eu e um
passado e um filme ou eu e um presente ou eu ou ele e
qualquer coisa a mais; nada do que nos acontecera até ali
servia a não ser que passasse, fundamentalmente, por uma
evocação do filme, uma comparação. Qualquer pessoa que
tentasse compreender uma conversa entre nós três (e mais
tarde nós dois) precisaria ter visto o filme; qualquer uma que
o tivesse visto só precisaria se sentar e escutar com atenção.
O que acontecia depois daqueles filmes não era só
insubstituível, era a prova de que existe uma espécie de
aproximação no mundo, algo que poderia parecer
adolescente ou infantil, não fosse tão frágil quanto a fase
entre a infância e a adolescência. Miriam, que sempre insistia
em me acompanhar ao Kino, não compreendia o que
acontecia ali, e nas duas vezes em que tentei levá-la, ela
tentou fazer algum tipo de relação entre o que acontecia em
sua vida e algum aspecto do filme, e não o inverso. E isso, na
nossa gramática das exceções ao mundo, dos sonhos (ainda
que dilacerados), não era só completamente proibido; era
absolutamente imperdoável.
42
Foi por isso que não pude, por mais que quisesse
compartilhar a dor disso com ela, convidá-la à última sessão
do Kino, ao piccolo finale que o cinema se reservou. Décio já
não estava mais presente, a banda o ocupava cada vez mais, e
a sensação de que algo aconteceria foi a única coisa que nos
manteve firmes em presenciar aquela espécie de funeral. O
último filme que vimos, combinamos na entrada, não seria
discutido, a não ser que o Décio estivesse lá, o que era uma
forma de garantir pelo menos um de dois confortos: o de que
não teríamos de ver, na cara de Décio, o choro que ele
sempre nos escondera ou o de termos recebido uma espécie
de sinal de que as coisas seriam reversíveis. Não o vimos.
Quando saímos, Bernardo quis ir ao café, e tomamos, pela
primeira vez, cervejas numa quantidade razoável para
termos de voltar de táxi, e não caminhando, para casa. A
sessão teve pessoas chorando, um sentimentalismo piegas,
que quase estragou a tristeza de verdade, aquela que se pede
que seja piegas para se ver a recusa ao papel da pieguice; de
resto, havia ali pessoas que vieram sinceramente dar um
último adeus, entre elas algumas que, não por hipocrisia, mas
por alguma circunstância, faziam parte das estatísticas de
esvaziamento da sala de cadeiras duras. Em algum ponto da
conversa, que fatalmente se voltou ao filme que víramos,
percebi que Bernardo tentava me dizer algo, e que, no
entanto, falhava. Ele olhava com os olhos duros para uma
garrafa, que girava apoiando com o indicador, inclinada, para
a esquerda e
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
entanto, falhava. Ele olhava com os olhos duros para uma
garrafa, que girava apoiando com o indicador, inclinada, para
a esquerda e de novo para a direita. Tita, ele disse, Você sabe
que minha mãe conhece o Décio, e eu disse Claro Bernardo,
ele vive falando e você também sempre fala disso, acho que
ele é até, e então percebi que estava atrapalhando, calei-me,
ao que ele, olhando para mim, mas não mais como alguém
que gira uma garrafa, e sim como quem já perdeu a passagem
de volta para essa dimensão, que já sabe que não vai voltar,
ou que acredita piamente que não vai voltar, e tendo se
conformado com isso, é incapaz de se reconhecer na mesma
dimensão de onde nunca deveria ter saído, Ela teve um caso
com ele alguns anos atrás, e então me bateu uma vontade
louca de perguntar mais sobre isso, perguntar, enchê-lo de
perguntas, ali, depois de um filme, de devorar toda a
informação que ele tinha sobre isso, mas o que eu consegui
foi só ouvi-lo, como que sussurrando, perguntar Por que você
não trouxe a Miriam hoje?, o que era um pouco cruel da parte
dele, e mais cruel da minha parte, permitir essa pergunta, ou
permitir que a situação natural que essa pergunta cria, Por
que sua namorada não está aqui enquanto nós
compartilhamos a ligação mais intensa que existe no
universo, e que pode não ter absolutamente nada a ver com
amor ou com paixão ou com tesão, mas que fatalmente
desemboca em algo desse gênero (pelo menos para alguém
deve ser assim), e então foi a minha vez de apoiar com o
indicador um copo (e não uma garrafa) de cerveja, de girá-lo
43
deve ser assim), e então foi a minha vez de apoiar com o
indicador um copo (e não uma garrafa) de cerveja, de girá-lo
para a direita e para a esquerda, e dizer Eu não amo a a
Miriam, eu não amo Miriam Gagliardi, Bernardo, com o que
ele pareceu de alguma forma satisfeito, não como um abutre
que espera a sua vez, mas simplesmente satisfeito por eu ter
finalmente conseguido dizer isso, ainda que, até aquele
momento, não houvesse nenhum indício, na minha cabeça,
de que eu não amasse minha namorada, e a verdade é que
até ali eu a amava, mas logo depois Bernardo me diz Meu pai
nunca ficou sabendo, embora ele tenha sabido de outros
casos dela, Bernardo, qual é a última lembrança que você tem
do seu pai?, Ele falava muito “fode”, “foder”, “foda-se”,
mesmo quando eu era criança, o que não é merda nenhuma
de situação temporal, mas que pode ajudar, e então, por
algum momento, pensei no modo como Décio evitava
constantemente falar qualquer coisa derivada de foda-se,
fodido, foder, e como preferia falar buceta, caralho, cú sujo,
qualquer coisa, mas não foda-se, sempre era elegante e dizia
“acabar”, “dilacerar”, “dilacerado”, “deixa isso para lá”, mas
nunca um foda-se, e então, olhando para Bernardo, percebi
que ele deixava a cabeça cair um pouco sobre os ombros,
tentando pensar no que Miriam ou Ezra falariam se vissem
essa cena num filme, e acho que Ezra citaria seu poeta
preferido novamente, ou tergiversaria a citação, diria They
had the experience but missed the meaning, and approach to
the meaningrestores the experience in a different form, beyond
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
had the experience but missed the meaning, and approach to
the meaningrestores the experience in a different form, beyond
any meaning they can assign to happiness, ou eu mesma é que
diria isso; o fato é que olhando para Bernardo, não pude
pensar em não pensar, e nem pensar em não dizer, e então
olhei para aquele par de olhos pastosos, que em tantos
momentos pareciam tão duros, e perguntei, vendo-o quase
cair de sono e de desatenção, Bernardo, o Décio é seu pai?,
coisa da qual imediatamente me arrependi, e olhando para
ele, o vi, mais uma vez, imerso em seus olhos pastosos como
só um verdadeiro aristocrata pode estar, e ele, olhando para
o lado, me disse A menina tropeçou e caiu, de um jeito
gratuito e inocente e cheio de preocupação como só uma
criança pode dizer, referindo-se a uma das putas que chegava
para trabalhar na rua detrás, e então olhou para mim, como
quem pensa em ajudar, mas desistindo por preguiça,
cansaço, tédio. Não sei dizer se ele ouviu minha pergunta, e
embora eu tenha feito um esforço para fazê-la de novo, as
palavras já não saíam.
Se reencontrei Décio depois disso? Sim.
Algum tempo depois.
Não foi na estrada. Num bar, onde ele era muito
conhecido, que serve acarajé e fica nos arrabaldes da cidade,
cuja travessia, saindo-se exatamente da minha casa, passa
invariavelmente pelo Kino.
Eu, Tita Munhoz (sobrenome inventado pelo meu
irmão, apropriado por mim),
Eu, Tita Munhoz, não amo Miriam Gagliardi.
44
Eu, Tita Munhoz (sobrenome inventado pelo meu
irmão, apropriado por mim),
Eu, Tita Munhoz, não amo Miriam Gagliardi.
Odorico Leal
Graduado em Letras pela UFC e mestre em Teoria Literária pela UFMG. Atualmente, é doutorando em
Literatura Brasileira pela USP, desenvolvendo pesquisa sobre o épico na poesia moderna, sob a orientação do
professor João Adolfo Hansen.
Contato: [email protected]
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O conceito de kleos em Ilíada e Os Lusíadas
Na Ilíada, afirma o pesquisador húngaro Gregory Nagy,
“kleos” significa não apenas glória, mas, mais
Partindo do conceito de “kleos”, termo grego para “fama” (em tradução
especificamente, a glória do herói tal como conferida pelo
aproximada) tal como observado na poesia homérica, o presente artigo
épico. Quando Aquiles escolhe a glória (kleos) ao invés do
procura explorar a representação que o discurso épico, tradicionalmente,
regresso (nostos, “regresso à casa”, mas também “canto sobre
faz de si próprio dentro de sua cultura, tratando, de início, da poesia
homérica e, em seguida, mais detidamente, da épica camoniana.
o regresso à casa”), ele alcança “o maior objetivo do herói:
sua identidade é posta em registro permanente através de
kleos”2. É significativo que Aquiles seja representado no
papel de aedo justamente quando se retira da batalha com os
Em uma passagem do nono canto da Ilíada, os heróis
troianos, isto é, quando se afasta do campo autêntico de sua
Ajax e Odisseu encaminham-se à tenda de Aquiles, para
kleos, pois, nesse momento, é pelo canto que ele procura
oferecer tributo em nome de Agamenon, como modo de sanar
manter-se ligado ao mundo épico da batalha. O que o
a ofensa que fizera com que Aquiles se retirasse do campo de
diferencia dos demais heróis gregos é que nenhum outro se
batalha. Ajax e Odisseu encontram o filho de Peleu cantando
encontra tão dramaticamente acossado pela consciência de
façanhas de heróis de tempos passados, acompanhado de uma
que, para alcançar a glória, deverá morrer: sua própria mãe
lira:
imortal lhe comunica seu fado. Até a morte de Pátroclo,
contudo, o destino de Aquiles parece ainda em aberto. Chega,
Quando chegaram às tendas e naves dos fortes Mirmídones,
sem muita convicção, a considerar a ideia de partir de Tróia
Aí enlevado o encontraram tangendo uma lira sonora
De cavalete de prata, toda ela de bela feitura,
com os Mirmídones, divisando e desejando por um
Que ele do espólio do burgo de Eecião para si separara.
momento seu próprio nostos. Aquiles, no entanto, não pode
O coração deleitava, façanhas de heróis decantando.1
ser Odisseu. Na Ilíada, é ele quem canta os heróis e deve
elevar-se, em sangrenta batalha, ao mesmo plano deles.
,jjjjjjjjoogg
_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
resumo
1
2
HOMERO. Ilíada. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2011, canto IX, 185-189.
NAGY, Gregory. The Epic hero. In: A companion to ancient epic. Malden: Blackwell, 2005.
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Há outras instâncias ao longo do poema que reforçam
essa espécie de consciência dos heróis em relação à imagem
pela qual os cantores os representarão. Em uma ocasião, o
tópico é observado negativamente, quando Helena lamentase para Heitor sobre o destino que lhes sobreveio:
Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem,
Nas gerações porvindouras, os cantos excelsos dos vates3.
No universo da tradição épica da Grécia arcaica,
portanto, o tema da conquista de imortalidade por parte dos
heróis através do canto dos poetas é parte da estrutura social
da comunidade ali representada: trata-se de uma
reciprocidade fundamental para a caracterização de seu
ethos. As ações dos heróis encontram sua justificativa última
na imortalidade do epos, pelo qual são transmutados para
uma dimensão simbólica, tornando-se exemplares dignos de
culto. Ao mesmo tempo, os heróis fornecem a matéria para
os poetas, os grandes feitos. Nesse universo, sem o canto, a
memória se dispersa e, com ela, o próprio espaço cultural
que uma comunidade habita e compartilha; os homens
ononono
47
veem-se em um vácuo cósmico. Mesmo com o advento da
escrita, no mundo grego antigo, em meio aos constantes
perigos de desintegração social devido a guerras e invasões,
o canto funciona como o modo de um povo fixar, contra a
mutabilidade feroz do tempo, uma imagem eterna de si, daí a
importância da recitação dos poemas homéricos nos grandes
festivais.
O poeta ocupa, desse modo, uma posição central
dentro da comunidade. Uma das passagens mais
emblemáticas da Ilíada é a descrição do escudo de Aquiles,
que sua mãe Tétis encomenda a Hefesto, o ferreiro dos
deuses. Hefesto prepara um gigantesco escudo e, nele, grava
variadas cenas da vida grega, desde cenas de guerra até
cenas de disputas judiciais e casamentos, além de cenas
pastoris. Trata-se de uma síntese das atividades do mundo
grego, o que, de certo modo, denota a característica essencial
da narração épica no Ocidente - a da criação de um grande
painel do universo cultural de uma comunidade. É de uma
beleza poética sublime que esse escudo, que carrega a
imagem de todo o mundo grego, seja empunhado pelo herói
que deve encarnar os valores mais altos desse mundo. Na
descr
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
3 HOMERO, op. cit., canto VI, 357-368.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
‘
descrição do escudo, há uma breve imagem que sugere a
centralidade do canto para tal cultura. Se, na abertura da
Ilíada, encontramos os aqueus, em meio à guerra, cantando
em honra de Apolo, como forma de sanar a fúria mortífera do
deus ofendido, aqui os encontramos cantando em um
contexto de paz, em honra do filho do mesmo deus:
Moços e moças, no viço da idade, de espírito alegre,
o doce fruto carregam em cestas de vime trançado.
Com uma lira sonora, no meio do grupo, um mancebo
O hino de Lino entoava, com voz delicada, à cadência
Suave da música, e todos, batendo com os pés,
compassados,
Em coro, alegre, o canto acompanhavam, dançando com
ritmo4.
O que se sugere nessa passagem é a condição
harmoniosa de uma comunidade em que todas as esferas de
vida estão entrelaçadas – o trabalho, a cultura, o culto aos
deuses. No centro, um jovem com a lira, cantando o hino de
Linos, filho de Apolo e da musa Calíope, a musa da poesia
épica, filha de Zeus e da Memória – como se pode atestar, na
48
na própria genealogia dos deuses gregos, essa relação entre
poesia e memória, poesia e imortalidade é sugerida. Na
Ilíada, o motivo da imortalidade é mais do que uma mera
utilização de um topos retórico convencional. É um elemento
definidor em uma cultura que, como nota Gregory Nagy, se
apresenta como uma cultura do canto, isto é, uma cultura que
depende da celebração através do canto para plasmar sua
identidade5.
Em Homero se estabelece, portanto, a relação entre
canto e imortalidade, subjacente à desejada harmonia entre
todas as esferas de vida do povo. Em Os Lusíadas, por sua vez,
Camões também fará da imortalidade pela celebração
poética um tema fundamental. A abertura de seu poema
conjuga memória, canto e imortalidade. O poeta cantará as
armas e os barões assinalados que se lançaram ao mar,
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando6.
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
4 HOMERO, op. cit., canto XVIII, 567-572.
5 Sobre o conceito de “cultura do canto”: NAGY, Gregory. The Ancient Greek Hero in 24 Hours. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2013.
6 CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003, canto I, estrofe 2.
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A lei da morte é o desaparecimento e o esquecimento.
Ao longo do poema Camões retomará a compreensão dos
feitos heroicos como libertação da lei da morte. Ao
alcançarem as Índias, os portugueses passam a existir sob
nova lei:
Vós, que à custa de vossas várias mortes
A lei da vida eterna dilatais7
O conceito de kleos como glória conferida pelo canto
épico permeia a épica camoniana, sendo fundamental para a
compreensão das queixas do poeta ao final do sétimo canto.
Quando o Catual visita a frota portuguesa, observa os feitos
dos homens que “em retrato breve / a muda poesia ali
descreve”. É o momento oportuno para que Camões faça seu
herói narrar, como antes, diante do rei de Melinde, a
memória dos heróis portugueses. Nesse preciso momento,
contudo, a narração é súbita e rispidamente interrompida
pela voz na primeira pessoa do poeta: “Mas, ó Cego! / Eu, que
cometo insano e temerário / sem vós, Ninfas do Tejo”. A
visão do poeta é momentaneamente perdida no instante de
descrever o que há na muda poesia dos retratos, isto é, no
ininini
49
instante da evocação dos heróis. Nisso, o modo épico se
desestrutura e dá lugar à expressão lírica do conflito que
divide a persona de Camões no poema: a tarefa de cantar
heróis que não aspiram por kleos, barões “tão austeros, / tão
rudos, e de engenho tão remisso”, como escreve no canto V, e
cantá-los ainda para um povo que lança seu poeta ao
desterro, “com pobreza avorrecida / Por hospícios alheios
degradado”. Toda essa passagem é elaborada como um
diálogo entre poeta e Musas, em tom de súplica, e aquilo pelo
que Camões suplica é a reconciliação com sua própria tarefa.
Essa reconciliação só lhe advém através da reafirmação da
ética em que baseia seu poema – “Que não no empregue em
quem o não mereça” -, que lhe reconduz de volta à matéria
épica:
Aqueles sós direi que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo e as Musas, que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado,
Por tornar ao trabalho, mais folgado8.
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
7 CAMÕES, op. cit., canto VII, estrofe 3.
8 Idem, canto VII, estrofe 87.
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50
A determinação dessa ética é inspirada pela confiança
que o poeta sustenta em relação ao poder do próprio canto
épico, em relação à “kleos” que concede àqueles a quem
celebra. Esse conflito acompanha a persona épica de Camões
até o último canto. Uma das estrofes mais belas de Os
Lusíadas é atormentada pelas forças de oposição à “kleos” – o
esquecimento e a morte, que o poeta, o distribuidor de fama,
volta contra si mesmo, pondo em risco o cumprimento de sua
missão para Portugal:
Vão os anos descendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono.
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó Grã Rainha
Das Musas, co’o que quero à nação minha9.
Esse conflito infla de pessoalidade a épica camoniana.
Na poesia homérica, como notamos, o narrador mantém uma
atitude impessoal em relação à matéria que trata, não se
onononon
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
9 CAMÕES, op. cit., canto X, estrofe 9.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
projetando para dentro da narrativa. Camões o faz,
largamente, evocando suas próprias peregrinações a serviço
da coroa portuguesa, pelos mesmos mares de Vasco da Gama
e companhia, como demonstra a célebre estrofe:
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Canace, que à morte se condena,
Numa mão sempre a espada, e noutra a pena10.
Embora haja muitas ponderações sobre os destinos e
padecimentos dos personagens na Ilíada, tais ponderações
têm elas próprias caráter impessoal: pertencem à sabedoria
da comunidade. Homero não se põe em conflito com o seu
mundo e seus heróis. Já Camões se coloca, abertamente, em
conflito com Vasco da Gama. Na poesia homérica, reina o
“desapego sereno” como princípio da narração épica, em que
o poeta oculta-se por trás de sua narração, permitindo que os
51
eventos e os diálogos sejam o foco de atenção constante11. A
atitude de Camões, contudo, afasta-se bastante disso. Em Os
Lusíadas, há um conflito explícito entre a narração impessoal
dos feitos portugueses e a experiência e as preocupações
pessoais de Camões. O temperamento do poeta espalha-se
pelos cantos, e o ponto básico pelo qual fundamenta sua
inserção e sua autoridade dentro da narrativa relaciona-se
exatamente à kleos.
No épico luso, como se sugere pela breve análise do
desfecho do canto VII acima, o tema será, contudo,
modernamente problematizado pela reflexão crítica que
explicita, em última instância, a separação entre canto e
comunidade. “Kleos” é um valor que só adquire objetividade
se inserido dentro de um ethos, de uma experiência comum
que lhe possibilita exercer uma função real como
fundamentador das ações e dos comportamentos dentro de
um grupo. Esse contexto pragmático não existe para o épico
camoniano. Ainda assim, um motivo que anima Os Lusíadas é
o elogio de “kleos” e, com isso, do próprio poeta, como
elemento basilar para a harmonia do povo português. Pela
glória que o canto épico concede aos feitos e homens
ononononono
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
10
CAMÕES, op. cit., canto VII, estrofe 79.
11 Ver: On epic and dramatic poetry. Disponível online em: http://www.schillerinstitute.org/transl/schil_epic_dram.html.
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históricos interpenetram-se a história e o mito, a ação e a
ideia. Essa reconciliação entre a espada e a pena, que Camões
representa em sua própria figura, é central em Os Lusíadas, e
não por acaso se manifesta eloqüentemente nos decisivos
cantos V e VII, em que os portugueses atravessam o Cabo das
Tormentas e em que chegam às Índias, respectivamente.
O fecho do canto V é particularmente significativo
nesse sentido. Vasco da Gama conclui sua narração ao rei de
Melinde com a afirmação jactanciosa da superioridade do
feito português, pelo seu caráter verídico, em relação às
ficções épicas dos antigos:
Cantem , louvem e escrevam sempre extremos
Desses seus Semideuses, e encareçam,
Fingindo Magis Circes, Polifemos,
Sirenas que com o canto os adormeçam;
Dêem-lhe mais navegar à vela e remos
Os Cicones, e a terra onde se esqueçam
Os companheiros, em gostando o Loto;
Dêem-lhe perder nas águas o piloto;
52
Ventos soltos lhe finjam, e imaginem
Dos odres e Calipsos namoradas;
Harpias que o manjar lhe contaminem;
Descer às sombras nuas já passadas:
Que por muito e por muito que se afinem
Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
A verdade que eu conto nua e pura
Vence toda grandíloqua escritura12.
Embora Camões, já na abertura do poema, compartilhe
da jactância do navegador, absorvendo para seu discurso a
alegação da superioridade dos feitos portugueses e,
consequentemente, de sua narração em relação à tradição, a
apropriação desse discurso por Vasco da Gama, ao final de
sua fala ao rei de Melinde, é seguida por uma reflexão do
poeta sobre os efeitos perniciosos do descaso de Portugal e
de seus barões pela poesia, que culmina em uma crítica
direta à Vasco da Gama:
Enfim, não houve forte capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
12
CAMÕES, op. cit., canto V, estrofe 88-89.
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53
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não na estima.
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias, nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez, e tão austeros,
Tão rudos, e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso.
Às Musas agradeça o nosso Gama
o Muito amor da Pátria, que as obriga
A dar aos seus na lira nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga:
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga,
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas douro fino, e que o cantassem13.
O discurso de Camões, aqui, entra em conflito direto
com o de Vasco da Gama, exatamente no canto central do
poema. O navegador português celebra o próprio feito,
julgando-o acima das “fábulas vãs, tão bem sonhadas” da
antiguidade. Contudo, sua jactância é indiretamente
explicada na máxima justa e simples: “quem não sabe arte,
não na estima”. Esta é a ironia camoniana: Gama rebaixa a
popopo
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
13
CAMÕES, op. cit., canto V, estrofe 97-99.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
glória dos antigos, associando a invenção poética ao
fingimento, contudo sua própria glória só é plenamente
atingida em uma “grandíloqua escritura”, que dá “aos seus na
lira nome e fama”, comunicando aos portugueses não apenas
os fatos e as datas históricas, mas o sentimento e o
significado da aventura nacional, acordando o país para o seu
próprio mito. Ao final do Canto IX, para enaltecer o poder de
“kleos”, Camões acena ainda para a origem histórica destes
“semideuses” que Vasco da Gama desanca, associando-os
diretamente à Fama, “trombeta de obras tais”:
54
Todos foram de fraca carne humana.
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses imortais,
Indígetes, Heróicos e de Magnos14.
Estes mortais, “de fraca carne humana”, libertaram-se
da lei da morte pelos feitos heroicos conjugados à kleos, a
fama de tais feitos eternizada no canto épico, tornando-os
fundamento para o ethos do povo.
Embora o canto V revele essa tensão entre herói e
Sobre as asas ínclitas da Fama,
poeta, Camões celebra Vasco da Gama e os demais
Por obras valorosas que fazia,
portugueses navegantes, pois seu compromisso é com “o
Pelo trabalho imenso que se chama
muito amor da pátria” que obriga as Musas e, indiretamente,
Caminho da virtude alto e fragoso,
o poeta, ao canto nacional. Esta obrigação, contudo, Camões
Mas no fim doce, alegre e deleitoso:
assume como missão, confiante, como se disse, na função
transcendente de kleos, base de sua autoridade no poema,
Não eram senão prémios que reparte
que lhe permite, ao fim do último canto, dirigir-se ao infante
Por feitos imortais e soberanos
Dom Sebastião, agora não para louvá-lo, como na abertura do
O mundo com os varões, que esforço e arte
poema, mas para orientá-lo, convocando-o para sua visão de
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Portugal, alicerçada na reintegração do canto à comunidade.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Essa reintegração é efetuada exatamente por Os Lusíadas, o
Eneias e Quirino, e os dois Tebanos,
Ceres, Palas e Juno, com Diana,
que Camões parece querer representar simbolicamente pela
jhfg
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
14
CAMÕES, op. cit., canto IX, estrofe 90-92.
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simbiose entre o feito português e sua obra, manifesta no
paralelismo entre a travessia portuguesa do Cabo das
Tormentas, ao meio do globo, e a estrofe exatamente ao meio
de Os Lusíadas, no canto V, que dá voz ao “Cabo
Tormentório”.
Camões encerra o poema retomando a sua própria
figura como português em quem o plano da ação e o plano da
ideia se harmonizam, agora em um tom mais sereno,
humilde, diante do rei, e ciente do feito heróico de sua
própria obra máxima:
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina,
55
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja15.
A contradição entre canto e comunidade, contudo, não
é superada em Os Lusíadas. A narração da aventura nacional
que mostrou “novos mundos ao mundo” é o épico moderno
por excelência justamente por essa percepção crítica de uma
ruptura dentro da cultura do próprio povo celebrado. O
épico, na medida em que busca erigir uma visão global,
tende, por esse princípio constitutivo, a pôr em conflito a
variedade de discursos que se debatem dentro de uma
cultura. Desse modo, o épico será tanto mais harmônico
quanto mais harmônica for a cultura do povo de que trata.
Nesse ponto, convém citar a reflexão de Schlegel sobre a obra
de Camões, que contém insight valioso sobre a psicologia do
povo português.
Camões não se confina ao Gama e à descoberta da
Índia ou mesmo ao poder e conquistas dos
portugueses de seu tempo; o que de cavalheiresco,
grandioso, belo ou nobre pudesse ser recolhido das
tradições de seu país foi entretecido e incorporado à
teia de seu poema. Ele abarca toda a poesia de sua
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
15 CAMÕES, op. cit., canto X, estrofe 155-156.
nação; entre todos os poetas heróicos
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
teia de seu poema. Ele abarca toda a poesia de sua nação;
entre todos os poetas heróicos tanto dos tempos antigos
quanto dos modernos, nunca houve, desde Homero,
nenhum outro tão intensamente nacional, ou tão amado e
honrado por seus compatriotas quanto Camões. É como se
os sentimentos nacionais dos portugueses, excluídos de
qualquer outro tema de meditação pela degradada
condição de seu império, se centrassem e repousassem na
pessoa desse poeta, considerado por eles, e digno de ser
considerado por nós, como capaz de figurar em lugar de
todo um grupo de poetas, e ser, em si mesmo, uma
literatura completa para seu país17.
56
uma reconciliação com a kleos com a qual Camões cobriu a
história do país, e que, não realimentada pela nação, a
assombra, contudo, como fantasmagoria. O sebastianismo é a
resposta mística a essa condição, e é esse dilema que
Fernando Pessoa, séculos depois, em diálogo silencioso e
constante com Os Lusíadas, tentará resolver em sua própria
obra, especialmente em Mensagem, cujo tema é justamente o
imperativo de uma nova descoberta, de um novo
empreendimento nacional: “Dá o sopro, a aragem, - ou
desgraça ou ânsia -, / com que a chama do esforço se remoça,
/ e outra vez conquistemos a Distância – do mar ou outra,
mas que seja nossa!”.
Pode-se dizer que esse quadro que engloba tudo o que
há de nobre e belo na história de Portugal é a visão
camoniana de Portugal, para qual o poeta convoca Dom
Sebastião e todos os portugueses, visão, contudo,
constantemente abalada pela percepção daquela ruptura. Por
esse ponto de vista, pode-se pensar a história posterior de
Portugal como uma contínua autoavaliação à luz do mito da
nação tal como imortalizado no grande épico nacional. Os
portugueses posteriores a Camões terão de buscar uma nova
rota, descobrir um novo caminho pelo qual possam chegar a
jjjjj
17
SCHLEGEL, Friedrich. Lectures on the History of Literature. T. Dobson and son, 1818, p.102. Tradução minha.
João Miguel Moreira
Graduado em Letras pela UNICAMP. Mestre em Linguística na área de Letras Clássicas. Traduziu
o livro “Diógenes, o cínico”, de Luis E. Nevia, para a editora Odysseus. Publicou o livro
“Mausoleu” pela Editacuja, em 2009.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
58
Rugas
As rugas que escrevinham minha cara
são o que me divulga e me separa.
É um texto tramado em minha pele,
forjado pelo corpo e o atrito dele.
É um emaranhado que nasce como o buço
A cortina da janela em que debruço.
É a erosão das águas e do vento
A pegada do sentir que experimento.
Gaforinha de escolhas e trajetos,
acúmulo de vidas e dejetos.
Dança dos encontros, capoeira,
turbilhão humano numa feira.
Matagal de gatafunhos estrangeiros
desbravado a foice, por grileiros.
Mescla de gritos, correria e vozes
numa caçada aos monstros ferozes.
Estalactite do que a mente pensa,
sina que assina uma sentença.
Mapa de circuitos e trilhas
de onde nascem gentes e famílias.
Música de pedra, poema concreto,
tatuado em meu rosto por decreto.
Rastro de passeios vadios,
cinza da queima de pavios.
Fluxo de sons que por aí falei,
quando vira leito e letra e lei.
O poema do que a gente erra
e que, com a gente, o povo enterra.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
59
O Cantador
O homem que passa cantando
aqui por Sta. Isabel,
enche o mundo com seu canto
que sobe do chão ao céu.
Ele vem sempre à tardinha
de bicicleta ou a pé
e canta uma ladainha
que não entendo qual é.
Inda ontem ele veio
com seu canto calmo e alto,
cantado de peito cheio,
olho longe e pé no asfalto.
De onde sai essa voz
que enche a rua se ele passa
cantando, assim, para nós,
com tanto gozo e de graça?
O homem, soltando o canto,
enche o mundo, o peito, a
rua;
enche tudo e enche tanto
que enche também a Lua.
Seu canto, sereno e firme,
é tão claro, fácil e certo
que dá vontade de ir-me
ouvi-lo e vê-lo de perto.
Porque ele canta forte,
canta simples e tão bem,
que já não existe morte
e eu não sou mais ninguém.
Ricardo Gessner
Doutorando em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Sua dissertação de mestrado versa sobre o
livro Distraídos Venceremos, de Paulo Leminski, e foi defendida na mesma instituição, com o seguinte
título: “Paulo Leminski e uma poética da distração”. Atualmente desenvolve sua tese de doutorado,
também sobre a poesia de Leminski.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
61
Na contramão: Toda Poesia – Paulo Leminski
Completa-se um ano da
publicação do volume Toda poesia –
Paulo Leminski, pela Companhia das
Letras. A coletânea obteve sucesso de
vendas a ponto de desbancar livros
do porte de 50 tons de cinza, da
autora
Erika
Leonard
James,
permanecendo no topo da lista dos
mais vendidos¹. Mas, apesar de se
falar em “sucesso de vendas”, talvez
não seja possível falar em “sucesso editorial”, no que tange à
organização do volume.
A coletânea tem como proposta contemplar toda a
produção poética de Paulo Leminski (1944 – 1989), com a
inclusão de comentários críticos e depoimentos sobre o poeta
e sua obra. Finalmente divulgam-se poemas praticamente
desconhecidos, como os de Polonaises e Não fosse isso e era
menos não fosse tanto e era quase, além de trazer um texto de
jjjj
José Miguel Wisnick abordando de maneira geral as
composições musicais de Leminski, faceta ainda pouco
conhecida do autor.
Até hoje, livros como Caprichos e Relaxos (1983),
Distraídos Venceremos (1987) e La vie en close (1991), por
exemplo, estão fora de circulação. Além disso, há as raridades
bibliográficas de 40 clics em Curitiba (1976) – o primeiro
livro de poesia de Leminski, composto junto com o fotógrafo
Jack Pires e com tiragem limitada² –, bem como Polonaises e
Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, ambos
publicados em edição independente, em 1980. Talvez seja
esse o motivo imediato do sucesso de vendas, afinal, há anos
os livros de Leminski permanecem esgotados. Em cada obra
é possível identificar se não um projeto, ao menos uma
preocupação
organizacional,
explicitada
em
suas
apresentações e prefácios. Tendo isso em mente, a coletânea
atual torna-se problemática em alguns aspectos.
40 clics em Curitiba, por exemplo, é um livro de
poemas e fotos. Na verdade, são 40 plaquetes compostas
por uma fotografia e um poema.
________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹ O acontecimento foi divulgado em diversos meios; eis duas reportagens:
http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2013/05/17/mais-pop-que-50-tons-de-cinza-livro-apresenta-leminski-complexo-a-geracao-do-facebook.htm;
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1355441.
² O livro teve uma reedição em 1990, também com tiragem limitada – de três mil exemplares –, permanecendo como item raro.
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por uma fotografia e um poema. Na coletânea Toda Poesia,
constam somente os poemas, sob a alegação do próprio
editor, de que foram escritos antes das fotos e por isso
optou-se por não incluí-las. Ora, uma “opção” como essa
escamoteia a proposta inicial do livro, que é justamente
estabelecer um diálogo intersemiótico – para utilizar um
termo afeito a Leminski – entre duas manifestações artísticas
diferentes. Na mesma nota introdutória o editor ainda cita
Leminski: “Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi
buscada a relação/contradição texto/foto. Os poemas
estavam prontos jᔳ. Ao fazer essa citação – retirada da
introdução de 40 clics em Curitiba que, por sua vez, não está
na seção “apêndice” da coletânea –, o editor tenta justificar
sua opção, mas indiretamente reforça a mutilação da obra,
pois, se a “relação/contradição texto/foto” foi o motivo de
escolha dos poemas, essa é antes uma justificativa de
inclusão. O mesmo se aplica se nos reportarmos ao que Alice
Ruiz⁴ fala na apresentação de Toda Poesia:
62
entre os poemas curtos, quais conversavam ou rimavam
com aquelas imagens.
Se os poemas foram escritos antes, durante, ou depois das
fotos; se foram escritos pensando nelas ou não, pouco
importa – o importante é que poema e imagem dialogam,
relacionam-se. O atrito e/ou a convergência entre as duas
linguagens produzem novos sentidos, significações e
possibilidades de interpretação. Se do ponto de vista
editorial a inclusão das fotos ocasionaria outras dificuldades,
não é o que diz o editor.
Grande parte dos poemas pertencentes a Polonaises e
Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase foram
posteriormente incluídos em Caprichos e Relaxos. Talvez por
esse motivo os dois livros ficaram relegados ao título de
“raridade bibliográfica”. Na coletânea, os poemas não
inclusos em Caprichos e Relaxos foram incorporados numa
seção intitulada “Poemas esparsos”. Em relação a isso, duas
questões podem ser levantadas: 1) No caso de Não fosse isso
Em 1976, quando o fotógrafo Jack Pires chegou com a
e era menos não fosse tanto e era quase, há um trabalho
proposta de fazer um livro em conjunto com Paulo,
gráfico com a diagramação dos poemas: eles estão
espalhamos as fotos dele pelo chão e fomos procurando
expandidos de tal forma que a granulosidade da tipografia
entre
torna-se aparente, os poemas aparecem como se fossem
________________________________________________________________________________________________________________________________________
anúncios, placas comerciais ou peças publicitárias. É um
³LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia – Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
p. 14característico
(ênfase minha). e importante numa obra como a de
dado
4 Ibidem, p. 8 (ênfase minha).
Leminski
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
torna-se aparente, os poemas aparecem como se fossem
anúncios, placas comerciais ou peças publicitárias. É um
dado característico e importante numa obra como a de
Leminski, que sempre se preocupou em relação aos meios de
comunicação em massa, e que deles procurou se aproximar.
Em Toda Poesia, isso é mencionado en passant na
apresentação; 2) a seção “poemas esparsos” traz os poemas
de Polonaises e Não fosse isso e era menos, não fosse tanto e
era quase não incluídos em Caprichos e Relaxos. Acontece que
originalmente eles fazem parte de um conjunto, e, se não
foram incluídos posteriormente, há algum motivo para isso,
o que também indica uma preocupação organizacional de
Leminski. Portanto, não são esparsos.
Winterinverno é um livro póstumo, publicado em
2001. Traz poemas escritos espontaneamente durante as
“noites de boemia”, em guardanapos, pedaços de papel,
maços de cigarro, com desenhos de João Suplicy. Novamente
temos a interação entre poema e imagem. A edição original
traz os fac-símiles dos textos; já a coletânea Toda poesia, não:
as imagens foram suprimidas sem nenhuma justificativa. Eis
o que diz o editor em nota⁵:
63
Winterinverno foi publicado em 2001 pela editora
Iluminuras, na forma de um ‘álbum’ em que dialogavam
poemas de Paulo Leminski e desenhos de João Suplicy.
Optamos por manter somente os poemas, sem imagens, e
apenas os que ainda não haviam aparecido em livros
anteriores do autor.
O editor reconhece o diálogo entre poema e desenho,
mas mesmo assim “opta” pela exclusão das imagens sem
nenhuma justificativa.
É possível verificar, portanto, que os projetos poéticos
de Leminski ocupam um lugar menor nessa coletânea. Isso
tem seu ápice na seção “Apêndice”, da qual constam as
apresentações e prefácios de cada livro, misturados a
depoimentos e textos críticos. Ou seja, há um
desmembramento dos livros, que perdem sua organicidade.
Além disso, é importante lembrar que a introdução de 40
clics em Curitiba não consta da coletânea, mesmo sendo
citada pelo editor.
Leminski é largamente conhecido por sintetizar em
sua poesia aspectos eruditos e populares. Falar em “projeto
poético” é algo delicado na crítica especializada. Ao
considerar os estudos publicados em livro (apenas os que
tratam especificamente de sua poesia), a maior parte enfoca
a constituição intertextual, seja em relação a movimentos
________________________________________________________________________________________________________________________________________
5 Ibidem, p. 360 (ênfase minha).
artísticos
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64
tratam especificamente de sua poesia), a maior parte enfoca
É possível identificar, em vários momentos, a
a constituição intertextual, seja em relação a movimentos
preocupação de Leminski não só a respeito de sua dicção
artísticos ou teóricos. Identificam-se concretismos,
poética, como também da elaboração de projetos de livros.
tropicalismos, semioticismos à la Peirce, modernismos à la
Basta, por exemplo, reportar-se às cartas enviadas a Régis
Oswald de Andrade, haicaísmos e orientalismos, poesia beat,
Bonvicino para constatar. Logo na primeira epístola, diz6:
sintetismos, etc...
na capa da frente
Desse amontoado intertextual, uns se preocupam em
na capa de trás uma foto da minha cara
demarcar uma dicção leminskiana – caracteristicamente
com um e colado no vidro do óculos esquerdo
leminskiana, de combinar aspectos eruditos e populares –,
outros empreendem esforço intelectual para demonstrar a
e o ? no outro
originalidade do Leminski-poeta em seu repertório múltiplo,
simétricos à capa da frente
e alguns até mesmo intentam enquadrá-la como sendo uma
poesia de vanguarda. Desse modo, para verificar como a
O projeto “e?” não foi levado a cabo, mas demonstra o
poesia de Leminski se constitui, estabelecem um corpus
interesse de Leminski até mesmo na apresentação gráfica de
poético que abarca toda a sua produção. Isso resulta numa
seu livro, ao insinuar que haja uma simetria entre os
visão esparsa, e a noção de “projeto” torna-se perigosa. Isso
caracteres e sua foto. Sugere-se uma íntima relação entre
reverbera na estruturação editorial da coletânea Toda
texto e figura, bastante coerente à sua proposta de um
Poesia: todos os indícios de um projeto poético estão
livro/álbum e que demonstra claramente a importância do
relegados a uma seção isolada, um mero “Apêndice”,
diálogo entre poema e imagem. Na própria carta isso se torna
misturados com textos de outros autores, escritos em épocas
ainda mais evidente com os rabiscos que Leminski faz: ele
diferentes, e que podem não ter relação com o que Leminski
circula o “e” (7ª linha) e o “?” (8ª linha), cada um com um
planejava para seus livros.
traço perpendicular
É possível identificar, em vários momentos, a
________________________________________________________________________________________________________________________________________
preocupação
de Leminski não só a respeito de sua dicção
6 Ibidem, p. 360 (ênfase minha).
poética
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traço perpendicular, compondo a imagem de um óculos. Mais
à frente, na mesma carta, Leminski continua7:
... voltei disposto a só produzir
o mais radical que eu pudesse
só o meu melhor
só aquilo de que sou capaz
se é que há isso
mas se houver eu vou fazer
e acho que é: o e?
que ia se chamar rarefeito
que ia se chamar radar
mas vai ser essa conjunção difícil de dizer
que responde também aos que perguntam
e (depois do catatau) ?
65
Outro exemplo: no prefácio de Distraídos Venceremos,
Leminski diz: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, [...]
arrisco crer ter atingido um horizonte longamente
almejado: a abolição [...] da referência através da
rarefação”9. Ora, “rarefação” reverbera seu antigo projeto,
que ia se chamar “rarefeito”. E, mais do que isso, fala-se
em atingir “um horizonte longamente almejado”, ou seja,
sugere-se (“arrisco crer”, ele diz) a consolidação de um
projeto. Se Leminski faz essa declaração ironicamente, não
anula a questão.
No decorrer da década de 1980, Leminski logrou
sucesso editorial com a publicação de Caprichos e Relaxos
(1983) e Guerra dentro da gente (1986)10, conseguindo
relativa projeção também como letrista de música popular.
A diferença é que, naquele contexto, o poeta tinha um
projeto articulado, ao menos em relação a sua poesia, de
torná-la acessível ao grande público e, ao mesmo tempo,
sem deixar de lado a possibilidade de constituir efeitos de
sentido mais sutis.
A poesia como simples mercadoria, objeto vendável e
fonte de lucro,
Ressalto de imediato a consciência icônica de Leminski
ao colocar entre parêntesis8 a indagação “depois do catatau”
na última linha, deixando de fora os caracteres “e” e “?”, e
fazendo com isso uma remissão ao título de seu projeto.
Outro exemplo: no prefácio de Distraídos Venceremos,
Leminski diz: “Nas unidades de Distraídos Venceremos, [...]
________________________________________________________________________________________________________________________________________
7arrisco
atingido
um
longamente
LEMINSKI,crer
Paulo;ter
BONVICINO,
Régis.
Enviehorizonte
meu dicionário:
cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999.
8 O parêntesis está desenhado à mão, e, portanto, foi feito depois de Leminski ter datilografado a carta.
almejado: a abolição [...] da referência através da
9 LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 7. Ênfase minha.
9.
rarefação”
10
Livro em prosa,
infanto-juvenil.
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A poesia como simples mercadoria, objeto vendável e
fonte de lucro, é uma questão com que Leminski se
preocupou e sobre a qual refletiu. No texto “Arte inútil, arte
livre?” (2012), por exemplo, faz um breve apanhado histórico,
contrapondo a função da arte nos tempos da Idade Média,
Renascença e Modernidade. A principal diferença é que, tanto
na Idade Média quanto na Renascença, a arte cumpria uma
função pré-estabelecida: “deleitar e instruir” (Idade Média),
ou simplesmente “deleitar” (Renascença). Com a ascensão
social da burguesia, inaugura-se a Modernidade. A arte deixa
de ter uma função pré-determinada e torna-se mercadoria
nas mãos da classe burguesa; com exceção de uma, a
literatura11:
66
A dificuldade da literatura em se tornar mercadoria
reside no fato de a palavra ser “... essencialmente, política.
Portanto, ética”12. E isso é levado a um grau extremo na
poesia13:
O puro valor da palavra está na poesia. Por isso é sempre
considerada mercadoria difícil. ‘Poesia não vende’ é um dos
mandamentos do Decálogo mínimo de qualquer editor
sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser
outra coisa, além ou aquém da mercadoria e do mercado.
Retomando Theodor Adorno, Leminski diz: “Em sua
recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a
obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros
Certas artes, pintura, escultura, se prestaram melhor a essa
e radicais, de uma ‘negatividade’”14. Essa “negatividade” é
transformação em mercadoria eticamente neutra,
nada menos do que a “negação” de tornar-se fonte de lucro e,
buscadora apenas de qualidades plásticas e cromáticas,
por conseguinte, de inserir-se na dinâmica de consumo. A
técnicas e sintáticas. (...) Ao ouvir falar em arte moderna, o
arte, e principalmente a poesia, tornam-se objetos de
burguês puxa o talão de cheques. Mas uma arte resistiu com
particular vigor a essa comercialização. E essa foi a
resistência a esse contexto. Podem não ter uma função préliteratura, a arte que tem a palavra como matéria prima. Em
estabelecida, mas resistem a essa sociedade mercantil. Isso
especial, a poesia, lugar onde a palavra atinge vigência
não significa que a poesia não produza outros tipos de lucros.
plena, máxima, substantiva.
No ensaio “Inutensílio” (2012), Leminski diz: “O lucro da
poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos
________________________________________________________________________________________________________________________________________
11 LEMINSKI,
12 Ibidem,
Paulo. Arte inútil, arte livre? In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 45.
13 Op. Cit..
p. 46.
14 Ibidem,
p. 49.
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No ensaio “Inutensílio” (2012), Leminski diz: “O lucro da
poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos
no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de
produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da
utilidade.” 15. Em outras palavras, o que Leminski diz é: a
poesia tem a capacidade de não se tornar um utensílio, que
atende às necessidades de um mundo pragmático. A
literatura, e principalmente a poesia, podem escapar dessa
contingência e tornarem-se objetos de resistência.
Se Leminski logrou sucesso editorial, não foi por ter
feito de sua poesia objeto mercantil. É importante lembrar
que Leminski também foi redator e conhecia as técnicas
publicitárias. Seu interesse nesse campo era principalmente,
pelas relações intersemióticas no diálogo entre as várias
linguagens midiáticas. Noutra carta a Bonvicino, diz16:
a propaganda meu meio de vida
me dá algumas satisfações
afinal
todo layoutman é um pouco poeta concreto
e aliás é fantástico como os homens de arte das agências
67
entendem um trabalho concreto na
hora
enquanto os literati dizem:
- o que é isso? que quer dizer? isso não é poesia.
Só me dou com cartunistas fotógrafos cineastas desenhistas
Tudo menos escritores
Dos quais acabei por ter grande horror
(1999, p. 34)
Leminski utiliza-se dessas técnicas para elaborar a sua
poesia. E o faz para produzir outros efeitos, outros sentidos.
E isso não se aplica, necessariamente, a toda sua obra.
Se por outro lado um livro como Distraídos Venceremos não
obteve o mesmo êxito de vendas, não significa que não tenha
obtido êxito editorial, afinal, trata-se de outro projeto, como
diz no prefácio17: “Nas unidades de Distraídos Venceremos,
resultado do impacto da poesia de Caprichos e Relaxos (19831987) sobre a fina e grossa cútis da minha sensibilidade
lírica (...)”. Leminski inclusive estabelece um período, 1983 –
1987, que é o período entre a publicação dos dois livros, o
que evidencia sua preocupação programática.
________________________________________________________________________________________________________________________________________
LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. p. 87.
16 LEMINSKI, Paulo; BONVICINO, Régis. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 34.
15
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Em “Arte inútil, arte livre?” Leminski disse18:
Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da
renitência das casas editoriais em publicar poesia.
Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última
trincheira onde a arte se defende das tentações de virar
ornamento e mercadoria, tentações a que tantas vezes
sucumbiram prazerosamente.
Mas o apelo comercial de Toda Poesia – Paulo Leminski
é evidente. Possui página no Facebook19 e não é para
explorar os recursos intersemióticos que essa “nova mídia”
proporciona. Serve como meio de aproximação com o
público, porém se realiza mais como divulgação de um
produto. As pessoas podem interagir com postagens de
poemas, relatar suas impressões, render homenagens. O
público não tem obrigação de ler um criticamente um autor,
mas o projeto de Leminski permanece em segundo plano,
afinal, no volume Toda Poesia seus livros estão
desmembrados e suas partes, misturadas. Nesse sentido,
uma afirmação como a de Alice Ruiz, na apresentação da
coletânea, perde seu sentido: “Este livro é antes de tudo uma
ffff
68
vida inteira de poesia. Uma vida totalmente dedicada ao fazer
poético. Curta, é verdade, mas intensa, profícua e original” 20.
A publicação da coletânea reforça uma imagem que se
construiu em torno de Leminski: a de um poeta despojado e
despretensioso diante da escrita de poesia. E isso talvez pelo
fato de muitos estudos críticos projetarem na poesia
leminskiana essa imagem, sem levar em conta as
especificidades de cada livro. Cabe olhar mais de perto para
cada obra, para os efeitos de sentido que podem
proporcionar;
elaborar
interpretações
ou
chaves
interpretativas de seus livros ou até mesmo de poemas
específicos. Ao contrário de restringir sua obra em amarras
academicistas, esse gesto pode ampliar as possibilidades de
interpretação para outros horizontes “ainda não atingidos”.
Talvez trilhar outros caminhos que não passem pelo bordão
do “erudito popular”. E desse modo, constituir outros meios
de compreender sua poesia.
________________________________________________________________________________________________________________________________________
17 LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense. 1987. p. 07.
18 LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In: Ensaios e anseios crípticos. Campinas: Editora da Unicamp, p. 46.
19 Disponível em: https://pt-br.facebook.com/pages/Toda-Poesia-Paulo-Leminski/119334238256651.
20 LEMINSKI, Toda Poesia – Paulo Leminski. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 07.
Suene Honorato
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Professora do Departamento de Literatura da UFC.
Contato: [email protected]
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70
Quatro Ventas: A saga do menino bicho
— Se esse deus pôs no mundo, homem não tira –
retrucou cuspindo na cara do padre João a índia brava. Não
mandassem matar assim filho seu, que não queria. Vez em
quando também as plantas botam frutos enfezados, que a
gente tira antes de vingar; nem por isso planta é igual gente.
O menino ia viver! Ora, se não.
Tinha juntado um bando vindo da aldeia Gato Preto
pra levar o coisa estranha pro padre batizar. Mas o padre
santo quase cícero disse que não benzia bicho, e que bicho
ruim era melhor matar, pra não salgar a terra de pecado,
porque certamente era pecado que a mãe cometera pra ter
nascido um filho assim. A mãe ficou de lado, olhando
enviesado a sentença dele. Não sabia que o menino lhe
nascera bicho em paga das surras que o marido lhe dera por
um punhado de borra que se esfarelara, achando que ali
podia ler a traição que não cometera? Quando a criança
nasceu, já o marido havia se refugiado no mato com outros
índios.
Pois tava, que quando é que deixaria? Sempre ela,
durante os sete anos de vida que o menino-bicho ia
completando, o tinha protegido. Foi assim desde que nascera,
com a cara atrapalhada e as mãos retorcidas, parecendo que
a mucura ou outro bicho fedido ficasse passando o rabo pela
boca meio rasgada. Na sanha de fome esmerilenta, o meninobicho ia crescendo mais do que as outras crianças índias. Em
alguns meses, parrudo como tora de pau, ele já podia sentar
alguns meses, parrudo como tora de pau, ele já podia sentar
no chão de terra esperando o que lhe trouxessem pra comer
devorado. Nem choro se ouvia; somente o barulhar dos
dentes destroçando o que lhe davam, fosse ou não de comer.
A mãe o chamava Dominguinhos, mas não os outros da
aldeia, que cunharam na cara dele o nome de Quatro Ventas,
tantos eram os buracos do nariz. Não sabiam onde a índiamãe tinha ido chocar aquele menino-bicho, com o qual
aparecera uma manhã, de volta ao casebre à esquerda da
aldeia, e que logo foi abandonado pelos outros parentes. No
estranhamento que Dominguinhos punha em todos, iam
achando que era melhor matar logo o menino e enterrá-lo
sentado, como a todos, no buraco perto do rio. Os parentes
disseram que ela devia passar veneno no bico do peito pra
criança definhar sozinha, sem culpa. Pois tava. Fingiu que sim
e ficaram pensando que a força do menino botava melindre
no feitiço.
A mãe ia resistindo, e cada um faz o que acha mais
devido sem ficar ouvindo que assim não, assim sim, dos
outros seus parentes. E crescendo Dominguinhos, ia
crescendo também a fome desarvorada. Labigós pedaços de
pau setas com pena pra ave nenhuma, tudo sumia na
garganta enorme de Quatro Ventas. A mãe cuidava de se
apartar dos parentes, pensando na vida que alimentava,
evitando que ele comesse a palhoça do casebre e morressem
os dois enterrados sob a própria desgraça. Se ficasse de pé
agora, passava do seu
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
os dois enterrados sob a própria desgraça. Se ficasse de pé
agora, passava do seu tamanho. E ela nem podia mais
carregá-lo escanchado no cinto de embira.
Foi por essa época que resolveram levar o menino ao
padre João, na insistência da mãe de que o batismo cristão
tinha serventia pra colocar modos de gente no menino-bicho.
O evento encheu as ruas da cidade. Veio povo de todas as
paragens do Tocantins espiar o que diria o padre, com seu
bando de índios e caboclos postos ao lado em armamento
mirado, e as putas por detrás das casas pequenas protegidas
a um seu olhar. Todos esperavam a palavra definitiva, a
ordem de apagar da história da aldeia Gato Preto aquela
aberração que assombrava a vizinhança da cidade e das
outras aldeias, portanto que já ia comendo o sossego das
gentes nas conversas que sobre ele se esparramavam. E tinha
até missa aprontada: pra batismo ou velório? A mãe, índia
paramentada pra grande decisão, vestia roupa de branco,
com pintura de jenipapo por debaixo do manto azul de santa
que vai ter o filho salvo.
Nas ruas gritavam que era pra matar. Pediam em coro o
sacrifício, cada um na multidão rememorando o pecado
maior que a imolação expiaria. Veio vindo então a carroça
com o menino quase gigante amarrado, a mãe à frente do
cortejo com ar piedoso. Padre João esperava no largo da
matri
71
matriz, vendo de lá o rio tomado de barquinhos com mães
levantando seus filhos em oferecimento por alguma graça a
ser alcançada, pescadores sem o braço ou a perna levados pela
cobra d’água pedindo cura de aflição, moças de ventre
volumoso suplicando que a criança não nascesse com cara
de boto, plantadores com ramos de mandioca pra serem
benzidos, e enxadas pro alto, mulheres com gamelas sobre as
cabeças pedindo fartura. E o padre João, ao ver o menino-bicho
de olhos alheados amarrado nas tábuas fortes da carroça,
levantou a mão direita em riste e declarou:
– A comunidade de Boa Vista não deve padecer os
pecados alheios, dessa mãe que aqui se posta de branca santa!
Quatro Ventas não batizo. Deve morrer e ser enterrado pelos
seus parentes.
– Se esse deus pôs no mundo, homem não tira –
retrucou cuspido na cara do padre João a índia brava, já
arrancando a roupa de branca e o manto azul e botando no
lugar a cara de bicho que protege a cria, ensinando padre a
rezar missa, sendo por deus segundo seu entendimento, e não
pelo povo.
Daquela vez, o padre mandou baixar as armas. Que fosse
embora então a comitiva apinajé e não voltasse ali até que se
perdesse por completo a história desinfeliz daquela gente.
lalalala
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Isolado na cabana à esquerda da aldeia, perto do
ribeirão onde vicejavam muriçocas e varejeiras,
Dominguinhos perseguia kukrens. Na fúria da fome, viu
passar um cachorro, que com ele se solidarizou na procura
da presa. Olhando ingênuo a graça do bicho prestativo,
apetitou dele. A mãe o surpreendeu já com os dentes afiados
a morder a barriga do cão que latia em desespero. Correu pra
apartá-los, como fazia com a palha do casebre os utensílios
domésticos as roupas pra lavar. Mas Quatro Ventas reagiu
opinioso, mantendo a mãe à distância com a mão grande
espalmada contra os golpes dela, comendo pacientemente o
cachorro até sumirem os seus latidos, até ficarem no chão as
patas sem carne que já nem lembravam o bichinho de
minutos atrás.
A mãe fugiu, temendo que ela própria pudesse ser
comida aos gritos dali a alguns dias. Quatro Ventas, cada vez
maior, exigia alimento mais graúdo. Sozinho por uns dias,
andou coxeando por volta da casa, rodeando as outras da
aldeia e pondo susto a toda gente, embora uma ou outra
criança viesse atentá-lo. A mãe reapareceu depois, já reunida
ao cacique pra decidirem como impedir que a Gato Preto
fosse toda engolida pela fome de Quatro Ventas. Na ameaça
dos olhos vermelhos dele, a mãe assuntou que se punha em
perigo; não podia mais defendê-lo.
Decidiram, então, trapacear a morte e ir direto ao
enterro. Vivo, foi posto sentado em cova aberta na mata,
muitos
72
muitos palmos abaixo, e cada um da aldeia jogava um
punhado de terra por sobre. Quatro Ventas não resmungava,
só lambendo em volta a terra que lhe sujava as bochechas.
Quando tamparam o buraco por completo, viram que nada se
movia. Debaixo da terra, enterravam a memória ruim da Gato
Preto, que voltaria à vida dos tempos antigos, sem susto nem
fama difamada.
No dia seguinte, todo o povo retornou ao lugar do
enterro pra chorar o morto e terminar os rituais de
esquecimento. Ao chegarem, deram com a cova aberta, sem
terra por detrás, nos lados e ao fundo. Os mais fortes saíram
à cata do agora já bicho gigante, batendo mato sem cães, sem
pássaros, tudo silenciado. Ao final de alguns dias, nada
encontraram. A vida na aldeia foi escurecendo. De quando
em quando, se ouvia um pio trágico de algum bicho que
morria. As criações sumiam dos cercados. As crianças
ficavam guardadas dentro de casa. E a mãe de Quatro Ventas
abilolada, a arrancar os cabelos.
O cacique decretou que migrassem, pondo na terra a
malsância daquela gente, pois ali um bicho gigante tornara
noite o dia. Fundaram outra aldeia, distante alguns tantos de
terra, mas ainda nas cercanias da cidade do padre João. Lá se
chamam Mariazinha e pensam que todo dia seguinte o sol
nasce nas bandas do babaçual, onde Quatro Ventas não pode
se esconder.
Marcella Abboud
Doutoranda em Teoria e Crítica Literária pela UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
74
Lavoura Arcaica: o incesto como símbolo ambivalente
com a linguagem, visto que seu texto é inteiramente
construído em prosa poética, e mesmo que haja um filicídio
O presente artigo tem como objeto de estudo o romance Lavoura
na conclusão do enredo, o incesto é a principal marca e o
Arcaica (1975), de Raduan Nassar, cuja narrativa gira em torno da
saída do personagem André da casa da família, após um
grande embate do romance.
relacionamento incestuoso com a irmã Ana. Tal relação entre
Em Lavoura Arcaica, os consanguíneos que praticam o
irmãos tem sido constantemente analisada pelo viés da
interpretação do tabu social e da desordem causada na família: o
incesto são irmãos e, para alguns críticos, é visto como a
romance resulta em filicídio, cometido pelo pai de André e cuja
derrocada da família, uma vez que André, o protagonista e
vítima foi Ana.
irmão incestuoso, vai embora de casa, deixando os familiares
O principal intuito deste texto é dar um estatuto diferente ao
incesto e desprovê-lo da predominância de uma predicação
desolados e a lavoura abandonada. Em artigo dedicado ao
totalmente negativa. Para atingir tal desiderato, a presente reflexão
romance de Raduan Nassar e ao seu filme homônimo,
se valerá do respaldo teórico de Paul Ricoeur, em especial sua
Henrique Codato e Miguel Heitor Braga Vieira reconhecem
análise acerca da questão do símbolo. Para Ricoeur, todo símbolo
tem um sentido escamoteado e é, por excelência, dúbio. Em certa
dois modos de encarar o ato incestuoso: o incesto como
medida, é a garantia da dubiedade que permite deslocar o símbolo
contravenção social – a partir da quebra do tabu, visto como
do âmbito do negativo e realocá-lo no da ambivalência.
ato de desordem familiar. Propomos, com o presente artigo,
uma terceira via: o incesto como ato de amor,
Introdução
necessariamente ambivalente, uma vez que carrega uma
forte demonstração de afeto que não pode (e não consegue)
Se, em uma pesquisa, o título Lavoura Arcaica fosse
se desvincular da repulsa social.
lançado em um mecanismo de busca online, de certo que
Para atingir tal desiderato, recorreremos a Paul Ricoeur e a
teríamos como resultado imediato o termo incesto. Ainda
sua Simbólica do Mal². O modo como Ricoeur trata o conceito
que não se desconsidere o domínio ímpar de Raduan Nassar
de símbolo e a reelaboração do seu acervo simbólico nos
com a linguagem, visto que seu texto é inteiramente
permite rever esse pensamento, visto que é preciso
construído
compreender que, para Ricoeur
________________________________________________________________________________________________________________________________________
resumo
¹CODATO, Henrique; VIEIRA, Miguel Heitor Braga. O incesto no livro e no filme Lavoura Arcaica. In : Todas As Musas: Revista de Literatura e das Múltiplas
Linguagens da Arte. São Paulo, 2011: v. 2, n. 2, p.76-93.
2 RICOEUR, Paul. A simbólica do Mal. Trad. de Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
simbólico nos permite rever esse pensamento, visto que é
preciso compreender que, para Ricoeur, ele possui sempre
dois sentidos. Além disso, o Mal, para o autor, é algo que não
se pode conhecer diretamente, e que só permite uma
interpretação necessariamente simbólica: ele é o símbolo por
excelência. Esse duplo sentido constitui a natureza do ato
mais comentado do romance, o incesto. Assim, a relação
sexual e amorosa entre os irmãos André e Ana pode ser
considerada ambivalente, pois carrega um discurso negativo,
ainda que fale majoritariamente de amor (e seja uma possível
demonstração de sua existência).
Dessa forma, poderemos deslocar a temática do incesto,
em Lavoura Arcaica, da ordem do monstruoso3 e realojá-la no
campo que lhe é de direito: da ambivalência, que também
inclui o amor. Ao fazer isso, reelaboramos a própria cultura,
por meio das reinterpretações possíveis, considerando do
conceito de símbolo. O caminho interpretativo que nos
permite esse novo olhar e essa nova reinterpretação do
símbolo está relacionada à presença constante da natureza na
descrição do romance, a qual faz parte da constituição
familiar - e pessoal - da própria personagem.
75
Lavoura Arcaica
O livro de Raduan Nassar data de 1975 e é o primeiro
da escassa, porém marcante, produção literária do autor. Seu
enredo é simples e pode ser resumido em um parágrafo:
narra a história de André que, infeliz com a vida que tinha
com sua família, em uma fazenda de lavoura, foge de casa.
Depois da fuga, Pedro, o irmão mais velho (e primogênito)
vai à procura de André e o encontra num quarto sujo de
pensão. Ao contrário do esperado, a conversa acalentadora
do irmão mais velho não sensibiliza o filho pródigo:
declarações desestabilizadoras são feitas pelo irmão fugido
que, apesar disso, retorna ao seio familiar4, como convém a
parábola.
Se há simplicidade na descrição do romance, ela se
esvai completamente na construção das personagens, os
quais is constituem um núcleo familiar rural, com sete filhos.
O texto é construído, quase em sua totalidade, em primeira
pessoa e o narrador é André, o filho que foge da família.
bababa
________________________________________________________________________________________________________________________________________
³ Esse adjetivo é correntemente utilizado para se referir ao incesto. Um exemplo disso é o artigo “Filicídio e incesto como atos monstruosos, em Lavoura
Arcaica, de Raduan Nassar”, do Professor Doutor Paulo R. B. Caetano (UFMG).
4 A intertextualidade com o texto bíblico foi amplamente explorada pelo autor e, no presente texto, não será objeto de análise.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Praticamente todo acesso que temos à história de sua fuga,
da opressão e de seu incesto é feito a partir do olhar de
André e, por essa razão, não é possível adjetivar o incesto do
romance como monstruoso, a não ser com a devida vênia,
isto é, que é claramente um adjetivo dado a posteriori pelos
críticos, imbuídos do tabu que marca a sociedade
contemporânea. O incesto, em Lavoura Arcaica, é da ordem
do dúbio.
Os outros personagens que aparecem no romance são;
Ana, a irmã por quem André se apaixona; Lula, o caçula, com
quem André também tem um relacionamento incestuoso;
Iohánna, o pai; a mãe; e as três irmãs, Rosa, Zuleika e Huda:
76
tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de
uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o
segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância
mórbida, em um enxerto junto ao tronco protuberância
mórbida, em um enxerto junto ao tronco talvez funesto,
pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a
distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do
tempo) definia as duas linhas da família.5
Esse trecho é bastante paradigmático da visão que o
autor faz da sua própria imagem: ele é parte do lado negativo
da família, a ala sinistra, para fazermos alusão ao tronco
esquerdo. Essa parte, como demonstrado no trecho, opõe-se
ao direito: do lado funesto, está o afeto; do outro, a tradição.
Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições,
A dubiedade já aparece no tom irônico deste trecho, dado
ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por
que o afeto apresenta uma conotação negativa.
ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa,
Ademais, tal dicotomia é muito relevante para a
Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida
Presente investigação, haja vista a tentativa de evidenciar
eu, Ana, e Lula; à sua direita, por ordem de idade, vinha
que há na derrocada familiar a opressão da tradição, muito
primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua
mais que o amor. A anomalia, a protuberância mórbida seria,
esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula.
de fato, um enxerto ao tronco. Contudo, o tronco não é
O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do
apresentado como sinônimo de firmeza, mas como de força
tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de
bruta e complemente imóvel. Essa imagem da rigidez uma cicatriz como se a mãe, que era por onde começava o
segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância
bastante alegórica ao se falar em tradição - é reiterada pelo
________________________________________________________________________________________________________________________________________
mórbida, em um enxerto junto ao tronco talvez funesto,
narrador, que constrói sua tentativa de fuga na distância que
5 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp.154-155.
pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a
estabelece de casa, da qual ele tenta sair completamente distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do
embora nunca consiga de fato:
5
tempo) definia as duas linhas da família.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
bruta e complemente imóvel. Essa imagem da rigidez bastante alegórica ao se falar em tradição - é reiterada pelo
narrador, que constrói sua tentativa de fuga na distância que
estabelece de casa, da qual ele tenta sair completamente embora nunca consiga de fato:
Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha
contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!)
que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se
acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?”
– não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse
paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não
importava que eu, caminhando, me conduzisse para
regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir
claramente de meus anseios um juízo rígido, era um
cascalho, um um osso rigoroso, desprovido de qualquer
dúvida: “estamos indo sempre para casa”. 6 (grifo nosso)
77
sombras: o avô, que aparece como uma espécie de penumbra
assustadora no romance7 e no primogênito Pedro, cujo nome
não esconde uma espécie de rigidez tão naturalmente
imagética como um tronco, isto é, uma pedra.
Quando o pai, em algum momento é mencionado,
sempre lhe são atribuídos os sermões que se repetem como
forma de negativar uma atitude. Seus valores, repassados por
parábolas e ensinamentos, procuram falar em comedimento
e paciência. Aos olhos de André, o pai sempre oprimiu com
seus ensinamentos, podando toda sombra de dúvida, anseio
e criatividade:
...tudo, Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente
impregnado pela palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai
que dizia sempre é preciso começar pela verdade e
terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas
assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era
assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra
angular, era essa a pedra em que tropeçávamos quando
crianças, essa pedra nos esfolava a cada instante, vinham
daí as nossas surras e as marcas no corpo...8
A relação forte com a tradição – marcada desde o título
do romance pelo adjetivo “arcaica” – está ancorada
especialmente na figura paterna, Iohánna, e tem duas
sombras: o avô, que aparece como uma espécie de penumbra
________________________________________________________________________________________________________________________________________
assustadora no romance7 e no primogênito Pedro, cujo nome
6 Ibidem, pp.33-34.
não esconde uma espécie de rigidez tão naturalmente
7 Diz o pai, em um sermão: “na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o outro exemplo: é na memória do
imagética
comoasum
tronco,
é, umaque
pedra.
avô
que dormem
nossas
raízes,isto
no ancião
se alimentava de água e sal para nos prover um verbo limpo” em Ibidem,, p.60.
8 Ibidem,
p.41
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai”
eu disse de repente com a frivolidade de quem se rebela,
sentindo por um instante, ainda que fugaz, sua mão
ensaiando com aspereza um gesto de reprimenda, mas logo
se retraindo calada e pressurosa, era a mão da família saída
da mesa dos sermões; que rostos mais coalhados, nossos
rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à
cabeceira...9
As referências à tradição têm fundamentação na
cultura árabe, que é visível nos nomes das personagens, bem
como na referência a palavras do léxico. A figura do avô, por
exemplo, aparece repetindo a palavra Maktub (em árabe, o
verbo escrever no pretérito, comumente traduzido por “está
escrito” numa referência cultural e religiosa à ideia de
(pre)destinação).
Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e
aos ventos, assim como a outras manifestações da natureza
que faziam vingar ou destruir nossa lavoura, o avô, ao
contrário dos discernimentos promíscuos do pai – em que
apa
78
apareciam enxertos de várias geografias, respondia
sempre com um arroto toso que valia por todas as
ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do
pai: “Maktub”10.
A ascendência sutilmente mencionada pelo texto (que
é a do próprio autor, filho de imigrantes libaneses) não
aparece como sendo a causadora da dicotomia entre pai e
filho. Os valores que impregnam o discurso do pai poderiam
ser visíveis em diferentes sociedades e não cultuam qualquer
relação com a cultura árabe, necessariamente, tendo
inclusive maior relação com o distanciamento urbano. Na
realidade, é recorrente, dentro da cultura brasileira, que os
imigrantes e filhos de imigrantes sejam responsáveis por
parte considerável da produção agropecuária nacional,
especialmente aquela voltada para subsistência. Este dado é
fundamental para se pensar na própria relação da
personagem com a natureza e com a sua sexualidade: André
tem seu primeiro ato sexual com uma cabra, e depois se
envolve com a irmã.
________________________________________________________________________________________________________________________________________
8 Ibidem, p.41.
9 Ibidem, pp.46-47.
10Ibidem, p.89.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Além disso, reitera-se, dentro dessa circunstância, uma
preocupação constante do pai: o cuidado com a lavoura, que
lhe parece tão fundamental (e fundante) como a própria
família. Ela é parte constitutiva daquela realidade, e é preciso
dedicar-se à ela para pertencer ao seio familiar. A relação
com a lavoura, mote preferido dos sermões paternos e parte
da fúria revoltosa de André, está na necessidade de
participar, a todo custo, da vida tão predestinada como a fala
predestinada como a fala do avô: Maktub, isto é, quem nasce
ali, nela necessariamente labuta. Não só André se sentia
perturbado e oprimido, Lula, o filho caçula, revolta-se com a
volta do filho pródigo, e diz a André:
79
Diante de uma opressão tão forte e rígida como a
exercida na lavoura, grande parte da fuga de André se dava,
curiosamente, nos elementos da natureza: tirar seus pés do
sapato e colocá-los na terra úmida é uma ação constante que
marca sua liberdade, seu desejo e a necessidade de calma. A
natureza de Lavoura Arcaica possui poder significativo e é a
partir dela que consideramos a duplicidade de sentidos do
incesto. Se ela é o ponto de fuga da opressão, então a
liberdade, a felicidade e o regozijo, não podem ser partes de
um ato considerado necessariamente mal e negativo.
A natureza como chave interpretativa
Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os
sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a
vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono
dos meus próprios passos; não nasci pra viver aqui, sinto
nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra,
nem dos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva (...)
André, vou sair de casa para abraçar o mundo, vou partir
para nunca mais voltar, não vou ceder a nenhum apelo,
tenho coragem, André, não vou falhar como você...11
É possível afirmar que a natureza é, para Raduan
Nassar, fonte de um arsenal quase inesgotável de referências
e imagens utilizadas na construção do romance. Os
personagens, as paisagens, e inclusive os sentimentos mais
abstratos, ganham forma material no texto, a partir dos
aspectos naturais. Esse recurso tem forte poder imagético e
permite a compreensão da carga simbólica do incesto.
incestooo
________________________________________________________________________________________________________________________________________
Ibidem, pp.177-179.
11
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
80
O filósofo francês Paul Ricoeur falava da
movimento inevitavelmente redutor de uma interpretação
impossibilidade de o sujeito conhecer-se diretamente
única, e é nesse sentido que ele propõe o conflito: “a
completamente: há sempre os signos que constroem a sua
interpretação parte da determinação múltipla dos símbolos
memória e o seu acervo cultural e são os intermediários
(...) mas cada interpretação, por definição, reduz essa
desse conhecimento. Seus textos hermenêuticos resultaram
riqueza, esta multivocidade e “traduz” o símbolo segundo
em uma preocupação sincera em compreender os signos.
uma grelha de leitura que lhe é própria”13. O que se está em
Nessa empreitada, Ricoeur formulou diferentes estudos,
discussão é uma dialética da interpretação.
entre eles, uma hermenêutica dos símbolos, cuja principal
Há um sentido primeiro – literal – e um sentido oculto
12
conclusão é “o símbolo faz pensar” . O que Ricoeur dizia era
no incesto na obra nassariana. O segundo pode ser
que o símbolo possui um duplo sentido: um opaco e literal e
apreendido a partir da relação que o narrador estabelece
outro existencial e oculto. O primeiro guiaria a revelação do
com a natureza. Desde o início do texto, já no segundo
segundo, haja vista que o símbolo comunica uma mensagem
capítulo, André aponta os elementos da natureza como fonte
e, concomitantemente, escamoteia outra.
de calmaria ao seu espírito agitado:
É nesse sentido escamoteado que residiria, então, a
possibilidade de interpretar que nos é tão cara para discutir
Na modorra das tardes vazias na fazenda, era num sítio lá
romance nassariano a partir de uma nova visão. Para
no bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da
Ricoeur, surge deste pensamento a alternativa de haver um
família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida,
“conflito de interpretações”: em seu texto, o autor opõe uma
cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia
na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso
interpretação psicanalítica de um texto à outra, hegeliana:
de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos
àquela denomina arcaica – porque busca interpretar na
todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de
própria origem do ser - e a esta, preceptora, porque tem sua
paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas
preocupação no que sucede do ser. Ricoeur é consciente do
eram essas liberando as vozes protetoras que me
movimento
inevitavelmente redutor de uma interpretação
________________________________________________________________________________________________________________________________________
12 No original, “le symbole donne à penser”. Optamos por essa tradução porque nos parece mais
chamavam
varanda?
depossível,
que adiantavam
adequada.da
Outra
tradução
como a utilizada na versão
única, e é nesse sentido que ele propõe o conflito: “a
portuguesa de A Simbólica do Mal, é “o símbolo dá que pensar”.
13 RICOEUR, Paul. O conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Trad. de Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1978. p.16.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
eram essas liberando as vozes protetoras que me
chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos,
se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam
melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu
sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa
com que se colhe um pomo).14
A natureza é, para André, um refúgio: nela, ele fica
livre e protegido, distante daquilo que lhe causa febre, dor e
sofrimento, sendo um elemento de positividade em
diferentes momentos. O capítulo 4 é significativo para
evidenciar a relação de André com a natureza, pois apresenta
a cabra Sudanesa como primeiro objeto de desejo e cuidado
do personagem:
Sudanesa (ou Schuda) era assim: farta; debaixo de uma
cobertura de duas águas, de sapé grosso e dourado, ela
vivia dentro de um quadro de estacas bem plantadas (...) a
primeira vez que vi Sudanesa com meus olhos foi em um
fim de tarde que eu a trouxe para fora, ali entre arbustos
floridos que circundavam seu quarto agreste de cortesã: eu
a conduzi com cuidado de amante extremoso15.
81
Os sentimentos nutridos por Sudanesa redundam
numa extrema personificação da cabra e num ato sexual
entre os dois:
...tinha nos olhos bem imprimidos dois traços de tristeza,
cílios longos e negros, era nessa postura mística uma
cabra predestinada (...) Schuda, paciente, mais generosa,
quando uma haste túmida, misteriosa e lúbrica, buscava
no intercurso o curso do seu corpo...16
A presença da natureza também é notada é quando
André descreve a primeira dança de Ana: ela é descrita com
elementos naturais, como os olhos de tâmara, capaz de
tumultuar dores, “arrancando gritos de exaltação”17 de quem
assistia.
O que acomete André não é a culpa pelo tabu, mas o
sofrimento perene com as regras e imposições da família.
Quem oprime é a tradição, as regras do pai, os sermões sobre
perseverança e paciência. O que há no incesto, aos olhos de
André, é amor e positividade, marcado pela presença da
natureza na cena em que o ato sexual é descrito. Verbis:
descrev
________________________________________________________________________________________________________________________________________
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp.11-12.
15 Ibidem, pp. 17-18.
16 Ibidem, p.18.
17Ibidem, p.30.
14
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
“...e era, Ana ao meu lado, tão certo, tão necessário que
assim fosse, que eu pensei, na hora fosca que anoitecia,
descer ao jardim abandonado da casa velha, vergar o ramo
flexível de um arbusto e colher uma flor antiga para os seus
joelhos; em vez disso, com mão pesada de camponês,
assustando dois cordeiros medrosos escondidos nas suas
coxas, corri sem pressa seu ventre humoso, tombei a terra,
tracei canteiros, sulquei o chão, semeei petúnias no seu
umbigo; e pensei também na minha uretra desapertada
como um caule de crisântemo, e fiquei pensando que
muitas vezes, feito meninos, haveríamos os dois de rir
ruidosamente feito meninos, haveríamos os dois de rir
ruidosamente, espargindo a urina de um contra o corpo do
outro, e nos molhando como há pouco, e tocando sempre
através das nossas línguas laboriosas a saliva de um com a
saliva de outro, colando nossos rostos molhados pelo nosso
olhos, o rosto de um contra o rosto do outro, e só pensando
que nós éramos de terra, e que tudo que havia em nós só
germinaria em um com a água que viesse do outro...18”.
82
Seria uma leitura ingênua pressupor que só o amor
comove André. Há culpa nesse relacionamento e, por isso ele
possui caráter ambivalente. Poucas coisas são mais ocultas
que o silêncio e foi o silêncio a marca que caracterizou Ana.
Ao longo de todo livro, não há nenhuma fala de Ana. Ao
mesmo tempo, ela é a personagem que permeia toda
narrativa: praticamente todas as ações de André envolvem
Ana, direta ou indiretamente. O seu mutismo talvez seja um
outro grande símbolo, uma vez que existe uma primeira
leitura, de culpa, e outra, escamoteada, que envolve o amor
por André, mas que não podemos apreender completamente.
O silêncio de Ana não é compreendido pela família. Pedro, o
primogênito, conta para André:
mas ninguém em casa mudou tanto como Ana” ele disse
“foi só você partir e ela se fechou em preces na capela,
quando não anda perdida num canto mais recolhido do
bosque ou meio escondida, de um jeito estranho, lá pelos
lados da casa velha; ninguém em casa consegue tirar
nossa irmã do seu piedoso mutismo...19
________________________________________________________________________________________________________________________________________
19 Ibidem, p.37.
Ibidem, pp. 113-114.
18
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Duas leituras nos são dadas: a de Pedro, que ainda sem
saber de nada, narra o sofrimento da irmã como metonímia
do sofrimento de toda família – um irmão foi embora e o
tronco rígido da união familiar se rompeu. Além da leitura de
Pedro, há o olhar do leitor de que o ato sexual se deu na casa
velha e que, quando André acordou, Ana já não estava ao
lado dele, mas na capela, rezando em silêncio. Rezava por
culpa? Rezava de saudade?
Há um forte interdito cultural na religião: o sexo é
pecaminoso, especialmente se praticado com alguém
proibido pelo tabu social, ou seja, o próprio irmão. No
entanto, considerar o silêncio de Ana apenas como culpa
seria reduzir outro símbolo em mera alegoria, descartando
seu poder oculto e sua segunda interpretação. Afinal, o leitor
sabe que Ana rodeia a casa velha, bem como sabe que se deu
lá o ato sexual de André e Ana. É provável que a culpa seja o
sentido mais evidente do mutismo de Ana, mas é também da
natureza dúbia desse símbolo carregar a ambivalência de
significado: o silêncio de Ana é também saudade, ausência,
pois se viu afastada de seu amor, André.
83
Considerações Finais
Duas cenas do livro ainda merecem destaque para que
se possa considerar diferentes olhares sobre o símbolo do
incesto. A primeira delas é o encontro de Ana e André na
capela, após terem tido a relação sexual; a segunda é o
assassinato de Ana pelo próprio pai.
Quando André desperta, percebe que Ana não está ao
seu lado – “eu que não sabia que o amor requer vigília”20 – e a
encontra, de joelhos na capela, rezando enquanto chora.
Pensando nisso, vislumbrando o possível desejo de redenção
por parte de Ana, André afirma, em seu discurso, que o
acontecido, ao contrário de um pecado, era um milagre:
foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o
mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma
deslealdade, e a certeza supérflua e tão fundamental de
um contar sempre com o outro no instante de alegria e
nas horas de adversidade; foi um milagre, querida irmã,
descobrirmos que somos tão conformes em nossos
corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância
comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte
em nossas memórias, sem trauma para a nossa história;
foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos
______________________________________________________________
bastamos dentro dos limites da nossa própria
20 Ibidem, p.114.
______________________________________________________________
palavra, confirmando a palavra do pai de que a
____________
felicidade só pode ser encontrada no seio da família;
foi um milagre, querida irmã...” 21
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos
bastamos dentro dos limites da nossa própria palavra,
confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode
ser encontrada no seio da família; foi um milagre, querida
irmã... 21
André fala em termos positivos: foi um milagre, uma
felicidade, alegria. A imagem do pai aparece como forma de
justificativa, afinal, o pai havia dito que a felicidade está no
seio da família. E Ana era, para André, felicidade. Ainda que
houvesse culpa, o negativo, o monstruoso e o inadequado
não são atributos justos para o incesto.
Por fim, a volta de André, que é acolhido pela família,
causa um último furor: Ana foge e só reaparece na cena final
do livro. Ela reaparece vestindo acessórios de prostitutas que
André colecionava em uma caixa, e que Ana roubou. Esse
roubo Esse roubo evidencia o ciúmes e o desejo de Ana em
provocar André, elucidando assim, seus sentimentos de
desejo e amor pelo irmão. É preciso notar que, aos olhos de
André, Ana sempre apresenta uma imagem muito
sensualizada, sendo protagonista de cenas de danças
sensuais ao longo de todo o livro. A dança aparece
recorrentemente como um ritual de sedução entre os dois.
sedu
84
Esse ritual se repete, ainda com mais ênfase e nutrido
pelo ciúme, na festa de André, a recepção do filho pródigo:
...foi assim que Ana, converta com as quinquilharias
mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa,
varando com a peste no corpo o círculo que dançava,
introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante
decadência (...) os braços erguidos acima da cabeça
serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lendo,
mais ondulante...22
A dança petulante e sexual de Ana desconcertava as
tradições da família: as irmãs tentavam impedi-la, Pedro
vociferava ao Pai, a mãe chorava. O primogênito, cuja honra
da família devia proteger, solicitou a vinda do patriarca. O pai
veio ao encontro de Ana e não se conteve: matou a própria
filha, cuja sensualidade desafiava a rigidez da tradição.
André não esconde, ao final do livro, durante o
assassinato de Ana, que era visível o peso da tradição até
sobre aquele homem que a cumpria como se lhe fosse tão
natural. A força da Lavoura Arcaica se esvai. O patriarca
sucumbe à violência da tradição e comete filicídio:
violenciada
________________________________________________________________________________________________________________________________________
22
21 Ibidem, p.118.
Ibidem, p.189.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
...o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o
grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só
golpe a dançarina oriental (que vermelho mais
pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe
nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma
ovelha se inflamasse, ou se outro membro qualquer do
rebanho caísse exasperado, mas era o próprio patriarca,
ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera
divina (pobre pai!), era o guiado, era a tábua solene, era a
lei que se incendiava – essa matéria fibrosa, palpável, tão
concreta, não era descanada como eu pensava, tinha
substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre
família a nossa, prisioneira de fantasmas tão persistentes!),
e do silêncio fúnebre que desabara atrás daquele gesto,
surgiu primeiro, como de um parto, um vagido primitivo
Pai!
O livro se encerra com um capítulo em “Memória de
meu pai”. O capítulo possui um tom misterioso que oscila
entre a ironia e a compaixão, refletindo sobre os acasos e
caprichos do tempo. A conclusão da trama nassariana será
também a nossa: a tradição é inevitavelmente opressora,
como “o gado sempre vai ao poço”.23
_____________________________________________________________
23
Ibidem, p.194.
_____________________________________________________________
______________
85
Rogério Sáber
Mestre em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Docente da Universidade do Vale do Sapucaí, e
Pesquisador do grupo “Minas Gerais: diálogos” (Unincor).
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
A existência não vence em teu peito
O nevoeiro funde-se à minha arquitetura. As vigas não são mais
maciças, mas há permanência. A névoa oculta o semblante da mansão e
há ruídos e há permanência. Os ruídos são a tentativa de desvelamento.
Névoa: queda lenta e úmida e os segredos não são postos às claras. A
neblina é cúmplice do mistério, criadora do mistério. A casa permanece:
decadente, nostálgica, mas permanece. O ser humano passa.
Insistentes monossílabos ecoam à distância
enquanto percorro o vale desertado,
forçado a contemplar meu próprio fado,
coagido a aceitar minha inútil errância.
A audição torna-se apurada, e o som, denso:
a alma absorve, de fora para dentro, os obstinados barulhos.
Os alvéolos do espírito permanecem ocos e em silêncio;
enquanto a carne é fustigada pela crueldade dos pedregulhos.
Há miradouro a se alcançar quando tudo é deformado por excelência?
Haveria fuga da triste música carregada pelos ventos estivais?
Como ser o intérprete dos sons da própria existência,
se cada passo nos conduz a veredas infernais?
Replica o vale:
“Conforma-te com minha areia e vaga como tu podes!
Lembra-te de que minhas dunas se movem e cobrem os caminhos que estavam desnudos.
Prisioneira, a existência em teu peito não vence: limita-se a um coração que explode –
e que acompanha o meu batuque, até que os golpes se tornam fracos, fracos,
– mudos.”
87
Elisa Pagan
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
89
Romances expressos e amores em Ithaca Road
1.
Antes de qualquer consideração
sobre Ithaca Road1, talvez seja
interessante comentar as curiosas
condições em que o livro foi escrito.
Em 2007, o produtor Rodrigo
Teixeira idealizou a coleção “Amores
Expressos”, em parceria com a
editora Companhia das Letras. O
projeto: 16 escritores vão para
mamamam
diferentes partes do mundo
colher uma história de amor que
será convertida em umdiferentes
romance, num estilo que deve ser
adaptável para o cinema. A coleção também conta com uma
série de televisão, que estreou na TV Cultura em 2011. O
orçamento do projeto foi, inicialmente, de 1,2 milhão de
reais, para comprar as passagens e hospedar seus escritores.
Num primeiro momento, o projeto seria subsidiado pela lei
Rouanet; diante do volume de reclamações de escritores,
jornalistas e blogueiros, que acharam injusto o uso de tal
quantia de dinheiro para hospedar pessoas em hotéis pelo
mundo
mundo, Rodrigo Teixeira resolveu financiar o projeto com o
próprio dinheiro, juntamente com dois sócios, reduzindo
então o orçamento para 500 mil reais. E foi quase um
fracasso total. Alguns escritores desistiram, entre eles,
Reinaldo Moraes, encarregado de escrever sobre a Cidade do
México, que disse em entrevista para a Folha, já em Julho de
2013: “Livro sob encomenda só aceito se estiver passando
fome.” Lourenço Mutarelli chegou a terminar o trabalho, mas
ficou tão insatisfeito com o resultado final de seu romance
sobre Nova York que preferiu nem publicá-lo, em 2009.2
Adriana Lisboa terminou, em 2008, seu romance sobre Paris,
porém, segundo entrevista para a Folha, deparou-se com
uma “questão estrutural indissolúvel”, e não foi publicado3.
Atualmente, a série conta com 10 livros publicados pela
Companhia das Letras, sendo que o último é o romance de
Paulo Scott. Ithaca Road é o mais novo livro desta coleção
que tenta, aos poucos, se reestruturar e ganhar espaço no
mercado literário. O romance, no entanto, possui questões
internas que podem ser extrapoladas para a própria
proposta da coleção Amores Expressos, o que será explorado
adiante. Comecemos pelo livro.
_______________________________________________________________________________________________________________________________________
Paulo. Ithaca road. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013.
2 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1317373-encomenda-travou-escritores-da-colecao-amores-expressos.shtml
3 Ibidem.
1 SCOTT,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Narelle, protagonista do romance, é uma jovem cidadã
neozelandesa, mestiça maori, que viaja para Sydney a pedido
do irmão Bernard. Este, que é dono do restaurante do qual
Narelle será a gerente provisória, some misteriosamente sem
deixar pistas. No cenário dessa metrópole, Ithaca Road conta
como é – e foi – a relação de Narelle com esse país. O livro é
curto e enxuto; cerca de 100 páginas escritas numa
linguagem bem direta, com um excessivo e repetitivo uso de
pronomes pessoais, que confere ao romance um clima
maquinal, bem pouco natural. Os diálogos, no mesmo estilo,
se dão por meio do discurso indireto, ou entre aspas no meio
dos parágrafos, sempre num ritmo acelerado. Tal proposta
de estilo se encaixa muito bem no clima frenético e
metropolitano que rege o romance.
90
Narelle tem todo um estilo tomboy4; alta, morena, descendente
maori, anda de skate e não se importa com bolsas e sapatos.
Existe nela todo um estereótipo de mulher moderna, exótica,
que não liga tanto assim para a aparência, que faz sexo casual,
bissexual, que quer ser independente e bem sucedida: um
verdadeiro fetiche sexual da juventude moderna.
Dentro do universo do romance, Narelle é tão sedutora
que absolutamente todos os personagens importantes,
ocasionalmente, se sentirão atraídos e estarão em alguma
situação de tensão sexual com ela. Mas, de todos que a
desejam, três figuras são particularmente interessantes para o
romance: o síndico, um desconhecido e uma jovem com
“autismo leve” (como descreve Paulo Scott na série de
televisão baseada no livro).
Ao entrar no restaurante de seu irmão, o Paddington
Em Ithaca Road, Narelle se encontra com vários
Sour, Narelle conhece o síndico responsável pelo
amigos de seu passado. Na pressa de se libertar de sua rotina
estabelecimento. Ela descobre que o restaurante está num
e de sua família, quando mais nova, viajou para Sydney,
processo de falência e é avisada pelo síndico de que ela, por
entrou numa faculdade, depois desistiu, e no meio de tanta
ser a gerente provisória, se responsabilizará pelos problemas
indecisão decide que irá ser uma espécie de “caçadora de
do estabelecimento e deverá cooperar. E ela não poderá, em
estampas”: uma pessoa que viaja pelo mundo à procura de
hipótese alguma, sair do país. Logo na primeira metade do
estampas exóticas para grandes grifes. Ao mesmo tempo,
4
Narelle tem todo um estilo tomboy ; alta, morena,
livro o síndico vai à casa em que Narelle está morando (a de
descendente maori, anda de skate e não se importa com
seu irmão) para fazer o levantamento de bens, sob a ameaça
4Tomboy: menina que possui comportamentos masculinos; usa algumas roupas masculinas (como bermudas ou camisas) e gosta de brincadeiras "de rapazes",
bolsas e sapatos. Existe nela todo um estereótipo de mulher
de que, se ela não cooperar, ele chamará força policial. É neste
ou seja, que envolvam elevada competitividade ou força física, tais como futebol, lutas ou subir em árvores. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria-rapaz
moderna, exótica, que não liga tanto assim para a aparência,
momento que Narelle sofre o seu primeiro abuso. O síndico
que faz sexo casual, bissexual, que quer ser independente e
encontra um cofre no apartamento. Narelle não conhece o
bem sucedida: um verdadeiro fetiche sexual da juventude
código. Continua:
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
livro o síndico vai à casa em que Narelle está morando (a de
seu irmão) para fazer o levantamento de bens, sob a ameaça
de que, se ela não cooperar, ele chamará força policial. É
neste momento que Narelle sofre o seu primeiro abuso. O
síndico encontra um cofre no apartamento. Narelle não
conhece o código. Continua:
Ele disse que não se preocupasse, não chamaria os policiais
desta vez, queria só a palavra dela de que não abriria
aquele cofre sem que ele estivesse presente. Ela se negou.
Então ele segurou firme seu pulso direito. Pediu que lhe
mostrasse o celular. Ela obedeceu. Pegou o aparelho,
desligou, deixou sobre o tampo da mesa, deu uma olhada
ao redor como se procurasse. Pareceu mais jovem e atlético
do que antes, mais alto e ameaçador. “Não se preocupe...
não vou ser violento... Quero só que voce preste bem
atenção no que eu vou dizer... A partir deste minuto, deste
exato minuto, voce vai me respeitar e vai me obedecer.
Estamos acertados?” Poderia ter avançado com as unhas
contra seu rosto, buscado uma faca na cozinha, gritado,
reagido como se não houvesse consequências, mas
concordou, apenas concordou. Depois de mais de uma hora
de trabalho disse estar satisfeito e que chegaria ao
Paddington Sour às onze e meia da noite em ponto,
bbbbbbb
91
destrancou a porta do apartamento por sua própria conta,
agradeceu por estarem se entendendo e saiu. 5
Depois deste momento, o livro continua com a mesma
linguagem mecânica, tranquilamente. Este trecho sugere
uma cena de abuso, mas o excessivo distanciamento com que
ele é narrado confunde o leitor, que, incrédulo, fica sem saber
se o abuso realmente aconteceu. Ao final do livro, o síndico
ataca novamente Narelle, que, desta vez, foge correndo
deixando-o sozinho numa sala do Paddington Sour; a cena
acaba sem explicações e confirma as suspeitas do leitor.
Após este primeiro contato violento com o síndico,
Narelle conhece uma menina autista chamada Anna, e sua
irmã Lakini, num parque da cidade. Anna gostava de
desenhar; ao final do livro, seus desenhos são a chave para
que Narelle entenda o que está acontecendo com o
restaurante de seu irmão. Esta menina, desenhando pessoas
aleatórias no parque, tem a sorte de retratar várias cenas
onde está seu irmão, o que fará Narelle descobrir de um
funcionário do restaurante que seu irmão está por perto e
que tudo não passa de um plano, que ela deve relaxar e
continuar com as coisas normalmente. O curioso é que é
bbbbb
_____________________________________________________________________________________________________________________________ _______________________________________________________________________________________________________________ _____________________________________________________
5 SCOTT,
Paulo. Ithaca road. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.31.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Anna quem fará o esforço para ter contato com Narelle, com
quem começa a passear regularmente. Num desses passeios,
as duas vão passar a noite em uma pousada e, durante a
madrugada, Anna seduz Narelle, elas se relacionam e
dormem juntas. Não pretendo, nesta resenha, analisar a cena
do ponto de vista moral; descrevo-a, simplesmente, pela
grande tranquilidade com que Paulo Scott tratou esse
assunto tão delicado e tão polêmico, e pela importância que
esta menina tem na construção da personagem principal,
conforme irei argumentar.
Por fim, no final do livro, Narelle conta a seu amigo
Justin uma história antiga. Alguns anos antes, ela estava em
uma casa durante uma invasão policial na época das
Olimpíadas de Sydney, quando, segundo o livro, estava
ocorrendo grande repressão contra as comunidades
aborígenes que moravam na parte urbana da cidade. Nessa
parte, tão surpreendente quanto os abusos do síndico e a
cena de sexo com a jovem Anna, Narelle conta que foi
espancada violentamente por policiais, após discutir com um
deles. Ensanguentada e debilitada, foi levada para o hospital,
onde um desconhecido – que ela sugere ser um dos policiais
– coloca a mão em suas partes íntimas enquanto lhe fala
obscenidades em voz baixa. Estas cenas nas quais Narelle é
tratada com excessiva brutalidade são completamente
avessas ao comportamento que o leitor espera. A maneira
como ela é impotente frente aos abusos e aos outros
personagens não condiz com a sua personalidade tomboy e
92
como ela é impotente frente aos abusos e aos outros
personagens não condiz com a sua personalidade tomboy e
independente, nem com o ideal de heroína romanesca
moderna. Somado a isso, a linguagem mecânica do livro faz
com que as cenas fiquem ainda mais inesperadas e frias. É
possível entender a relação dela com Anna como uma relação
também impotente: Narelle foi chamada por Lakini para
ajudar a animar Anna, uma menina vista como frágil, que
necessita de cuidados especiais. Porém, é essa quem seduz
Narelle, trazendo-a para seu mundo. Com o passar do livro,
essa grande impotência de Narelle parece ser aquilo de mais
peculiar no romance. O livro possui, na maior parte do
tempo, uma leitura fácil; conta a história de uma meninafetiche qualquer, numa cidade qualquer. Mas estas partes em
particular representam uma força destrutiva para aquilo que
a personagem possui de mais clichê e previsível, colocando-a
em situações que conseguem gerar um verdadeiro
desconforto no leitor, conferindo a ela uma profundidade
psicológica inesperada.
No desfecho do livro, após Narelle saber que seu irmão
está em Sydney e que tudo não passa de um plano, após ter
que ligar para seus pais e não conseguir lhes contar sobre
seu irmão, após viver e relembrar histórias de abuso cada
vez piores, ela é convidada por Lakini para dormir em sua
casa com Anna, sugerindo que as duas terminariam juntas.
Narelle toma poucas decisões por conta própria; ela é
seduzida o tempo todo, de maneira passiva, para vários
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
93
um retrato fiel dessa juventude, que é semelhante entre si
em qualquer metrópole do mundo, seja em Sydney, Paris,
Nova York ou São Paulo.
Em seu famoso texto “O narrador” 7, Walter Benjamin
diz que existem dois modelos de narrador: o do camponês
sedentário e o do marinheiro viajante. Enquanto o primeiro
reconta as narrativas que acumulou durante a vida, o outro,
justamente por viajar pelo mundo, é aquele que viveu as
próprias histórias e encontrou outros viajantes semelhantes
a ele com quem dividiu histórias. O ato de ser um viajante, de
não possuir uma rotina fixa, de se colocar em um modo de
vida que é visto, pela pessoa comum, como extraordinário e
2.
imprevisível, confere a ele um status de autoridade. Pode-se
Dentre as críticas feitas ao livro recém-saído do prelo,
dizer que esta é a ambição da coleção Amores Expressos:
um fator parece ser consenso: Ithaca Road consegue fazer
transformar o escritor comum, sedentário, em um viajante.
um retrato interessante e coerente da chamada geração Z:
Segundo Walter Benjamin, o surgimento da imprensa
jovens que não querem se fixar em algum lugar ou a alguém;
é um fator decisivo para a consolidação da forma romance na
desejo sexual sem preconceitos, aberto a novas – e polêmicas
tradição literária. Em seu texto, ele faz uma diferenciação
– experiências; ausência do desejo de constituir família;
entre narrativa e romance: enquanto a narrativa está ligada
capacidade de manter relações, sejam amorosas, amigáveis
à tradição oral, o romance está intrinsecamente ligado ao
ou profissionais, com diversas pessoas em diversas partes do
papel, seja livro ou folhetim. A narrativa é a arte de contar
mundo. Podemos dizer que o livro é, antes de qualquer coisa,
devidamente uma história, seja à maneira do marinheiro ou à
...........................................................................................................um
6 Deus ex machina: expressão latina, que significa literalmente "Deus surgido da máquina". É utilizada para indicar uma solução inesperada, improvável e
maneira do camponês; é uma forma ligada ao intercâmbio de
retrato fiel dessa juventude, que é semelhante entre si em
mirabolante para terminar uma obra de ficção ou drama. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Deus_ex_machina
experiências vividas. O romance, por sua vez, é um produto
do mundo,
seja em Sydney,
Paris,
7qualquer
BENJAMIN,metrópole
Walter. O narrador:
considerações
sobre a obra
de Nova
Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
íntimo do autor.
York ouSão
São
Paulo.
cultura..
Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 197-221.
Narelle toma poucas decisões por conta própria; ela é
seduzida o tempo todo, de maneira passiva, para vários
lugares e pessoas. E assim, numa espécie de deus ex machina6
às avessas, no auge de sua passividade, o livro termina.
Quando ela percebe que todos a estavam manipulando de
alguma forma, ela se vê finalmente livre para tomar uma
decisão por si só. Assim, decide nunca mais voltar ao
Paddington Sour – por mais que o síndico a tenha alertado de
que ela não poderia fazer isso. Com quem ela ficará, isso o
livro não responde.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
devidamente uma história, seja à maneira do marinheiro ou à
maneira do camponês; é uma forma ligada ao intercâmbio de
experiências vividas. O romance, por sua vez, é um produto
íntimo do autor.
Com a imprensa, surge um conceito novo: a
informação. O poder da informação depende do quanto ela é
verídica; ela só é válida se vier acompanhada de uma
explicação. Com ela, aparece a ideia de “intercâmbio de
informações”, força absolutamente destrutiva para o
“intercâmbio de experiências” – a narrativa. Neste ponto,
Walter Benjamin fala sobre a incapacidade que temos, nos
tempos que correm, de trocar experiências. Ouvir uma
história com o intuito de se fazer mais sábio, dar um
conselho, escrever um livro com “moral da história”, são
coisas que nos parecem completamente antiquadas. E isto
ocorre porque a ideia de troca de experiências – a ideia de
sabedoria – foi perdida e substituída pelo ideal moderno de
acúmulo de informações. É neste ponto que a coleção
Amores Expressos encontra um sério problema. A ideia de
que escritores, em contato com diferentes culturas e pessoas,
seriam capazes de escrever uma história de amor que fosse,
de alguma forma, própria ou típica do lugar visitado, é
antiquada. Vários escritores, em suas viagens, mostraram
não ter conseguido obter de suas cidades mais do que
8 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1703200707.htm
informações cenográficas. Na série de televisão baseada na
9 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2205201016.htm
coleção, Daniel Galera comentou que,
94
não ter conseguido obter de suas cidades mais do que
informações cenográficas. Na série de televisão baseada na
coleção, Daniel Galera comentou que, enquanto escrevia A
Cordilheira em Buenos Aires, pretendera escrever um
“romance universal”. "Dá para ambientar romances até na
Lapônia, como no filme ‘Os Amantes do Círculo Polar’”8, disse
Adriana Lisboa, em entrevista para a Folha. O mesmo
problema é evidenciado também por Alcir Pécora, em sua
resenha sobre o romance Do Fundo do Poço se Vê a Lua, de
Joca Terron:
A vantagem evidente de mandar os autores às cidades
estrangeiras era que as conhecessem e fizessem
ambientações menos canhestras. No caso de Terron, a
viagem foi inútil: dançarinas do ventre, cafetões
charmosos, tempestades de areia, vielas labirínticas,
cortesãs misteriosas, aristocratas e hotéis decadentes,
garotos pedintes, milícias fundamentalistas, xeiques
tarados... Há tantos estereótipos do Cairo que faz duvidar
do interesse de ter ido até lá. 9
Da mesma forma, o livro de Paulo Scott não conta uma
história que possui real ligação com a cidade de Sydney; a
história faz um retrato da sociedade capitalista e
absolutamente globalizada que a geração Z habita. Narelle
.............................................................................................................................
uma cidadã neozelandeza, descendente de maoris, que
trabalha numa empresa de moda que vende estampas do
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
absolutamente globalizada que a geração Z habita. Narelle é
uma cidadã neozelandeza, descendente de maoris, que
trabalha numa empresa de moda que vende estampas do
mundo todo para grifes também do mundo todo, e cujo
namorado é um jornalista austríaco que está trabalhando no
Brasil. Todos esses substantivos que se referem a países e
nacionalidades, no livro, podem ser randomicamente
substituídos até a exaustão; o romance permanecerá, grosso
modo, o mesmo. Troquemos Sydney por São Paulo, Opera
House pelo Teatro Municipal, ou a repressão policial nas
Olimpíadas pelas UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, e
Narelle pode sentar em escadas que desempenharão seu
papel da mesma forma, aqui ou lá, e poderá pensar as
mesmas coisas e tomar as mesmas decisões. O papel dessa
ambientação, da overdose de nomes de ruas, redes de fastfood, lojas, shoppings e praias, funciona antes como uma
ambientação exótica, um figurino que irá dar um toque de
requinte, uma falsa autoridade para a obra.
O que vem sem explicações, a narrativa dentro do
romance, é a história de Narelle. A ambientação e tudo o que
pode vir sobre Sydney nos vem invariavelmente na forma de
informação; o que exemplifica a extrema dificuldade, ou até
impossibilidade, de se narrar uma história própria de
...............................
10Vídeo
“'Ithaca Road' de Paulo Scott”, disponível em www.youtube.com
95
Sydney. A cidade aparece como cenário, como figurino; o
livro dá ao leitor pequeninos relatos informativos de como é,
atualmente, a vida mundana de uma metrópole australiana:
onde comem, o que ouvem, o local onde andam de skate, a
praia onde praticam surf, a rua que possui bares badalados.
A importância de Sydney é meramente informativa e
cenográfica; a viagem só foi necessária para a criação do livro
na medida em que encorajou o autor a escrevê-lo.
3.
Ithaca Road é visto pelo próprio Paulo Scott como a
trajetória do crescimento pessoal de Narelle. Segundo o
autor, em entrevista 10:
Esse retorno a Sydney desencadeia uma série de encontros
e situações limites que colocam ela em uma perspectiva
diferente, e a faz reavaliar ou ter de enfrentar coisas que
ficaram escondidas, esquecidas, apagadas, coisas que
aconteceram em Sydney.
E também:
Ithaca Road é uma espécie de momento de acerto de contas
de Narelle com o passado.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Narelle, pintada como mulher independente e
decidida, é impotente até as últimas páginas do romance. A
sugestão de que ela terminaria com a sedutora e frágil Anna
é uma espécie de atestado final de sua incapacidade de tomar
decisões por si só. O que o autor descreve como um acerto de
contas com o passado aparece, no livro, como um desabafo:
Narelle descreve o que lhe aconteceu no episódio do
“Quarteirão” (no qual ela foi abusada sexualmente por um
policial). Seria o ato de proferir em voz alta o que ocorreu um
ato de superação, de crescimento pessoal, como diz o autor?
Será que, ao final do romance, Narelle se torna independente,
96
dona de si, ou, ao contrário, parece ser exatamente a mesma
pessoa, imutável, incapaz de absorver alguma experiência com
o que ocorre com ela? Se a segunda hipótese for verdadeira,
podemos ver, encenada por Narelle, a impotência central da
coleção Amores Expressos. O desabafo, ou o oferecimento de
mais uma informação sobre a vida de Narelle para o leitor
funciona como um arremedo de mudança real e efetiva da
personagem; da mesma forma, a grande disponibilidade de
informações – o conjunto, às vezes estereotipado, do figurino e
do cenário das cidades visitadas – funciona como um
arremedo da experiência no sentido benjaminiano.
Lidiana Garcia
Cursa Letras no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Bolsista SAE do projeto
“Bibliografias sobre Vanguardas Artísticas no século XX no Brasil”, sob a orientação de Maria Eugenia
da Gama Boaventura Dias do Departamento de Teoria Literária do IEL/UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
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A vingança de Diónysos: uma análise do prólogo d’As Bacantes
Introdução
O artigo proposto tem por objetivo analisar o prólogo
d’As Bacantes com o intuito de investigar os elementos
mítico-rituais da religião dionisíaca, presentes nessa seção
da tragédia. Tais elementos fornecem subsídios para se
detectar a influência da religião dionisíaca, praticada na
Grécia Antiga, sobre a composição do prólogo d’As Bacantes.
Sendo assim, a hipótese que orienta este estudo é que o
prólogo d’As Bacantes apresenta ao leitor² da peça algumas
práticas rituais relacionadas à religião dionisíaca, que eram
desempenhadas pelas mulheres na Antiguidade Grega, e
aborda os principais mitos gregos que embasam tais práticas
rituais.
O prólogo d’As Bacantes, e a tragédia em sua totalidade,
dramatiza o mito de introdução da adoração de Dioniso em
Tebas. Alguns estudiosos, como Kraemer³, compartilham da
tese de que As Bacantes, de Eurípides, escrita no século V a.C,
combina os elementos religiosos fixados pelo mito dionisíaco
com as próprias observações de Eurípides sobre as práticas
rituais realizadas em seu tempo.
resumo
O principal objetivo deste artigo é analisar o prólogo (v. 1-58) d’ As
Bacantes, de Eurípides, seção na qual o deus Dioniso narra as razões
que o levaram a elaborar um projeto de vingança contra a família real
de Tebas. Além de analisar os elementos ficcionais do prólogo, o artigo
focou-se na análise dos elementos míticos e históricos da religião
dionisíaca, abordando alguns mitos relacionados com o deus delirante e
alguns estudos que investigam as práticas rituais dionisíacas que
ocorriam na Antiguidade Grega. O artigo se divide em duas partes: a
primeira explica a função do prólogo na peça e apresenta o mito
dionisíaco, no qual a tragédia se baseia. Nessa parte, realiza-se uma
análise do mito, elucidando as razões que induziram o deus Dioniso a
planejar uma vingança contra a família real tebana. A segunda parte do
artigo analisa a natureza dionisíaca e a sua manifestação mítico-ritual
na Antiguidade Grega, recorrendo a estudos históricos que investigam a
prática do culto dionisíaco na sociedade helênica. A análise do artigo
visa identificar a influência da religião dionisíaca sobre a composição do
prólogo d’As Bacantes, seção rica em significados mitológicos e
históricos.
Entretanto, o helenista Dodds⁴ acredita que havia pouco
ou nada no culto oficial ateniense para inspirar Eurípides nas
descrições do culto dionisíaco presentes na sua tragédia. Para
o
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹ Este artigo é parte de uma monografia, ainda em desenvolvimento, sobre a tragédia As Bacantes.
² É importante salientar que a tragédia As Bacantes foi produzida para ser encenada para o público ateniense que viveu no século V a.C. Dessa forma, o público
ideal da tragédia já conhecia, muito bem, o mito no qual a tragédia se baseava e conhecia, também, as práticas da religião dionisíaca que eram desempenhadas
nesse período da Antiguidade.
³ KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 57-61.
⁴ DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XXII-III.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
o autor, as referências tradicionais e primitivas sobre a
religião dionisíaca n’As Bacantes devem-se, em alguma
medida, às coisas que Eurípides viu ou ouviu na sua estadia na
Macedônia⁵, onde a tragédia foi escrita. De acordo com
Plutarco⁶, na Macedônia o culto dionisíaco estava em seu
quarto século suficientemente primitivo para incluir na
adoração os ritos de manipulação de cobras.
Dessa forma, os ritos nos quais as mulheres,
convertidas em bacantes, são possuídas pela loucura
dionisíaca estão expostos no prólogo d’As Bacantes. Para
Kraemer⁷, a peça de Eurípides fornece explicações
relativamente francas sobre tais ritos praticados no culto de
Dioniso; para o autor, de acordo com as passagens da tragédia,
pode-se inferir que Eurípides conhecia os ritos dionisíacos
restritos aos iniciados na religião dionisíaca. As descrições
detalhadas na peça As Bacantes permitem argumentar que a
tragédia descreve os rituais praticados pelas mulheres gregas
anteriores ou contemporâneas a Eurípides.
99
I. Aspectos mitológicos no prólogo d’As Bacantes: a
vingança por trás do mito
A tragédia As Bacantes foi escrita por Eurípides, o terceiro e
último dos grandes trágicos que a tradição consagrou na
Grécia (entre eles estão Ésquilo e Sófocles). A obra foi
representada pela primeira vez em Atenas no ano de 405 a.C.,
um ano após a morte de seu autor Eurípides (Salamina, 480
a.C. – Pela, 406 a.C.). O prólogo d’As Bacantes é um monólogo
recitado pelo próprio deus Dioniso e tem a função de situar a
ação da peça em consonância com o contexto da tradição
mitológica, já conhecida pela comunidade grega,
apresentando o tempo e o lugar em que ocorre a tragédia,
além de resumir os acontecimentos que ocasionaram a ira do
deus e as suas consequências.
Segundo Dodds⁸, o tom e o conteúdo desse prólogo
podem ser associados a Afrodite na tragédia Hipólito, de
Eurípides: ambos os prólogos (de Hipólito e d’As Bacantes) se
iniciam com a afirmação enfática da divindade do
personagem e mostram como essa divindade é menosprezada
e
________________________________________________________________________________________________________________________________________
⁵ Em 408 a.C. Eurípides retirou-se de Atenas para viver na corte do rei Arquelau, em Pela, na Macedônia, onde morreu em 406 a.C. (EURÍPEDES. As Bacantes.
Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011).
⁶ PLUTARCO. Alexander, 2 (apud DODDS, 1986, p. XXII-III, cf. nota 1).
⁷KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 59-60.
⁸ DODDS, E. R. Commentary. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. 62.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
e desrespeitada por um mortal, razão pela qual o deus
elabora um projeto de vingança. Porém, Dioniso difere de
Afrodite, e de outros deuses familiares ao público, pois ele
não irá desaparecer da ação depois que sua mensagem for
entregue: o deus se apresentará para Tebas em forma
humana e cada membro do público deve estar ciente deste
fato, por isso Dioniso salienta esse ponto três vezes na sua
fala: “(...) minha forma divina pela de um mortal trocada” (v.
4). “(...) de mortal vesti o semblante e minha forma divina
mudei em natureza humana” (v. 53-54).
Nos primeiros dez versos do prólogo, Dioniso narra
milagres relacionados à sua origem divina. Um deles se refere
ao fogo sempre a arder em torno do túmulo e das ruínas da
casa de sua mãe Sêmele, que foi fulminada pelo raio de Zeus
(v. 5-8), infortúnio ocasionado pela vingança de Hera⁹.
____________________________________________________________________________________
⁹ No mito grego, Zeus se apaixonou pela princesa tebana Sêmele, filha de
Cadmo, o rei de Tebas. Quando Zeus procurou a jovem pela primeira vez, não o
fez na forma divina, mas sim na forma de um mortal. Quando Hera soube da
traição de Zeus e que ele teria um filho com a princesa tebana, a esposa irada
disfarçou-se na ama de Sêmele e a persuadiu para que desejasse ter Zeus na sua
forma divina, como Hera o tinha. Enganada pela deusa, Sêmele pediu a Zeus que
lhe concedesse a satisfação de apenas um desejo e o deus prometeu fazê-lo.
Quando a princesa tebana lhe pediu para que aparecesse como ele aparecera
para Hera, o deus visitou-a com um raio, fulminando o corpo de Sêmele e
tirando-lhe a vida. Zeus, então, retirou do corpo da jovem o filho imaturo, o
infante Dioniso. O pai divino abrigou na própria coxa o deus prematuramente
nascido, costurando-o dentro dela e quando chegou o momento adequado do
segundo nascimento do filho, o deu à luz no monte Nisa. Após o nascimento,
Zeus confiou o infante Dioniso a Hermes para que o levasse às amas divinas
(ninfas) que tomariam conta da criança em uma caverna.
100
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Segundo Kitto, esse milagre deveria ter sido suficiente
para calar os sofismas de Cadmo acerca do envolvimento
amoroso de sua filha com Zeus, além de instilar alguns
questionamentos, sobre a natureza divina de Dioniso, no
espírito dogmático de Penteu. O segundo milagre refere-se à
videira que o deus fez crescer em torno do túmulo de sua mãe.
Dioniso – Chegado sou a esta terra tebana, eu, Dioniso, filho
de Zeus, dado à luz pela cria de Cadmo, Sémele, partejada
pelo fogo do relâmpago. (...) Vejo o túmulo de minha mãe,
fulminada pelo raio, beirando o palácio e as ruínas de sua
casa, esfumaçando ainda pela chama sempre viva do fogo de
Zeus: vingança de Here (...). Louvores a Cadmo que o lugar
erigiu em inviolável recinto: eu o velei sob racimadas
frondes da vinha¹⁰. [sic]. (v. 1-11).
De acordo com Kitto¹¹, os versos seguintes a essa
passagem (v. 12-20) reivindicam a universalidade da nova
religião que chega à Grécia. Dioniso relata as regiões da Ásia
que percorreu e por onde difundiu os mistérios báquicos e
narra, também, que, a caminho da Grécia, chegou
primeiramente
101
primeiramente a Tebas, terra de seu avô Cadmo, para que se
tornasse divindade manifesta e cultuada entre os mortais
gregos.
Segundo Dodds¹², os cultos dionisíacos não eram
originários da Hélade, e Eurípides os representa, n’As
Bacantes, como uma religião universal realizada por
adoradores estrangeiros que chegavam a uma nova terra e
introduziam o culto a Dioniso. De acordo com Eurípides, os
ritos dionisíacos são originários das montanhas da Lídia e da
Frígia, tal como é relatado em sua tragédia:
Dioniso: (...) Tendo deixado os campos preciosos da Lídia e da
Frígia, e percorrido os altiplanos da Pérsia, dardejados pelo
sol, as cidades muradas da Báctria e as paragens sinistras dos
Medas, a Arábia toda feliz, toda a Ásia que orla o mar salgado
com os altos muros de suas cidades repletas de Gregos
misturados com Bárbaros, venho a esta terra grega, mas só
depois de fazer que todos aqueles povos dançassem e de
haver fundado os mistérios meus, para que divindade
manifesta me torne entre os mortais.[sic]. (v. 12-20).
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹⁰ EURÍPEDES. As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011, p. 19-139.
¹¹ KITTO, H. D. F. op. cit., 1990, p. 327.
¹² DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XX.
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Ainda de acordo com Dodds¹³, uma descoberta
moderna revela que o nome Bákkhos é o equivalente lídio de
Dioniso.
Segundo Souza¹⁴, nos versos 13-54 é esboçada uma
situação contraditória. Por mais que Dioniso queira difundir
a fama de sua natureza divina e ser considerado como tal,
propagando por toda a terra os seus mistérios, ou seja, os
rituais que o revelam como deus, são suas tias, as irmãs de
Sêmele, as primeiras que na Grécia o rejeitam, pois não
acreditam que as histórias do amor de Zeus por Sêmele e a
consequente vingança de Hera sejam verdadeiras. Ágave,
Autônoe e Ino creem que a história é apenas “astuciosa
mentira de Cadmo” (v. 27), inventada para encobrir uma
vergonhosa mácula: Sêmele teria se apaixonado por qualquer
mortal e imputado a culpa das núpcias a Zeus, sendo este o
motivo pelo qual o deus a fulminou com seu raio.
Dioniso: (...) as irmãs de minha mãe – as que menos o
deviam ter feito – diziam que Dioniso não nascera de Zeus,
e que Sémele, seduzida por qualquer mortal, ao grande
deus imputava a mácula em seu leito (astuciosa mentira de
102
Cadmo!), e que de haver propagado as falaciosas núpcias a
fulminara Zeus (...). Ainda que não o queira, sabedora será
esta cidade de a quanto importa ignorar os mistérios
báquicos, e eu, tendo que defender minha mãe, hei de
mostrar-me aos homens como a divindade nela gerada por
Zeus. [sic]. (v. 23-28 e v. 34-38).
Neste prólogo, portanto, encontra-se o escopo da peça
tematizado, sendo apresentada a razão pela qual Tebas
deverá ser subjugada para aceitar e cultuar Dioniso como um
deus. Para tanto, Dioniso tornou Ágave e suas irmãs insanas,
e incutiu a loucura em todas as mulheres tebanas.
(...) Dioniso dispõe de forças irresistíveis e avassaladoras;
apresenta-se, ele próprio, como o mais enérgico
dissolvente dos poderes negativos da vontade, e, contra o
que querem, todas as mulheres de Tebas agora são Bákkai
(Bacantes), uma vez que se revestiram das insígnias de
Bákkos (Dioniso). Restam agora os homens e, à frente
deles, Penteu, o tirano que ousava travar, contra os deuses,
o “combate iníquo” (theomakhei)¹⁵. [sic].
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
¹³ Ibidem, p. XX
¹⁴ SOUZA, E. Comentário. In: As Bacantes. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Hedra, 2011, p. 77.
¹⁵ Ibidem, p. 77.
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103
Penteu, filho de Ágave e primo de Dioniso, é o ímpio
para quem o velho Cadmo confiou o governo de Tebas. O
jovem rei é aquele que combate Dioniso “com o combate
iníquo” (v. 42), pois desrespeita e duvida da divindade do
deus, declarando guerra contra Dioniso e suas bacantes. Por
tal motivo sacrílego, Penteu se torna o particular adversário
de Dioniso que deverá ser obrigado a reconhecê-lo como
deus.
distante e a memória disso só sobreviveu na forma mítica,
pois a nova religião tinha sido enraizada e aceita como parte
da vida grega. De acordo com Seaford¹⁷, o nome de Dioniso
decifrado em uma tábua escrita no Linear B de Pilos indica
que os elementos históricos dos mitos de resistência ao deus
são de origens muito remotas e se referem a práticas rituais
milenares (a escrita micênica Linear B corresponde ao século
XIV a.C.¹⁸).
Kraemer¹⁹ afirma que a adoração de Dioniso na Grécia,
Dioniso: Penteu, a quem Cadmo confiou o cetro régio – que
por volta do século VII a.C., foi inicialmente associada aos
de filha sua nascera –, em mim combate o combate iníquo:
festivais rurais que ocorriam no início da primavera. As
de suas libações me aparta, em suas preces me olvida. Mas
representações do deus nos mitos e na arte o retratavam de
hei de mostrar-lhe que deus eu sou, a ele e a todo o povo de
três formas: como uma criança, como um jovem andrógino
Tebas! (...) E se Tebas em fúria, de armas nas mãos intenta
com belos cachos e pele alva e, também, como um homem
das montanhas arrancar as Bacantes, na batalha lançarei as
Mênades. (...). [sic].(v. 39-43 e v. 45-47).
maduro com barba. Dioniso era frequentemente relacionado
com representações fálicas, incluindo uma procissão chamada
II. A natureza de Dioniso e a manifestação mítico-ritual
phallophória, na qual os adoradores desfilavam pelas ruas
carregando imagens em forma de falos. Os festivais
Segundo Dodds¹⁶, As Bacantes é uma peça sobre um
dionisíacos compartilhavam de uma licença temporária para
evento histórico: a introdução na Grécia de uma nova religião.
a embriaguez e para a expressão sexual – características dos
Quando Eurípides a escreveu, o evento estava em um passado
festivais rurais. Dioniso também era considerado uma das
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
MAIS
¹⁶ DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XI
¹⁷ SEAFORD, R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Trad. de Richard Seaford. Warminster: Aris & Phillips Ltd, 2001, p. 44.
¹⁸ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 50.
¹⁹ KRAEMER, R. S. Ecstasy and Possession: The Attraction of Women to the Cult of Dionysus. In: The Harvard Theological Review, vol. 72, n.1/2 (1979), p. 57.
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divindades responsáveis pela fertilidade dos homens, dos
campos e rebanhos de animais. Essas Dionísias rurais não
eram restritas a um só sexo, mas envolviam a participação de
toda a comunidade na invocação da proteção do deus, ocasião
na qual pediam bênçãos e agradeciam a abundância nas
colheitas.
104
Porém, ainda de acordo com Kraemer²⁰, a adoração
dionisíaca era também associada a outros ritos de natureza,
aparentemente, mais restrita se comparados com os
grandes festivais rurais. A tragédia de Eurípedes, encenada
pela primeira vez no século V a.C., fornece uma rica
descrição desses ritos praticados, em sua maioria, por
mulheres. A tragédia As Bacantes, cujo título significa
“mulheres adoradoras do deus Bákkhos”, dramatiza o mito
que narra a introdução do culto de Dioniso em Tebas, cidade
no norte da Grécia.
De acordo com Burkert²¹, Dioniso pode ser
considerado como o deus do vinho e do êxtase embriagante:
a embriaguez provocada pelo vinho era considerada a
intervenção de algo divino. Porém, pode-se acrescentar,
segundo Dodds²², que, para os gregos da idade Clássica,
Dioniso não era unicamente o deus do vinho. Ao citar
Plutarco, o autor revela:
(...) seu domínio é o todo – não só o fogo líquido na uva, mas
a seiva que se lança em uma árvore jovem, o sangue
pulsando nas veias de um animal jovem, todas as
misteriosas e incontroláveis marés que fluem e refluem na
vida da natureza²³.
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
²⁰ Ibidem.1979, p. 57-58.
²¹ BURKERT, W. op. cit., 1993, p. 318.
²² DODDS, E. R. Introduction. In: Euripides Bacchae. Ed. E. R. Dodds. Oxford: Clarendon, 1986, p. XI-XII.
²³ Ibidem. 1986, p. XII. Minha tradução (inglês-português).
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Em outras palavras, Dioniso era a abundância da vida.
De acordo com Burkert²⁴, a experiência dionisíaca excedia
largamente o aspecto alcoólico e podia ser independente
dele. A manía, palavra grega que nomeia o estado de
devaneio, designava a “loucura, o entusiasmo, o frenesi
inspirado”²⁵ pela experiência dionisíaca nos ritos. Esse êxtase
dionisíaco não era algo alcançado por um único indivíduo,
mas sim um fenômeno de massas que se propagava de modo
contagioso.
Em termos mitológicos, isto significa que o deus está
constantemente rodeado do enxame e frenesim dos seus
adoradores e adoradoras. Quem se entrega a este deus
arrisca-se a perder a sua identidade social e a “ser louco”.
Isto é ao mesmo tempo divino e terapêutico²⁶. [sic].
105
tirso envolto com hera – as insígnias de Dioniso). Com as
mentes insanas e entregues a devaneios, elas vagueavam
pelos montes do Citeron e dançavam em íntima consonância
com a natureza: essas mulheres dominadas pelo poder do
deus haviam perdido a sua identidade social.
Pode-se notar, assim, que a tragédia de Eurípides
retrata o ritual de adoração a Dioniso, ao narrar
detalhadamente o êxtase dos órgia²⁷ dionisíacos:
Dioniso: Primeira cidade na Hélade, foi Tebas que soltei
ululante! As mulheres revesti de pele de corço e em suas
mãos depus o tirso, dardo de hera envolto. Já que as irmãs
de minha mãe – as que menos deviam ter feito – diziam que
Dioniso não nascera de Zeus (...) por isso mesmo para fora
de portas as toquei com o aguilhão da insânia. Agora, de
mente alheadas, vagueiam pelos montes. Impus-lhes os
paramentos das minhas orgias, e toda a feminina estirpe de
Tebas, todas as mulheres que na cidade havia (...) lá estão
com as filhas de Cadmo, no meio das fragas, sob os verdes
pinhos. [sic] (v. 21-35).
Essa passagem de Burkert relaciona-se com alguns
trechos do prólogo d’As Bacantes (v. 28-34), nos quais
Dioniso narra o seu poder para incutir a loucura e o frenesi
(manía) nas mulheres tebanas convertidas em bacantes
(portavam o corpo vestido com pele de corço, seguravam o
tirso envolto com hera – as insígnias de Dioniso). Com a
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
mentes insanas e
²⁴ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 318.
²⁵ LIDDELL & SCOTT. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1079. Minha tradução (inglês-português).
²⁶ BURKERT, W. op. cit., 1993, p. 318.
²⁷ Práticas de iniciação, cultos secretos. LIDDEL & SCOTT. op. cit., 1996, p. 1246. Minha tradução (inglês-português).
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Segundo Burkert²⁸, o sinal exterior e o instrumento da
metamorfose provocada pelo deus é a máscara que reflete a
fusão entre Dioniso e o seu adorador. Nesse sentido, Bákkhos
é o nome que se refere tanto ao deus quanto ao adorador.
Sendo assim, pode-se afirmar que, na tragédia de
Eurípides, as bacantes portadoras das insígnias de Dioniso
estão possessas pelo deus e refletem a divindade e o poder
de Dioniso, pois elas são a manifestação divina do próprio
Bákkhos. De acordo com Kerényi²⁹, quando cultuavam a
Dioniso, as mulheres adoradoras ficavam sozinhas. Nenhum
homem podia estar presente enquanto elas representavam
os papéis das deusas (ninfas que cuidaram do infante
Dioniso) associadas ao deus. Quem as observasse de longe as
veria nas formas discerníveis do frenesi, ou seja, da manía
delirante imposta pelo deus. Por isso, as mulheres que
rodeavam Dioniso eram chamadas de mainades³⁰ (termo que
deriva do radical do verbo grego maínomai³¹) que significava
“furiosas, frenéticas, mulheres loucas”³², ou de bakkhaí, o
termo feminino de bákkhoi, que identificava tanto o deus
quanto as suas adoradoras.
106
De acordo com Lesky³³, Dioniso era considerado o
deus-máscara – a máscara transferia ao portador a força e as
propriedades do deus e dos demônios por ela representados.
Nesse sentido, o Dioniso d’As Bacantes reveste-se com a
máscara humana, com a forma humana de seu adorador (que
utiliza as insígnias dionisíacas), sem que por isso deixe de ser
o deus, já que Bákkhos é o próprio Dioniso e, ao mesmo
tempo, o próprio adorador.
Dioniso: (...) Por isso, de mortal vesti o semblante e minha
forma divina mudei em natureza humana. Mas, vinde vós, ó
Tíaso meu, mulheres que deixastes o Tmolo, baluarte da
Lídia, e desde as bárbaras nações a meu lado estais e por
companheiras tenho. Vinde! Erguei os vossos tamborins
oriundos da Frígia, por Reia-Madre e por mim achados. Que
em redor da morada de Penteu ressoem e toda a cidade de
Cadmo vos olhe! Por mim, nas quebradas do Citeron me
ajuntarei às Bacantes, a dirigir os seus coros. [sic]. (v. 48-58).
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
²⁸ BURKERT, W. op. cit., p. 318.
²⁹ KERÉNYI, K. Os deuses gregos. Trad. de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Editora Cultrix, 2000, p. 201.
³⁰ Mênades. Minha tradução (grego clássico-português).
³¹ No dicionário A Greek-English Lexicon, “mênades” corresponde ao verbo grego maínomai (LIDDELL & SCOTT. A Greek-English Lexicon. 1996, p. 1073).
³² Ibidem. 1996, p. 1073. Minha tradução (inglês-português).
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Versényi³⁴ faz uma análise sobre a representação de
Dioniso como um deus-máscara e os significados dessa
simbologia para a natureza dionisíaca. Segundo o autor,
enquanto os deuses tradicionais do panteão olímpico mantêm
as distinções que os separam dos homens e insistem na
distância entre o divino e o mortal, Dioniso é o único deus que
faz o oposto. O deus delirante abole os obstáculos que o
separam do humano, ele rompe com todas essas distâncias
em seu culto. A união com o deus nos ritos extáticos,
provocada pela “loucura”, é o presente de Dioniso para o
homem, e é aquilo que o eleva acima do mundo humano. Isso
significa que a natureza divina pode ser compartilhada pelo
homem, e significa, também, que, ao transformar o homem,
Dioniso transforma a sua própria imagem. Na realidade, a
própria natureza dionisíaca define-se na transformação e na
contradição; nas palavras do autor, Dioniso é:
(...) o deus da vida, da geração, do poder criativo, e o deus
da morte, da degeneração, da destruição; deus da bemaventurada transformação, alegria e terror extático,
selvageria; curador, benfeitor, salvador, alegria dos mortais,
107
deus dos muitos deleites, e o desmembrador de homens,
devorador de carne crua, assassino frenético. Homem-mulher
(...), por Dioniso é a existência antes da separação dos
opostos³⁵.
Sendo assim, de acordo com Versényi³⁶, Dioniso é o deus
da metamorfose. Ele transforma a si mesmo e aparece com “o
aspecto que lhe aprouve” [sic] (Bacantes, v. 482). Esse
entendimento da natureza dionisíaca é apropriado para a
representação de Dioniso como um deus-máscara, uma vez
que a máscara pode representar tudo aquilo que o deus
transforma. A máscara não tem essência, ela pode ser
colocada e descartada, pode ser completada com qualquer
conteúdo. Além de representar a dualidade do deus, a
máscara tem a função de dissolver uma identidade, uma
personalidade:
Nas mãos de Dioniso todo homem se transforma em mera
máscara (...), possuído, inspirado e completado por nada além
do deus. O êxtase revela o próprio indivíduo como uma
máscara, um veículo sem essência para a divindade. Nesse
sentido, vemos o possuído rasgando, freneticamente, os laços
que o ligam com essa (...) mascarada existência (mortal)³⁷.
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
³⁴ VERSÉNYI, L. Dionysus and Tragedy. In: The Review of Metaphysics, 1962, vol. 16, n.1, p. 85-86.
³⁵ Ibidem. 1962, p. 86. Minha tradução (inglês-português).
³⁶ Ibidem.1962, p. 86-87.
³⁷ VERSÉNYI, L. Dionysus and Tragedy. In: The Review of Metaphysics, 1962, vol. 16, n.1, p. 85-87. Minha tradução (inglês-português).
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Como deus do vinho, Dioniso é o “deleite dos mortais” e
“dador de muita alegria”, como relatado na Ilíada³⁸. O deus
desfaz todas as preocupações, traz o sono e o esquecimento
da miséria cotidiana. Porém, de acordo com Lesky³⁹, é
necessário salientar que para Dioniso não bastam orações e
sacrifícios; a relação do homem com ele não se limita a dar e
receber: o deus deseja o homem por inteiro, e, quando
contrariado ou menosprezado, torna-se terrível, como na
vingança narrada no prólogo d’As Bacantes. Todavia, quando
é devidamente cultuado, Dioniso arrasta o homem para o
êxtase do seu culto e o eleva acima de todas as misérias
humanas.
______________________________________________________________
³⁸ BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. de
______________________________________________________________
Manuel José Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
_____________
1993, p. 322.
³⁹ LESKY, A. A Tragédia Grega. Trad. de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de
Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 74.
108
Considerações Finais
O estudo proposto teve como objetivo analisar o
prólogo da tragédia As Bacantes. Na análise, foi salientada a
função do prólogo na peça: situar a ação da tragédia em
consonância com o contexto da tradição mitológica. Dessa
forma, o prólogo tem o papel de apresentar ao público o mito
dionisíaco e resumir os acontecimentos que ocasionaram as
ações vingativas de Dioniso na tragédia. Após a exposição, por
parte do deus, do sacrilégio que a família real de Tebas
cometera contra ele, aludindo ao seu mito de nascimento, as
razões de sua cruel vingança estão justificadas. Depois disso,
Dioniso pode colocar seu projeto de vingança em prática:
primeiro enlouquece todas as mulheres tebanas, inclusive
suas insolentes tias: Ágave, Autônoe e Ino. A próxima etapa da
vingança concentra-se na queda de seu principal inimigo: o
jovem rei Penteu.
Portanto, pode-se concluir que o prólogo d’As Bacantes
é uma seção constituída por expressivos elementos
dionisíacos que aludem às práticas rituais do culto a Dioniso
praticado na Hélade. A tragédia As Bacantes é uma peça que
tematiza a introdução na Grécia de uma nova religião, e o
prólogo apresenta ao seu público ou, no caso contemporâneo,
ao leitor, uma forma mais restrita do rito dionisíaco, aquele
associado aos cultos de mistérios que eram praticados, em sua
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
maioria, por mulheres denominadas “bacantes”. Outro
elemento dionisíaco importante presente no prólogo é a
máscara dionisíaca que reflete a fusão entre Dioniso e o seu
adorador. É mascarado como um mortal que Dioniso se
apresenta ao público no prólogo, sendo que este fato não faz
com que o deus perca a sua natureza divina, uma vez que, em
sua religião, Dioniso transfere sua divindade ao adorador por
meio da máscara ou pela possessão báquica.
Dessa forma, o artigo procurou elucidar e analisar os
elementos da religião dionisíaca presentes no prólogo,
investigando tais práticas mítico-rituais. Na análise, ficou
clara a influência da religião dionisíaca na composição do
prólogo d’As Bacantes e a importância de se conhecer, ainda
que brevemente, os significados relacionados com essa
religião praticada na Antiguidade Grega. Tal conhecimento
pode auxiliar na leitura e compreensão do prólogo d’As
Bacantes. Considerar o contexto no qual a tragédia estava
inserida, no momento de sua concepção, contribui para a
compreensão do texto literário e também possibilita ao leitor
o contato com o conhecimento proveniente de uma diferente
cultura.
109
Pedro Couto
Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Unicamp.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
111
Noite Quente
Padilha abriu o documento em branco. "Noite quente
do inferno, já é madrugada e nem sombra de sono". Desde
que chegou em casa, aquele mormaço, aquela coisa de deixar
suado e fazer vestir-se só pra entrar em contato com algo
que sirva de absorvente. Ficou por tempos estirado na cama,
depois no chão. Aí se levantou para andar. "Noite quente da
porra, não dá nem pra ficar aqui fora." Sentou e ficou
recostado na parede chapiscada até sentir coceira. "Não tem
solução aqui nesse lugar, vou dar um tapa."
Custou mesmo a achar o cigarro. "Orra, onde é que tá
esse demônio? Nem dois parágrafos e três xingamentos,
quem me ler é certeza de chamar de pseudo-bukowski, de
acha-que-palavrão-vai-te-fazer-beatnik.". Achou! "Noite com
sol! Vou fumar até me pegar dormindo com o cigarro na
boca". E recostou-se na parede chapiscada; sentiu coceiras e
não se levantou. Lá, chupando o cigarro, quieto, no escuro,
como um pontinho vermelho que parecia câncer, pastou.
Pensou em ereção. Negócio magnífico esse de ereção. "Eu
não penso em nada e a coisa já fica rija. Não, não estou de
pau duro, mas às vezes acontece". Continuou a pensar sobre
ereções, sobre a biologia desinteressante da coisa. A verdade
é que estava quente e o diabo não conseguia dormir, nem
Padilha. Levantou, foi andar na varanda. "De noite nessa
varanda é uma coisa de louco, quem tem cachorro sabe como
é se sentir um vietnamita plantando arroz num campo
huhuhhu
minado. Da minha varanda quem ler que imagine como é,
quem narra é que não vai ficar perdendo tempo com
descrição, assim como todo o resto". Foi lá Padilha caminhar
na varanda como qualquer coisa imaginada, onde só se sabe
que há um cachorro e um monte de cocô no escuro.
Ontem acordou com dor de cabeça. Faltou ao trabalho
e ficou na sua casa chupando cigarro. "Vou tacar esses
cigarros na privada". Não jogou. Ficou lá pensando como
seria louca a experiência de ver todo o mundo implodindo.
"Deitei e fiquei assim, esperando minha empregada entrar
tanto dentro de si que no final parecesse uma bola de gude.
Se todo mundo ficasse assim, que caralho de festa a vida
seria". Refletiu um sobre ser boca suja, estirado no sofá. "Dor
de cabeça da porra, só me faz pensar em merda".
Hoje, ainda estava a andar na varanda e a se recostar
na parede. "Juro que vou mandar arrancar esse inferno da
parede! Puta coceira que dá". Levantou e foi fumar mais um
cigarro enquanto pensava em frases soltas. "Pirão rima com
leitão. Perdiz rima com imperatriz". E a coisa toda se dava em
um calor insuportável. "Quarenta graus às três da manhã,
mas não é possível uma brincadeira dessas. Tivesse um
ventilador, nem isso. Estranhe o leitor, né? Tenho
empregada, mas não presto nem pra arranjar um ventilador
de teto". A empregada não era exclusivamente da casa, era
uma diarista. "Já pensei em trepar com ela, mas tem filho, e
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
esse negócio de sair com gente que já tem filho me dá medo".
O Padilha chupava um cigarro pensando agora no quanto
amava trabalhar. "Carimbo papel, rodo na cadeira e tenho ar
condicionado. Grande merda. Sou feliz?" Não era. Não era
nem ao menos no trabalho, girando na cadeira feito uma
criança, nem em casa nessa noite quente. Noite quente
demais pra dormir, pra não pensar em palavra de baixo
calão, pra organizar a cabeça e pra se sentir feliz. "Calor filho
da puta". Já pensou em rezar, mas no meio voltou a pensar
em ereção. Vinha na sua cabeça a imagem de um pinto muito,
muito, muito grande; e um mar de fogo atrás e o diabo
acordado. "Mas nem pensar em mulher eu consigo nesse
calor, meu Deus? Pra que isso? Pra quê? Pra quê?" E foi
fumar mais. E viu com desconsolo que, se a coisa seguisse
assim, o maço não ia dar conta. "E quem me lê deve estar
pensando também que 1) não sei narrar, ou o narrador não
sabe 2) cigarro é tão démodé, coisa de quem quer parecer
legal, parecer "cool", intelectual das menininhas. Vícios são
vícios, até os da prosa. O narrador coloca o que ele quiser na
prosa, mesmo coisas da moda, se quiser reclamar, liga pra
ele". Não sabia mais no que pensava. Decidiu deitar-se pra
ver se agora o bonde do sono andava. Deixou o corpo cair no
colchão e veio a piada: "Não olha pro lado, Gaetaninho, quem
tá passando é o bonde". Riu sozinho. "Bosta de calor". Queria
uma medição de temperatura, porque aquilo era
insuportável.
112
insuportável. "Ô Diabo, te vendo a alma da minha
empregada". O Diabo não respondeu. "Tonto é quem pensa
que só se delira no Saara". Estava vendo a miragem de um
copo cheio de cerveja. Cerveja o deixava sonolento. Bateu
para a cozinha procurar. Cantarolou: nessa merda de
geladeira não tem cerveja, não tem cerveja, não tem cerveja.
Voltou pra varanda só pra pisar no cocô. Deu menos
importância do que o mundo todo esperava que fosse dar, e
partiu pra mamar outro cigarro. Fumou a coisa toda e foi
lavar o pé. A água estava quente. "Mas não pode ser verdade!
Mil vezes inferno nesse caralho!" E lotou a área de serviço
com palavrão.
De pés lavados, pôs-se a pensar na casa. Iria para
algum lugar mais perto da cidade. Lá, "longe" de tudo, nos
bairros de subúrbio, não tinha o que fazer. Quarta noite sem
dormir, outras por outros motivos, e em um lugar no centro
estaria se acabando nos botecos, nas baladas, onde fosse. "Na
balada faz calor, não faz? Mas dane-se, faz calor até em casa".
E pensava já no absurdo de que tanto faz um calor com um
monte de bêbado pulando como um calor com um são,
sozinho, fumando até ficar roxo.
Sentou na parede
chapiscada e ficou a pensar no seu bom humor, repetindo:
"eu sou o engraçadão da turminha, sou o fanfarrão do
trabalho, sou..." E lá passou por um tempo inenarrável. Que
horas eram? “Que horas são” “Nem a droga do narrador
sabe”
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
sabe! Mas agora também tanto faz". O cigarro não acabava, e
Padilha já se sentia enjoado. Com dor de cabeça e enjoado.
Foi deitar-se e no caminho pro colchão espantou
pensamentos sobre ereções. "Minha cuca tá que tá
impossível hoje!" Começou a achar que era por causa dos
palavrões invocando símbolos fálicos a todo momento. E de
fato era. "A gente repete muito alguma coisa e fica pensando
em coisa parecida depois". Mas sentiu-se aliviado porque
durante o dia só pensava em desgraças. "Desgraça de vida,
desgraça de cachorro, desgraça de vizinha gostosa da rua da
frente". Padilha fazia o tipo galã. Fazia errado. "E no fim das
contas vai me sobrar a empregada mesmo".
"Tem muita porra errada na vida. Começando por ela
própria". Resmungava perambulando pela cozinha. "Quem
ligar pro narrador que avise que ela, a vida, tá mesmo
estragada desde o começo". Levantou e foi puxar outro
cigarro, espantando-se que tinha bastante ainda. Fumou
dentro do quarto mesmo, não esperava mais nada. Queria ele
entrar dentro de si e virar uma bola de gude. E as horas
congeladas. "A única coisa que essa porra de calor não
derreteu ainda". Começou a pensar no seu cérebro
derretendo como um sorvete de morango e escorrendo pelas
suas orelhas. Começou a ver turvo, os olhos foram tornandose pesados, uma leseira bateu na cabeça. Era sono que
começara a sentir. "Mentira! Com esse calor de bosta é
mesmo
113
mesmo meu cérebro derretendo". Não dormiu. Fumou mais
outros cigarros, dois ao mesmo tempo. Desconsolo. Imaginou
que, se estivesse vivo amanhã, xingaria a mãe do chefe, e iria
começar a encher a cara ao meio dia. Quis vender sua alma. O
Diabo não respondeu. Nem sei mais que horas são! Vou
deixar estar, hora ou outra essa desgraça acaba, e eu
desmaio. Aí sabe-se lá quando eu acordo. Grande merda essa
de dormir.
Fecho os olhos e só vejo a terra esturricando e a visão
turvada de calor. Mas que noite quente! Esse sol que todo
mundo chama de lua. Eu não compro, eu sei o que é uma
mentira, uma palhaçada, eu tô ficando paranoico".
E riu-se. Onde estava? Não sabia se era o quarto ou se
era a varanda. Era a varanda, porque sentiu coceira.
Ruminava a bunda da empregada. A essa hora ela não
representava tanto perigo assim, e o moleque podia até
cuidar. Batia no rosto e pensava na porra que estava dizendo
pra si mesmo. "Cuidar de cria dos outros? Só amarrado!
Prefiro ficar acordado pra sempre". Pegou no maço e sentiu
que tinham mais cigarros, viu graça. Era uma piada na sua
concepção, era o Diabo que não conseguia dormir. Quem
visse Padilha aceitar aquela loucura não acreditaria.
Encostou-se e não sentiu mais coceira. Com a boca seca e
tossindo, pegou mais um cigarro. Passou a brincar com os
fósforos e ver como aquele palito parecia-se com um pênis
duro
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
duro. "Ah, mas que porra é essa? Será que eu curto a coisa e
não sei?" Estava aceitando as coisas que o cérebro derretido
lhe impunha. Fechou os olhos. Abriu num estalo. Quanto
tempo passou? "Nada, evidentemente. Ainda está escuro e
ainda tenho cigarros".
E perguntava-se pra que tanto calor. Falou com Deus.
Deus dormia. Uma vez leu num livro que Deus existia e era
um canalha. Nunca acreditou tanto. Pegou-se pensando em
um daqueles pênis eretos atravessando o coração de Deus
feito uma flecha. E tudo atrás ardendo em chamas. "Feito
essa noite do capeta". E nada do Capeta. "Porqueira de vida!
Como é que pode tanto tempo nesse calor?" Estava no
escuro e não ia acender as luzes; na sua cabeça, o
aquecimento das lâmpadas só iria agravar o calor. Não
enxergava o relógio, por consequência. Dilema. "Acendo a luz
pra ver as horas enquanto ardo em chamas ou fico como
estou e espero essa porra toda clarear?" Aí sentiu um medo
irracional: ia amanhecer e com a manhã ia a vir a porra do
inferno daquele sol maldito e o Diabo ia começar a trabalhar.
"É bom que o dia não foi feito pra dormir". Depois pensou
que a luz do dia quem sabe o aliviasse, apesar do calor maior.
"Bobagem! Nunca mais vou ver o dia".
Levantou-se e foi pro interruptor. Quis ligar as luzes,
enxergar além do fracasso da noite, as coisas na varanda e os
114
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
cocôs de cachorro. Hesitou e viu no escuro as luzes se
acendendo e um incêndio em tudo. O mundo está acabando,
só pode ser! E o maço, o maço... Quantos cigarros vêm num
maço? Essa bosta não acaba". Deu pra contar cigarros no
escuro. Perdeu a conta quatro vezes, mas imaginou
bastantes, dezenas, milhares. Nunca mais gastaria na droga
do cigarro, nem negaria pros transeuntes na rua. "Engraçado,
fumar nesse calor me dá vontade de me acabar numa poça da
água". Parou um minuto. Lembrou das coisas sobre ereções
que tinha pensado. "Porra! Não senti vontade de mijar ainda.
Será?" Deu pra andar. Não queria pensar na ideia do xixi.
Sentiu nojo de si mesmo. E a impressão era da noite
esquentar mais.
"Banheiro. Banheiro. Banheiro". Bateu pro banheiro e
se fechou lá. Sentiu tudo fresco e pensou no chuveiro como o
grande herói da noite. "Desgraça de água quente. Chuveiro de
suor do diabo". Fedia. Cheirou suas axilas e pensou em
crianças. Quando era menor, diziam que era bastante fedido,
nunca se importou. "Cruzes. O jeito é esse chuveiro". Hesitou
por não se sabe quanto. Quanto valia a higiene? Muito? Deu
pra querer tomar banho mesmo e abriu o chuveiro. A coisa
foi caindo e ele olhando horrorizado. "Essa água parece tão
fresquinha". Estava reticente, foi se aproximando e alguma
coisa nele queria entrar de uma vez. Entrou. "Porra! Porra!
Porra! Sai, sai, sai, sai". Pulou pra fora aos escorregões.
Arrependeu-se até os ossos. Sentia a água fervendo nas
carnes. "Puta que pariu me socorre". Quem socorreu? O
115
Arrependeu-se até os ossos. Sentia a água fervendo nas
carnes. "Puta que pariu me socorre". Quem socorreu? O
diabo estava acordado. "Exatamente o que pensei: banho de
suor! Da porra do suor!"
Ao sair do banheiro, fez careta e parou. Já se sentia
sujo. Um porco. Porco. Já o chamaram disso antes. Porco. Que
era um porco? Era tudo muito engraçado. Pensou por
minutos na palavra "porco". Mais uma palavra pra pensar.
Porco.
Saiu do banheiro. "Puta que pariu que cheiro de
desolação”. Foi para a sala sentar-se. Pegou no maço para
fumar outro cigarro, mas distraiu-se com a escuridão. Via as
partes superiores das paredes de fronte para a janela se
clareando e teve a súbita convicção de que amanhecia. Saiu
feito um raio pra fora e deparou-se com o breu. "É a pupila
dilatada dando pião em mim. Ou esse narrador bunda-mole.
Ou eu estou voltando a ficar paranoico, ou é tudo coisa desse
desgranhento. Pode ser que. Não. Aliás, e se. Sim, só tem dois
acordados aqui. Eu e o Diabo. O Diabo é o narrador. Diabo de
narrador!" Entrou na sala da mesma forma que saiu. Pegou
os cigarros, mas não fumou. "Ahá! Quem vai me fazer fumar
agora? Quem? Quem?". Deixou o maço na camisa e pôs-se a
ruminar sobre narradores, providência e Deus. Lembrou-se
da canalhice Dele. Esbravejou palavrões e ficou quedado na
cozinha, pois tinha caminhado até lá. “E se Deus for o
narrador
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
narrador, e não o Diabo, como pensei?". Sentiu sede. O pobre
do Padilha sentia sede. Já havia fuçado na geladeira em busca
de cerveja e sua memória o rememorara que não havia água.
Desolou-se. "Beber xixi". Ecoou na cabeça dele tal período.
"Não. Xixi não!" E voltou ao banheiro como que
resmungando. "Nada de beber xixi, Padilha! Nada. Água da
torneira, tem água da torneira". Com as ideias embaralhadas,
imaginou-se urinando nas mãos. Chegou ao banheiro com o
aspecto de quem subiu uma ladeira infinita. Lá, abriu a
torneira. "E sem surpresa nenhuma o Padilhão aqui descobre
que a bosta da água da torneira está quente”. Mas xixi não
beberia. Estava resoluto, os delírios que cessassem. "De
quantos delírios é feita uma noite dessa? Quente de te fazer
filosofar, rapaz!". Uma cadeira, um vaso sanitário e um
Padilha numa noite quente. Diabo. Levantou-se. De frente ao
vazo, examinou-o com pausados suspiros. Pensou em
cigarros. Tirou do bolso da camisa e acendeu. Enquanto
tragava a fumaça dentro do banheiro, pensou em suicidar-se
fumando com tudo fechado até sobrar monóxido de carbono
e um cadáver contente. "Morrer com o cu cheio de nicotina...
Quem vai dar falta? O filho da empregada que nunca criei,
mas que poderia criar?". Achou melhor que ninguém sentisse
falta. Não teve coragem de fechar a porta e sentou-se na
cadeira. Voltou a examinar o vaso. Sentia-se demente.
"Aguinha sujinha, paradinha, fresquinha". Levantou e
bruscamente deu descarga. Apreciou o barulho. "Barulho
116
"Aguinha sujinha, paradinha, fresquinha". Levantou e
bruscamente deu descarga. Apreciou o barulho. "Barulho
rima com entulho. Sede rima com água". Voltou a sentar.
Sentia-se tremelicando. De olhos fechados, via uma fonte
com mil jorros de água, amarelos. Bateu no rosto e foi dar
outra descarga. "Duas descargas, para garantir, para
garantir". Ficou um tempo em pé pensando um pouco em
nada, um pouco em morrer.
Minutos depois lá estava o Padilha de quatro em cima
do vaso. "Se alguém me pega de quatro agora... Que mal há?
Estou sozinho. Hoje só presto contas a Deus; nem a ele. Estou
sozinho. Já me vi fazendo coisa pior, que mal há? Nem Deus.
Poderia estar fodendo gente casada, poderia estar casado
(hirc), mas estou sozinho. Não há mal, não". E botou os dedos
na água do vaso. "Tá fresca essa porra, não é possível".
Suspendeu o ato. Imóvel, de quatro, achou tudo aquilo muito
suspeito. E se fosse pegadinha? "É uma pegadinha!". Olhou de
novo para o vaso. Quarenta e poucos anos de vida na
malandragem pra numa noite quente se prestar a isso.
Padilha indignava-se. Decidiu esperar para comprar água. Já
ia se levantando quando, ao tirar o maço do bolso, deu-se a
tragédia. Ploc foi o barulho. E lá, dentro do vaso, flutuavam
vários cigarrinhos, todos molhados, todos inúteis. "Quero
muito chorar!". E o homem de ontem foi a criança do agora.
Não chorou. Fez beiço, fez birra e cara feia. “E morrer já não
da
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
dá mais. Nossa senhora, eu mereço realmente isso?". E foi
sendo acometido por um crescente sentimento de "não tenho
bosta nenhuma a perder." Deu uma terceira descarga. E o
mesmo Padilha estava, momentos depois, protagonizando a
a cena memorável. Abraçado ao vaso, mergulhou a cabeça e
começou a beber a água feito um cachorro. Estava realmente
fresca. E ele arfava. Que o Diabo lembre-se pra sempre do dia
em que o Padilha bebeu água da privada. Há mais! Ficou lá
por dez ou quinze minutos se esbaldando! Bebeu até se
afogar e se afastar do vaso numa crise de tosse. Não cria .
Mais um momento e lá estava enfiando os braços no vaso.
Dando descarga com a cabeça dentro e outras mil peripécias.
Ao fim, sentou-se na cadeira, encharcado do peito para cima.
Sentiu um alívio, como se a noite inteira fosse gradualmente
refrescando-se. E ao fechar os olhos, viu a verdade. O cosmos,
e a sua passagem de menino pra homem. Sentiu-se
revigorado. Caminhou para a sala. A noite continuava quente.
Sentou-se no sofá e começou a sentir-se pequeno. Como se
tivesse bebido, se esbaldado em toda a humilhação do
mundo. E todo aquele sentido que havia encontrado esvaiuse. "Não há ninguém. Que mal há?". Sentiu-se apertado. "Não
devo nada a ninguém". De olhos fechados via suas pernas
entrando dentro do seu umbigo, lenta e dolorosamente. E o
diabo, a empregada, o pênis em ereção, todos rindo.
Gargalhando. Jurou ver um pênis rolando no chão, feito
moleque. E o som da risada. E aquele sentir humilhar-se que
inundou tudo.
117
moleque. E o som da risada. E aquele sentir humilhar-se que
inundou tudo. A vontade de viver foi-se esvaindo, esvaindo.
"Ah...". E nem palavrão queria mais dizer. Padilha sentiu
vergonha, mas tanta vergonha, que desistiu de lutar.
Cochilou, recostado no sofá, derrotado. E o que restou da
noite quente foi aquilo de mais humilhante que fica na peleja
com si mesmo. Aquele sentimento de impotência contra
coisas tão banais e tão gigantes ao mesmo tempo.
Matheus Romanetto
Cursa Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
119
Tempus fugit: o Mecânico e o Orgânico no Manifesto Futurista
A publicação do opúsculo “Le Futurisme”, de F. T.
Marinetti, no jornal parisiense Le Figaro, em 20 de fevereiro
de 1909, é tradicionalmente considerada importante por no
mínimo dois motivos. Do ponto de vista da historiografia da
arte moderna, trata-se do momento fundador de um dos
movimentos de maior proeminência do começo do século XX.
Do ponto de vista dos estudos literários, o texto amplifica um
dos embates (ou acordos) que percorriam as vanguardas de
então – aquele entre política e estética –, valendo-se de um
gênero que suas edições posteriores fariam questão de
assinalar no título: o manifesto. O impacto da obra chegou a
tal ponto que, já na época de sua primeira aparição, essa
opção ajudou a redefinir o destino da arte europeia que
estava por vir:
resumo
Por meio da análise das teses, narrativas e jogos metafóricos contidos
no “Manifesto Futurista”, busca-se delimitar a relação que se
estabelece entre as figuras da máquina, do homem e da natureza,
tomadas como sujeitos com funções e atributos diferentes, dentro da
poética do texto. Construídas a partir da oposição entre três
qualidades diferenciais – vida, energia, poder –, elas reúnem traços
fundamentais do pensamento estético e político de Marinetti,
tornando-se subsequentemente disponíveis para elaborações e
desconstruções, na continuidade do movimento futurista.
desse gênero, que se consolidou gradualmente como um
distintivo do movimento. O desenvolvimento do futurismo
integrou sua elaboração massiva de manifestos a um sistema
de performances, em que as obras eram espalhadas na forma
de panfletos ou declamadas publicamente. Nesse contexto,
Movimentos subsequentes, como o vorticismo, dadaísmo,
surrealismo, ou os situacionistas, produziram diferentes
os dois olhares que transformam “Le Futurisme” em um
combinações de manifestos e obras de arte, mas todos eles
marco da mentalidade artística moderna são, na verdade,
partilham com o futurismo o que deveria ser considerada a sua
polos de uma cisão mais ampla na produção teórica que se
herança: a centralidade do manifesto (tradução nossa).1
defronta com essa estruturação da prática futurista, e de
De fato, não só o futurismo é lançado ao público por
modo geral com a de todos os grupos do mesmo período. As
meio de um manifesto, como boa parte da produção de seus
abordagens historiográficas tomam o texto como documento
principais artistas – Marinetti, Carrà, Boccioni, dentre outros
nu dos projetos motrizes do movimento; garantem a
– consiste em uma sucessão de textos trabalhados dentro
validade da análise enfatizando seu caráter diretivo, “na
deess
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________
medid
¹ PUCHNER, Martin. Poetry of the revolution: Marx, manifestoes and the avant-garde. Princeton: Princeton University Press, 2006. p. 93.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Medida em que, na práxis escrituária vanguardista,
manifesto e programa se articulam, na maioria dos casos,
indissoluvelmente”2. As abordagens literárias, preocupadas
não só com o conteúdo exposto, mas também com a forma
em que ele é expresso, e a maneira como ela participa da
constituição histórica do gênero em questão, definem como
leitura mais apropriada aquela que trata o texto como objeto
em si, e não meramente como antecipação da produção de
outras obras, na medida em que, segundo uma
metalinguagem particular, a forma textual reproduz aquilo
que se proclama ou defende:
O manifesto constitui-se em obra de vanguarda por excelência
na medida em que articula uma proposta estética crítica (a
antiarte) e, ao mesmo tempo, é sua práxis (gesto polêmico e
contestatário)3.
Tamanha é a proeminência dessa estratégia no
futurismo que o formato do gênero é assimilado por alguns
autores como equivalente da própria proposta do
movimento: “a forma do manifesto se torna o próprio
conteúdo do futurismo”4; “o gênero central futurista
transforma a arte, então, em uma mistura de arte e
manifesto, que poderia ser chamada arte-manifesto”
(traduções nossas)5. Assim, qualquer análise que se debruce
sobre
120
sobre o “Manifesto Futurista” (título que substituirá
doravante o original) insere-se em um contexto maior de
significação, em que as obras individuais se entrelaçam em
um todo cuja coerência não pode ser garantida a princípio,
mas que estabelece relações de continuidade e
descontinuidade sensíveis entre elas. Abrem-se inúmeras
questões sobre as operações textuais que garantem a
constituição do grupo, a teatralidade futurista, seu
imaginário e suas relações com a política europeia do início
do século passado.
O que aqui se propõe é avaliar o texto de Marinetti de
um ponto intermediário entre as concepções historiográfica
e literária da teoria, tratando-o como de natureza artística e
tendo em mente a maneira complexa como se integra, tanto
aos outros escritos do autor, quanto à própria formação do
gênero que ajudou a consolidar como momento essencial da
modernidade artística, mas sem desprezar o modo como é
possível enxergar, no caráter programático com que se
apresenta, um caminho específico para essa própria
integração. Trata-se, em outras palavras, de avaliar o
conteúdo que ali se apresenta, não como pura norma de toda
a produção futurista, mas como arcabouço de imagens, temas
e teses que se acumulam, disponibilizando-se na
continuidade
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
2 GELADO, Viviane. Poéticas da transgressão. São Paulo: EdUFSCar, 2006. p. 38.
3 Ibidem, p. 39.
4 PUCHNER, op. cit., p. 75.
5 Ibidem, p. 93
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
121
sobrecarga simbólica sensível, que deve ser compreendida
continuidade
do
movimento
como
fonte
de
caso desejemos atingir uma leitura clara dos traços acima
desenvolvimentos possíveis, que podem reafirmar, adaptar
apontados.
ou negar suas versões originais.
Quando da publicação do manifesto no Le Figaro, a
Esse
processo
se
justifica
pela
presença,
carreira de Marinetti encontrava-se em um período de
particularmente na obra de Marinetti, de constantes
transição, tanto política quanto esteticamente. De particular
reutilizações e reelaborações de ideias que já haviam surgido
relevância é que sua produção poética concentrava-se ainda
em momentos anteriores, com a liberdade típica daquilo que
sobre os mesmos paradigmas simbolistas que o futurismo
Marjorie Perloff aponta como “a ênfase no artista como
6
viria a negar mais tarde, com as propostas da parole in
improvisatore” (tradução nossa) . Assim, a título de exemplo,
libertà e outros recursos textuais. “[Marinetti] estava
uma das teses do manifesto de 1909 – “Nós queremos
escrevendo, ainda em 1909, versões decadentes de lírica
glorificar a guerra – única higiene do mundo”7 – torna-se
Baudelairiana”
(tradução
nossa)9.
A
densidade
título de um texto publicado posteriormente, “Guerra, a única
surpreendente de imagens que se sobrepõem e encadeiam
higiene do mundo”8.
em “Le Futurisme” pode ser, portanto, remetida aos
Como objeto de estudo particular, propõe-se
mecanismos propostos pelos próprios simbolistas e ao seu
esclarecer a relação que o “Manifesto Futurista” estabelece
louvor da obscuridade e da sugestão. Não se deve daí
entre tecnologia, homem e natureza. Ao longo do texto,
depreender, entretanto, que a escrita de Marinetti possa ser
surgem imagens e metáforas envolvendo a máquina, nunca
reduzida a uma atualização de velhas metas estéticas. Pelo
como ser isolado, mas como corpo que interage com os
contrário: aqui, o jogo imagético é reapropriado objetivando
mundos animal e humano, em última instância com o
uma redação que produza impacto forte: para que um texto
desenvolvimento da história como fruto de determinadas
se torne um manifesto, “é necessário violência e precisão”
disposições de força. Essa interação se dá em meio a uma
(trad
lmfrfr
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
PERLOFF, Marjorie. The futurist moment: avant-garde, avant guerre, and the new language of rupture. Chicago: The University Of Chicago Press, 2003. p. 81.
Filippo Tommaso. O manifesto futurista. In: Gilberto Mendonça Teles. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais
poemas metalinguísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 10 ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. p. 92.
8 Ver PERLOFF, op. cit.
9 PERLOFF, op. cit., p. 67.
6
7 MARINETTI,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
(tradução nossa)10, diz o autor a Henri Maasen, em uma carta
enviada ainda naquele ano. As metáforas, metonímias e jogos
que preenchem o manifesto operam sempre ao lado de outra
figura de linguagem, qual seja, a hipérbole. É o constante
exagero do que se diz ou descreve que dá ao texto sua
potência primária, sua velocidade.
É nesse quadro, aliás, que surge uma de suas
qualidades mais interessantes: um elemento plástico muito
presente nas descrições. O vermelho e o negro, em particular,
saltam à vista se nos permitirmos alguma sinestesia. Há o
“ferro vermelho da alegria”11, “caldeiras infernais”, “negros
fantasmas que se mexem no ventre vermelho”12, o Sol que
surge de posse de uma “espada vermelha”13 em oposição à
noite que se passava em vigília. Surge gradualmente por trás
dessa coloração forte a ideia de fervor, calor, de fogo. Aqui é
Hjartarson quem dá uma primeira direção à análise, ao
sugerir que “Marinetti se apropria de teorias ocultistas
contemporâneas, integrando seus elementos mágicos e
proféticos ao projeto futurista e à sua concepção estética de
eleme
122
externalização da vontade” (tradução nossa).14 Os quatro
elementos naturais, figuras presentes no ideário ocultista,
surgem no “Manifesto Futurista” como significantes bem
delimitados por um código de oposições mútuas.
As menções ao fogo são inúmeras, passando, além dos
exemplos que já demos, pelas imagens de “frutos
apimentados”15, “violência (...) incendiária”16, pela
denominação dos futuristas como “incendiários de dedos
carbonizados”, e até pela concreta aparição de um “fogo nas
prateleiras das bibliotecas”17. De modo geral, esse elemento
está associado à impetuosidade criativa. A água, em oposição,
determina eventos destrutivos: são as “corredeiras e
redemoinhos de um dilúvio”, que levam os lugarejos festivos
“até o mar”; é o velho canal”18 que abaterá as bibliotecas; é a
morte que “escorre olhares veludosos do fundo das poças”19;
a sensibilidade que se verte na “urna funerária”20; o tubarãoautomóvel cuja destruição os pescadores assistem perplexos.
À terra, liga-se um gênero mais passivo de dano,
quando não uma conservação mumificante. Quando os
futuristas
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
10 HJARTARSON, Benedikt. Myths of rupture. In: Modernism: volume 1. Philadelphia: John Benjamin’s Publishing Company, 2007. p. 182.
11 MARINETTI, op. cit., p. 91.
12 Ibidem, p. 89.
13Ibidem, p. 90.
14HJARTARSON, op. cit., p. 187.
15 MARINETTI, op. cit., p. 90.
16 Ibidem, p. 92.
17 Ibidem, p. 93.
18 Ibidem, p. 89.
19 Ibidem, p. 90.
20 Ibidem, p. 93.
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futuristas sofrem seu acidente, a “lama” é “fortificante” 21; nas
enchentes, é o Pó, conteúdo que a água carrega, aquilo que
destrói; dão-se aos opositores do movimento picaretas e
martelos para que escavem “os fundamentos das cidades
veneráveis”22. O ar é, enfim, símbolo de um estado de
transição, que compreenderemos mais adiante. Marinetti
quer ver os Anjos primeiros voarem, cantar o “voo deslizante
dos aeroplanos”23, e mesmo estar ao lado de seu aeroplano
quando seus herdeiros matarem-no, sucedendo o “voo
brilhante de suas imagens”24. É às “estrelas inimigas”25, para
o “céu violeta”26, para o alto, enfim, que se lança seu
movimento e desafio.
Que atribuamos à aparição do céu e das estrelas a
presença do elemento aéreo, justifica-se por uma outra
característica desse conjunto semântico: os elementos
definem, além de princípios ativos, uma topologia própria,
que liga determinados tipos de ocorrência dos fenômenos
naturais a posições diferentes no espaço. Assim, a chama é
fenômeno interior, e a água destrói exteriormente; o ar situase acima, a terra situa-se abaixo.
___________________________________________________________________________________
21 Ibidem, p. 91.
22 Ibidem, p. 93.
23 Ibidem, p. 92.
24 Ibidem, p. 93.
25Ibidem, p. 89.
26 Ibidem, p. 90.
123
Ao longo de nossa análise, surgirão os usos dessa
estrutura. Esboçamo-la adiante, num diagrama composto de
dois eixos: um vertical, que se poderia chamar transitivo, e
outro horizontal, que se poderia chamar criativo. O círculo
denota a interioridade do corpo que engendra a criação, seja
ele o do futurista ou o da máquina. Os pontos extremos do
espaço cartesiano assim obtido corresponderão a momentos
futuros da interpretação: as combinações entre conservação
e destruição (terra + água), transitividade e destruição (ar +
água), entendidas como representantes de maneiras
diferentes de arruinar, antecipam já o que diremos do
maquinismo, posteriormente.
Figura 1: Estruturação dos quatro elementos
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Para começar a sondar o sentido do “Manifesto
Futurista”, é preciso situar esse imaginário natural em relação
a outros recursos de que Marinetti se vale ao longo da obra. A
oposição (grosso modo) entre elementos criativos e
destrutivos, encontra um primeiro eco interessante na relação
que o autor estabelece entre biologia e tecnologia. Aqui, a
natureza e os frutos da sociedade não se dividem. Pelo
contrário, confundem-se forçosamente: “a ênfase na matéria e
sua interpenetração com o sujeito humano equivale à fusão
dos mundos orgânico e inorgânico” (tradução nossa)27. As
máquinas despontam, tanto como agentes, quanto como
objetos de fascínio. Mas ao mesmo tempo em que ajudam os
homens a dominar o mundo anímico (“nós íamos esmagando
sobre o umbral das casas os cães de guarda”28), elas guardam
aspectos animais: acariciam-se seus peitos, e é afinal em um
“tubarão atolado”29 que culmina o acidente de Marinetti. São
as locomotivas como “enormes cavalos de aço”30 e os
automóveis com “grossos tubos como serpentes de fôlego
explosivo”31 que ele quer cantar. A natureza (que compreende
os quatro elementos e o reino animal) é signo de energia e
descontrole, especialmente quando assimilada (sob a forma da
metáfora ou da analogia) pela tecnologia e pelos homens.
124
Estes, nos momentos em que se confundem com o
maquinário, fazem-no por outro caminho, compondo-se em
uma associação concreta, que não confunde suas
individualidades (o futurista sobre o veículo, por exemplo).
Daí a ambiguidade de uma poética que, como veremos,
procura promover “um assalto violento contra as forças
desconhecidas, para intimá-las a deitar-se diante dos
homens”32, mas que em última instância subjuga os próprios
humanos.
A relação entre os três componentes que aparecem
nas citações acima pode ser compreendida a partir de um
conjunto mais amplo de oposições permutáveis, em que os
termos em questão associam-se em duplas opostas ao
elemento restante, a partir de um traço discriminante,
producente de hierarquia. Quando máquina e animal se
assimilam, ganham controle sobre o fator humano. Quando
máquina e homem se compõem, ganham controle sobre o
fator natural. Mas homem e animal nunca se unem em um
combate contra a máquina. Neste caso, a assimilação permite
que os futuristas cacem como “novos leões”33 a própria
Morte, porém nada mais.
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
27 WELGE, op. cit., p. 550.
28 MARINETTI, op. cit., p. 90.
29 Ibidem, p. 91.
30 Ibidem, p. 92.
31 Ibidem, p. 91.
32 Ibidem, p. 91.
33 Ibidem, p. 90.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Essa súbita emergência de uma figura antes estranha,
que impede que completemos um círculo de rivalidades
perfeito com a tríade já conhecida, é sintoma de uma fratura
mais profunda. Hewitt já a delineia ao reconhecer, como
oposição primordial na obra de Marinetti, a própria luta
entre o natural (como força de discórdia, particularmente na
figura do corpo biológico) e o humano (como polo de
concordância, particularmente na figura do Estado). A
máquina aparece como síntese desses dois potenciais:
É nos trabalhos iniciais que a máquina representa todas as
energias que tornam o capitalismo tão curiosamente
autotransgressor e produtivo. Ela é o símbolo dos antagonismos
produtivos que confrontam Homem e Natureza e alimentam a
produtividade histórica, por meio de sua regeneração dos
recursos naturais e energias, e dos objetos materiais que produz
(tradução nossa).34
125
a máxima de Lefebvre segundo a qual “[a] história desdobrase em ‘natureza’ e ‘humano’. O homem desdobra-se em
‘natureza’ e ‘história’”36. Por um lado, a continuação da
história se dá com a união da energia animal com as
qualidades políticas (dominadoras) humanas na forma da
máquina; por outro, o homem é ser vivo que se contrapõe
aos frutos mecânicos de sua história. De fato, tudo que é
louvado no homem é, no “Manifesto Futurista”, remetido
àquilo que acentua a vida. Ele é proclamado perante os
“homens vivos da terra”37 pelos “jovens, fortes e vivos
futuristas”38, em oposição àqueles que “não se lembra[m]
mesmo de ter vivido”39. Aqui, o tema da força biológica
cruza-se com o da juventude, do novo. Em nosso tratamento,
optamos por pensar sua construção investigando os motivos
que o transformam em um traço pertinente da identidade do
grupo artístico.
O “Manifesto Futurista” pode ser encarado como um
grito de independência, um esforço de afirmação contrário
aos velhos. O plano pronominal é particularmente revelador
quanto a isso. Durante a primeira metade do texto, há uma
divisão entre “eu e meus amigos”40, e Marinetti lidera seus
companheiros. A partir do momento em que a declaração do
Eis o “nascimento do Centauro”35: compósito de
homem e animal, a máquina executa essa mediação, no
caminho do texto, justamente com a predicação da
tecnologia, ora como potência semelhante à do mundo
animal, ora como extensão do movimento humano. Aqui, vale
a______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
máxima de Lefebvre hhuhu
HEWITT, op. cit., p. 147.
MARINETTI, op. cit., p. 89.
36 LEFEBVRE, Henri. Introdução à modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 158.
37 MARINETTI, op. cit., p. 91.
38 Ibidem, p. 93.
34
35
39
Ibidem, p. 94.
40
Ibidem, p. 89.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
manifesto se anuncia explicitamente, porém, o texto se cinde
entre um “nós” – os futuristas – e um “você”, cisão que
introduz uma rica ambiguidade. Sempre que o “você” é
evocado, não se lhe dá a voz (“Suas objeções? Basta!”41), ou
fala-se por ele (“Você quer portanto apodrecer?”42). O
diálogo nunca é permitido, e inclusive o grupo ou indivíduo
representado por esse pronome é excluído do público alvo
do texto. Os futuristas surgem já como autoridade – “ditamos
nossas primeiras vontades”43 –, mas falam exclusivamente
para os “homens vivos”44, não para o interlocutor a quem
negam participação.
Mas se “você” não é alguém “vivo”, quem é ele?
Poderíamos pensá-lo como o próprio leitor, caso em que o
texto estabeleceria uma relação belicosa com ele desde o
início. Há, entretanto, mais a ser dito. O elemento bélico está
certamente presente, mas sua aparição no plano da
interlocução resolve-se no da nacionalidade e temporalidade.
Embora seja possível ver aí uma apologia do conflito entre
nações, prefigurando a retórica que faz do movimento “ao
mesmo tempo expansivo e centrado nacionalmente”
(tradução nossa)45, a briga principal do futurismo é da Itália
contra ela mesma, contra seu passado, mais especificamente.
Historicamente, podemos identificar esse conflito como uma
126
característica da nação recém-unificada, ambiciosa de
fortalecer-se e criar uma face que lhe seja própria. Assim,
Marinetti lança-se em uma discussão contra o acúmulo das
coisas velhas em seu país. Os alvos diretos da polêmica
pertencem à materialidade estética: põem-se em questão os
museus, os quadros, as esculturas, tomados como
instituições ou objetos cuja função principal é conservar. Não
obstante, o tema nacional revela-se subjacente a várias das
imagens que já mencionamos, completando a polissemia do
texto. Falar em canais ou em urnas funerárias é, sem sombra
de dúvidas, falar da herança romana da Itália. O futurismo
quer uma nação desembaraçada de si mesma, de tudo que é
idoso (na classificação de Marinetti, as coisas com mais de 40
anos de idade, e lembrando que a unificação completou 39
anos em 1909). Nesse sentido, pedir que “desviem o curso
dos canais para inundar as sepulturas dos museus” é pedir
que mudem o curso da história, da velharia romana, por
assim dizer.
Alguns outros fatores são evocados, ainda que em
vínculo indireto com a nação ou em oposição a ela,
simbolizando o mundo que se quer abandonar. O primeiro
deles é o Oriente, que aparece associado ao marasmo e à
morte nas figuras da mesquita e sua preguiça nativa, e das
huhu
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
41 Ibidem, p. 94.
42 Ibidem, p. 92.
43Ibidem, p. 91.
44Ibidem, p. 91.
45WELGE, op. cit., p. 550.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
127
argolas bizantinas que envolvem os cadáveres. O segundo é a
a lógica e a matemática. Enquanto é noite e a vigília
prossegue, os futuristas discutem nas “fronteiras extremas
da lógica”46, mas com o raiar do dia e sua saída alucinada, as
lâmpadas lhes ensinam a menosprezar seus “olhos
matemáticos”. No limite, é a atenção prestada aos
“raciocínios persuasivos”47, representados pela bela imagem
dos ciclistas contra o automóvel, que provoca o acidente. Na
verdade, o uso desse termo não pode passar de uma meiaverdade: Marinetti não bate o veículo por descontrole, mas
porque fica entediado com as discussões dos dois, e prefere
sair logo delas.
Um terceiro fator é a religião, tema forte pela presença
do Vaticano em solo italiano, e que surge nas imagens dos
sonhos crucificados nos museus, na morte salpicada de
cruzes, na prece extenuada do canal. Pode-se concluir dessa
série que Marinetti rejeita o interesse pelo conhecimento de
suas máquinas ou pela espiritualidade. Propõe uma filosofia
da ação, do movimento de certo modo desprovido de cálculo,
como fica claro na ordem de que ele e os amigos “saiamos da
Sabedoria”, rumando à “embriaguez dos cães raivosos”48.
Essa teoria da pura ação antecipa um dos canais que
tornará posteriormente possível a aliança entre futuristas e
huhu
fascistas. Puchner49 assinala que a ênfase que os partidos
comunistas punham no conhecimento teórico recebia à
direita uma contrapartida que figurava como estímulo à
prática imediata, potente, desimpedida das barreiras do
pensamento. O sujeito futurista é aquele que se entrega à
potência criativa até seus limites, que maximiza sua ação
com doses cada vez maiores de energia. Seu vínculo com a
questão da máquina é o que nos acompanhará até o final da
análise.
A menção à “velha Itália” retoma a questão
vitalista/biológica num terceiro viés. Os museus são
cemitérios, diz-se, e os profissionais que lidam com o
passado, como professores e arqueólogos, são a “gangrena”50
da nação. Aí revela-se um traço fundamental do texto. A
gangrena é a falência por falta de circulação, por falta de
movimento. Na menção a esse detalhe, o manifesto encontra
sua constituição basilar: este é um texto sobre morte, e nele
não se opõem vida e necrose, mas tipos diferentes de morte,
como resultados de vidas distintas.
Pensemos na sequência temporal da obra. Marinetti
abre no presente, falando do que fazia até passar por sua
experiência de quase-morte, que lhe serve de inspiração para
declarar aquilo que quer e fará no futuro. O discurso vai,
entãh
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
46
MARINETTI, op. cit., p. 89.
47
Ibidem, p. 90.
48
Ibidem, p. 90.
49 PUCHNER,
op. cit., p. 82.
50 MARINETTI,
op. cit., p. 92.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
então, ao pretérito, falando como a Itália era; volta ao
presente, com a reprovação da contemplação artística atual,
e salta para um futuro ainda mais distante, em que o grupo
futurista é extinto. Uma vez mais, enfim, retorna-se ao
presente para lançar o desafio às estrelas. Nessa sequência,
repete-se duas vezes uma estrutura que parte de um relato
pretérito, passando pelo momento atual e ultrapassando-o.
Mas o futuro aparece, ora como mero projeto, ora como fim
definitivo. O texto não narra o desenvolvimento desse projeto,
que fica, por assim dizer, a ser contado pelos próprios atos
dos artistas. Mas afinal por que isso tudo? Por que lançar um
mito escatológico sem uma gênese?
É que “a Mitologia e o Ideal místico estão
ultrapassados”. Marinetti quer “abalar as portas da vida”51.
Viver, no futurismo, não significa experimentar o mundo tal
qual um plano ótimo, mas esgotar essa própria vida, dar-se
“de comer ao Desconhecido”52. Ora, o desconhecido não é a
própria morte? Mas temos aqui duas mortes diferentes.
Marinetti pretende evitar a morte letárgica, ou seja, a
degenerescência pela imobilidade, pela retenção, pela
atenção ao passado, ou, mais simplesmente, a morte natural:
terra + água, destruição por definhamento. O que os
futuristas
128
futuristas desejam é a morte por esgotamento, a exaustão de
quem fez muito e se esvaiu: ar + água, destruição pelo
movimento. Se cantam o prazer, o trabalho e a revolta53, é
somente na medida em que eles consomem suas multidões.
Apenas assim se compreende a apologia da violência e da
velocidade. Ambas constituem movimentos centrífugos, que
retiram o homem de si mesmo. De certo modo, retiram-no do
próprio mundo.
Se para Perloff “o manifesto é situacional por operar
no tempo e espaço reais” (tradução nossa)54, a ambição do
documento é justamente abolir essas categorias, levando a
experiência ao absoluto55, onde o ser se esvai; e o meio para
essa superação é a velocidade, que se equivale à beleza56,
assim como a arte se equivale à Injustiça57, no compasso
exato de sua desmedida. Nota-se que o próprio manifesto
perde sua função com a concretização do ideal futurista –
morre, por assim dizer –, na medida em que, se sua
capacidade performativa é o processo de extinção de tudo
aquilo que se situa de maneira estanque em relação a um
referencial temporal ou espacial, o cumprimento de sua meta
nada mais é que a inscrição do caráter “manifestário”
huhuhu
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
51 Ibidem, p. 89.
52 Ibidem, p. 90.
53 Ibidem, p. 92.
54 PERLOFF, op. cit., p. 90.
55 MARINETTI, op. cit., p. 92.
56 Ibidem, p. 91.
57 Ibidem, p. 94.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
na história, que passa a ser eterno movimento e aniquilação,
e elimina a necessidade de um objeto textual que execute
essa tarefa:
[O Futurismo] celebra a emoção não pelo aqui e agora, mas pelo
momento de seu desaparecimento. […] Nada deve ser
transformado em ontologia, nem mesmo a temporalidade que
nega toda ontologia, […] E o Futurismo não odeia nada mais do
que a nostalgia (tradução nossa).58
A oposição dinâmica entre homem, natureza e
máquina retorna, portanto, embasada em um ponto de vista
anterior ao que apresentamos, e que o engloba. Lembremos:
a tecnologia, quando assimilava características animais,
contrapunha-se ao homem na medida em que amplificava a
energia violenta daquilo que não é humano; quando
associada a caracteres humanos, contrapunha-se ao animal
na medida em que potencializava o impulso dominador do
homem. Ora, o esquema faltante, que associaria homem e
animal contra a máquina, pode ser finalmente entendido
como o conflito que torna possível as situações anteriores:
aquele que se dá entre vida e morte.
A máquina surge como aquilo que, não sendo orgânico,
e portanto, do ponto de vista da decomposição natural,
“eterno
129
“eterno”, supera as limitações da biologia. Sua única fraqueza
é a necessidade do toque humano para que possa ser gerada.
Ambos os princípios podem ser ilustrados com a cena do
acidente de carro: “A gente o acreditava morto, meu bom
tubarão [o automóvel], mas eu o despertei com um só
carinho no seu dorso todo-poderoso, e ei-lo ressuscitado,
correndo a toda velocidade sobre suas barbatanas”59. O
mecânico torna possível aquilo que Marinetti concebe como
a abolição do tempo e do espaço. Tomados como os limites
da própria vida, tempo e espaço são também limites da
criatividade humana; daí o interesse do futurista em
ultrapassá-los. A máquina se lhe afigura, portanto, como
ideal máximo, pois é ser que chega ao topo da ambição do
artista/político: cria incessantemente e exponencialmente.
Mas como para os seres vivos não é possível, apesar de tudo,
superar a mortalidade, resta-lhes apenas a alternativa de
aproximar-se incessantemente da condição maquínica, sem
nunca atingi-la inteiramente. Para o animal, essa não é
realmente uma escolha. Ser irracional, limita-se a viver, na
força de seus impulsos comuns, algo próximo da potência da
tecnologia. Para o homem, há a possibilidade de fazer uso da
máquina como amplificador de suas capacidades reais. É
nesse sentido que a tecnologia aparece no “Manifesto
Futurist
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
58 HEWITT, op. cit., p.108-109.
59 MARINETTI, op. cit., p. 91.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
130
Futurista”, como canal que potencializa a ação. Mas essa
seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e
amplificação acarreta, inevitavelmente, uma decomposição
máquina geram-se um ao outro em um circuito fechado que
do corpo humano, pois o submete a cargas de energia que ele
antecipa o desdobramento de uma genealogia linear”
não foi concebido para suportar: “em sua economia, o corpo
(tradução nossa)61 – no sentido de que a máquina, filha do
torna-se um meio, um processo, e entra em um sistema de
homem, altera sua condição, mas no limite o supera em sua
troca energética que necessariamente destruirá sua entidade
linhagem.
60
autônoma” (tradução nossa) . A caminhada rumo ao ideal
De fato, do ponto de vista político (nacional), como
futurista vem à custa do esvaimento do homem. Marinetti
aponta Welge, “o futurismo vai em geral contra a
julga isso sem dúvida preferível à alternativa de conservar a
descentralização e dissolução do sujeito humano. (…) essas
vida, mas torná-la medíocre. Assim chegamos à oposição
tendências, em última análise, reforçam, e não debilitam, a
entre letargia e esgotamento, e encontramos seu lugar na
autonomia do sujeito” (tradução nossa)62, pois não se trata
estrutura semântica do texto. A morte lenta é característica
de mergulhar a subjetividade em uma homogeneidade
do animal, que vive mais intensamente, mas degenera pelas
ideológica, que a extingue como parte do todo. Mas, em todo
mãos da própria natureza. O homem está a princípio
âmbito produtivo, o desenvolvimento da criatividade só pode
submetido ao mesmo processo, sem nem a possibilidade de
ser concretizado como pura “dissolução” do sujeito. A morte
viver os ímpetos enérgicos da irracionalidade animal –
violenta é o mais próximo que o homem consegue chegar da
quanto mais nos momentos em que se prende à lógica, sem
imortalidade, propriedade exclusiva do ser mecânico.
ultrapassar suas “fronteiras extremas”. É o caso do professor
Procuramos sintetizar nossas conclusões na Figura 2.
e do arqueólogo. O sujeito futurista, indo na contramão, é
Os vértices do triângulo maior correspondem aos três polos
aquele que deplora essa condição, e incrementa sua vivência
de nossa discussão. Cada lado forma uma dupla constituída
com o uso da tecnologia, dominando o mundo à sua volta
pelos elementos em suas extremidades. As alturas partindo
tanto mais criativamente quanto mais acelera a chegada de
de cada vértice e extrapolando os lados opostos indicam a
seu fim. Nesse sentido é que Somigli pode dizer: “Humano e
oposição que se estabelece entre a dupla correspondente
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
máquina
60
HEWITT, op. cit., p. 155.
61
SOMIGLI, Luca. Legitimizing the artist: manifesto writing and European modernism, 1885-1915. Toronto: Toronto University Press, 2003. p. 125.
op. cit., p. 551.
62 WELGE,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
oposição que se estabelece entre a dupla correspondente
(lado) e o terceiro elemento (vértice), do ponto de vista
daquilo que é comum à dupla, e que está representado em
itálico no fim das setas. Nos pares de opostos resultantes, o
primeiro termo é sempre aquele equivalente à dupla, e o
segundo o equivalente ao termo restante. O triângulo interno
indica a morte como princípio de uma estruturação mais
básica, que opõe os três termos em função da maneira como
falecem (ou deixam de falecer), e que é indicada nos
parênteses abaixo dos nomes de cada elemento.
Figura 2: Diagrama estrutural do “Manifesto Futurista”.
131
Diz Hjartarson: “os manifestos dos movimentos avantgarde são performances retóricas complexas, visando à
transformação do sujeito moderno” (tradução nossa)63.
Compreende-se assim o espírito antimatemático dos
futuristas, e também o porque de retratarem seu fim. É que a
autodestruição (lembremos que a juventude futura admirará
a atual) é a real concretização do projeto de Marinetti para a
dupla subjetividade político-artística. Esse télos revela-se
mesmo na definição das fronteiras de seu grupo. Não são
todos que chegaram aos 30 anos, mas porque alguns já o
fizeram, Marinetti diz que “nós já dissipamos os tesouros, os
tesouros de força, de amor, de coragem e de áspera vontade
(...) a perder o fôlego”64. Vem então à tona a curiosa geografia
do fim do documento – aquilo que apontamos anteriormente
como uma topologia demarcada segundo os quatro
elementos naturais. Em seus últimos parágrafos, os futuristas
situam-se no cume do mundo. Falam de cima para baixo,
ordenam que seus ouvintes (os homens da “terra”)
“levantem antes a cabeça”65. Falam com o coração nutrido de
fogo, da potência criadora (portanto autodestruidora) do
presente, e lançam seu desafio às estrelas, ao “céu (...)
palpável e vivo”66, aos ares que anunciam a novidade
mortífera.
_____________________________________________________________
63 HJARTARSON, op. cit., p. 178.
64 MARINETTI, op. cit., p. 94.
65 Ibidem, p. 94.
66 Ibidem, p. 90.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Quando já estiverem esgotados, os jovens de hoje
terão seus últimos momentos ao lado de uma fogueira
miserável – e o último som que ouvirão será o da chuva, que
traz em sua monotonia o anúncio do fim. Eis, finalmente, a
natureza “transitória” do ar: ele demarca justamente a
passagem da criação máxima à destruição máxima; o
momento da morte mesma, que, já em suas primeiras
aparições, anunciava-se indiscriminada na “boca imensa e
torta do vento”67.
_____________________________________________________________
67Ibidem, p. 90.
132
Daniel Serrano
Professor de língua portuguesa.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
134
Empresa Lanifícios Tejo LDA.
um prédio ardido não tem miolo
nem carne interna
nem polpa
janelas serão
orifícios
de uma caixa
não tem recheio um prédio ardido
é pele apenas
embalagem
orifícios laterais
na parede
de uma praça
uma piscina vazia poderá ser
um prédio que ardeu
buraquinhos enfim
por onde a fábrica
vazava
será talvez o prédio que ardeu
uma praça
com parede
sim uma praça
uma caixa
sem tampa
uma praça que é uma caixa vazada,
o prédio ardido
diz-se dos buracos na fachada:
janelas
(não vazam as fábricas ardidas porque não são piscinas)
vazava barulho
de máquina
vazava talvez
cheiro
de fábrica
e vazava
gente
pela porta
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
gente que todo dia
enchia
e vazava
entrava
e saía
e que não passa mais
passa gente pela rua de trás
que agora
vê-se
pelas janelas da frente e de trás
mesmo do outro lado da rua
mesmo da outra margem do rio
(passa gente
e passa mais
passa vento
que sacode a roupa
nos varais
e perto das roupas passa um carro
pela rua de trás
135
vê-se enfim tudo que se
passa
pela janela
de uma fábrica
que não vaza mais)
por entre os buracos de um prédio ardido
um olho acha
muito
do que ali não se acha
acha o que por trás
se passa
e acha
– pensa que acha –
o que ali se achava
acha mesmo
barulho
de máquina
cheiro
de fábrica
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
e acha
que houve
e que estava
uma fábrica queimada
vaza
uma vila
vara
uma vida
vira
uma vala
136
na cabeça
de que quem via
e vê nada
(a rigor vê
o que não via
antes de arder)
uma fábrica ardida
passa a ter
o que não tinha
e perdeu
Jessica Sallasa
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
138
A reelaboração dos jovens de J. K. Rowling em Morte Súbita
1. O rótulo propagado
aqueles que, apesar de nunca terem lido nada da autora
britânica, se sentem instigados a conhecer esse novo romance
pela promessa de uma trama supostamente mais bem
elaborada. Assim, ao darem tal rotulação, o único objetivo não
desejado pelas editoras seria proibir a leitura de Morte Súbita,
pois o fato de ser um romance para adultos é mais um atrativo
comercial do que uma advertência aos leitores.
De acordo com a contracapa da editora Nova Fronteira,
o romance atrairia o público adulto por narrar os
acontecimentos de uma pequena cidade cercada de mistérios,
intrigas, suspenses e revelações. Mas esse vilarejo, Pagford,
seria, “num primeiro momento, apenas uma pequena cidade,
como outra qualquer, a qual pode ser comparada ao nosso
bairro, ou à cidade de cada um de nós”. A partir dessa
descrição, podemos depreender que aquilo que a editora
utiliza para caracterizar esse romance como adulto é o fato de
Rowling distanciá-lo da descrição fantástica que permeia a
saga Harry Potter e aproximá-lo do mundo do leitor. Seria o
compromisso com a realidade e com os problemas do
cotidiano que o afastariam do universo juvenil.
Além disso, o
vídeo comercial veiculado na internet pela editora2 destaca a
________________________________________________________________________________________________________________________________________
complexidade das personagens de Morte Súbita. Em tom de
¹Disponível em: www.littlebrown.co.uk/TheCasualVacancy.page.
suspense, o locutor inicia: “Você acha que você se conhece. As
pessoas acham que te conhecem. Todo mundo tem um
segredo...”.
O romance Morte Súbita,
publicado recentemente no Brasil
pela editora Nova Fronteira, é de
autoria de J. K. Rowling, a mesma da
famosa saga juvenil Harry Potter.
Entretanto, a contracapa do livro já
previne: esse é um romance para
adultos. Essa preocupação da edição
brasileira (e também da edição
original
da Little, em
Brown
and
original da Little, Brown
and Company)
distanciar
em distanciar
da
Rowling da reputação Company)
de escritora
juvenil Rowling
pode ser
juvenil
pode
compreendida como umareputação
estratégiade
de escritora
divulgação
para atrair
ser compreendida
diferentes públicos. A princípio,
são atraídos como
aqueles uma
que
divulgação
atrair
leram algum livro de J. K.estratégia
Rowling de
e que
esperampara
encontrar
diferentes
em Morte Súbita uma
nova públicos.
trama arquitetada por
mecanismos já conhecidos. Nesse caso, inserem-se os jovens
adultos que acompanharam Harry Potter na infância e que
hoje buscam uma evolução da obra à altura do
amadurecimento dos seus antigos leitores. A posteriori, estão
aqueles que,
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Além disso, o vídeo comercial veiculado na internet
pela editora2 destaca a complexidade das personagens de
Morte Súbita. Em tom de suspense, o locutor inicia: “Você
acha que você se conhece. As pessoas acham que te
conhecem. Todo mundo tem um segredo...”. As personas
desse romance surpreendem o leitor e a si próprias a todo
instante, estabelecendo outra relação de verossimilhança
capaz de igualar a nossa complexidade à das novas
personagens de J. K. Rowling. Dessa forma, até que ponto as
situações despidas de eufemismos, o relato das nódoas do
cotidiano e a elaboração de personagens complexos existem e
sustentam um relato experiente, de acordo com o que a editora
compreende por essa definição, é o que pretendemos analisar.
139
Em Morte Súbita, embora não fique evidente, o enredo
do romance também é regido pelas ações de personagens
jovens. Porém, ao contrário dos livros anteriores, o que
possibilita a esses o poder de alterar o mundo ao redor não é
a prática da coragem e benevolência, mas da covardia e
egoísmo diante de conflitos familiares. Com receio de
crescerem e se tornarem iguais aos pais, eles agem
impulsivamente e, muitas vezes, até se surpreendem com os
resultados dos próprios atos. Além disso, são personagens
complexos e em constante modificação, de maneira que
dificultam ao leitor a plena compreensão da coerência de
seus comportamentos.
Stuart Hall, filho da orientadora educacional, Tessa, e
do vice-diretor do colégio, Colin, procura ir de encontro aos
padrões de comportamentos que impedem a prática de sua
2. Convicções antigas em estilo renovado
autenticidade. Conscientemente determinado a ser fiel aos
A saga Harry Potter ficou estereotipada por enaltecer
seus instintos, o jovem busca, na verdade, fazer aquilo que os
o altruísmo e a amizade, especialmente entre adolescentes.
seus pais desaprovariam. Junto com o seu amigo Andrew
Harry, Roni e Hermione, junto com o auxílio de outros alunos
Price, ele fuma, usa drogas e é caracterizado como um garoto
de Hogwarts, são os responsáveis, no final da saga, pelo
problemático.
retorno da paz no mundo dos bruxos, depois de afastarem
Andrew, por sua vez, apesar de também não ter uma
Voldemort, um bruxo maligno.
boa relação familiar, procura, em direção contrária à do
Em Morte Súbita, embora não fique evidente, o enredo
amigo, não fazer nada que desagrade o seu desequilibrado
do
romance também é regido pelas ações de personagens
________________________________________________________________________________________________________________________________________
pai, Simon. O menino que tem em casa, pelas atitudes do
2 Disponível em: http://www.mortesubitaolivro.com.br.
jovens. Porém, ao contrário dos livros anteriores, o que
próprio pai, exemplos do que é agir irracionalmente, o
possibilita a esses o poder de alterar o mundo ao redor não é
repudia apenas ocultamente, sem a intrepidez de Stuart.
a prática da coragem e benevolência, mas da covardia e
Diferentemente de Colin, Simon não é adepto do diálogo, da
egoísmo diante de conflitos familiares.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
amigo, não fazer nada que desagrade o seu desequilibrado
pai, Simon. O menino que tem em casa, pelas atitudes do
próprio pai, exemplos do que é agir irracionalmente, o
repudia apenas ocultamente, sem a intrepidez de Stuart.
Diferentemente de Colin, Simon não é adepto do diálogo, da
paz familiar e das aparências.
Já a terceira adolescente destacada nessa trama é
Sukhvinder Jawanda, uma garota com Q.I. e beleza abaixo do
padrão familiar, que sofre bullying na escola e em casa. Os
pais, Parminder e Vikram, embora médicos, não notam que a
filha faz cortes no pulso todas as noites com a lâmina de uma
gilete.
Ocultados pela aparência de jovens revoltosos, são
esses personagens que enxergam e apresentam aos leitores
de Morte Súbita os conflitos que os outros habitantes do
pequeno vilarejo Pagford fingem não ver. Imersos em seus
problemas particulares e mantendo uma boa imagem
pública, muitos fecham os olhos para fatos que acontecem
até dentro de casa. É apenas por esses adolescentes que
descobrimos que a aparentemente pacata Pagford esconde
segredos, perversidades, injustiças, traumas infantis e uma
alta taxa de exclusão social.
No enredo, entretanto, a importância dessas
personagens não é evidente, sobretudo nos primeiros
capítulos. Os adolescentes são pincelados aos poucos no
meio da descrição dos segredos e angústias dos habitantes
do vilarejo Pagford e do bairro periférico Fields, com os quais
140
meio da descrição dos segredos e angústias dos habitantes do
vilarejo Pagford e do bairro periférico Fields, com os quais o
narrador procura familiarizar quem lê. À vista disso, cada
capítulo do romance transmite a sensação de ser uma cena
regida pelo ponto de vista de uma personagem específica, sem
a presença de interpelações narrativas e juízos de valor
daquele que narra.
Quem de fato parece controlar o universo ficcional e
recebe destaque desde as primeiras páginas é Barry
Fairbrother, um sujeito que passa o seu último dia escrevendo
um artigo sobre a jovem marginalizada Krystal Weedom e que
morre subitamente no estacionamento do clube de golfe com
uma hemorragia cerebral. Apesar do seu falecimento no
começo do romance, Barry é o eixo conector de todas as
personagens e intrigas que ocorrerem em Pagford após a sua
morte. É o sujeito que dá título ao romance Morte Súbita e ao
original em inglês, The Casual Vacancy.
Por ter sido em vida conselheiro na administração do
Conselho Local, a sua súbita morte abre uma vaga que será
acirradamente disputada por três candidatos da cidade: Miles,
Colin e Simon. Mas além da desestabilidade na política local, a
falta de Barry Fairbrother também influenciará na vida de
jovens que pouco se interessam pelos assuntos formais do
vilarejo, pois o antigo representante político tinha consciência
social.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Howard Mollison, diretor do Conselho, promove a
candidatura do seu filho Miles para ter apoio na sua proposta
de fazer com que o bairro periférico Fields deixe de fazer
parte das obrigações do vilarejo, junto com a clínica de
reabilitação para dependentes químicos, de modo que
Pagford volte a ser habitado apenas por famílias tradicionais.
Em contrapartida, a Dra. Parminder Jawanda, antiga amigade
Fairbrother e também membro do Conselho Distrital, conta
com a candidatura de Colin Wall para a defesa do bairro e de
seus moradores, em memória das lutas políticas do falecido
amigo. Já o terceiro interessado na vaga, Simon Price, não é
apadrinhado por nenhum membro do Conselho e não deseja
influenciar nas questões políticas do vilarejo, pois seu
interesse é puramente financeiro.
Quando as campanhas eleitorais começam, mensagens
caluniosas surgem no site do Conselho. Simon Price é
acusado de comprar mercadorias roubadas e de interceptar
notas na gráfica onde trabalha. Colin Wall, que guarda o
segredo de ser portador de um transtorno obsessivo
compulsivo, é acusado de sonhar fantasias e de tocar nas
crianças da escola onde é vice-diretor. Até Parminder, que é
conhecida na cidade pelo seu comportamento resguardado, é
denunciada por nutrir uma paixão pelo falecido Fairbrother.
Entretanto, o que no ambiente pré-eleições parece ser
uma artimanha política para prejudicar os candidatos
favoráveis à defesa de Fields e denegrir a conselheira que
defende o bairro, é na verdade consequência de vinganças
141
favoráveis à defesa de Fields e denegrir a conselheira que
defende o bairro, é na verdade consequência de vinganças
particulares dos filhos dos envolvidos. Andrew procura
abortar os planos de Simon como revide pelas tantas vezes
que ele, o irmão mais novo e a mãe foram espancados.
Sukhvinder também posta uma mensagem anônima em
vingança às ofensas de sua mãe Parminder, enquanto Colin é
exposto pelo filho adotivo, após descobrir que Stuart é
usuário de drogas.
Embora postadas por motivos e autores diversos, as
mensagens são enviadas pelo perfil invadido de Barry
Fairbrother, que foi alterado para “O Fantasma de Barry
Fairbrother”. Neste e em outros momentos de Morte Súbita, as
personagens sentem a presença do fantasma do falecido que,
mesmo ausente, controla a trama. As suas boas ações são
lembradas, a sua presença é sentida e temida, e o seu caráter
auxiliador é exposto aos leitores pelas lembranças que vêm à
tona no cotidiano dos habitantes do vilarejo. Nem mesmo
nessa vingança juvenil o seu nome é preservado.
Entre o receio e a saudade, Krystal Weedon parece ser
quem mais lastima a morte de Barry Fairbrother. A menina de
Fields, sobre quem Barry escrevia o artigo no seu último dia,
tem medo da possibilidade de um fantasma que vigie e julgue
suas atitudes, mas também sofre pela falta de Barry, a única
pessoa a quem podia recorrer em momentos de urgência.
Fairbrother, por também ter nascido em Fields e ter tido a
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
142
Fairbrother, por também ter nascido em Fields e ter
da narrativa, a jovem Krystal passa a ter relevante papel no
tido a oportunidade de estudar nos excelentes colégios do
restante da trama. Em determinado capítulo, ao ser agredida
vilarejo de Pagford, defendia, em vida, a continuidade desse
por um dos homens que mantinha relações sexuais com
privilégio para as crianças carentes que, assim como ele,
Terri, a garota verbaliza a falta que a proteção de Barry lhe
poderiam mudar o rumo do seu futuro tendo uma educação
faz: “– Eu vou contar pro Sr. Fairbrother – se ouviu dizer,
de qualidade. O artigo que escrevia para o jornal no dia em
soluçando. Não sabia de onde tinha tirado aquilo. Era a coisa
que morreu era sobre como estudar na mesma escola que os
mais idiota que podia ter dito” 3. Sem ninguém que pudesse
pagfordianos poderia transformar a vida de tantos jovens
ajudá-la, ou no mínimo entendê-la, a única alternativa que
carentes, como a de Krystal Weedon.
encontra para proteger e sustentar Robbie é engravidar de
A menina, criada pela mãe, Terri, e sem conhecer o pai,
Stuart Wall.
convive com o vício dessa e com as suas tentativas falhas de
Nesse ponto, porém, a composição narrativa que vinha
reabilitação de uma dependência química. Com o receio
sendo composta anteriormente é reelaborada. A
constante de a mãe perder a guarda do seu irmão de três
complexidade das personagens que se revelava ao leitor
anos, Robbie, Krystal ainda tem que conviver com a
quando este acompanhava as suas reflexões contraditórias
insalubridade do lar e com a entrada constante de homens
deixa de ser trabalhada, pois os capítulos param de fornecer
que vão ter relações sexuais com Terri. E, assim como os
diferentes perspectivas dos fatos, de acordo com o indivíduo
outros jovens de Pagford, Stuart, Andrew e Sukhvinder,
em destaque, e o narrador passa a emitir indiretos juízos de
Weedon também almeja um futuro diferente daquele de sua
valor. As personagens não entram mais em conflito consigo
mãe, porém deseja isso para que Robbie não seja mais uma
mesmas realizando ações e tendo pensamentos que as
vítima da mesma situação deplorável.
surpreendem, pois o foco narrativo está dedicado
Na dinâmica interna do enredo, que aumenta o
unicamente ao desenvolvimento de Krystal, e não mais em
destaque dado a determinadas personagens com o decorrer
todos os conflitos de um pequeno vilarejo.
da narrativa, a jovem Krystal passa a ter relevante papel no
Além disso, abandona-se a descrição do contexto
________________________________________________________________________________________________________________________________________
restante
da trama. Em determinado capítulo, ao ser agredida
coletivo, do conflito político e dos problemas públicos de
3 ROWLING, J. K. Morte Súbita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, p.329.
por um dos homens que mantinha relações sexuais com
Pagford que vinham sendo desenvolvidos em primeiro plano
Terri, a garota verbaliza a falta que a proteção de Barry lhe
narrativo, para fornecer uma solução dicotômica ao romance
faz: “– Eu vou contar pro Sr. Fairbrother – se ouviu dizer,
e às suas complexidades. Os moradores de Pagford, inclusive
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
143
Além disso, abandona-se a descrição do contexto
futuro melhor pelo remo, esporte que praticava, ou por
coletivo, do conflito político e dos problemas públicos de
qualquer outra profissão, que se mostram como alternativas
Pagford que vinham sendo desenvolvidos em primeiro plano
para Krystal após a morte de Fairbrother. Apenas a presença
narrativo, para fornecer uma solução dicotômica ao romance
dele possibilitava algumas dessas escolhas. Mas sem a figura
e às suas complexidades. Os moradores de Pagford, inclusive
masculina protetora, a menina se degrada ao tentar mudar a
os jovens de lá, que desde o início do romance são retratados
sua realidade. A única saída que consegue enxergar para a
como mesquinhos e até medíocres – já que a morte de Barry
ascensão social é engravidar de um menino rico.
representa apenas uma vaga aberta no Conselho Distrital –,
Essa decisão é tomada ao chegar um dia em casa e
são contrastados aos de Fields, na qual a maioria da
encontrar o homem que a estuprou deitado no seu colchão
população, apesar de ser descrita como lasciva, é
sem camisa e Robbie, de apenas três anos, nu. Decide
caracterizada como ingênua e benévola. Com isso, Morte
engravidar de Stuart naquela manhã. Deixa Robbie no banco
Súbita, que até então estabelecia um vínculo com a temática
da praça e vai com o adolescente para o matagal. O
social, ao descrever o corte de benefícios sociais imposto a
garotinho sujo e mal-encarado ficou algum tempo sozinho na
pequenos vilarejos, como Pagford, e a complexidade interna
praça e foi visto por muitos habitantes de Pagford, mas
das personagens, com segredos revelados, dúvidas e caráter
ninguém se preocupou com ele. Talvez “se a criança fosse
dúbio, passa a descrever uma sociedade simplista.
mais limpinha”, as pessoas não teriam confundido “aqueles
A representante máxima da classe oprimida e
sinais evidentes de negligência com a desenvoltura, a dureza
moralmente boa do romance é Krystal Weedom. O narrador
e a capacidade de se virar sozinho”4. Algum tempo depois,
dá ênfase à sua história de menina submissa em virtude de
porém, cansado de ficar esperando, Robbie vai procurar
sua situação econômica e pelo fato de ser mulher. Não é a
Krystal e cai em um riacho. Sukhvinder, que passava perto,
inserção social a partir da escola e nem a esperança em um
tentou socorrê-lo, mas trouxe à superfície apenas o corpo
futuro melhor pelo remo, esporte que praticava, ou por
ainda quente do pequeno defunto. Desesperada com a morte
qualquer
outra profissão, que se mostram como alternativas
do irmão por conta do seu descuido, Krystal injeta heroína na
________________________________________________________________________________________________________________________________________
4 ROWLING,
para
Krystal
a morte de Fairbrother. Apenas a presença
op.após
cit., p.491.
própria veia: sabia que não ia resistir, e era esse o seu desejo,
dele possibilitava algumas dessas escolhas. Mas sem a figura
só pensava que “tentando salvá-lo, ela o tinha matado” 5.
masculina protetora, a menina se degrada ao tentar mudar a
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
144
ainda quente do pequeno defunto. Desesperada com a morte
da trama altera também a forma como tal relato vinha sendo
do irmão por conta do seu descuido, Krystal injeta heroína na
elaborado. Em determinada parte do romance, o narrador foca
própria veia: sabia que não ia resistir, e era esse o seu desejo,
em Krystal e esquece-se da disputa política e da temática dos
5
só pensava que “tentando salvá-lo, ela o tinha matado” .
segredos que todos guardam. Para fortalecer a crítica social
Depois desse clímax, Stuart abandona a sua obsessão
sobre as injustiças que uma menina sem possibilidades como
pela autenticidade e até acaba se aproximando do pai.
ela enfrenta, opta-se por simplificar o relato e personagens
Começa a sentir, como Colin, medo das suas atitudes.
criando um ambiente dicotômico e dramático que contrasta ao
Sukhvinder vira a heroína do vilarejo e dos Jawandas. E até
relato verossímil do início do romance.
Andrew acaba se aproximando de Simon por outros motivos.
Entretanto, ainda com essa mudança de perspectiva, é
Apenas a jovem Krystal teve a sua imagem denegrida e
importante afirmar que a personagem adolescente continua
morreu sem conseguir se reconciliar com a mãe.
sendo quem guia o movimento narrativo e com quem o
Dessa forma, o novo romance adulto de J. K. Rowling
narrador fica mais próximo e empenhado em acompanhar,
possui, de fato, situações com nódoas, relatos descritivos e
desde que guardadas as devidas proporções, já que os jovens
ausência de eufemismos, como a descrição do estupro que
complexos e contraditórios de Morte Súbita enfrentam conflitos
Krystal sofreu e dos sofrimentos e angústias que a falta de
e problemas mais próximos à realidade, pois, conforme afirmou
perspectiva causa nos moradores de Fields. A elaboração das
Alcir Pécora6, esse romance de Rowling recusa a “mágica” de
personagens é também mais complexa do que daquelas da
Harry Potter e preocupa-se em relatar a dureza das situações,
saga Harry Potter, pois, como foi exposto, é complicado
atitude que só enriquece a obra. Além disso, os jovens do
determinar os sentimentos que os guiam e por vezes os
romance, ao contrário de lutarem contra o mal, o procuram na
surpreendem em determinados momentos. Porém, a
esperança de se encontrar. São jovens com máculas, e os
suposição de uma possível alteração no conflito central da
responsáveis por esse romance ser destinado para adultos.
trama altera também a forma como tal relato vinha sendo
elaborado. Em determinada parte do romance, o narrador
6 PÉCORA, Alcir. Romance adulto de J. K. Rowling acerta ao se dedicar a tema social, mas erra em estilo. São Paulo, 2012. Disponível em:
foca em Krystal e esquece-se da disputa política e da
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/84410-livro-adulto-de-jk-rowling-acerta-ao-se-dedicar-a-tema-social-mas-erra-em-estilo.shtml
temática
5
Ibidem, p. dos
480. segredos que todos guardam. Para fortalecer a
crítica social sobre as injustiças que uma menina sem
possibilidades como ela enfrenta, opta-se por simplificar o
Victor Simões Lobato
Cursa Estudos Literários no IEL/UNICAMP, é músico e explorador das artes.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
146
Alquimia
Do sombrio apego ao chão
pés correntes estéreis
abandono, solidão caótica de vozes
submissão ao subsolo
aterrado em desconsolo
cava-se mais fundo
e além do chumbo, longe da gris angústia
de células de areia, de ervas, de órgãos, de cadeias
de ideias,
E a alheia lógica superficial
ganhou fôlego, proporção, vida
virou natural
Entendendo
Sinapses são raízes
Um brilho fugidio
um lume, vislumbre,
um maleável minério:
Da macia terra intocada irrompe um mistério.
Suspensos tensos tons, vibrou uma cor rara.
Escavada uma nova escala,
Despertas harmonias soaram através
de dúvidas, de grés, de esferas, de grãos
Estendendo
pra beber direto das nuvens
lúcidas águas, espiralando diretrizes,
Inspirar ar virgem, desafiando vertigens
Até Sol frutificar
Como aprendeu da Terra,
Ouro de dentro brota.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
147
Criação
A Ausência
Chama
A Essência
Queima
O Nada
Diz: Luz!
A Presença
Espiral
Condensa imensa potência
A sentença:
Ser que sente
E pensa.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
148
Vermelho
A cor do nosso interior
que aflora em vigorosa
rosa mística fonte
de vida entre meus braços
sente que é teu sangue
que condensa força
e iniciativa que
Pulsa
e incentiva a existência
Vermelho vida
Calor latente
Fogo que sente
Thiago Andreuzzi
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
150
O Humanizador
O humanizador é uma máquina revolucionária dessa
época moderníssima. Sua função consiste em humanizar o
ser humano, que, perdido no meio da multidão, ou trancado
em seu escritório/casa trabalhando compulsivamente e, nas
pausas, vendo o noticiário da TV, perdeu a capacidade da
empatia e da compreensão verdadeira do mundo.
Seu funcionamento se dá pela inserção de sentimentos,
sobretudo a compaixão e o amor, no caráter mecanizado do
doente. É uma máquina de cerca de dois metros de altura, de
modo que pessoas muito baixas não sejam capazes de entrar
nela para a o processo de reversão de reificação. Até o
momento, tem se mostrado um produto muito útil e eficaz,
resgatando perfeitamente a humanidade de quem se coloca a
passar pelo procedimento, o qual é dolorido e longo.
Com a aparência de uma donzela de ferro, seu design
evoca terror e erudição, além de converter-se facilmente em
uma legítima donzela de ferro, caso o paciente enlouqueça e
comece a defender os direitos básicos dos que ainda não
foram humanizados. Até hoje, não foi registrado nenhum
caso desses em todo o mundo. E, embora os documentos
sejam de posse única da empresa, esta é de uma
transparência fenomenal.
1A
empresa também aceita, no lugar das duas crianças, quatro idosos ou um casal gay.
Fragmento 22 T. In: Poetas perdidos.
2 ANÔNIMO.
Esta é uma outra parte do tratamento: mediante o
pagamento de uma quantia do lucro de um mês de banco e
duas crianças, o humanizador passa a funcionar e ajuda a
combater o problema da superpopulação em lugares com
altíssimas taxas de natalidade, e garante com sucesso que a
sociedade mantenha seu funcionamento sem grandes
problemas.
Apesar desse seu maravilhoso sistema, o humanizador,
no começo, encontrou certa resistência por parte de artistas,
como o poeta agora desconhecido e de grande sucesso que
escreveu os seguintes versos:
humanizador
humana é a dor2
Em uma clara referência à dor causada durante o
processo de cura. Provavelmente, ele teria passado pela
grande máquina quando esta ainda não poderia ser
convertida em uma donzela de ferro. De qualquer forma, o
poeta deixa claro a eficácia da máquina, uma vez que afirma
que a dor é humana.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Alguns desses artistas chegaram a propor o absurdo de
que o amor não é algo definível ou, segundo os menos
pessimistas, algo difícil de se definir. Mas os engenheiros do
humanizador o programaram com as emoções mais sinceras
encontradas nos filmes de alta bilheteria, na literatura e,
sobretudo, nos ensinamentos dos pastores e padres cristãos.
Há, portanto, cerca de 99% de chance de ele estar correto
em relação ao amor. Sendo assim, quem passa pelo
humanizador não corre o risco de se tornar homossexual ou
libertino. É totalmente seguro. Eliminam-se sujeitos como o
poeta, também já esquecido, do século XXI, que escreveu os
seguintes versos:
um cigarro aceso no chao
proximo da branca estatua
lembrava um incenso aceso
mas nao se poderia [...]r se
ele ali estava para este efeito
ou nao
3
ANÔNIMO. Fragmento 69 T. In: Poetas perdidos.
151
e naquele dia [...] deve ter descido
a terra
aquele lugar
pois os amantes logo começaram
a se [...]
os conhecidos logo começaram
a se [...]
os es[...]hos logo começaram
a se [...]
eram homens com mulheres
homens com homens
e mulheres com mulheres
cada um ali […] [...]re3
O humanizador, máquina revolucionária e com alta
preocupação com o social, acaba por ser uma das soluções
mais belas e concretas para o nosso dia a dia, para podermos
aprender a viver a vida da maneira como se deve ser vivida.
Matuyama
Bacharel em Estudos Literários, revisora e tradutora.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
153
in memorian
noventa e um anos
outono inevitável
duas folhas pendem
kyuju issai
aki sakerukoto no dekinai
ochikakatta niami no ha
Júlia Ciasca Brandão
Graduanda em Estudos Literários pela Unicamp e professora na escola Kreativ. É pesquisadora do Centro de
Pesquisa sobre Utopia (U-topos), do grupo Renascimento e Utopia, do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL-Unicamp), e faz parte da equipe de tradução, revisão e diagramação da revista MORUS – Utopia e
Renascimento.
Contato: [email protected]
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
155
O Truque do Grilo
Introdução
Gustav Meyrink, nascido em 1868, austríaco e
ilegítimo, obrigado a exercer, por quase trinta e cinco anos,
serviço bancário, finalmente torna-se escritor, editor e
tradutor de grandes autores como Dickens e Kipling.
1917. Meyrink publica em Bremen um livro de contos,
Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Entre eles, Das Grillenspiel
(O Truque do Grilo), o conto que você vai ler a seguir, é uma
representação da insensatez humana. O autor, que
enfrentava os percalços da primeira Guerra Mundial (1914 –
1918) e, por esta razão, conhecia o cenário em que reinam a
crueldade, a desordem e a insensatez, é crítico, sarcástico e
nada piedoso com os seus contemporâneos.
Neste texto, Meyrink demonstra sua habilidade em
inserir as personagens entre o fantástico e o real, entre o
sonho e a vigília. Através das escolhas corretas, o autor incita
o medo no leitor, e depois o desconstrói -, muitas vezes com
o uso da sátira -, porque, afinal, o medo nasce da superstição
e da insensatez, principais elementos que se opõem ao
desenvolvimento e ao progresso do espírito humano.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
156
Das Grillenspiel
Gustav Meyrink
»Nun?« fragen die Herren wie aus einem Munde, als
Professor Goclenius rascher, als es sonst seine Gewohnheit
war, und mit auffallend verstörtem Gesicht eintrat, »nun, hat
man Ihnen die Briefe ausgefolgt? – Ist Johannes Skoper schon
unterwegs nach Europa? – Wie geht es ihm? Sind
Sammlungen mit angekommen?« – riefen alle durcheinander.
»Nur das hier«, sagte der Professor ernst und legte ein
Bündel Schriften und ein Fläschchen, in dem sich ein totes,
weißliches Insekt in der Größe eines Hirschkäfers befand, auf
den Tisch, »der chinesische Gesandte hat es mir selbst mit
dem Bemerken übergeben, es sei heute auf dem Umweg über
Dänemark angekommen.«
»Ich fürchte, er hat schlimme Nachrichten über unsern
Kollegen Skoper erfahren«, flüsterte ein bartloser Herr
hinter der Hand seinem Tischnachbar zu, einem
greisenhaften Gelehrten mit wallender Löwenmähne, der –
wie er selbst, Präparator am naturwissenschaftlichen
Museum – die Brille auf die Stirn geschoben hatte und mit
tiefstem Interesse das Insekt in der Flasche betrachtete.
Es war ein seltsames Zimmer, in dem die Herren – sechs an
der Zahl und sämtlich Forscher auf dem Gebiet der
Schmetterlings- und Käferkunde – saßen.
O Truque do Grilo
Gustav Meyrink
— E então? — perguntaram os senhores como se falassem
por uma única boca, quando o professor Goclenius adentrou
o salão mais rápido do que de costume, e com uma feição
notadamente perturbada.
— E então, entregaram-lhe as cartas? O Sr. Johannes Stoper
já está a caminho da Europa? Como ele está? As coleções
estão vindo com ele? — gritaram todos desordenadamente.
— Apenas isto aqui — disse seriamente o professor,
estendeu um pacote de anotações sobre a mesa, junto com
um pequeno frasco, dentro do qual se encontrava um inseto
morto e esbranquiçado, do tamanho de um besouro. — O
próprio mensageiro chinês me revelou que ele chegou hoje
através do desvio pela Dinamarca.
— Temo que ele tenha notícias graves a respeito do nosso
colega Stoper — sussurrou um homem com rosto barbeado,
disfarçando com as mãos, ao seu vizinho de mesa, um velho
cientista com uma grande juba de leão flutuante, que – como
ele próprio, taxidermista no museu de ciências naturais –
apoiou os óculos na testa testa e escrutinizou o inseto de
dentro do frasco com profundo interesse.
O salão no qual os senhores se encontravam – em número
eram seis, e todos pesquisadores na matéria de borboletas e
besouros – era estranho.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Ein stumpfer Geruch von Kampfer und Sandelholz verstärkte
aufdringlich den Eindruck des fremdartig Totenhaften, das
von den Igelfischen, die an Schnüren von der Decke
herabhingen – glotzäugig, wie abgeschnittene Köpfe
gespenstischer Zuschauer – von den weiß und rot
grellbemalten Teufelsmasken wilder Indianerstämme, von
den Straußeneiern, den Hairachen, Narwalzähnen,
verrenkten Affenkörpern und all den tausenderlei grotesken
Formen einer fernen Zone ausging.
An den Wänden über den braunen wurmstichigen
Schränken, die etwas Klösterliches hatten, wie das morsche
Licht des Abendrots aus dem verwilderten Museumsgarten
herein durch das bauschige Gitterfenster spielte, hingen,
liebevoll in Gold gerahmt, gleich ehrwürdigen Ahnenbildern
verblaßte
Porträts
ins
Riesenhafte
vergrößerter
Baumwanzen und Maulwurfsgrillen.
Verbindlich den Arm gekrümmt, verlegenes Lächeln um die
Knopfnase und die gelben, kreisrunden Glasaugen, den
Zylinderhut des Herrn Präparators auf dem Haupte, beugte
sich in der Haltung eines vorsintflutlichen Dorfschulzen, der
sich zum erstenmal im Leben photographieren läßt, ein
Faultier aus der Ecke, umwipfelt von baumelnden
Schlangenhäuten.
157
Um aroma abafado de cânfora e sândalo exacerbava a
impressão de uma atmosfera peculiar e mortífera, em razão
dos peixes-espinho que caíam do teto pendurados por
barbantes – com olhos esbugalhados, como uma audiência de
cabeças decepadas -, das máscaras diabólicas brilhantes,
vermelhas e brancas, oriundas de linhagens insulares, dos
ovos de avestruz, das goelas de tubarão, dos dentes de baleia,
dos corpos contorcidos de macacos e de todas as formas
grotescas e vis surgidas de suas zonas remotas.
Das paredes atrás dos armários, marrons e repletos de
vermes, que tinham algo de mosteiral, como a fraca luz do
entardecer vinda do selvagem jardim do museu, que entrava
através das grades da janela em forma de bulbo, pendiam
quadros amavelmente emoldurados em dourado, os retratos
já desbotados de veneráveis percevejos e grilos
excessivamente ampliados.
Os braços espalhafatosos, o sorriso envergonhado, o nariz
pontudo, os olhos de vidro amarelos e redondos, o chapéu
cilíndrico de Doutor Taxidermista sobre a cabeça, curvou-se,
na atitude do prefeito de uma cidadezinha que se deixa
fotografar pela primeira vez, em um canto como um bicho
preguiça, brincando com as peles de cobra penduradas.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Den Schwanz in den dämmrigen Fernen des Ganges
geborgen und die edleren Teile laut Wunsch des
Unterrichtsministers im Frischlackiertwerden begriffen,
starrte der Stolz des Institutes, ein zwölf Meter langes
Krokodil,
mit
treulosem
Katzenblick
durch
die
Verbindungstür herein ins Gemach. –
Professor Goclenius hatte Platz genommen, die Schnur von
dem Briefbündel gelöst und die einleitenden Zeilen unter
Gemurmel durchflogen.
»Datiert ist es aus Bhutan – Südosttibet – und zwar vom 1.
Juli 1914 – also vier Wochen vor Kriegsausbruch; der Brief
war demnach länger als ein Jahr unterwegs«, setzte er dann
laut hinzu. »Kollege Johannes Skoper schreibt hier unter
anderem: ݆ber die reiche Ausbeute, die ich auf meiner
langen Reise aus den chinesischen Grenzgebieten durch
Assam in das bisher unerforschte Land Bhutan machte,
werde ich Ihnen nächstens ausführlich berichten; heute nur
kurz über die seltsamen Umstände, denen ich die
Entdeckung einer neuen weißen Grille‹«.
– Professor Goclenius deutete auf das Insekt in der Flasche –
»›verdanke, die von den Schamanen zu abergläubischen
Zwecken gebraucht und ”Phak“ genannt wird, ein Wort, das
zugleich ein Schimpfname ist für alles, was einem Europäer
oder weißrassigen Menschen ähnlich sieht.
158
Um crocodilo de doze metros, a cauda recolhida no escuro e
distante corredor, as partes mais nobres recém-envernizadas
em razão do expressivo desejo do ministro da educação,
contemplava a arrogância do instituto com seu olhar desleal
de felino através da porta de ligação da câmara.
O Professor Goclenius tomou lugar, desamarrou o barbante
do pacote de anotações e leu as primeiras linhas, entre o
murmurar dos presentes:
— Datado é de Butão, região sul do Tibete, e do dia primeiro
de julho de 1914, isto é, quatro semanas antes da eclosão da
guerra: a carta ficou por mais de um ano em trânsito — disse
o professor em alto som. — O colega Johannes Stoper escreve
aqui, entre outras coisas: “Irei relatar na sequência a respeito
da rica exploração que realizei em minha longa viagem às
fronteiras chinesas, de Assam às ainda inexploradas terras de
Butão; a respeito das estranhas circunstâncias da pequena
descoberta, feita hoje, de um grilo branco”.
— O professor Goclenius apontou para o inseto no frasco. —
“Agradeço aos bhat, chamados deste modo pelos xamãs, que
os utilizam para fins supersticiosos, e, simultaneamente,
palavra que representa um insulto para tudo o que está
nivelado aos europeus e homens da raça branca.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
159
Also: Eines Morgens erfuhr ich von lamaistischen Pilgern, die
Pois então: soube certa manhã, por peregrinos budistas que
nach
meines
seguiam para Lhasa, a pouca distância do acampamento no
Lagerplatzes ein sehr hoher, sogenannter Dugpa – einer
qual me encontrava, que existia por ali um grande sacerdote
jener in ganz Tibet gefürchteten Teufelspriester, die, an ihren
chamado Dugpa – um pastor diabólico temido em todo o
scharlachroten
direkte
Tibete, reconhecível pela sua capa vermelho-escarlate, do
Abkömmlinge des Dämons der Fliegenschwämme zu sein.
qual dizem ser descendente direto dos enxames das moscas
Jedenfalls sollen die Dugpas der uralten tibetischen Religion
diabólicas. De qualquer forma, os dugpas pertenceriam à
der Bhons angehören, von der wir so gut wie nichts wissen,
religião milenar dos böns, a respeito da qual nós quase nada
und Nachkommen einer fremdartigen Rasse sein, deren
sabemos; e descendem de uma estranha raça, cuja origem
Ursprung sich im Dunkel der Zeit verliert. Jener Dugpa,
perdeu-se na escuridão dos tempos. Esses dugpas, contavam-
erzählten
voll
me muito supersticiosamente os peregrinos, enquanto
abergläubischer Scheu ihre kleinen Gebetsmühlen, sei ein
conservavam-se acanhados em seu pequeno circulo de reza,
Samtscheh Mitschebat, das ist ein Wesen, das man nicht
obedeciam a um mestre, o Samtscheh Mitschebat, um ser que
mehr mit dem Namen Mensch bezeichnen dürfe, das ”binden
não pode mais ser designado homem, que conseguia, hábil e
und lösen“ könne, dem, kurz und gut, infolge seiner
agilmente, como resultado de suas habilidades, ‘atar e
Fähigkeit, Raum und Zeit als Wahnvorstellungen zu
desatar’ o espaço e tempo, vendo através das ilusões dos
durchschauen, nichts unmöglich sei auf Erden zu vollbringen.
outros, e para ele nada era impossível de ser realizado em
Lhasa
zogen,
mir
es befinde
Kappen
die
kenntlich,
Pilger
und
sich
unweit
behaupten,
drehten
dabei
terra.
_________________________________________________________________________________
1 Os baht são seguidores da religião bön, seita aborígine do Tibete que
coexiste com o budismo e se opõe a esta tradição religiosa em seus
preceitos e rituais. Também são chamados de dugpas ou “capasvermelha”.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Es gäbe, sagte man mir, zwei Wege, um jene Stufen zu
erklimmen, die über das Menschentum hinausführen: den
einen, den des ”Lichtes“ – der Einswerdung mit Buddha –
und einen zweiten, entgegengesetzen: den ”Pfad der linken
Hand“, zu dem nur ein geborener Dugpa die Eingangspforte
wüßte – ein geistiger Weg voll Grauen und Entsetzlichkeit.
Solche ”geborene“ Dugpas kämen – wenn auch sehr
vereinzelt – unter allen Himmelsstrichen vor und wären
merkwürdigerweise fast immer die Kinder besonders
frommer Leute. ”Es ist“, sagte der Pilger, der es mir
erzählte,”wie wenn die Hand des Herrn der Finsternis ein
giftiges Reis aufgepfropft auf den Baum der Heiligkeit“, und
man wisse nur ein Mittel, an einem Kinde zu erkennen, ob es
geistig zum Bunde der Dugpas gehört oder nicht, das ist –
wenn der Haarwirbel auf dem Scheitel von links nach rechts,
statt umgekehrt, läuft.
Ich sprach sofort – rein aus Neugierde – den Wunsch aus, den
erwähnten hohen Dugpa zu Gesicht zu bekommen, aber mein
Karawanenführer, selber ein Osttibeter, widersetzte sich mit
Hartnäckigkeit. Das alles sei dummes Zeug, Dugpas gäbe es
im Bhutangebiet überhaupt nicht, schrie er in einem fort,
auch würde ein Dugpa – schon gar ein Samtscheh Mitschebat
– nie und nimmer einem Weißen seine Künste zeigen.
160
Haveria, disseram-me, dois caminhos para ascender os
degraus e transcender a humanidade: o das ‘luzes’, o da
unificação com Buda; ou o segundo, seu oposto: o caminho
da ‘mão esquerda’, do qual apenas o nascido dugpa saberia o
portão de entrada, um caminho fantasmagórico e cinza,
repleto de crueldade. Estes já ‘nascidos’ dugpas - mesmo que
em escasso número – proviriam de pontos definidos no céu
e, quase sempre, surgiriam estranhamente nas famílias
especialmente simples.
— É como — disse o peregrino que me contava — se a mão
do senhor das trevas pingasse um veneno na Árvore Sagrada.
E só havia um meio de reconhecer se o espírito de uma
criança estava ligado aos dugpas ou não, que era: se o vértice
do redemoinho dos seus cabelos ia da esquerda para a
direita, e não ao contrário.
Imediatamente, eu revelei – por pura curiosidade - o desejo
de estar face a face com o mencionado e grande dugpa, mas o
líder de minha caravana, ele próprio um tibetano do oeste,
opôs-se com tenacidade. Tudo aquilo seria uma grande
besteira, não existiam dugpas no território do Butão coisa
nenhuma, exclamou ele sem interrupção, que um dugpa não
iria revelar a um branco as suas artes e muito menos o
Samtscheh Mitschebat.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Der allzu eifrige Widerstand des Mannes wurde mir immer
verdächtiger, und nach stundenlangem Kreuz- und
Querfragen brachte ich denn auch aus ihm heraus, daß er
selbst Anhänger der Bhonreligion sei und ganz genau wisse –
aus der rötlichen Färbung der Erddünste, wollte er mir
vorlügen – daß ein ”eingeweihter“ Dugpa in der Nähe weile.
”Aber er wird dir niemals seine Künste zeigen“, schloß er
jedesmal seine Rede.
”Warum denn nicht?“ fragte ich schließlich.
”Weil er die – Verantwortung nicht übernimmt.“
”Was für eine Verantwortung?“ forschte ich weiter.
”Er würde infolge der Störung, die er damit im Reiche der
Ursachen anrichtet, von neuem in den Strudel der
Wiederverkörperung verstrickt werden, wenn nicht etwas
noch viel Schlimmeres.“
Es interessierte mich, Näheres über die geheimnisvolle
Bhonreligion zu erfahren, und ich fragte daher: ”Hat ein
Mensch nach deinem Glauben eine Seele?“
”Ja und Nein.“
”Wieso?“
Als Antwort nahm der Tibeter einen Grashalm und machte
einen Knoten hinein: ”Hat das Gras jetzt einen Knoten?“
”Ja.“
161
A excessiva ansiedade e oposição do homem me pareciam
cada vez mais suspeitas e, após horas de perguntas cruzadas
e indiretas, consegui lhe arrancar que ele mesmo pertencia à
religião dos bön e que, seguramente, saberia – devido à
coloração avermelhada da terra fina – que um ‘informante’
dos dugpas estaria por perto.
— Mas ele nunca lhe revelará suas artes — concluindo
sempre desta maneira.
— Mas por que não? — perguntei finalmente.
— Porque ele não assume... A responsabilidade.
— Que responsabilidade? — investiguei a seguir.
— Pela desordem por ele causada, ele seria enredado em um
perene turbilhão e não estaria mais sujeito à encarnação, ou
coisa pior.
Interessava-me saber mais sobre a misteriosa religião dos
bön e, por isto, perguntei:
— Segundo sua crença, o homem possui alma?
— Sim e não.
— Como assim?
Como resposta, o tibetano segurou um punhado de grama e
laçou um nó:
— A grama agora forma um nó?
— Sim.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Er löste den Knoten wieder auf. ”Und jetzt?“
”Jetzt hat es keinen mehr.“
”Genauso hat der Mensch eine Seele und hat keine“, sagte er
einfach.
Ich versuchte es auf eine andere Weise, mir ein Bild über
seine Ansicht zu machen: ”Gut, nimm an, du wärest auf dem
schrecklichen, kaum handbreiten Gebirgspaß, den wir
neulich überschritten, in die Tiefe gestürzt – hätte deine
Seele weitergelebt oder nicht?“
”Ich wäre nicht abgestürzt!“
Ich wollte ihm anders beikommen, deutete auf meinen
Revolver: ”Wenn ich dich jetzt totschieße, lebst du dann
weiter oder nicht?“
”Du kannst mich nicht erschießen.“
”Doch!“
”Also versuch's.“
Ich werde mich hüten, dachte ich bei mir, das wäre eine
schöne Geschichte, ohne Karawanenführer in diesem
grenzenlosen Hochland umherzuirren. Er schien meine
Gedanken erraten zu haben und lächelte höhnisch. Es war
zum Verzweifeln. Ich schwieg eine Weile.
162
Ele desfez o nó:
— E agora?
—Agora não tem mais nada.
— Do mesmo modo, a pessoa tem uma alma e também não
tem — disse ele simplesmente.
Eu tentei, de outra maneira, compor um retrato de sua
representação.
— Então, se assumíssemos que você, lá do terrível e alto
penhasco que acabamos de atravessar, tivesse despencado
nas profundezas... Sua alma teria continuado a viver ou não?
— Eu não teria despencado!
Queria atingi-lo de outro modo, então, apontei-lhe meu
revolver:
— Se eu lhe desse agora um tiro mortal. Você continuaria a
viver ou não?
—Você não pode atirar em mim.
— Posso, sim!
— Então tente!
Nem pensar! Pensei comigo mesmo. Seria uma bela história,
poder cavalgar por aí, sem um guia de caravana, nestes
planaltos sem fronteiras. Ele parecia adivinhar meus
pensamentos e sorriu com desdém. Era desesperador. Eu me
calei por um momento:
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
”Du kannst eben nicht ’wollen‘“, fing er plötzlich wieder an.
”Hinter deinem Willen stehen Wünsche, solche, die du
kennst, und solche, die du nicht kennst, und beide sind
stärker als du.“
”Was ist also die Seele nach deinem Glauben?“ fragte ich
ärgerlich; ”habe zum Beispiel ich eine Seele?“
”Ja.“
”Und wenn ich sterbe, lebt meine Seele dann weiter?“
”Nein.“
”Aber deine, meinst du, lebt weiter, wenn du stirbst?“
”Ja. Weil ich einen – Namen habe.“
”Wieso einen Namen? Ich habe doch auch einen Namen!“
”Ja, aber du kennst deinen wirklichen Namen nicht, besitzest
ihn also nicht. Das, was du für deinen Namen hältst, ist nur
ein leeres Wort, das deine Eltern erfunden haben. Wenn du
schläfst, vergißt du ihn, ich vergesse meinen Namen nicht,
wenn ich schlafe.“
”Aber, wenn du tot bist, weißt du ihn doch auch nicht mehr!“
wandte ich ein.
”Nein. Aber der Meister kennt ihn und vergißt ihn nicht, und
wenn er ihn ruft, so stehe ich wieder auf; aber nur ich und
kein anderer, denn nur ich habe meinen Namen. Kein
anderer hat ihn. Das, was du deinen Namen nennst, das
haben viele andere mit dir gemeinsam – so wie die Hunde“,
murmelte er verächtlich vor sich hin. Ich verstand die Worte
zwar, ließ es mir aber nicht anmerken.
163
— Simplesmente você não pode querer — recomeçou —, por
trás de seu querer estão desejos que você conhece, e outros
que você desconhece, e ambos são mais fortes que você.
— O que é a alma, então, segundo a sua crença? — perguntei
irritado — Eu, por exemplo, eu tenho uma alma?
— Sim.
— E quando eu morrer, minha alma continuará vivendo?
— Não.
— Mas a sua, você quer dizer, a sua viverá, quando você
morrer?
— Sim. Porque eu tenho... Um nome.
— Como assim um nome? Eu também tenho um nome!
— Tem, mas você não conhece o seu verdadeiro nome,
porque este você não possui. O que você considera um nome
é apenas uma palavra vazia, inventada pelos seus pais.
Quando você está dormindo, você o esquece. Eu não esqueço
meu nome, enquanto durmo.
— Mas quando você estiver morto, não o saberá mais! –
retruquei.
— Não. Mas meu mestre o conhece e não se esquece dele,
e quando ele o chamar, então voltarei a me levantar; apenas
eu e ninguém mais, porque apenas eu possuo o meu nome.
Nenhum outro o possui. Isto que você chama de seu nome,
muitos outros têm em comum com você... Como cachorros —
murmurou para si mesmo, com desprezo. Contudo,
compreendi suas palavras, e não deixei que ele percebesse.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
”Was verstehst du unter dem ’Meister‘?“ warf ich scheinbar
unbefangen hin.
”Den Samtscheh Mitschebat.“
”Den, der hier in der Nähe ist?“
”Ja, aber nur sein Spiegelbild ist in der Nähe; der, der er in
Wirklichkeit ist, ist überall. Er kann auch nirgends sein, wenn
er will.“
”Er kann sich demnach unsichtbar machen?“ Wider Willen
mußte ich lächeln. ”Du meinst: einmal ists er innerhalb des
Weltenraumes und dann außerhalb; einmal ist er da – und
dann ist er wieder nicht da?“
”Ein Name ist doch auch nur da, wenn man ihn ausspricht,
und nicht mehr da, wenn man ihn nicht ausspricht“, hielt mir
der Tibeter vor.
”Und kannst zum Beispiel du auch ein ’Meister‘ werden?“
”Ja.“
”Dann wird es also zwei Meister geben, was?“
Ich triumphierte innerlich, denn offen gestanden verdroß
mich der geistige Hochmut des Kerls; jetzt hatte ich ihn in
der Falle, glaubte ich (meine nächste Frage hätte gelautet:
wenn der eine Meister die Sonne scheinen lassen will und
der andere regnen, welcher behält recht?); um so mehr
verblüffte mich die sonderbare Antwort, die er mir gab:
164
— O que você entende, quando diz mestre? – lancei sem que
soasse suspeito.
— O Samtscheh Mitschebat.
— Aquele que está aqui por perto?
— Sim, mas só o seu reflexo está por perto. Aquele que é real
está por toda a parte. Pode também não ser, se ele quiser.
— Então, ele consegue ficar invisível? — Contra minha
vontade, precisei sorrir. — Você quer dizer que ele pode
existir, simultaneamente, dentro do espaço-tempo do mundo
e também fora dele; isto é: ora ele pode estar aqui, ora não
mais?
— Um nome só está aqui, quando é pronunciado e não está
mais, quando não pronunciado — censurou o tibetano.
— E você poderia, por exemplo, tornar-se um mestre?
— Sim.
— Então, iriam existir dois mestres, não é?
Internamente sentia que eu triunfava, e era clara a minha
irritação pela arrogância espiritual daquele homem; agora eu
o tinha derrubado, pensei. (Minha próxima pergunta seria:
Qual dos mestres teria razão, se um deles desejasse fazer o sol
brilhar, e o outro desejasse fazer chover?); de modo que
perturbou-me ainda mais a estranha resposta que ele me deu:
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
”Wenn ich ein Meister sein werde, dann bin ich doch der
Samtscheh Mitschebat. Oder glaubst du, es könnte zwei
Dinge geben, die einander vollkommen gleich sind, ohne daß
sie ein und dasselbe wären?“
”Immerhin seid ihr dann zwei und nicht einer; wenn ich
euch begegnete, wäret ihr zwei Menschen und nicht einer“,
widersprach ich.
Der Tibeter bückte sich, suchte unter den in Menge
umherliegenden
Kalkspatkristallen
einen
besonders
durchsichtigen aus und sagte spöttisch: ”Halte das ans Auge
und schau den Baum dort an; du siehst ihn nunmehr doppelt,
nicht wahr? Aber sind es deshalb – zwei Bäume?“
Ich wußte ihm nicht gleich etwas zu entgegnen, auch wäre
es mir schwer gefallen in mongolischer Sprache, deren wir
uns zur gegenseitigen Verständigung bedienen mußten, ein
so verwickeltes Thema logisch zu erörtern: ich ließ ihm
daher seinen Triumph. Innerlich konnte ich aber nicht genug
staunen über die geistige Gelenkigkeit dieses Halbwilden mit
seinen
schiefen
Kalmückenaugen
und
dem
schmutzstarrenden Schafspelz. Es ist etwas Seltsames um
diese Hochlandasiaten, äußerlich sehen sie aus wie Tiere,
aber rührt man an ihre Seele, kommt der Philosoph zum
Vorschein.
Ich griff wieder auf den Ausgangspunkt unseres
Gespräches zurück: ”Du glaubst also, der Dugpa würde mir
seine Künste nicht zeigen, weil er die – Verantwortung
ablehnt?“
165
— Se fosse mestre, eu seria o Samtscheh Mitschebat. Ou você
pensa que poderiam existir duas coisas, inteiramente iguais
em essência, sem que fossem a mesma coisa?
— Mas de qualquer modo, vocês são dois, não apenas um; se
os encontrasse por acaso, vocês seriam duas pessoas, não
uma — repliquei.
O tibetano curvou-se para o chão, onde havia vários cristais
de calcita, escolheu um que fosse especialmente
transparente, e disse com desdém:
— Segure isto próximo aos seus olhos e mire aquela árvore
ali; doravante, você a vê em dobro, não é mesmo? Mas
seriam, então, por esta razão, duas árvores?
Eu não sabia como contradizê-lo, era também difícil discutir
um tema tão complicado em mongol, língua da qual ambos
nos servíamos para atingir uma compreensão mútua: deixeio, pois, triunfar. No entanto, internamente ainda não me
deixara convencer pela parca espiritualidade daquele
selvagem, com seus profundos olhos calmucos² e capa suja.
Havia algo muito estranho nesse povo proveniente dos
planaltos asiáticos: por fora, assemelham-se a animais, mas,
no momento em que sua alma é tocada, o filósofo vem à tona.
Busquei retomar o ponto de partida de nossa conversa:
— Você acredita, então, que o dugpa não me mostraria suas
artes, porque ele... se recusa a assumir a responsabilidade?
_________________________________________________________________________________
2 Calmucos são um povo nômade, de origem mongol e adeptos à
religião budista, que estabeleceram-se nas antigas terras Nogais,
conhecida hoje como a região da Calmúquia.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
166
”Nein, gewiß nicht.“
”Wenn ich aber die Verantwortung übernähme?!“
Das erstemal, seit ich den Tibeter kannte, geriet er außer
Fassung. Eine Unruhe, die er kaum bemeistern konnte, lief
über sein Gesicht. Der Ausdruck wilder, mir unerklärlicher
Grausamkeit wechselte mit dem eines tückischen
Frohlockens. Wir haben in den vielen Monaten unseres
Beisammenseins oft wochenlang Todesgefahren aller Art ins
Auge geblickt, haben schauerliche Abgründe überschritten
auf schwankenden, nur fußbreiten Bambusbrücken, daß mir
vor Entsetzen das Herz stillstand, haben Wüsten durchquert
und sind fast verdurstet, aber niemals verlor er auch nur eine
Minute sein inneres Gleichgewicht. Und jetzt? Was konnte
die Ursache sein, daß er mit einemmal so außer sich geriet?
Ich sah ihm an, wie in seinem Hirn die Gedanken sich jagten.
”Führe mich zu dem Dugpa, ich werde dich reichlich
belohnen“, redete ich ihm eifrig zu.
”Ich will es mir überlegen“, antwortete er endlich.
— Não, é claro que não mostraria.
— Mas e se eu assumisse a responsabilidade?
Pela primeira vez, desde que conheci o tibetano, vi-o perder
o comedimento. Uma inquietação que ele não conseguia
dominar revelou-se em sua face. Uma impressão selvagem,
uma inexplicável crueldade confundia-se com uma alegria
traiçoeira. Ao longo dos muitos meses que passamos na
companhia um do outro, muitas vezes enfrentamos, por
semanas a fio, vários perigos mortais de todo o tipo.
Cruzamos terríveis abismos instáveis sobre meras pontes de
bambu, da largura de nossos pés, e o meu coração até parava
de bater, tão grande era meu terror, percorremos desertos e
quase morremos de sede, mas nunca, nem por um minuto,
ele perdeu seu equilíbrio interior. E agora? Qual poderia ser
a razão que o fazia sair de si desta vez? Eu observava como
na sua mente, os pensamentos se debatiam e perturbavam
sua mente.
— Leve-me ao dugpa e você será recompensado
generosamente. — disse para ele, fervoroso.
— Quero pensar a respeito. – Respondeu finalmente.
Es war noch tiefe Nacht, da weckte er mich in meinem Zelt.
Er sei bereit, sagte er. Er hatte zwei unserer zottigen
Mongolenpferde, die nicht viel höher sind als große Hunde,
gesattelt, und wir ritten hinein in die Finsternis.
Já era madrugada, quando ele me acordou em minha
tenda. Estava pronto, disse. Já selara dois de nossos vilosos
cavalos mongóis, que não eram muito maiores do que
grandes cães, e nós cavalgamos escuridão adentro.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Die Leute meiner Karawane lagen um die verglimmenden
Reisigfeuer herum in festem Schlaf.
Stunden vergingen, und wir wechselten kein Wort; der
eigentümliche Moschusgeruch, den die tibetischen Steppen
in Julinächten auszuströmen pflegen, und das eintönige
Zischen des Ginsters, wie die Beine unserer Pferde
hindurchfegten, betäubte mich fast, so daß ich, um wach zu
bleiben, unverwandt emporblicken mußte zu den Sternen,
die hier in diesem wilden Hochland etwas Loderndes,
Flackerndes haben wie brennende Papierfetzen. Ein
erregender Einfluß geht von ihnen aus, der das Herz mit
Unruhe erfüllt.
Als die Morgendämmerung über die Berggipfel kroch,
bemerkte ich, daß die Augen des Tibeters weit offen standen
und, ohne zu zwinkern, immerwährend auf einen Punkt am
Himmel starrten. – Ich sah, daß er geistesabwesend war.
Ob er denn den Aufenthalt des Dugpas so genau kenne, daß
er nicht auf den Weg zu achten brauche, frage ich ihn ein
paarmal, ohne eine Antwort zu bekommen.
”Er zieht mich, wie der Magnetstein das Eisen anzieht“, lallte
er schließlich mit schwerer Zunge wie aus dem Schlaf.
Nicht einmal mittags machten wir Rast, immer wieder trieb
er stumm sein Pferd zu neuer Eile an. Ich mußte im Sattel
meine paar Stücke gedörrtes Ziegenfleisch verzehren.
167
As pessoas de minha caravana permaneceram em torno da já
extinta fogueira, em sono profundo. Horas se passaram e nós
não trocamos palavra sequer; o cheiro peculiar do almíscar,
que domina as estepes tibetanas nas noites de julho, e a
monotonia do sibilo das genistas³, com o roçar das patas dos
nossos cavalos, me entorpeceram tanto que eu, para me
manter desperto, fui obrigado a olhar fixamente as estrelas
que, vistas destes planaltos selvagens, tinham algo de
fulgurante, vívido, como pedaços de papel incendiados. Uma
sensação crescente brotou dentro de mim, a ponto de encher
meu coração de inquietude.
Quando a aurora rompeu sobre os topos das montanhas,
percebi que os olhos do tibetano estavam muito abertos e,
sem piscar, miravam constantemente um ponto do céu. –
Compreendi que sua alma não estava presente.
Perguntei algumas vezes se ele conhecia a morada do dugpa,
sem precisar atentar o caminho, mas não obtive qualquer
resposta.
— Ele me puxa como um imã puxa o ferro — balbuciou,
finalmente, sua língua parecia pesada, como se ele estivesse
dormindo.
No meio do dia não descansamos uma vez sequer, ele
continuamente forçava seu cavalo a manter a velocidade. Eu
precisei comer sentado na sela meus poucos pedaços de
carne de cabra defumada.
_____________________________________________________________
3 Genista é um gênero botânico de noventa espécies de arbustos da
família das Fabaceae. Esses arbustos toleram os solos pobres e
necessitam poucos cuidados para cultivo.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Gegen Abend hielten wir, um den Fuß eines kahlen Hügels
biegend, in der Nähe eines jener fantastischen Zelte, wie man
sie im Bhutan zuweilen zu Gesicht bekommt. Sie sind
schwarz, oben spitz, unten sechseckig mit aufwärts
gebauchten Rändern, und stehen auf hohen Stelzen, so daß
sie einer riesigen Spinne gleichen, die mit dem Bauch die
Erde berührt.
Ich hatte erwartet, einen schmutzigen Schamanen mit
verfilztem Haar und Bart zu treffen, eines der wahnsinnigen
oder epileptischen Geschöpfe, die unter den Mongolen und
Tungusen häufig sind, die sich mit dem Absud von
Fliegenschwämmen betäuben und dann Geister zu sehen
glauben oder unverständliche Prophezeiungen ausstoßen;
statt dessen stand da – unbeweglich – ein Mann vor mir, gut
sechs Fuß hoch, auffallend schmal im Wuchs, bartlos, das
Gesicht olivgrünlich schimmernd, von einer Farbe, wie ich sie
noch nie bei einem Lebenden gesehen, die Augen schräg und
unnatürlich weit auseinander. Der Typus einer mir
vollkommen fremden Menschenrasse.
Seine Lippen, gleich der Gesichtshaut faltenlos wie aus
Porzellan, waren scharfrot, messerdünn und so stark
geschwungen – besonders an den weit empor gezogenenen
Mundwinkeln – wie unter einem erbarmungslosen
erstarrten Lächeln, daß sie aussahen, als seien sie aufgemalt.
168
Ao final da tarde paramos ao pé de uma colina nua e arcada,
próximo a umas tendas fantásticas, frequentemente
encontradas no Butão. Elas eram negras e pontiagudas na
parte de cima, tinham forma de hexângulo na parte de baixo,
bordas ascendentes e salientes, e estavam sobre altas
palafitas, que faziam com que se assemelhassem a aranhas
gigantes, cujo ventre encostava na terra.
Esperava encontrar um xamã sujo, de cabelos emaranhados e
barba, uma dessas figuras desvairadas e epilépticas comuns
entre os mongóis e os tungus, que se ocupam com o absurdo
de voar, anestesiam os crentes, creem ter visto fantasmas e
proferem profecias ininteligíveis: ao invés disso, estava
diante de mim – imóvel – um homem - uns bons seis pés de
altura -, impressionantemente alto e magro, sem barba, a
face verde-oliva brilhante, de uma cor que eu nunca tinha
visto antes em toda a minha vida, os olhos caídos e separados
de uma forma pouco natural. Na minha concepção, um tipo
totalmente estranho à raça humana.
Seus lábios, assim como a pele lisa de seu rosto, eram como
porcelana, fortemente avermelhados, finos como faca e
muito oscilantes – especialmente nos cantos, desenhados
para cima, compunham um sorriso impiedoso e atônito.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Ich konnte den Blick nicht von dem Dugpa wenden – lange
nicht – und wenn ich jetzt daran zurückdenke, möchte ich
fast sagen: ich kam mir vor wie ein Kind, dem der Atem
stehenbleibt vor Entsetzen beim Anblick einer plötzlich aus
dem Dunkel auftauchenden grauenhaften Maske.
Auf dem Kopf trug der Dugpa eine glattanliegende
scharlachrote Kappe ohne Rand; im übrigen bis zu den
Knöcheln einen kostbaren Pelz aus orangegelb gefärbten
Zobel.
Er und mein Führer sprachen kein Wort mitsammen, ich
nehme jedoch an, daß sie sich durch heimliche Gesten
verständigt haben, denn ohne zu fragen, was ich von ihm
wolle, sagte der Dugpa plötzlich und unvermittelt, er sei
willens mir zu zeigen, was immer ich wünsche, doch müsse
ich ausdrücklich alle Verantwortung, auch wenn ich sie nicht
kannte, übernehmen.
Ich erklärte mich – natürlich – sofort bereit.
Ich sollte zum Zeichen dafür mit der linken Hand die Erde
berühren, verlangte er.
Ich tat es.
Schweigend ging er sodann eine Strecke voraus, und wir
folgten ihm, bis er uns niedersitzen hieß.
Es war eine tischähnliche Bodenerhebung, an deren Rand
wir uns lagerten.
Ob ich ein weißes Tuch bei mir trüge?
169
Eu não conseguia desviar os olhos do dugpa –por muito
tempo – e, se agora torno a pensar nisso, gostaria de dizer de
uma vez: sinto-me como se fosse uma criança que prende a
respiração de pavor ao ver uma máscara surgir
repentinamente da escuridão.
Na cabeça, o dugpa vestia uma capa vermelho-escarlate, lisa
e sem bordas, no corpo até os tornozelos, uma custosa peliça
de zibelina laranja-amarelada. Ele e meu guia não trocaram
uma palavra sequer, eu presumo, no entanto, que se
entendiam através de gestos secretos, pois, sem perguntar o
que eu queria dele, o dugpa, de repente e sem intermédios,
declarou-se de acordo em mostrar-me o que eu desejasse,
mas eu deveria assumir e afirmar toda a responsabilidade,
mesmo desconhecendo-a.
Declarei-me - naturalmente – preparado de imediato. Para
demonstrá-lo, eu deveria tocar a terra com minha mão
esquerda, exigiu ele.
Eu o fiz.
Calado, ele andou um pouco à frente e nós o seguimos até
que ele nos pedisse para nos abaixarmos.
Nós nos posicionamos nas bordas de um levantamento do
chão, similar a uma mesa.
Se eu levava comigo um lenço branco?
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Ich suchte vergeblich in meinen Taschen, fand aber nur im
Rockfutter eine alte, verblaßte, zusammenlegbare Karte von
Europa (ich hatte sie offenbar die ganze Zeit meiner
Asienreise bei mir getragen),
breitete sie zwischen uns aus und erklärte dem Dugpa, die
Zeichnung sei ein Bild meiner Heimat.
Er wechselte einen raschen Blick mit meinem Führer, und
wieder sah ich auf dem Gesicht des Tibeters jenen Ausdruck
haßerfüllter Bosheit aufleuchten, der mir schon am Abend
vorher aufgefallen war.
Ob ich den Grillenzauber zu sehen wünschte?
Ich nickte und war mir im Augenblick klar, was kommen
würde: ein bekannter Trick – das Hervorlocken von Insekten
aus der Erde durch Pfeifen oder dergleichen.
Richtig, ich hatte mich nicht getäuscht; der Dugpa ließ ein
leises, metallenes Zirpen hören (mit einem kleinen, silbernen
Glöckchen, das sie versteckt bei sich tragen, machen sie das),
und sofort kamen aus ihren Schlupfwinkeln im Boden eine
Menge Grillen und krochen auf die helle Landkarte.
Immer mehr und mehr.
Unzählige.
Ich hatte mich schon geärgert, wegen eines läppischen
Kunststückes, das ich bereits in China oft genug gesehen
hatte, einen so mühvollen Ritt unternommen zu haben, aber
was sich mir jetzt darbot, entschädigte mich reichlich: die
Grillen waren nicht nur eine wissenschaftlich ganz neue
Spezies – daher an und für sich schon interessant genug –, sie
benahmen sich auch höchst absonderlich.
170
Eu procurei inutilmente nos meus bolsos, mas encontrei no
forro apenas um mapa velho e dobrável da Europa,
(carregava-o devidamente comigo por toda a viagem na
Ásia).
Desdobrei-o entre nós e expliquei ao dugpa que o desenho
mostrava o retrato de minha terra natal.
Troquei um rápido olhar com meu guia e, novamente, vi na
face do tibetano uma expressão de odiosa maldade, que já
havia notado na noite anterior.
Se eu gostaria de ver a magia do grilo?
Concordei com a cabeça e, neste instante, tornou-se claro o
que estava por vir: um truque conhecido – a provocação de
insetos da terra através de apitos ou algo similar.
Correto, eu não estava enganado; o dugpa deixou ouvir um
gorjeio baixinho e metálico (produzido por um sino pequeno
e prata comum, que eles carregam consigo) e imediatamente
surgiram de seus esconderijos no chão vários grilos,
arrastando-se sobre o mapa.
Sempre mais e mais.
Incontáveis.
Já estava irritado, em decorrência desta obra de arte boba,
que já havia presenciado vezes suficientes na China, e que me
custara uma cavalgada tão laboriosa, mas o que se revelaria
agora, compensou-a ricamente: os grilos não eram apenas
uma espécie cientificamente nova -, o que já os tornava
interessantes o suficiente -, como comportavam-se de modo
muito estranho.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Kaum hatten sie nämlich die Landkarte betreten, liefen sie
zuerst planlos im Kreise herum, dann bildeten sie Gruppen,
die einander mißtrauisch musterten.
Plötzlich fiel auf die Mitte der Karte ein regenbogenfarbener
Lichtfleck (er stammte von einem Glasprisma, das der Dugpa
gegen die Sonne hielt, wie ich mich rasch überzeugte), und
ein paar Sekunden später war aus den bisher friedlichen
Grillen ein Klumpen sich auf die schauderhafteste Weise
gegenseitig zerfleischender Insektenleiber geworden. Der
Anblick war zu ekelhaft, als daß ich ihn schildern möchte.
Das Schwirren der tausend und abertausend Flügel gab einen
hohen, singenden Ton, der mir durch Mark und Bein ging, ein
Schrillen, gemischt aus so höllischem Haß und grauenvoller
Todesqual, daß ich es nie werde vergessen können.
Ein dicker, grünlicher Saft quoll unter dem Haufen hervor.
Ich befahl dem Dugpa augenblicklich innezuhalten – er hatte
das Prisma bereits eingesteckt und zuckte nur die Achseln.
Vergebens bemühte ich mich, die Grillen mit einem Stock
auseinander zu treiben: ihre wahnwitzige Mordlust kannte
keine Grenzen mehr.
Immer neue Scharen liefen herbei und türmten den
zappelnden, scheußlichen Klumpen höher und höher –
mannshoch.
Auf weite Strecken war der Erdboden lebendig von
wimmelnden, tollgewordenen Insekten. Eine weißliche,
aneinandergequetschte Masse, die sich der Mitte zudrängte,
nur von dem einen Gedanken beseelt: morden, morden,
morden.
171
Mal tinham pisado no mapa, corriam anarquicamente e em
círculos, depois formavam grupos, que compunham, entre si,
um mosaico suspeito.
De repente, no centro do mapa surgiu um foco de luz da cor
do arco-íris (oriundo de um prisma de vidro, que o dugpa
segurava contra o sol, surpreendendo-me violentamente) e,
poucos segundos depois, os, até então pacíficos grilos,
amontoavam-se de modo terrível no mapa, tornando-se
corpos de insetos reciprocamente mutilados. A visão era
mais nojenta do que eu jamais gostaria de descrever. O
zumbido das milhões e milhares de asas resultava num tom
alto, cantado, que me percorria pela medula até as pernas,
um guincho, composto da mistura do ódio diabólico e da
morte agonizante, que nunca mais poderei esquecer.
Um suco denso e esverdeado escorria debaixo do monte.
Eu pedi ao dugpa que parasse por um instante, ele já havia
recolhido o prisma e apenas encolheu os ombros.
Inutilmente, eu me esforcei em afastar os grilos com um
pedaço de madeira: sua desvairada vontade de matar já não
conhecia limites.
Cada vez mais novos enxames corriam e escalavam
nervosamente a massa contorcida, hedionda, mais e mais
alta – da altura de um homem.
Em uma grande área em meu entorno, o chão tornou-se vivo,
repleto de insetos enlouquecidos. Uma massa esbranquiçada,
esmagada, que pressionava seu centro, possuída por um
único pensamento: matar, matar, matar.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Einige der Grillen, die halbverstümmelt von dem Haufen
herabfielen und nicht mehr hinaufkriechen konnten,
zerfetzten sich selbst mit ihren Zangen.
Der schwirrende Ton wurde bisweilen so laut und grausig
schrill, daß ich mir die Ohren zuhielt, weil ich es nicht mehr
länger glaubte ertragen zu können.
Gott sei Dank, endlich wurden der Tiere weniger und
weniger, die hervorkriechenden Scharen schienen dünner zu
werden und hörten schließlich ganz auf.
”Was macht er denn noch immer?“ fragte ich den Tibeter, als
ich sah, daß der Dugpa keine Miene machte, aufzubrechen,
vielmehr angestrengt seine Gedanken auf irgend etwas zu
konzentrieren schien. Er hatte die Oberlippe hochgezogen, so
daß ich seine spitzgefeilten Zähne deutlich sehen konnte. Sie
waren pechschwarz, vermutlich von dem landesüblichen
Betelkauen.
”Er löst und bindet“, hörte ich den Tibeter antworten.
Trotzdem ich mir beständig vorsagte, daß es ja nur Insekten
gewesen waren, die hier den Tod gefunden hatten, fühlte ich
mich doch aufs äußerste angegriffen und einer Ohnmacht
nahe, und die Stimme klang, als käme sie aus weiter Ferne
her:”Er löst und bindet.“
172
Alguns dos grilos que caíam semi-mutilados do monte e não
conseguiam mais rastejar para cima feriam-se a si mesmos
com suas pinças.
O zumbido se tornou, então, tão alto e tão terrivelmente
estridente que eu tapei meus ouvidos, porque pensava não
conseguir mais suportá-lo.
Graças a Deus, finalmente os animais foram diminuindo e
diminuindo, o zumbido tornou-se mais fino e, de repente,
parou por completo.
— O que ele ainda está fazendo? — perguntei ao tibetano,
quando vi que o dugpa não demonstrava ter intenção de
parar, parecia esforçar-se em concentrar seus pensamentos
em algo. Tinha levantado os lábios superiores, de modo que
pude ver claramente seus dentes pontiagudos. Eles eram
negros como a peste, provavelmente devido ao hábito desse
povo de mascar betel.
— Ele separa e une. — Ouvi o tibetano responder.
Apesar de repetir para mim que se tratava apenas de insetos,
eu havia encontrado a morte aqui e sentia meu exterior
atacado e próximo a uma força interna, e a voz soava como se
viesse de muito longe: “Ele separa e une”.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Ich begriff nicht, was das bedeuten sollte, und begreife es
auch heute nicht; es geschah auch nichts weiter, was auffällig
gewesen wäre. Warum ich trotzdem noch – vielleicht
stundenlang, ich weiß es nicht mehr – sitzen blieb? Der Wille,
aufzustehen, war mir abhanden gekommen, ich kann es nicht
anders nennen.
Allmählich sank die Sonne, und Landschaft und Wolken
nahmen
jene
schreiend
rote
und
orangegelbe
unwahrscheinliche Färbung an, die jeder kennt, der einmal in
Tibet war. Man kann den Eindruck des Bildes nur mit den
barbarisch
bemalten
Zeltwänden
europäischer
Menageriebuden, wie man sie auf Jahrmärkten sieht,
vergleichen. –
Ich konnte die Worte nicht loswerden:”Er löst und bindet“;
nach und nach bekamen sie etwas Schreckhaftes in meinem
Hirn; – in der Phantasie verwandelte sich der zuckende
Grillenhaufen in Millionen sterbender Soldaten. Der Alp
eines rätselhaften, ungeheuerlichen Verantwortungsgefühls,
das für mich um so folternder war, als ich in mir vergeblich
nach seiner Wurzel suchte, würgte mich.
Dann wieder schien es mir, als sei der Dugpa plötzlich
verschwunden, und statt seiner stünde da – scharlachrot und
olivgrün – die widerwärtige Statue des tibetischen
Kriegsgottes.
173
Não compreendi o que isso deveria significar e ainda hoje
não compreendo; também não aconteceu mais nada de
relevante depois disso. Por que, ainda assim, – talvez por
horas, eu não sei mais – permaneci sentado? A vontade de
levantar me foi tomada, não consigo justificar isso de outro
modo.
Gradualmente, o sol se pôs e a paisagem e as nuvens
adquiriram uma improvável coloração gritante avermelhada
e laranja-amarelada, que só conhece aquele que foi ao Tibete.
– A impressão desse quadro só pode ser comparada à das
paredes rusticamente pintadas das camadas das
Menageriebuden⁴, como aquelas que encontramos nas
Jahrmärkten. - Eu não conseguia mais me livrar daquelas
palavras: “Ele separa e une”; continuamente, elas se
tornavam mais assustadoras na minha mente; - na fantasia, a
massa espásmica de grilos transformava-se em milhões de
soldados mortos. O ápice de um enigmático e monstruoso
sentimento de responsabilidade tornou-se uma tortura para
mim, sufocava-me e eu, inutilmente, tentava buscar sua raiz.
Então, o dugpa parecia ter desaparecido e, ao invés de sua
compleição, - vermelho-escarlate e verde-oliva – estava a
estátua tibetana de um deus da guerra.
_________________________________________________________________________________
4 O termo Menageriebuden, de origem francesa, designa o estande no
qual ocorria uma apresentação pública de várias espécies para
apresentação pública. Isso podia ser visto nas feiras anuais ou
quermesses.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Und ich kämpfte gegen den Anblick, bis ich die nackte
Wirklichkeit wieder vor Augen hatte, aber es war mir nicht
genug Wirklichkeit: die Erddünste, die aus dem Boden
stiegen, die zackigen Gletschergipfel der Bergriesen am
fernen Horizont,der Dugpa mit der roten Kappe, ich selbst in
meinen halb europäischen, halb mongolischen Kleidern,
dann das schwarze Zelt mit den Spinnenbeinen – alles
konnte doch gar nicht wirklich sein! Wirklichkeit, Phantasie,
Vision, was war echt, was Schein? Und mein Denken
dazwischen immer von neuem auseinanderklaffend, wenn
die drosselnde Angst vor dem unfaßbaren, fürchterlichen
Verantwortungsgefühl wieder in mir aufstieg.
Später, viel später – auf der Heimreise – wuchs die
Begebenheit in meiner Erinnerung wie eine wuchernde
Giftpflanze, die ich vergebens ausreißen will.
Nachts, wenn ich nicht schlafen kann, dämmert leise in mir
eine grauenhafte Ahnung auf, was der Satz bedeuten mag:
”Er löst und bindet“, und ich suche sie zu ersticken, daß sie
nicht zu Wort kommen kann, so wie man ein ausbrechendes
Feuer im Keim ersticken möchte. – Aber es hilft nichts, daß
ich mich wehre – im Geiste sehe ich, wie aus dem toten
Grillenhaufen ein rötlicher Dunst aufsteigt und zu
Wolkengebilden wird, die sich, den Himmel verfinsternd wie
die Schreckgespenster des Monsuns, nach Westen wälzen. –
174
E eu lutava contra a visão, até que apareceu, frente aos meus
olhos, novamente a nua realidade: o pó da terra que voava do
chão, os picos glaciais irregulares, as montanhas no
horizonte, o dugpa com sua capa vermelha, eu mesmo com
minhas roupas meio europeias, meio mongóis e, então, a
tenda preta com suas patas de aracnídeo, tudo isto não
poderia ser real! Realidade, fantasia, ficção, o que era real, o
que era aparência? E, em meio a isso, meu pensamento
divergia dele próprio à medida em que o medo inseparável e
a terrível responsabilidade cresceu novamente em mim.
Mais tarde, muito mais tarde - na viagem para casa – o medo
cresceu na minha lembrança como uma planta venenosa que
eu, inutilmente, quero arrancar. À noite quando não consigo
dormir, soa baixinho e pavorosamente em meu interior a
frase e o que ela deveria significar: “Ele separa e une.”, e eu
procuro sufocá-la, para que ela não consiga tornar-se
palavra, como quando queremos sufocar o fogo irrompido no
Reno⁵ – Mas nada adianta para que eu me defenda – no
espirito, vejo como a morta massa de grilos levanta uma
poeira avermelhada, formando uma nuvem que se propaga
no céu, como monções fantasmagóricas e assustadoras que
valsam para o oeste.
__________________________________________________________________________________
5 O autor se refere aos episódios na guerra, em que se ateava fogo na
região do Reno.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
Und auch jetzt wieder, wo ich dies schreibe, überfällt's mich
– ich – ich – – – –‹
Hier scheint der Brief plötzlich abgebrochen worden zu
sein«, schloß Professor Goclenius; »leider muß ich Ihnen
jetzt mitteilen, was ich auf der chinesischen Gesandtschaft
über das unerwartete Ableben unseres lieben Kollegen
Johannes Skoper im fernen Asien ...« Der Professor kam nicht
weiter; ein lauter Schrei der Herren unterbrach ihn:
»Unglaublich, die Grille lebt ja noch, jetzt nach einem Jahr!
Unglaublich! Einfangen! Sie fliegt davon!« rief alles wild
durcheinander. Der Forscher mit der Löwenmähne hatte das
Fläschchen geöffnet und das anscheinend tote Insekt
herausgeschüttelt.
Einen Augenblick später war die Grille zum Fenster
hinausgeflogen in den Garten, und die Herren rannten in
ihrem Eifer, sie einzufangen, an der Tür den greisen
Museumsdiener Demetrius, der ahnungslos hereinkam, um
die Lampe anzuzünden, beinahe über den Haufen.
Kopfschüttelnd sah ihnen der Alte durch das Gitterfenster zu,
wie sie draußen mit Schmetterlingsnetzen umherjagten.
Dann blickte er zum dämmernden Abendhimmel empor und
brummte: »Was in der schrecklichen Kriegszeit doch die
Wolken für merkwürdige Formen annehmen! Da sieht jetzt
eine wieder mal ganz so aus wie ein Mann mit einem grünen
Gesicht und roter Kappe; wenn er die Augen nicht so weit
auseinanderstehen hätte, wäre es fast wie ein Mensch.
Wahrhaftig, man könnte noch abergläubisch werden auf
seine alten Tage.«
175
E agora, novamente, quando eu escrevo isto, cai sobre mim, eu – eu – eu ---.”
— A carta aqui parece ter sido interrompida bruscamente. —
Concluiu o professor Goclenius — Infelizmente, devo contar
aos senhores o que a embaixada chinesa comunicou-me da
morte inesperada do nosso querido colega Johannes Stoper
na longínqua Ásia. --O professor não seguiu em frente, pois um grito alto, vindo
dos senhores, o fez parar:
— Incrível, o grilo ainda vive, mesmo após um ano! Incrível!
Apanhem-no! Ele está escapando! — exclamou de modo
selvagem e confuso. O pesquisador com a juba de leão abrira
o pequeno frasco e derramara o inseto aparentemente
morto.
Um instante mais tarde, o grilo saíra pela janela afora e, em
seu entusiasmo para apanhá-lo, os senhores quase
atropelaram na porta o zelador do museu, Demetrius que,
sem saber de nada, entrava no salão para acender a luz.
Sacudindo a cabeça, o velho os observava pela janela
gradeada, como tentavam caçar para lá e para cá, munidos
com redes de borboletas. Então, mirou o crepúsculo no céu
noturno e murmurou:
— Como nestes tempos terríveis de guerra as nuvens
adquirem formas estranhas! Ali tem uma que é igualzinha a
um homem com um rosto verde e capa vermelha; se seus
olhos não fossem tão separados, seria quase um homem.
Realmente, ainda poderíamos ser tão supersticiosos como
nos velhos tempos.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
176
Referências Bibliográficas
Edição de Das Grillenspiel utilizada para a tradução
MEYRINK, Gustav. “Das Grillenspiel”. In: Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Band VI. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1917. pp. 66-87.
Edição de Das Grillenspiel utilizada nesta revista
MEYRINK, Gustav. “Das Grillenspiel”. In: Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch.. Disponível em:
http://gutenberg.spiegel.de/buch/flederm-5684/9.
Dicionários utilizados
GRIMM, Jakob und Wilhelm. Deutsches Wörterbuch. Göttingen: Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, 1998-2014.
Rheinisches Wörterbuch. Göttingen: Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften, 2002-2014.
Bibliografia
LALOU, M. Les Relions du Tibet. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
LOPEZ, D. Religions of Tibet in Practice. Princeton: Princeton University Press, 2007.
MEYRINK, G. Fledermäuse: Ein Geschichtenbuch. Band VI. Leipzig: Kurt Wolff Verlag, 1917.
TUCCI, G. Die Religionen Tibets und der Mongolei. Stuttgart: Kohlhammer, 1970.
ULRICH, B – ZIEMANN, B. Krieg im Frieden: die umkämpfe Erinnerung an den Ersten Weltkried: Quellen und Dokumente. Frankfurt:
Fischer Taschenbuch, 1997.
Thiago Andreuzzi
Cursa Estudos Literários no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP.
Contato: [email protected]
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Os mendigos
Introdução
Edward John Moreton Drax Plunkett (24 de Julho de
1878, Londres – 25 de Outubro de 1957, Dublin), 18º Barão
de Dunsany, foi um escritor irlandês do fim século XIX e
primeira metade do século XX.
Seus escritos convergem muito com os escritos do
Fantástico, tendo ajudado a consolidar o estilo no século XX,
encontrando seguidores como H. P. Lovecraft, J.R.R., Tolkien,
C. S. Lewis e outros. Destes, Lovecraft dedicou, a Dunsany,
algumas páginas, de seu livro O Horror Sobrenatural em
Literatura1, repletas de admiração:
Insuperável na feitiçaria da prosa cantante cristalina e
supremo na criação de um mundo adorável e langoroso de
cenários exóticos iridescentes [...] cujas histórias e peças
curtas formam um elemento quase único em nossa literatura.
Na citação, é possível observar a importância do
irlandês para o escritor estadunidense, que o compara a
Poe na sensibilidade a “valores dramáticos e ao
significado de palavras e detalhes isolados, e muito
melhor equipado retoricamente com um estilo lírico
simples, baseado na linguagem da Bíblia do Rei James”2.
Lord Dunsany foi veterano da Guerra dos Bôeres e
da 1ª Guerra Mundial, deixou uma obra bastante vasta de
onde se destacam suas peças para teatro e seus contos e
novelas. Entre seus escritos, podemos citar, entre outros,
The Gods of Pegana (1905), A Dreamer’s Tale (1910), The
Book of Wonder (1912), A Night at na Inn (1916), etc.
____________________________________________________________________________________________________________________________________
1 LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em Literatura. Trad. de Celso M. Paciornik, São Paulo: Iluminuras, 2007, p. 115.
2 Ibidem, p. 116.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
The Beggars3
I was walking down Piccadilly not long ago, thinking of
nursery rhymes and regretting old romance.
As I saw the shopkeepers walk by in their black frockcoats and their black hats, I thought of the old line in nursery
annals: “The merchants of London, they wear scarlet.”
The streets were all so unromantic, dreary. Nothing
could be done for them, I thought — nothing. And then my
thoughts were interrupted by barking dogs. Every dog in the
street seemed to be barking — every kind of dog, not only
the little ones but the big ones too. They were all facing East
towards the way I was coming by. Then I turned round to
look and had this vision, in Piccadilly, on the opposite side to
the houses just after you pass the cab-rank.
Tall bent men were coming down the street arrayed in
marvelous cloaks. All were sallow of skin and swarthy of
hair, and most of them wore strange beards. They were
coming slowly, and they walked with staves, and their hands
were out for alms.
______________________________________________________________
3
Disponível em:
____http://www.flashfictiononline.com/fpublic0030-beggars-lord-dunsany
179
Os Mendigos
Eu estava descendo a rua Piccadilly4 não há muito
tempo, pensando em rimas infantis e lamentando o velho
romance.
Quando eu vi os lojistas a caminhar por aí em seus
sobretudos pretos e seus pretos chapéus, pensei no velho
verso das coletâneas infantis: “Os mercadores de Londres,
eles vestem escarlate”.
As ruas estavam tão desromantizadas, melancólicas.
Nada poderia ser feito por elas, eu pensei – nada. E então
meus pensamentos foram interrompidos por cães ladrantes.
Todos os cães na rua pareciam estar latindo – todo tipo de
cão, não apenas os pequeninos, mas também os grandões.
Eles estavam encarando o leste, o caminho por onde eu
vinha. Então, eu me virei para olhar e tive esta visão, na
Piccadilly, do lado oposto das casas, assim que você passa o
ponto de táxi.
Homens altos e curvados estavam vindo rua abaixo
envoltos em capas maravilhosas. Todos tinham um amarelo
doentio na pele e cabelos escuros, e a maioria deles
ostentava estranhas barbas. Eles vinham vagarosamente, e
eles caminhavam com cajados, e suas mãos se estendiam
pedindo esmolas.
_______________________________________________________________
Uma das principais (e maiores) ruas de Londres, onde se localiza a
“Mayfair”, um centro comercial.
4
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
All the beggars had come to town.
I would have given them a gold doubloon engraven
with the towers of Castile, but I had no such coin. They did
not seem the people to who it were fitting to offer the same
coin as one tendered for the use of a taxicab (O marvelous,
ill-made word, surely the pass-word somewhere of some evil
order). Some of them wore purple cloaks with wide green
borders, and the border of green was a narrow strip with
some, and some wore cloaks of old and faded red, and some
wore violet cloaks, and none wore black. And they begged
gracefully, as gods might beg for souls.
I stood by a lamp-post, and they came up to it, and one
addressed it, calling the lamp-post brother, and said, “O
lamp-post, our brother of the dark, are there many wrecks by
thee in the tides of night? Sleep not, brother, sleep not. There
were many wrecks an it were not for thee.”
180
Todos os mendigos vieram à cidade.
Eu lhes teria dado um dobrão de ouro gravado com as
torres de Castela, mas eu não tinha tal moeda. Eles não
pareciam pessoas a quem fosse cabível oferecer a mesma
moeda que se usaria para pagar o táxi (Ó palavra
maravilhosa, malfeita, certamente a senha de alguma ordem
maligna em algum lugar). Alguns deles vestiam capas
púrpuras5 com largas bordas verdes, e a borda verde era
uma faixa estreita em alguns, e alguns vestiam capas de um
velho e desbotado vermelho, e alguns vestiam capas violetas,
e nenhum vestia preto. E eles mendigaram graciosamente,
assim como deuses possivelmente mendigam por almas.
Eu fiquei perto de um poste de luz, e eles surgiram
para ele, e um se lhe dirigiu, chamando o poste de luz de
irmão, e disse, “Ó poste de luz, nosso irmão do escuro, há
muitos naufrágios ao teu redor nas marés da noite? Não
durmas, irmão, não durmas. Houve muitos naufrágios, e não
foram por ti.”
_____________________________________________________________
5Segundo o dicionário online www.dictionary.com, a cor púrpura se
relaciona com um alto nível de hierarquia: “3. The rank or office of a
cardinal” e “5. Imperial, regal, or princely rank position”. Pode-se
conferir também a segunda entrada: “2. Cloth or clothing of this hue,
especially as formerly worn distinctively by persons of imperial, royal, or
other high rank”.
ARCÁDIA | Nº 1 | 2014
It was strange: I had not thought of the majesty of the
street lamp and his long watching over drifting men. But he
was not beneath the notice of these cloaked strangers.
And then one murmured to the street: “Art thou
weary, street? Yet a little longer they shall go up and down,
and keep thee clad with tar and wooden bricks. Be patient,
street. In a while the earthquake cometh.”
“Who are you?” people said. “And where do you come
from?”
“Who may tell what we are,” they answered, “or
whence we come?”
And one turned towards the smoke-stained houses,
saying, “Blessed be the houses, because men dream therein.”
Then I perceived, what I had never thought, that all
these staring houses were not alike, but different one from
another, because they held different dreams.
And another turned to a tree that stood by the Green
Park railings, saying, “Take comfort, tree, for the fields shall
come again.”
181
Isso foi estranho: eu não havia pensado na majestade
da lâmpada de rua e sua longa vigília sobre os homens à
deriva. Mas ela não passava despercebida a esses estranhos
de capa.
E então um deles murmurou para a rua: “Estás
cansada, rua? Por algum tempo ainda eles vão subir e descer,
e manter-te coberta com piche e tijolos de madeira. Sê
paciente, rua. Logo o terremoto vem.”
“Quem são vocês?” as pessoas disseram. “E de onde
vocês vieram?”
“Quem pode dizer o que somos,” eles responderam,
“ou de onde nós viemos?”
E um deles voltou-se para as casas manchadas de
fumaça, dizendo, “Abençoadas sejam as casas, porque
homens sonham dentro delas.”
Então eu percebi o que eu nunca havia pensado, que
todas estas fitantes casas não eram semelhantes, mas
diferentes umas das outras, porque elas sustinham
diferentes sonhos.
E um outro se voltou para uma árvore que ficava em
pé próxima ao cercado do Green Park6, dizendo, “Fique
tranquila, árvore, pois os campos voltarão uma vez mais.”
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6 Parque que acompanha boa parte da rua Piccadilly.
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And all the while the ugly smoke went upwards, the
smoke that has stifled Romance and blackened the birds.
This, I thought, they can neither praise nor bless. And when
they saw it they raised their hands towards it, towards the
thousand chimneys, saying, “Behold the smoke. The old coalforests that have lain so long in the dark, and so long still, are
dancing now and going back to the sun. Forget not Earth, O
our brother, and we wish thee joy of the sun.”
It had rained, and a cheerless stream dropped down a
dirty gutter. It had come from heaps of refuse, foul and
forgotten; it had gathered upon its way things that were
derelict, and went to somber drains unknown to man or the
sun. It was this sullen stream as much as all other causes that
had made me say in my heart that the town was vile, that
Beauty was dead in it, and Romance fled.
Even this thing they blessed. And one that wore a
purple cloak with broad green border, said, “Brother, be
hopeful yet, for thou shalt surely come at last to the
delectable Sea, and meet the heaving, huge, and travelled
ships, and rejoice by isles that know the golden sun.” Even
thus they blessed the gutter, and I felt no whim to mock.
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E ao mesmo tempo a feia fumaça ia para cima, a fumaça
que havia sufocado o Romance e empretecido os pássaros.
Isto, eu pensei, eles não podem louvar nem abençoar. E,
quando eles a viram, levantaram suas mãos em direção a ela,
para as milhares de chaminés, dizendo, “Observa a fumaça. As
antigas florestas de carvão, que dormiram tanto tempo nas
trevas, e ainda assim permanecem, agora estão dançando e
voltando para o sol. Não te esqueças da Terra, ó nossa irmã, e
nós te desejamos a felicidade do sol.”
Havia chovido, e uma correnteza desmotivada caía de
uma sarjeta suja. Ela viera de montes de lixo, asquerosos e
esquecidos; havia juntado por seu caminho coisas que
estavam abandonadas e que foram para sombrios esgotos
desconhecidos do homem e do sol. Foi esta taciturna corrente,
tanto quanto todas as outras causas, que me fizeram dizer, em
meu coração, que a cidade era vil, que a Beleza estava morta
nela, e o Romance fugiu.
Até esta coisa eles abençoaram. E um deles, que usava
uma capa púrpura com larga borda verde, disse, “Irmã,
mantém a esperança, pois tu com certeza chegarás, por fim,
ao deleitável Mar, e encontrarás os pesados, enormes, e
viajados navios, e regozijar-te-ás por ilhas que conhecem o
dourado sol.” Assim, eles abençoaram a sarjeta, e eu não senti
ânimo para caçoar.
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And the people that went by, in their black unseemly
coats and their misshapen, monstrous, shiny hats, the
beggars also blessed. And one of them said to one of these
dark citizens: “O twin of Night himself, with thy specks of
white at wrist and neck like to Night’s scattered stars. How
fearfully thou dost veil with black thy hid, unguessed desires.
They are deep thoughts in thee that they will not frolic with
colour, that they say ‘No’ to purple, and to lovely green
‘Begone.’ Thou hast wild fancies that they must needs be
tamed with black, and terrible imaginings that they must be
hidden thus. Has thy soul dreams of the angels, and of the
walls of faëry that thou hast guarded it so utterly, lest it
dazzle astonished eyes? Even so God hid the diamond deep
down in miles of clay.
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E os transeuntes que iam, em suas capas
inconvenientes e seus disformes, monstruosos, brilhantes
chapéus, também os abençoavam os mendigos. E um deles
disse a um desses cidadãos escuros: “Ó próprio gêmeo da
Noite, contigo estão manchas brancas no pulso e pescoço
como as dispersas estrelas da Noite. Como temerosamente tu
escondes com o preto teus ocultos, indecifráveis desejos. Eles
são pensamentos profundos em ti que não se alegram com a
cor, que eles dizem ‘Não’ para o roxo, e, ao amável verde, ‘vá
embora’. Tu tens selvagens fantasias que precisam ser
domadas com o preto, e terríveis imaginações que devem
assim ser escondidas. Tem a tua alma sonhos dos anjos, e das
muralhas do mundo das fadas que tu guardaste tão
inteiramente, por temor ao ofuscamento de olhos atônitos?
Assim Deus escondeu o diamante fundo em milhas de barro.
“The wonder of thee is not marred by mirth.
“A maravilha de ti não é danificada pelo júbilo.
“Behold thou art very secret.
“Olhe, tu és muito secreto.
“Be wonderful. Be full of mystery.”
“Sê maravilhoso. Sê cheio de mistério.”
Silently the man in the black frock-coat passed on. And
I came to understand when the purple beggar had spoken,
that the dark citizen had trafficked perhaps with Ind, that in
his heart were strange and dumb ambitions; that his
dumbness was founded by solemn rite on the roots of
ancient tradition; that it might be overcome one day by a
cheer in the street or by some one singing a song, and that when this
shopman spoke there might come clefts in the world and people peering
Silenciosamente, o homem de sobretudo preto passou.
E eu vim a entender, quando o mendigo púrpuro havia
falado, que o cidadão escuro tinha provavelmente traficado
com a Índia, que em seu coração havia ambições estranhas e
mudas; que sua mudez foi fundada pelo rito solene nas raízes
da tradição antiga; que isto talvez seja superado, um dia, por
um estímulo na rua ou por alguém cantando uma canção, e
que quando este vendedor tiver falado, fendas no mundo
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ancient tradition; that it might be overcome one day by a
cheer in the street or by some one singing a song, and that
when this shopman spoke there might come clefts in the
world and people peering over at the abyss.
Then turning towards Green Park, where as yet Spring
was not, the beggars stretched out their hands, and looking
at the frozen grass and the yet unbudding trees they,
chanting all together, prophesied daffodils.
A motor omnibus came down the street, nearly
running over some of the dogs that were barking ferociously
still. It was sounding its horn noisily.
And the vision went then.
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da tradição antiga; que isto talvez seja superado, um dia, por
um estímulo na rua ou por alguém cantando uma canção, e
que quando este vendedor tiver falado, fendas no mundo
poderiam vir e as pessoas espiariam, de cima, o abismo.
Então, se voltando para o Green Park, onde ainda não
era primavera, os mendigos estenderam as mãos e, olhando
para a grama congelada e para as árvores ainda sem brotos,
eles, cantando todos juntos, profetizaram os narcisos.
Um ônibus motorizado veio rua abaixo, quase
atropelando alguns dos cães que ainda latiam ferozmente.
Ele foi soando a sua buzina ruidosamente.
E então a visão se foi.
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Referências bibliográficas
Edição de The Begggars utilizada para a tradução
DUNSANY, Lord. The beggars. In: A Dreamer’s Tales. Disponível em:
http://www.gutenberg.org/cache/epub/8129/pg8129.html
Edição de The Beggars utilizada nesta revista
DUNSANY, Lord. The beggars. In: A Dreamer’s Tales. Disponível em:
http://www.gutenberg.org/cache/epub/8129/pg8129.html
Bibliografia
LOVECRAFT, H. P. O Horror Sobrenatural em Literatura. Trad. de Celso M. Paciornik São Paulo: Iluminuras, 2007.
DUNSANY, Lord. Los Mendigos. Disponível em: http://elespejogotico.blogspot.com.br/2009/08/los-mendigos-lord-dunsany.html
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Grã Bretanha: Penguin Popular Classics: Penguin Books, 1994.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Disponível em: http://www.elivros-gratis.net/livros-gratis-william-shakespeare.asp
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Créditos das imagens
Capa; p. 3; p. 21; p. 26; p. 35; p. 38; p. 44; p. 56; p. 59; p. 68; p. 72; p. 85; p. 87; p. 96; p. 109; p. 117; p. 132; p. 136; p. 144; p. 148;
p. 151: Fotos da Arcádia do IEL, por Ana Maria F. Côrtes.
p. 17: Foto da Arcádia do IEL, por Elisa Pagan.
p. 19: (TEMPO NO ESPELHO) Gravura “Portret van Gillis van Breen”(s/d), de Hendrick Goltzius. Disponível em:
https://www.rijksmuseum.nl/en/explore-the-collection/overview/hendrick-goltzius/objects#/RP-T-2000-1,3.
p. 23: (HÁBITO) Pintura "Nu feminino de costas" (1894), de Eliseu Visconti. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ivan.htm.
p. 37: (TRIANGULO DE ACRÍLICO SOBRE PRAIA)Fotografia “Sand und Brandung” (2006), de Tobias Rütten. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sand_und_Brandung.jpg.
p. 40/43: (TRAVESSIA) Desenho “Leading to the sea shore” (2007), de Jessica Murrieta. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/jessica-m/1264648652/.
p. 50: (O CONCEITO DE KLEOS EM ILÍADA E OS LUSÍADAS) Pintura "O Navio de Vasco da Gama" (c1880), de Ernesto Casanova.
Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vasco_da_Gama%27s_ship.jpg.
p. 53: (O CONCEITO DE KLEOS EM ILÍADA E OS LUSÍADAS) Pintura “A Fúria de Aquiles” (1737), de Charles Antoine Coypel.
Disponível em:
http://pt.wahooart.com/@@/8Y37Q8-Charles-Antoine-Coypel-F%C3%BAria-de-Aquiles-(3).
p. 57: (RUGAS) Foto sem nome (s/d), de Roberto Barresi. Disponível em:
http://pixabay.com/pt/soro-fisiol%C3%B3gico-o-ch%C3%A3o-rachado-seca-99597/.
p. 58: (O CANTADOR) Desenho SEM NOME (2014), de Elisa Pagan.
p. 84: (LAVOURA ARCAICA: O INCESTO COMO SÍMBOLO AMBIVALENTE) Gravura “Hibiscus and blue heron on a tree stump
(1782), de Matsumura Goshun. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hibiscus_and_blue_heron_on_a_tree-stump.jpg.
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187
p. 86 (A EXISTÊNCIA NÃO VENCE EM TEU PEITO) Gravura: “Solo (Melancholia)” (1881), de Cyprian Kamil Norwid. Disponível em:
http://fbc.pionier.net.pl/owoc/results?queryType=6&query=%22rysunek%22&hostsId=n8&roleId=type&action=DistributedSearchAction&QI=07229D60A413C003A0E1A562463F03A
1-7
p. 99: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchus” (1510-1515), de Leonardo da
Vinci. Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Julius_Kronberg_Bacchanal.jpg.
p. 103: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchanal” (1710-1720), de Alessandro
Magnasco e Clemente Spera. Disponível em:
http://it.wikipedia.org/wiki/Bacco_(Leonardo)#mediaviewer/File:Jean.jpg.
p. 108: (A VINGANÇA DE DIÓNYSOS: UMA ANÁLISE DO PRÓLOGO D’AS BACANTES) Pintura “Bacchanal” (1921), de Julius Kronberg.
Disponível em:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alessandro_Magnasco_and_Clemente_Spera_-_Bacchanal_-_Google_Art_Project.jpg.
p. 111: (NOITE QUENTE) Foto “Cigarrete 1” (2007), de Sheilla Tostes. Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/sheilatostes/1304332796/.
p. 135: (LANIFÍCIOS TEJO LDA.) Foto "Empresa Lanifícios Tejo Lda - 1889", de Pedro Calixto. Disponível em:
http://www.panoramio.com/photo/21525662.
p. 146/147: (CRIAÇÃO/VERMELHO) Pintura “Sunset” (s/d), de Adelsteen Norman. Disponível em:
http://f-picture.net/fp/3652e98d96684f25adab42a972d8eb2d.
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