744 ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos usuários de um centro de atenção psicossocial* Challenges and possibilities in the chain of integral attention to mental health: the collective subject speech of the users from a psychosocial care center Márcia Maria Mont’ Alverne de Barros 1 Antonio Germane Alves Pinto 2 Maria Salete Bessa Jorge 3 Doutoranda em Saúde Coletiva (UECE UFC AA IES); Coordenadora da Saúde Mental de Sobral - CE. [email protected] 1 Doutorando em Saúde Coletiva (UECE UFC AA IES); Enfermeiro; Docente da Universidade Regional do Cariri (URCA). [email protected] 2 Doutora em Enfermagem e em Saúde Coletiva; Enfermeira; Professora Titular (UECE); Pesquisadora CNPq. [email protected] 3 RESUMO Objetiva-se compreender as concepções dos usuários do Centro de Atenção Psicossocial sobre os desafios e possibilidades vivenciadas na atenção em saúde mental. Trata-se de um estudo hermenêutico sobre abordagem qualitativa. O local foi o Município de Sobral-CE e os sujeitos foram dez usuários. Utilizouse a entrevista semiestruturada e a observação sistemática para a coleta dos dados. A análise seguiu os pressupostos da hermenêutica crítica com eixo no Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados evidenciam a intensa exclusão social. Enfatiza-se a necessidade de estratégias e ações resolutivas para a ampliação do espectro de adaptação e habilitação social nos territórios. PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Discurso do Sujeito Coletivo. ABSTRACT The objective is to understand users’ definitions on the Psychosocial Care Center about the challenges and possibilities experienced in the mental health care. It is a hermeneutic study about qualitative approach. The study took place in the municipality of Sobral, in Ceará, and there were ten users. A semistructured interview and the systematic observation for data collection were used. The analysis followed the conjectures of critical hermeneutics with bearing on the Collective Subject Speech. The results evidenced the intense social exclusion. The need of resolutive strategies and actions for broadening the spectrum of adaptation and social qualification in the territories is emphasized. KEYWORDS: Mental Health; Mental Health Services; Collective Subject Speech. * Recorte da dissertação de Mestrado defendida em 2008 no Mestrado Acadêmico em Saúde Pública da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos usuários de um centro de atenção psicossocial I N T R O D U Ç Ã O Reforma Psiquiátrica e para sua articulação resultantes das seguintes diretrizes fundamentais: territorialidade; organização em rede; intersetorialidade; atenção psi- No Brasil, o modelo manicomial hospitalocên- cossocial; multiprofissionalidade/interdisciplinaridade; trico de caráter cronificador e produtor de exclusão desinstitucionalização; promoção da cidadania dos social passou a ser objeto de enfrentamento por mo- usuários; e construção da autonomia possível de usuá- vimentos sociais ligados ao campo da saúde mental rios e familiares (B, 2003). nas décadas de 1970 e 1980. Com o envolvimento de Nesse caminho, a partir de 1997, a cidade de segmentos políticos, científicos, sociais dentre outros, Sobral-CE vislumbrou a necessidade de uma refor- considerou-se fundamental a implantação de serviços mulação no modelo de saúde mental local vigente, o substitutivos ao manicômio (A, 2007). qual era representado pelo sistema hospitalocêntrico O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) tor- manicomial na modalidade predominante de assistên- nou-se o principal dispositivo estratégico para inversão cia psiquiátrica. No entanto, somente em julho do ano do modelo assistencial em saúde mental e na articu- 2000 ocorreu o rompimento definitivo com o referi- lação da rede de serviços em saúde e outros setores. do modelo e instituiu-se a Rede de Atenção Integral à Os CAPS devem oferecer uma atenção humanizada Saúde Mental no município compromissado em ofe- e de qualidade às pessoas com transtornos mentais recer uma atenção em saúde mental humanizada, de (TM) priorizando a subjetividade e a singularidade de qualidade, de base comunitária sob os princípios do cada usuário em seu projeto terapêutico (A, Sistema Único de Saúde (SUS) (S, 2006). 2007). O CAPS Geral II de Sobral é um dos serviços que A construção da rede de atenção em saúde men- compõem a Rede de Atenção Integral à Saúde Mental tal pressupõe a alocação de diversos sujeitos em um do município. Conta com uma equipe multiprofissio- cenário ativo, em que a construção de alternativas para nal que desenvolve um trabalho com abordagem inter- o resgate da cidadania e do estado de saúde efetive-se disciplinar, onde se busca a valorização dos diferentes através do cuidado integral. As ações pontuais e limi- saberes e práticas, visando ao desenvolvimento de uma tadas devem estar minimizadas no universo multi e prática crítica, transformadora, compromissada com interdisciplinar, pois as relações de equipe, usuários e uma atenção resolutiva e cidadã. sistema de saúde devem problematizar as questões ine- Presta atendimento às pessoas com TM severos e rentes ao desenvolvimento de uma prática saudável, persistentes, oferece cuidados clínicos e de habilitação ampla e resolutiva (L; V, 2006). psicossocial, possibilita o exercício de cidadania e a in- O modelo de redes de cuidado configura as ações clusão social das pessoas com TM e de suas famílias. de saúde mental em diversas direções e sentidos da Ainda assim, assume um papel estratégico na articula- hierarquizada constituição de serviços do SUS. A base ção e no tecimento de redes sociais, pois desempenha territorial e a atuação transversal com outras políticas as suas funções na atenção direta, bem como na regu- específicas devem buscar o estabelecimento de víncu- lação da rede de serviços de saúde. Enfatiza o trabalho los e o acolhimento na ação em saúde. Neste processo, no território articulado com as equipes da Estratégia devem estar fundamentados os princípios do SUS e da Saúde da Família (ESF) possibilitando o resgate da Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 745 746 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. usuários de um centro de atenção psicossocial • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos autonomia dos usuários, em conformidade com Polí- humana, vinculada à sua condição de possibilidade tica Nacional de Saúde Mental (B, 2004). finita, sendo uma tarefa criadora, circular, que ocor- Em julho do ano 2009, o município completou re no campo da linguagem. Dessa maneira, o homem nove anos de implantação da Reforma Psiquiátrica a é uma conjugação dele mesmo em sua vida, nas suas partir da constituição de vários serviços de saúde men- impressões e culturas prévias, nos seus preconceitos tal articulados nas redes comunitárias de atenção à e impregnações que transversalizam o próprio modo vida. Entende-se que o período configura um tempo de interpretar o mundo. A essência daquilo que se vai e momento adequado para a realização deste estudo interpretar passa a ser também a própria essência do pela necessidade de interpretar o universo simbólico e intérprete (G, 1997). vivencial dos usuários atendidos pelo CAPS. O campo empírico foi o CAPS Geral II Damião Desse modo, objetiva-se compreender as concep- Ximenes Lopes, localizado na cidade de Sobral, Estado ções dos usuários do Centro de Atenção Psicossocial do Ceará, no Nordeste brasileiro. O CAPS Geral com- (CAPS) sobre os desafios e possibilidades vivenciadas põe a Rede de Atenção Integral em Saúde Mental do na atenção em saúde mental. município que conta ainda com um CAPS Álcool e outras Drogas (AD), Serviço Residencial Terapêutico, Unidade de Internação Psiquiátrica em Hospital Geral METODOLOGIA e ações de articulação com os demais níveis de complexidade do SUS e outros setores. No CAPS Geral são desempenhadas diversifica- Trata-se de uma pesquisa sob abordagem qualita- das atividades: atendimento individual; atendimento tiva, com eixo no Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) em grupo (grupo de crianças, grupo de convivência, (L; L, 2005). A adequação metodológica grupo de psiquiatria, grupo de terapia ocupacional, surge na complexidade do próprio objeto de análise oficinas expressivas, oficinas terapêuticas, oficinas que requisita um referencial alinhado às questões de culturais, atividades esportivas, atividades de suporte significado e intencionalidade inerentes aos atos, às re- social, entre outros); oficinas geradoras de renda (es- lações e às estruturas sociais sob investigação (M, paço extra CAPS), atendimento para a família (gru- 2008). po de pais, atendimento individualizado a familiares, O DSC enfatiza uma estratégia metodológica atenção domiciliar), atendimento psicoterápico; trata- com intuito de tornar mais clara uma dada represen- mento medicamentoso; atividades comunitárias (uti- tação social e o conjunto de representações que con- lizando os recursos comunitários, envolvendo pessoas, forma um dado imaginário. Consiste em uma forma instituições ou grupos organizados que atuam na co- não matemática nem tampouco metalinguística de munidade); mobilização político-social; e ação matri- representar, produzir e interpretar de modo rigoroso o cial para as equipes da Estratégia Saúde da Família. pensamento de uma coletividade. (L; L; T, 2000). Os sujeitos da pesquisa foram 10 (dez) usuários de ambos os sexos, em tratamento no referido dispo- Na proposta hermenêutica, a interpretação é con- sitivo, na modalidade de atendimento intensivo e em cebida como algo inerente à totalidade da experiência acompanhamento no grupo de convivência, estabiliza- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos usuários de um centro de atenção psicossocial dos, encontrando-se no momento da pesquisa em tra- dos participantes da pesquisa. Após a entrevista, o tamento no CAPS mediante a coautorização expressa conteúdo foi ouvido pelo entrevistador e pelo entre- de seus familiares responsáveis. Os mesmos possuem vistado. As observações foram registradas em diário de histórico de inserção e envolvimento no serviço desde campo de forma escrita. a sua criação, bem como no momento da pesquisa. O processo de análise dos dados pautou-se no O período de coleta de informações ocorreu nos eixo do Discurso do Sujeito Coletivo que pressupõe a meses de janeiro e fevereiro de 2008. O processo de utilização de quatro figuras metodológicas: expressões- amostragem intencional foi definida pela saturação chave, idéia central, ancoragem e o DSC (L; teórica que, ao estabelecer ou fechar o tamanho final L, 2005). de uma amostra em estudo, interrompe a captação de Com o término da coleta de todas as informa- novos componentes a partir da redundância e conver- ções (gravadas e transcritas), realizou-se a tabulação gência de sentidos e significados emitidos nos discur- das informações. Estas foram organizadas no quadro sos (F; R; T, 2008). denominado de instrumento de análise do discurso As técnicas de coletas de dados foram a entre- – IAD. Cada entrevista foi analisada isoladamente e, vista semiestruturada e a observação sistemática. As dessa análise, selecionou-se as expressões-chave de entrevistas foram realizadas individualmente, seguindo cada discurso em particular. um roteiro previamente elaborado com as principais A idéia central se configura a síntese do conteú- questões que foram abordadas. A sistematização das do, ou seja, o que estas querem efetivamente dizer ou observações pautou-se em pontos discutidos na coleta representar. Depois da identificação das expressões- voltados para interpretação do universo da investiga- chave, as idéias semelhantes ou complementares fo- ção (atendimento, dificuldades, desafios, facilidades e ram agrupadas numa idéia central, configuradas como resolubilidade). síntese ou categoria. O conteúdo das idéias centrais A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Vale do Acaraú semelhantes ou complementares e de suas respectivas expressões-chave direcionou a construção do DSC. (UVA) seguindo os preceitos éticos para o desenvol- A interpretação dos achados pautou-se na her- vimento de pesquisa envolvendo seres humanos que menêutica crítica e reflexiva em que o fundamento foram respeitados e cumpridos conforme portaria de análise do conteúdo é a práxis social na perspectiva Conselho Nacional de Saúde. (Brasil, 1996). A realiza- compreensiva, sendo que a discussão dos resultados ção do estudo foi também autorizada pela Coordena- foi articulada com a literatura pertinente ao tema ção da Rede de Atenção Integral em Saúde Mental de (M, 2008). Sobral-CE e Coordenação do CAPS Geral II Damião Ximenes Lopes. No processo de coleta de dados, a abordagem RESULTADOS aos usuários ocorreu em primeiro momento no CAPS Geral II. Foi realizada uma apresentação pessoal e explicação geral sobre o estudo, relevância e métodos. No caminhar interpretativo da pesquisa, os re- Todas as entrevistas foram gravadas com a permissão sultados estão delineados na cartografia dos sujeitos Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 747 748 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. usuários de um centro de atenção psicossocial • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos envolvidos no estudo, no caso, os usuários do CAPS e Os usuários discorreram sobre as suas concep- na apresentação do DSC construído a partir do pro- ções, experiências e sentimentos, enfatizando o ex- cesso de análise dos dados. perimentado, o contexto da história vivenciada. Os Em relação aos sujeitos, dos 40 usuários assis- seus discursos encontram-se fundamentados no eixo: tidos na modalidade de atendimento intensivo e em ‘Desafios e possibilidades enfrentados na Rede de acompanhamento no grupo de convivência, 10 parti- Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral-CE’. ciparam da pesquisa. Do total de 10 que compuseram Deste entrecruzamento de discursos, sínteses e a amostragem teórica, 8 são do sexo masculino e 2 do representações emergiu uma categoria, ou seja, uma sexo feminino, sendo 8 solteiros, 1 viúvo e 1 separado. idéia central síntese, originada das idéias centrais se- A faixa etária está compreendida entre os 23 e os 57 melhantes ou complementares, representativas de suas anos de idade. Em relação ao diagnóstico dos usuários, respectivas expressões-chave. detectou-se que quatro apresentam transtorno afetivo Os discursos dos usuários evidenciaram a aten- bipolar; quatro com esquizofrenia; um com transtor- ção oferecida no CAPS Geral II e enfatizaram a pre- no esquizoafetivo e um usuário com transtorno mental dominância de preconceito e estigma, apresentando devido a lesão e disfunção cerebral e a doença física, tais significados em seus discursos em resposta à ques- associado a epilepsia. tão norteadora: Fale-me sobre os desafios colocados Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) Só é ruim é esse preconceito que tem na sociedade com o paciente ‘mental’, o preconceito atrapalha em tudo. Para se conseguir um trabalho é difícil, as pessoas acabam não dando emprego quando sabem que são pessoas que tomam remédio controlado. A sociedade não confia em pacientes ‘mentais’, olham com medo, achando que vão fazer alguma coisa ruim. O pessoal da cidade gosta de ‘intimar’ com o paciente mental, dizer apelidos, xingamentos. O povo na rua ainda fica chamando de doido, louco, abirobado, queima-graxa. Ficam dizendo que o paciente rasga dinheiro, joga pedra, come pedra, isso é horrível pra nós. O preconceito ainda é muito grande, não vai acabar nunca. O CAPS dá um ótimo tratamento para os pacientes, o CAPS está trazendo coisas boas para a vida dos pacientes, mas só queria que o CAPS fizesse mais tipos de trabalho com a sociedade, tem muita gente que tem preconceito com o paciente mental, isso não é bom, se o fulano é conhecido como um doido, como é que as pessoas vão respeitar ele? Se acham que é doido, que não pode fazer nada, aí fica tudo muito ruim. Seria muito bom que o CAPS pudesse ajudar a gente nisso. As pessoas ficam com medo do doente ‘mental’ porque pensam que a gente não é gente. Se o povo da rua soubesse que nós não somos doidos, seria melhor. É preciso educar mais a população sobre quem nós somos, e isso pode ser feito em todo lugar, na rua, nas escolas, nas praças e até no rádio. Um dia pode ser que a gente consiga viver sem ser discriminado pelo povo e a vida ficaria bem melhor. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos usuários de um centro de atenção psicossocial à assistência em saúde mental prestada na Rede de sos familiar, comunitário e social, acarretando diversos Atenção Integral à Saúde Mental de Sobral. prejuízos e dificuldades em suas vidas. A compreensão do vivenciar do sujeito com TM na sociedade retoma um entendimento somente possí- DISCUSSÃO vel através da aproximação de sua realidade cotidiana. A desconstrução dos estigmas de incapacidade é construída socialmente, ademais, faz-se relevante e neces- Os discursos dos usuários demonstram clara- sário estabelecer uma nova ética em que o outro tenha mente a existência e a marca danosa de preconceito e o que dizer sobre si e não seja meramente descrito sob estigma, direcionados às pessoas com TM. As afirma- um viés de padronização científica, definindo-se como ções oriundas dos próprios indivíduos vítimas do pre- um conjunto de sinais e sintomas (G; P, conceito favorecem o entendimento do quanto ele está 2007). presente no imaginário subjetivo dos mesmos, bem como no comportamento da população em geral. Entende-se que o fato de uma pessoa apresentar um TM não significa uma precondição para que seja Sampaio e Barroso (1997) chamam a atenção agressiva e violenta. Realmente podem existir situa- para o fato de que nenhuma outra categoria humana, ções nas quais as pessoas com TM poderão manifestar ao longo da história da humanidade, foi vítima de pre- episódios de agitação excessiva ou agressividade, assim conceitos e estigmas como as pessoas que apresentam como também outros indivíduos que não apresentam algum tipo de TM. Embora a sociedade contempo- transtornos mentais manifestam. Tais comportamen- rânea tenha obtido avanços significativos no universo tos são cotidianamente observados no espaço midi- tecnológico, científico e cultural, não consegue ainda ático, na imprensa escrita ou falada, demonstrando diversificar seu modo de relacionar com pessoas em que são justamente os indivíduos considerados ‘nor- TM sem temor ou precaução. mais’ que cometem de forma aterrorizante delitos de Louzã Neto (1996) acrescenta que as pessoas, diversas naturezas. geralmente, relacionam erroneamente a doença men- Sanford (2000) argumenta que quando a pessoa tal à periculosidade e imprevisibilidade, sendo que a com enfermidade mental não adota os padrões con- cultura exerce grande influência na maneira de enca- vencionais aceitáveis da comunidade, poderá ser vista rar a doença mental. como elemento desviante, tornando-se objeto de re- Os discursos dos usuários denunciaram um con- jeição e exclusão social. Há longo tempo, o estigma teúdo de violência, periculosidade, imprevisibilidade da doença mental vem sendo apoiado na noção de que lhes são atribuídos. Comumente o TM é associado agressividade e periculosidade, e isto provavelmente à violência, agressividade, periculosidade e imprevisi- esconde a dificuldade que as pessoas apresentam em bilidade. Como consequência, a pessoa com TM passa se relacionarem com os indivíduos ‘diferentes’. a ser estigmatizada, rejeitada, excluída pela população. Outro aspecto evidenciado no DSC diz respeito à O preconceito, bem como a falta de conhecimento e existência do estigma. O indivíduo com TM é rotulado manejo das pessoas no lidar com os indivíduos com com uma variedade de adjetivos pejorativos presente TM, dificulta a integração desses últimos nos univer- na interlocução com a população. Este aspecto ocasio- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 749 750 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. usuários de um centro de atenção psicossocial • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos na um arcabouço significativo da existência humana. Os indivíduos que se mantêm fora da ‘norma’, O principal fator para a incorporação de sentimentos como ressalta Goffman (1998), são os ‘estigmatizados’, próprios de deficiência, incapacidade e rejeição social. aqueles que por apresentar alguma característica físi- Nesse sentido, ressalta-se o impacto negativo dos ca, social ou cultural diferente de seu grupo respaldam adjetivos sobre o autoconceito das pessoas com TM. uma marca ou estigma dada por outros. Tal situação Entende-se que, quando se coloca um apelido em uma constrói um imaginário da diferença pelo grupo opos- pessoa, há uma grande tendência de esta última ser to, dificultando e inviabilizando a sua plena integração vista pelos indivíduos como sendo somente aquela na comunidade onde estão inseridos. caricatura, carregada de suas peculiares características Está descrito no DSC que as pessoas da comuni- ruins. Assim, corre-se o risco de se menosprezar e não dade apresentam uma tendência em reduzi-los a com- identificar os atributos constitutivos da pluralidade portamentos estereotipados, perpetuando a crença de desse ser humano. que o indivíduo com TM apresenta comportamentos O estigma sentencia para a permanência numa bizarros como rasgar dinheiro, jogar pedra, etc. Estes condição nomeada, e assim aquele que estigmatiza se conteúdos corroboram com os estudos realizados por torna agente corresponsável de tal situação, pois des- Rabelo et al. (1999) e Barros (2004), nos quais as titui do ser ‘estigmatizado’ a possibilidade de ele ex- pessoas com TM foram identificadas pela população plorar e revelar outros aspectos de sua personalidade e por trabalhadores de saúde, respectivamente, me- (J, M.A.S. et al., 2003). diante a interpretação de atitudes expressas ou com- A inclusão social é o desafio do sujeito com TM portamentos considerados inadequados e bizarros, para viver na comunidade. A desconstrução de sua como, por exemplo, tirar a roupa e sair correndo na exclusão no cotidiano, em sua história de vida e no rua, comer areia, e outros. mundo vivido precisa superar o preconceito. O es- No DSC surgem caminhos a serem trilhados pelo tigma e o preconceito em relação ao doente mental complexo campo da saúde mental. A necessidade dos levam ao distanciamento do mesmo da convivência usuários de (re)estabelecer vínculos para condução de pelo mau tratamento recebido. É fato que conquanto sua vida em sociedade impõe aos serviços de saúde o espaço físico mude, dispondo de novos serviços em mental, neste caso o CAPS, fortalecer ainda mais seu substituição ao manicômio, mesmo assim, não signifi- trabalho em rede de conexão solidária. ca dizer que há o deslocamento do espaço excludente Tal fato remete no plano inicial ao trabalho da para o espaço emancipatório. (S; B, 2006) equipe de saúde mental. Limitados, muitas vezes, por A sociedade como um todo apresenta um con- paredes e espaços diminutos, tais trabalhadores inseri- junto conformado historicamente de padrões compor- dos nos serviços substitutivos devem estar conscientes tamentais de normalidade aceitáveis e não aceitáveis de que a atuação na promoção da saúde mental per- pelas formas de relacionamento e poder. O posicio- passa por um olhar voltado para o sujeito em toda sua namento distante do limiar da normalidade constru- complexidade (J, M.S.B. et al., 2006). ída remete a um espaço de exclusão do modo de vida A articulação da Rede de Atenção Integral em daqueles que mantêm o limiar entre a patologia e a Saúde Mental se faz por conexões no espaço subjetivo normalidade. e também na organização política operacional do SUS. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos usuários de um centro de atenção psicossocial Os encontros entre os sujeitos potencializam trocas, No campo das práticas, a resolubilidade amplia- idéias e possibilidades, pois indicam os passos a serem se da dimensão diretiva de uma clínica objetiva e seguidos por todos. A integração entre serviços e insti- argumenta-se pela incorporação de novos fazeres e sa- tuições pode ser promovida por medidas administrati- beres tecnológicos na operação do cuidado em saúde vas que resultem em intercâmbio de trabalhos e tarefas mental para agir no eixo das reais causas do problema comuns para a constituição de uma melhor aborda- do usuário. No trilhar de novas possibilidades, por gem perante as situações vivenciadas. conseguinte, é essencial instrumentalizar-se de ações Na proposição de uma atenção em saúde mental coletivas que evoquem a intersetorialidade e a rede resolutiva, ressalta-se que a segurança assistencial da de referência e contrarreferência eficiente (F; trajetória terapêutica do usuário, ou seja, em sua linha Z, 2004). de cuidado, deve ser permeada pela garantida dispo- Desse modo, pensar a desinstitucionalização e a nibilidade de serviços de qualidade, fluxos usuário- emancipação cidadã dos sujeitos com TM requisita a centrados, mecanismos de referência e contrarreferên- estruturação de uma rede de serviços substitutivos para cia efetivos e dialógicos, todos aptos ao dinamismo que a parcela prejudicada pelo fato, o sujeito (usuário), da saúde com corresponsabilização das equipes para não seja inserido no pior dos mundos: o mundo dos sem a condução compartilhada do projeto terapêutico, vínculo, sem história ou sem espaço (C, 2001). gestão colegiada dos recursos assistenciais e a prática Na realidade cotidiana do CAPS, o usuário torna intersetorial (F; M Jr., 2006). dinâmico o processo de articulação da rede social no A vivência social mais adequada por parte dos seu vivenciar. A interpretação das dificuldades enfren- usuários está determinada pela possibilidade de inter- tadas remete à própria constituição de alternativas po- conexão entre o CAPS, a rede de saúde e a sociedade. líticas, clínicas e terapêuticas apontadas pelos mesmos Ao expressar ‘a vida ficaria bem melhor’, o sujeito in- como diretrizes essenciais para tecer a rede de cuida- tensifica todo o seu trilhar num espaço de exclusão dos em saúde mental coletiva. em que o cotidiano tenso e estigmatizado torna infértil todas as iniciativas de reconstrução do seu modo de viver. CONSIDERAÇÕES FINAIS O agir em saúde contribui para a transversalidade de práticas que possam promover a transformação das concepções constituídas na perspectiva diretiva e limi- Os discursos dos usuários denunciaram a exis- tada da cura ou não da doença mental. No momento tência de um processo de exclusão social, produzido em que o ato em saúde se afasta do cumprimento de pelo preconceito e estigma, impregnados na cultura uma intervenção e propicia a aproximação de uma no- local. Ficou evidente a necessidade de os trabalhadores ção mais ligada ao cuidado, remete ao modelo de inter- de saúde mental da Rede de Atenção Integral à Saúde venção produtor de saúde diferente daquele que sub- Mental direcionar ações de maneira intensiva e articu- mete o objeto (sujeito, ‘paciente’, família, entre outros.) lada com os diversos segmentos sociais. ao poder-técnico (interventor) que acaba destruindo a singularidade de cada indivíduo (A, 2001). Urge a busca integrada e corresponsabilizada de ações permanentes para a transição cultural da popu- Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 87, p. 744-753, out./dez. 2010 751 752 BARROS, M.M.M.A.; PINTO, A.G.A.; JORGE, M.S.B. usuários de um centro de atenção psicossocial • Desafios e possibilidades na rede de atenção integral à saúde mental: o discurso do sujeito coletivo dos lação em relação ao adoecimento mental, pois a exis- ticas intersetoriais e inclusivas para tornar a atenção tência do preconceito e o estigma se configuram as- mais resolutiva, equânime e cidadã. pectos extremamente maléficos que atingem a questão da cidadania dessas pessoas, acarretando-lhes prejuízos diversos na dimensão singular ou coletiva de sua R E F E R Ê N C I A S existência. A validação das práticas da atenção psicossocial se faz no cotidiano dos próprios sujeitos e somente é A, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de possível a emancipação de seus processos vivenciais Janeiro: F; 2007. na comunidade com o resgate amplo de sua cidadania. A, J.R.C.M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de A interlocução com diversos dispositivos sociais e comunitários é essencial para a abertura de espaços que promovam a inclusão social. O processo reformista da atenção em saúde mental institui-se no espaço paradigmático da reprodução social do sujeito com TM, direcionando-o para o local ativo de seu modo de viver. Na constituição da atenção em saúde mental integral e resolutiva é preciso interpor o planejamento, a gestão e a própria clínica na arena de discussão para que ambas as dimensões sejam ressignificadas em prol do cuidado e a da vida. Neste cotidiano tenso, múltiplo e diverso da saúde mental, a doença deve ser colocada em parênteses e a rede de cuidados deve priorizar a transfor- saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 63-72, 2001. 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