Omissão de clíticos em português europeu: complexidade pós-sintáctica ou
verificação de traços?*
Jaqueline Carmona, João Costa, Maria Lobo e Carolina Silva
Universidade Nova de Lisboa
1. Introdução.
É consensual na literatura sobre aquisição de língua materna que os elementos
funcionais se encontram sujeitos a aquisição tardia, embora haja variação
interlinguística relativa aos elementos que são produzidos tardiamente e às taxas de
omissão encontradas para diferentes línguas (ver Radford 1994, Guasti 2002 para
dados relevantes e revisão da literatura). Sendo os pronomes clíticos elementos cuja
sintaxe é dependente da estrutura funcional da frase, espera-se que estes sejam
potenciais candidatos a problemas na aquisição.
Neste artigo apresentamos um sumário de descobertas recentes sobre aquisição dos
clíticos, mostrando que estes podem ser omitidos ou não em função da língua
estudada. Seguidamente, é apresentado um sumário dos resultados de uma experiência
de elicitação de clíticos acusativos de 3ª pessoa do singular no português europeu
desenvolvida em Costa e Lobo (2005), mostrando-se que os dados do português
europeu não apresentam evidência clara a favor de uma alegada correlação entre a
existência de omissão de clíticos e a disponibilidade na língua-alvo de concordância
de particípio passado. Tendo em conta estes resultados, confrontam-se duas hipóteses
de explicação do padrão de omissão encontrado em português europeu: verificação de
traços vs. complexidade pós-sintáctica. Para uma avaliação comparativa destas duas
hipóteses, torna-se relevante alargar o estudo efectuado em Costa e Lobo (2005) de
forma a avaliar o que se passa com clíticos não-acusativos ou reflexos.
É objectivo deste artigo apresentar os resultados preliminares de duas situações
experimentais para a elicitação de clíticos reflexos e dativos de 1ª, 2ª e 3ª pessoas,
mostrando-se que as diferentes taxas de omissão encontradas permitem comparar as
duas hipóteses em avaliação, encontrando-se favorecida a hipótese de complexidade
pós-sintáctica.
2.
Omissão de clíticos em diferentes línguas e hipóteses de análise.
Conforme referido na introdução, é sabido que, em algumas línguas, alguns elementos
funcionais podem ser omitidos nos estádios iniciais de aquisição. Em Wexler et al.
(2003), é apresentada evidência que sugere que a omissão de clíticos não se encontra
generalizada a todas as línguas. Assim, defende-se que em francês e catalão há
omissão de clíticos, mas não em espanhol ou grego. Os autores defendem a existência
de uma dupla correlação: a omissão de clíticos é esperada em línguas com
concordância de particípio passado em tempos compostos e nas idades em que se
encontram infinitivos raiz na linguagem infantil. Por exemplo, em francês, havendo
concordância de particípio passado, conforme documentado em (1), espera-se que
haja omissão de clíticos:
(1) Je les avais faites.
*
A investigação conducente a este trabalho insere-se no projecto “Técnicas Experimentais na
Compreensão da Aquisição do Português Europeu”, financiado pela Fundação para a Ciência e
Tecnologia (POCI/LIN/57377/2004).
Esta hipótese faz predições claras para o português europeu. Não sendo esta uma
língua com concordância de particípio passado, não é esperada a omissão de clíticos.
Esta predição foi avaliada em Costa e Lobo (2005) para clíticos acusativos de 3ª
pessoa. A experiência de elicitação conduzida em Costa e Lobo (2005) foi desenhada
a partir da realizada em Schaeffer (1997) (utilizada em Wexler et al. (2003)), tendo,
no entanto sido adaptada, levando-se em conta o facto de o português europeu admitir
objectos nulos. Esta especificidade do português europeu impede uma avaliação clara
de respostas com omissão, que poderão não constituir casos de omissão, mas casos de
produção-alvo de objectos nulos. Assim, incluíram-se na experiência contextos de
ilha-forte, em que os objectos nulos não são permitidos.
Os resultados alcançados são sintetizados nas seguintes alíneas:
a)
as crianças portuguesas produzem formas nulas em ambos os contextos
testados (frases simples e contextos de ilha-forte), o que revela que existe
omissão de clítico em português europeu;
b)
não se confirmou, portanto, a predição de que esta língua não teria omissão de
clítico por não ser uma língua com concordância de particípio passado;
c)
foram detectadas diferenças face às línguas estudadas em Wexler et al. (2003),
porque a taxa de omissão encontrada é mais elevada em português europeu
(rondando globalmente os 70%) e porque a idade em que se encontra omissão
é mais elevada, não se encontrando relação com idade em que as crianças
falantes de outras línguas produzem infinitivos raiz.
3.
Análises concorrentes para o fenómeno de omissão de clíticos.
Em Wexler et al. (2003), na esteira de outros trabalhos de Wexler, propõe-se que a
omissão de clíticos decorre do efeito de uma restrição sujeita a maturação, a Unique
Checking Constraint. De acordo com esta restrição, uma categoria só pode entrar
numa única relação de verificação de traços. Nas línguas com concordância de
particípio passado, o clítico deve verificar um traço [D] relativo às suas propriedades
e entrar numa outra relação de verificação em AgrOP, reflectindo-se esta nas marcas
visíveis de concordância. A impossibilidade de realizar esta dupla verificação prediz
que os clíticos sejam problemáticos apenas nas línguas com concordância de
particípio passado e que este tipo de concordância, nessas línguas, esteja em
distribuição complementar com a presença de clíticos nos estádios iniciais de
aquisição. Sendo a Unique Checking Constraint responsável pela explicação do
fenómeno infinitivo raiz, espera-se que haja uma correlação em termos de idade entre
esta construção e a omissão de clíticos.
À primeira vista, esta análise é problemática para o português europeu, uma vez que,
como referimos, esta língua exibe omissão de clíticos na aquisição, não se verificando
a correlação com a existência de concordância de particípio passado. No entanto,
conforme referimos, os dados não são completamente comparáveis, uma vez que as
taxas de omissão encontradas são mais altas em português europeu e a omissão se
prolonga até mais tarde no processo de aquisição. Face a estas diferenças, Costa e
Lobo (2005) propõem que a omissão encontrada em português europeu se explique
em termos de complexidade pós-sintáctica. Assumindo que a disponibilidade da
construção de objecto nulo obriga a uma especialização dos contextos em que a
omissão de clíticos não é legítima e tendo em conta que, em português europeu, existe
variação entre próclise e ênclise (o que, conforme mostrado em Duarte e Matos
(2000), é problemático em termos de aquisição), os autores sugerem que o sistema é
complexo, uma vez que obriga a tomadas de decisão entre diferentes outputs
sintácticos convergentes. Inspirando-se na proposta de Reinhart (1999), segundo a
qual, na compreensão, a escolha entre derivações convergentes pode revelar-se
problemática no processamento, Costa e Lobo (2005) sugerem que a escolha entre
múltiplas derivações divergentes pode gerar problemas na produção.
Perante estas duas hipóteses, em termos dos efeitos da Unique Checking Constraint
(UCC) ou em termos de complexidade, torna-se importante encontrar dados que
tornem claro como as comparar, uma vez que seria legítimo supor que uma variante
da UCC permitiria dar conta dos dados do português europeu.1
4.
Comparação entre UCC e complexidade.
Neste trabalho, apresentamos dados relativos à produção de clíticos reflexos, clíticos
dativos e clíticos de 1ª e 2ª pessoa. O racional do trabalho é o seguinte: se se
identificarem casos em que os clíticos não alternem com objecto nulo, espera-se que a
complexidade seja reduzida e a produção melhore. Crucialmente, este tipo de clíticos
permite uma comparação explícita entre as duas hipóteses. De acordo com a UCC, os
diferentes tipos de clíticos não diferem entre si em termos de especificação de traços,
sendo defensável que todos entram em mais do que uma relação de verificação.
Predizem-se, assim, taxas de omissão idênticas para todos os tipos de clíticos. De
acordo com a hipótese de complexidade, espera-se que sejam menos problemáticos os
clíticos que não variam com objecto nulo, uma vez que estes não implicam a escolha
entre múltiplas derivações convergentes.
Vejamos, separadamente, a relevância dos diferentes tipos de clíticos. Os clíticos
reflexos diferenciam-se dos não-reflexos por não variarem com a construção de
objecto nulo, conforme ilustrado em (2) e (3):
(2)
A:
B:
E a Maria?
Não (a) vejo há que tempos.
(3)
A:
B:
E o João?
Não *(se) lava há que tempos.
Os clíticos dativos permitirão confrontar duas hipóteses concorrentes sobre a
construção de objecto nulo na gramática do adulto. De acordo com Raposo (1986),
esta construção encontra-se disponível em contextos acusativos de 3ª pessoa do
singular. Uma visão menos restritiva é apresentada em Costa e Duarte (2001), que
defendem que os objectos nulos ocorrem em contextos de VP não máximo, sendo
portanto substitutos legítimos de constituintes dativos. Se se provar que as taxas de
omissão de clíticos se relacionam com a disponibilidade da construção de objecto
nulo, os dados obtidos poderão contribuir para este debate. Independentemente desta
questão, é consensual que o objecto nulo é excluído em contextos de 1ª ou 2ª pessoa,
conforme ilustrado em (4):
(4)
1
a.
b.
Não *(me) vias há muito tempo.
Não *(te) via há muito tempo.
Em Costa e Lobo (2005a), por exemplo, levantou-se a hipótese de a UCC poder dar conta dos dados
do português europeu, tendo em conta o facto de os clíticos poderem entrar noutro tipo de relação de
dupla verificação. Esta hipótese foi, posteriormente, abandonada, por implicar pôr em causa a natureza
maturacional da UCC.
4.1.
Elicitação de clíticos reflexos.
Em Costa e Lobo (2006), foi conduzida uma experiência de elicitação de clíticos
reflexos e não-reflexos. A metodologia de elicitação foi baseada em Schaeffer (1997),
tendo-se testado as seguintes condições:
a)
b)
c)
d)
Clíticos não-reflexos acusativos de 3ª pessoa do singular;
Clíticos reflexos acusativos de 1ª pessoa do singular;
Clíticos reflexos acusativos de 2ª pessoa do singular;
Clíticos reflexos acusativos de 3ª pessoa do singular.
Ao contrário do que foi relatado para a experiência de elicitação de clíticos acusativos
não-reflexos, não se testaram os contextos de ilha forte, uma vez que, no caso dos
reflexos, não existe variação com objecto nulo nas frases simples.
Participaram desta experiência 24 crianças com idades compreendidas entre os 3 e os
4 anos (com média de idades de 3 anos e 7 meses), provenientes de duas Instituições
Particulares de Solidariedade Social da Margem Sul de Lisboa. Foram testados 17
itens (4 para cada condição com reflexos e 5 para a condição com não-reflexos),
sendo controlada a variação entre próclise e ênclise.
Na tabela seguinte, apresentam-se os resultados globais para a comparação entre
clíticos reflexos e não-reflexos:2
Clítico
Nulo
DP
Reflexos
47,4%
(104/219)
41,5%
(91/219)
11,1%
(24/219)
Não-reflexos
13%
(13/100)
67%
(67/100)
___
4.2.
Elicitação de clíticos dativos.
Em Carmona e Silva (2006), foi conduzida uma experiência de elicitação de clíticos
dativos. A metodologia de elicitação foi semelhante à utilizada na experiência
anterior, tendo-se testado as seguintes condições:
a)
b)
c)
d)
2
Clíticos não-reflexos dativos de 1ª pessoa do singular em frase simples;
Clíticos não-reflexos dativos de 1ª pessoa do singular em ilha forte;
Clíticos não-reflexos dativos de 2ª pessoa do singular em frase simples;
Clíticos não-reflexos dativos de 2ª pessoa do singular em ilha forte;
Nesta apresentação de dados, não separamos as condições por pessoa, uma vez que, devido a efeitos
do desenho experimental, houve dificuldade por parte das crianças em interagir com os bonecos das
histórias apresentadas, havendo várias transferências de 1ª e 2ª pessoa para 3ª pessoa. Para detalhes, ver
Costa e Lobo (2006). Estes problemas foram controlados na experiência sobre dativos.
e)
f)
Clíticos não-reflexos dativos de 3ª pessoa do singular em frase simples;
Clíticos não-reflexos dativos de 3ª pessoa do singular em ilha forte.
Nas frases simples, controlou-se a variação entre próclise e ênclise. Para cada
condição, foram testadas duas frases, obtendo-se um total de 36 itens de teste.
Participaram desta experiência 14 crianças entre os 3 e os 4 anos, provenientes de
infantários do Barreiro e de Queluz (área metropolitana de Lisboa).
Na tabela seguinte, são apresentados os dados globais para a produção de dativos:
Clíticos
Nulo
DP
Pronome forte
NR
9,5%
(48/504)
57,5%
(290/504)
14,8%
(75/504)
15,2%
(77/504)
2,7%
(14/504)
O gráfico seguinte apresenta os resultados obtidos para a produção de clíticos nas
diferentes pessoas:
15
10
5
0
1ªp Sing
2ªp Sing
Ênclise
4.3.
3ªp Sing
1ªp Plur
2ªp Plur
Próclise
3ªp Plur
llha
Síntese dos resultados e discussão.
Os resultados dos dois estudos podem ser sintetizados nos seguintes aspectos
principais:
a)
A diferença entre a produção de clíticos reflexos e não-reflexos revelou-se
significativa, verificando-se uma muito menor omissão de clíticos reflexos.
b)
A taxa de omissão de clíticos não-reflexos dativos e não-dativos é comparável,
sendo de assinalar apenas o facto de, na condição dativa, ao contrário do que
acontece com acusativos, serem produzidos pronomes fortes.
c)
Verificou-se uma maior taxa de omissão de clíticos de 3ª pessoa do que de
clíticos de 1ª e 2ª pessoa.
d)
Tal como tinha sido revelado no estudo de Costa e Lobo (2005) para clíticos
acusativos, a variação entre próclise e ênclise não desempenhou qualquer
papel relevante na produção de clíticos dativos.
Os resultados obtidos parecem-nos favorecer claramente a hipótese de complexidade
em detrimento da hipótese baseada na UCC, uma vez que se pode constatar que, nos
casos em que não há variação com a construção de objecto nulo, as taxas de omissão
são significativamente inferiores. Esta redução de omissão foi verificada quer para os
clíticos reflexos, quer para os clíticos de 1ª e 2ª pessoa. Recorde-se que a hipótese
baseada na UCC prediz que não se verificariam diferenças entre os diferentes tipos de
clíticos, uma vez que para todos eles é sustentável que entrem em mais do que uma
relação de verificação (caso e atracção por Infl, de acordo com Duarte e Matos
(2000)), sendo portanto de esperar taxas de omissão uniformes. De acordo com a
hipótese de complexidade, espera-se que sejam omitidos em maior número os clíticos
que variam livremente com objecto nulo, uma vez que estes obrigam a escolhas póssintácticas entre derivações convergentes.
A condição dativa merece um comentário adicional. Conforme foi referido acima, os
resultados obtidos podem ser interpretados como evidência indirecta a favor da visão
menos restritiva da construção de objecto nulo defendida em Costa e Duarte (2001),
uma vez que as crianças tratam os dativos de 3ª pessoa como as formas acusativas,
produzindo taxas semelhantes de omissão. Ao contrário do que acontece nos
contextos acusativos, porém, observa-se que, na condição dativa, são, por vezes,
produzidos pronomes fortes. Estes, embora considerados marginais, estão presentes
no input, acrescentando complexidade ao sistema, uma vez que obrigam a escolha
entre clítico, objecto nulo e pronome forte.
Finalmente, importa esclarecer uma questão. Uma vez que os clíticos reflexos e os
clíticos de 1ª e 2ª pessoa não variam livremente com objectos nulos, esperar-se-ia que
não fossem omitidos. No entanto, apesar de as taxas de omissão serem inferiores,
observa-se uma omissão bastante elevada, em torno dos 50% para os reflexos. É
importante perceber a que se deve esta omissão. Para clarificar este aspecto, é
relevante comparar estes dados com os obtidos em Costa e Lobo (2005) para os
contextos de ilha forte. Neste trabalho, mostrou-se que no contexto de ilha-forte,
também há omissão de clíticos, mas numa taxa inferior ao das frases simples, havendo
uma maior produção de DPs. Este resultado permite supor que as crianças já são
sensíveis às características especiais deste contexto, embora não tenham atingido
ainda um conhecimento estabilizado. De igual modo, é possível defender que as
crianças distinguem claramente o contexto reflexo do não-reflexo. Assim, torna-se
legítimo colocar a hipótese de que a omissão de clíticos encontrada em português
europeu é uma sobregeneralização da construção de objecto nulo. A estabilização da
produção de clíticos implica conhecimento dos contextos em que a construção de
objecto nulo é excluída. Os dados indicam que, na fase em que estão a ser testadas, as
crianças já exibem alguma sensibilidade a estes contextos embora ainda não tenham
atingido um conhecimento estável sobre a ilegitimidade dos objectos nulos.
Curiosamente, é de referir que as taxas de omissão encontradas nos contextos-ilha e
no contexto reflexo são bastante semelhantes, rondando os 50%.
5.
Conclusão.
Os estudos sintetizados neste artigo sobre produção de clíticos reflexos, dativos e
especificados para pessoa tinham como objectivo a obtenção de dados que
viabilizassem uma comparação de duas hipóteses alternativas para a explicação do
fenómeno de omissão de clítico em português europeu: em termos de verificação de
traços ou em termos de escolhas pós-sintácticas. Mostrou-se que as crianças omitem
menos clíticos reflexos do que não reflexos e menos clíticos de 1ª e 2ª pessoa do que
clíticos de 3ª pessoa. Não se encontrou diferença entre a produção de clíticos
acusativos e dativos. Foi defendido que as assimetrias detectadas entre os diferentes
tipos de clíticos favorecem a hipótese em termos de escolhas pós-sintácticas, uma vez
que esta prevê que haja maior omissão apenas em contextos em que o clítico alterna
com objecto nulo. Uma análise das taxas de omissão permitiu ainda colocar a hipótese
de que a omissão em contextos de não alternância com objecto nulo se deve a uma
sobregeneralização desta construção.
Em termos gerais, os resultados atingidos permitem mostrar que a omissão de clíticos
não é um fenómeno uniforme em termos de variação interlinguística e que alguma
variação detectada pode decorrer de propriedades específicas da língua alvo. Esta
constatação permite levantar a hipótese de que, noutras línguas, a omissão de clíticos
pode estar sujeita à existência de diferentes subtipos de objecto nulo.
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