UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ MARIA AMÉLIA DA COSTA O DIREITO À MORADIA URBANA E A NECESSIDADE DA ANÁLISE DAS NORMAS DO ESTATUTO DA CIDADE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Rio de Janeiro 2007 MARIA AMÉLIA DA COSTA O DIREITO À MORADIA URBANA E A NECESSIDADE DA ANÁLISE DAS NORMAS DO ESTATUTO DA CIDADE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade Estácio de Sá. Orientadora Professora Dr.ª Rosângela Gomes Rio de Janeiro 2007 Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) C837 Costa, Maria Amélia da. O direito à moradia urbana e a necessidade da análise das normas do Estatuto da Cidade à luz do princípio da dignidade da pessoa humana/ Maria Amélia da Costa. – Rio de Janeiro, 2007. 136 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Estácio de Sá, 2007. Bibliografia: f. 131-136. 1. Direto à moradia 2. Direito constitucional. 3. Estatuto da Cidade. I. Título. CDD 363.5 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO A dissertação: O DIREITO À MORADIA URBANA: A NECESSIDADE DA ANÁLISE DAS NORMAS DO ESTATUTO DA CIDADE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA elaborada por: MARIA AMÉLIA DA COSTA e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo Programa de Pósgraduação em Direito como requisito parcial para a obtenção de título de MESTRE Rio de Janeiro, de 2007. BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Prof.ª Dr.ª Rosângela Gomes Presidente Universidade Estácio de Sá __________________________________________ Prof. Dr. . Universidade Estácio de Sá __________________________________________ Prof. Dr. . Universidade . Aos meus queridos pais, Geraldo e Elen. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, por tudo, agradeço a Deus. Aos meus pais, agradeço pelo carinho, confiança e apoio em todos os momentos e por me fazerem acreditar que o aperfeiçoamento através da formação moral, cultural e acadêmica é importante para a transformação do mundo num lugar melhor. A minha irmã, que me inspira a ser disciplinada e obstinada. Agradeço a todos os meus amigos que compartilham comigo as alegrias das conquistas diárias e aqueles que, de alguma forma, contribuíram diretamente para a elaboração deste trabalho. Agradeço aos professores do Programa de Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá, que além dos conhecimentos transmitidos, se mostraram excelentes colaboradores e parceiros durante todo o curso. Em especial, não poderia deixar de agradecer à Professora Maria Teresinha, pelo incentivo, pela dedicação e pela disposição que oferece a todos os alunos, e à Professora Rosângela Gomes, minha orientadora, pelos valiosos ensinamentos e recomendações. RESUMO O direito à moradia constitui um direito fundamental social e ao mesmo tempo um direito humano. É um direito reconhecido internacionalmente em diversos documentos, amparado pela Constituição da República e possui, na legislação infraconstitucional, instrumentos que visam efetivá-lo, como os encontrados no Estatuto da Cidade, que podem ser destinados à efetivação do direito à moradia urbana. Devido à tamanha importância para a vida, a saúde e a personalidade do ser humano, a efetivação deste direito deve ser analisada levando em conta o princípio da dignidade da pessoa humana. A pesquisa possui caráter documental e bibliográfico, tendo referências a documentos nacionais e internacionais, legislação nacional e à melhor doutrina nacional. Procurou-se demonstrar a necessidade da análise das normas do Estatuto da Cidade que oferecem instrumentos para a efetivação do direito à moradia urbana sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana, de forma incisiva, chegando-se a conclusão de que esta forma de análise é primordial para que se promova a moradia adequadamente, conforme os padrões internacionais determinados pelos documentos de ordem internacional, e para o cumprimento dos objetivos da República Federativa do Brasil. Palavras-chave: Direitos fundamentais, direito à moradia, dignidade da pessoa humana. ABSTRACT The right to the housing constitutes a fundamental social right and, at the same time, a human right. This right is internationally recognized in several documents, supported by the Republic Constitution and has in the infraconstitutional legislation, instruments that aim at its accomplishment, like those found at the City Statute, that can be destinated to the accomplishment of the right to the urban housing. Due to such importance to life, to the health and to the personality of the human being, the accomplishment of this right must be analyzed taking into account the principle of human dignity. The research has a documentary and a bibliographical character, making references to national and international documents, national legislation and to the greatest national doctrine. It’s goal was to demonstrate the necessity of analyzing the rules of the City Statute, which offers instruments to the accomplishment of the right to the urban housing under the prism of the principle of the human dignity, in an incisive way, getting to the conclusion that this analysis form is primordial to the proper promotion of the residence, according to the international standards determined by documents of international order, and for the fulfillment of the purposes of the Federative Republic of Brazil. Keywords: Fundamental rights, right to housing, human dignity. SUMÁRIO Introdução ................................................................................................................................ 9 Capítulo 1 A Dignidade Humana como Fundamento do Direito à Moradia ..................14 1.1 Considerações Iniciais. A busca pela ética da dignidade .............................................14 1.2 Justificação filosófica da dignidade da pessoa humana ...............................................17 1.3 Dimensão individual e transindividual da dignidade ...................................................20 1.4 Dignidade, igualdade e liberdade .................................................................................22 1.5 Natureza Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana no Direito Brasileiro ..................24 1.6 Aplicação do princípio da dignidade humana na promoção e proteção do direito à moradia................................................................................................................................26 Capítulo 2 O Direito à Moradia como um Direito Humano ............................................30 2.1 Breves esclarecimentos sobre o reconhecimento, proteção e promoção dos direitos humanos .............................................................................................................................30 2.2 Proteção da Moradia no Sistema Internacional de Direitos Humanos .........................34 2.2.1 Comentário Geral nº. 4 – Direito à moradia adequada .......................................39 2.2.2 Comentário Geral n.º 7 – O direito à moradia adequada – despejos forçados ....42 2.2.3 As Declarações de Vancouver e Istambul para Assentamentos Humanos e a Agenda Habitat ............................................................................................................43 Capítulo 3 O Direito Constitucional à Moradia .................................................................52 3.1 Considerações Iniciais. O reconhecimento expresso do direito à moradia como um direito social .......................................................................................................................52 3.2 Direitos fundamentais sociais ......................................................................................54 3.3 Fundamentação ética dos direitos sociais ....................................................................59 3.4 Realização dos direitos sociais a partir da norma constitucional .................................61 Capítulo 4 A tutela da propriedade pós Constituição de 1988 e sua influência nos direitos relacionados à terra urbana ....................................................................................69 4.1 Considerações iniciais sobre a relação entre moradia e propriedade ...........................69 4.2. Breve histórico do direito de propriedade no Brasil ...................................................71 4.3. Função social da propriedade no Brasil pós Constituição de 1988 .............................75 4.3.1. A função social da propriedade do solo urbano .................................................79 Capítulo 5 O Direito à Moradia e o Estatuto da Cidade ...................................................84 5.1 Considerações Iniciais ..................................................................................................84 5.2 O Estatuto da Cidade ....................................................................................................87 5.2.1 Diretrizes Gerais .................................................................................................91 5.2.2 Plano Diretor e o Direito à Moradia ....................................................................95 5.2.3 Gestão Democrática da Cidade ...........................................................................99 5.2.4 Outros instrumentos jurídicos do Estatuto da Cidade e sua influência no Direito à Moradia adequada ......................................................................................................104 5.2.4.1 Usucapião Especial de Imóvel Urbano ....................................................105 5.2.4.2 Direito de Superfície ................................................................................110 5.2.4.3 Direito de Preempção ...............................................................................113 5.2.4.4 Outorga Onerosa do Direito de Construir ................................................115 5.2.4.5 Transferência do Direito de Construir .....................................................117 5.2.4.6 Consórcio Imobiliário ..............................................................................118 5.3 Concessão e Autorização de Uso Especial – Medida Provisória n.º 2.220 de 04 de setembro de 2001 .............................................................................................................120 5.4 O Estatuto da Cidade e a Pessoa Humana ..................................................................123 Conclusão ..............................................................................................................................125 Referências ............................................................................................................................131 Introdução Morar é uma necessidade do ser humano. Antes de tudo é uma necessidade. É uma necessidade dependente da terra, assim como a alimentação, e anterior a qualquer tipo de ordenação a que se submeta esta terra. A partir do momento em que o direito começou a tomar posições acerca da disciplina da propriedade e do uso da terra, de alguma forma passou a influir na questão da moradia. Por ser uma necessidade ligada à sobrevivência, o ato de morar independe da existência de qualquer relação jurídica, a priori, que possa ser estabelecida entre a pessoa e a terra onde ela exerce a moradia. Tendo uma dependência do solo, o direito à moradia passa a ter também uma relação particular com o direito de propriedade, e poderá ser exercido pacificamente ou em conflito com este. Conflito aqui no sentido de ser exercido sem o consentimento do proprietário da terra, em situação de irregularidade. A moradia, por outro lado, também é vista como uma das funções da cidade, ao lado do trabalho, da circulação e recreação das pessoas das pessoas1, e por isto, uma política urbana não pode se furtar a preocupação com a manutenção, promoção e proteção deste direito. O tema escolhido para a presente dissertação, direito à moradia, se insere na linha de pesquisa “Direitos Fundamentais e Novos Direitos”, por se tratar a moradia de um direito fundamental, e o direito à moradia, contextualizado dentro dos parâmetros de cidade que se tem hoje, com os problemas que apresenta, constitui um desafio da modernidade, requerendo novos direitos que o tutelem. A falta de moradia, ou a falta de moradia adequada, é um problema presente no cenário mundial, atribuído à globalização, à má distribuição de riquezas, às guerras, a 1 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1996, p.748. heranças históricas de exploração e a outros tantos fatores, e particularmente, um problema das cidades ao redor de todo o mundo. A grande concentração de pessoas no espaço urbano faz com que as políticas voltadas à habitação regular, quando existentes, não consigam dar conta de suprir as necessidades, isso sem contar que a má distribuição de riquezas, a pobreza e a miséria deixam de fora deste cenário centenas de milhares de pessoas que acabam por habitar em condições subumanas de existência. Daí a necessidade de se tutelar o direito à moradia, buscando a realização da moradia adequada. A moradia adequada, segundo os padrões da Agenda Habitat, documento que se verá, da maior importância ao assunto direito à moradia, consistirá em habitações que sejam sadias, seguras, acessíveis e a preços viáveis, que sejam providas dos serviços básicos, como água, energia elétrica, saneamento, esgoto, coleta de lixo, que sejam providas de áreas de lazer, que estejam livres de qualquer discriminação em relação à habitação e também no que se refere à garantia legal da posse. A proteção da moradia não é senão a proteção da moradia adequada, ainda que o qualificativo possa não estar presente no texto legal, como ocorre com o texto constitucional brasileiro2; e a moradia adequada não deixa de ser também, aquela moradia digna, ou seja, considerada digna pelo senso comum das pessoas e que possa abrigá-las e às suas famílias, constituindo espaço de exercício de intimidade e vida privada, o que faz o direito à moradia fazer parte também da esfera dos direitos da personalidade. No Brasil, a questão da moradia não difere do cenário mundial, especialmente no ambiente urbano. Isso é devido a uma diversidade de fatores. Primeiramente, pela herança histórico das terras no Brasil. A má distribuição destas terras é um fator que vem refletir na atualidade. Outro fator é a má distribuição de riquezas, que faz com que grande parte da população não tenha acesso ao mercado regular da terra. Também contribuem para o inchaço dos grandes centros urbanos brasileiros a falta de investimento em cidades do interior, principalmente em empregos e infra-estrutura das cidades, e a caracterização da agricultura pela mecanização, que faz com que as pessoas saiam do interior na ilusão de encontrarem uma melhor condição de vida e de trabalho nas cidades. Esta concentração de pessoas no espaço urbano termina, em grande parte das vezes, contribuindo para a existência de ocupação irregular da terra urbana, mais comumente na periferia, locais onde estas pessoas vão exercer a moradia. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. O direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2003. Volume 46.p. 211. O presente trabalho irá se dedicar a esta modalidade de moradia: a moradia exercida no espaço urbano, devido à relevância do tema nos dias atuais. A questão das ocupações irregulares nas cidades brasileiras é um problema que desafia não só o direito, mais diversas outras ciências, como a política, a economia, a geografia, a arquitetura, além das ciências biológicas por causa da preocupação com o meio ambiente natural, que unem esforços para tornar a cidade um local melhor para se viver. A realização da moradia adequada no ambiente urbano é uma das grandes preocupações urbanísticas, e tanto é assim, que diversas normas diretamente e indiretamente relacionadas a este direito, estão previstas no Estatuto da Cidade, lei que traz como proposta a implementação da política urbana. A abordagem escolhida para o tema foi a da análise das normas do Estatuto da Cidade à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Explica-se. O Estatuto é uma lei que se destina à realização da política urbana. Assim, os instrumentos nele previstos possuem um elevado grau de aplicação discricionária, e serão aplicados de acordo com o caso concreto encontrado em cada município, necessitando de uma base principiológica coesa. Desta forma, o objetivo da presente dissertação será demonstrar o quão necessária é uma análise destas normas do Estatuto da Cidade, em especial das relacionadas à promoção e à proteção da moradia urbana, sob o prisma da dignidade da pessoa humana, para que se evitem danos à pessoa humana. Esses danos são relacionados, em grande parte das vezes, à problemática da falta de segurança da posse, o que faz com que as pessoas fiquem vulneráveis a remoções, fiquem afastadas das políticas de melhoria do espaço urbano, e até mesmo fiquem desprovidas de crédito para financiamentos, por não possuírem o imóvel onde moram. Por outro lado, como a cidade é um ambiente com o qual diversas ciências se preocupam, é plenamente possível, em alguns casos tentador, que a análise das normas do Estatuto da Cidade possa ser feita apenas levando em conta aspectos estruturais da cidade, o que também tende a repercutir em sérios danos às pessoas que habitam naquele ambiente. De uma forma ou de outra, o princípio é extremamente relevante para a questão, e por isso a escolha desta abordagem. A pesquisa, portanto, se restringiu as normas do Estatuto da Cidade que tendem a promover e a proteger a moradia exercida no espaço urbano, não pretendendo abordar a totalidade de aspectos que envolvem o qualificativo “adequada”, mas especialmente aqueles que se destinam à proteção e segurança da posse e à regularização das áreas urbanas, sob o enfoque do princípio da dignidade da pessoa humana, ressaltando a importância de ter uma moradia numa posse segura como um dos fatores que compõem a vida humana digna. A pesquisa possuiu caráter documental e bibliográfico, tendo-se recorrido à doutrina nacional, havendo também algumas menções à doutrina estrangeira, documentos nacionais e internacionais e legislação nacional. A dissertação foi estruturada em cinco capítulos. O primeiro capítulo – A Dignidade da Pessoa Humana como fundamento do direito à moradia – vai demonstrar como o princípio atua fundamentando e otimizando o direito à moradia e sua aplicação. Para isto, primeiramente se discorre sobre a necessidade da busca da ética pela dignidade, tendo em vista toda a evolução histórica dos direitos do homem. Passa-se depois para a justificação filosófica da pessoa humana, item que também, por conseqüência, confere embasamento filosófico a todo o tema, onde se faz referências às diversas concepções filosóficas sobre a pessoa humana e a evolução destas concepções até o pensamento kantiano, que consagra o homem como um fim em si mesmo. Em seguida, faz-se uma abordagem das dimensões individual e transindividual da dignidade, necessárias à compreensão do direito na atualidade, e também das relações entre dignidade, liberdade e igualdade. Por fim, aborda-se a natureza jurídica da dignidade da pessoa humana no direito brasileiro. O segundo capítulo – O direito à moradia como um direito humano – contém a trajetória da tutela deste direito pelos organismos internacionais, que o reconhecem como um direito humano, ligado à sobrevivência, ao bem-estar e ao desenvolvimento. Neste capítulo são enumerados diversos documentos que tratam do tema sob inúmeros aspectos e que servem, não apenas como normas quando recepcionados pelo direito pátrio, mas principalmente como referências à conceitos que muitas vezes a legislação não traz, como é o caso da Agenda Habitat, que define uma série de conceitos, metas, estratégias e políticas para a promoção da moradia adequada e dos assentamentos humanos sustentáveis. O terceiro capítulo – Direito Constitucional à Moradia – inaugura o tratamento do assunto pelo direito brasileiro. Neste capítulo está inserido o reconhecimento do direito à moradia como um direito fundamental pela Constituição da República, a importância do reconhecimento dos direitos sociais na ordem constitucional, e o caminho que percorreram até se dar o reconhecimento. Não podia deixar de constar no capítulo a menção à problemática da aplicabilidade, eficácia e efetividade das normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais e direitos fundamentais sociais, uma vez que constitui séria discussão na doutrina pátria e estrangeira. O quarto capítulo – A tutela da propriedade pós Constituição de 1988 e sua influência nos direitos relacionados à terra urbana – vai falar das relações entre a moradia e a propriedade, fazendo um breve histórico de como se desenvolveu o direito de propriedade no Brasil, a sua tutela pelas constituições do país, e como isto veio influenciar a disposição das terras que se tem hoje, e qual a conseqüência disto no direito à moradia na cidade. Este capítulo vai abordar também a questão do princípio da função social da propriedade e sua implicação atual em todos os direitos relacionados à terra. O quinto capítulo – O Direito à Moradia e o Estatuto da Cidade – vai tratar da questão da moradia inserida no Estatuto da Cidade. Primeiramente é feita uma abordagem da problemática urbana na atualidade, com referências históricas que justificam determinados problemas que persistem até hoje, e a inserção da política urbana no texto da Carta de 1988. Depois é feita menção ao Estatuto da Cidade em si, seus antecedentes, seus propósitos, seus instrumentos. É dada ênfase ao Plano Diretor e à Gestão Democrática da Cidade. Por fim são analisados diversos instrumentos do Estatuto da Cidade que incidem diretamente sobre o problema da moradia urbana, instrumentos estes que vão proporcionar a regularização fundiária, bem como constituir alternativas à implantação de políticas habitacionais. Juntamente a este capítulo, é tratado o objeto da Medida Provisória 2.220 de 4 de setembro de 2000, a Concessão de Uso Especial, por se tratar de instrumento que estivera previsto no texto do Estatuto, mas que fora objeto de veto. Esta é, portanto, a proposta de abordagem do tema, que procura contribuir para seu estudo, de maneira a mostrar a importância de um enfoque sob o qual pode ser analisado: o enfoque do princípio da dignidade da pessoa humana. Capítulo 1 A Dignidade Humana como Fundamento do Direito à Moradia 1.1 Considerações Iniciais. A busca pela ética da dignidade. A idéia de moradia adequada encerra em si diversas outras idéias, dentre as quais a de moradia digna. No entanto, “dignidade” não é um conceito que se ligue semanticamente ao conceito “moradia” por si só. É possível se imaginar o que seja moradia segura, moradia salubre, independente de se imaginar a quem essa moradia serve. Moradia “digna”, entretanto, é um conceito que foge das qualificações técnicas do que seria uma moradia adequada e vai depender de outro conceito para poder ser imaginado e descrito: o conceito de pessoa, e mais além, de sua dignidade. Assim, diante da necessidade de se saber o que é uma moradia digna, serão necessárias considerações a respeito do significado de dignidade da pessoa. Dignidade da pessoa humana é um valor a que se tem recorrido freqüentemente a fim de dar ao direito uma interpretação que favoreça ser humano levando em conta a sua dimensão de pessoa, acima de qualquer outra. O direito contemporâneo tem experimentado essa valorização da pessoa, tanto no aspecto normativo, quanto no aspecto jurisdicional, numa movimentação direcionada a uma atuação ética. O direito está sempre buscando adaptar-se à realidade humana; através dele o homem pôde realizar conquistas importantes por gozar de proteção no exercício de algumas faculdades. No entanto, o direito se vê hoje no desafio de proteger a pessoa num mundo repleto de paradoxos, como a evolução científica versus o descontrole de doenças que assolam a humanidade, a evolução tecnológica que tem um resultado mais exclusivo do que inclusivo, e a miséria mundial em proporções injustificáveis. Assim, passa-se a se observar uma tendência à busca da solução dos problemas com base num respaldo ético, onde, por vezes se vislumbra a necessidade de se abdicar de princípios de liberdade outrora conquistados. É o movimento de adequação do direito à realidade em constante modificação, e ao mesmo tempo um esforço de transformação da realidade tal qual se apresenta através das decisões políticas3. E é nesse movimento que a dignidade humana, traduzida em princípio, tem interferido em composições legislativas, decisões judiciais e definição de políticas. Para que se entenda a incidência tão difundida deste princípio no quadro atual, é necessário que se trace algumas linhas a respeito da conquista dos direitos do homem e também da sociedade, uma vez que o fato histórico exerce e exerceu sempre grande influência na determinação dos direitos ao longo dos tempos4. Pode-se considerar como um grande marco de conquistas de direitos do homem as Declarações dos Estados Norte-americanos e da Revolução Francesa, declarações estas resultantes de revoluções, que tiveram por ideal o estabelecimento de uma nova ordem de direitos. Esta nova ordem de direitos acolhia teorias filosóficas que justificavam a liberdade e a igualdade dos homens e representam a vitória do Estado Liberal de direito sobre a forma absoluta de poder vigente até então. Emergem aqui idéias como a soberania da vontade geral que dirigirá as forças do Estado para o bem comum5, bem como os limites deste Estado, ou seja, espaços onde será exercida a liberdade das pessoas particulares. Neste ponto, Rousseau6, um dos importantes teóricos da época, faz a distinção entre os direitos do cidadão e do soberano, e vai mais além, dizendo que cada um aliena de seu poder, seus bens e sua liberdade conforme lhe convém, e isto constitui os compromissos que ligam os homens ao corpo social. Nas idéias deste teórico do Estado Liberal são identificadas as grandes conquistas das pessoas neste período: a liberdade – a liberdade de contratar, de ter bens e de ter esta liberdade protegida pela lei, a liberdade de viver sob um regime legitimado pela vontade das pessoas, fundado num contrato social; e a igualdade dos homens, perante as leis por eles mesmos instituídas. 3 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 71. 4 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25. 5 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Tradução de Lourdes Santos Machado. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 43. 6 Ibidem, p.48-49. As Declarações imprimem, sem dúvidas, um caráter individualista a este novo cenário pós-revolução, pelo que sofreram críticas. Mas representam um enorme avanço da humanidade na conquista da liberdade, que daquele momento em diante, nos momentos em que foi suprimida, jamais deixou de ser almejada. O movimento liberal, em especial a Declaração francesa, sofreu a crítica marxista no sentido de que todo o esforço foi em prol da classe burguesa e contra a aristocracia. As conquistas de liberdade e igualdade formal deste período não foram suficientes para coibir injustiças que seriam verificadas no decorrer da história, mas sem dúvida colocaram o homem, deste momento em diante, num novo lugar no cenário político e jurídico. Não se pode negar, como afirmado por Bobbio7 que “a afirmação dos direitos do homem, in primis os de liberdade (ou melhor, de liberdades individuais), é um dos pontos firmes do pensamento político universal, do qual não mais se pode voltar atrás”. E esta idéia não foi abandonada. A partir deste marco que politicamente colocou o homem como titular do poder de realização de escolhas sobre a própria vida, e apesar dos momentos históricos em que se tentou boicotar as conquistas humanas, dentre eles as duas grandes guerras ocorridas no século XX e períodos ditatoriais na história de vários países, os valores de liberdade e de igualdade conseguiram permanecer e, através deles, continuou sendo realizada ao longo da história a busca pela concreta efetivação dos direitos humanos. Particularmente de 1948, ano da Declaração dos Direitos do Homem aprovada pela Assembléia das Nações Unidas, aos dias atuais, é incessante a busca pela efetivação dos direitos humanos, através de um sem número de documentos firmados em acordos internacionais onde fica nítido que o destinatário final de todo esse trabalho é a pessoa humana. A dignidade da pessoa humana como fundamento dos direitos humanos é uma concepção que passa a ser incorporada por os documentos relacionados a direitos humanos, integrantes do denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos.8 Também os ordenamentos jurídicos atuais têm a pessoa humana como destinatário final de suas normas, e neles atuam ao lado do princípio de liberdade os princípios da democracia e da solidariedade, com a finalidade de otimizar a aplicação da norma jurídica e impedir que sejam cometidos abusos em nome da lei, através de um trabalho 7 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 113. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 146. 8 de interpretação mais favorável à proteção da pessoa. Como bem lembra Maria Celina Bodin de Moraes9: Tais princípios, que consubstanciam valores, tomam o lugar das normas jurídicas quando estas se mostram arbitrárias ou injustas, modificando-as para que reflitam o valor sobre o qual se funda, na atualidade, grande parte dos ordenamentos jurídicos, isto é, o valor da dignidade da pessoa humana. Expresso agora nos textos constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana vai repercutir não só na formação, mas principalmente na aplicação das leis, inclusive nas normas de direito privado, deixando de ser apenas uma mera aspiração a ser realizada para passar a ter aplicação direta nas relações jurídicas. A definição de dignidade da pessoa não é feita, entretanto, pelo ordenamento jurídico. Por trás da construção jurídica há o respaldo da construção filosófica sobre a pessoa a justificar todo este esforço protetivo. 1.2 Justificação filosófica da dignidade da pessoa humana. Segundo Battista Mondin10, o valor do indivíduo é um dado da revelação cristã, ou seja, através do cristianismo é que foi desenvolvida a conceituação filosófica do ser humano, e não apenas se tomou o conceito de pessoa como um ato de fé. Não é seguro dizer que tenha sido exclusivamente a religião cristã a elaborar a concepção de dignidade da pessoa11, mas, sem dúvida, com base nas referências do Antigo e Novo Testamento é que surge toda uma construção filosófica a respeito do papel do homem no mundo e sua relação com Deus, e a partir de então é sistematizado um pensamento sobre quem é o homem e qual o seu valor. O pensamento filosófico cristão tem como principais referências Santo Agostinho, na Idade Antiga e São Tomás de Aquino na Idade Média, que vão trabalhar os conceitos de individualidade e singularidade e de autonomia do ser humano, respectivamente. Nestas linhas, Battista Mondin12 explica que Agostinho reconhece na pessoa a individualidade, a singularidade, ao utilizar o termo pessoa, que seria adequado a se aplicar 9 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. Cit., p. 67-68. MONDIN, Battista. O homem, que é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. Tradução de R. Leal Ferreira e M. A. S. Ferrari. São Paulo: Paulus, 1980, p. 285-286. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 29-30. 12 MONDIN, Battista. Op. Cit., p. 286. 10 distintamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, sem que se fizesse deles três deuses distintos e ao mesmo tempo considerando sua individualidade; Tomás de Aquino apresenta como fundamento último da personalidade a autonomia no ser por parte de uma realidade racional, ou seja, pelo próprio ato de ser que completa sua realidade em si mesma e não mais se comunica com o outro. Além do pensamento cristão, explica também que um novo conceito de pessoa surge então com Descartes, pelo qual a pessoa é definida em relação à sua autoconsciência, porque pensa a si mesma e por isso é singular, ressaltando que o conceito cartesiano teve influência decisiva na construção filosófica que se lhe sucedeu, para qual o homem ser pessoa é demonstrar que possui autoconsciência. Faz alusão também à definição dada por Kant, segundo a qual a pessoa será identificada como um fim em si mesmo em todas as suas ações, e não um objeto a se utilizado como simples meio13. Battista Mondin14 considera como insuficientes essas construções filosóficas que pretendem definir a pessoa uma vez que dizem pouco para dizê-la adequadamente, pois, apesar de sua força individual, a pessoa conserva em si uma abertura intencional através da qual pode se comunicar com o mundo, com os outros e com Deus, identificada como autotranscendência; a autotranscendência seria sinal da espiritualidade, que apenas o homem possui, diferentemente das coisas, e também nela estaria a dinamicidade, propriedade da personalidade que faz com que o homem seja uma “mina” de possibilidades, sendo cada pessoa uma conquista. Foi o cristianismo que desenvolveu a concepção individual do homem; no cristianismo a condição de pessoa é ressaltada pois, o que importa é a relação do Deus com o homem individual, e não com uma nação ou um Estado, como ocorria nas demais religiões antigas. Esta concepção faz com que haja uma mudança de foco a respeito do comportamento ético do homem. O primeiro resultado desta mudança seria no sentido de que a virtude passa a vir da relação do homem com Deus e não com a cidade, e o segundo de que os homens são dotados de vontade livre, sendo que o impulso primeiro desta vontade se dirige à transgressão das leis divinas e por isso os homens precisam do auxílio divino para se tornarem morais. Esse auxílio vem através da lei divina revelada, que trará a idéia de dever15. A idéia do dever permanece mesmo após a filosofia moral se distanciar dos princípios teológicos e da fundamentação religiosa da ética, constituindo marca importante da 13 MONDIM, Battista. Op. Cit., p. 287. Ibidem, p. 296-298. 15 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995, p. 342-343 14 concepção ética universal, bem como outro elemento na constituição da moralidade ocidental incluído pelo cristianismo, que foi a idéia da intenção, o que fez com que o dever se referisse não só às ações visíveis mas também às intenções visíveis16. A exposição sobre o dever será também trazida pelo pensamento Kantiano, no final do século XVIII, que vai completar o processo de secularização da idéia de valor do homem e de sua dignidade17. Kant18 constrói o seu pensamento direcionado a humanidade e a todo ser racional. Coloca o dever como a expressão da lei moral em nós, resultado da imposição que a razão prática (liberdade como instauração de normas e fins éticos) faz a si mesma; e pela obediência aos valores dados pelo dever, se tem a autonomia. Para Kant19 a vontade autônoma vai se determinar a si mesmo agindo em conformidade com a representação de certas leis; nesse agir do homem, tanto quando direcionado a si próprio quanto direcionado aos outros, ele deve sempre ser considerado como um fim, e nisto consistirá o imperativo prático: “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. Kant20 vai reconhecer que as coisas têm um preço quando podem ser substituídas por algo equivalente; e as coisas que não tem preço, que não admitem equivalência, que estão acima de qualquer preço, compreendem uma dignidade; e completa dizendo que apenas a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as duas únicas coisas providas de dignidade, e seu fundamento é a autonomia (possibilidade que proporciona o ser racional de participar na legislação universal e o torna, por meio disso, apto a ser membro de um possível meio dos fins). O pensamento de Kant não foi o único a se desvencilhar da construção cristã sobre o tema da pessoa humana, mas sem dúvida foi um dos de maior expressividade e repercussão. Nele a doutrina jurídica terminou por identificar, e identifica ainda, uma base filosófica que fundamenta a dignidade humana, em especial por afastar qualquer idéia de instrumentalização do ser humano ao considerá-lo como fim e não como meio 21. E apesar das 16 CHAUÍ, Marilena. Op. Cit. p. 343-344. SARLET, Ingo Wolfgang. Op.Cit., p. 32. 18 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006, p.61. 19 Ibidem, p. 57-59. 20 Ibidem, p. 65-66. 21 SARLET, Ingo Wolfgang, Op. Cit., p.35-36. 17 críticas que sofreu é inegável seu valor como referência para a justificação jurídica da dignidade da pessoa humana. 1.3 Dimensão individual e transindividual da dignidade. Em que pese todos os esforços filosóficos que pretenderam justificar a dignidade da pessoa humana, eles não parecem ser suficientes para os que pretendem definila. Definir dignidade humana é uma tarefa complexa como as linhas seguintes irão demonstrar. A definição de dignidade é necessária para justificar a sua proteção jurídica, para saber em que aspectos da existência humana, das relações entre os homens e entre os homens e o Estado ela pode sofrer ofensas, e isto também na intenção de não se banalizar a aplicação do princípio que a guarda, utilizando-o somente nas devidas ocasiões, a fim de que não se fuja da ideal técnica jurídica e correta interpretação constitucional22. A postura hermenêutica de generalização deste princípio, como alerta Maria Celina Bodin de Moraes23, pode a ele atribuir um grau de abstração demasiadamente intenso, o que pode tornar impossível a sua aplicação. Ao contrário do que ocorre com outros direitos fundamentais, a proteção da dignidade não ocorre por normas que tratam especificamente de aspectos da vida humana, como a intimidade, a integridade física, a propriedade, e a vida, mas é protegida como sendo um valor, um valor que identifica o ser humano como tal24, e não como um direito, uma vez que não se identifica nela uma idéia de concessão, de dever, de faculdade ou de contrato, como se identifica nos direitos. O único pressuposto para a existência da dignidade é a condição humana em si; uma vez que o homem é racional e livre a se autodeterminar ele possui dignidade e nada poderá diminuí-lo desta condição. A partir disto a dignidade será reconhecida como valor e, transformada em princípio dentro do ordenamento jurídico, servirá de fundamentação para outros direitos da pessoa. No entanto, a dignidade não faz apenas papel de fundamento. É real, deve ser reconhecida e respeitada, pois é passível de sofrer ofensas concretas; ao mesmo tempo independe de circunstâncias reais para existir, existe por si, é atributo inerente a pessoa. Todas 22 Como no julgamento dos Embargos de Declaração em MS n.º 11870, de 13/12/2006, publicado no DJ 12/022007, Rel. Min. Eliana Calmon, cujo voto sustentou que um ato administrativo não pode ser atacado mediante alegações de ofensas a princípios constitucionais genéricos, tais como dignidade da pessoa humana. 23 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. Cit., p. 84. 24 SARLET, Ingo W. Op.Cit., p. 40. as pessoas a possuem, e de todas as pessoas a dignidade deve ser tida em conta, sendo este o entendimento que se depreende do artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. O mesmo artigo reconhece que todos os homens são dotados de razão e consciência devendo assim agir em relação aos outros com espírito de fraternidade. Não é difícil identificar no texto da declaração as fortes referências à matriz kantiana identificando os principais elementos que compõem a dignidade da pessoa humana como sendo a autonomia e a autodeterminação da pessoa. Cabe aqui uma ressalva importante no sentido de que se leia esta noção de dignidade com reservas, considerando-a como a pessoa em abstrato, potencialmente capaz de se autodeterminar, não sendo necessários atos por parte desta pessoa que exprimam sua autodeterminação. De fato, se fossem consideradas dotadas de dignidade apenas as pessoas com essa real capacidade de autodeterminação se estaria a afirmar que os absolutamente incapazes não seriam dotados de dignidade, o que não ocorre. Ao contrário, estes possuem a mesma dignidade de uma pessoa absolutamente capaz25. Na busca por uma construção do conceito de dignidade humana é evidente a exposição do caráter individualista que o pensamento kantiano confere a noção de dignidade da pessoa, por centralizar no próprio homem o seu fim. Este caráter, no entanto, não impede que seja enxergada também uma dimensão transindividual da dignidade, traduzida como sendo a dignidade humana da humanidade26. De fato, a proteção da dignidade se dá em relação à pessoa individualmente considerada, mas, é impossível negar a dimensão coletiva da existência humana e a partir daí uma dimensão transindividual da dignidade da pessoa, mesmo que se leve em conta que a dimensão individual da dignidade é a mais relevante. Desta forma é importante que se busque sempre evitar a possibilidade de privilegiar a dignidade humana transindividual em detrimento da dignidade humana individual, pois a admissão da dimensão transindividual da dignidade não é autorizativa do sacrifício da dignidade individual em favor da comunidade. A condição plural da pessoa é justificada, como afirma Hannah Arendt27, pelo fato dos homens serem os mesmos, ou seja, seres humanos, sem que nenhum seja exatamente igual a qualquer outro que exista ou venha a existir; esta pluralidade, segundo Arendt, é uma “paradoxal pluralidade de seres singulares”, devido à capacidade do homem de 25 SARLET, Ingo Wolfgang. Op.Cit., p. 46. Que é identificada até mesmo no pensamento Kantiano. 27 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p.16, 189. 26 se distinguir no mundo e poder partilhar esta distinção com tudo que está à sua volta, tornando-se, portanto, singular. Não havendo, pois, como negar a condição plural do homem, pode-se dizer que a dignidade faz sentido apenas no âmbito da intersubjetividade, sem prejuízo da dimensão individual de cada ser humano. Assim, será possível que determinados atos ou fatos de efeitos direcionados a um grupo de pessoas sejam considerados como ofensivos à dignidade da pessoa humana, mas na verdade não ofenderá a dignidade do grupo humano, mas sim de cada pessoa na sua dignidade própria. O próprio pensamento kantiano, que põe o homem como fim em si mesmo não se esquiva da realidade de que este homem vive no meio de outros homens. Descrevendo o que identifica como “dever meritório com relação a outrem”, Kant28 afirma que os fins do homem têm que ter a concordância positiva com a humanidade, ou seja, reconhece que a humanidade seria mantida ainda que ninguém para com ela contribuísse, mas se cada qual não se esforça para contribuir com os seus semelhantes isto é apenas uma concordância negativa com a humanidade e não uma concordância positiva, como fim em si mesmo. Desta forma, o reconhecimento da dimensão transindividual da dignidade não pretende, em momento algum, diminuir a dimensão individual da mesma, mas traz, e isto é especialmente importante para a realidade jurídica, a idéia de que o ser humano vive numa circunstância de coletividade. 1.4 Dignidade, igualdade e liberdade. As relações existentes entre o princípio da dignidade humana e os princípios da igualdade e da liberdade são de especial relevância para a compreensão da dignidade, e merecem algumas considerações, ainda que breves. Historicamente, como já visto acima, em termos políticos e jurídicos, a grande conquista do homem na era moderna foi, sem dúvida, a conquista das liberdades particulares, pois reconhece às pessoas o direito de se defender em face do Estado, em especial na defesa de suas propriedades. No Estado liberal havia a esfera particular contraposta à esfera pública, e esta apenas em caso muito excepcionais se sobrepunha sobre aquela. 28 KANT, Immanuel. Op.Cit, p.61. Com o passar dos tempos, e diversos regimes políticos em seqüência, as circunstâncias demonstraram o que afirma Bobbio29 na seguinte passagem: Para a realização dos direitos do homem, são freqüentemente necessárias condições objetivas que não dependem da boa vontade do que as proclamam, nem das boas disposições dos que possuem meios para protegê-los. [...] A efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana. Assim, fazendo um paralelo entre o direito moderno e o chamado direito pósmoderno, Maria Celina Bodin de Moraes30 afirma que deixou de existir “mundo de seguranças” que dá lugar a “um mundo de inseguranças” que, aparentemente, perdurará, e além disso, afirma também que a ética da solidariedade veio para substituir a ética da autonomia e da liberdade, sendo a tutela da liberdade do indivíduo substituída pela proteção da dignidade da pessoa humana. A mesma autora31 vem ressaltar, no entanto, o que poderia se chamar de uma nova configuração do direito de liberdade, que atualmente se consubstancia principalmente numa perspectiva de privacidade, intimidade e exercício da vida privada, onde as escolhas individuais podem ser realizadas sem quaisquer interferências. Hoje se vê, portanto, que o direito de liberdade, visto sob a perspectiva do princípio da dignidade da pessoa humana, corresponde muito mais à realização dos direitos da personalidade, como a integridade física e mental, a liberdade de expressão, crença, o direito a saúde, a intimidade e a vida privada, dentre outros. A proteção da dignidade da pessoa vem afirmar, portanto, a ética da solidariedade, que não nega a condição individual do homem, mas reconhece a sua condição de ser que coexiste, que vive numa coletividade, numa pluralidade. A solidariedade corresponde à preocupação do homem com o outro para que tenha reciprocidade nesta preocupação. Ela é identificada em códigos éticos muito antigos, sendo um dos principais expoentes a conhecida “regra de ouro” que prescreve que não se faça aos outros aquilo que não queres que faça a ti”, onde pode ser reconhecido o respeito à dignidade do semelhante baseado no reconhecimento da dignidade própria, e que pode ser encontrada, de certa forma, na raiz de todas as grandes religiões da humanidade32. 29 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 63-64. MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. Cit., p.71-72. 31 Ibidem, p. 107. 32 ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: o Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 13-14. 30 O princípio da igualdade também guarda grande relação com o princípio da dignidade humana. Sarlet33 afirma constituir pressuposto essencial para o respeito à dignidade humana a garantia de isonomia a todas as pessoas. Essa garantia de isonomia vai corresponder tanto à igualdade formal, aquela pela qual todos são iguais perante a lei, e dela receberão tratamento igualitário, mas também, e principalmente, à igualdade material, que corresponde a uma atuação estatal positiva na promoção da igualdade de existência digna. É importante salientar que hoje a realização do princípio da igualdade pressupõe atuações que reconheçam a diferença entre os homens e, na medida em que essas diferenças sejam relevantes para a promoção da dignidade da pessoa, elas devem ser respeitadas. Esse respeito às diferenças também remete à idéia da condição plural do homem defendida por Arendt, e também a outras diferenças humanas, como as culturais e econômicas. A promoção concreta da igualdade de existência digna encontra respaldo jurídico na Constituição da República, onde o Estado Brasileiro assume como objetivo fundamental da República a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, e por isso assume essa postura de prestação positiva por parte do Estado. 1.5 Natureza Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana no Direito Brasileiro. A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 1º, III, explicita como fundamento da República Federativa do Brasil, dentre outros, a dignidade da pessoa humana. É bem verdade que a Constituição brasileira não foi a primeira, nem a única a fazer integrar ao seu texto o respeito à dignidade da pessoa humana; isto é uma marca corrente das constituições ocidentais no século XX, em especial após a Segunda Guerra Mundial e após a consagração do princípio na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948. Na Constituição pátria, a dignidade da pessoa humana, como visto acima, ocupa posição privilegiada sendo elevada a fundamento do Estado Democrático de Direito, juntamente com os princípios de soberania, da cidadania, do pluralismo político e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, condição esta que irá refletir a grande importância deste princípio, reconhecido no âmbito constitucional positivo, que, na atividade 33 SARLET, Ingo. Op.Cit., p.89. hermenêutica, norteará axiologicamente as decisões, favorecendo sobremaneira as pessoas. Em especial no que concerne a aplicação e efetivação dos direitos fundamentais, tendo em vista ser clara e evidente a preferência do constituinte em relação a esta categoria, sendo a estes, outorgada, inclusive, a natureza de cláusulas pétreas, conforme o disposto no artigo 60, § 4.º, IV da Constituição da República.34 Desta forma, a realização dos objetivos da República, previstos no artigo 3º da Constituição (construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos sem quaisquer formas de discriminação), deverá ser promovida sempre com especial atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana.35 Assim, vem afirmar Sarlet36 que o constituinte de 1988 “além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”. No que concerne à aplicação de princípios como norteadores de todo o ordenamento jurídico, afirma Rogério Gesta Leal37 que, considerando que estes princípios figuram no mais alto grau da escala normativa, sendo os mesmos normas, e assim, normas supremas e fonte primária do ordenamento, fazem transparecer uma supra legalidade material, constituindo-se efetivos valores escolhidos pela comunidade política. Estes valores, vão estabelecer o critério com que serão aferidos os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada, vinculando qualquer hermenêutica que se pretenda instituir no âmbito da criação, instituição e aplicação das leis. E continua o autor38: Torna-se fácil, em tal quadro, como uma das alternativas às diversas crises institucionais relatadas, a conclusão que os princípios supra referidos (dentre os quais o autor inclui o da dignidade da pessoa humana) têm a função de delimitar os campos e possibilidades de interpretação e integração das demais normas constitucionais e infraconstitucionais , ou seja, qualquer criação, interpretação ou aplicação de lei ou ato de governo, deve ter como fundamento o comando da norma que diz ser a República Federativa do Brasileira um Estado Democrático de Direito, 34 LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.165-166. 35 Outros dispositivos da Constituição da República também fazem alusão à idéia de dignidade. No artigo 170, que inaugura o título da Ordem Econômica e Financeira, é afirmado que o fim desta é assegurar a existência digna; no § 7.º do artigo 226 é assegurado o planejamento familiar realizado com fundamento no princípio da dignidade e no artigo 227 é assegurada a dignidade da criança e do adolescente. 36 SARLET, Ingo Wolfgang. Op.Cit. p. 67-68. 37 LEAL, Rogério Gesta , Op. Cit., p. 166. 38 Ibidem, p.173. com objetivos claros a perseguir e tutelar (art. 3.º), o que significa estabelecer responsabilidades e prioridades políticas interventivas em todos os campos das demandas sociais explícitas e reprimidas. Neste sentido, é possível dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana consta no ordenamento jurídico, em posição elevada na Constituição, não apenas para justificar os direitos dali em diante previstos, mas, antes de tudo, para atuar efetivamente na aplicação de todas as normas jurídicas, com a finalidade sempre de realizar os objetivos da República Federativa do Brasil, dentro do formato de Estado Democrático de Direito que se pretende ter. Ana Paula de Barcelos39 afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana “há de ser o vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá orientar-se em seu ofício”. A autora considera que, mesmo tendo em vista que, em determinadas circunstâncias, os princípios possam dar margem à subjetividade na interpretação, por sua relativa indeterminação, a escolha interpretativa deverá sempre estar vinculada a ele de forma expressa, “ao sentido que o intérprete atribua ao princípio naquele momento, e não a quaisquer outras circunstâncias, muitas vezes não declaradas.” 40 O princípio a dignidade da pessoa humana na Constituição da República atua, portanto, da seguinte maneira: como princípio informador à toda atividade de aplicação das normas jurídicas, no sentido constante de a realização dos direitos fundamentais e à manutenção da democracia e de seus valores. 1.6 Aplicação do princípio da dignidade humana na promoção e proteção do direito à moradia. O direito à moradia é um direito que implica em prestações concretas. Depende de espaço, de um solo e de estruturas que componham um abrigo, e por este motivo, depende de uma fonte de custeio. É fato que, infelizmente, nem todas as pessoas têm como custear este direito através de recursos próprios. Em alguns casos os recursos são inexistentes, em outros, insuficientes para que o abrigo seja construído dentro dos parâmetros que a lei considera adequados. Isto faz com que, num mundo onde imagens da pobreza e da miséria entram em nossos lares por todos os meios de comunicação, haja um número inaceitável de pessoas vivendo e sobrevivendo em condições precárias de habitação. 39 BARCELLOS, Ana Paula de. Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 146. 40 Ibidem, p. 147. Deixando de lado os padrões universais e fixando o olhar nos centros urbanos brasileiros, o que se vê não é muito diferente. Pessoas morando em locais de difícil acesso, onde na há qualquer infra-estrutura urbana: vias de circulação, rede de esgoto, energia elétrica, coleta de lixo. O esgoto corre a céu aberto, e há lixo em toda parte. Em grande parte das vezes os terrenos onde estão instaladas estas moradias de condições precárias não são de propriedade destas pessoas. Em alguns casos a área é naturalmente perigosa. Todo este cenário contribui para que as pessoas que nele habitam estejam vulneráveis a diversos fatores: doenças, violência, desastres naturais. Mesmo assim, muitas vezes ao se oferecer a estas pessoas a possibilidade de se exercer o direito à moradia em outro local, elas não aceitam, pois ali está seu mundo, sua casa, feita com os recursos disponíveis conforme a sua vontade. Por isso se deve considerar a hipótese de mantê-las ali. Mas de que forma? Passando a analisar a questão por outro ângulo. A moradia está incluída na Constituição da República como um direito social e sobre isso será destinado um outro capítulo a frente. Além disso, a Constituição também prevê alguns direitos os quais são comuns de se imaginar como sendo direitos que se exercem dentro do local onde se mora. Dentre estes direitos, incluído está, no inciso X do artigo 5.º da Constituição, direito fundamental, portanto, a intimidade e a vida privada (ao lado da honra e da imagem pessoal); no mesmo artigo, no inciso XI, está dito que a casa é asilo inviolável do indivíduo. É inegável a relação existente entre estes direitos. A pessoa que não possui casa está privada de um espaço próprio, onde pode exercer seu direito de “asilo inviolável”, onde o espaço é dela e ninguém pode adentrar sem seu consentimento. Da mesma maneira, a pessoa que não tem casa sofre uma restrição de espaço onde pode exercer sua intimidade e sua vida privada, sem contar a questão da integridade física, pois ter um local onde morar é necessário para que se mantenha a saúde física e psíquica. Conforme a lição de Ingo Sarlet41: Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família contra intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial par viver com um mínimo de saúde e bem-estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida. Isto reitera a idéia de como os denominados “direitos sociais” correspondem a verdadeiros suportes de condições fáticas para que se exerçam os direitos fundamentais de liberdade. 41 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit. p.209. O próprio conceito de liberdade, que outrora se baseava muito no direito de propriedade e no contrato, não é mais visto desta forma apenas. Já foi dito acima o quanto hoje ele se consubstancia na perspectiva da privacidade, da intimidade e da vida privada, realizando as próprias escolhas individuais, ficando afeito mais aos direitos da personalidade. Os direitos da personalidade são aqueles adquiridos pela pessoa humana quando na ocasião de seu nascimento com vida. Visto pelo aspecto puramente civilista a personalidade é o atributo da pessoa que a faz poder ser sujeito de relações jurídicas.42 De acordo com o conceito da linha “naturalista”, a personalidade será um conjunto de características da pessoa, através da qual ela demonstra sua persona, ou seja, exterioriza os atributos que possui, como seu corpo, suas idéias, seu trabalho, seu modo de pensar e viver. Por isso o direito vai tutelar o livre exercício destas manifestações da pessoa, e fará isto através dos direitos da personalidade.43 Ambas as definições são restritas. Da mesma forma que é difícil se definir personalidade também é difícil se definir o seu alcance e quais direitos podem ser considerados como direitos da personalidade. A corrente naturalista vai considerar como direitos da personalidade aqueles que são previstos no ordenamento jurídico para a defesa dos valores inatos do homem, como a vida, a higidez física, a honra, a intimidade, a intelectualidade, dentre outros.44 Olhando pelo aspecto da teoria naturalista, que considera a pessoa humana como portadora de um rol extenso de direitos da personalidade e considerando a proteção da pessoa humana e de sua dignidade como princípio máximo que pauta o direito contemporâneo, pode-se dizer que o direito à moradia se inclui no rol dos direitos da personalidade, fazendo com que toda e qualquer norma relacionada a sua promoção e proteção deva ser interpretada conforme este princípio. A moradia exercida em condições precárias de habitabilidade, segurança e segurança da posse é uma expressão de verdadeira ofensa à dignidade humana. Então, ainda que haja vontade da pessoa viver num determinado local para onde a necessidade a levou, e se houver possibilidade de se melhorar a condição de moradia neste local de sua escolha, o Estado deve fazê-lo e não removê-la contra sua vontade para outro local. Quem deve ser dono da opção do local onde o direito à moradia é exercido, é, em primeiro lugar, a pessoa. E o Estado só deve interferir em situações extremas, onde haja perigo real para a vida daquela pessoa ou outras questões de segurança. Aliás, a proteção contra remoções é matéria presente 42 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume I. Teoria Geral do Direito Civil. Atualizador: Maria Celina Bodin de Moraes Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 214. 43 BITTAR. Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.7. 44 Ibidem, p.1. em documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, como será visto em capítulo adiante. Como instrumento existente no ordenamento jurídico atual, que vai influir consideravelmente na administração do problema do acesso e da segurança da moradia, está o Estatuto da Cidade. Sua finalidade principal consiste na organização, estruturação, composição e manutenção do espaço urbano, mas seus dispositivos não tratam apenas de questões urbanísticas em sentido estrito. Ele contém diversos instrumentos que possibilitam realizar o princípio da função social da propriedade urbana e, além disso, dispositivos relacionados (alguns especificamente – os instrumentos de regularização fundiária) ao direito à moradia. Por tratar, desta forma, de direito humano, fundamental, integrante da esfera dos direitos da personalidade, é evidente que suas normas devam ser aplicadas com observância do princípio da dignidade da pessoa humana. E de duas formas atua: especificamente, ao realizar a política fundiária de regularização de assentamentos humanos e de promoção de políticas e programas habitacionais, e, sob um ponto de vista mais abrangente, na organização do espaço urbano, levando em conta que toda melhoria neste sentido afeta diretamente a saúde e o bem-estar das pessoas que vivem neste espaço. Deve-se deixar claro que a ética da solidariedade, vigente no pensamento jurídico atual, que não nega a condição individual do homem, mas considera também sua condição de coexistência faz com que o aspecto de justiça social seja a tônica da aplicação de leis como o Estatuto da Cidade. Mas esta ética deve caminhar ao lado do princípio da dignidade da pessoa, considerado tanto em sua dimensão individual quanto transindividual. Capítulo 2 O Direito à Moradia como um Direito Humano 2.1 Breves esclarecimentos sobre o reconhecimento, proteção e promoção dos direitos humanos. Vive-se uma realidade onde o fenômeno da globalização atinge todos os setores da vida social. O desenvolvimento tornou o mundo menor, aproximou as distâncias, e hoje se tem a consciência de que muito do que ocorre no planeta gera conseqüências que serão sentidas em toda a sua extensão. Assim como a tecnologia, a informação e o progresso se globalizaram, a miséria e as injustiças também estão presentes em todas as partes do mundo. Em conseqüência disto o direito, mais do que em qualquer outro momento, passou a atuar também de forma globalizada, através do direito internacional, público e privado. Especialmente a partir da segunda metade do século XX, o direito assumiu este caráter “além fronteiras estatais”, e os Estados foram se adaptando a esta nova configuração. Não abrindo mão da sua soberania, passaram a aceitar restrições vindas de uma comunidade de países, a fim de se pôr em prática uma harmonização de condutas que visavam um mundo mais justo e possibilitavam um diálogo uniforme a respeito de questões relevantes ao bem-estar e ao desenvolvimento de todos. Além disso, o direito internacional veio proteger, ainda que potencialmente, não mais apenas os povos, mas os indivíduos, inclusive de atos praticados por seu próprio Estado de origem, desta forma fazendo com que os cidadãos dos Estados se transformassem em cidadãos do mundo.45 45 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p.82-83. O movimento de reconhecimento e consolidação dos direitos humanos se deu após a Segunda Guerra Mundial, animado pela intenção de não mais se repetir os horrores ocorridos durante a guerra. Na guerra, o mundo tomou consciência dos atos de crueldade praticados contra a pessoa, no extermínio de milhares de judeus. Após seu término, a instauração de um tribunal internacional para o julgamento dos crimes praticados neste período, o Tribunal de Nuremberg, trouxe o significado da necessidade de limitação da soberania estatal bem como reconheceu, a partir daí, a proteção internacional dos direitos das pessoas.46 Deste momento em diante, houve a grande internacionalização dos direitos humanos. Deu-se o surgimento de diversas organizações internacionais (algumas até mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, como a Organização Internacional do Trabalho – OIT) que tinham por objetivo unir os esforços internacionais para a promoção do desenvolvimento e a proteção da pessoa. Uma destas organizações, talvez a de maior expressão e conhecimento, é a Organização das Nações Unidas – ONU. A ONU foi criada oficialmente em 24 de outubro de 1945, data da promulgação da Carta das Nações Unidas, na época assinada por 51 países, dentre eles o Brasil47, que em seu preâmbulo deixa claro o repúdio aos atos praticados durante as guerras, reafirma a “fé” nos direitos do homem, na sua dignidade, na igualdade entre homens e mulheres, na igualdade das nações, grandes e pequenas, no respeito aos tratados internacionais, pretendendo atingir fins de 48 desenvolvimento, assegurando-se a liberdade e promovendo a manutenção da paz. Os países que passaram a integrar a Organização das Nações Unidas se comprometeram a repudiar qualquer tipo de ofensa a pessoa que ocorresse no mundo, e hoje a ONU atua, através de seus órgãos (Assembléia Geral, Conselho de Segurança, Corte Internacional de Justiça, Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela e o Secretariado, além de órgãos subsidiários criados quando necessário), promovendo o combate à pobreza, ao desemprego, à degradação ambiental, à criminalidade, ao tráfico de drogas, à AIDS e a outros problemas de saúde que acometem o mundo. Com a Carta das Nações Unidas fica consolidada a internacionalização dos direitos humanos, e a partir de então as relações entre os Estados e os seus nacionais passam a 46 PIOVESAN, Flávia. Op. Cit., p. 138. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nações Unidas no Brasil. Em: http://www.onubrasil.org.br/conheca_hist.php, acesso em 31 de março de 2007. 48 Idem. Em http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php, acesso em 31 de março de 2007. 47 constituir um problema internacional, uma vez que esses Estados se uniram para realizar, além de suas fronteiras, os propósitos apresentados pela organização.49 A Carta das Nações Unidas fazia referência aos Direitos Humanos, no entanto não os especificava. De qualquer forma, ela significou, como já enfatizado, a consolidação da adoção internacional de obrigações a serem cumpridas pelos países que a assinaram. A especificação dos Direitos Humanos veio com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotada em 10 de dezembro de 1948, aprovada por 48 Estados, com 8 abstenções. É um rol extenso, cujo alcance de proteção engloba os aspectos do homem como pessoa, como ser biológico, ser político, ser intelectual, ser econômico, participante de uma comunidade dentro de seu país e também de uma comunidade internacional. Ela representa um consenso ético e axiológico assumido por diversas nações do globo, a respeito de questões relacionadas ao desenvolvimento do homem considerado em diversos aspectos: o homem como ser livre, dotado de razão e autodeterminação, como ser social, que deve agir em relação aos outros com espírito de fraternidade, como ser político pertencente a uma determinada nação, como ser biológico, intelectual, econômico e cultural. Assim, traça linhas gerais de proteção dessas facetas do homem, repudiando qualquer tipo de discriminação, de restrição da liberdade desmotivada, de trabalhos injustos, de exposição à insegurança, a tratamentos indignos e arbitrários, perseguição, restrição a liberdades de pensamento, consciência, religião, manifestações de toda ordem, etc. A Declaração Universal dos Direitos Humanos vai conter os aspectos de universalidade e positividade; universalidade por reconhecer como sendo seus destinatários não mais os cidadãos de um ou outro Estado, mas todas as pessoas nacionais de qualquer Estado e positividade pelo compromisso que os Estados assumem não só de proclamar e idealizar os direitos, mas protegê-los efetivamente.50 Além disso, seu texto proclama com a denominação “direito humano”, direitos pertencentes a divisões categóricas distintas, promovendo uma unidade entre os denominados direitos civis e políticos, assegurados pelo primado da liberdade e os direitos sociais, econômicos e culturais, assegurados pelo primado da igualdade. Prevendo essas duas categorias de direito num mesmo texto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece igual importância para ambas, realizando assim uma unificação de direitos que declara com a qualidade de “humanos”. 49 50 PIOVESAN, Flávia. Op. Cit. p. 142-143. BOBBIO, Norberto, Op.Cit., p. 49-50. A lógica utilizada pela Declaração faz com que as chamadas “gerações” de direitos integrem, com igual grau de importância, as diretrizes gerais de proteção do ser humano, e assim, fazendo dos direitos humanos uma categoria de direitos interdependentes e indivisíveis, demonstrando que não faz sentido diferenciar entre si as gerações de direitos, outorgando a uma mais importância do que a outra. Em outras palavras, não faz sentido se garantir as liberdades civis sem que haja uma promoção dos direitos sociais e, do contrário, não faz sentido assegurar através dos direitos sociais todas as necessidades básicas de sobrevivência humana, tolhendo o homem de sua liberdade. Ao fim, se verifica a pretensão da Declaração em atingir a maior parte dos aspectos realmente importantes da vida de um ser humano como pessoa, instituindo, como direitos humanos tudo aquilo que é necessário para a proteção do homem e da sua dignidade, conforme os padrões morais e de pensamento da época.51 No que diz respeito a seu valor jurídico, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas como sendo uma resolução; desta forma, por não ser um tratado, não pode ser admitida com força de lei. Entretanto, conforme ensina Flávia Piovesan52, a Declaração tem sido aceita como “interpretação autorizada da expressão “direitos humanos”, constante na Carta das Nações Unidas”, e, desta forma, apresenta força jurídica vinculante. A autora53 ressalta também uma outra interpretação a respeito do valor jurídico da Declaração, que a identifica como integrante do direito costumeiro e princípios gerais do direito, e por isso teria o efeito vinculante. De qualquer forma, é importante lembrar que o conteúdo da Declaração exerceu importante impacto nas ordens jurídicas nacionais, tendo sido seus valores incorporados no conteúdo de Constituições de diversos países, bem influenciou os demais tratados e outras espécies de documentos internacionais cujos conteúdos eram afeitos às intenções proclamadas pela Declaração. Dois dos mais importantes instrumentos integrantes do sistema internacional de proteção aos Direitos Humanos são o Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos e os Pacto Internacional dos Direitos Econômicos e Sociais, que tratam pormenorizadamente de assuntos elencados na Declaração. 51 BOBBIO adverte que: “Com relação ao conteúdo, ou seja, à quantidade e à qualidade dos direitos elencados, a Declaração não pode apresentar nenhuma pretensão de ser definitiva. Também os direitos do homem são direitos históricos, que emergem gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem. [...] Sabemos hoje que também os direitos ditos humanos são produto não da natureza, mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação e ampliação.” Op. Cit. p. 51-52. 52 PIOVESAN, Flávia. Op.Cit., p. 152. 53 Ibidem., p. 153. Esses pactos tiveram elaboração concomitante, e cada um deles tratou especificamente das duas categorias de direitos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos: uma delas contendo as liberdades civis e políticas e a outra contendo os denominados direitos sociais. A razão pela qual se tratou do tema separando as categorias de direitos, uma sendo reflexo do ideal de liberdade e outra sendo reflexo do ideal de igualdade, parece ter sido a divisão do mundo, à época, em dois blocos, o bloco capitalista e o bloco socialista. Esses regimes influenciaram na decisão de se elaborar dois documentos distintos, e esta influência se deu pelo fato de, conforme as características específicas de cada um destes regimes, a aplicabilidade e a efetividade dos direitos previstos teriam tratamentos diversificados. Em que pese ter havido esta divisão na ocasião de elaboração destes documentos, a idéia de unidade dos Direitos Humanos nunca foi abandonada, ao contrário, a interpretação dominante a respeito dos direitos humanos tem sido de considerá-los indivisíveis e interdependentes, não podendo o Estado signatário se furtar a não realizar aquilo a que se comprometeu. E a idéia principal desta breve explanação sobre a proteção e promoção dos direitos humanos é demonstrar como este fenômeno se globalizou, de forma que hoje o ser humano é compreendido e protegido individualmente como cidadão do mundo, e demonstrar também que o significado “direito humano” exerce grande apelo moral na aplicabilidade dos direitos assim considerados. 2.2 Proteção da Moradia no Sistema Internacional de Direitos Humanos. Após uma introdução sobre o sistema de proteção aos direitos humanos, passa-se a tarefa de demonstrar de que forma o direito à moradia é protegido no âmbito internacional, tanto sendo reconhecido como direito humano, como sendo objeto de diversos documentos feitos pelos organismos de atuação internacional, de onde se percebe que a moradia é um problema presente no mundo inteiro, e por isso se encontra na pauta internacional de debates sobre direitos humanos. Neste item serão expostos alguns instrumentos internacionais que, especificamente ou não, se referem ao direito à moradia, bem como a forma com que cada um aborda o tema, ou seja, de que maneira cada instrumento concebe o direito à moradia e suas peculiaridades. Primeiramente serão expostos os documentos pertencentes ao Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos, da seguinte forma: as Declarações e Agendas delas resultantes, os pactos e convenções, documentos pertencentes ao Sistema Regional, mais especificamente, documentos advindos da Organização dos Estados Americanos – OEA. Ao final, por demandarem maiores explicações, serão apresentados dois comentários gerais do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Agenda Habitat. a) Declaração Universal dos Direitos Humanos. O primeiro documento a ser citado, como não poderia deixar de ser, é a Declaração. Ela faz uso do termo habitação, no seu artigo 25, que trata do direito que tem o homem a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família a saúde e o bem-estar, incluindo nessa noção de padrão de vida adequado também o direito a habitação. De forma secundária, a moradia não deixa de ser protegida quando a Declaração prevê a proteção da vida privada dentro do lar (artigo 12), ou seja, pressupõe que a vida privada seja exercida também dentro de um espaço privado onde o homem exerce a sua intimidade, espaço este que denomina “lar”, que é o espaço onde a pessoa “mora” (fica refletido aqui, portanto, o aspecto de interdependência dos direitos humanos.). b) Declaração dos Direitos da Criança: adotada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1959, e ratificada pelo Brasil em 02 de maio de 1951, faz previsão implícita da moradia no princípio 6º, que trata do desenvolvimento da personalidade da criança, quando prevê que esta será criada num ambiente de segurança moral e material (grifei). c) Declaração sobre Progresso e Desenvolvimento Social: adotada pela Assembléia Geral da ONU através da resolução 2542 (XXIV) de dois de dezembro de 1969, afirma na Parte I, artigo 2, que o progresso social e o desenvolvimento se fundamentam no respeito à dignidade e ao valor da pessoa humana e, na Parte II, reitera que o progresso e o desenvolvimento devem visar a elevação contínua dos níveis de vida material e espiritual, mediante a realização de objetivos essenciais, dentre os quais enumera, no item f do artigo 10, assegurar a todos, e em particular às pessoas de poucos recursos e famílias numerosas, habitação e serviços comunitários adequados. d) Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento: adotada pela resolução 41/128 da Assembléia Geral da ONU em 04 de dezembro de 1986, reconhecendo que o desenvolvimento é um processo econômico e social que visa o constante incremento ao bemestar de toda a população e de todos os indivíduos, faz previsão do direito à moradia no seu artigo 8°, §1º, ao dispor: “Os Estados devem tomar, em nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento, e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidades para todos no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego e distribuição eqüitativa de renda (grifei)”. e) Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: esta declaração prevê, dentre seus princípios, que a proteção ambiental deverá constituir parte integrante do processo de desenvolvimento, não podendo ser considerada isoladamente deste, e como requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável cita a cooperação e a erradicação da pobreza e a redução da disparidade dos padrões de vida das pessoas. Desta Conferência do Rio de Janeiro, resultou também a Agenda 21, que enumera diversas questões, identificando problemas relacionados ao desenvolvimento e ao meio ambiente, e traçando objetivos para solucioná-los, adequando à questão ambiental o desenvolvimento em todos os sentidos. Assim, dentre seus tópicos, faz constar a questão da moradia, relacionando seu atributo “adequada” a uma condição ambiental equilibrada e às condições de saúde, bem-estar e segurança do ser humano. Merecem destaque alguns itens da Agenda 21. No capítulo 6 são abordadas questões relacionadas à promoção e proteção das condições da saúde humana. É afirmado que o vínculo entre saúde e melhorias ambientais e sócio-econômicas exige esforços abrangendo saúde, educação, habitação etc. Este capítulo 6 vai reforçar bem a questão do planejamento e gerenciamento sanitário como essencial para a saúde humana e ambiental. No item D do capítulo 6, expõe os desafios da saúde urbana, e ao definir bases para ação (item 6.32), reconhece que condições de vida sofríveis das zonas urbanas e periferias são prejudiciais à vida, à saúde, aos valores sociais e morais, dizendo que o crescimento urbano deixou para trás a capacidade da sociedade de atender às necessidades humanas, e nisso um número enorme de pessoas vive com rendimentos, dieta, moradia e serviços inadequados (grifei). Alerta neste item, que os alojamentos inadequados e superpovoados contribuem para a ocorrência de diversas doenças. Ao traçar os objetivos de melhorias nos indicadores da saúde urbana (item 6.33), cita, dentre outros, a moradia. O capítulo 7 vai cuidar da promoção do desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, e põe como uma das áreas de programa do desenvolvimento sustentável o oferecimento moradia adequada a todos (item 7.5). Neste capítulo será reiterada, diversas vezes a idéia da necessidade de sustentabilidade ambiental para a proteção da vida humana, e a habitação segura e saudável é posta como essencial para o bem estar físico, psíquico, social e econômico das pessoas. A Agenda 21 não tratou de forma específica sobre a moradia, mas a coloca como item importante na concretização de seus objetivos de promoção de um desenvolvimento adequado aos padrões ambientais sustentáveis. Assim, de certa forma, a Agenda usa o conceito de moradia adequada, relacionando este conceito com a questão ambiental, a questão da saúde, a colocando como indicador de desenvolvimento, e disso se pode observar que é indissociável do conceito de desenvolvimento o conceito de uma condição mundial de adequabilidade ambiental e econômica. f) Declarações de Vancouver e Istambul. Dentre as Declarações é importante que estas sejam citadas aqui, bem como suas respectivas agendas (Habitat I e Habitat II). Entretanto, dada a importância das mesmas ao tema deste trabalho, por terem como objeto específico os assentamentos humanos, será feita análise de seus dispositivos em item separado. g) Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC: é um dos instrumentos de maior importância no reconhecimento do direito à moradia no Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos. Isto se deve ao fato de, na prática, ser dificultosa a tarefa de dar efetividade aos direitos humanos, mas, com a adesão ou ratificação de um pacto, o Estado Parte se compromete a cumprir com determinadas obrigações referentes à realização dos direitos que ali são previstos. É através do PIDESC, portanto, que o direito à moradia será não só apenas reconhecido como direito humano, mas efetivamente protegido. Para esta efetividade, o Estado Parte assume o compromisso de agir com seu próprio esforço, bem como contando com a ajuda internacional, no máximo dos seus recursos disponíveis, para assegurar, progressivamente, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no Pacto. Quando estabelece o direito de todas as pessoas a um suficiente nível de vida, inclui dentre os fatores integrantes deste direito, o direito ao alojamento, ou seja, a moradia, não ficando apenas esse direito restrito ao que seja “suficiente”, mas reconhecendo a necessidade do melhoramento constante do nível de vida (artigo 11º, 1). Ao estabelecer o direito das pessoas ao gozo do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir, inclui dentre os fatores para se atingir este estado o melhoramento dos aspectos de higiene do meio ambiente, que, consequentemente, pressupõe que o lugar onde essa pessoa more seja salubre (art. 12º, 1.). Procurando-se obter uma interpretação autêntica e máxima eficácia das disposições do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, é instituído pelo Conselho Econômico e Social da ONU o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que emite Comentários Gerais. Destes Comentários são especialmente interessantes para o tema os de número 4 e 7, aos quais se fará referência em item próprio. h) Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Adotada pela Resolução n.º 2.106-A da Assembléia das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965, pretende eliminar quaisquer forma de discriminação com fundamentos em raça ou grupos de pessoas diferenciadas pela cor da pele ou por características étnicas, e reitera que os Direitos Humanos são assegurados a todos, dentre os quais o direito a habitação (art. 5º, e, III). i) Convenção sobre os Direitos da Criança. Adotada pela Resolução n. L 44 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, reitera os princípios relacionados a existência digna da criança, que deverá ser especialmente protegida para que se desenvolva adequadamente, tanto no aspecto físico, quanto moral, espiritual, social e cultural. Assim, vai dizer, no artigo 27, §3º, que os Estados Partes, adotarão medidas necessárias para ajudar aos pais ou aos responsáveis pela criança a tornar efetivo o direito ao nível de vida adequado, proporcionando assistência material especialmente no que diz respeito, dentre outras coisas, à habitação. j) Carta da Organização dos Estados Americanos e Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. São apontados como documentos mais relevantes na proteção dos direitos humanos no sistema americano a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, adotado pela Organização dos Estados Americanos – OEA – em 1969, na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, e a Carta da OEA. A Carta da OEA, no artigo 34, inciso k, dispõe como meta básica, dentre as muitas destinadas à eliminação da pobreza e distribuição eqüitativa da renda, a habitação para todos os setores da população. O Pacto de San José contém dois dispositivos que abrangem mais propriamente o direito à moradia, que seriam, o artigo 11, relacionado à proteção da honra e da dignidade, que prescreve que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, domicílio ou correspondência; e o artigo 26 que prescreve o compromisso de cumprimento dos direitos assegurados pela Carta da OEA, dentre os quais, identificamos no parágrafo anterior, o direito à moradia. 2.2.1 Comentário Geral nº. 4 – Direito à moradia adequada. Editado pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Comentário Geral nº. 4, vai conferir uma interpretação ao artigo 11 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que reconhece, positivamente, a moradia como um direito humano. O Pacto, além de, como já visto anteriormente, ser dotado de positividade, é o documento de maior abrangência em relação à aplicabilidade dos direitos humanos, uma vez que os reconhece a todas as pessoas, diferentemente de outras convenções que os prevê especificamente para determinados grupos (crianças, mulheres, refugiados, etc.). O Comentário Geral nº. 4 tem como proposta principal demonstrar a interpretação do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o que seja moradia adequada, bem como reafirmar princípios fundamentais relacionados ao direito à moradia. O conteúdo principiológico do Comentário tem sua razão de ser baseada no fato do mesmo servir de fundamento para a aplicação do direitos à moradia em países de culturas diversas, o que é mais eficiente do que apenas ditar padrões e metas específicas.54 Em seu item 4, o Comentário alerta para o fato da falta de moradia, ou a falta de moradia adequada não ser realidade experimentada apenas em países em desenvolvimento, ou subdesenvolvidos, mas também em países considerados desenvolvidos. O Comentário, portanto, expõe o seguinte: - Item 6. O direito à moradia adequada se aplica a todos. O fato do PIDESC se referir ao sujeito e sua família não significa que o direito não se aplica igualmente à pessoa individual. Da mesma forma o direito à moradia não pode ser passível de sofrer qualquer ordem de discriminação. - Item 7. O direito à moradia não deve ter interpretação restritiva, ou seja, não pode ser atendido apenas com a existência de um abrigo, mas de condições adequadas de vivência num 54 SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 101. local seguro e digno, e também deve ser efetivado conjuntamente a outros direitos humanos (saúde, intimidade, privacidade, educação, cultura, etc.) e aos princípios que os norteiam. - Item 8. Este item vai dispor sobre alguns fatores que vão compor a idéia de moradia adequada, ainda que em determinados casos essa idéia dependa de fatores climáticos, culturais, ecológicos, e outros. São esses fatores: a) Segurança jurídica da posse. Qualquer que seja o fundamento da posse, as pessoas devem ter a segurança de vê-la garantida contra qualquer ameaça ou violência. b) Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infra-estrutura. Isto está relacionado a outros serviços que compõem o apoio fático a realização dos direitos humanos, como o acesso à saúde, educação, nutrição, segurança, saneamento, recursos naturais, etc. c) Disponibilidade de recursos. Os recursos utilizados com a habitação devem ser tais que não afetem ou prejudiquem os gastos relacionados com a satisfação de outras necessidades básicas da pessoa. Além disso, os Estados deverão promover o acesso a habitação mediante financiamentos e deverá haver legislação que proteja aqueles que habitam em locais alugados de possíveis aumentos comprometedores à economia pessoal. d) Habitabilidade. A habitabilidade será definida por características da habitação como a adequação do espaço ao número de pessoas que nele residem, a proteção contra o frio, calor, umidade, chuva, vento ou outros fatores naturais que possam afetar á saúde. Também deve ser segura, tanto no sentido estrutural e de localização como biológico (objetivando a prevenção de doenças). e) Acessibilidade. Os Estados Parte tem o dever de garantir a acessibilidade a todos, especialmente àqueles grupos de pessoas que se encontram em desvantagem em relação ao acesso pleno ao direito, como pessoas doentes, deficiente, idosos, vítimas de desastres naturais, e aquelas que vivem em áreas de risco. f) Localização. A localização diz respeito à proximidade da moradia a outros locais que ofereçam serviços essenciais bem como a proximidade ao local de trabalho. A localização diz respeito também à salubridade do local onde se estabelecerá a moradia, devendo-se evitar locais que por circunstâncias diversas possam ser prejudiciais à saúde humana. g) Adequação cultural. A forma com que as moradias são construídas deve estar de acordo com os hábitos do povo a que servirão, e as mudanças derivadas do desenvolvimento e da tecnologia não deverão afetar o aspecto cultural das pessoas que nelas residem. - Item 9. Aqui são reiterados os princípios da não-discriminação e da dignidade da pessoa humana na concretização do direito bem como destaca que o exercício de outros direitos, como a liberdade de expressão e liberdade de escolha, na determinação do local de moradia é essencial para que se realize este direito. Também é afirmado aqui que a moradia adequada comporta o exercício da privacidade e da intimidade. Dos itens 10 a 19 são descritas as atitudes que os governos dos Estados devem tomar para a realização e efetivação do direito. O item 10 dispõe sobre medidas imediatas de provimento do direito à moradia com a utilização dos recursos tanto nacionais como internacionais que sejam necessários ou até mesmo abstenção de alguma prática governamental, para facilitar a ajuda aos grupos mais necessitados. Na esteira destas medidas, o item 11 afirma a prioridade da atenção a determinados grupos que se encontrem em condições desfavoráveis. Os itens 12, 13 e 14 vão tratar das medidas de implementação do direito à moradia, no que diz respeito à adoção de estratégias para a utilização dos recursos, o monitoramento das ações Estatais direcionadas à realização do direito, especialmente tornando públicas informações referentes ao grupos vulneráveis, afirmando a responsabilidade, tanto pública, como privada na promoção do acesso a este direito. Os itens 15 a 18 vão destacar a importância da legislação no provimento e na proteção do direito à moradia, especialmente no que diz respeito aos despejos, considerando incompatível com o PIDESC os despejos forçados, que só poderão ser executados em situações excepcionais. Por fim, o item 19 vai ressaltar o papel da cooperação internacional baseada no livre consenso dos Estados Partes, que se comprometem ao reconhecer a necessidade de se efetivar o direito à moradia. 2.2.2 Comentário Geral n.º 7 – O direito à moradia adequada – despejos forçados. O comentário geral n.º 7 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais vai dispor sobre a proteção do direito à moradia no que concerne aos despejos forçados55. O comentário considera os despejos forçados como uma evidente violação dos direitos humanos. Nelson Saule Junior56 chama a atenção para o fato de que existe a alegação freqüente de que em nações pobres o despejo seria justificado em nome do desenvolvimento destas nações, posição esta extremamente violadora dos direitos humanos, e uma das justificativas de ter sido emitido este comentário geral. No que diz respeito à busca do conceito de moradia adequada, o despejo forçado pode se configurar como um atentado à segurança da posse, que é um dos fatores que compõem a adequabilidade da moradia. Esta idéia está expressa no item 1 do comentário, significando que toda pessoa deve possuir um grau de segurança da posse que garanta a proteção legal contra turbações e despejos forçados.57 O comentário alerta não apenas para os despejos baseados na ilegalidade ou na arbitrariedade, mas também aqueles relacionados a modificações no desenho urbano ou pela implantação de outros empreendimentos justificados pelo desenvolvimento e progresso urbanos (item 7). A partir disto o comentário prevê uma série de medidas a serem adotadas pelos Estados Partes, medidas estas de cunho legal para a proteção jurídica da posse, bem como, no caso de serem inevitáveis os despejos, que estes sejam feitos de acordo com princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (item 14), e que determinados 55 No original, em inglês, a expressão utilizada é forced eviction, traduzida para o português como “despejo forçado”, mas pode também ser considerada como “remoção”, nomenclatura recorrentemente utilizada na literatura jurídica brasileira, que não guarda maiores diferenciações em relação ao despejo forçado, sendo este termo mais utilizado para questões envolvendo contrato de locação. Na realidade vão ser incluídas aqui quaisquer violações do direito de moradia relacionadas a retirada das pessoas dos locais onde habitam, através de atos arbitrários, ilegais, desmotivados, ou ainda, revestidos de legalidade, mas que possam acarretar danos irreversíveis à vida e à dignidade dessas pessoas. Em última análise, em casos de remoção onde esta se apresenta como última alternativa, é necessário que seja oferecida alternativa de moradia para as pessoas atingidas, que preserve o tipo de vida que estas usufruíam no local de onde vieram, bem como o acesso ao trabalho, a família, etc. 56 SAULE JUNIOR, Nelson. Op. Cit., p. 113. 57 No original: 1. In its General Comment n.º 4 1991), the Comittee observed that all persons should possess a degree of security of tenure wich guarantees legal protection against forced eviction, harassment and others threats. Disponível em: http://www.unhchr.ch/tbs/doc.nsf/(Symbol)/959f71e476284596802564c3005d8d50?Opendocument, acesso em 10/04/2007. procedimentos sejam obedecidos a fim de que se minimize os danos sofridos pelas pessoas despejadas, além do devido processo legal e outras medidas, tais como (item 15): a) Garantia de oportunidade de consulta ao grupo que será afetado sobre o despejo; b) Adequada e razoável notificação a todas as pessoas envolvidas sobre a data fixada para a realização dos despejos; c) Que sejam dadas informações relativas aos despejos, tais como a destinação da área envolvida. d) A presença de agentes públicos quando o despejo envolver grande número de pessoas. e) A identificação de cada pessoa que sofrerá o despejo. f) Garantia de que os despejos não serão realizados com mau tempo ou à noite, exceto por consentimento das pessoas afetadas. g) Provisão de medidas legais. h) Provisão de assistência jurídica aos que necessitarem fazê-lo em juízo. Os demais artigos do comentário tratam das medidas gerais a serem tomadas pelos Estados, tanto na proteção contra os despejos como o dever de informação aos órgãos internacionais da ocorrência dos mesmos e das medidas que a serem adotadas como alternativa. Tratam também das responsabilidades daqueles que, em nome do desenvolvimento, provoquem o desalojamento dos seres humanos de seu local de habitação, e reiteram que todos os esforços devem ser direcionados à realização e preservação dos direitos humanos. 2.2.3 As Declarações de Vancouver e Istambul para Assentamentos Humanos e a Agenda Habitat Merecem tratamento em item próprio as Declarações de Vancouver para Assentamentos Humanos de 1976 e de Istambul, realizada em 1996, e a Agenda Habitat II, adotada nesta última conferência, por serem os documentos internacionais mais específicos relacionados ao direito à moradia, e também por terem tratado do tema de forma mais abrangente e completa. A Declaração de Vancouver para Assentamentos Humanos foi adotada pela primeira Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – Habitat I, realizada em Vancouver, Canadá, em 1976, e veio estabelecer diretrizes sobre o direito humano à adequada habitação e serviços. Ela imprime uma forte noção de compromisso com a problemática da moradia em todo o mundo, reconhecendo que este é um tema que se relaciona com a questão econômica, social e de desenvolvimento. Seus propósitos foram reafirmados, e obviamente adequados a uma nova realidade mundial na oportunidade da segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – Habitat II, realizada em Istambul, Turquia, em 1996, da qual resultou a Declaração de Istambul para Assentamentos Humanos e a Agenda Habitat, sendo a primeira o documento político que reafirma as parcerias internacionais e o compromisso de, através delas, proporcionar o melhoramento do padrão de vida e de liberdade através da solução de problemas relacionados à questão da moradia, e a segunda documento destinado à realização da implementação, monitoração e avaliação de atividades voltadas à promoção do direito à moradia – Plano Global de Ação – , para satisfazer os compromissos firmados na Declaração de Istambul. A Declaração de Istambul foi formulada com impressões deixadas por outros documentos que a precederam58, em especial o conteúdo da Agenda 21 no que tange à sustentabilidade dos assentamentos humanos. É considerado nela, antes de qualquer coisa, o desenvolvimento sustentável, como no trecho de seu preâmbulo a seguir: Há um senso de grande oportunidade e esperança de que pode ser construído um novo mundo, no qual o desenvolvimento econômico e social e a proteção ambiental, como componentes do desenvolvimento sustentável interdependentes e que se reforçam mutuamente, podem ser realizados por meio da solidariedade e cooperação dentro e entre países e através de parcerias eficazes em todos os níveis. Também no preâmbulo é exposto o propósito da Agenda Habitat, que consiste em abordar dois temas considerados de igual importância global, que são: “Moradia Adequada para Todos” e “Desenvolvimento de Assentamentos Humanos sustentáveis em um Mundo em Urbanização”. Devido a estes dois temas assumidos pela Agenda Habitat, fica claro, mais uma vez, que a efetivação dos direitos humanos é tarefa complexa, ou seja, é leva em conta diversos aspectos da existência humana, onde se evidencia o destaque para a questão 58 Outras conferências: Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995); Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social (Copenhagen, 1995); Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994); Conferência Global sobre o Desenvolvimento Sustentável de Pequenos Estados Insulares (Barbados, 1994); Conferência Mundial sobre a Redução de Desastres Naturais (Yokohama, 1994); Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos (Viena, 1993); Cúpula Mundial em Favor de Crianças e Adolescentes (Nova York, 1990); Conferência Mundial sobre Educação para Todos, (Jomtien, Tailândia,1990); "Estratégia Global para Moradias no Ano 2000", adotada em 1988. ambiental, de importância extrema para a sobrevivência humana. Também é enfatizada na Agenda a questão urbana, dada a conformação do mundo na atualidade, onde a população ocupa cada vez mais as áreas das cidades. De qualquer forma, a Agenda diz literalmente que os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável, fazendo parte disso as moradias adequadas e os assentamentos humanos sustentáveis, ou seja, qualquer ação relacionada a direitos humanos deve estar sempre direcionada a realização da pessoa humana em todos os seus aspectos. Uma das preocupações da Agenda Habitat, que a faz colocar como um de seus propósitos a realização da moradia adequada é o fato de ser excessivo e intolerável o grande número de pessoas que vivem em condições inadequadas de moradia, sem contar que essa inadequabilidade reflete também ameaças à saúde, segurança e à vida de diversas pessoas, e não apenas das que vivem numa moradia inadequada. Também no preâmbulo, a Agenda Habitat, no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, ressalta a importância da participação democrática nas decisões a respeito de assentamentos humanos sustentáveis, dando importância às participações dos povos indígenas, principalmente no intuito de proteger suas culturas, das mulheres, das pessoas que possuem algum tipo de deficiência, dos idosos, e de todas as outras pessoas, em especial as mais vulneráveis e desfavorecidas. Assim, também faz tornar compromisso a atuação que vise integrar os diversos grupos, realizar parcerias entre Estado e iniciativa privada, para que as pessoas sejam agentes verdadeiramente atuantes na promoção e manutenção dos assentamentos humanos adequados e sustentáveis. No capítulo que define Metas e Princípios, merecem destaque alguns pontos. A primeira menção do direito à moradia como direito humano é feita neste capítulo, quando se reafirma o compromisso de assegurar a plena realização dos Direitos Humanos a partir dos instrumentos internacionais, em particular o direito à moradia disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em outras convenções. Dispõe que a proteção de todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais e do direito ao desenvolvimento é essencial, e ainda que se leve em conta os aspectos históricos, culturais e religiosos de cada povo ou de cada religião, estes não podem servir de escusa para que os direitos humanos deixem de ser promovidos e protegidos. Na proteção destes direitos, a adoção da Agenda Habitat será direito soberano do Estado, passando a ser responsabilidade deste Estado o cumprimento das ações que propõe. Preceitua que a visão ética, política, ambiental, econômica e espiritual dos assentamentos humanos deverá ser baseada nos princípios da igualdade, solidariedade, parceria e dignidade da pessoa humana. Dá ênfase ao princípio da erradicação da pobreza, que se baseia no objetivo de atender às necessidades básicas da pessoa humana e permitir que todos tenham acesso a vidas sustentáveis e seguras, através de empregos e trabalhos produtivos e escolhidos livremente. Destaca também a preocupação com a família, orientando que o planejamento dos assentamentos humanos deve considerar o papel construtivo da família em seu desenvolvimento e gerenciamento. De igual forma, ressalta que as moradias adequadas também são instrumentos de proteção da família. A Agenda Habitat expõe compromissos referentes à moradia adequada, assentamentos humanos sustentáveis, habilitação e participação das pessoas no processo de implementação dos assentamentos, promoção da igualdade entre homens e mulheres, financiamento de habitação e assentamentos humanos, cooperação internacional e avaliação dos progressos das atividades relacionadas à sua implementação. Dentro das explanações iniciais a respeito da moradia adequada, um dos propósitos da Agenda Habitat, esta a reconhece como obrigação dos governos permitir que as pessoas obtenham um lar. Dentre as diversas ações direcionadas à promoção da moradia adequada, como o reconhecimento da mesma como um direito humano, o financiamento, a adoção de políticas específicas para os diversos grupos vulneráveis, todas as medidas de integração ao meio ambiente necessárias para a manutenção da vida humana e para a sustentabilidade ambiental, se destaca a importância dada pela Agenda Habitat à proteção da segurança legal da posse, que poderá ser identificada em diversas oportunidades como a afirmação de igualdade entre homens e mulheres, o compromisso dos Estados em promoverem um respaldo legal para a proteção da titularidade da posse e da propriedade e a proteção contra os despejos forçados. A propósito dos Assentamentos Humanos Sustentáveis, a Agenda Habitat, reitera a questão de que toda a sua atuação deve ser pensada para um mundo em processo de urbanização. É também aspecto ressaltado, tanto nas considerações iniciais sobre os assentamentos humanos sustentáveis, como em todas as ações prescritas pela Agenda, o uso eficiente de recursos dentro da capacidade de absorção do ecossistema, a infra-estrutura ambiental capaz de garantir a todos a saúde, com acesso à água potável, esgoto sanitário, coleta de lixo, bem como a boa localização destes assentamentos, que devem permitir o acesso a outros núcleos de desenvolvimento de atividades básicas do ser humano, como a educação, o trabalho, a assistência médica etc. A proteção do patrimônio cultural, natural e histórico também deve ser levada em conta no desenvolvimento dos assentamentos humanos sustentáveis. Questão importante que a Agenda coloca junto à questão dos assentamentos humanos é a questão demográfica, que deverá ser trabalhada de forma integrada ao desenvolvimento dos assentamentos. Ponto importantíssimo que merece destaque neste capítulo é a menção ao incentivo à participação popular, uma vez que a adequação das moradias deve ser determinada juntamente com as pessoas interessadas, sendo considerados os aspectos peculiares de cada cultura, e da mesma forma as condições de desenvolvimento experimentadas por aquelas pessoas. É enfatizado que o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos tem como exigência a participação de organizações da sociedade civil, e a participação popular em geral. Para isso os Governos nacionais devem fazer vigorar marcos institucionais e jurídicos que facilitem ou possibilitem a ampla participação das pessoas e suas organizações comunitárias na tomada de decisões sobre as políticas e programas de assentamentos humanos. No quarto capítulo, a Agenda Habitat vai cuidar do seu Plano Global de Ação, e neste capítulo se inclui, portanto, as estratégias para a implementação da Agenda. Assim, serão identificados os pontos de maior importância, seguidos da ação correspondente para a sua identificação. No que diz respeito à moradia adequada, inicialmente o texto da Agenda explica que por moradia adequada deve se compreender muito mais do que um teto sobre a cabeça das pessoas. Neste conceito, deverão ser incluídas a privacidade e o espaço adequado, a acessibilidade física, a garantia da posse, a estabilidade estrutural e durabilidade, iluminação, aquecimento e ventilação adequados, adequação ambiental, fora todos os serviços relacionados à salubridade, como fornecimento de água, saneamento e tratamento de resíduos, adequada localização em relação ao trabalho e a outros serviços básicos, além do custo desta moradia, que deve ser acessível a todos. Neste capítulo, há menção expressa ao direito à moradia adequada como Direito Humano, reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, como componente importante do padrão de vida adequado. É imputada aos Governos a responsabilidade de promover o setor habitacional, mas também é reconhecida igual responsabilidade a todos os setores da sociedade, inclusive o setor privado, organizações não governamentais, comunidades e autoridades. A Agenda inclui alguns temas importantes envolvidos pelo propósito de realização da moradia adequada que são as políticas habitacionais, os sistemas de provisão de habitação e os grupos vulneráveis. No tocante às políticas habitacionais, a Agenda Habitat considera como princípio fundamental na formulação de uma política habitacional realista a interdependência com as políticas gerais macroeconômicas e de desenvolvimento ambiental e social. A integração destas políticas requer uma série de ações como: a implementação de mecanismos consultivos para coordenar o setor de habitação de forma coerente, identificando o mercado e os critérios adequados para se proceder as alocações; monitorar constantemente o impacto das políticas no sistema de oferta habitacional e avaliar constantemente a política habitacional em relação ao meio ambiente e ao desenvolvimento; vincular a política habitacional às políticas de redução da pobreza; vincular a política habitacional à política ambiental, de geração de empregos, de preservação do patrimônio histórico, cultural e natural, etc. No Brasil, embora a construção de moradias seja de competência comum da União, Estados e Municípios, conforme disposição do artigo 23 inciso IX da Constituição, a estes últimos é que caberá a maior parte da execução das políticas habitacionais, não significando, de forma alguma, que os outros entes federativos fiquem de fora da implementação das mesmas. A preferência se dá aos Municípios porque, de acordo com o artigo 182 da Constituição, fica a cargo deles a implementação da política de desenvolvimento urbano, e assim, juntamente a esta política é que deverá ser desenvolvida a política habitacional, de acordo com as necessidades específicas de cada cidade e da comunidade de pessoas que nela reside. Além disso, a Agenda prevê que as políticas de habitação deverão ser desenvolvidas juntamente com outras: a de desenvolvimento urbano (o que assume o sentido da previsão feita pelo caput do artigo 182, já que um dos objetivos da política urbana é o bem-estar dos habitantes das cidades), a de proteção ambiental, a de geração de empregos, a de proteção do patrimônio cultural dentre outras. Tal integração favorece a sustentabilidade e o desenvolvimento das comunidades. É necessário também, segundo a Agenda, que se revise e se ajuste o marco legal, fiscal e regulatório para se atender às necessidades das pessoas de baixa renda e as que vivem na pobreza. Isto porque, geralmente, a legislação existente, em especial a urbanística e a edilícia, possuem normas que são incompatíveis com a realidade destas pessoas, o que acaba favorecendo a situação de informalidade em que geralmente se encontram. Sobre os sistemas de provisão de habitações, os mesmos devem abranger os seguintes aspectos: - Viabilização do mercado habitacional com intervenções governamentais nos momentos necessários, tanto no âmbito legislativo quanto administrativo; - Facilitação da produção de moradias pelas próprias pessoas a que serão destinadas; - Garantia do acesso a terra e à proteção da posse. Essas medidas são identificadas como auxiliares a quebra do círculo vicioso da pobreza; - Mobilização de fontes de financiamento, que deverão partir não apenas do sistema financeiro convencional, mas também de programas de crédito mais amplo, que atinjam as pessoas com acesso limitado, ou sem acesso, ao crédito; - Acesso a infra-estrutura e serviços básicos, incluindo: fornecimento de água potável, saneamento, manejo de resíduos, assistência social, transporte, comunicações, energia, serviços de assistência médica e emergencial, escolas, segurança pública e gerenciamento de espaços abertos. Todas estas medidas procuram promover a realização da habitação da forma mais acessível possível, procurando integrar todos os recursos disponíveis, envolvendo os financiamentos estatais, os recursos humanos presentes nas comunidades, e os recursos advindos do terceiro setor; facilitando o acesso à terra e à propriedade através de regras claras e simples a respeito, o que é colocado pela Agenda como pré-requisitos estratégicos para a provisão de moradia adequada para todos e como pré-requisito para a eliminação do círculo da pobreza. A Agenda identifica como umas das principais causas da desigualdade e da pobreza, o fracasso das políticas de acesso à terra, pois estas geram aumento do custo de vida, ocupação de áreas de risco, degradação ambiental e vulnerabilidade dos locais de habitação. Quanto aos grupos vulneráveis, a Agenda Habitat ressalta que além de se facilitar o acesso a tudo que envolve política habitacional e o sistema de provisão de habitações, esses grupos devem ser incluídos nos processos de tomadas de decisões sobre os recursos e as oportunidades a serem utilizadas. São identificados como vulneráveis grupos que sofrem com a marginalização e exclusão do fluxo socioeconômico e dos processos de tomada de decisão e com a falta de acesso a recursos e oportunidades. A característica de vulnerabilidade pode também ser transitória, como os que sofreram algum tipo de perda devido a desastres naturais, por exemplo, ou grupos que vivem em extrema miséria, cuja situação pode ser melhorada. Nestes casos a vulnerabilidade costuma ser causada pelas circunstâncias, e não pelas características inerentes ao grupo, uma situação de risco, onde as pessoas perdem a segurança da posse, ou ficam desprovidas dos serviços básicos. Os instrumentos e mecanismos que a Agenda propõe para a solução da vulnerabilidade de alguns grupos em relação à falta de moradia coincidem com os já apresentados anteriormente para a implementação de políticas de habitação e a provisão de habitações, mas no caso são aplicados direta e especificamente a estes grupos, de forma a minimizar os problemas pelos quais passam e procurar reverter a situação em que se encontram, como, por exemplo, no caso de grupos que sofreram despejos forçados. Outro grupo que a Agenda menciona é das mulheres vítimas de violência, que devem contar com abrigos necessários durante o tempo que precisarem para voltar a uma situação normal de vida, devendo-se entender, junto a elas, o abrigo de seus filhos, devido à especial atenção à criança. A Agenda considera também, quando fala sobre grupos vulneráveis, não aqueles econômica e socialmente vulneráveis, mas também o grupo de pessoas que precisam de uma acessibilidade física especial, como os deficientes físicos e os idosos, aos quais deve ser dada a garantia de poder contar com habitações que lhes facilite a vida, além de acesso também em prédios públicos e outras medidas de caráter urbanístico. Foram expostos aqui diversos temas apresentados pela Agenda Habitat relacionados ao seu objetivo maior que é a realização do direito humano à moradia a todas as pessoas. A menção à Conferência de Istambul e à Agenda Habitat no último tópico deste capítulo tem várias razões de ser. Primeiramente, são elas que afirmam o direito a moradia como um direito humano, não apenas enumerando-o ao lado de diversos outros, como uma nobre intenção compartilhada por diversas nações do mundo, mas como um compromisso real de promover o acesso a tal direito. A Agenda Habitat, além de fortalecer a idéia do direito a moradia ser um direito humano, define o conceito de moradia adequada, que é o que realmente se busca, além de determinar os compromissos governamentais relacionados à promoção da moradia (adequada), e ressaltando que esta promoção representa um dos passos a ser dado em relação à eliminação da pobreza. Após o conhecimento do conteúdo da Agenda Habitat, não parece restarem dúvidas sobre a qualificação do direito à moradia como um direito humano, especialmente na realidade global de hoje, marcada pela presença da exclusão e da miséria em índices tão altos. Capítulo 3 O Direito Constitucional à Moradia 3.1 Considerações Iniciais. O reconhecimento expresso do direito à moradia como um direito social. O direito à moradia está incluído dentre os direitos enumerados no artigo 6.º da Constituição da República, que estabelece os direitos sociais, ao lado do direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e à assistência aos desamparados. O texto original do artigo 6.º não continha o direito à moradia como um dos direitos sociais. Este direito foi incluído no artigo 6.º em 14 de fevereiro de 2000, através da Emenda Constitucional n.º 26, passando a ser um direito expressamente tutelado, embora não se afaste a idéia de que sua proteção já era exercida por outros dispositivos constitucionais, como, por exemplo, as competências para a promoção de programas de habitação – artigo 21, XX e artigo 23, IX, o inciso IV do artigo 7.º, que dispõe ser direito dos trabalhadores o salário mínimo capaz de atender às suas necessidades vitais básicas como, dentre outras, a moradia, e o artigo 183, que dispõe sobre a usucapião especial de imóvel urbano, em cujos requisitos está a utilização para a moradia. Além disso, o direito à moradia está implícito na condição de dignidade da pessoa humana, constituindo, como já visto, verdadeiro espaço de exercício da intimidade e da vida privada e de proteção de sua integridade física. O direito à moradia também já era previsto em documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário, em especial o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (através do qual os Estados-membros se comprometeram a efetivamente proteger determinados direitos, dentre eles, o direito à moradia) tendo, portanto, ao menos materialmente, o status de direito fundamental por força do § 2º do artigo 5.º, sem contar as declarações de Vancouver e, posteriormente a de Istambul, sobre moradia e assentamentos humanos. A Emenda Constitucional n.º26 foi resultado da proposta de emenda constitucional (PEC) n.º 601/98. No relatório da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação59, a inclusão do direito à moradia no rol dos direitos sociais foi feita com base nas seguintes justificativas, que aqui merecem ser transcritas: A questão do direito à moradia tem sido objeto de acesso a polarizado debate social tanto em nível nacional como internacional. Fóruns, entidades de classe, entidades governamentais e não-governamentais têm-se reunido nesses últimos anos com vistas ao maior encontro de todos os tempos sobre o tema: a Conferência Habitat II, convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada no período de 03 a 14 de junho deste ano. Para esse evento, o Brasil foi indicado relator da parte da Agenda do Habitat (carta de intenções da conferência) que trata do “direito à moradia”. Coube-lhe, assim, a difícil tarefa de justificar, frente a países como Japão, Estados Unidos e Coréia (que se posicionam contra a inclusão desse termo na agenda), a urgente necessidade de se reconhecer a moradia como um direito social. A participação ativa brasileira em tão importante evento, de caráter mundial, coloca-nos em posição delicada, principalmente quando se verifica, em meio a uma situação eminentemente crítica das áreas urbanas brasileiras, uma lacuna na própria Constituição Federal, que não reconhece a moradia como um direito real, como a saúde, o lazer, o trabalho etc. Mas delicada ainda, fica a situação do Brasil quando, sabedores da realização da Conferência, os “sem teto” de todo país, já bastante organizados, ameaçam “pipocar ocupações de terrenos” na periferia das grandes cidades – conforme se lê nos mais renomados jornais do País. As atuais condições de moradia de milhares de brasileiros chegam a ser deprimentes e configuram verdadeira “chaga social” para grande parte das metrópoles do País. Faz-se, portanto, urgente que se dê início a um processo de reconhecimento da moradia como a célula básica, a partir da qual se desenvolvem os demais direitos do cidadão, já reconhecidos por nossa Carta Magna: a saúde, o trabalho, a segurança, o lazer, entre outros. Sem a moradia o indivíduo perde a identidade indispensável ao desenvolvimento de suas atividades, enquanto ente social e produtivo, se empobrece e se marginaliza. Com ele se empobrece, invariavelmente, a Nação. Como se pode perceber pelo texto do relatório acima, o Brasil viu a necessidade de incluir a moradia dentre os seus direitos sociais devido à dimensão do problema em seu território, além disto ter reforçado o compromisso brasileiro com a comunidade internacional e com seu próprio povo, no sentido da erradicação da pobreza e da miséria e de promoção do desenvolvimento com base na justiça social. Ficou evidenciada, no 59 BRASIL, Câmara dos Deputados.Diário da Câmara dos Deputados. Brasília, 15 de dezembro de 1998. Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em 05 de junho de 2007. relatório da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, a importância do direito à moradia no desenvolvimento de outros direitos já reconhecidos na Constituição, importantes não só ao desenvolvimento da Nação, como também do desenvolvimento da própria pessoa humana, ratificando a idéia de que a moradia é direito essencial para a manutenção da integridade física e da dignidade da pessoa humana. O Brasil é um país que, por diversos fatores, apresenta problemas sociais decorrentes da má distribuição de renda, da ausência do Estado e do próprio fenômeno da globalização, que influem no crescimento da exclusão social e pobreza, e, consequentemente, na questão da moradia, tanto no ambiente urbano quanto no ambiente rural, em praticamente todo o seu território, pautada pela irregularidade e pela inadequabilidade. A menção expressa ao direito neste rol de direitos sociais sem dúvida traz algumas implicações à eficácia e efetividade deste direito, assim como de todos os demais direitos sociais, como se verá adiante. Mas, por si, mostra que o Estado brasileiro assume compromissos em relação a este direito, devido à sua tamanha importância e pelo que representa em termos de indicativo de desenvolvimento. Em outras palavras, além de todo o embasamento na dignidade da pessoa humana que contém, a promoção da moradia, melhor dizendo, da moradia adequada, implica também no desenvolvimento e sustentabilidade das cidades e vice-versa. A própria Agenda Habitat diz desta forma, a Constituição vem dizer, e, posteriormente, o Estatuto da Cidade, regulamentando a Constituição no que diz respeito à Política Urbana, e prevendo instrumentos específicos para solucionar a questão da regularização fundiária, vem completar o respaldo legal da efetivação deste direito. 3.2 Direitos fundamentais sociais. O direito à moradia é incluído no sistema jurídico brasileiro na categoria dos “direitos sociais”. Direitos sociais são aqueles direitos que compõem a segunda geração, ou dimensão, de direitos fundamentais, terminologia esta cercada de diversas dúvidas e críticas, mas amplamente utilizada para caracterizar aqueles direitos que exigem, por parte do Estado, uma atuação positiva. Fala-se em gerações de direitos porque estes surgiram em momentos historicamente distintos, em que se confrontavam contra determinada ordem60, representando verdadeiras conquistas humanas em face de determinados modelos estatais, que num momento anterior não os asseguravam. 60 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p.25. O termo “gerações”, entretanto, não deve levar a idéia de que uma geração de direitos veio em substituição à outra, mas sim remeter à idéia de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância. Todavia, a discordância em relação ao termo não se estende ao conteúdo destes direitos, no que existe consenso.61 Os direitos de primeira geração surgem juntamente ao ideal liberalista, expressado principalmente através dos movimentos revolucionários francês e americano. Correspondem a um rol de direitos que garantem a proteção das liberdades humanas face às ações estatais, resguardando uma esfera de autonomia individual. Estes direitos de primeira geração correspondem aos direitos civis e políticos, como a garantia da propriedade, da autonomia privada, da liberdade, da liberdade de expressão e associação e da participação política, que, num momento anterior ao revolucionário, encontravam-se ameaçados pelo Estado, e também por particulares, e então passam a ser protegidos por cartas constitucionais de qualquer abuso por parte do poder instituído. Por isso, são considerados como destinatários de conduta negativa do Estado, ou seja, requerem uma conduta de não intervenção por parte deste. Toda a base dos direitos fundamentais de primeira geração está firmada no pensamento liberal, em especial na igualdade e liberdade dos homens, sendo estas compreendidas como formais apenas. Significa dizer que todos os homens têm igualdade de gozo da liberdade, ou seja, nenhum homem pode ter mais liberdade do que o outro. Eles nascem livres e não deve haver discriminação fundada em diferenças específicas entre homens e homens.62 Isto se evidencia pelas capacidades expressas no artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades sem distinção de qualquer espécie. É oportuno esclarecer aqui algumas diferenciações que a doutrina faz a respeito da diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais. Para Paulo Bonavides63 ocorre com mais freqüência o emprego dos termos direitos do homem e direitos humanos entre os autores anglo-americanos e latinos, enquanto a terminologia direitos fundamentais é preferida pelos autores publicistas alemães, como define Konrad Hesse64 numa acepção lata, que os direitos fundamentais são aqueles que almejam criar e manter os 61 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.54. 62 Esta concepção de homens iguais no gozo da liberdade leva em conta o estado de natureza, segundo John Locke, conforme explica Bobbio. BOBBIO, Norberto. Op. Cit. p. 85. 63 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 2002, p.514. 64 HESSE, Konrad. “Grundrechte”. In Staatslexikon, Herausgeben von Goeresgesellsschaft. Bd.2. 7. Auflage, 1986, apud BONAVIDES, Paulo, Op. Cit., p. 514. pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana. O mesmo autor65 define direitos humanos restrita e especificamente como aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais. Carl Schmitt66 oferece dois critérios formais de definição dos direitos fundamentais, que seriam aqueles direitos e garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional e também todos os direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia e segurança. E para este mesmo autor67, sob o ponto de vista material os direitos fundamentais são variáveis conforme a ideologia, a modalidade de Estado e as espécies de princípios e valores que a Constituição estabelece, sendo, na essência, os direitos do homem livre e isolado que este possui em face do Estado, e numa acepção estrita, unicamente os direitos de liberdade, em princípio ilimitada, diante de um poder estatal de intervenção, em princípio limitado, mensurável e controlável. Ingo Sarlet68 faz uma distinção interessante entre os direitos humanos e os direitos fundamentais; para o autor, a distinção possui alguma relevância de ordem prática, por existirem diversos planos de positivação. Sendo assim, os direitos fundamentais seriam aqueles reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional de determinado Estado, e os direitos humanos, os incluídos em documentos de direito internacional. Sobre os direitos humanos, Sarlet69 esclarece melhor, dizendo que estes se referem: [...] àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional. Ambas as categorias compartilham da característica da fundamentalidade material. No entanto, a fundamentalidade formal seria atributo apenas dos direitos fundamentais e a conseqüência disto no ordenamento jurídico brasileiro seria: serem parte da constituição escrita, ficando, portanto, em nível hierarquicamente superior no ordenamento jurídico; como normas fundamentais, estarem submetidas aos limites formais e materiais de reforma da constituição; e serem imediatamente aplicáveis, vinculando tanto as entidades estatais quanto as particulares. 65 HESSE, Konrad. Grunduege des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 13, Ergaentze Auflage. Heidelberg, 1982, apud BONAVIDES, Paulo, Op. Cit., p. 514. 66 SCHMITT, Carl. Verfassungslehre. Unveraender Neudruck, 1954, Berlim, p. 163-173, apud BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 515. 67 Idem. Op. Cit., p.163 a 165, apud BONAVIDES, Paulo. Op. Cit., p. 515. 68 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 194-196. 69 Idem. Op. Cit., p. 36. Retornando à capacidade que o ser humano tem de gozar dos direitos de liberdade, esta universalidade, segundo Bobbio70, não se estende aos direitos sociais, pois nestes os indivíduos são iguais apenas genericamente e não especificamente. Melhor dizendo, para o autor, igualdade e diferença têm uma relevância diversa conforme estejam em questão direitos de liberdade ou direitos sociais. Assim, segundo a lição de José Eduardo Faria71 “os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios.” Igualdade e diferença. A realidade demonstrou que isto realmente possuía uma enorme relevância quando se tratava de sobrevivência, de condições de saúde, de condições de trabalho. Os direitos fundamentais baseados na liberdade e na igualdade perante a lei não foram suficientes para contornar os problemas sociais que sempre existiram e que com a industrialização se tornaram ainda maiores. Antes, os homens eram súditos, e viviam sob o comando de um rei. Bem ou mal, eram dependentes, de certa maneira, de uma determinada pessoa. Agora se tornaram livres e podiam contratar o que quisessem e como quisessem, e toda esta liberdade não foi suficiente para que se mudasse suas condições de vida. Com o estado liberal em crise, num quadro de abuso de exploração da propriedade, exploração do trabalho e conseqüente aumento de demandas sociais, em especial na necessidade de diminuição da miséria e melhoria das condições de saúde e trabalho, se observava a necessidade da intervenção estatal em algumas esferas individuais, o que fez surgir a idéia da segunda geração de direitos, que são os direitos sociais. Havia a necessidade de uma intervenção positiva do Estado na garantia de determinados direitos para que se assegurasse um mínimo de justiça social, e isto era espelhado por diversos movimentos sociais reivindicatórios. Surgiu então neste cenário a segunda geração de direitos, de caráter positivo, ou seja, uma categoria de direitos destinados a fazer com que o Estado participe ativamente na promoção do bem-estar social. Todo o embasamento desta nova geração de direitos, que, importante repetir, não exclui a outra, mas a complementa, e de certa forma, garante a sua existência, é feito, pois, sobre o princípio da igualdade. Não a igualdade chamada de “formal”, que implica em todos serem iguais perante a lei, mas uma igualdade material, que proporciona, 70 BOBBIO, Norberto Op. Cit., p. 85-86. FARIA, José Eduardo. O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: notas para uma avaliação da justiça brasileira. In FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 105, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p.299. 71 materialmente, as mesmas oportunidades a todas as pessoas, de crescimento e desenvolvimento de cada ser humano como pessoa, independente do status econômico e social que ocupe. A liberdade aqui estará configurada não como liberdade do Estado e perante o Estado, mas como liberdade por intermédio do Estado.72 Ao contrário dos direitos de primeira geração, os direitos sociais são realizados através de condutas positivas do Estado, dispostos em normas programáticas, promotoras de atuações concretas73, direcionadas fatos existentes, voltadas a realização dos ideais de igualdade e de justiça, sem os quais, num novo contexto histórico, frise-se, fica impossibilitada a realização das liberdades, dos direitos de primeira geração. A realização dos direitos sociais possui um enorme clamor moral, uma vez que necessária para a concretização dos ideais de igualdade e justiça. Estes direitos não podem ser vistos como os direitos que aliviam os problemas dos menos favorecidos. Na realidade atual, a efetividade dos direitos sociais vai representar o embasamento concreto da possibilidade de realização dos direitos civis e políticos e, mais além dos objetivos primordiais elencados nas constituições dos Estados. É o que exige a nova ordem constitucional. É importante ressaltar que os direitos fundamentais sociais são, assim como os direitos fundamentais de primeira geração, direitos do homem individual, não se confundindo com os direitos coletivos ou os direitos difusos, se devendo a expressão “social” a dois motivos, apontados por Ingo Sarlet74: porque podem ser considerados como uma densificação do princípio da justiça social e porque representam uma reivindicação das classes menos favorecidas a título de compensação em virtude de extrema desigualdade. A realização dos direitos sociais representa uma democratização das liberdades conquistadas no contexto do Estado liberal, integrando a atuação defensiva dos próprios direitos fundamentais de base liberal.75 Assim o Estado, mediante uma atuação positiva, constrói as bases para que se assegurem condições de liberdade concreta e efetiva. Traduzindo, não há como se exercer a liberdade sem que a pessoa tenha garantido um mínimo 72 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit. p. 57. Segundo Paulo Bonavides, estes direitos passaram primeiro por um ciclo de baixa normatividade, ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude desta natureza de direitos que exigem do Estado prestações materiais que nem sempre são possíveis devido à carência ou limitação de meios e recursos. A inserção na esfera programática se deu por não conterem as garantias ministradas por instrumentos processuais de proteção, como as destinadas aos direitos de liberdade. Op. Cit., p. 518. 74 SARLET, Ingo. Op. Cit. p. 57-58. 75 BARRETTO, Vicente de Paulo. Reflexões sobre os direitos sociais, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.128. 73 de condições dignas de existência e manutenção de sua vida, de sua saúde e de seu trabalho. A pessoa dotada deste modo de vida saberá reivindicar, democraticamente, tudo que seja necessário para o seu desenvolvimento. Por este motivo, toda a fundamentação ética dos direitos sociais estará baseada no princípio da dignidade da pessoa humana como exigência de justiça.76 3.3 Fundamentação ética dos direitos sociais. A Constituição da República, em seu preâmbulo, traz a indicação de que, o Estado Democrático de Direito, instituído pelo povo brasileiro, é destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias, tanto na ordem interna quanto na ordem internacional. Vê-se, portanto, que os direitos sociais, ao lado de outros, são postos como valores supremos a serem assegurados pelo Estado. O teor do preâmbulo é condizente com os objetivos da República Federativa do Brasil, que se constituem em: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. A respeito dos direitos sociais, há, portanto, antes de tudo, um compromisso da República com sua realização. Assim, é tarefa do Estado a realização de todo o possível para tornar real aquilo que se almeja, ou seja, garantir o exercício dos direitos que enumera como direitos sociais, no mínimo, na medida em que seja necessário para o cumprimento dos objetivos da República. Esta obrigação Estatal deve vir antes de qualquer controvérsia relacionada ao regime jurídico dos direitos sociais, que por vezes terminam, segundo Vicente Barretto77, “rebaixados na hierarquia normativa, reduzidos a simples normas programáticas à espera de serem regulamentadas para produzirem efeitos.” Antes, portanto, de se adentrar numa discussão sobre a problemática da eficácia, da aplicabilidade e da efetividade das normas constitucionais que descrevem os direitos sociais, é necessário que se volte os olhos a esta categoria como sendo um compromisso ético de realização da dignidade da pessoa humana. 76 77 BARRETTO, Vicente de Paulo. Op. Cit., p. 130. Ibidem, p.108 Como visto anteriormente (Capítulo 1), a dignidade humana é vista como um valor ao qual se tem recorrido para dar ao direito uma interpretação que favoreça o ser humano enquanto pessoa, acima de qualquer outra interpretação. Ela vem elencada como fundamento da República Federativa, ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e do pluralismo político. Isto para dizer que os seres humanos, neste país, devem ser vistos e tratados, sempre como pessoas fins em si mesmas, e especificamente em relação aos direitos sociais, a dignidade fará pressupor a existência de mínimas condições materiais de existência dos indivíduos.78 Quanto a isto, é normal que existam divergências a respeito do conteúdo do que possa ser uma vida humana digna, mas como diz Ana Paula de Barcellos79: [...] se a sociedade não for capaz de reconhecer a partir de que ponto as pessoas se encontram em uma situação indigna, isto é, se não houver consenso a respeito do conteúdo mínimo da dignidade, estar-se-á diante de uma crise ética e moral de tais proporções que o princípio da dignidade humana terá se transformado em uma fórmula totalmente vazia, um signo sem significado correspondente. Desta maneira, encontram-se os direitos sociais na tarefa de assegurar às pessoas condições de existência tais que possa se dizer que estas vivem de forma digna. Ao falar sobre o mínimo existencial, Ricardo Lobo Torres, citando Rawls80 e Dworking81, concorda com que diz o primeiro, que as necessidades básicas, mínimos sociais, integram o princípio da liberdade, sendo fundamentos constitucionais, e não se confundindo com a justiça básica, e com o que diz o segundo, “liberdade e igualdade são aspectos da mesma virtude política, porque a estratégia da ponte que as liga usa a liberdade para ajudar a definir a igualdade e, em nível mais abstrato, a igualdade para ajudar a definir a liberdade.” É importante esclarecer que mínimo existencial não se confunde com direitos sociais. Aquele é a parcela destes que pode ser exigida como forma de se assegurar a liberdade da pessoa. E nisso existe a ligação entre os estes direitos e toda a manutenção dos demais direitos fundamentais, bem como dos princípios democráticos, assunto demasiadamente longo para se expor aqui. 78 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. Cit., p.191. Ibidem, p. 197. 80 RAWLS, John. A Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press, 1980, p.60, apud TORRES, Ricardo Lobo. A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial. In SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Op. Cit., p. 3. 81 DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue. The Theory and Pratice of Equality. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p.182, apud TORRES, Ricardo Lobo, Op. Cit., p. 4. 79 Vicente Barretto82 vai dizer que os direitos sociais perdem o caráter de caridade e passam a assumir “o caráter de exigência moral como condição de sua normatividade”, constituindo-se direitos “impostergáveis na concretização dos objetivos últimos pretendidos pelo texto constitucional”, e entendidos como igualdade material e exercício da liberdade real. Este é, portanto, o novo paradigma assumido pela ordem constitucional, que enxerga o ser humano além de sua dimensão individual, considerando também sua dimensão social. Barretto83 insiste que a fundamentação ética kantiana não nega a natureza social do ser humano, como querem aqueles que realizam uma leitura reducionista da obra do filósofo, ao contrário, permite uma abertura metodológica para desenvolver a idéia de que os direitos sociais tem caráter de universalidade obrigatória. Isto sem contar, como já dito anteriormente, que os direitos sociais são direitos do homem individual, ao contrário dos direitos difusos. Eles apenas trazem esta terminologia por identificar o ser humano através de determinados grupos, na necessidade de se promover a igualdade atuando de forma desigual diante de grupos desiguais, com fins de proporcionar um padrão mínimo de existência digna aos grupos menos favorecidos econômica e socialmente. 3.4 Realização dos direitos sociais a partir da norma constitucional. Não há como omitir a diversidade de opiniões acerca da aplicabilidade e efetividade das normas definidoras dos direitos sociais, principalmente quando se pretende abordar a questão da efetivação de um direito desta espécie, como no caso do direito à moradia, objeto deste estudo. Começa-se pela leitura da norma constitucional. Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Capítulo I, dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Capítulo II, dos Direitos Sociais. Após a enumeração, no artigo 5.º da Constituição da República,dos diversos direitos e deveres individuais e coletivos, o parágrafo 1.º deste artigo reza que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, e o parágrafo 2.º, que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Não há nos demais artigos e parágrafos que 82 83 BARRETO, Vicente. Op. Cit., p.110. Ibidem, p. 132-133. compõem o Título II qualquer referência à aplicação dos Direitos e Garantias Fundamentais. Devem-se guardar bem estes dispositivos para a compreensão dos debates a seguir. É oportuno o momento para que se faça menção às palavras de Norberto Bobbio 84, quando diz: Deve-se recordar que o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países contra os direitos do homem não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexeqüibilidade. Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Na doutrina nacional existem posicionamentos interessantes acerca da eficácia, da efetividade e da aplicabilidade das normas definidoras de direitos fundamentais, aos quais se faz alusão no momento em que se pretende realizar o direito enunciado na norma. De plano, não existe maiores controvérsias a respeito da aplicabilidade e da efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais classificados como direitos e garantias individuais e coletivas, previstos no artigo 5.º da Constituição, por neles poder se identificar, de plano, um direito subjetivo, ou seja, uma faculdade de ação contra aquele que se opuser ou violar esse direito. Mas a respeito dos direitos sociais são identificadas algumas dúvidas devido, em grande parte, à necessidade da atuação Estatal na sua promoção, e por isto se faz a menção do problema. José Afonso da Silva85, em obra intitulada Aplicabilidade das Normas Constitucionais, procedeu a uma classificação das normas constitucionais conforme a maneira com que podem ser aplicadas, a partir do tipo de eficácia que contém cada espécie de norma, não se importando se a norma produz efetivamente estes direitos, o que seria uma questão de abordagem sociológica, que diz respeito à eficácia social da norma.86 Assim, classificou como normas de eficácia limitada aquelas que definem os direitos sociais, ficando sua aplicabilidade dependente de uma atuação positiva do poder público. As normas definidoras de direitos sociais seriam normas constitucionais definidoras de princípios programáticos, ou seja, disposições relacionadas aos programas direcionados a uma orientação social democrática das constituições.87 84 BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 43. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1998. 86 Ibidem, p.13. 87 Ibidem, p. 136-137. 85 O caráter de fundamentalidade não fica afastado pelo fato destes direitos dependerem de prestações positiva88, mas assumem dois aspectos, um de direito do cidadão, de caráter individual, e outro de caráter institucional, que faz depender do Estado a sua realização, sendo regras jurídicas aplicáveis e vinculativas a todos os órgãos do Estado.89 Este caráter vinculativo tem tido mais reconhecimento, e mesmo sendo dependentes de providências institucionais, não significa que os direitos sociais não tenham eficácia, sendo, porém, esta, limitada, dependente de uma normatividade futura.90Atuam, mesmo assim, além de estabelecer dever para o legislador e informar a concepção de Estado comprometido com fins sociais, como normas de sentido teleológico que exercerão grande influência na interpretação constitucional e também como condicionantes da discricionariedade da Administração pública.91 A respeito do conteúdo do parágrafo 1.º do artigo 5.º da Constituição da República, sobre a aplicabilidade imediata das normas que definem os direitos fundamentais, José Afonso da Silva afirma que estas são sim, aplicáveis, até onde as instituições ofereçam condições para seu atendimento e, pelo Poder Judiciário, quando provocado, que as aplicará dentro das condições existentes.92 Toda essa questão da limitação da eficácia parece estar ligada a problemática de não se conseguir identificar nos direitos sociais o direito subjetivo. Ou seja, a previsão constitucional de um direito social não cria para a pessoa um direito subjetivo de exigi-lo, como acontece por exemplo, com os direitos fundamentais de primeira geração que, caso sofram ofensa ou violação, gozam de amparo para que se possa reivindicá-los, havendo contra a ofensa um poder de ação. Há um dever jurídico de abstenção que, caso seja violado, fará existir, de um lado, a faculdade de agir e do outro, a obrigação de cumprir, no caso dos direitos fundamentais, do Estado. Como os direitos sociais envolvem toda uma questão de gastos públicos, orçamento, de sua garantia estar na realização concreta e não numa posição estatal de defesa que só será acionada caso haja uma violação do direito, sua realização é muito mais complexa, e não pode ser ofensiva ao princípio da separação dos poderes de Estado. Obviamente, a manutenção das garantias dos direitos fundamentais de primeira geração também comporta um gasto, mas a questão da complexidade não está só no 88 SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 151. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 1.ª Edição. Coimbra: Almedina, 1991, p.183, apud SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 151-152. 90 SILVA, José Afonso da. Op. Cit., p. 163. 91 Ibidem, p. 164. 92 Ibidem, p. 165. 89 custo, mas na própria realização. Os direitos sociais demandam, além de gastos, estratégias, políticas, estudos, para que sejam oferecidos adequadamente e a contento. Sobre a tipologia das normas constitucionais, também é proposta uma classificação por Luís Roberto Barroso93, não excluindo outras classificações existentes. Seu trabalho propõe uma classificação tendo por base a efetividade94 das normas constitucionais quanto aos direitos fruíveis individual e coletivamente, procurando reduzir a discricionariedade dos poderes públicos na aplicação da Constituição, bem como estabelecer critérios mais científicos para a interpretação constitucional pelo poder judiciário. Assim as normas constitucionais seriam compreendidas em: normas constitucionais de organização, que estabelecem e ordenam os poderes estatais e órgãos públicos, definem competências, atribuições, possuindo efeito constitutivo imediato nas situações que enunciam; as normas constitucionais definidoras de direitos, que são as que definem os direitos fundamentais dos indivíduos submetidos à soberania estatal e normas constitucionais programáticas, que contemplam interesses de caráter prospectivo, firmando posições diretivas, algumas observáveis de pronto e outras a serem observadas progressivamente, indicando fins sociais a serem alcançados. Os direitos sociais enquadram-se na categoria das normas definidoras de direito. O conteúdo desta categoria, normas definidoras de direitos, comporta um problema situado na variedade de conceitos que o termo direito possui e a variedade de aspectos que pode conter, o que faz com que se identifiquem, pela mesma terminologia, situações diversas.95 Barroso96 vai partir da idéia de direito subjetivo, anteriormente descrita, para dizer que as normas definidoras de direitos se enquadram neste esquema conceitual (de direito subjetivo) estando definitivamente superada a concepção de que as declarações de direitos não seriam, senão, princípios filosóficos e morais. No entanto, deixa a recomendação que o vocábulo direito seja reservado para situações jurídicas que se enquadrem no conceito de direito subjetivo, o que faria com que na Constituição não se tivesse, sob a designação de “direitos”, situações jurídicas completamente distintas, como por exemplo, a situação do 93 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 91-122. 94 Efetividade o autor define como a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, representando a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais, simbolizando a aproximação do deverser normativo com o ser da realidade social. Ibidem, p. 85. 95 Ibidem, p.103. 96 Ibidem, p.103-105. direito à moradia, que, segundo o autor, parece não ter sido a intenção do texto investir qualquer pessoa do direito subjetivo de exigir do Estado uma prestação positiva.97 De qualquer maneira, ainda há resistência no enquadramento das normas definidoras de direitos sociais como exigíveis através da fórmula coercitiva direcionada aos direitos subjetivos, o que, para Barroso98, é uma resistência ideológica e não científica. Mas as controvérsias acerca do conteúdo do vocábulo direito ajudam a criar esta resistência e a proceder à adequada aplicação da norma. Levando em consideração que as normas constitucionais sempre possuem eficácia jurídica e são imperativas99, não cabe nenhuma consideração que os direitos sociais são inexeqüíveis ou dependem exclusivamente de formulação legislativa posterior. Alguns vão gerar situações prontamente desfrutáveis, outros dependerão de prestações positivas do Estado e outros ainda dependerão da edição de norma infraconstitucional. Assim, se mostra necessário que, para que as diversas situações jurídicas criadas pela Constituição sejam efetivadas, deve existir o amparo de instituições, atitudes e procedimentos aptos a fazer atuar o comando abstrato da norma.100 Ingo Sarlet101 considera os direitos fundamentais, por força do artigo 5.º, § 1.º da Constituição como imediatamente aplicáveis, pois, ainda que baixa a sua densidade normativa, estes sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos. Sustenta o autor que a norma supra citada é aplicável a todos os direitos fundamentais, ainda que não da mesma maneira102, sendo uma norma que impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dos direitos fundamentais, fazendo com que os direitos e garantias de cunho fundamental sejam diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, investindo os poderes públicos na atribuição constitucional de promover as condições para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efetivos.103 Assim Sarlet104 afirma que a norma contida no § 1.º do artigo 5.º da Constituição trata-se de norma de natureza principiológica que atua como mandado de otimização estabelecendo, aos órgãos estatais, a tarefa de reconhecerem, à luz do caso concreto, a maior eficácia possível a todas as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais. 97 BARROSO, Luís Roberto, Op. CIt.. p.114. Ibidem, p. 106. 99 Ibidem, p. 89. 100 Ibidem, p. 280. 101 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 296-298. 102 Idem, Op. Cit., p. 222. 103 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. São Paulo: RT, 1995, p.92, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 222. 104 SARLET, Ingo Wolfgang, Op.Cit. p.223. 98 Voltando um pouco o foco ao objeto deste estudo, o direito à moradia, e procurando situá-lo dentro da problemática da efetividade, aplicabilidade e eficácia dos direitos sociais, é possível nele se identificar tanto um direito de defesa quanto um direito prestacional, ainda que seja reconhecido como direito fundamental social. E ambos os aspectos são interessantes aqui, mesmo que as controvérsias maiores sejam em torno do aspecto prestacional. Assim, quando por ocorrência da ofensa a sua dimensão de direito de defesa, a aplicabilidade da norma será imediata e plena, com o fim de coibir a ofensa. É possível identificar-se este aspecto de direito de defesa quando se vê que o direito à moradia deve ser protegido em face de remoções e de desapossamentos, e numa interpretação que leva em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, devendo sempre contar com um peso maior, principalmente quando a retirada das pessoas de suas moradias ocorra por necessidades tais qual a preservação ambiental, e que, caso a hipótese de remoção seja inafastável, que ao menos seja realizada com base no devido processo legal e jamais de forma arbitrária, além de que medidas compensatórias e minimizadoras dos danos às pessoas sejam aplicadas. Observa-se também um aspecto, que pode possuir uma face negativa, de defesa, e outra positiva, prestacional, que é observado nas situações onde, para se atingir a segurança da posse, se lança mão de instrumentos como a usucapião especial de imóvel urbano ou a concessão de uso especial para fins de moradia. O aspecto negativo leva em conta que a moradia é protegida tendo em vista um direito subjetivo que surgiu pelo decurso de uma prescrição, e o aspecto positivo é identificado no dever do Estado em permitir e dar condições para que os instrumentos sejam usados. No tocante à dimensão prestacional, Sarlet105 afirma que o direito à moradia também (e não apenas) assume a condição de norma programática, impondo ao poder público a tarefa de atuação na sua promoção e proteção, sem que com isto perca a sua fundamentalidade, mesmo que, sob este aspecto, seja sua eficácia reduzida, embora a aplicabilidade imediata, e não sendo poucos os efeitos jurídicos que delas podem ser extraidos independentemente de qualquer intermediação do legislador. O cunho prestacional vai fazer parte da atividade do Estado, principalmente na atuação legislativa voltada ao orçamento, à instituição de mecanismos de financiamento e programas destinados à aquisição de moradias, e na atuação administrativa, aplicando os recursos existentes juntamente com parcerias, até mesmo da própria comunidade interessada. 105 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 233-234. A respeito do direito à moradia sob um aspecto de direito a condições materiais, Sarlet106 considera a possibilidade, ainda que eventualmente, de que este possa ser admitido como um direito subjetivo a prestações fáticas, através de reconhecimento por órgãos do Poder Judiciário, numa solução harmonizada com o conteúdo da norma do § 1.º do artigo 5.º da Constituição. Argumenta-se que, ainda que se leve em conta os princípios da separação dos poderes e da reserva parlamentar para matéria orçamentária, e o fato de que os direitos caracterizados por prestações dependem de recursos disponíveis e da capacidade de dispor destes direitos, é possível se admitir um direito subjetivo originário, através de um exercício de ponderação destes princípios com o princípio da liberdade fática (relacionado às condições mínimas, não apenas de sobrevivência, mas de real aparato para que todos os demais direitos fundamentais possam ser exercidos pela pessoa). Para que isto seja possível, entretanto, devem estar presentes, segundo a lição de Robert Alexy107, as seguintes condições, que deverão ser conjugadas: a liberdade fática deve estar realmente ameaçada e o reconhecimento do direito subjetivo deve ser imprescindível para garanti-la; os princípios da separação dos poderes e da democracia devem ser atingidos da forma mais reduzida possível; e os princípios materiais (os relacionados a direitos e garantias de outras pessoas) devem sofrer a menor ofensa possível. Como se vê, a realização dos direitos sociais através das condições de aplicabilidade e efetividade das normas constitucionais é tarefa recheada de algumas divergências e muitas dúvidas. Ao fim, percebe-se que, apenas na análise do caso concreto é que se poderá tomar um posicionamento extremo, como este do reconhecimento do direito social como um direito subjetivo quando a sua falta implicar diretamente no prejuízo a liberdade fática. Desta forma, nunca é demais lembrar que muito da efetividade dos direitos sociais hoje virá através de um exercício de hermenêutica entre os princípios que pairam sobre os interesses a serem conjugados na aplicação do direito (em especial os princípios da dignidade da pessoa humana, da separação dos poderes, da reserva parlamentar, da razoabilidade, da proporcionalidade) e a observância da reserva do possível108 e do mínimo 106 SARLET, Ingo Wolfgang, Op. Cit.p. 236. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 495. 108 A reserva do possível, em resumida explicação, se traduz, segundo Sarlet, em três dimensões: a efetiva disponibilidade fática de recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos (distribuição de receitas, competências orçamentária, tributária, legislativa e administrativa) e, na perspectiva do eventual titular do direito a prestação, que esta seja proporcional e razoável no tocante à sua exigibilidade. A reserva não constitui elemento dos direitos fundamentais, mas uma espécie de limite jurídico e fático em algumas situações e até mesmo, garantias, quando houver dois direitos fundamentais em conflito. SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 304-305. 107 existencial109, para que se encontre o melhor desfecho, e não apenas com base na norma constitucional. Neste sentido, concorda-se aqui com as afirmações feitas por Rogério Gesta Leal110 quando afirma que é preciso que se perceba que de nada adianta contar com um sistema jurídico detentor de instrumentos que permitem viabilizar os direitos humanos e fundamentais se os próprios aplicadores do direito no Brasil muitas vezes calam e renegam a existência de um conjunto de princípios e regras jurídicas que alcançam e protegem, formalmente, aqueles direitos. É evidente, portanto, que toda atuação, administrativa e jurídica, deve ser orientada no sentido de que é seu dever realizar uma interpretação favorável à manutenção dos direitos fundamentais pelo fato disto constituir mandamento supremo na Constituição, a fim de que se preserve os valores democráticos, a igualdade, a justiça e a liberdade. 109 O mínimo existencial, segundo Ricardo Lobo Torres, vai proteger as condições iniciais de liberdade, entendidas como os pressupostos materiais para o seu exercício, pois, sem o mínimo necessário à existência, cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. “O homem não pode ser privado do mínimo necessário à conservação de sua vida e de sua liberdade”. TORRES, Ricardo Lobo. Op. Cit., p. 5. 110 LEAL, Rogério Gesta. Op. Cit., p. 192. Capítulo 4 A tutela da propriedade pós Constituição de 1988 e sua influência nos direitos relacionados à terra urbana 4.1 Considerações iniciais sobre a relação entre moradia e propriedade. Moradia é uma necessidade humana a que um grande número de pessoas no mundo ainda não tem acesso, e no Brasil não é diferente. Para se entender a problemática do direito de moradia no Brasil, e as conseqüentes implicações do tema em relação ao Estatuto da Cidade e outras leis que possam se referir ao direito à moradia é necessário que se teça algumas considerações a respeito da relação que a moradia possui com outro direito, que é o direito de propriedade, e a forma como a sua tutela se deu ao longo da história no sistema jurídico brasileiro. Isto se justifica por dois motivos: um deles pelo fato da propriedade ser um direito formalmente reconhecido como direito fundamental em momento muito anterior ao direito à moradia, e a forma com que este direito se impõe permanecer quase a mesma até hoje, muito embora, ao menos na letra da lei, tenha havido algumas mudanças no paradigma de seu caráter absoluto, o que de certa forma influencia o seu exercício. O outro motivo seria: o direito à moradia é um direito fundamental que depende de um espaço físico para ser exercido; assim, como os espaços físicos são tutelados pelo direito de propriedade, não há como se pensar em moradia sem se considerar a propriedade. O direito de propriedade se desenvolve a partir do surgimento dos Estados modernos (séc. XIII), depois se aperfeiçoa com o mercantilismo (a partir do séc. XVI) e vem a ser uma das expressões máximas do liberalismo. Ele passa a ser após a Revolução Francesa uma das garantias do Estado Moderno, ao lado da liberdade e da igualdade. A idéia da propriedade contemporânea, da propriedade burguesa que se tem, direito subjetivo independente, que viria a ser fundamento das constituições liberais, foi desenvolvida por John Locke, pois até então a idéia de propriedade que se tinha estava sempre atrelada à de utilidade.111 John Locke112, no Segundo Tratado de Governo vai se referir à propriedade como originária do trabalho humano, que por si já é propriedade exclusiva do trabalhador, e identifica como principal matéria da propriedade a própria terra. Desta forma, no liberalismo o poder tende a ficar relacionado à propriedade, uma vez que este poder agora se concentra na mão dos cidadãos livres, iguais e proprietários. Além disso, o liberalismo traz a idéia de que tudo que seja baseado num contrato firmado entre partes livres e iguais é legítimo e, portanto, a propriedade adquirida desta forma é legítima. Embora John Locke tenha teorizado que a terra se destina a produção, o capitalismo a transforma em bem jurídico atribuindo a ela valor de troca. Assim, a terra deixa de ser apenas a provedora de necessidades básicas do ser humano e seu acúmulo passa a significar reserva de valor. Ao longo da história o direito de propriedade foi influenciado por diversos acontecimentos, em especial por toda a exploração do trabalho cometida após o advento do liberalismo. Logo se viu que o contrato de trabalho por mais que dito legítimo, uma vez que perfeito na igualdade e na liberdade de contratar, tornara-se um objeto de exploração, vez que os trabalhadores não tinham outra opção para sobreviver senão a de se submeter ao trabalho que lhes era oferecido. Na Encíclica Rerum Novarum, a liberdade no contrato foi questionada e sua advertência foi no sentido de que ao contrato não bastava ser legítimo, mas tinha também que ser justo, e para isso era necessária a intervenção do Estado. O texto da Encíclica não deixa de ser também uma reação às idéias socialistas, pois em momento algum negava a propriedade privada, ao contrário, a defendia, sustentando que fosse mantida em nome da dignidade e da vida. O advento o socialismo também vai por em questão propriedade privada uma vez que, em explicação resumida, este dizia que seria ilegítima a propriedade de bens que fossem essenciais a vida, e desta forma a negava. Após a Primeira Guerra Mundial, surge uma nova forma de Estado Capitalista, que preconizava alguma intervenção do Estado na ordem econômica, o chamado 111 MARÉS, Carlos Frederico. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 23. 112 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p.227-229. Estado do bem-estar social. Nele a propriedade era respeitada e protegida, mas em alguns casos poderia ser excepcionada, como através de desapropriações (embora deva ser lembrado que a desapropriação pressupõe indenização, e desta forma não há que se falar patrimonial) etc., ou seja, começa a se pensar, ao menos juridicamente (pois na realidade foi visto que muito pouco foi feito para se socializar a terra), neste modelo de Estado, no que se chama de função social da propriedade. Na América Latina, segundo lição de Carlos Frederico Marés113, o fenômeno do Estado Social de Direito ocorre, mas associado a ditaduras, o que o impediu de avançar de forma significativa, em especial no que se relaciona à questão da terra, uma vez que esta forma de Estado pressupõe uma ordem fundiária mais justa e organizada e o que se observou ao final foi que os grandes latifúndios permaneceram por serem seus donos os detentores do poder político, situação que repercutiu ao longo dos tempos na distribuição de terras em todo o continente. No histórico da América Latina, observa-se que, mesmo em localidades onde o poder político não mais se encontra exclusivamente relacionado ao poder dos proprietários de terras, a questão da distribuição continuou sendo um grande problema para o continente. E a má distribuição de terras foi um problema não apenas no campo, mas também dos centros urbanos. A desigualdade na distribuição de terras na região é apontada como um dos fatores responsáveis pelo aumento da marginalização de segmentos mais vulneráveis da população, que permanecem com restrição de acesso aos serviços essenciais de infra-estrutura, e que consequentemente veio influir na proliferação de assentamentos humanos precários em áreas irregulares e impróprias para a moradia.114 4.2. Breve histórico do direito de propriedade no Brasil. A evolução jurídica do tratamento da propriedade no Brasil começa com a legislação portuguesa da época colonial, e a referência a esta legislação ajuda a fazer entender a forma pela qual a propriedade no Brasil foi distribuída e como este conceito é compreendido, ou seja, o que a propriedade significou verdadeiramente na história brasileira. Durante o período colonial, a questão da terra foi tratada pela Lei de sesmarias, que foi mantida pelas Ordenações Manuelinas e pelas Ordenações Filipinas, e de acordo com ela, a propriedade era caracterizada não só pelo direito, mas também pela 113 MARÉS, Carlos Frederico. Op.Cit., p.87. OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Moradia Adequada na América Latina. In ALFONSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio (Org.). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p.18. 114 obrigação de utilizar a terra. A terra era vista não como um bem que possuía valor por si só, mas como um bem que servia à produção. Essa concepção foi perdendo espaço devido às idéias liberais, e o pleno exercício da propriedade passou a ser uma das garantias do Estado Nacional surgido no século XIX. No entanto, enquanto surgiam as Constituições protegendo o direito de propriedade da intervenção Estatal, as elites aumentavam o seu patrimônio, pois o governo a elas concedia títulos de propriedade das chamadas terras devolutas, deixando os camponeses, índios, negros libertos desprovidos de sua economia de subsistência.115 Juridicamente, a propriedade no Brasil foi protegida constitucionalmente da seguinte maneira: a Constituição do Império, de 1824, fazia menção à propriedade em dois curiosos dispositivos: primeiramente no capítulo VI, artigo 133, V, que dispunha que os Ministros de Estado eram responsáveis pelo que “obrarem contra a Liberdade, segurança ou propriedade dos Cidadãos”, ou seja, evidente nesta passagem a proteção dos direitos civis da ação estatal; mais a frente, no título 8º, Das Disposições Geraes e Garantias dos Direitos Civis e Políticos, no artigo 179, constava a propriedade como uma das bases destes direitos. A primeira Constituição da República, de 1891, numa Seção sobre a Declaração dos Direitos, o artigo 172 dispunha que “A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”, e no parágrafo 17 deste artigo estava previsto que o direito de propriedade era mantido em toda a sua plenitude, com exceção da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. A Constituição de 1934 dispunha sobre a propriedade como garantia individual da mesma forma que a anterior, mas no item 17 do artigo 113, estava previsto que o direito de propriedade era garantido, mas não poderia ser exercido contra o interesse social e coletivo. Neste dispositivo já se configura um clara disposição à se dar a propriedade uma função social. Ainda no mesmo dispositivo, previa-se a desapropriação mediante indenização, e o uso da propriedade particular em caso de guerra ou comoção intestina, quando fosse necessário, até onde o bem público exigisse, com ressalva a indenização ulterior. Na Constituição de 1937, era prevista apenas a garantia da propriedade, sem maiores ressalvas, exceto a desapropriação mediante indenização prévia e motivada por necessidade ou utilidade pública. A Constituição de 1946 igualmente garantia a propriedade, previa o uso em caso de guerra ou comoção intestina como a Constituição de 1934, mas possuía um Título em 115 MARÉS, Carlos Frederico. Op. Cit., p.104. que tratava da Ordem Econômica e Social, e neste título, alguns dispositivos interessantes. O artigo 147 previa que o uso da propriedade seria condicionado ao bem-estar social, e conforme a lei, poder-se-ia promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. Aqui, pela primeira vez, o instituto da desapropriação poderia ser utilizado não apenas para o uso público, mas para distribuição de terras. O artigo 156 fazia a previsão da facilitação do homem no campo mediante estabelecimento de planos de colonização e aproveitamento de terras públicas, preferencialmente os nacionais e dentre eles, os habitantes de zonas empobrecidas e desempregados. Podia se enxergar nestes dispositivos uma séria disposição a atribuir à propriedade uma função social, mas na realidade, muito pouco se fez a respeito, devido à dificuldade de se romper o paradigma de “absoluto” do direito de propriedade. No § 3º do artigo 156 também havia a previsão de aquisição por uma espécie de usucapião àquele que, não sendo proprietário de outra terra rural ou urbana, ocupasse por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, área de terra não superior a vinte hectares, tornando-o produtivo e nele morando. A Constituição de 1967 tinha a propriedade como direito e garantia individual, salvo a necessidade de desapropriação, mencionado expressamente a finalidade para uso público ou interesse social, e o uso excepcional pelas autoridades competentes em caso de necessidade. Havia nesta constituição um título da Ordem Econômica e Social, que tinha como fim a realização da justiça social, com base em determinados princípios, dentre os quais, a função social da propriedade. É a primeira vez, portanto que o termo aparece literalmente no texto de uma Constituição da República. A Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, que deu nova redação a grande parte da Constituição, previu praticamente as mesmas garantias em relação à propriedade. Além dos dispositivos constitucionais, duas leis em especial merecem destaque na compreensão da propriedade brasileira. A primeira delas é a Lei n.º 601 de 1850, denominada Lei Imperial de Terras. Após a independência, muitas terras que haviam sido da Coroa Portuguesa estavam ocupadas por particulares, sem que houvesse qualquer proteção legal a esta ocupação, as chamadas terras devolutas. Havia cinco situações juridicamente relevantes na situação das terras brasileiras: as sesmarias já confirmadas, que eram consideradas legítima propriedade; as sesmarias não confirmadas, por não contarem ainda com a ocupação ou produção, nem com o ato de governo que confirmava a propriedade; as glebas ocupadas por simples posse, onde havia algum tipo de produção ou moradia; as terras ocupadas para uso do governo, consideradas bens de domínio público; e as terras sem ocupação, que viriam a ser chamadas de terras devolutas, numa nova conceituação feita pela Lei n.º 601 de 1850.116 A Lei Imperial de Terras, portanto, confirmou as sesmarias ainda não confirmadas, reconheceu, mediante o que chamou de legitimação da posse as terras ocupadas mediante simples posse, onde houvesse produção ou moradia, e isto, mediante registro, era considerado título de propriedade, e ainda, determinou um novo conceito para as terras devolutas, que seriam, a partir de então, aquelas legalmente não adquiridas, delimitando, a partir dali sua aquisição mediante compra, apenas117, o que excluía um grande número de pessoas que não tinham poder econômico para tanto, impedindo a aquisição pela simples ocupação das terras, o que gerou inúmeras conseqüências no que concerne à ocupação de terras no país, na luta dos camponeses e trabalhadores pela terra. De qualquer forma, esta lei foi um marco importantíssimo na história da propriedade brasileira. A outra lei é o chamado Estatuto da Terra, Lei n.º 4.504 de 1964, destinada à reforma agrária, que terminou por não atingir seus fins, primeiro pela dificuldade que o sistema jurídico impunha ao acesso a terra, mantendo a garantia absoluta da propriedade, e segundo porque estipulava que a correção das injustiças agrárias deveria ser feita mediante desapropriação, o que sempre ficava na dependência da atuação política do governo, dos tribunais, etc.118 A propriedade no Brasil sempre serviu à especulação de terras, mesmo quando à custa das necessidades humanas. Muito embora seja mais evidente e mais discutida a questão da propriedade rural, até mesmo pela existência de movimentos de grande impacto reivindicadores da reforma agrária, a propriedade urbana não ficou isenta destas mazelas, e a composição da cidade brasileira também foi marcada pela especulação imobiliária, o que fez com que o cenário urbano brasileiro tivesse o desenho que tem, e conseqüentemente, que o problema da moradia se fundasse também neste quadro histórico. Todas as vezes em que estas Constituições falaram sobre “interesse social” ou “função social da propriedade”, não se soube exatamente o que se quis dizer com isso. Dizer que a propriedade deve cumprir uma função social faz pressupor que se saiba, ao menos, quais os problemas sociais existentes que se vinculam de alguma forma à propriedade, senão a intenção fica vazia de sentido e se torna inoperante. Do ponto de vista da eficácia, a 116 MARÉS, Carlos Frederico. Op. Cit., p. 68-69. Ibidem, p. 69-70. 118 Ibidem, p. 108. 117 função social corre o risco de não se perfazer, permanecendo apenas como uma intenção da lei, como bem adverte Jacques Távora Alfonsin119, no trecho de artigo de sua autoria, a seguir: O que aí parece um mero jogo de palavras tenta denunciar como imprópria, no mínimo, uma postura ideológica corriqueira, em matéria de interpretação de princípios, particularmente este da função social, avessa a valores sem os quais nunca chegaram a “principiar” nada – passe a redundância – limitados a um papel que, em vez de legitimar o exercício de um direito na concretude fática das suas conseqüências – às vezes trágicas – sobre outras pessoas e sobre o território das cidades, legitima a sua ineficácia, quase sempre reduzida a intenção, promessa ou programa, não tanto pela vagueza do seu enunciado, mas, muito mais, pela estreiteza daquela cultura privatista que entende como “normal” na sua forma de ver “sujeitos de direito” e “coisas”, de forma conceitual e abstrata. A partir então desta falta de compromisso com a aplicação do princípio da função social da propriedade é que vão surtir os efeitos nos problemas sociais que dependem do uso da propriedade, ou mais propriamente, do uso da terra, como, por exemplo, a falta de moradia ou a proliferação da moradia inadequada. 4.3. Função social da propriedade no Brasil pós Constituição de 1988. A Constituição da República de 1988 dispensa o seguinte tratamento à propriedade: garante sua inviolabilidade no caput do artigo 5°, que inaugura o Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, repete esta garantia no inciso XXII deste artigo, e no inciso XXIII preconiza que a propriedade atenderá a sua função social. Deve-se ter em mente que o atendimento da função social da propriedade significa muito mais do que conferir ao bem objeto da propriedade um destino socialmente útil. Na verdade ela deve servir como um verdadeiro instrumento de realização de justiça social. O inciso XXIII do artigo 5º indica que a propriedade deverá atender a sua função social, mas seu conteúdo apenas determina o enunciado de um princípio. Um entendimento melhor a respeito do verdadeiro alcance da função social da propriedade será alcançado quando da leitura e interpretação sistemática de diversos outros dispositivos constitucionais que a citam e que, de alguma forma, a guardam como um elemento de realização. 119 ALFONSIN, Jacques Távora. A Função Social da Cidade e da Propriedade Privada Urbana como Propriedade de Funções. In ALFONSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio. Op. Cit., p. 43. A Constituição de 1988 contém diversos outros dispositivos que necessitam da quebra do paradigma da propriedade absoluta para que sejam aplicados e realizados. A quebra desse paradigma, vale lembrar, representa o rompimento com a idéia da propriedade sendo um direito absoluto, e a compromete com o ideal de realização de justiça social. A começar pelos objetivos fundamentais da República, elencados no artigo 3º, que são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos sem qualquer tipo de discriminação ou preconceito. Ora, não há como negar que atribuir à propriedade uma função social compõe o quadro de medidas que levam ao cumprimento desses objetivos, ainda que estas disposições sejam de conteúdos muito vagos. A função social da propriedade também é posta como princípio geral da atividade econômica, previsão feita no art. 170, III da Constituição, cujo caput diz que a ordem econômica e financeira tem por fim assegurar a todos uma existência digna. A respeito, diz José Afonso da Silva120: [...] embora também prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conteúdo e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Se assim, então a propriedade privada, que, ademais, tem que atender a sua função social, fica vinculada à consecução daquele fim. Para José Afonso121, o regime da propriedade vai denotar a natureza do sistema econômico, e desta forma, uma vez que se admite a propriedade privada, e sendo ela um princípio da ordem econômica, pode-se afirmar que se adotou um sistema econômico fundado na iniciativa privada, conforme o gosto de alguns conservadores que insistiram em que a propriedade privada figurasse como princípio da ordem econômica (o que estes não atentaram foi que, ao admitir isto, estavam relativizando o conceito de propriedade, o submetendo aos ditames da justiça social, fazendo com que ela somente seja legítima enquanto atenda a uma função de justiça social). A função social da propriedade urbana é objeto do § 2º do artigo 182 da Constituição, que dispõe que a propriedade urbana cumprirá a sua função social quando atender às exigências expressas no plano diretor, e o § 4º prevê sanções ao proprietário de solo urbano não edificado, não utilizado, subutilizado ou não aproveitado adequadamente, o 120 121 SILVA, José Afonso da. Op. Cit, p.743. Ibidem, p.743. que não deixa de ser uma imposição para que se dê melhor aproveitamento à propriedade urbana, pois sua “ociosidade” vai de encontro ao princípio da função social. A respeito da propriedade rural, contra o imóvel que não cumpra uma função social será promovida a desapropriação pela União, mediante indenização, conforme disposto no artigo, 184 da Constituição. O artigo 186 tenta traçar as linhas do que seja a função social da propriedade rural, envolvendo questões como o aproveitamento do espaço, dos recursos naturais e preservação de meio ambiente, observação das relações de trabalho e bem estar dos proprietários e dos trabalhadores. O artigo 188 irá tratar da destinação de terras públicas e devolutas para a política agrícola e a reforma agrária, de certa maneira assumindo que a estas terras também deverão cumprir a função social. Em linhas gerais é desta forma que a Constituição dispõe sobre a função social da propriedade e assim o princípio é lançado. E embora não haja referência expressa à qual tipo de propriedade ele se refere, se intelectual ou real, tudo leva a crer que se trata da propriedade da terra, e não sendo só dela, certamente ela se inclui e é esta que aqui irá se considerar. De fato, como já foi dito, a terra é abrigo de realização de diversos outros direitos fundamentais do ser humano que sem ela não têm como ser exercidos, e dentre estes direitos encontra-se o objeto deste estudo, o direito à moradia. Mas o direito que a tutela, o direito de propriedade, é um direito excludente. Por ser excludente tende a inviabilizar o exercício de outros direitos, uma vez que permite o poder de uma única pessoa – o proprietário – sobre um determinado espaço ao mesmo tempo em que exige de todos – não proprietários – a submissão àquele poder. O Código Civil brasileiro não define a propriedade, mas expõe somente seus atributos, que são o uso, o gozo e a disposição da coisa, bem como o poder de reavê-la de quem injustamente a possua ou detenha. Uma interessante consideração sobre a propriedade é feita por Caio Mário122: Direito real por excelência, direito subjetivo padrão, ou “direito fundamental”, a propriedade mais se sente do que se define, à luz dos critérios informativos da civilização romano cristã. A idéia de “meu e teu”, a noção de assenhoramento de bens corpóreos ou incorpóreos independe do grau de cumprimento ou do desenvolvimento intelectual. Não é apenas o homem do direito ou o business man que a percebe. Os menos cultivados, os espíritos mais rudes, e até crianças têm dela a noção inata, defendem a relação jurídica dominial, resistem ao desapossamento, combatem o ladrão. Todos “sentem” o fenômeno propriedade. [...] Ao conceituá-la, porém, emergem as dúvidas, porque o fato da senhoria sobre a coisa, sua repercussão 122 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume IV. Direitos Reais. Atualizador: Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.89-90. patrimonial e a projeção das faculdades que encerra dificilmente se deixa prender em fórmula sucinta que dê bem a noção de seus vários aspectos. Sobre esse “sentimento de propriedade”, que procura traduzir a relação que uma pessoa tem com uma coisa pode fazer crer que a propriedade vem de uma condição natural, mas não. A propriedade tal como se concebe é fruto das idéias liberais, que dá a ela um caráter absoluto, uma vez admitindo sua aquisição através de contratos firmados por homens livres, e a partir disso passa a ser oponível a todas as outras pessoas. Marés123 afirma que a legitimidade da propriedade moderna está assente no contrato, firmado por vontade livre de homens livres; se legítimo, legítima será a propriedade. A propriedade privada é, portanto, a garantia insculpida no inciso XXII do artigo 5º da Constituição, uma realidade pertencente ao capitalismo, o qual não se pode esquecer. No entanto, sofre uma imposição igualmente “fundamental”, a do inciso XXIII, que é a de cumprimento de uma função social. A respeito, diz Caio Mário124: [...] reconhecendo embora o direito de propriedade, a ordem jurídica abandonou a passividade que guardava ante os conflitos de interesses, e passou a intervir, séria e severamente, no propósito de promover o bem comum que é uma das finalidades da lei, e ainda de assegurar a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos. Admitida a sobrevivência da propriedade privada como essencial à caracterização do regime capitalista, garante a ordem pública a cada um a utilização de seus bens, nos misteres normais a que se destinam. Mas, em qualquer circunstância, sobrepõe-se o social ao individual. O bem-estar de todos sobreleva-se às conveniências particulares. E para realizá-lo, arma-se o legislador de poderes amplos e afirmativos. Sinalizar que a propriedade possui uma função social significa dizer que ela rompe com a qualificação pura e simples de direito individual, que favorece apenas um indivíduo em detrimento da vida de todos os demais, e na realidade atual, pode-se dizer até em detrimento da vida de outras espécies. Ao conferir-lhe função social, a propriedade deverá passar a ser compreendida para além do conceito individual, aquele que permite com que seja utilizada como seu dono bem entender ou até mesmo que não seja utilizada se esta for a sua vontade. A função social não vai apenas obrigar à propriedade a constituir uma base de produtividade, nem deverá ser confundida com uma simples limitação administrativa. Atribuir a propriedade uma função social é passar a entendê-la como verdadeiro suporte da vida humana, onde todos estabelecem seu direito de sobrevivência, e utilizar este princípio nas 123 124 MARÉS, Carlos Frederico. Op. Cit. p. 40. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. Cit., p. 87. atividades estatais, tanto legislativa, quanto executiva e judiciária. Desta forma a função social integrará não apenas a realização de justiça social, mas também a preservação da terra necessária ao equilíbrio do meio ambiente e a manutenção da vida em todos os seus aspectos. Todo este entendimento servirá para compor a base de interpretação da Constituição favorável a realização da função social da propriedade, servindo em primeiro plano como elementos norteadores os objetivos fundamentais da República e, posteriormente, todos os demais dispositivos constitucionais que envolvam os direitos meta-individuais de qualquer ordem. 4.3.1. A função social da propriedade do solo urbano. A propriedade urbana merece considerações especiais a respeito de sua função social, por diversos motivos. Visto que o direito de propriedade é um direito que, ao ser assegurado para um indivíduo, exclui um número infinito de outros indivíduos, é possível afirmar que isto permite uma concentração do espaço urbano na mão de quem possui maior poder econômico e, consequentemente, ocorrerá a inviabilização dos destinos dos demais indivíduos no tocante ao acesso à terra urbana125. A imposição de uma função social a tal poder em grande parte das vezes não interessa a seu titular, afinal, não é difícil que alguém queira abrir mão de sua propriedade em prol de um interesse coletivo. No entanto o solo sobre o qual incide este direito de propriedade, é, como afirma Ricardo Lira126 no trecho a seguir, essencial para a existência humana: O solo é incomensurável em seu valor, tanto para particulares quanto para o povo em seu conjunto. Neles se radicam a fonte de alimentação das gentes, as riquezas criadoras dos instrumentos elementares para a satisfação das incontáveis necessidades vitais, e todo o sistema habitacional dos seres humanos. Dele se extraem as substâncias curativas e de fortalecimento, as possibilidades inesgotáveis de recreio e lazer, e, sobretudo, nele se exerce basicamente a liberdade essencial do homem de ir e vir. A importância vital do solo e de sua propriedade exige, por parte do Estado, providências em sua regulamentação que possibilite que o mesmo não seja utilizado de forma a gerar injustiças e misérias, fazendo com que o mínimo necessário à sobrevivência e à 125 126 ALFONSIN, Jacques Távora. Op.Cit., p. 47. LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.312. dignidade humana possa ser assegurado a cada pessoa. E o ordenamento jurídico brasileiro tem atuado neste caminho, exigindo da propriedade do solo uma função social. A Constituição, ao tratar da política urbana, definiu linhas para determinar a forma de se cumprir a função social da propriedade urbana, conferindo características peculiares a esta função no caso urbano, o que não deixou de gerar algumas dúvidas a respeito da própria natureza do instituto. O artigo 182 da Constituição inaugura o capítulo destinado à política urbana e coloca como seu objetivo o desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos habitantes destas cidades. Seu § 2º incide claramente sobre a função social da propriedade urbana. Diz este parágrafo que esta será cumprida quando atendidas as exigências do Plano Diretor, o principal instrumento de política urbana previsto na Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade – Lei que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição da República, estabelecendo diretrizes gerais de política urbana. As dúvidas surgem a respeito do que seria a função social da propriedade urbana, pois, até agora, a função social da propriedade apareceu ao lado da própria garantia do direito de propriedade, no rol dos direitos e garantias fundamentais, mas, no artigo 182 ela aparece condicionada ao que está expresso no plano diretor, ou seja, a função social da propriedade urbana aqui está condicionada por um instrumento da política urbana, e assim, poderia ser identificada, de certa forma, com as limitações administrativas, embora o plano diretor não se atenha só a isso. A respeito do conteúdo da função social da propriedade urbana, primeiramente, deve-se considerar que, conforme o ensinamento de Eros Grau127, seu fundamento não pode ser separado da condição do seu uso, e desta maneira a propriedade não pode ser usada de modo contrário à utilidade social e isto será condição para que seja preservado o direito do proprietário. Nesta consideração, a função social da propriedade será princípio que gera condições limitadoras ao exercício do direito de propriedade. Tais limitações, se é que podem ser chamadas de limitações, constituem, na verdade, contornos da propriedade admitida por um ordenamento jurídico. Melhor dizendo, poder-se-ia entender que a função social traz limites ao pleno exercício do direito subjetivo à propriedade. Mas não. Não há incompatibilidade ou qualquer conflito entre os interesses embutidos no direito de 127 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. Regiões Metropolitanas, Solo Criado, Zoneamento e Controle Ambiental, Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 65. propriedade e na função social, e as palavras de Eros Grau128 são bem esclarecedoras desta afirmação: Em verdade, consagrado no nível constitucional, o princípio da função social dela, que se integra no seu conceito, deve, necessariamente, tal permissão ou autorização ser definida como tal: o direito subjetivo em causa, então, será concomitantemente, função – sem que aí se instale qualquer contradição dogmática. Assim, não se considera mais no ordenamento jurídico atual a propriedade como se considerava outrora, plena e absoluta. Mas se entende por propriedade plena e absoluta, hoje, aquela que cumpre também uma função social. A função social da propriedade será, portanto, peça de composição do direito de propriedade, e a fundamentação legal disto é indicada nos incisos XXI e XXIII do artigo 5º da Constituição da República. Por outro lado, vem a Constituição no § 2º do artigo 182 dizer que a função social da propriedade urbana será cumprida mediante a realização das exigências estabelecidas no Plano Diretor. Já no § 4º prevê que o poder público municipal poderá, mediante lei específica para área já incluída no plano diretor, exigir que o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado promova seu aproveitamento adequado e, em seus incisos, enumera sanções a que este proprietário estará passível caso não cumpra com as exigências determinadas. Essas sanções são, sucessivamente, o parcelamento ou edificação compulsórios, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e, por fim, a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública. Além disso, o Estatuto da Cidade veio dispor o seguinte sobre o Plano Diretor (artigos 39 e seguintes do Estatuto): que este é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, parte integrante do processo de planejamento municipal devendo ter suas diretrizes e prioridades inseridas no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual. Seu conteúdo mínimo, artigo 42, deverá abranger: a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, que deverão ser feitos na forma da lei (art. 5º do Estatuto), as disposições requeridas para o exercício de: direito de preempção, outorga onerosa do direito de construir, alterações do uso do solo na outorga, operações urbanas consorciadas e transferência do direito de construir, além de medidas de acompanhamento e controle da execução do plano. 128 GRAU, Eros Roberto. Op. Cit., p. 70. Desta maneira, pode se observar que todas as disposições que o Plano Diretor deverá conter e que são relacionadas diretamente com o solo urbano, tratam-se de intervenções administrativas na propriedade urbana. José Afonso da Silva129 discorda de que as limitações administrativas sejam integrantes do conteúdo de função social da propriedade, admitindo que esta esteja inserida na estrutura e na concepção do conceito de propriedade como um elemento de transformação positiva que a põe em serviço do desenvolvimento social, de maneira que não se conceba a propriedade que não aquela que cumpre com sua função social. É temerário se definir a função social da propriedade, portanto, como algo que legitima as intervenções administrativas, uma vez que nunca houve necessidade de serem legitimadas pela função social, mas sim, sempre, pelo interesse público. A função social da propriedade vai além disso, ela define os contornos da propriedade como se quer, num ordenamento jurídico mais comprometido com uma base ética voltada à justiça social. De qualquer forma não parecem restar dúvidas de que estas intervenções previstas no Estatuto da Cidade, ou quaisquer outras tomadas pelo poder público motivadas pelo interesse público, possam através da propriedade, realizar a justiça social, sendo primordiais em alguns casos, para a efetivação do direito à moradia. Assim sendo, considerando que o direito à moradia é um direito essencial à vida de todo ser humano, o Estado tem deveres de promover, através de medidas administrativas, o acesso a este direito. Deve-se ressaltar que tais medidas presentes no Plano Diretor são de extrema importância para a realização da proteção legal da posse em imóveis urbanos que não tiveram aproveitamento satisfatório por parte de seus proprietários, e acabaram sendo ocupados por outras pessoas que ali necessitaram viver; esses instrumentos servem também à promoção de ações de planejamento urbano em áreas não utilizadas e subutilizadas, de forma que melhorem a qualidade de vida das pessoas que habitam nas cidades, lembrando-se sempre que o direito à moradia deve sempre ser realizado procurando-se cumprir com os parâmetros definidores da moradia adequada, que incluem os serviços básicos de saneamento, acesso à transportes públicos e sistema viário, serviços essenciais de água, luz, proximidade aos serviços de educação, saúde e lazer, acesso a um meio ambiente sadio e localização em um lugar naturalmente seguro. Visto desta forma acesso a terra urbana é essencial para a efetivação do direito à moradia, pois como já ressaltado, a moradia é um direito essencial que depende da 129 SILVA, José Afonso da. Op.Cit., p. 264 (nota de rodapé). terra, do espaço físico, para ser efetivado. Portanto, a função social da propriedade urbana tem uma participação significativa neste processo, uma vez que ela redefine o conceito de propriedade, fazendo com que intervenções dirigidas a ela não possam mais ser consideradas como verdadeiras “ofensas” a um direito absoluto, como poderia ser outrora. A função social da propriedade, portanto, é prevista de três formas na Constituição: como redefinidora do conceito de propriedade, como princípio da atividade econômica e também, como resultado do cumprimento das normas urbanísticas de raiz constitucional. Assim, a função social está, realmente, além de simples medidas administrativas limitadoras impostas à propriedade, mas estas medidas também compõem a realização desta função, bem como qualquer outra atuação, estatal ou privada, destinada à realização da justiça social. Isto porque, a função social da propriedade vem fundamentada num princípio maior, que é a dignidade da pessoa humana, e deve ser usada, antes de tudo, como instrumento de realização dos objetivos fundamentais da República, já elencados neste capítulo. Capítulo 5 O Direito à Moradia e o Estatuto da Cidade 5.1 Considerações Iniciais. O Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, surge no ordenamento jurídico brasileiro como norma regulamentadora dos artigos 182 e 183 da Constituição da República (que dispõem sobre a política de desenvolvimento urbano) e vem como sendo o grande marco regulatório da organização do espaço urbano no Brasil130. O Estatuto traz uma série de medidas determinadas a realizar os objetivos traçados pela Constituição para o cumprimento da política urbana131, objetivos estes que seriam, basicamente, o desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos habitantes destas cidades. O Estatuto vem, na seara jurídica, fornecer apoio a execução da política urbana, num país marcado por um desenvolvimento urbano desordenado e intensas degradações ambientais, que proporcionam um relevante grau de insegurança às pessoas que moram na cidade, diminuindo sua qualidade de vida. O problema do desenvolvimento urbano desordenado no Brasil tem como precedentes históricos a falta de preocupação com o espaço urbano e também com a distribuição das terras no país. A colonização do país não se preocupou com a cidade, pois a 130 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico. Condições e Possibilidades da Constituição do Espaço Urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 78. 131 Um esclarecimento sobre a definição de política urbana se faz necessário. José dos Santos Carvalho Filho a define como: “o conjunto de estratégias e ações do Poder Público, isoladamente ou em cooperação com o setor privado , necessárias à constituição, preservação, melhoria e restauração da ordem urbanística em prol do bemestar das comunidades”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.12. economia no Brasil foi sempre muito direcionada a agropecuária e ao extrativismo. A cidade surgiu aqui para suprir as necessidades sociais de convívio e de comércio, sendo durante muito tempo um núcleo de interesse secundário. Durante a colonização foram surgindo vilas, muitas vezes em locais onde havia paradas das tropas de exploração para abastecimento, troca de animais etc. Essas vilas eram meros instrumentos, onde a atividade mais importante era a exploração dos recursos naturais. As cidades maiores também possuíam este caráter instrumental, de circulação das riquezas e de base das atividades de defesa. É interessante uma observação feita por Gilberto Freire132, que reflete este caráter instrumental das cidades, ao comentar sobre uma cidade mineira após o período do ouro: “Nos meados do século XIX, as cidades de Minas Gerais entraram em declínio, ou, pelo menos, ficaram estagnadas. Vila Rica tornou-se apenas a sombra do que fora. Eram cidades cujo desenvolvimento se processara graças ao ouro e aos diamantes. A Província quase toda passara, então, de inquietamente mineira a pacatamente agrícola” Já na época dos latifúndios produtores de cana-de-açúcar, as vilas continuavam sendo apenas centro de circulação e troca de riquezas e não propriamente local de fixação urbana, moradia e produção. Não havia, portanto, preocupação pública com a formação do ambiente urbano para a fixação do homem na cidade. A residência do homem ainda era nas fazendas e ao seu redor. Novas perspectivas surgiriam com fatos como a expansão do café e a vinda da Família Real para o Brasil. A partir daí as cidades passam a ser mais visadas como local de residência e moradia das famílias; ninguém mais queria viver no campo. Experimentava-se uma nova era social, econômica e cultural, com conseqüentes melhorias na infra-estrutura urbana.133 No entanto, as classes menos favorecidas não usufruíam desse progresso tanto quanto as classes abastadas. Neste período em que a economia brasileira passou a se voltar mais à exportação, ocorreu o inchaço dos centros urbanos de forma desordenada.134 Na cidade, as pessoas mais pobres viviam em condições muito precárias, como as dos cortiços no Rio de Janeiro, com a presença de sérios problemas de saneamento, e a reforma urbana que se 132 FREIRE, Gilberto. Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX. Rio de Janeiro: Artenova; Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1977, p.48. 133 Gilberto Freire informa que os primeiros serviços públicos de saneamento e água só surgiram nas cidades em meados do século XIX; antes disso, o Rio de Janeiro era descrito como uma cidade imunda, sem esgotos ou limpeza das ruas. Assim também era em todas as cidades do Império, em que a remoção do lixo, das coisas podres, dos excrementos humanos era feita da forma mais primitiva possível. Ibidem, p. 108-109 134 LEAL, Rogério Gesta. Op.Cit., p. 18. deu, com a intenção de modernizar e embelezar a cidade, foi no sentido de acabar com esse tipo de aglomeração humana, levando essas pessoas para as áreas periféricas da cidade. Tal fenômeno não ocorreu apenas no Brasil. Segundo Letícia Marques Osório135, a urbanização em toda a América Latina foi marcada por reformas urbanas caracterizadas por investimentos em obras de infra-estrutura que expulsaram os pobres para a periferia como solução para higienizar os centros, livrando-os de epidemias, e abrir espaços. A ida das pessoas para a periferia proporcionou toda sorte de problemas: irregularidade em relação à posse e propriedade do solo, desgastes ambientais, condições inadequadas de moradia, isso sem contar o problema social como um todo, causado pela falta de acesso aos serviços básicos. A presença do Estado era insuficiente para suprir as demandas de infra-estrutura existentes, o que contribuía para a precariedade dos assentamentos. Ricardo Lira136 denomina esse fenômeno de segregação residencial, onde as famílias de renda mais baixa se fixam na periferia do espaço urbano e nos locais onde o rendimento é mais elevado o Estado é mais presente. Isso gerou uma supervalorização de determinadas áreas e uma super povoação de outras, onde se assentava a classe mais pobre, áreas estas quase sempre distantes do local de trabalho dessas pessoas, dos locais de prestação de serviços públicos, carentes de infra-estrutura, saneamento e serviços de transportes. Esse fenômeno, infelizmente, foi terreno fértil para o aumento da criminalidade e da violência. A própria regularização do solo, estabelecendo padrões ideais de cidade, segundo Letícia Marques Osório137, também contribui, de certa forma, para a segregação, pois estas áreas mais beneficiadas, regulamentadas e melhor localizadas possuem preço mais elevado em relação aos terrenos sem regulamentação, que são ocupados por uma população de renda menor, e o propósito de se dirigir a ocupação do solo é substituído pela divisão da paisagem, caracterizada pela cidade formal e a cidade informal. A irregularidade do uso do solo urbano é uma característica marcante na formação da cidade brasileira, e esta irregularidade está intimamente ligada à condição de moradia adequada, pois tanto a posse precária, como o assentamento em áreas de risco afetam a segurança da moradia, e, por si, a tornam inadequada. O tratamento diferenciado que a Constituição de 1988 afirma em relação à função social da propriedade (bem como a previsão constitucional da usucapião especial e da concessão de uso especial) é ponto que passa a 135 OSÓRIO, Letícia Marques. Op. Cit., p. 22. LIRA, Ricardo Pereira. Op. Cit., p. 176. 137 OSÓRIO, Letícia Marques. Op.Cit., p.27-28. 136 influir incisivamente sobre essas questões da irregularidade no uso do solo, juntamente com os instrumentos trazidos posteriormente pelo Estatuto da Cidade. A Constituição de 1988 vem tratar do assunto da cidade, especialmente da política urbana e do bem-estar das pessoas que nela habitam, mas a realidade onde ela é aplicada é um verdadeiro desafio para quem cumpre a tarefa de promover a manutenção e a sustentabilidade das cidades e do meio-ambiente. O Estatuto da Cidade, anos depois, vem para dar maior suporte a norma constitucional, definindo medidas a serem aplicadas na realização da política urbana. Esta realidade em que o Estatuto da Cidade será aplicado inclui um cenário urbano onde a falta de moradia, em especial, a falta de moradia adequada, é um problema grave a ser resolvido. Neste ponto, além das medidas básicas referentes a atividades do Estado, como o serviço público de saneamento, transporte, urbanização, o Estatuto enfrentará problemas como a concentração de pessoas nos espaços urbanos, a escassez e/ou má distribuição de terras urbanas, escassez de moradias ou inadequabilidade das mesmas, e informalidade e irregularidade imobiliárias. 5.2 O Estatuto da Cidade. A cidade é palco dos movimentos sociais e humanos. Ao se atravessar uma cidade, seja ela grande, pequena ou média, percebe-se uma série de modificações na paisagem urbana: onde cada setor se localiza: o comércio, a indústria, os serviços; onde as pessoas moram: umas em bairros pobres, outras em locais reservados, luxuosos, outras em prédios em meio da agitação do dia-a-dia. É impossível passar por uma cidade sem reparar no que está em torno de quem passa. Mas se o olhar se dirige a ela com alguma crítica, perguntas surgem. Afinal, o que faz com que a cidade se organize desta forma e não de outra? De onde vieram os problemas que temos hoje? As respostas voltam no tempo a se perder de vista e de uma certa forma pode-se dizer que o homem vai se acomodando desta ou daquela forma devido a diversos fatores que o empurra para diferentes direções. Em momentos mais recentes, começa-se a pensar com mais técnica na organização dessa cidade, muito além das simples medidas administrativas tomadas até hoje, no intuito de facilitar o uso da propriedade privada. As preocupações urbanísticas não tendem mais a satisfazer a propriedade privada, ao contrário, a propriedade privada é que passa a servir a coletividade em prol de uma urbanização eficiente. Isto porque o espaço é pouco para trazer bem-estar para tantas pessoas, objetivo da política urbana, e por esta razão deve ser utilizado racionalmente. As cidades possuem funções. No espaço que ela comporta se encontra a habitação, o trabalho, a circulação e o lazer de um grupo de pessoas. Assim, a política urbana deve ser dirigida a promover e melhorar o desempenho destas funções em prol da qualidade de vida destas pessoas. Portanto, sendo a habitação uma das funções da cidade, implicações urbanísticas são extremamente pertinentes ao estudo do tema moradia, especialmente quando se afirma que a moradia que se pretende promover é a moradia adequada, que pressupõe a existência de habitação segura, tanto no aspecto físico quanto no aspecto legal relacionado à posse, e dotada de infra-estrutura mínima que propicie uma vida saudável e socialmente satisfatória a quem nela reside. A Agenda Habitat, em sua definição de moradia adequada, inclui diversas medidas relacionadas com o desenvolvimento urbanístico. Estas medidas incluem questões de saúde e bem-estar dos habitantes, como o saneamento, a acessibilidade ao transporte, ao trabalho e à escola, a segurança, dentre outras. Desta maneira, não há como proceder-se um estudo sobre moradia ou sobre assentamentos humanos ignorando o ambiente de sua localização – o ambiente rural ou urbano, pois cada um tem suas peculiaridades. Por este motivo será de extrema importância a menção às normas de direito urbanístico na tarefa de se buscar os parâmetros da moradia adequada, pois uma moradia urbana adequada pressupõe também uma urbanização adequada. A questão da urbanização na contemporaneidade está intimamente ligada ao progresso, à melhoria da saúde, da educação, do acesso aos serviços sociais, ao trabalho, à cultura, à política e à religião, e o ambiente democrático favorece um desenvolvimento urbanístico que propicia estes acessos. O desenvolvimento urbano deverá ser realizado, assim, de maneira a gerar melhorias econômicas e sociais, dentro de um ambiente saudável e preservado no tocante aos recursos naturais existentes, não devendo deixar de lado a realização do ser humano como pessoa, oferecendo um ambiente propício para seu crescimento e melhoria intelectual, cultural e corporal. Nesta linha, pode-se afirmar que Constituição da República de 1988, apelidada de “Constituição Cidadã”, que possui como base principiológica a dignidade da pessoa humana, foi lúcida ao pensar na política urbana e destinar um capítulo exclusivamente a este assunto, demonstrando o quanto é importante no mundo contemporâneo a regulamentação legal das questões urbanísticas. A partir da inclusão do direito urbanístico na Carta de 88, este foi se consagrando como ramo do direito público através de processos democráticos e participativos nos âmbitos estatais e municipais, onde foram surgindo diversas normas urbanísticas, planos diretores, planos de política habitacional, saneamento, leis de uso, parcelamento e ocupação do solo, dentre outras afeitas ao ramo, mas faltava a norma federal regulamentadora da política urbana, exigência expressa do artigo 182 da Constituição.138 Ao que tudo indica, parece ter sido o direito urbanístico definitivamente consagrado como ramo próprio do direito com o advento do Estatuto da Cidade. É bem verdade que esta lei que vem regulamentar o artigo 182, artigo que inaugura este capítulo sobre política urbana na Constituição, só veio em 2001, mas isto possibilitou que em seu período de tramitação fosse possível o contato com diversas experiências de política urbana desenvolvidas pelos Estados e pelos Municípios, relacionadas a questões habitacionais, ambientais, de regularização fundiária e de participação popular nos problemas ligados ao urbanismo, experiências estas que terminaram por influenciar a forma pela qual os instrumentos foram nele regulamentados.139 O importante é que, mesmo com certa demora, a regulamentação aí está, e seu conteúdo abrangente engloba diversos aspectos, tendo preocupações especiais com o aspecto social da cidade e com a participação democrática, e sendo imprescindível para o desafio existente na contemporaneidade de se desenvolver cidades sustentáveis. É a especificidade de objeto, de diretrizes, de princípios, de objetivos, de obrigações de pessoas públicas e privadas, relacionada ao desenvolvimento das cidades sustentáveis e suas funções – habitação, circulação, trabalho e lazer – que faz do direito urbanístico um ramo do direito e não um sub-ramo do direito administrativo ou do direito ambiental. O Estatuto, portanto, vem enfatizar a existência de um direito próprio das cidades, direito que, além de ter amparo constitucional passa, com este diploma legal, a ter instrumentos próprios relacionados à questão urbanística, tal qual ela se apresenta no país, adequada à realidade de mau uso da terra urbana que aqui ocorre, e não é à toa que os princípios da função social da propriedade e da cidade são os que mais se refletem no seu conteúdo e são os que vão nortear a execução das políticas urbanas. A competência para legislar sobre diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos é da União, consoante o inciso XX do artigo 21 da Constituição da República. De competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios é também a promoção de programas de construção de moradias, melhoria de condições habitacionais e saneamento, de acordo com o disposto no inciso IX do 138 139 SAULE JUNIOR, Nelson. Op. Cit., p.206. Ibidem, p. 208. artigo 23 da Constituição. A competência é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal para a legislação sobre direito urbanístico, conforme inciso I do artigo 24, sendo que neste caso a União se limita, conforme o disposto no §1.º a legislar sobre normas gerais. Os Estados terão competência, consoante artigo 25, §3.º, para, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microregiões para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Ao Município é dada pela Constituição a competência para legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30, I), e para promover, no que lhe couber, o ordenamento territorial mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (mesmo artigo, inciso VIII); de igual forma, conforme a Constituição, o Município é responsabilizado por instituir o plano diretor (182, §1.º) e legislar sobre a promoção e adequado aproveitamento do solo urbano sob as penas previstas nos incisos do §4.º do artigo 182. Deve-se destacar, a competência tributária municipal para a instituição de imposto sobre a propriedade territorial urbana progressivo no tempo, previsto no §1.º do artigo 156 da Constituição, que difere do previsto no inciso II do §4.º do artigo 182, mas que não deixa de cumprir com uma função social do solo urbano, por diferenciá-lo de acordo com sua localização. Na conjugação destas disposições constitucionais com o que a União legislou sobre desenvolvimento urbano no Estatuto da Cidade, fica evidente a importância do papel dos Municípios na execução da política urbana. São os Municípios os maiores destinatários das normas do Estatuto da Cidade, pois são eles que irão utilizar e por em prática tudo que está ali previsto, devido o interesse da realização das melhorias urbanas ser, em primeiro lugar, deste ente federativo, dando a estas, com sua aplicação, maior praticidade e exeqüibilidade. O Estatuto da Cidade é composto por cinco capítulos, divididos da seguinte forma: Diretrizes Gerais, Dos Instrumentos da Política Urbana, Do Plano Diretor, Da Gestão Democrática da Cidade e, por fim, as Disposições Gerais. Nestes capítulos de encontram inúmeros instrumentos que poderão ser utilizados direta e indiretamente na promoção da moradia adequada, tanto no aspecto estrutural (saneamento, urbanização dos entornos, proteção ambiental) quanto no aspecto legal (regulamentação das áreas onde existem assentamentos irregulares), e a menção a estes institutos, feita a seguir, se delimitará a este aspecto: a promoção da moradia adequada. 5.2.1 Diretrizes Gerais. A primeira regra estabelecida pelo Estatuto da Cidade diz que as normas nele contidas são de ordem pública e interesse social, e vão regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. A propriedade do solo urbano, portanto, é o objeto principal desta lei. Como visto no capítulo anterior alguns direitos dependem da terra para serem exercidos, e dentre estes não só o direito à moradia como também o direito à cidade. Desta forma, o Estatuto, mediante seus instrumentos de naturezas diversas vai se destinar, antes de qualquer coisa, a dar a propriedade um tratamento conforme a função social exigida como princípio pela Constituição, fazendo com que o objeto desta propriedade, o solo urbano, seja aproveitado da melhor maneira possível. Os instrumentos destinados à realização da função social da propriedade do solo urbano não serão apenas de natureza administrativa ou tributária, como se possa pensar, tendo em vista a execução de políticas urbanas, mas o Estatuto contém também normas direcionadas especificamente ao regime jurídico da propriedade privada, para que haja proteção tanto da posse quanto da propriedade em situações específicas que apresenta, situações extraídas das condições da conformação das cidades brasileiras, que até então careciam de proteção jurídica. No artigo 2º estão elencadas as diretrizes gerais da política urbana. Estas compreendem medidas a serem realizadas e alcançadas pelo poder público na constituição, melhoria e preservação da ordem urbanística, tendo por objetivo a ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Dentre elas é previsto, para não citá-las de forma pontual repetindo o texto da lei, o seguinte: primeiramente, a garantia do direito às cidades sustentáveis (inciso I). O Estatuto, literalmente, entende este direito como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações. Obviamente este dispositivo também foi inspirado em documentos internacionais de direitos humanos que afirmam o direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente sustentável, e à preservação disto para as gerações futuras, como a Declaração de Istambul e a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, dentre outros. Citar a garantia às cidades sustentáveis como primeira diretriz geral de política urbana não é por acaso. A partir deste dispositivo é que os demais deverão ser executados visando a sustentabilidade da cidade. Nos incisos II é posta como diretriz a participação democrática da população e de associações representativas de segmentos da sociedade na formulação, execução, e acompanhamento dos planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Tal previsão representa, em primeiro lugar, a soberania popular, insculpida no parágrafo único do artigo 1.º da Constituição da República, onde se lê que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A participação direta da população ou associações que representem grupos sociais é importantíssima na realização da política urbana, para que qualquer medida seja tomada de acordo com os verdadeiros interesses e necessidades da sociedade e, além disso, reafirma o exercício da democracia no Estado brasileiro. A participação popular também é prevista neste artigo, no inciso XIII, quando da necessidade de audiência, tanto do poder público quanto da população interessada, na ocasião de implantação de empreendimento ou atividade que potencialmente possa surtir efeitos negativos sobre o meio ambiente, tanto natural quanto construído, sobre o conforto ou a segurança da população. A preocupação com o meio ambiente, tanto natural quanto construído (incluídos o patrimônio cultural, histórico e artístico), também integra esse rol de diretrizes gerais, devendo este ser protegido, preservado e recuperado na execução das políticas urbanas (inciso XII e alíneas f e g do inciso VI). Do inciso III a XI e XVI, estão previstas uma série de medidas políticoadministrativas consistentes em realizar o desenvolvimento e a organização do ambiente urbano da melhor forma, incluindo também medidas de caráter social e econômico. Cuida-se aqui de cooperação entre os governos e iniciativa privada e sociedade; planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição da população e da atividade econômica nos espaços para se evitar e se corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio-ambiente; ofertas de equipamentos urbanos, transportes e outros serviços públicos conforme o interesse e a necessidade da população de cada local; ordenação e controle do uso do solo para que este sirva ao ambiente urbano e seja da melhor forma aproveitado (nas alíneas deste inciso são demonstradas as principais causas de desordem urbana, as que contrariam as regras de boa utilização do solo, de presença de infra-estrutura e de preservação do meio-ambiente); integração das atividades urbanas e rurais, na ciência de que a área urbana exerce influência em outros territórios; adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana que sejam compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência, buscando o desenvolvimento sustentável; justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização, buscando, por um critério de proporcionalidade, uma boa relação entre custo e benefício dos investimentos; a adequação de instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, havendo preocupação do emprego destes em prol do bem-estar geral e da fruição dos bens por diferentes segmentos da sociedade; recuperação dos investimentos do poder público quando da ocorrência de valorização de imóveis urbanos (imóveis determinados, para que não seja violado o princípio da igualdade e da impessoalidade140); por fim, a isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos urbanísticos. Estas diretrizes irão influenciar na adequação das moradias na medida em que trazem, de forma geral, a melhoria do espaço urbano, tornando-o mais funcional, aprazível, organizado e sustentável. Realizações das mesmas em sede de melhoria de transportes e circulação urbana, construção de áreas para o lazer e a convivência comunitária, melhorias de infra-estrutura e saneamento e preservação ambiental exercem influência na qualidade do setor habitacional e na vida das pessoas que nele residem. Nos incisos XIV e XV, faz-se a previsão de diretrizes gerais referentes à legalização do solo urbano e suas construções. São elas: a regularização fundiária e urbanização das áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; a simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento das ofertas dos lotes e unidades habitacionais. Dois pontos hão de ser destacados, os trechos “considerada(s) a situação socioeconômica da população” e “permitir a redução de custos”. Obviamente estes trechos levam o intérprete a pensar no objetivo social que o Estatuto contém. Já foi falado anteriormente sobre o quão o cenário urbano brasileiro é marcado pela irregularidade e pela informalidade nos seus assentamentos humanos, e se sabe que esta irregularidade tem base nas diferenças socioeconômicas das populações que habitam o ambiente urbano, diferenças estas além dos limites toleráveis, que fazem com que um número enorme de pessoas viva em condições precárias de habitação. Tais irregularidades e informalidades refletem, por si, a inadequabilidade da moradia. Conforme os padrões aspirados pela Agenda Habitat para uma habitação adequada, a segurança da posse do imóvel onde é exercido o direito de moradia é ponto 140 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. Cit., p. 44. importantíssimo a ser protegido por lei e por atos do poder público. Portanto, problemas relacionados à posse, à propriedade, e também às normas edilícias141 devem ser vistos por outro ângulo, um ângulo que favoreça a fixação do homem urbano num ambiente melhor, juridicamente seguro, com padrões edilícios que possam ser exeqüíveis em áreas onde há maior concentração humana no espaço, e ainda o acesso dessas pessoas a lotes e unidades habitacionais a venda por preços que se possa pagar. Esta nova perspectiva de se solucionar problemas relacionados à posse e à propriedade em locais marcados pela irregularidade é baseada no princípio da igualdade material, ou seja, na garantia de que a toda pessoa deve ser destinado um padrão mínimo de sobrevivência digna que sirva de base para que esta pessoa seja um ser humano livre, podendo atuar num espaço que é seu e nele exercer os atributos da sua personalidade, como a intimidade e a privacidade. O tratamento diferenciado pela lei, baseado na simplificação de algumas exigências técnicas reconhece que não pode ser exigido destas pessoas o mesmo tratamento a ser exigido daquelas outras que constroem e habitam em áreas determinadas pela regularidade. Ao contrário do que possa parecer, este imperativo contido no inciso XV do artigo 2.º do Estatuto da Cidade, atua no reconhecimento das diferenças existentes entre os diversos grupos de pessoas, destinando às condições de irregularidade de assentamentos humanos informais tratamento diferenciado, o que faz com que as pessoas que vivem sob a situação a que a norma se aplica possam ter garantidas condições materiais mínimas de sobrevivência digna. Além disso, é importante que se saiba que todas estas normas que se dirigem ao tratamento diferenciado de questões especiais, devem ser interpretadas e aplicadas com o fim de realizar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, elencados no artigo 3.º da Constituição da República, em especial a redução das desigualdades. Estas diretrizes dos incisos XIV e XV talvez sejam, dentre todas as elencadas pelo artigo 2.º, as que mais se relacionam com a questão da moradia. Alguns instrumentos jurídicos que amparam a realização de alguns destes propósitos são previstos pelo próprio Estatuto, como se verá. Ao final das observações sobre este primeiro item, “Das Diretrizes Gerais”, é importante que se reitere a idéia de que estas são, apenas, exemplos do que se possa e se deva 141 As normas edilícias e as que estabelecem os direitos de vizinhança tendem a ser mais respeitadas onde há a regularidade no assentamento urbano. Nos assentamentos irregulares, tais normas não são respeitadas, uma vez que estes tomam forma de acordo com a necessidade das pessoas, a margem de qualquer regulação deste tipo. Assim, não há como, ao se realizar a regularização de uma área de assentamento humano, se exigir que sejam cumpridas as normas edilícias e de direito de vizinhança tal como se exige nas áreas determinadas pela regularidade e pela presença de políticas urbanas. Seria uma exigência além do que pode caber na realidade dos assentamentos irregulares. fazer na execução da política urbana. Mas o rol está longe de ser exaustivo, podendo outras diretrizes serem aplicadas, de acordo com as necessidades e as peculiaridades de cada ambiente urbano. 5.2.2 Plano Diretor e o Direito à Moradia. O plano diretor é apontado como o principal instrumento da política urbana. Com previsão no artigo 40 do Estatuto da Cidade, ele é instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Possui também o plano diretor previsão constitucional, no artigo 182 § 1.º, e ainda é mencionado no § 2º, deste mesmo artigo, onde se faz a vinculação entre o atendimento da função social da propriedade ao que nele estiver expresso. Como instrumento básico, o plano diretor vai impor normas à coletividade, que definirão critérios para a utilização dos instrumentos estabelecidos no Estatuto da Cidade142, mas não apenas. Isto é pouco perto do que o plano deve ser para a política urbana, até mesmo pelos princípios pelo qual é norteado, que são os princípios da função social da propriedade e da cidade, da igualdade e justiça, da participação popular e do desenvolvimento sustentável. Suas normas serão baseadas nas diretrizes gerais da política urbana vistas anteriormente, consoante o que dispõe o artigo 39 do Estatuto. O plano diretor no Estatuto da Cidade representa muito mais do que uma lei formal com conteúdo técnico do que se vá fazer com a área de uma cidade, sem considerar seus aspectos já existentes. Ele enfrenta, portanto, como norma específica, a mesma situação que enfrenta o Estatuto da Cidade como norma geral: ser aplicado à cidade real, com todos seus problemas, suas informalidades, suas clandestinidades, seus danos. Ao contrário do que se fazia outrora, atividades de verdadeira “limpeza” urbana, o plano diretor, pelos princípios que o rege, em especial o da justiça social, da sustentabilidade e o da participação popular, vai voltar o urbanismo não apenas para as viabilidades técnicas, mas também sociais e ambientais, buscando a melhora do ambiente urbano. A redemocratização do país, a abertura política, modificou muito a idéia de planejamento urbano outrora existente. Num momento anterior ao ordenamento jurídico considerado pós Constituição de 88, a idéia de plano diretor era de um projeto de cidade para o futuro, que dirige seu desenvolvimento presente, pressupondo a centralização do poder estatal, que impõe aos cidadãos este modelo, afastando a discussão política e o conflito (que é 142 SAULE JUNIOR, Nelson. Op. Cit., p.253. a fonte de transformação e construção da cidade).143 Hoje, o que se procura buscar é a transformação da cidade em um lugar melhor, para que as pessoas nela vivam com dignidade, e em seu espaço circulem, morem, trabalhem, participem das decisões relacionadas a este espaço, e possam manter sua saúde física e moral. A nova concepção de plano diretor não pode mais admitir qualquer espécie de segregação. Assim, o planejamento nele contido levará em conta o espaço e quem o ocupa, assumindo responsabilidades relacionadas à sua gestão de forma compatível com o interesse público existente. Num estudo feito pelo Instituto Polis144, organização não-governamental que atua no setor de políticas públicas e desenvolvimento, foi desta maneira definido o plano diretor: O Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras orientadoras da ação dos agentes que constroem e utilizam o espaço urbano. O Plano Diretor parte de uma leitura da cidade real, envolvendo temas e questões relativos aos aspectos urbanos, sociais, econômicos e ambientais, que embasa a formulação de hipóteses realistas sobre os opções de desenvolvimento e modelos de territorialização. O objetivo do Plano Diretor não é resolver todos os problemas da cidade, mas sim ser um instrumento para a definição de uma estratégia para a intervenção imediata, estabelecendo poucos e claros princípios de ação para o conjunto dos agentes envolvidos na construção da cidade, servindo também de base para a gestão pactuada da cidade. Por esta estratégia serão definidas as áreas onde serão aplicados instrumentos legais previstos no Estatuto da Cidade, que dependem desta delimitação para serem postos em prática145, e outras diretrizes específicas, estabelecidas conforme as particularidades de cada cidade, relacionadas, por exemplo, ao sistema de transporte e infra-estrutura, às limitações do direito de construir, à preservação do patrimônio cultural e/ou natural, às estratégias de desenvolvimento econômico, humano, social e institucional, de turismo, de preservação ambiental, de saneamento, lixo e resíduos e defesa civil. Além disso, as diretrizes gerais de uso e ocupação do solo, fora as que já foram mencionadas pela Constituição e pelo Estatuto 143 BRASIL. Estatuto da Cidade (2001). Estatuto da cidade: Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. – Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001, p. 39. Disponível em http://www.bage.rs.gov.br/pddua/estatuto/pddua_estatuto.pdf, acesso em 31/05/2007. 144 Ibidem, p. 40. 145 Conforme advertência feita por Zélia Leocádia da Trindade Jardim, o plano diretor, nesta situação, será considerado também como um ato-condição para a implementação dos outros instrumentos de política urbana e de outras leis ordinárias e regulamentos, assumindo posição dominante na hierarquia municipal, abaixo apenas da Lei Orgânica do município, não sendo, contudo, esta exigência, uma exigência constitucional e, portanto, ficando à vontade do legislador municipal tomar esta providência. JARDIM, Zélia Leocádia. Regulamentação da Política Urbana e Garantia do Direito à Cidade. In BONIZZATO, Luigi e COUTINHO, Ronaldo (Coord.). Direito da Cidade. Novas Concepções Sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p.101-102. da Cidade, pois, acordo com a Constituição, o plano diretor é que realiza a função social da propriedade urbana, entendendo função social aqui como a realização de medidas urbanísticas para evitar a ociosidade da propriedade urbana. Assim, além dos instrumentos a ele correlacionados, ou seja, os que dependem, em seu conteúdo, da delimitação de áreas onde serão aplicados, e de demais diretrizes a toda área urbana, o plano diretor não só pode como deve, determinar áreas que serão destinadas aos objetivos e diretrizes da política habitacional146. Desta maneira, o plano vai servir para a promoção da moradia adequada na medida em que vai determinar as áreas onde poderosos instrumentos para organização da cidade serão implementados, e também na medida em que é obrigado a fazer com que o princípio da função social da propriedade deixe apenas de figurar no rol dos valores e passe a se materializar no aproveitamento adequado das áreas urbanas. O plano, para promover uma política habitacional que atenda aos problemas existentes nas cidades brasileiras – informalidade, precariedade dos assentamentos, propriedades ociosas – deverá conter, segundo orientação de Nelson Saule Junior147, os objetivos e metas da política habitacional, instrumentos de gestão desta política (Conselhos e Fundos), programas de habitação de interesse social com definição dos critérios, procedimentos e destinação dessas habitações, e definição de políticas específicas relativas a favelas, loteamentos populares, cortiços, produção de habitações populares, e critérios e instrumentos para a política fundiária. Para isto, e tudo o mais, é oportuno ressaltar que, sendo o plano diretor parte integrante do processo de planejamento municipal148, suas diretrizes e prioridades deverão estar contidas no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual municipal, consoante o disposto no § 1.º do artigo 40 do Estatuto da Cidade. 146 Segundo Nelson Saule Junior, em termos de habitação, não apenas a questão da habitação popular, assistencial a pessoas de baixa renda ou ocupantes de áreas de risco, deve ser incluída no plano diretor. Estará também o Município vinculado, pelos princípios constitucionais da política urbana e pelas diretrizes desta política enumeradas no Estatuto da Cidade, a regular o mercado imobiliário, determinando restrições, imposições e obrigações para que a propriedade urbana tenha uma destinação social em benefício da coletividade. SAULE JUNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade e o Plano Diretor – Possibilidades de uma nova ordem legal urbana justa e democrática. In OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. p. 79. 147 SAULE JUNIOR, Nelson. Op. Cit., p. 267-268. 148 Carvalho Filho considera o planejamento não apenas como um processo, mas como um agrupamento de métodos, ações, estratégias e estudos com determinado objetivo, que gera um processo composto pelas etapas em que se divide o planejamento. No caso do planejamento municipal, estes elementos estarão voltados para a organização do município, conforme seus interesses fundamentais de natureza política, administrativa, financeira, orçamentária e urbanística. Assim, para o autor, integram o planejamento municipal o plano de governo, o plano plurianual, as leis orçamentárias e o plano diretor. CARVALHO FILHO, José dos Santos, Op. Cit., p. 260-261. Os outros parágrafos do artigo 40 dão mais algumas orientações importantes sobre o plano diretor. O parágrafo 2.° prevê que o plano diretor deve englobar o território do Município como um todo. No Brasil, é sabido que existem municípios com as características das mais diversas, dada a nossa diversidade de cultura, geografia e atividades econômicas. Por estes motivos, os municípios poderão ter áreas predominantemente urbanas ou predominantemente rurais, e, apesar do plano diretor ser destinado à política urbana, inclui-se nas diretrizes gerais do Estatuto da Cidade a integração e a complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, por ser o desenvolvimento municipal único. Único também é o meio ambiente. Assim, não basta que se cuide apenas da área urbana pois numa perspectiva de desenvolvimento sustentável ela deve estar integrada à área rural e às áreas de preservação ambiental, do próprio município ou dos municípios ao redor. O parágrafo 3.º prevê a revisão do plano diretor no prazo máximo de dez anos. De fato, a revisão deve ser feita sempre que necessária ao desenvolvimento urbano e à satisfação do interesse público. Já no parágrafo 4.º são previstas condutas que devem ser respeitadas no processo de elaboração e na fiscalização da implementação do plano diretor, que se traduzem em princípios. No inciso I a promoção de audiências públicas e debates com participação popular e associações são a marca do princípio democrático, realizadas através do exercício direto da democracia. Nos incisos II e III, são previstos a publicidade dos documentos e informações relacionados ao plano e o acesso dos interessados a estes documentos e informações, incisos inspirados no princípio da publicidade dos atos administrativos. O plano diretor é obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes, ou ainda para aquelas cidades que integrem regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas. Também será obrigatório o plano diretor se o município pretender utilizar os instrumentos previstos no § 4.º do artigo 182 da Constituição (exigência de providências e sanções para o solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, consistentes, sucessivamente, em: parcelamento ou edificação compulsórios; imposto predial territorial urbano progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.), se a cidade for integrante de área de especial interesse turístico ou se estiver inserida em área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. De acordo com o artigo 42 do Estatuto da Cidade, o plano diretor deverá ter um conteúdo mínimo, que englobe: - Inciso I – a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e demanda para utilização, na forma do artigo 5.º, também do Estatuto. Para que haja a determinação dessas áreas, é necessário que seja feito um estudo tendo como objeto as áreas urbanas, para as que sejam identificadas edificadas, subutilizadas ou não utilizadas. - Inciso II – previsão de aplicação dos seguintes instrumentos previstos no Estatuto da Cidade: outorga onerosa do direito de construir (exigência dos artigos 28 e 29), direito de preempção (exigência do artigo 25, § 1.º), operações urbanas consorciadas (exigência do artigo 32) e transferência do direito de construir (exigência do artigo 35). - Instrumentos de acompanhamento e controle. Estes deverão existir, tendo por base outros instrumentos, em especial os previstos no inciso II do artigo 2.º, que é o acompanhamento através da gestão democrática, e no § 4.º do artigo 40, que prevê a fiscalização na implementação do plano diretor, com garantias, igualmente, de participação da população e associações que as represente. Este conteúdo mínimo não é, necessariamente, obrigatório. Mas, em havendo áreas não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas, será obrigatória a previsão destas áreas no plano, caso haja interesse do poder público municipal, como faculta o caput do § 4.º do artigo 182 da Constituição. E em havendo a pretensão em se utilizar quaisquer dos instrumentos que o inciso II cita, não resta dúvida de que isto se inclui no conteúdo obrigatório, por uma questão, antes de tudo, de legalidade. O cumprimento de todas as exigências relacionadas ao plano diretor, sua adoção e sua aplicação, são especialmente importantes para a garantia do direito à moradia adequada. O plano, mesmo no que não se refere exatamente à política habitacional, está sempre direcionado a uma melhora na organização do espaço urbano, e isto, por si só, já reflete na qualidade da moradia existente naquele espaço. 5.2.3 Gestão Democrática da Cidade. A gestão democrática da cidade prevista nos artigos 43 a 45 do Estatuto da Cidade possui suas bases na Constituição da República, a começar pelo artigo inaugural da Lei Maior, que diz que a República Federativa do Brasil constitui-se um Estado democrático de direito e pelo parágrafo único deste artigo está expresso que todo poder emana do povo, que o exerce através de seus representantes ou diretamente. Muito pode ser dito por democracia e Estado Democrático de Direito, o que seria demasiado explorar aqui. Necessário é que se diga, entretanto, usando as palavras de José Afonso da Silva, que a democracia num Estado Democrático de Direito há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo e deve ser exercido em seu proveito, direta ou representativamente, participando este do processo decisório e da formação dos atos de governo, num ambiente pluralista, que respeite a diversidade de idéias, culturas e etnias, proporcionando um diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e possibilitando uma convivência melhor de interesses diversos da sociedade.149 Além destes dispositivos, são diversos os que prevêem a participação popular e de associações representativas de setores da sociedade, estando incluído o Estatuto da Cidade num modelo político que procura levar em conta a participação direta da sociedade na tanto na tomada de decisões quanto na fiscalização da atuação estatal. A importância da participação da sociedade civil, não importando em que volume de pessoas e opiniões seja exercida, é ressaltada por Luís Roberto Barroso150: Por intermédio da atuação dos diferentes organismos da sociedade civil, articulamse, muitas vezes, poderosos instrumentos para a exigência do cumprimento da Constituição e das leis, bem como para a conformação da atuação do Poder Público ao sentimento coletivo. Esta forma de fiscalização participativa se estende desde a pequena ação comunitária local até às grandes arregimentações que despertam e influenciam a opinião pública. Um dos argumentos maiores para justificar a gestão democrática seria dar maior legitimidade e racionalidade151 às decisões políticas tomadas, colocando-as em sintonia com os princípios constitucionais de democracia, justiça, e dignidade humana152. 149 SILVA, José Afonso da. Op. Cit, p.120. BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit. p. 131. 151 Segundo Cláudio Pereira de Souza Neto, “a democracia deliberativa não restringe o princípio democrático à possibilidade de o povo eleger representantes durante os períodos eleitorais; ela se exerce também pela via do debate sobre as questões de interesse público. No espaço público, os atores políticos não estatais podem criticar as decisões tomadas pelos governantes, e essa crítica exerce um papel legitimador e racionalizador. Para que as decisões sejam aceitas pela comunidade é necessário que o governo as justifique com boas razões, e, se não o fizer, será criticado no âmbito de um espaço público livre e igualitário. O controle do governo pelo público não se dá, portanto, apenas no momento eleitoral, mas durante todo o mandato, e isso reduz muito significativamente a possibilidade de decisões arbitrárias. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa.Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro, Renovar: 2006, p.59. 152 Merecem referência as palavras críticas do pensamento de Paulo Bonavides a respeito da democracia participativa, que expressam bem o lado ruim da democracia representativa, tal qual se apresenta na América Latina, e no Brasil: “Os vícios eleitorais, a propaganda dirigida, a manipulação da consciência pública e 150 A cidade pensada como local de morada, trabalho e existência do indivíduo, e da sociedade, faz pensar que estes devem exercer opinião sobre sua organização, e não só deixar isto a cargo de quem tenha qualquer outro interesse, econômico principalmente. Os indivíduos não podem ser apenas figurantes do espaço urbano, mas devem ser seus atores, tomando parte de todas as decisões na composição deste espaço, em especial no que dirá respeito às áreas onde exercerão seu direito a morar. Segundo Ricardo Lira153, [...] é muito importante que as diretrizes do Estatuto da Cidade se tornem realidade, não só em termos de qualidade de vida para as classes abastadas, mas em termos de atendimento efetivo do direito de moradia digna e saudável para todos, como expressão mínima de cidadania, o que, aliás, decorre dos princípios republicanos fundamentais, consagrando a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais [...] Com vista ao atingimento dessas metas, ressalta (o Estatuto), com prioridade, a gestão democrática das Cidades [...] . A gestão democrática aparece no Estatuto da Cidade, primeiramente, dentre as diretrizes gerais, no inciso II do artigo 2.º, dizendo que esta deverá ser feita por meio da participação da população e associações representativas de segmentos da comunidade na formulação e execução de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. E no mesmo artigo, mais adiante, no inciso XIII, é prevista a audiência da população interessada quando algum empreendimento ou atividade a ser implantada, ofereça efeitos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto e a segurança da população. No artigo 4.º existe previsão no inciso III, f, sobre a gestão orçamentária participativa e no inciso V, s, sobre a utilização do referendo e do plebiscito como instrumentos para realização dos fins propostos no Estatuto da Cidade. A referência à gestão democrática é também encontrada nas disposições relacionadas à elaboração do Plano Diretor, sua implementação e fiscalização, artigo 40, § 4.º, I, que inclui a realização de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos segmentos da sociedade. opinativa do cidadão pelos poderes e veículos de informação, a serviço da classe dominante, que os subornou, até as manifestações executivas e legiferantes exercitadas contra o povo e a nação e a sociedade nas ocasiões governativas mais delicadas, ferem o interesse nacional, desvirtuam os fins do Estado, corrompem a moral pública e apodrecem aquilo que, até agora, o status quo fez passar por democracia e representação. [...] Democracia (a representativa) onde o baixíssimo grau de legitimidade participativa certifica a farsa do sistema, assinalando o máximo divórcio entre o povo e suas instituições de governo.” BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa (Por um Direito Constitucional de luta e resistência; Por uma Nova Hermenêutica; Por uma repolitização da legitimidade.). São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 25-26. 153 LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In COUTINHO, Ronaldo e BONIZZATO, Luigi (Coord.). Op. Cit., p. 11. Os artigos que compõem, pois, o capítulo a respeito da gestão democrática da cidade, fazem previsão de instrumentos para garanti-la e prescrevem situações em que ela deve ser observada. Primeiramente o artigo 43 elenca os seguintes instrumentos: I – Órgãos colegiados de política urbana nos níveis nacional, estadual e municipal. Estes órgãos deverão ser compostos por pessoas integrantes dos diversos setores – público, privado e sociedade civil – e instituídos e organizados na forma da lei quando necessário. Representam a integração entre pessoas que irão opinar sobre questões importantes relacionadas à política urbana. II – Debates, audiências e consultas públicas. Estes fazem parte do processo democrático em que todos os cidadãos participam e opinam sobre questões relacionadas à política urbana. São de extrema importância, uma vez que garantem a oportunidade de defesa de diferentes pontos de vista, o que pode contribuir muito na tomada de decisões da administração do espaço urbano. III – Conferências sobre assuntos de interesse urbano, programas e projetos de desenvolvimento urbano: são uma forma de divulgar para o público em geral, e também para os técnicos, inovações e experiências realizadas na área de desenvolvimento urbano. Possuem caráter formativo e informativo. IV – Iniciativa popular: corresponde à previsão constitucional do artigo 14, III, CR – direito político que faz com que as pessoas possam apresentar seus projetos de lei, planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (que poderão ser tanto rejeitados quanto aproveitados pelo poder de Estado a que for dirigido – Executivo ou Legislativo). V – Este inciso trazia a previsão do plebiscito e do referendo, mas mereceu veto pela razão de já ser matéria disciplinada na Lei 9.709 de 18 de novembro de 1998, que já admitia que estes instrumentos fossem utilizados pelo município, desde que conforme a Lei Orgânica municipal. Admitir outro permissivo, portanto, em outra lei para determinação de política urbana municipal, não seria de boa técnica legislativa. Cita-se aqui por ser importante lembrar que estes instrumentos também têm extremo valor na gestão democrática do espaço urbano. O artigo 44 do Estatuto fala sobre a gestão orçamentária participativa, mencionada no artigo 4º, III, f, do mesmo diploma, prevendo que para que esta seja aprovada é necessária a participação popular através de audiências, debates e consultas públicas. Por fim, o artigo 45 fala da participação popular e de associações representativas da sociedade para o controle dos organismos gestores de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas. Este é, portanto, um panorama bem sintetizado do que seja a gestão democrática no Estatuto da Cidade, que deve estar comprometida com uma democracia mais próxima da efetiva participação do povo, como pensa Eduardo Gonçalves Boquipani154: [...] é correto afirmar, em se tratando de urbanismo, que não encontra amparo constitucional a doutrina segundo a qual as cidades devem ser estruturadas segundo modelos idealizados por uma elite, ainda que qualificada, porém, sem referência à participação efetiva do povo. Do mesmo modo, a cidade monista, descomprometida com o pluralismo social, homogeneizada e homogeneizadora, é inconcebível. Em especial no que diz respeito ao direito à moradia adequada, a participação popular, principalmente a participação do grupo que será afetado diretamente pela decisão de política urbana relacionada à habitação, é extremamente importante. Isto porque a adequação da moradia é variável conforme o local, o clima, a cultura, etc., e assim, qualquer decisão a respeito da moradia será mais bem tomada quando realizada ouvindo a população interessada. É importante para quem “habita” ter a possibilidade de fazer suas escolhas e expressar opiniões a respeito do local de sua moradia. Sendo este um direito constitucionalmente protegido, não há porque ser negado a esses grupos, muito menos se tal previsão só tende a trazer benefícios ao ambiente urbano como um todo. O estabelecimento de mecanismos consultivos e participativos para coordenar a formulação e a implementação das políticas habitacionais são recomendados pela Agenda Habitat (item 68, a), devendo incluir representantes de diversos setores (público, privado, sociedade civil, inclusive com expressa previsão de representantes dos grupos considerados “pobres”). 154 BOQUIPANI, Eduardo Gonçalves. Utilização Compulsória da Propriedade Urbana. In COUTINHO, Ronaldo e BONIZZATO, Luigi (Coord.). Op. Cit., p.183. 5.2.4 Outros instrumentos jurídicos do Estatuto da Cidade e sua influência no Direito à Moradia adequada. O Estatuto da Cidade prevê diversos instrumentos jurídicos que guardam relação de grande importância com o direito à moradia, tanto no que diz respeito à criação de condições para que o direito possa ser promovido, quanto para regulamentação de situações irregulares de assentamentos humanos (lembrando-se que a segurança da posse é um dos elementos mais importantes que integram o conceito de moradia adequada), e que por isso, merecem destaque. Nas cidades brasileiras, que possuem um elevado índice de irregularidade no uso do solo urbano155, especialmente nas áreas para fins de moradia, os instrumentos que permitem a regularização fundiária são da máxima importância. Infelizmente, a regularização fundiária não é instrumento suficiente para coibir o avanço das irregularidades, o que depende de uma política pública habitacional mais incisiva que interfira, inclusive, no mercado imobiliário 156, mas ela permite o real acesso à terra urbana através da efetivação da segurança da posse do local onde se exerce a moradia, um direito humano e fundamental. Além disso, permite que seja feito um diagnóstico nas áreas urbanas, de forma que se identifique as áreas irregulares, e, sendo estas de risco, ou de proteção ambiental, possibilita o remanejamento 155 De acordo com os dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), foi apurado a respeito da presença de favelas, cortiços e loteamentos irregulares, o seguinte: em 2001, 1.269 prefeituras brasileiras (23%) declararam que havia favelas, mocambos, palafitas ou assemelhados em seu município. Porém, apenas 13% afirmaram possuir cadastro desse tipo de moradia. O total de favelas cadastradas é de 16.433, e nelas existem 2.362.708 domicílios cadastrados. Desses domicílios, 1.654.736 (70%) estão localizados nos 32 maiores municípios do país (com mais de 500 mil habitantes). Todos os 32 grandes municípios declararam que havia favelas em seu território. A Região Sudeste é a que mais apresenta domicílios cadastrados em favelas em números absolutos, com 1.405009 domicílios distribuídos nas 6.106 favelas cadastradas. 23% dos municípios da região disseram haver favelas em seu território. BRASIL, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Perfil dos Municípios Brasileiros, Gestão Pública 2001. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/12112003munic2001html.shtm, acesso em 03 de junho de 2007. 156 Que pode ser exemplificado com o caso de Porto Alegre, do Urbanizador Social. O Município de Porto Alegre, movido pela necessidade de regularizar, não apenas a terra, mas o mercado imobiliário irregular, que muitas vezes negocia áreas de risco e impróprias para fins de moradia, previu, no seu Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, o instrumento a que chamou de “Urbanizador Social” que, mais tarde, foi transformado em lei. O Urbanizador Social se propõe a realizar não só uma política habitacional voltada a regularização, mas também uma política preventiva, oferecendo alternativas para que a população de baixa renda adquira lotes no mercado imobiliário e com isso, se evite a ocupação de áreas irregularmente. Também procura se estabelecer uma relação com empreendedores do mercado imobiliário, através de incentivos, para que ponham no mercado lotes com preços acessíveis, estabelecendo parcerias público privadas, tentando, com isso, minimizar os problemas relacionados ao mercado informal de irregular de terras urbanas. MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. Prefeitura de Porto Alegre. Secretaria de Planejamento Municipal. Urbanizador Social. Da informalidade à parceria: acesso e qualidade na produção do solo urbanizado. Em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/urbanizador_social.pdf, acesso em 09 de maio de 2007. destas pessoas a locais mais adequados, ou até mesmo sua manutenção na área ambientalmente protegida, quando possível, mas com as recomendações necessárias à manutenção do meio ambiente, dentro de um programa de convivência sustentável. Os problemas de regularização fundiária têm, geralmente, caráter coletivo. Quando de caráter individual, são resolvidos pelo direito civil, e geralmente, não implicam exatamente em problemas urbanos relevantes. Os institutos do Estatuto da Cidade voltados a resolver o problema da regularização fundiária vão, portanto, ter, igualmente, caráter coletivo, como é o caso da usucapião especial de imóvel urbano. Dentre os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, os que mais se referem à política de regularização fundiária e, consequentemente, ao direito à moradia adequada são: a Usucapião Especial de Imóvel Urbano, o Direito de Superfície, o Direito de Preempção, a Outorga Onerosa do Direito de Construir e a Transferência do Direito de Construir. Também é previsto neste mesmo capítulo, em seqüência aos instrumentos citados, o Consórcio Imobiliário, embora não previsto no rol dos instrumentos de política urbana. 5.2.4.1 Usucapião Especial de Imóvel Urbano. O Estatuto da Cidade, em seu artigo 9.º, regulamenta a usucapião especial de imóvel urbano157, espécie de usucapião, instrumento tão tradicional do direito civil, através do qual se adquire a propriedade mediante uma prescrição, um decurso de tempo, para utilizá-lo com fins de favorecer os que ocupem imóvel urbano com fins de moradia própria ou de sua família. A matriz desta espécie de usucapião é constitucional, prevista no artigo 183 e parágrafos da Constituição da República, sendo anterior, portanto, ao Estatuto da Cidade, vindo a ser, por este, regulamentada. Destina-se a usucapião especial à aquisição de imóvel urbano. Sobre o qualificativo “urbano” relacionado ao imóvel, esclarece Nelson Saule Junior158: [...] refere-se ao tipo de ocupação dada ao solo, independentemente de sua localização em zona urbana ou rural, de acordo com o zoneamento municipal. Da mesma forma, não estabelece nenhuma restrição ou impedimento do reconhecimento por meio do Usucapião Urbano, do direito à moradia da população 157 Exatamente com a mesma redação do Estatuto da Cidade, o Código Civil faz a previsão do mesmo instituto em seu artigo 1.240 e parágrafos. Saule Junior adverte que “o novo Código Civil pode servir como norma subsidiária à regulamentação do Usucapião Urbano pelo Estatuto da Cidade. Em razão de o Usucapião Urbano ser um instrumento constitucional de política urbana, devendo, portanto, prevalecer as normas de direito urbanístico instituídas na lei federal de desenvolvimento urbano, que é o Estatuto da Cidade. SAULE JUNIOR, Nelson. Op.Cit., p.384. 158 Ibidem, p. 385. que ocupa área urbana situada numa área considerada de preservação ambiental. Caso não seja adequado o local para fins de moradia, por se tratar de uma área de risco ou por ser necessário para preservação ambiental, o Poder Público terá que assegurar uma outra moradia para a população beneficiada pelo Usucapião Urbano, como forma de compensar a lesão do direito à moradia e, neste caso, também ao direito de propriedade. A aquisição mediante usucapião deverá ser declarada pelo Poder Judiciário, após trâmite de ação própria, sendo feito, posteriormente, a inscrição no Registro de Imóveis. A partir do momento em que for declarada a aquisição da terra urbana, passa a pessoa adquirente a ter o domínio pleno da propriedade, com todos os aspectos a ele inerentes. Nem a Constituição nem o Estatuto da Cidade fazem exigência da boa-fé ou do justo título para a aquisição mediante esta espécie de usucapião, particularidades que são exigidas na usucapião do artigo 1.242 do Código Civil. A falta da exigência parece ter como razão o privilégio que se dá ao direito de moradia em face do direito de propriedade em casos de ocupação irregular, pelas diversas motivações sociais que acompanha (a maior parte das ocupações irregulares existentes em prédios urbanos que se qualificam para serem adquiridos por este tipo de usucapião denotam que o tipo de população que os ocupa é a população com renda mais baixa, que não possui alternativa regular de acesso ao mercado imobiliário), que tentam ser traduzidas nas exigências feitas pela lei (a área máxima, o uso próprio, o uso com finalidade de exercício de moradia). A usucapião depende, para que seja efetivada, de que o uso do imóvel esteja sendo feito para aquele que o utiliza ou para a sua família. Nesta peculiaridade, a lei demonstra claramente que há a intenção de proteção da pessoa e de sua família, na realização de sua fixação na terra, local onde exerce seu direito fundamental de morar, além de evitar que esta aquisição seja feita com outro propósito senão o previsto. Pode ser afirmado, portanto, que este instituto é destinado à realização plena do direito à moradia adequada, uma vez que garante a segurança da posse (e no caso, através do reconhecimento da propriedade), daquele que habita um imóvel e preenche os requisitos previstos na lei. Por não permitir que o instituto seja aproveitado por quem já seja proprietário de outro imóvel (um dos requisitos para a aquisição por esta usucapião), conclui-se que este é baseado no princípio da função social da propriedade, uma vez que permite o acesso a propriedade da terra a quem ainda não a tem. Os requisitos para a aquisição do imóvel por usucapião, conforme o disposto no artigo 183, caput, e 9.º, caput do Estatuto da Cidade, são: - A posse de área urbana (ou edificação – previsão feita apenas pelo texto do Estatuto), como se fosse própria (animus domini), de área até 250m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados). - Período mínimo de cinco anos, sem interrupção ou oposição, ou seja, exige-se a posse mansa e pacífica da área. - O uso próprio ou da família de quem reivindica a aquisição. - Não ser, a pessoa que reivindica a aquisição, proprietária de outro imóvel urbano ou rural. Tanto a Constituição da República quanto o Estatuto da Cidade (§ 1.º do artigo 183 da Constituição e § 1.º do artigo 9.º do Estatuto) fazem a previsão de que o título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independente do Estado Civil, considerando portanto, a igualdade entre os sexos e a igualdade também nas condições de “chefia” da família. Também tanto o § 2.ºdo artigo 183 da Constituição, quanto o § 2.º do artigo 9º do Estatuto, fazem a ressalva de que o direito a aquisição por usucapião não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. O § 3.º do artigo 183 da Constituição afirma, definitivamente, que os imóveis públicos não estarão sujeitos à aquisição por usucapião. Fica evidente, pelos requisitos exigidos, o propósito tanto da Constituição quanto do Estatuto na previsão desta espécie de usucapião. A ocupação informal das terras urbanas fez com que a lei trouxesse uma solução para que a posse e a propriedade destas áreas fossem regularizadas, e que com isso, se desse mais segurança jurídica às pessoas que, por necessidade, morassem em solo de propriedade de outra pessoa. O tratamento para a informalidade através da usucapião também é alcançado de outra maneira e para uma situação diferente da ocupação individual, a que o Estatuto da Cidade procurou atender devido à existência fática desta situação nas cidades brasileiras – a ocupação de áreas, em regime de composse, pela população de baixa renda, para fins de moradia. É o caso da usucapião prevista pelo artigo 10 do Estatuto da Cidade. Diz o artigo 10 do Estatuto da Cidade que as áreas urbanas com mais de 250m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), ocupadas por população de baixa renda, para sua moradia, onde não for possível a identificação dos terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente. Não se trata, embora, possa parecer, de uma nova modalidade de usucapião. Afinal, os elementos principais, que motivaram a usucapião especial de imóvel urbano na Constituição de 1988, instituto repetido pelo Estatuto da Cidade, continuam presentes: o tempo reduzido para se efetivar a prescrição aquisitiva, a utilização para fins de moradia própria ou da família, e a não propriedade de outro imóvel rural ou urbano por quem pretende se beneficiar do instituto. Assim, da mesma forma que a usucapião especial “individual”, a usucapião “coletiva” se destina a realização do direito fundamental à moradia, bem como ao atendimento do princípio da função social da propriedade e da cidade, de maneira que procura tornar regular uma situação fática recorrente na realidade das cidades, que são os assentamentos de pessoas em áreas, onde não se consegue delimitar a extensão de domínio de cada um. Não é por este motivo que o Estatuto se privaria de instituir uma solução para a questão. Ao contrário, o faz, no artigo 10, mas isto não significa a criação de uma nova espécie de usucapião. 159 São requisitos da usucapião prevista no artigo 10: - A posse de área urbana com mais de 250m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor. - A ocupação por população de baixa renda. - Período mínimo de cinco anos, sem interrupção ou oposição. - Uso próprio ou pela família de quem reivindica a aquisição. - Não ser a pessoa que reivindica a aquisição, proprietária de outro imóvel urbano ou rural. O primeiro requisito, posse de área urbana onde não se possa identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, deve, conforme sustentado por Gilberto Shäfer160, ser contextualizado nos fins do Estatuto da Cidade para que não seja inviabilizada sua aplicação, dizendo o autor: Os fins estão em consonância com o direito à moradia que exige a proteção à posse, traduzindo-se em segurança jurídica contra o proprietário-registral – não mais proprietário legal em face da usucapião, cuja sentença é meramente declaratória – para que as pessoas ali assentadas possam estabelecer condições mínimas de dignidade. Assim, o requisito não deve ser entendido num tecnicismo absoluto, mas dentro de uma proposta que permita trabalhar áreas muito densas. Por isso, o 159 Saule Junior também não considera este tipo de usucapião como uma nova modalidade do instituto de aquisição de terra urbana, e que por isso, o termo inicial para contagem da prescrição aquisitiva não pode ser o da vigência do Estatuto da Cidade, pois isto seria negar a existência da usucapião de imóvel urbano prevista na Constituição da República. O autor sustenta que o Estatuto procurou “atingir o grau máximo de eficácia” do instituto, não sendo criado, assim, uma “nova espécie”, senão uma forma de viabilização do uso do instituto por pessoas que exercem a posse urbana em regime de composse. SAULE JUNIOR, Nelson. Op.Cit., p. 387. 160 SHÄFER, Gilberto. Usucapião Especial Urbana: da Constituição ao Estatuto da Cidade. In: ALFONSIN, Betânia e FERNANDES, Edésio (Org.). Op. Cit., p. 122-123. conceito a ser utilizado é o de densificação habitacional. Estritamente não haveria impossibilidade de identificação, pois através de um levantamento topográfico e cadastral todos os terrenos podem ser objeto de identificação. Assim, não restam dúvidas a respeito da inserção do instituto nos fins maiores do Estatuto da Cidade, principalmente o de promover a política urbana baseada na função social da propriedade, viabilizando a aplicação da usucapião para estas áreas de alta densidade, não permitindo que as pessoas ocupantes destas áreas deixem de ter acesso à regularização fundiária. O segundo requisito, a ocupação por pessoas de baixa renda, reflete a preocupação do Estatuto da Cidade com a questão social, sendo este dispositivo verdadeiro realizador da justiça social. Estas pessoas ocupam irregularmente terrenos urbanos, conforme as necessidades próprias que vão surgindo, sem se preocuparem com a questão da delimitação e divisão da área ocupada. Regularizar de alguma maneira estas áreas é necessário para que se garanta a segurança da posse, fator indispensável na realização do direito à moradia adequada, considerando-se também que é à satisfação do direito à moradia que se destina a usucapião especial de imóvel urbano. Embora diferenciados sob alguns aspectos, estas “modalidades” de aquisição por usucapião deverão ser consideradas como uma só espécie que pode ser exercida de duas maneiras, em razão dos fundamentos que o sustentam: a realização da função social da propriedade e a realização do direito à moradia adequada através da promoção da segurança da posse que proporciona, impedindo a ocorrência de despejos forçados, remoções ilegais a que estão sujeitos os moradores de áreas irregulares, pessoas expostas a sofrerem mudanças de vida que podem alterar substancialmente seus direitos de morar, trabalhar e circular no espaço urbano, maculando sua dignidade.161 Também merecem ser mencionados os benefícios urbanísticos trazidos pela aplicação deste instituto: os terrenos passam a receber pelo poder público um tratamento 161 Como foi o caso, relembrado por Ricardo Lira, da Favela da Catacumba, situada nas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, na cidade do Rio de Janeiro. As pessoas ali residentes foram removidas para as localidades de Santa Cruz, Antares e outros locais a longa distância de onde exerciam seu trabalho, dependendo, após a remoção, de várias conduções para chegarem a seus locais de trabalho. Isso trouxe desequilíbrio nas famílias uma vez que as mulheres, que antes prestavam serviços domésticos às famílias dos arredores da favela, bairros nobres da cidade, passaram a não mais trabalhar, pois não havia como conciliar as longas distâncias com os cuidados com a casa e com os filhos. Os maridos destas mulheres, para compensar a distância entre a casa e o trabalho, passaram a dormir nos locais de trabalho, ficando separados das famílias e em alguns casos, motivando o fim dos casamentos. Isto tudo gerou uma diminuição do orçamento destas famílias que, muitas vezes, se valeram da prostituição de suas filhas para ajudar na manutenção da casa. Ou seja, a remoção de uma favela causou conseqüências irreparáveis a estas pessoas, de ordem social, moral e econômica, pois se pensou apenas no aspecto urbanístico da área e não no aspecto social e individual de cada pessoa que ali habitava. LIRA, Ricardo Pereira. Op.Cit., p. 12-13. urbano melhor com menor custo, uma vez que, no caso de aquisição das áreas por usucapião, não será necessária a desapropriação destas áreas para que se proceda a regulamentação fundiária.162 Por todos estes motivos é que se afirma que a usucapião especial de imóvel urbano, relativamente à ocupação de imóveis particulares, é o instrumento mais importante de realização de justiça social no que diz respeito à proteção do direito à moradia. 5.2.4.2 Direito de Superfície. Primeiramente pelo Estatuto da Cidade, nos artigos 21 e seguintes e, posteriormente no Código Civil, nos artigos 1.369 e seguintes, o direito de superfície passa a integrar o ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, uma vez que o código Civil de 1916 não continha sua previsão. O fato de ter sido previsto o direito de superfície especialmente destinado a fins urbanísticos em momento cronologicamente anterior ao da que seria a norma geral de direito civil sobre a matéria, se deu por motivos os mais diversos, tendo em visa a longa tramitação do Código Civil. Mas a diferença temporal entre os dois diplomas legais não nega o fato de que a intenção era trazer para o ordenamento mais um instrumento que pudesse estabelecer direitos sobre a propriedade e que, de certa forma, atuasse como instrumento urbanístico, por apresentar mais uma possibilidade de aproveitamento do solo. Para um entendimento melhor do direito de superfície é necessário que se faça algumas considerações a respeito do que seja acessão. Ricardo Pereira Lira163 da seguinte forma define acessão: Caracteriza-se a acessão pela união física entre duas coisas, formando de maneira indissolúvel, um conjunto em que uma das partes, embora possa ser reconhecível, não guarda autonomia, sendo subordinada, dependente do todo, seguindo-lhe o destino jurídico. Desta forma, continua a explicar o autor164 que, ocorrida a acessão, uma nova coisa surge, com individualidade própria, sendo essa nova coisa composta por terreno e construção (ou plantação). Essa nova coisa que surge deve ser entendida como única em relação ao terreno, e não como duas coisas distintas, embora conexas, e será de propriedade do dono do terreno. A este fenômeno se dá a denominação de princípio superficies solo cedit, 162 MATTOS, Liana Portilho. Nova Ordem Jurídico Urbanística. Função Social da Propriedade na Prática dos Tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.86. 163 LIRA, Ricardo Pereira. Op.Cit, p.3. 164 Ibidem, p.3. pelo qual se entende que tudo que se constrói em solo alheio passa a constituir propriedade do dono do solo. No nosso ordenamento jurídico essa é a regra, prevista pelo Código Civil nos artigos 1248, inciso V c/c 1253, que dizem que a acessão pode dar-se por plantações ou construções e que toda construção existente em um terreno presume-se feita pelo proprietário à sua custa, até que se prove o contrário. Os efeitos da acessão, no entanto, podem vir a ser suspensos ou interrompidos e daí é que se começa a vislumbrar a ocorrência da superfície. Quando ocorre a suspensão dos efeitos da acessão tem-se a superfície temporária; quando ocorre a interrupção desses efeitos o que se terá é a superfície perpétua. Em ambos os casos o princípio superficies solo cedit deixa de incidir e passa-se então à visualização de duas propriedades distintas, embora intimamente unidas: a da construção (ou plantação), pertencente a quem edificou ou plantou e a propriedade do solo, que continua a ser de domínio de seu dono. A possibilidade de se suspender ou se interromper os efeitos da acessão é que consubstancia o direito de superfície. Entendida a questão da acessão, diz-se que o direito de superfície é um direito real, autônomo, de se adquirir ou construir uma coisa sobre um terreno sem que a propriedade desta se una a propriedade do terreno, permanecendo destacada até o termo final da duração do direito, se houver. Ricardo Pereira Lira165 assim define o instituto: [...] é o direito real autônomo, temporário ou perpétuo, de fazerem e manter construção ou plantação sobre ou sob o terreno alheio; é a propriedade – separada do solo – dessa construção ou plantação, bem como é a propriedade decorrente da aquisição feita ao dono do solo de construção ou plantação nele já existente. Ou seja, fica claro a se observar que o ponto mais importante, caracterizador do direito de superfície é a suspensão ou interrupção do princípio da acessão, o que permite visualizar separadamente as duas propriedades envolvidas neste instituto, a fundiária e a superficiária. De acordo com a norma do artigo 21, § 1º do Estatuto da Cidade, o direito de superfície poderá abranger o direito de se utilizar o solo, o subsolo e ainda o espaço aéreo, de acordo com o estabelecido no contrato, e ainda, com a legislação urbanística. Embora a lei não preveja especificamente, fica claro que a utilização de construções já existentes, tanto no 165 LIRA, Ricardo Pereira. Op.Cit., p.14. solo quanto no subsolo, também podem constituir objeto do direito de superfície, servindo o instituto, portanto, também para possuir e manter estas construções. O Código Civil não trata o objeto do direito de superfície da mesma forma. De acordo com o Código, especificamente no parágrafo primeiro do artigo 1369, não fica autorizada a instituição da superfície para obras no subsolo, a não ser que estas sejam inerentes ao objeto da concessão. Tal norma, sem dúvida, restringe o aproveitamento econômico do instituto. No entanto, também permite a posse e a manutenção de construção já existente. A normatização do instituto do direito de superfície, tanto no Estatuto da Cidade quanto no Código Civil faz surgir a dúvida sobre qual regime legal será aplicado, uma vez que o Código Civil, que por uma questão lógica deve conter normas gerais, surgiu posteriormente ao Estatuto da Cidade. É preciso, para se dirimir o problema, que se conjuguem estas normas em conflito levando em conta o parágrafo segundo do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, e não o parágrafo primeiro do mesmo artigo, porque, embora o Código Civil tenha vindo posteriormente ao Estatuto da Cidade, regulando por completo a matéria do direito de superfície, veio como norma geral, não revogando, portanto, as normas especiais já existentes. 166 Importante dizer que o Código Civil ignora as normas do Estatuto da Cidade e as questões de política urbana, mesmo fazendo alusão expressa ao cumprimento das finalidades econômicas e sociais no artigo 1228, § 1.º. O Estatuto da Cidade, por sua vez, ao elencar os instrumentos de política urbana no art. 4.º, § 1.º, faz remissão à “legislação que lhes é própria”, ou seja, no caso, ao Código Civil. Ao se fazer a interpretação do Estatuto da Cidade não se pode esquecer nunca de seu objeto. Esta talvez seja a chave para a minimização dos conflitos entre normas. É certo que a previsão do direito de superfície pelo Estatuto da Cidade se dá pelo fato de que este instrumento se adequa como alternativa à solução de problemas urbanísticos, em especial à falta de moradia e de acesso à terra regularizada e urbanizada. De igual maneira, o direito de superfície atende também à realização do princípio da função social da propriedade. 166 Vale destacar aqui o posicionamento do professor Lobato Gómez no sentido de que as normas do Código Civil devem ser aplicadas também à superfície urbanística quando dispuserem de forma contrária ao Estatuto da Cidade, por exemplo, proibindo a constituição do direito de superfície no subsolo, o que é permitido pelo Estatuto. Data venia, ousamos discordar do ilustre autor, quando se tratar de superfície para atender fins de urbanificação, pelo fato de serem mais dilatadas as possibilidades de instituição de direito do superfície pelo Estatuto, o que abre mais possibilidades de aproveitamento do solo urbano. GOMÉZ, J. Miguel Lobato. A disciplina do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro. In: Revista Trimestral de Direito Civil – v.20 (outubro/dezembro 2004). Rio de Janeiro: Padma, 2004, p. 103. A partir da definição das áreas não edificadas, não utilizadas ou subutilizadas, o direito de superfície pode ser importante instrumento para que se proceda ao adequado aproveitamento dessas áreas, o que pode ser exigido pelo poder público sob pena de se incorrer nas hipóteses previstas no § 4º do artigo 182 da Constituição da República.167 É necessário, devido às diversas situações urbanísticas de fato precisam ser regulamentadas para que se efetivamente cumpra o princípio da função social da propriedade, da cidade e o direito fundamental de moradia, que haja alternativas legais para os proprietários dos terrenos urbanos. Nem sempre os institutos de regularização fundiária que transferem a propriedade para o ocupante do solo urbano, como a usucapião, são possíveis de serem implementados. Também podem ocorrer situações em que não interesse ao ocupante do imóvel ter sua propriedade, e assim, outra solução jurídica pode ser utilizada, como o direito de superfície. O que importa, em termos de proteção de direito à moradia adequada é a manutenção da segurança da posse através de instrumentos previstos em lei, não importando qual sua natureza. 5.2.4.3 Direito de Preempção. O direito de preempção se caracteriza pela possibilidade de se conferir a outrem a preferência em fazer alguma coisa, geralmente, a preferência na aquisição de um bem. A novidade trazida pelo direito de preempção prevista no Estatuto da Cidade pode ser identificada em: ser determinada pela lei a pessoa que terá a preferência na aquisição de um imóvel urbano e as razões para esta preferência. No caso, esta pessoa a quem se destina a preferência de aquisição é o Município, e as razões para esta preferência são a utilização deste imóveis para fins de desenvolvimento urbano. O núcleo do direito de preempção é o mesmo no direito privado e no direito urbanístico: a preferência na compra de um imóvel. Mas no Estatuto da Cidade o instrumento, por ter razões urbanísticas, deve guardar distância de seu similar no direito privado que se destina a pactos estabelecidos em relações eminentemente privadas.168 Sendo assim, o direito “urbanístico” de preempção será uma imposição restritiva ao direito de propriedade, que afeta a liberdade do proprietário de dispor do bem, 167 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito de Superfície. In: OSÓRIO, Letícia Marques. Op.Cit.,p. 174-175. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op.Cit., p. 164. O autor, inclusive, utiliza-se da denominação direito urbanístico de preempção para diferenciá-lo do instituto do direito civil, artifício que se utilizará aqui para os mesmos fins. 168 ficando obrigado a aliená-lo ao município. No Estatuto da Cidade, o direito de preempção será meio para ampliar o acesso a terra legal e urbanizada, para a implementação de equipamentos urbanos, para realizar a regularização fundiária, para se preservar o patrimônio ambiental e cultural e para planejar melhor o ambiente urbano, garantindo-se cidades sustentáveis.169 A determinação das áreas em que incidirá o direito de preempção será feita por lei (art. 25, § 1.º do Estatuto), mas as áreas deverão ser condizentes com o que está estabelecido no plano diretor, pois, obviamente, não faz sentido destinar áreas onde serão realizadas melhorias urbanas se isto não estiver de acordo com o que pretende o plano, principal instrumento da política urbana, para a cidade. A utilização do direito de preempção se dará sempre que o município necessitar de áreas para (art. 26 e incisos, do Estatuto): regularização fundiária; execução de programas e projetos habitacionais de interesse social; constituição de reserva fundiária; ordenamento e direcionamento de expansão urbana; implantação de equipamentos urbanos e comunitários; criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico. O artigo possuía mais um inciso, que previa também a realização de “outras finalidades de interesse social”. Este artigo foi vetado com o argumento de que sua aplicação seria demasiadamente discricionária, e como o instituto tem como objeto uma restrição do direito de propriedade, relativo à liberdade de dispor do bem, o inciso poderia ensejar abusos por parte do poder público. Assim, parece ficar claro que o rol do artigo 26 é fechado, devendo ser interpretado restritivamente. E a lei deverá enquadrar cada área destinada ao direito de preempção, uma ou mais finalidades de política urbana (parágrafo único). Vinculado, portanto, que está o direito de preempção à realização de ações voltadas à política urbana, não é difícil se identificar mais de um instrumento do Estatuto da Cidade que se destina a dar à propriedade uma função social. Não apenas será a destinação destas áreas a mecanismos relacionados à promoção do direito à moradia em si, como a regularização fundiária e a execução de projetos habitacionais, mas também a medidas de caráter urbanístico que, melhorando o ambiente urbano, influenciarão na adequabilidade da moradia, como a preservação ambiental, a criação de áreas comuns de convivência e lazer e a preservação do patrimônio artístico e cultural. 169 OSÓRIO, Letícia Marques e SOSO, Patrícia Helena. Direito de Preempção. In OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Op. Cit., p. 190-191. 5.2.4.4 Outorga Onerosa do Direito de Construir. De acordo com o disposto no caput do artigo 28 do Estatuto da Cidade, a outorga onerosa do direito de construir vai corresponder à possibilidade de se exercer o direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário, em áreas fixadas pelo plano diretor. Para melhor entendimento da outorga, é necessário que se compreenda o que seja solo criado, densidade construtiva e sua relação com a densidade populacional. A noção de solo criado surge com a criação artificial de área horizontal, mediante a sua construção sobre ou sob o solo natural, áreas estas que deverão ser utilizáveis (diferentemente do uso do espaço aéreo, que poderá ser feito, por exemplo, com a construção de uma torre sem pavimentos intermediários).170 A densidade construtiva corresponde à quantidade de área construída numa determinada área de solo urbano. Sua relação com a densidade populacional nem sempre é proporcional. Muitas vezes se observa que a relação se dá da de maneira inversamente proporcional, ou seja, é comum nas cidades que a população de renda maior se utilize de uma grande área construída para viver. Em contrapartida, a população com renda menor, geralmente “aproveita” mais a área construída para atender a um maior número de pessoas. Assim, não significa necessariamente que uma grande área construída corresponda à exata presença de uma população numerosa. Este é um ponto a ser considerado. Outro ponto é relacionado com o próprio direito de construir. O direito de construir está intimamente ligado ao direito de propriedade, e como este, depende do solo para ser exercido. Mas limitações de caráter administrativo o influenciam de sobremaneira, pois não se pode exercer este direito ilimitadamente, devendo ser guardadas exigências técnicas, sanitárias, estéticas, de posturas, que se propõem a fazer com que a cidade seja um lugar aprazível, salutar e sustentável, além dos direitos de vizinhança previstos na lei civil. Assim, são estabelecidos pelo poder público municipal os coeficientes de aproveitamento dos terrenos urbanos para limitar a quantidade de área que poderá ser construída nestes terrenos, estabelecendo uma relação entre a área do terreno e a área que pode ser construída. Esta determinação de coeficiente de aproveitamento básico é fixada pelo plano diretor (ou por 170 GRAU, Eros Roberto. Aspectos Jurídicos do Solo Criado, O solo Criado/Carta do Embu, CEPAM, São Paulo, 1976, p. 24 apud SAULE JUNIOR, Nelson. Op. Cit., p. 308. outra lei municipal, nas cidades onde não haja plano diretor) e constitui a relação entre a área edificável e a área do terreno, conforme dispõe o § 1.º do artigo 28. Outros coeficientes poderão ser fixados, além do básico, para determinação de limites ao poder de construir em situações específicas, como a da outorga onerosa. A que o instituto da outorga onerosa do direito de construir se propõe é determinar áreas, fixadas no plano diretor, onde se permite exercer o direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, e que para isso seja realizada uma contrapartida por parte de quem se beneficia. Na verdade estas contrapartidas são uma forma de se resgatar os gastos com os beneficiamentos públicos realizados nas áreas onde se utiliza o instituto, pois quanto maior a área construída, maior necessidade com gastos de infraestrutura como água, esgoto, energia elétrica, vias públicas de circulação de veículos e pedestres, além de escolas, áreas de convivência social, hospitais, etc. A contrapartida poderá ser de natureza pecuniária ou outra diversa. O importante é que, qualquer que seja a natureza, deve-se ter em vista sempre os objetivos da política urbana, pois é para ela que as razões do instituto estão voltadas. O direito de construir outorgado onerosamente pode ser exercido tanto sobre o solo quanto no subsolo, das áreas especificamente destinadas para tal, conforme a necessidade. É fundamental que seja feito um zoneamento das áreas do Município, através do qual as pessoas poderão ter o conhecimento da destinação das áreas do território municipal em que poderá ser exercido o direito de construir acima do coeficiente básico. A respeito da outorga onerosa do direito de construir acima do coeficiente, Nelson Saule Junior diz que esta não se confunde com um tributo, pois não há ato compulsório que gere a obrigação ao particular, havendo, na realidade o exercício de uma faculdade, a prática de um ato voluntário, que consiste na aquisição do ônus para se ter o direito de construir acima do coeficiente básico permitido, não se confundindo o ônus com obrigação, uma vez que o beneficiário paga se quiser.171 Em relação à moradia adequada, os benefícios que o uso deste instrumento podem trazer são os decorrentes desta contrapartida dada pela aquisição do direito de construir. Reza o artigo 31 do Estatuto que os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e da alteração de uso172 serão aplicados com as finalidades 171 SAULE JUNIOR, Nelson. Op.Cit., p. 314. A alteração de uso de solo urbano, prevista no artigo 29 do Estatuto da Cidade, deveria ter sido citada ao lado da outorga onerosa do direito de construir no na Seção IX. Este instituto corresponde a faculdade da administração pública de consentir que seja modificado o uso do solo urbano em determinada área, mediante contrapartida por parte de quem se beneficie. Para isto é lógico que a finalidade do solo deve estar prevista 172 previstas no artigo 26, incisos I a IX do mesmo diploma. Assim, poderão ser destinados à regularização fundiária e à execução de programas e projetos habitacionais de interesse social, e outros, que de qualquer maneira, como já visto ao falar do direito de preempção, influenciam na qualidade urbanística como um todo, influenciando também na qualidade das moradias urbanas. Também pode haver benefício à efetivação do direito à moradia no sentido de que, havendo regra de exceção no inciso II do artigo 30 do Estatuto, que permite que a lei específica que estabelece as condições para a outorga determine casos passíveis de isenção do pagamento da outorga, pode esta ser feita em prol de empreendedor ou população de baixa renda que se beneficiem dos projetos destinados a habitação popular.173 5.2.4.5 Transferência do Direito de Construir. Este instrumento, previsto no artigo 35 do Estatuto da Cidade, permite que o proprietário de solo urbano afetado por alguma peculiaridade que faça com que nele não possa ser usufruído na totalidade o direito de construir, possa exercê-lo em outro local ou aliená-lo a quem tenha interesse, mediante escritura pública. As limitações serão impostas com base nas seguintes necessidades: implantação de equipamentos urbanos e comunitários; preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; atendimento a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social. Os motivos, portanto, para a aplicação do instituto podem ser tanto de ordem de preservação, quando de aplicação de políticas urbanas, quanto ainda de política de regularização fundiária. Mais um instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade que pode favorecer a promoção do direito à moradia. No parágrafo primeiro deste artigo 35, fica estabelecido que o benefício do direito de construir em outro lugar pode ser exercido pelo proprietário que realizar a doação de imóvel seu, ou parte dele, para o poder público realizar qualquer das finalidades previstas. O Estatuto determina que as condições relativas à aplicação da transferência do direito de construir serão determinadas em lei específicas, para áreas já previamente anteriormente no plano diretor. Também deve haver lei específica para determinar as peculiaridades da alteração. Aos recursos dela advindos será dado o mesmo destino àqueles vindos da outorga onerosa do direito de construir. É importante que se diga, entretanto, que o Município deve ser cauteloso ao determinar estas áreas pois, uma mudança imprevista no planejamento urbano pode por em risco toda a política urbana. 173 SAULE JUNIOR, Nelson. Op.Cit., p.315. determinadas no plano diretor. De igual forma à outorga onerosa, é necessário que haja uma prévia ação de zoneamento urbano para que sejam indicados os imóveis que possam ser objeto desta transferência, e ainda, o acompanhamento e controle das destinações dadas às áreas em contrapartida à transferência. O instituto possui grande importância na prevenção de surgimento de assentamentos urbanos irregulares. Isto porque a administração pública ao realizar a política urbanística pode estabelecer que determinada área seja utilizada para um fim determinado, em especial a preservação ambiental, impedindo que ali se estabeleçam moradias irregulares e, ainda, oferecendo ao proprietário a possibilidade de exercer seu direito de construir em outro local ou aliená-lo. Ou seja, como já dito anteriormente, serão as situações de fato que surgem no dia-a-dia das cidades que irão determinar qual instrumento urbanístico é mais adequado para resolver cada problema. 5.2.4.6 Consórcio Imobiliário. É previsto no artigo 46 do Estatuto da Cidade o instrumento denominado Consórcio Imobiliário. De acordo com este instrumento, o poder público pode facultar ao proprietário de área urbana, que tenha sido atingida pela obrigação de que trata o artigo 5.º, também do Estatuto, quando este assim preferir, o estabelecimento de um consórcio imobiliário. As obrigações previstas no artigo 5.º supracitado são as decorrentes da não utilização, subutilização ou não edificação, que consistem no parcelamento, utilização ou edificação compulsórios. Este consórcio tem o propósito de viabilizar financeiramente o aproveitamento do imóvel, e, com isso, fazer com que não haja prejuízos maiores ao seu proprietário quando este não tiver recursos para cumprir com estas obrigações, que, caso não sejam satisfeitas, poderão acarretar outras sanções, que são, em caráter sucessivo, as seguintes: o imposto predial territorial urbano progressivo no tempo e a desapropriação da área em questão mediante pagamento com títulos da dívida pública (artigos 7.º e 8.º do Estatuto da Cidade). De acordo com o disposto no parágrafo 1.º do artigo 46, o consórcio é uma forma de se viabilizar planos de urbanização ou edificação nas áreas que sofreram as sanções de parcelamento, utilização e edificação compulsórios. O instituto traz algumas dúvidas relacionadas às vantagens de ser utilizado. Primeiramente, no caso de ser destinado ao parcelamento, podem ocorrer duas hipóteses: uma de não haver urbanização na área e, neste caso, o poder público entra com os equipamentos urbanísticos promovendo a melhora desta área, faz-se o parcelamento, e o proprietário fica com um número de lotes, agora mais valorizados, de valore correspondente ao que a totalidade do terreno tinha antes de ser beneficiado com a urbanização. Mas, se a área em questão já contar com equipamentos urbanos suficientes e a obrigação seja apenas de realizar o parcelamento, não haverá para o proprietário muita onerosidade, e este poderá até vir a se beneficiar com o parcelamento. No caso de obrigação de utilização compulsória, a onerosidade será medida conforme o uso a que se destinará o imóvel. Assim, da mesma forma, o proprietário poderá se beneficiar ou não. No caso de a obrigação consistir em edificar a área haverá mais onerosidade. Neste caso o poder público executará a edificação e o proprietário fará o resgate através de unidades edificadas, cujo valor corresponda ao valor do terreno que sofreu a sanção. José dos Santos Carvalho Filho174 tece críticas ao instrumento, dizendo que o mesmo é inusual e que a disciplina para sua aplicação é lacônica. De fato. Por se tratar de instrumento que depende de contrato com o poder público, onde ambas as partes possuirão obrigações bem peculiares a serem cumpridas, e que vão variar de acordo com o caso concreto, seria mais prudente se houvesse disciplina legal que desse suporte à maior viabilidade deste instrumento. Não há na lei disposições relacionadas à forma do cumprimento do contrato, à estipulação de prazos para o cumprimento das obrigações, e a outras peculiaridades relativas ao conteúdo do contrato. No entanto, a regulamentação do instituto poderá ser feita através do plano diretor. Por se tratar de instrumento novo no direito brasileiro, provavelmente a necessidade de se utilizá-lo fará com que ele amadureça a ponto de ser melhor aproveitado. No tocante ao aproveitamento deste instituto para fins de moradia, tem-se que o mesmo pode ser muito útil na promoção de políticas habitacionais. Poderão as áreas afetadas se tornar objeto de consórcio com as seguintes finalidades: instalação de loteamento popular, construção de habitações populares, aproveitamento de prédios, com a devida reforma, a serem utilizados para habitação de interesse social, implantação de equipamentos urbanos nas áreas onde houver carência dos mesmos e ainda a urbanização e regulação fundiária em áreas ocupadas por população de baixa renda.175 174 175 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. Cit., p. 311. SAULE JUNIOR, Nelson. Op. Cit., p. 329-330. Compreendido o instituto, merece menção uma peculiaridade ao qual ele remete. Este instituto está visceralmente ligado à utilização, à edificação e ao parcelamento compulsórios, medidas de previsão constitucional que fazem com que a propriedade que esteja sendo subutilizada, ou não esteja sendo utilizada, ou não seja edificada, cumpra com sua função social. A partir do momento que a lei permite que o proprietário tenha a faculdade de contratar com o poder público, mediante o estabelecimento de um consórcio, para se desonerar do cumprimento das obrigações relacionadas à sua propriedade, resta claro que o caráter punitivo do estabelecimento destas obrigações se dirige única e exclusivamente à propriedade em si e nunca ao proprietário. Afinal, o princípio existe para que a função social da propriedade seja cumprida e não para prejudicar o proprietário. 5.3 Concessão e Autorização de Uso Especial – Medida Provisória n.º 2.220 de 04 de setembro de 2001. A concessão de uso especial para fins de moradia foi prevista no texto do Estatuto da Cidade, nos artigos 15 a 20, tendo sido vetados tais artigos. O Estatuto faz previsão no artigo 4º, V, alíneas g e h, que são instrumentos para fins de política urbana a concessão de direito real de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia. O direito real de uso não possui regulamentação pelo Estatuto da Cidade, mas pelo Código Civil, artigos 1.225, V, 1.412 e 1.413. Este, embora possa ser utilizado com finalidades que atendam aos interesses urbanísticos, será sempre um instituto de direito privado, que ainda assim poderá ser aplicado coletivamente consoante o disposto no § 2.º do artigo 4.º do Estatuto da Cidade, a concessões de uso de imóveis públicos, no caso de projetos habitacionais de interesse social, constituindo também importante instrumento para a realização do direito à moradia, garantindo a posse de quem se beneficia com o direito. Há alguns pontos de distinção entre os dois institutos, mas essencialmente se tratam de uso. Um deles é que o direito real de uso será estabelecido mediante contrato (facultativo, portanto), e a concessão de uso especial para fins de moradia será obtida pela via administrativa (obrigatória, para quem preencha os requisitos), requerida por quem fizer jus ao direito, ou pela via judicial em caso de omissão da Administração Pública (art. 6.º, caput da Medida Provisória 2.220). As razões para o veto dos artigos 15 a 20 do Estatuto da Cidade se basearam nos seguintes argumentos: que os artigos não faziam ressalva em relação a imóveis públicos afetados ao uso comum do povo, bem como às áreas de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental ou destinadas a obras públicas, situações que deveriam possuir o mesmo tratamento dado pelo artigo 17 à ocupação de áreas de risco; que não havia previsão nos dispositivos de uma data-limite para a aquisição do direito à concessão de uso, o que tornaria um instrumento permanente justificável apenas pela necessidade de solucionar o imenso passivo de ocupações irregulares; que não havia definição de um prazo para que a Administração pública processasse os pedidos de concessão, o que, devido a elevada demanda, poderia ter como conseqüência a demora e, em seguida, o congestionamento no Poder Judiciário para soluções que deveriam ser buscadas administrativamente. No entanto, as razões de veto reconheceram a importância do instituto, dizendo que o Poder Executivo, sem demora, submeteria ao Congresso Nacional um texto normativo que preenchesse as lacunas existentes sanasse as imprecisões apontadas. Isto foi feito mediante a edição da Medida Provisória n.º 1.220 de 04 de setembro de 2001, que previu não só a concessão, mas a autorização de uso. A fundamentação constitucional para a concessão e a autorização de uso especial se assenta no artigo 183 e parágrafos 1.º e 3.º da Constituição da República. O artigo 183 prevê a usucapião especial de imóvel urbano. No § 1.º é dito que o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher ou a ambos, independentemente do estado civil, e no § 3.º está a regra constitucional que diz que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. Diante disto, a conclusão apontada por Betânia de Moraes Alfonsin176 é a de que, interpretando os textos dos dois parágrafos, a menção do instituto da concessão, ainda que superficial, autorizou a regulamentação da matéria pelo Estatuto da Cidade. Esta é a melhor interpretação para se conseguir resolver o problema da dificuldade de se executar a regularização fundiária de assentamentos em áreas públicas. A MP 2.220 introduz o instituto no ordenamento jurídico, considerando alguns dos argumentos mencionados nas razões de veto do texto suprimido do Estatuto da Cidade. Assim, a concessão é um direito subjetivo daqueles que, até a data de 30 de junho de 2001 tenham completos cinco anos, ou mais, de posse ininterrupta e sem oposição sobre um imóvel urbano, utilizado para sua moradia ou de sua família, e que não seja proprietário nem concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano e rural. Guardadas as devidas diferenças entre a concessão de uso especial e a usucapião especial de imóvel urbano, há semelhanças nos requisitos: o tempo de posse mansa e pacífica, de cinco anos, a extensão deste imóvel, até 250m², a utilização destes para a moradia própria ou da família, e não ter propriedade ou ser concessionário de nenhum outro 176 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: Garantindo a Função Social da Propriedade Pública. In OSÓRIO, Letícia Marques. Op. Cit., p. 160. imóvel urbano ou rural. Assim, é evidente que este é mais um instrumento destinado a cumprir com a função social da propriedade, no caso a função social da propriedade pública, e mais, um instrumento para garantir a moradia, a moradia adequada com segurança de posse do “prédio” onde é exercida. De maneira correspondente à usucapião especial “coletiva”, a concessão de uso especial também pode ser requerida pelas pessoas de baixa renda que, até a data de 30 de junho de 2001, possuírem conjuntamente área de imóvel público superior a 250m² onde não seja possível identificar a fração ocupada por cada um, ininterruptamente e sem oposição, para uso de moradia própria ou de sua família, desde que não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. É, da mesma maneira que na usucapião, uma forma de trabalhar a segurança da posse em áreas muito densas. O artigo 4.º impede que a concessão seja conferida em áreas onde a ocupação acarreta risco à vida ou à saúde das pessoas, e portanto, nestes casos, havendo a possibilidade de se reivindicar o direito, o poder público deverá oferecer outro imóvel onde este possa ser exercido. A MP 2.220, em relação a outras áreas mencionadas nas razões de veto, como as áreas necessárias à defesa nacional, as áreas de uso comum do povo, de preservação ambiental e de proteção de ecossistemas, destinadas a projetos de urbanização, reservadas à construção de represas ou obras congêneres ou situadas em via de comunicação, no artigo 5.º, deixou facultado ao poder público a opção de assegurar o exercício da concessão de uso especial em outro local. Não é dado ao ocupante, portanto, nenhum direito de ocupar outra área. Isto ficará a cargo de decisão no caso concreto, uma vez que as áreas em questão poderão ter outra destinação177. Não parece muito acertada, entretanto, colocar sob a mesma forma de regulamentação as áreas de preservação ambiental e as destinadas a empreendimentos públicos, pois estas poderão não ser utilizadas dependendo da vontade administrativa, mas aquelas deverão ser protegidas sob o imperativo de que o meio ambiente deve ser preservado. No entanto, apenas o caso concreto irá determinar a melhor solução. O título de concessão será obtido pela via administrativa e em caso de omissão ou recusa da Administração, poderá ser feito por via judicial, sendo que o pedido deverá ser decidido num prazo de doze meses a contar do protocolo, e no caso do imóvel pertencer a um Estado ou à União Federal, uma certidão municipal será necessária para atestar a localização do imóvel. No caso de ação judicial a concessão será declarada por sentença que 177 Neste sentido, ALFONSIN, Betânia de Moraes. Op. Cit., p.168. será registrada no cartório de Registro de Imóveis, da mesma forma que o título conferido pela via administrativa (artigo 6.º e parágrafos). O instrumento da concessão de uso especial mostra-se, como visto, importantíssimo na busca pela regularização das áreas ocupadas irregularmente, mas é importante mencionar que, ao contrário da usucapião, ela não confere propriedade a quem reivindica o direito. Não há, na MP 2.220 estipulação de termo para que cesse o contrato de uso, e mais, existe a previsão de que a posse garantida pela concessão pode ser transmitida sucessoriamente. As hipóteses de extinção do direito à concessão de uso especial estão enumeradas no artigo 8º e são elas: ser dada ao imóvel destinação diversa da moradia de si ou de sua família; a aquisição de propriedade ou concessão de uso outro imóvel urbano ou rural. Por fim, a título apenas de esclarecimento sobre o objeto da MP 2.220, cabe mencionar que no artigo 9.º é prevista a autorização de uso especial de imóveis públicos situados em área urbana, que pode ser requerida basicamente com as mesmas especificações da concessão de uso especial, mas se destina a fins comerciais. 5.4 O Estatuto da Cidade e a Pessoa Humana. Foram vistos neste capítulo diversos instrumentos contidos no Estatuto da Cidade que possuem íntima ligação com a promoção e a proteção do direito à moradia. Estes instrumento serão utilizados na definição da política urbana a fim de melhorar as condições de acesso e manutenção do direito à moradia, procurando buscar a adequação das mesmas, conforme as recomendações feitas pelos organismos internacionais de direitos humanos. Assim, atuam estes instrumentos ao lado de toda a ação administrativa de política urbana, que promove ações públicas de saneamento, obras relacionadas a transportes e circulação de pessoas, criação de áreas de convivência humana, preservação de áreas ambientalmente e culturalmente relevantes, de construção de equipamentos urbanos, dentre outras, para exercer proteção ao espaço que se destina ao abrigo da pessoa humana, espaço onde ela exerce sua privacidade, sua intimidade, convive com sua família: a casa. Protegendo a casa, traduzida para o mundo jurídico-urbanístico como direito à moradia, também se protege, por via de conseqüência tudo o que nela se guarda. Qualquer atividade urbanística que melhore, embeleze, funcionalize, estruture e saneie o espaço da cidade será aproveitada direta ou indiretamente por quem exerce o direito de morar nesta cidade. As áreas onde é exercido o direito de morar ocupam boa parte do espaço urbano. Muitas vezes de forma regular, atendendo todas as normas civis e administrativas relacionadas à ocupação do espaço. Mas, como visto, não são todos que ocupam que o fazem de forma regular. Não interessando quais os motivos que levam as pessoas a ocupar os espaços irregularmente, embora se saiba que as diferenças sócio-econômicas e as necessidades geradas pelos altos índices de pobreza e miséria tenham boa parte da responsabilidade por estas ocupações, o fato é que o Estatuto traz inúmeras soluções que podem ser utilizadas para minimizar estes problemas procurando levar à esta realidade a realidade da “cidade regular”, que goza de benefícios completamente inexistentes para a “cidade irregular”. A começar pelo mais importante desses benefícios que é a segurança da posse, a segurança que tem a pessoa de não ser, num momento repentino, privada de seu abrigo, sua casa, seu lar. E após estes todos os outros, desde a infra-estrutura mais básica de saneamento para a preservação da saúde, até o melhoramento e embelezamento de áreas de lazer. Os instrumentos citados aqui, bem como todos os outros trazidos pelo Estatuto da Cidade possuem um só grande fim que é fazer com que a cidade seja o que é da melhor forma possível. Por esta razão, o Estatuto se preocupa com a organização e manutenção do espaço urbano. Mas toda preocupação e trabalho não fazem sentido se não for realizado para as pessoas que habitam na cidade, pois sem elas, a cidade não existe. Por este motivo, por mais grandiosos e arrojados que sejam os programas e projetos urbanísticos, eles devem sempre levar em consideração não apenas a cidade estrutural, mas também a cidade humana, procurando ser completos também no aspecto social, comunitário e individual, não podendo jamais, sob pretexto de realização de qualquer melhoria do espaço, causar qualquer dano à pessoa humana. A interpretação das normas do Estatuto da Cidade à luz do princípio da dignidade da pessoa humana se mostra necessária para isso: para ser à pessoa realizado um trabalho urbanístico adequado às suas necessidades. A cidade existe para a pessoa. Suas funções, o abrigo da moradia, do trabalho, da circulação e da convivência humana, são usufruídas pelas pessoas. Assim, toda atuação urbanística deve estar voltada para a saúde e o bem-estar dos habitantes da cidade, em especial a atuação voltada para a proteção e promoção do direito à moradia, por constituir cuidado a um espaço tão íntimo ao ser humano, que é o espaço que abriga o seu lar. Conclusão Realizações de cunho social, num país marcado por desigualdades sociais geradas principalmente pela má distribuição de renda e também pela falta de acesso à instrução e à cultura, são um desafio o qual o Brasil está longe de superar. Em parte pelas dimensões continentais de seu território, em parte pela diversidade de cultura existente em suas regiões, em parte por sua herança histórica, em parte pela forma com que se conduz a política e a administração pública, esquecendo-se, por inúmeras vezes, que esta última deve ser pautada nos princípios da moralidade e eficiência. Não se apresentam dados, mas é difícil acreditar que o Brasil possa ser um país sem recursos suficientes para dar uma melhor condição de vida a sua população. Constata-se a cada dia, no dia-a-dia das ruas das cidades brasileiras, que o contraste entre a miséria e a riqueza é evidente. Uma das maneiras pela qual se tenta suprir a lacuna existente entre um extremo e outro é com a norma jurídica, e a partir disso os intérpretes vão estudar uma forma ainda melhor para que esta norma jurídica seja aplicada, uma vez que ela apenas tenta suprir as lacunas entre os extremos, mas dificilmente consegue sozinha. A se iniciar pela vontade da Constituição, que representa a vontade do povo brasileiro, onde está escrito que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outras formas de discriminação, sendo um dos fundamentos desta República, a dignidade da pessoa humana. Ao se ler estes objetivos pode-se pensar que o Brasil, ou é um lugar perfeito, ou precisa muito disto tudo para ser um lugar melhor. Infelizmente, fica descartada a primeira opção. Dentre os diversos problemas sociais, econômicos e políticos existentes no Brasil, foi escolhida a questão da moradia urbana para que se fizesse uma abordagem das normas que a garantem como direito, a partir de uma leitura que permitisse com que ela pudesse fazer parte, da composição de uma realidade mais justa e mais humana no cenário brasileiro. A abordagem escolhida foi a que toma como princípio norteador do ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana. Por conta deste fator, se fez necessário toda uma justificação filosófica do porquê de se proteger a pessoa humana, para mostrar o que uma ética apoiada na dignidade pode exercer na interpretação e na aplicadas normas jurídicas, e, a partir disto, a importância da aplicação do princípio da na promoção e proteção do direito à moradia: a moradia também integra o mínimo que compõe uma vida digna, é essencial para o exercício de alguns aspectos da personalidade, como o direito à intimidade e à vida privada, e, além de abrigar o corpo humano, abriga a família, o espaço e os bens privados. Depois, passou-se a analisar o direito à moradia sob o aspecto da tutela de direitos humanos. Então se verificou que é numerosa a quantidade de documentos que fazem referência, direta ou indiretamente a este direito, sinalizando, infelizmente, que um sem número de pessoas vivem em condições precárias de habitabilidade, sendo a falta de moradia, ou a moradia inadequada, um fator indicativo da miséria e das desigualdades sociais e econômicas no mundo. Dentre estes documentos referentes à proteção do direito à moradia, fica destacada a Declaração de Istambul para Assentamentos Humanos, e a agenda dela resultante, a Habitat II, que vem, pontualmente, identificando os problemas relacionados à moradia e aos assentamentos humanos e enumerando os diversos aspectos que devem compor uma moradia adequada e assentamentos humanos sustentáveis. Este é um documento de notável relevância para as políticas relacionadas à moradia, porque oferece conceitos e definições dos problemas mais comuns que envolvem o tema e apresenta uma série de medidas destinadas a solucioná-los, levando em conta o perfil das pessoas que os sofrem e dos locais onde ocorrem. Muitas vezes na legislação nacional não se encontra definições de certos conceitos e temas, e o recurso ao que está definido pelas agendas resultantes de convenções internacionais é uma excelente ajuda no momento da aplicação da norma, pois elas possuem um conteúdo explicativo interdisciplinar que informa ao aplicador do direito sobre elementos muitas vezes apenas citados nas normas jurídicas, e, por outro lado, justificam a proteção das pessoas a quem se outorga o direito. O reconhecimento do direito à moradia como um direito humano tem importâncias diversas. Indica que a comunidade internacional reconhece e se preocupa com o problema. E, ao assumir compromissos internacionais ligados a esta problemática, o país signatário, seja do tratado ou da convenção que trate, direta ou indiretamente do assunto, passa a conferir aos problemas existentes um caráter de urgência na sua solução. O terceiro capítulo passou a ver o direito à moradia no contexto do ordenamento jurídico brasileiro. Nele foram demonstradas, primeiramente, as justificativas para que o mesmo fosse inserido dentre o rol dos direitos sociais no artigo 6.° da Constituição da República. Após, se explicou o significado dos direitos sociais dentro do ordenamento jurídico e dentro da própria constituição, tendo em vista os mesmos serem também, direitos fundamentais. Mais além, demonstrou-se a importância da fundamentação ética dos direitos sociais para a sua efetivação, e, por fim, mencionou-se a problemática da aplicabilidade e da eficácia da norma que define direito social em geral, e as influências da discussão no direito à moradia em particular. A análise do tema, ainda que breve, dentro da previsão constitucional que possui, foi importante para que se justificasse a ligação do mesmo com o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos princípios fundamentais da ordem constitucional, a partir do qual se deve fundamentar toda a decisão jurídica ou administrativa que tenha por destinatário uma pessoa humana. Além disso, possuiu importância também a questão da aplicabilidade e da eficácia da norma definidora de direitos sociais, uma vez que mostra de que forma estes direitos se apresentam de acordo com o tipo de norma que os prevê e quais os mecanismos possíveis para serem pleiteados. Embora a tamanha discussão acerca da efetivação dos direitos sociais, se isto pode constituir ou não um direito subjetivo a ser pleiteado em face do Estado, a realidade mostra que, no caso da moradia, as pessoas não esperam, elas moram. O problema, portanto, passa a existir, na maior parte das vezes, a partir de uma situação irregular, e não, propriamente, a partir da falta desta situação, como pode ocorrer, por exemplo, com o direito à educação ou com o direito à saúde. Assim, pode parecer que a discussão acerca do tema da aplicabilidade e da eficácia da norma constitucional definidora de direito social fica distanciada da realidade. Existente? Certamente. Relevante? Extremamente. Por isto não há como se furtar, ao menos, de se mencionar a discussão. O quarto capítulo se destinou a considerações a respeito do direito de propriedade, pelo fato deste direito ser um direito real, e assim, exercer influência direta nas questões relacionadas ao solo urbano. A tutela da propriedade é questão primordial que não pode deixar de ser considerada, por se tratar de direito fundamental. Então, toda abordagem que se pretenda fazer sobre direitos que dependem do solo deve levar em conta o direito de propriedade que sobre ele recai. Obviamente, também foi mencionado o princípio da função social da propriedade, pelo fato deste princípio guardar especial relevância em relação ao tema. Foi a partir do princípio da função social da propriedade que se passou a aceitar a relativização do direito fundamental de propriedade, princípio este que há cerca de dois séculos veio fundamentando toda uma ordem jurídica e política por um bom tempo, em relação a outros direitos fundamentais. Viu-se que a necessidade desta nova percepção do direito fundamental de propriedade é justificada pelos problemas humanos existentes no mundo de hoje, relacionados à pobreza e a miséria, resultado da má distribuição de renda, da falta de políticas locais, falta de cooperação internacional, guerras, exploração do trabalho, dentre outros fatores. Exposta a questão da propriedade no Brasil, passou-se a cuidar do direito à moradia dentro da abordagem do Estatuto da Cidade, Lei n.° 10.275 de 10 de julho de 2001. O tema tem por núcleo o direito à moradia urbana e como as normas do Estatuto da Cidade podem atuar na promoção e na efetivação deste direito, levando em conta o princípio da dignidade da pessoa humana na sua efetivação. O Estatuto da Cidade, dentre suas diversas normas, tem por propósito cuidar da política urbana, portanto, de tudo o que compõe o espaço físico da cidade. Um destes componentes é a habitação, em muitos casos exercida de forma irregular, e que se contrapõe, em muitas vezes, à propriedade mal utilizada, sobre a qual tem de incidir o princípio da função social. Por isto, o Estatuto da Cidade contém diversas normas que dizem respeito à regularização fundiária, já que a irregularidade gera problemas gravíssimos ao ambiente urbano como um todo. Levando-se em conta a proposta do que seja moradia adequada apresentada pela Agenda Habitat, o que o Estatuto da Cidade apresenta, além de toda parte relacionada à execução de políticas urbanas que, obviamente, vão influenciar na adequabilidade da moradia, são normas relacionadas a um dos aspectos dos mais relevantes que compõem o conceito de moradia adequada: a segurança da posse. Estas normas apresentam instrumentos destinados à promoção e à proteção da moradia, dentro da perspectiva da posse regular. A irregularidade da posse é um problema presente em inúmeras cidades brasileiras, e possui razões históricas, econômicas, sociais e culturais. Ela dificulta a instalação de equipamentos urbanos, o que contribui para a manutenção da inadequabilidade da moradia exercida naquele solo ocupado irregularmente. Além disso, contribui para a vulnerabilidade dos grupos que habitam as áreas onde a ocupação é irregular, contribuindo para a segregação cultural, econômica, política e social, além da vulnerabilidade física, que pode ser identificada em alguns casos, quando a ocupação é exercida em locais que oferecem risco devido a componentes naturais, como inundações, desabamentos, solo inapropriado, dentre outros. Assim, para o “tratamento” destas áreas caracterizadas pela ocupação irregular, e para a solução de outros diversos problemas relacionados à ocupação do solo para fins de moradia, o Estatuto da Cidade apresenta vários instrumentos que poderão atuar numa diversidade de situações. O Estatuto parece ter dentre suas metas, dirimir os conflitos gerados pelas ocupações irregulares e apresentar soluções jurídicas a situações em que a posse do solo urbano possa vir a ficar, ou já esteja, em risco. Isto proporcionará uma melhoria na qualidade de vida não apenas das pessoas que exercem aquela posse, mas na vida da cidade em geral. A análise destas normas do Estatuto da Cidade direcionadas à promoção e à proteção do direito à moradia, à luz do princípio da dignidade de pessoa humana é necessária e importante, pois fica vazia de sentido qualquer política urbana que não tenha o ser humano como destinatário final de todo o processo. A cidade possui vida própria e nela pessoas vivem. Assim, a aplicação de qualquer instrumento de política urbana que não leve em conta o princípio da dignidade da pessoa humana pode vir a causar danos irreparáveis à vida das pessoas atingidas por este instrumento. Deve-se lembrar que qualquer medida urbanística que afete a moradia deve ser muito bem pensada, pois a moradia não pode ser vista apenas como um abrigo. O é, mas é também a extensão da personalidade da pessoa, faz parte de sua vivência, de sua memória, de sua cultura. Isto também faz remeter à questão da participação democrática da comunidade nas decisões de política urbana, que é de especial forma enfatizada pelo Estatuto da Cidade, e devidamente amparada pela Constituição da República, que prescreve que o poder emana do povo e pode ser exercido diretamente. Os instrumentos do Estatuto da Cidade, bem como da Medida Provisória n.º 2.220 de 2001, estão longe de ser um ideal para a solução dos problemas das cidades brasileiras, em especial das grandes cidades, onde a questão das favelas extravasa o âmbito da titularidade de direitos reais, terminando num problema social gigantesco, pautado pela exclusão e pela violência. Mas é um começo. Ainda que o começo de um caminho que passa pela dificuldade do acesso à justiça, principalmente pelo custo financeiro de processos, provas documentais e periciais, custas de registro, além da enorme carga de trabalho atribuída ao judiciário brasileiro, que faz com que os processos caminhem numa velocidade muito inferior à da mudança da paisagem urbana e das necessidades humanas. Não é, entretanto, motivo de desânimo. O fato de ter se elevado o direito à moradia diretamente à categoria de direito fundamental na Constituição e de terem surgido leis que de certa maneira procuram tutelá-lo, já representa uma mudança de paradigma muito forte tendo em vista que há pouquíssimo tempo atrás a propriedade era praticamente intocável. Também o fato dessas leis incentivarem a participação democrática direta nas questões urbanas é importante para que as pessoas emitam decisões a respeito de suas próprias vidas. Também na posse, ou na propriedade, do local onde vivem, as pessoas encontram sua dignidade. Portanto, a observância do princípio na aplicação do direito que tutela a moradia é essencial. No caso específico do Estatuto da Cidade, além de essencial para a pessoa em particular, a observância do princípio da dignidade humana vai afetar também a vida da cidade como um todo, na intenção de contribuir para a solução da diversidade de problemas que apresenta. Referências ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. ALFONSIN, Betânia de Moraes. Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia: Garantindo a Função Social da Propriedade Pública. In OSÓRIO, Letícia Marques (Org.). Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. ALFONSIN, Jacques Távora. A Função Social da Cidade e da Propriedade Privada Urbana como Propriedade de Funções. 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