UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM QUILOMBO LITERÁRIO Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes quilombolas SALVADOR 2014 ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM QUILOMBO LITERÁRIO Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes quilombolas Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagens – PPGEL/UNEB, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudo de Linguagens, na área de concentração: Leitura, Literatura e Identidade. Orientadora: Prof.ª Drª. Sayonara Amaral Oliveira SALVADOR 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes – CRB: 5/592 Bonfim, Rosilda da Silva Souza Quilombo literário: um olhar sobre a recepção de contos dos cadernos negros por estudantes quilombolas / Rosilda da Silva Souza Bonfim. – Salvador, 2014. 117f. Orientadora: Sayonara Amaral Oliveira. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Colegiado de Letras. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. Campus I. 2014. Contém referências. 1. Negros - Identidade racial - Tijuaçu (BA). 2. Negros na literatura. 3. Negros Educação - Bahia. 4. Quilombos - Bahia. I. Oliveira, Sayonara Amaral. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 305.8968142 TERMO DE APROVAÇÃO ROSILDA DA SILVA SOUZA BONFIM QUILOMBO LITERÁRIO Um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes quilombolas Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, submetido ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus I. Área de concentração: Leitura, Literatura e Identidade. Aprovada em 31 de março de 2014. BANCA EXAMNINADORA Professora Drª. Sayonara Amaral Oliveira (Orientadora) Universidade do Estado da Bahia – UNEB Professora Drª. Maria do Socorro Carvalho Universidade do Estado da Bahia – UNEB Professora Drª. Florentina da Silva Souza Universidade Federal da Bahia - UFBA SALVADOR 2014 AGRADECIMENTOS À Professora Drª Sayonara Amaral Oliveira, pela paciência, compromisso e cuidado na orientação desta pesquisa. E pela generosidade em compartilhar saberes que me permitiram navegar nessa viagem de dois anos por águas seguras. À Professora Drª Maria do Socorro Carvalho, por ter participado do exame de qualificação e contribuído com sugestões precisas e necessárias. Também pelas aulas ministradas no decorrer do curso cujas orientações foram fundamentais para nortear esta pesquisa. À Professora Drª Florentina da Silva Souza, pelas importantes contribuições durante o exame de qualificação e pela ampla produção bibliografia publicada. Tal produção foi imprescindível para alargar os meus conhecimentos sobre as temáticas discutidas nesta dissertação. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL, pelas experiências enriquecedoras proporcionadas no decorrer do curso. Aos colegas do PPGEL, pela solidariedade, companheirismo e pelos momentos de descontração. Em especial, Abdon, Rita de Cássia, Cristina, Edmond, Mariana, Reinaldo. A Camila, Danilo e Geysa, funcionários da secretaria do PPGEL, pela eficiência e delicadeza no atendimento. À direção, professores, funcionários e estudantes do 1º Ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Senhor do Bonfim (CESB) – anexo que funciona em Tijuaçu –, pelo acolhimento e cooperação. À comunidade remanescente de quilombo Tijuaçu, por gentilmente receber e colaborar com os pesquisadores. Ao Quilombhoje, por manter os Cadernos Negros cuja produção literária, além de proporcionar fruição estética, motiva-nos a enfrentar os conflitos etnorraciais brasileiros. À Secretaria de Educação do Estado da Bahia e à Secretaria de Educação do munícipio de Monte Santo, por terem concedido afastamento das minhas atividades laborais, possibilitando dedicação exclusiva a esta pesquisa. À minha família, em especial a minha mãe, Isabel da Silva Souza, pelo carinho e cuidado que me dedica. Ao meu esposo, Maicon de Sá Bonfim, pela importante presença em todos os momentos desta caminhada, inclusive compreendendo as minhas ausências. Aos meus amigos, Valfredo Francisco, Alcidineia, Sarah e Bartira, por me motivarem e colaborarem na realização de mais um sonho. Aos amigos conquistados nos últimos dois anos, Ivo Ferreira, Mil Santos, Hildalia Fernandes e Valdecy Lima, pelas conversas instigantes sobre questões que atravessam esta pesquisa. A Ienata Rios, minha amiga desde os tempos de graduação, pela confecção do abstract. A Deus, por ter permitido que todas essas pessoas supracitadas façam, de algum modo, parte da minha existência. RESUMO Esta dissertação se propõe a refletir sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes do 1º ano do Ensino Médio da comunidade quilombola de Tijuaçu, localizada no munícipio de Senhor do Bonfim – Bahia. Com esse intuito, investiga-se o processo de construção identitária na comunidade em que os sujeitos da pesquisa estão inseridos, bem como a identidade proposta pelos Cadernos Negros. Em seguida, analisam-se os dados obtidos em oficinas pedagógicas de leitura e produção textual. Dentre as teorias que fundamentam esta pesquisa, destacam-se as teorizações sobre identidade desenvolvidas no campo dos Estudos Culturais e a Estética da Recepção, por tratar da relação dialógica que se institui entre literatura e leitor. Considerando que os Cadernos pretendem fomentar uma construção identitária positiva para o leitor afro-brasileiro, a intenção é examinar nas produções textuais dos sujeitos da pesquisa o modo como os horizontes de expectativas entre obra e leitor se cruzam. Palavras-chave: Identidade; quilombo-Tijuaçu; Cadernos Negros; recepção; leitor. ABSTRACT This dissertation intends to reflect on the reception of the Black Notebooks short stories by the students from the 1st year of the high school in the black community of Tijuaçu, located in the city of Senhor do Bonfim – Bahia. With this aim, it is investigated the process of identity construction in the community in which the research‟s students are inserted, as well as identity proposed by Black Notebooks. Then, analyzing the data obtained in teaching reading workshops and textual production. Among the theories that underlie this research, it is detached theories about the identity developed in the field of Cultural Studies and the Esthetics of Reception, once it deals with the dialogical relationship that is established between reader and literature. Considering that the Notebooks aim to encourage a positive identity construction for the Afro-Brazilian reader, the intention is to examine the textual productions of the students involved in the research the way the horizons of expectations between work and reader intersect themselves. Keywords: Identity; black community-Tijuaçu; Black Notebooks; reception; reader. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10 TIJUAÇU: IDENTIDADE NEGRA QUILOMBOLA....................................... 2 2.1 COMO OS HABITANTES DE TIJUAÇU TORNARAM-SE NEGROS ............. 2.2 O LAGARTO RESSURGE FORTALECIDO........................................................ 17 20 31 3 DE CADERNO EM CADERNO SE CONSTRÓI UM QUILOMBO DAS LETRAS.................................................................................................................. 3.1 VOZES QUILOMBOLAS NA LITERATURA...................................................... 3.2 IDENTIDADE NEGRA NA CENA LITERÁRIA BRASILEIRA......................... 3.3 ABRINDO CAMINHOS PARA O LEITOR.......................................................... 41 51 56 62 4 4.1 4.2 4.2 COM A PALAVRA, O LEITOR QUILOMBOLA .......................................... LEITORES SABOTADORES................................................................................ LEITORES EM CONTRADIÇÃO.......................................................................... LEITORES SOLIDÁRIOS...................................................................................... 68 74 83 93 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 103 6 REFERÊNCIAS................................................................................................. 107 APÊNDICE.......................................................................................................... 113 ANEXOS................................................................................................................ 115 10 1 INTRODUÇÃO Os Cadernos Negros (CN) são uma antologia literária, organizada por escritores e escritoras negros e publicada desde 1978. Nos anos pares são coletâneas de poesias e nos ímpares, contos. Conheci e tornei-me leitora dessa antologia em 2007, quando encontrei um exemplar na biblioteca de uma das escolas em que leciono. Esse foi o meu primeiro contato com textos de autores que se autodeclaram negros e produzem textos que abarcam temáticas relevantes para todos os segmentos da sociedade, em especial o afro-brasileiro. Os Cadernos Negros ajudaram-me a preencher lacunas do meu repertório de leituras literárias, que até então era composto de obras que ora passavam ao largo das questões etnorraciais no Brasil ora apresentavam os afro-brasileiros de modo depreciativo. Tal antologia, além de alargar a minha percepção sobre os engenhosos modos de exclusão social os quais o negro está submetido, permitiu-me o contato com representações literárias positivas sobre mim mesma como mulher negra. Isso me levou a indagar sobre a recepção do periódico por outros leitores afrobrasileiros. A partir dessa indagação começa a delinear-se o esboço da pesquisa que ora apresento. Sem perder de vista que a possibilidade de encontro entre obras literárias que tratem das questões etnorraciais no Brasil (sob a perspectiva do escritor negro) e o leitor no contexto escolar é um dos frutos das várias lutas reivindicatórias empreendidas pelos movimentos negros brasileiros. Compreendo os movimentos negros no Brasil como “o conjunto de iniciativa de resistência e de produção cultural e de ação política explícita de combate ao racismo que se manifesta por via de uma multiplicidade de organização em diferentes instâncias de atuação”, conforme a definição do Movimento Negro Unificado (MNU). (MNU apud SOUZA, 2006, p. 14). O trabalho desenvolvido por esses movimentos contribui para a construção de um contexto social de afirmação do segmento negro em todas as dimensões: sociais, culturais, histórias, estéticas e políticas. Essa construção é fundamental para que a literatura negra no Brasil se estabeleça, uma vez que ela alimenta os desejos dos componentes desse segmento e é alimentada por eles. Em 2003, o estado foi levado a sancionar a Lei n. 10.639, tornando obrigatório o estudo da história e culturas afro-brasileiras em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio do território nacional, atualizada pela Lei n. 11.645 de 2008 que acrescenta o estudo das culturas indígenas; ambas alteraram a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), n. 9.394 de 2006. 11 Tais leis deslocam o centro dos estudos históricos pautados no eurocentrismo e contribuem para a reconstrução de um passado no qual as culturas de matrizes africanas e indígenas atuam de modo ativo e positivo na formação cultural do país. Esse novo lugar para essas culturas permite outras percepções do passado, do presente e impulsiona outras conquistas. Contribuindo para a efetivação dessas leis, o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE) em parceria com a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação e Cultura (MEC), tem enviado para as escolas públicas livros e periódicos que tratam dessas temáticas, a exemplo dos Cadernos Negros. A lista de conquistas dos afro-brasileiros é ampla, acrescento às já citadas a implementação de políticas públicas afirmativas, por exemplo, as cotas raciais que contribuem para o acesso desse segmento da sociedade às universidades públicas brasileiras e o Estatuto da igualdade Racial (2010). Assim, atenta ao fluxo de mudanças que ocorrem no país, trazendo como consequência uma reorientação dos modos de ver e de ser negro, e considerando a importância dos Cadernos Negros nesse contexto que se delineia, esta pesquisa que se anuncia como “Quilombo literário, um olhar sobre a recepção de contos dos Cadernos Negros por estudantes quilombolas” investiga o modo como leitores-estudantes “respondem” à construção afirmativa da identidade negra proposta pelos Cadernos. Considerando que um dos principais objetivos dos Cadernos Negros1 é a positivação da identidade etnorracial dos afro-brasileiros, a hipótese levantada foi a de um possível diálogo entre esse objetivo e o processo de construção identitária vivenciada pelos sujeitos da pesquisa, em curso na sua comunidade. O locus de pesquisa é a comunidade quilombola de Tijuaçu, distrito de Senhor do Bonfim2 – Bahia. Esse distrito é formado por 14 comunidades3, sendo que a maior parte do território está inserida no município de Senhor do Bonfim e a menor em Filadélfia e 1 Doravante tratados também com a sigla CN. Cidade localizada no norte do estado da Bahia, na região denominada de Piemonte da Diamantina, cerca de 380 quilômetros distante de Salvador. O munícipio está entre os quinze mais populosos da Bahia, segundo dados do IBGE, 2010. 3 O território quilombola de Tijuaçu compreende as seguintes comunidades: Tijuaçu (vila), Alto Bonito, Olaria, Lajinha, Quebra Facão, Água Branca, Barreira, Conceição, Macaco I e II, Queimada Grande/Capim, Canafista, Patos, Anacleto e Lagoa do Coxo, sendo está última pertencente geograficamente ao território de Tijuaçu, mas habitada por não quilombolas. (NAVARRO, 2012, p. 146) 2 12 Antônio Gonçalves. De acordo com a antropóloga Patrícia Navarro (2012), nessas comunidades residiam 815 famílias remanescentes de quilombo em 2008, conforme o cadastramento realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Nesse aspecto, segundo Navarro, Tijuaçu está entre as comunidades quilombolas mais populosas da Bahia. Por essa comunidade ter sido reconhecida como quilombola há mais de 10 anos, desde fevereiro de 2000, os estudantes pesquisados na atualidade fazem parte de um contexto de construção identitária específico, que pode ser investigado graças à disponibilidade de material bibliográfico publicado: relatórios, documentários, livros, artigos e dissertações. A maior parte desse material é o resultado de trabalhos que foram motivados, a priori, pelo empenho individual de pesquisadores oriundos das cidades localizadas próximas à Tijuaçu. Tais pesquisadores foram movidos pelo desejo de investigar a história oral, os costumes e a cultura dessa comunidade que se distingue das demais na região, por ser predominantemente negra e ter assumido o status de quilombola. Cabe pontuar que os escritores dos CN, assim como os remanescentes de quilombos, não usufruíam de representações positivadas de si e são frequentemente vitimados pelas dificuldades de acesso aos lugares de prestígio no corpo social. Os remanescentes travam batalhas diárias no território em que habitam e reivindicam para si direitos legais tardiamente instituídos, com vistas à aquisição de bens materiais e ao reconhecimento do valor simbólico de suas manifestações culturais. O campo de luta do escritor negro são as páginas literárias e alguns dos seus objetivos se cruzam com os anseios dos quilombolas, posto que ambos almejem construções identitárias positivas e a ascensão do negro na escala social. A escolha pela antologia Cadernos Negros justifica-se também pela sua importância singular na cena literária nacional, tendo em vista as mais de três décadas de sua existência/resistência e o fato de ser um projeto que reúne publicações de escritores afrobrasileiros de todo o país. Em função dessa abrangência, emergem dos textos percepções plurais sobre a diversidade do segmento afro-brasileiro. Como a maioria das narrativas literárias, midiáticas ou historiográficas que circula no Brasil investe na representação de identidades depreciativas para e contra o negro, os CN através de contradiscursos rasuram estas escritas e propõem outras possibilidades de construção da identidade do negro. Considerando que as narrativas orais ou escritas por certo influenciam na construção identitária individual e coletiva dos sujeitos, esse estudo se concentra na recepção dos textos dos Cadernos Negros em sua forma narrativa: o conto. 13 Em seu ensaio escrito na década de 1930, Walter Benjamim (1994) afirma que as narrativas mais bem realizadas são aquelas que se aproximam das histórias orais. Nos seus termos, a natureza da verdadeira narrativa está ligada a uma dimensão utilitária, seja através de um “ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida [...] o narrador é um homem que sabe dar conselhos.” (BENJAMIM 1994, p. 201). Os contistas dos CN acentuam em suas narrativas o papel relevante da tradição oral, enaltecendo a figura do narrador, que, a partir de suas próprias experiências, pode reforçar os laços de pertença de seu grupo e através de incursões em sua memória faz emergir um passado que contribui na construção positiva do desenho identitário do negro. Desse modo, as características da produção dos contistas dos CN aproximam-se do que Benjamim considera relevante nas narrativas orais e, assim, os contos desempenham também uma função pedagógica, com vistas a “alterar as relações tradicionais de representações nas quais a categoria „negro‟ é construída tendo como fundamento os estereótipos depreciativos”, segundo a pesquisadora Florentina Souza (2006, p. 20). Dentre os vários contos publicados pelos CN desde 1979, contando até o momento com 17 volumes, esta pesquisa contempla a recepção dos seguintes contos: “Minha cor” de Raquel Almeida (CN 30), “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem” de Ademiro Alves (CN 32), “As máscaras de Dandara” de Serafina Machado (CN 32), “Cauterização” e “O tapete voador” de Cristiane Sobral (CN 32 e 34), “O anjo” de Débora Garcia (CN 34). A escolha dos contos supracitados foi motivada pelo modo como abordam questões relacionadas ao mito da democracia racial, à desconstrução de estereótipos e a exaltação da beleza negra. É possível perceber nesses contos a intenção de contribuir para o despertar da consciência crítica do leitor no que tange às relações etnorraciais no Brasil, bem como de motivar a valorização de elementos que favorecem o dinâmico processo de construção positiva da identidade negra. Em linhas gerais, esta pesquisa pretende compreender aspectos da construção identitária etnorracial dos estudantes do 1º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Senhor do Bonfim (CESB), que vivem na comunidade quilombola Tijuaçu, a partir das leituras que estes estudantes realizaram das narrativas/contos dos Cadernos Negros. Tendo em vista esse objetivo, após a anuência para a realização da pesquisa de campo por parte do diretor da escola, do líder da comunidade quilombola, da aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e aceitação voluntária dos estudantes para participar da 14 pesquisa, foram realizadas oficinas pedagógicas de leitura e produção textual 4. As oficinas foram executadas no decorrer de quatro encontros, durante os quais os estudantes leram os contos selecionados e emitiram suas opiniões. No último encontro, cada leitor elegeu um conto e escreveu uma carta para o autor ou para um personagem deste. Na execução das oficinas de leitura e produção textual, seguimos o que fora planejado no período em que o projeto de pesquisa foi refeito para apreciação do Comitê de Ética. Em tal planejamento, retomamos os objetivos do projeto e delineamos uma metodologia e cronograma que julgamos pertinentes para colher os dados necessários nesta investigação, os quais são apresentados e analisados nesta dissertação. Para montar o quadro analítico que norteasse a investigação acerca da recepção dos Cadernos Negros pelos estudantes da comunidade de Tijuaçu, foi necessário recorrer a leituras de estudos desenvolvidos por teóricos e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento relacionado às ciências humanas, a saber: história, sociologia, filosofia, psicologia, antropologia, os estudos culturais, a estética da recepção, e estudos literários afro-brasileiros. Desse modo, as reflexões contempladas nessa pesquisa são de caráter multidisciplinar e estão distribuídas no espaço de três seções relativamente autônomas, mas que, no seu conjunto, visam à compreensão da identidade negra vivenciada pelos habitantes da comunidade quilombola de Tijuaçu e o modo como determinados estudantes pertencentes a essa comunidade se representam mediante textos literários que os convocam a identidades negras positivas, os quais são disseminados nos Cadernos Negros. Na primeira seção, intitulada Tijuaçu: identidade negra quilombola, discorro sobre a fundação da comunidade, o seu processo de reconhecimento como quilombola e o redimensionamento no processo de construção identitária local em função desse novo status. Nesse sentido, dentre os trabalhos pesquisadas, destaco o livro da historiadora Carmélia Miranda (2009), Vestígios Recuperados: Experiências da Comunidade Negra Rural de Tijuaçu, pela ampla produção historiográfica que a autora produziu sobre Tijuaçu. Carmélia Miranda, ao cruzar informações retiradas de documentos históricos com os depoimentos dos moradores mais antigos da comunidade, capturou vestígios que ajudaram a recompor a história de Tijuaçu, desde a fundação, passando pelo processo de reconhecimento como quilombola, até às vivências socioculturais praticadas pelos tijuaçuenses na contemporaneidade. 4 Os responsáveis pelos estudantes assinaram o Termo de Livre Consentimento Esclarecido (TCLE), (vide apêndice A) autorizando a participação de cada um nas oficinas e a publicação das informações colhidas, na condição de mantê-los no anonimato. 15 Na segunda seção, De caderno em caderno se constrói um quilombo das letras, começo com a apresentação dos Cadernos Negros e do Quilombhoje Literatura – grupo responsável pelo periódico desde 1983. Em seguida destaco a aproximação entre as estratégias de manutenção dos Cadernos, plasmada na força coletiva do discurso literário, e as estratégias de sobrevivência nos quilombos históricos, sustentada em laços de solidariedade e na força física. Concluo essa seção discorrendo sobre as identidades propostas pelos CN e a produção de textos literários que apresentam ao leitor representações plurais da composição etnorracial brasileira. Para o desenvolvimento dessa seção foram imprescindíveis, dentre outras, as contribuições da pesquisadora Florentina Souza (2005), em seu livro Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU, haja vista a análise que realiza dos Cadernos, contemplando desde o contexto de surgimento, as motivações dos escritores, os objetivos, além da análise do discurso enunciado nas produções literárias (contos e poesias) e demais textos que compõem o periódico. Na última seção, Com a palavra, o leitor, apresento a metodologia utilizada na pesquisa de campo, os instrumentos de coleta de dados, os sujeitos da pesquisa e uma síntese de como ocorreram as oficinas de leitura e produção textual. Por fim, procedo à análise das cartas produzidas pelos estudantes, corpus principal desta investigação. A partir de tais cartas foram criadas categorias analíticas, tomando por base o posicionamento predominante dos estudantes ante a proposta dos contos dos CN. Os dados foram analisados à luz dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção desenvolvidos a partir da década de 1960, tendo como principal expoente Hans Robert Jauss. O teórico propõe a renovação da história da literatura, e, para cumprir tal objetivo, considera que os estudos tradicionais da produção e da representação literária devem ser reavaliados em função da estética da recepção e do efeito. O leitor, que ocupava posições marginais nos estudos literários, é deslocado para o centro, haja vista que os sentidos da obra são concretizados e atualizados no ato da leitura. A recepção contemplada neste estudo centraliza-se na perspectiva cultural. Com esse intuito, analisam-se as considerações emanadas pelo leitor durante as oficinas de leitura e a produção textual, extrapolando, portanto, a dimensão estética. As teses postulados por Jauss (1994) em A história da literatura como provocação à teoria literária foram fundamentais para nortear a análise apresentada nessa seção, principalmente as que tratam do conceito de horizonte de expectativa e dos efeitos da obra literária. O conceito de identidade discutido por Stuart Hall, na perspectiva dos Estudos Culturais, foi imprescindível para iluminar as reflexões desenvolvidas neste estudo. A partir 16 do ensaio “Que „negro‟ é esse na cultura negra”, publicado em Da Diáspora (2011), foi possível fazer algumas inferências sobre a construção identitária em Tijuaçu, a proposta identitária dos Cadernos Negros e a identidade vivenciada pelos sujeitos pesquisados. Reitero que este estudo contempla a recepção de alguns contos dos Cadernos Negros por um grupo de estudantes da comunidade quilombola de Tijuaçu, tendo com eixo central a investigação do processo de construção identitária. Restringe-se, portanto, a textos, grupo e comunidade específicos, o que nos leva às considerações que abarcam apenas o recorte feito do objeto. Assim posto, adentremos as seções, para verificarmos as reflexões decorrentes dessa investigação. 17 02 TIJUAÇU: IDENTIDADE NEGRA QUILOMBOLA Elas iam devagar. Estavam muito cansadas e esgotadas. Já muitas vezes o sol subiu e desceu do céu desde aquele dia, quando fugiram de uma senzala em Salvador. Dia e noite, noite e dia, e elas continuaram marchando atentas a qualquer perigo, fortalecendo-se com raízes, frutas, plantas e qualquer outra coisa, que prestava para ser comida. Cada passo dado por elas, era mais um passo que as distanciava da horrível escravidão. Dias e noites, noites e dias passavam e elas iam adiante, na direção do desconhecido, cada vez mais livres, mas, também, cada vez mais cansadas. Na frente, perto de um morro, apareceu diante de seus olhos um pequeno lago. Mais um dia estava terminando. Uma das três, Maria Rodrigues, parou e aconselhou as duas outras para passarem a noite na beira deste lago... (MACHADO, 2004, p. 21). Libertar-se da escravidão por meio da fuga era o maior feito realizado por negros escravizados e as três mulheres apresentadas no texto da epigrafe acima aventuraram-se. A coragem as levou a embrenharam-se pelas matas e enfrentarem toda sorte de perigos e de necessidades rumo ao desconhecido. O medo de serem recapturadas impulsionou-as a seguirem em frente, irem cada vez mais longe, até sentirem que seus algozes não mais as alcançariam. Em tal narrativa são evidentes os momentos de penúria sofridos durante a fuga, contudo o desejo de se tornarem livres mantinha as três mulheres negras firmes em seu intento. Cada dia vivido por elas era mais um dia de liberdade conquistado, em uma fuga que durou dias, talvez meses, até a chegada ao lago perto do morro na região de Senhor do Bonfim. Pode-se perceber que, além do cansaço, da distância percorrida, a água é um dos elementos determinantes para que o lugar encontrado figurasse como a “terra prometida”, uma vez que representa a possibilidade de sobrevivência e prosperidade. O relato acima, na opinião do povo de Tijuaçu, é o que melhor representa a origem da sua comunidade, segundo a pesquisa de Paulo Machado (2004). Para a maioria dos moradores de Tijuaçu, a fundação da comunidade está relacionada com a resistência à escravidão: três negras escravizadas teriam fugido de Salvador em direção a essa região, todavia apenas uma delas resolveu se instalar, Maria Rodrigues, popularmente chamada de Mariinha Rodrigues. Sobre as outras não se teve mais notícias. A historiadora Carmélia Miranda (2009), em sua pesquisa sobre as experiências históricas dos habitantes locais, recuperadas a partir da historia oral, narrada pelos antigos 18 moradores e de documentação escrita do final do século XVIII e início do século XX, constatou que o povoamento do território de Tijuaçu se deu a partir da presença de negros fugidos, de brancos e índios Cariri5. Quanto à fundação de Tijuaçu, Miranda (2009), em consonância com o relato apresentado por Paulo Machado (2004), acrescenta que a comunidade surgiu na segunda metade do século XIX. Maria Rodrigues, a fundadora, teria se casado e constituído família com um negro da família congo que habitava o Cariacá 6. Os filhos do casal teriam ocupado estrategicamente as terras ao redor, de modo a ampliar o perímetro do território da família. Numa outra versão, Maria Rodrigues teria fugido das minas de ouro em Jacobina e se refugiado em Tijuaçu. Essa é a possibilidade mais provável, de acordo com as informações contidas no Relatório Técnico Território Quilombola de Tijuaçu,7 escrito pela antropóloga Patrícia Navarro (2012). Em todas as versões, a fundação de Tijuaçu é atribuída a esta mulher, seja fugida de Salvador ou de Jacobina. A saga da matriarca fundadora ajuda a produzir uma imagem positiva do negro: Mariinha Rodrigues é aquela que não se rendeu aos grilhões da escravidão e conquistou a sua liberdade; a heroína que conseguiu vencer todas as adversidades e prosperou. Essa imagem contrasta com a que foi propalada por certa historiografia oficial, que atribuía ao negro fugitivo toda sorte de adjetivos depreciativos. Os habitantes de Tijuaçu pertencem a um território que já na sua gênese representa um locus de liberdade. Nesse território, os seus antepassados conseguiram, apesar das dificuldades impostas, forjar modos de sobrevivência pautados em laços de solidariedade que ajudaram a fomentar o sentimento de pertença ao grupo e à terra. Essa consciência de ter vencido as agruras do sistema escravocrata tem como corolário a elevação da autoestima dos atuais tijuaçuenses. Paulo Machado (2004, p. 22) afirma que o povo negro de Tijuaçu costuma dizer com muito orgulho: “nós nunca fomos escravos”. Até a segunda metade do século XX, Tijuaçu, hoje sede do distrito formado por vários povoados em seu entorno, era conhecido por fazenda Lagarto – topônimo adotado em função da grande quantidade desse animal existente na fauna local. Em depoimento ao filme 5 Segundo o historiador Francisco Adegildo Férrer (2007), Cariri foi uma maneira de nomear os povos indígenas que habitavam as áreas interioranas do Nordeste. É, assim, um apelido dado a esses índios, já que não sabemos como eles próprios se chamavam. A maior parte dos Cariris foi exterminada no movimento de resistência à conquista “branca” entre 1694 a 1702. 6 Povoado de Senhor do Bonfim, certificado em 2004 como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares, órgão governamental vinculado ao Ministério da Cultura. 7 Esse documento, escrito entre os anos de 2007 e 2008, compõe o Relatório de Identificação e Delimitação (RTID) sob responsabilidade do Instituto de Colonização e Reforma Agrária da Bahia (INCRA). 19 documentário Quilombos da Bahia8 (2004), dirigido por Antonio Olavo, o morador de Tijuaçu, Domingos da Silva, na época com 79 anos, narra o porquê de a comunidade ter esse nome: Tijuaçu que era uma caça que chamam teiú e aí botaram o nome de Tijuaçu, né? Botaram esse nome, e lagarto era um bicho que é o mesmo teiú que gosta de comer lagarta. Aí inventaram esse nome aqui, ai ficou e ainda hoje tá Tijuaçu, era Lagarto, aí depois passou a Tijuaçu. (OLAVO, 2004, 32: 50 min). Os habitantes de Tijuaçu se consideram descendentes de nagôs. 9 Carmélia Miranda (2009) constatou que além da fusão entre nagôs e congos, os índios Cariris que habitavam a região da Missão do Shaí, vila fundada por padres franciscanos para o aldeamento indígena no final século XVII (hoje distrito de Senhor do Bonfim), também contraíram casamento com os descendentes de Mariinha Rodrigues. De acordo com Patrícia Navarro: As denominações Congo e Nagô para designar famílias dos troncos antigos de Tijuaçu, teriam sido designações mais genéricas que permaneceram na memória social e que, atualmente, lhes serve como fator identitário, contribuindo para a etnicidade do grupo. (NAVARRO, 2012, p. 133). Tijuaçu, assim como outras comunidades negras rurais da Bahia visitadas pela equipe do filme Quilombos da Bahia (2004), apresentam algumas características em comum: desconheciam ou desconhecem o termo quilombo, vivenciam a agricultura de subsistência, a população é formada por laços de parentesco, declaram-se de origem nagô e mantém forte ligação com a música e com a dança. 8 No período de 90 dias, a equipe do filme percorreu 12.000 km e visitou 69 comunidades negras das centenas existentes na Bahia. As comunidades visitadas estão distribuídas nos seguintes municípios: São Félix, Cachoeira, Nilo Peçanha, Planalto, Rio de Contas, Souto Soares, Seabra, América Dourada, Senhor do Bonfim, Campo Formoso, Juazeiro, Curaçá, Casa Nova, Pilão Arcado, Wanderley, Muquém do São Francisco, Sítio do Mato, Bom Jesus da Lapa e Malhada. (OLAVO, 2004). 9 Nagô é o nome genérico de todos os grupos originários do Sul e Centro do Daomé e do Sudoeste da Nigéria, portadores de uma tradição rica, derivada das culturas particulares dos diferentes reinos africanos de onde provieram. Os nagôs foram os últimos grupos africanos a se estabelecerem no Brasil. (SODRÉ, 1988, p. 119). 20 2.1 COMO OS HABITANTES DE TIJUAÇU TORNARAM-SE NEGROS Reza a lenda que quando alguém se perde na mata, é porque foi encantado pela caipora – ser mítico, protetor dos animais das florestas10. Os caçadores, ao abaterem animais além das suas necessidades, tornam-se os alvos preferidos. No entanto, qualquer transeunte pode ficar desorientado e andar em círculos até o encantamento ser quebrado. Para evitar esse infortúnio ou para resolvê-lo é necessário que um pedaço de fumo de corda, oferenda muito apreciada por esse ser, seja colocado no tronco de uma árvore. A lenda da caipora é muito comum em comunidades rurais do Brasil. Em Tijuaçu, os moradores contam que a caipora começou a sumir das matas da região a partir da década de 1930. De acordo com Navarro (2012), esse período foi marcado por uma grande seca. Muitos moradores de Tijuaçu foram obrigados a deixar suas terras e migrarem para o sul da Bahia. Em função disso, efetuaram negociações com grandes desvantagens para si, e boa parte de suas terras foi incorporada ao patrimônio de grandes fazendeiros, que logo empreenderam o desmatamento da caatinga. As narrativas da caipora revelam um contexto em que a caatinga, mesmo em longos períodos de estiagem, representa uma possibilidade de conseguir algum alimento através da caça e do extrativismo. Nesse novo cenário, em que a mata foi quase totalmente substituída pelo pasto, o sumiço da caipora metaforiza o agravamento nas condições já precárias de sobrevivência dos tijuaçuenses. Para amenizar as dificuldades enfrentadas pelos moradores de Tijuaçu, no final dos anos noventa, quando o artigo 68 da Constituição Federal de 1988, que trata dos direitos das comunidades quilombolas foi implantado, lideranças locais entraram em contato com a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacional de Terras da Bahia (INTERBA), para solicitar a cada órgão, respectivamente, o título de comunidade remanescente de quilombo e a resolução de questões referentes às terras. O reconhecimento aconteceu em 2000, mas o processo de regularização fundiária ainda está em andamento. De acordo com a bibliografia pesquisada, os moradores mais velhos de Tijuaçu não conheciam o termo quilombo. A nossa hipótese quanto a esse desconhecimento, é que em função do sentido negativo com que ficou enraizado no imaginário brasileiro, o termo 10 De Cáa, mato, e porá habitante, morador. Em qualquer direção pelo interior da Bahia, o Caapora-Caipora é um pequeno indígena, escuro, ágil, nu ou usando uma tanga, fumando cachimbo, doido pela cachaça e pelo fumo, reinando sobre todos os animais. (CASCUDO, 1972, p. 167). 21 quilombo tenha sido consciente ou inconscientemente escamoteado e por isso não faça parte do cotidiano desses moradores. Nesse sentido, para os habitantes das comunidades negras, identificar-se como quilombola seria associar a sua imagem aos estigmas: desordeiro, indolente e bandido; são apenas algumas das denominações inventadas pelos senhores de escravo, no período colonial e disseminados pelo Estado brasileiro, para desqualificar os atos heroicos de negros que resistiram ao sistema escravocrata, usando como subterfúgio a construção dos quilombos históricos. Segundo os antropólogos Kabengele Munanga e Nilma Gomes (2006, p. 61), “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada” foi a primeira definição do termo quilombo cunhado aqui no Brasil, no século XVIII. Tal conceito amplamente divulgado esmaeceu o seu significado primeiro: “Kilombo [...] instituição sociopolítica militar conhecida na África Central, mais especificamente na área formada pela atual República do Congo (antigo Zaire) e Angola”. (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 61). Esta foi mais uma das estratégias utilizadas para tentar manter o negro subjugado: esmaecer uma referência positiva e impor outra que atendesse aos interesses dos dominadores. A historiadora Kátia Mattoso, em seus estudos sobre os negros escravizados no Brasil, afirma que os quilombos surgiram: “da própria instabilidade do regime escravocrata, do trabalho organizado sem qualquer fantasia, da severidade rígida, das injustiças e maltratos”. (MATTOSO, 2003, p. 158). No período escravocrata, a formação de quilombos representava uma das principais táticas de resistência à escravidão com o intuito de resgatar a liberdade e a dignidade do negro. Além dos embates contra as elites dirigentes da época, foi necessário construir e manter uma nova ordem social clandestina, às margens da sociedade colonial, constituindo-se em um fenômeno de resistência cultural. O historiador Clóvis Moura (1987, p. 37) explica que os quilombos tanto desgastavam a estrutura escravocrata, ao atuar nas margens do sistema, como provocavam mudanças em seu centro, pois atingiam “em diversos níveis as forças produtivas do escravismo” e, concomitantemente, criaram “uma sociedade alternativa” apresentando “a possibilidade de uma organização formada por homens livres”. A definição reducionista do termo quilombo difundida no Brasil como reduto de escravos fugidos ajudou a encobrir as lutas não registradas por certa historiografia oficial de oposição ao sistema escravocrata. Ademais, serviu às elites dirigentes como um elemento desqualificador da nova estrutura social construída pelos quilombolas. 22 Munanga e Gomes resgatam o termo quilombo e atribuem-lhe uma carga semântica positiva, invisibilizada por séculos: Tratava-se de uma reunião fraterna e livre, com laços de solidariedade e convivência resultante do esforço dos negros escravizados de resgatar sua liberdade e dignidade por meio da fuga do cativeiro e da organização de uma sociedade livre. (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 62). O termo quilombo foi esquecido pela legislação brasileira pós-abolição e retomado apenas em 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, cem anos após a assinatura da Lei Áurea. Foi retomado e ressemantizado, deslocado da conceituação que o colocava na contramão da legalidade para uma definição que converge para o início da reparação dos muitos danos sofridos pelos negros “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. (BRASIL, 1988). Apesar do avanço, a ressignificação desse termo pela Constituição de 1988 não viabilizou o acesso aos direitos instituídos, posto que não define quais são as características de uma comunidade remanescente de quilombo, o que resultou em entraves para a efetivação do artigo 68, que não dá conta de englobar, por exemplo, os agrupamentos de gerações negras que foram constituídas pós-abolição e que não se enquadram no binômio fuga-resistência. Assim, passa ao largo das múltiplas e variadas características existentes nas comunidades negras rurais com os seus diferentes processos de territorialização. Para ajudar a esclarecer o significado de comunidade remanescente de quilombo e preencher os vazios deixados pelo artigo 68 da Constituição, de modo a atenuar as divergências quanto às características que definem os territórios quilombolas, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) elaborou em 2004 um parecer. Neste, fica claro que não apenas as comunidades oriundas de quilombos históricos podem ser reconhecidas como remanescentes, mas também “grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio”. (O´DWYER, 1995, p. 18). O decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, endossa o parecer da ABA e amplia o conceito: Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (BRASIL, 2003). 23 Em síntese, o termo quilombo, originário da África Central no período anterior a diáspora negra, sofreu, ao longo do processo histórico, transformações decorrentes do próprio dinamismo cultural e absorveu diferentes cargas semânticas atribuídas pelas elites dominantes. Na história recente, o termo foi retomado positivamente pelo Estado brasileiro para denominar comunidades negras rurais em todo o país. Na contemporaneidade, o termo quilombo, segundo Gloria Moura (1999), nomeia comunidades negras rurais que, em linhas gerais, agregam as seguintes características: são constituídas por laços de parentesco, os habitantes vivem em sua maioria de culturas de subsistência, possuem uma história comum, valorizam as tradições culturais dos antepassados e têm normas de pertencimento explícitas, com consciência de identidade étnica. Tendo em vista que os conceitos “quilombos contemporâneos” e “comunidades remanescentes de quilombos” são contíguos e complementares, eles são tratados aqui como sinônimos, no que se refere à Tijuaçu. Ambos os termos, contemplam as características dessa comunidade, tendo em vista a sua origem, história, tradições, costumes e os modos de ocupação da terra. De acordo com a historiografia pesquisada, o território da comunidade negra de Tijuaçu não foi um quilombo histórico. Embora a comunidade tenha sido fundada por uma negra fugida do cativeiro, não há registros orais ou escritos de que os habitantes tenham se confrontado com as forças que mantinham o sistema escravocrata. Assim, o termo quilombo, seja na acepção negativa ou positiva, não fazia parte do cotidiano dos moradores tijuaçuenses mais antigos. Todavia, a partir do trabalho de conscientização realizado pela Fundação Cultual Palmares (FCP), por representantes do Movimento Negro Unificado (MNU) e pelas lideranças locais, os moradores de Tijuaçu compreenderam que a sua comunidade é remanescente de quilombo, de acordo com a acepção contemporânea. Entenderam também que reivindicar esse título é o primeiro passo para a conquista de direitos legais tardiamente instituídos. Em função disso, a nominação foi assumida e passou a funcionar como um baluarte para redefinir as suas identidades. Os tijuaçuenses mantinham os seus costumes e tradições resultantes da influência das culturas africanas, no entanto, eram reprimidos pelo peso dos estigmas atribuídos a tais culturas. Embora se orgulhassem da herança de uma escrava guerreira e vitoriosa, conforme o relato de fundação da comunidade, eles tinham de lidar com a tensão psicológica gerada 24 pelo conflito de apreciar e praticar uma cultura que era desqualificada pelo outro – aqueles que não são da comunidade. No período anterior ao reconhecimento, os tijuaçuenses “Tinham uma auto-estima baixa, consideravam-se inferiores e fugiam de tal situação isolando-se pelos diferentes povoados e roças de Tijuaçu”. (MIRANDA, 2009, p. 60). E muitos moradores das demais localidades que fazem parte do município de Senhor do Bonfim, incluindo os da sede, também se referiam a eles de modo pejorativo . Esse comportamento concorria para aprisioná-los em conceituações depreciativas. A consequência imediata foi a interferência negativa na construção da identidade negra do grupo. Tornar-se quilombola, na acepção positiva, foi fundamental para elevar a autoestima dos habitantes de Tijuaçu e contribuiu também para coesão do grupo, haja vista a necessidade de unirem-se para reivindicar direitos. Em consequência, aceitar-se quilombola, inevitavelmente, colocou o grupo frente à outra questão: assumir-se negro. Conforme os estudos de Carmélia Miranda, antes do reconhecimento, os moradores de Tijuaçu, embora cultivassem suas manifestações culturais de matriz africana e preservassem sua história, envergonhavam-se de ser negros: Mesmo tendo a pele escura, costumes e tradições afros, os habitantes de Tijuaçu não se identificavam como afro-brasileiros; viviam imitando a cultura do branco. Eles definiam-se como: moreno, escurinho, moreninho ou outras denominações, mas nunca como negros. (MIRANDA, 2009, p. 60). A historiadora identificou uma realidade que não se restringe apenas aos habitantes de comunidades em que a predominância é de negros. No Brasil, ainda é comum o não se aceitar negro e imitar uma imaginada cultura do branco, em função do preconceito racial sofrido historicamente pela raça negra e da não valorização da sua cultura. De acordo com Munanga, em pesquisa de Clóvis Moura, realizada após o censo de 1980, com depoimentos de não brancos sobre a cor da pele, constam referências a 136 cores11. Para Munanga (1999, p. 120), “este total de cores demonstra como o brasileiro foge de sua realidade étnica, de sua identidade, procurando, mediante simbolismo de fuga, situarse o mais próximo possível do modelo tido como superior, isto é branco”. O resultado da pesquisa de Clóvis Moura, analisado por Munanga, e o comportamento dos moradores de 11 Desde 1950, para o quesito cor ou raça, o IBGE utiliza as seguintes categorias: branco, preto, pardo e amarelo, a indígena foi incluída em 1991. Porém, para a análise dos dados, o IBGE agrupa as categorias pretas e pardas, em apenas uma: negro, tendo como elemento motivador para tal agrupamento, o aspecto socioeconômico. Disponível em: www ge gov r o e estat st ca populacao notas tecn cas p . Acesso em: 20/05/2013 25 Tijuaçu, mostra o quanto os brasileiros ainda são influenciados pela ideologia do branqueamento. Tal ideologia nos remete aos discursos “científicos” que circulavam na Europa durante o século XIX e início do século XX, os quais proclamavam a inferioridade do negro e a degenerescência causada pela mistura de raças. Diante desses discursos, a elite brasileira, cujo pensamento era moldado pelas ideias eurocêntricas, deparou-se com um impasse: como construir uma nação que já na sua gênese está fadada à inferioridade, uma vez que a presença de negros, índios e mestiços era muito maior que a de brancos, e a mestiçagem parecia algo inevitável? Para resolver essa questão, a elite dirigente, estrategicamente, tratou de acolher apenas os discursos que foram readequados ao contexto nacional. Nesse sentido, embora de modo ambivalente, a mestiçagem foi validada e motivada, tendo em vista que seria o estágio intermediário para branquear o povo brasileiro em alguns poucos séculos, uma vez que a raça tida como superior iria prevalecer, ideia defendida principalmente pelo historiador Silvio Romero12. Em suma, a mestiçagem evitava a “ameaça racial” e iniciava o processo de “liquidação da raça negra”. (MUNANGA, 1999, p. 93). Embora as classes dirigentes tenham se empenhado para que o embranquecimento da nação se concretizasse, trazendo levas de imigrantes europeus e marginalizando o negro, as previsões fracassaram. Todavia, o status de superioridade do branco e de sua cultura autoatríbuidos reverbera na atualidade. Do mesmo modo, as construções depreciativas criadas para o negro ainda têm grande força alienante na formação do imaginário brasileiro. Em contrapartida, as classes consideradas subalternas resistem ao processo de marginalização social e investem na positivação dos elementos simbólicos que referendam os seus grupos. Dentro desse contexto, ser negra ou negro, no Brasil, conforme nos explica Neusa Souza, é ainda uma questão de tornar-se, de “vir a ser”: Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelidas a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. (SOUZA, 1983, p. 18). Para Munanga (1999), a política e ideologia do branqueamento provocaram uma pressão psicológica nos negros escravizados e nos seus descendentes que foram obrigados a 12 Para Silvio Romero, o brasileiro é uma sub-raça mestiça e crioula, nascida da fusão de duas raças inferiores, o índio e o negro, e uma superior, a branca ou ariana. Para evitar a degeneração da nova raça mestiça, será preciso estimular seu embranquecimento, promovendo a imigração europeia. (ROMERO apud CHAUÍ, 2000, p. 49) 26 alienaram a sua identidade transformando-se, cultural e fisicamente em brancos. Essa alienação reforça a assertiva de Neusa Souza quanto a difícil tarefa de tornar-se negro. Imitar a cultura do branco, negar a cor e se autoinferiorizar é um comportamento que, segundo a antropóloga Leila Gonzalez (1988, p. 73), tem como fundamento a exclusão e o repúdio aos elementos que não fazem parte do cânone branco, com vistas à inclusão em uma sociedade que atribui valores positivos somente àqueles da imaginada cultura europeia. Tal comportamento perpetua-se através da sua vinculação aos “meios de comunicação de massa” e aos “aparelhos ideológicos tradicionais”. A autora acrescenta ainda as consequências de se propalar valores de um determinado grupo, neste caso, o branco, como únicos e verdadeiros: Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer [...] é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura. (GONZALEZ, 1988, p. 73). Ainda enredados pelos discursos que negativavam tudo que estava relacionado ao negro, os habitantes de Tijuaçu depararam-se, a partir do processo de reconhecimento como comunidade quilombola, com a impossibilidade de continuar negando a sua cor e esconder suas práticas culturais, uma vez que assumi-las é essencial para a consolidação do processo. Frente a essa nova situação, é possível que os tijuaçuenses tenham se deparado com o seguinte dilema: como assumir e valorizar elementos etnorraciais autorrejeitados, uma vez que é em função deles que sofrem preconceito e discriminação racial? Para tentarmos entender essa questão complexa, retornemos ao período colonial. O psiquiatra martiniquenho Frantz Fanon (2008), objetivando ajudar o negro a libertar sua mente de uma gama de complexos germinados no âmago do contexto colonial, escreveu Pele negra, máscaras brancas, publicado pela primeira vez em 1952. Nessa obra, Fanon analisou as interrelações entre os negros antilhanos da Martinica e os franceses, seus colonizadores, bem como comportamento de ambos frente ao aparato politico/ideológico criado para produzir efeitos de dominação. A narrativa que se segue apresenta uma situação conflituosa que atravessou as fronteiras do tempo-espaço, haja vista os conflitos similares que ainda ocorrem na contemporaneidade, nos mais diversos contextos: Meu corpo era devolvido desancado, desconjurado, demolido, todo enlutado, naquele dia branco de inverno. O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe um preto! Faz frio, o preto treme, o preto treme porque sente frio, um frio que morde os ossos, o menino bonito treme porque pensa que o preto treme de raiva, o menino 27 branco se joga nos braços da mãe: mamãe o preto vai me comer! (FANON, 2008, p. 107). No ápice do trauma psicológico, o narrador-personagem apresenta uma síntese e o resultado de uma gama de estereótipos raciais inventados para e contra o negro no período colonial. O comportamento da criança branca revela o inconsciente coletivo do contexto no qual está inserida, construído a partir de mitos e preconceitos sobre o negro – “O inconsciente coletivo é cultural, ou seja, adquirido”. (FANON, 2008, p. 160). A identidade negra tanto no período colonial como posteriormente foi moldada pelo discurso das elites dirigentes europeias que introjetou na autorrepresentação do negro estereótipos depreciativos, provocando um mal estar contínuo que transcendeu tal período e nos chega ainda hoje. Tanto com relação aos negros em situação de deslocamento no contexto da diáspora africana, quanto os que foram explorados em seus países, as suas identidades foram propositalmente desqualificadas, uma vez que essa violência psicológica, coadunada com a física, funcionava para subjugá-los e explorá-los com maior eficácia. Os negros submetidos à diáspora, em condições adversas, foram obrigados a construírem outras identidades – resultantes do diálogo com os seus consortes negros de grupos étnicos africanos variados e de seus “proprietários”, no sistema da escravidão. Em um contexto de mutilação física, cultural, moral e psíquica, os escravizados foram obrigados a reelaborar os seus costumes e os modos de sobrevivência, ainda assim, conseguiram manter traços de suas tradições e de suas culturas. Mesmo no período pós-abolição, em que o negro é fisicamente livre, contudo ainda em processo de libertação das conceituações depreciativas que lhes foram atribuídas, construir identidades que de fato o favoreça constitui-se um desafio. Sobre a recuperação da identidade negra, Munanga tem a seguinte visão: Começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude 13 antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade. (MUNANGA, 2009, p. 19). A pesquisadora Lindinalva Barbosa, em consonância com as reflexões feitas por Munanga, discorre sobre a construção da identidade negra: 13 Termo criado em 1930 por Aimé Césarie a principio baseado na questão fenotípica e com o objetivo de glorificar os valores do negro, é ressignificado e atualizado por Munanga que dentre outras definições que atribuí ao termo, destaco: “a negritude torna-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para que se engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas”. (MUNANGA, 2009, p. 20, grifo do autor). 28 [...] um dos principais signos de reconhecimento e consciência racial é a assunção de uma identidade negra. Essa assunção passa, sobretudo, pela apropriação ou reapropriação de características fenotípicas e culturais que reconfiguram estéticas, gestuais e linguagem cada vez mais vinculadas ao universo africano e afro-diaspórico. (BARBOSA, 2009, p. 47, grifos da autora). É fato que a tese sobre raça14 no sentido biológico foi superada, uma vez que a ciência comprovou que não existem diferenças genéticas o suficiente para distinguir raças humanas. Na sociedade brasileira, contudo, as características fenotípicas (cor da pele, cabelo, traços do rosto) funcionam como diferenciadores raciais nas interrelações entre negros e não negros e em função destas ocorrem preconceito e discriminação. Conforme observa Stuart Hall, “„Raça‟ é um construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo”. (HALL, 2011, p. 66). Nesse sentido, na medida em que os negros positivam sua identidade etnorracial, exaltam os seus traços físicos distintivos e rejeitam o embranquecimento social (assimilação dos valores culturais e imitação do comportamento do branco) através da aceitação e valorização dos traços que distinguem as suas culturas das demais. Aqui, o termo identidade negra é compreendido como sinônimo de identidade etnorracial, posto que este abranja aspectos subjetivos, fenotípicos, históricos, políticos, ideológicos, sociais e culturais. Para Munanga (2009, p. 108), “a identidade é um processo sempre negociado e renegociado, de acordo com os critérios ideológicos-políticos e as relações de poder”. Assim, na medida em que um determinado grupo não tem acesso às benesses do Estado, ou é representado de forma negativa, o fortalecimento da identidade coletiva funciona como plataforma politicamente mobilizadora com vistas a angariar conquistas no corpo social. No contexto contemporâneo brasileiro, é no embate de forças simbólicas entre as elites dirigentes e os grupos socialmente desprestigiados que as construções identitárias são constantemente redefinidas. Ao refletir sobre as identidades africanas, o filosofo ganês Kwame Appiah (1997), na obra Na casa de meu pai, afirma que toda identidade humana é construída e histórica e que uma gama de invenções produz para as identidades a carga simbólica necessária para sua existência. Em suas palavras: Todo o mundo tem seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de “mitos”, a religião de “heresia”, e a ciência de 14 Sobre a polémica em torno do termo, ver estudos de Nilma Gomes (2005), Antonio Sérgio Guimarães (2005), entre outros. 29 “magia”. Histórias inventadas, biologias inventadas, e afinidades culturais inventadas vêm junto com toda identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem que ser roteirizado, estruturado por convenções de narrativa a que o mundo jamais consegue conformar-se realmente. (APPIAH, 1997, p. 243). O processo de construção da identidade negra, assim como de qualquer outra identidade, constrói-se e reconstrói-se continuadamente de acordo com o contexto sociohistórico, cultural e político de cada grupo e contempla as suas necessidades de inclusão e valoração positiva. A noção de identidade é aqui desvinculada de qualquer ideia de essencialização, fixação ou imutabilidade. Quanto à questão da essência, Michel Foucault, em sua leitura de Nietzsche sobre a genealogia e a história, ensaio publicado na obra Microfísica do poder, adverte: [...] atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras lhes eram estranhas. (FOUCAULT, 2012, p. 58). Os tijuaçuenses, assim como outros negros afro-diaspóricos ou os que foram escravizados em suas próprias terras, a exemplo dos antilhanos da Martinica, estiveram ou ainda estão capturados pela ideologia da superioridade do branco e vitimados pelos estereótipos atribuídos ao negro. A negatividade da cor, por exemplo, encontrou no Brasil terreno fecundo para reprodução e proliferação, haja vista o desejo da elite brasileira colonial e pós-colonial15 de parecer-se com a europeia e manter o negro refém de uma suposta inferioridade. Concernente às cargas semânticas das cores branca e negra, enraizadas no imaginário ocidental, lê-se: O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém; e do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca. (FANON, 2008, p. 160). Em Tijuaçu, a partir do final da década de 1990, o processo de construção da identidade etnorracial, que esteve por muito tempo aprisionado na negação, começou a romper as barreiras do preconceito e da discriminação racial e aos poucos foi surgindo com vigor. De modo que a construção e o fortalecimento dessa identidade coletiva atrelada também ao sentimento de pertença ao grupo e à terra, contribuem para mobilizar politicamente os tijuaçuenses na luta em curso por conquistas. 15 Nesse estudo, o termo pós-colonial é utilizado no sentido histórico, diferente do conceito usado contemporaneamente. 30 Por conseguinte, após o reconhecimento como comunidade quilombola, os habitantes de Tijuaçu passaram a apresentar indícios de afirmação de sua identidade etnorracial e aos poucos obtêm como retorno a valoração e o respeito do outro, de modo a reconstruírem a sua autoestima e reafirmarem positivamente os traços de sua etnorracialidade. Com efeito, uma reescrita da história passa a ser tecida, agora na esteira da positivação de seus valores culturais que, de acordo com Carmélia Miranda, aconteceu da seguinte forma: Primeiro por uma fase de descoberta e, posteriormente, pelo conhecimento da cultura dos seus antepassados. Em seguida, descobriram um estágio de conscientização e valorização dessa cultura. No último período, conheceram sua história e de seus antepassados e passaram a valorizar suas manifestações culturais, suas relações de trabalho, sua religiosidade e seus traços físicos. (MIRANDA, 2009, p. 65). A historiadora sintetiza o percurso de assunção da identidade negra quilombola em Tijuaçu. Acrescenta ainda que os moradores locais não sentem mais medo do preconceito e do racismo que de alguma forma ainda sofrem. É provável, no entanto, que os estágios citados por Miranda não sejam suficientes para positivar a identidade quilombola em Tijuaçu, tendo em vista as cicatrizes psicológicas causadas pela desqualificação dos elementos religiosos, estéticos e culturais relacionados ao negro. As representações negativas do negro, de forma geral, ainda são notórias na contemporaneidade, continuam municiando o imaginário nacional, seja por meio da produção literária, da invisibilidade ou visibilidade estereotipada nos livros didáticos, nas letras de música, filmes, telenovelas e propagandas. Trata-se de discursos com grande potencial de influência na formação da identidade individual e coletiva de cada cidadão e que de modo sistemático cerceiam o modo de representação afirmativa da identidade negra. Assim, o fato de os tijuaçuenses estarem se empenhando no resgate e valorização das suas referências simbólicas, pressupõe que passos no caminho para a afirmação da identidade etnorracial foram trilhados. De acordo com Stuart Hall (2011, p. 328) “Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes”. O processo de construção ou de positivação de identidades, portanto, nunca é definitivo. Ainda, segundo o autor “Essa é a questão mais difícil da proliferação no campo das identidades e antagonismos: elas frequentemente se deslocam entre si”. (HALL, 2011, p. 328). 31 No processo em curso de construção da identidade negra em Tijuaçu, alguns elementos são preservados ou modificados e outros foram acolhidos, por exemplo, a nominação quilombola, reformulações que atendem as demandas do contexto. Tornar-se quilombola ajudou, portanto, no processo de redimensionamento da percepção quanto ao valor dos elementos que compõem etnorracialidade do grupo. Não se pode desconsiderar também a ambiguidade da identidade coletiva dos habitantes de Tijuaçu, haja vista que é construída no limiar entre a negação e aceitação das influências das culturas africanas, conforme veremos a seguir. 2.2 O LAGARTO RESSURGE FORTALECIDO No final dos anos noventa, com o apoio da Fundação Cultural Palmares (FCP) e do Movimento Negro Unificado (MNU), as lideranças locais de Tijuaçu, juntamente com os moradores da comunidade, começaram a se mobilizar com a intenção de reivindicar para si o título de comunidade remanescente de quilombo e a partir de então lutar pelos direitos legais previstos para tais comunidades. De acordo com o relatório de Patrícia Navarro, No ano de 1998, foram feitos contatos de lideranças da comunidade com órgãos do governo no intuito de tratar sobre a questão das terras da comunidade de Tijuaçu. Esse primeiro contato deu-se através do Interba (Instituto de Terras da Bahia) e da Fundação Palmares (do Ministério da Cultura), órgãos que na ocasião estavam firmando convênio para trabalharem com o reconhecimento e a titulação das terras das comunidades quilombolas na Bahia. (NAVARRO, 2012, p. 98). Em 28 de fevereiro de 2000, o distrito de Tijuaçu foi reconhecido como remanescente de quilombo, conforme publicação no Diário Oficial da União (DOU). O reconhecimento aconteceu logo após a conclusão do laudo antropológico, sob responsabilidade da Fundação Cultural Palmares e do Instituto de Terras da Bahia, que descreveu etnograficamente a comunidade. A certificação ocorreu em 12 de julho de 2005 de acordo com o DOU, adequando-se às exigências do decreto nº 4.887 de 2003, sendo o território identificado e delimitado em 2010 pelo INCRA 16 cuja documentação foi publicada nos diários oficiais da União e do Estado, entre os dias 1º e 5º de Julho 2010. 16 O processo de regularização das terras quilombolas iniciou-se em 1995 sob responsabilidade do INCRA. Em 2001, com o decreto 3.912, a responsabilidade foi atribuída à FCP e em 2003, com o decreto 4.887, o INCRA assume novamente o processo de regularização. (INCRA, 2012, p. 9). 32 A certificação é a etapa em que os habitantes da comunidade negra, em comum acordo, declaram-se remanescentes de quilombo e solicitam a emissão da certidão de autodefinição junto à FCP com vistas à inclusão no cadastro geral das comunidades quilombolas. Esse procedimento entrou em vigor em 2004 e passou a ser a primeira etapa do processo. A abertura do processo de identificação e delimitação do território só acontece após a inclusão da comunidade nesse cadastro. Vale ressaltar que a certificação ainda não existia quando a comunidade negra de Tijuaçu foi reconhecida como quilombola, por isso, essa etapa foi realizada posteriormente. Após a identificação e delimitação das terras habitadas e cultivadas secularmente pelos quilombolas, o processo de regularização fundiária segue o seu percurso, contudo, no caso de terras quilombolas com o status fundiário de terras particulares, o trajeto é praticamente paralisado. Esse é o status das terras em Tijuaçu, cujo perímetro territorial já foi reconhecido como quilombola, no entanto, até o corrente ano, continuam de posse dos grandes fazendeiros. Para que o processo de regularização fundiária17 em Tijuaçu seja concluído, as seguintes etapas descritas no documento Territórios Quilombolas Relatório (2012), ainda precisam ser executadas: Etapa 6: Desintrusão dos ocupantes não quilombolas com pagamento de indenização pela terra nua e pelas benfeitorias; Etapa 7: Georeferenciamento e cadastramento do território no SNCR18; Etapa 8: Titulação; e Etapa 9: Registro do título emitido. (INCRA, 2012, p.13). A execução das últimas etapas enfrenta barreiras ainda maiores que a das etapas anteriores. Posto que, além de toda a burocracia legal e a não disponibilidade de recursos financeiros para pagar as indenizações, acrescenta-se ao contexto, as longas discussões, nas quais os ocupantes das terras pleiteadas defendem os seus interesses. Muitas vezes, os acordos de desintrusão propostos pelo INCRA não satisfazem aos interesses dos ocupantes não quilombolas que entram com ações contestatórias e questionam, por exemplo, o valor dos imóveis presentes nas terras, fazendo com que o processo de desintrusão tramite durante décadas. 17 Sobre a regulamentação dos procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades dos quilombos, ver A INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 57 de 20/10/ 2009. 18 Sistema Nacional de Crédito Rural 33 Em Territórios Quilombolas Relatório 2012, documento que apresenta uma síntese dos aspectos de regularização fundiária de territórios quilombolas do Brasil, o próprio INCRA emite o seu parecer quanto às dificuldades na realização desse processo: O aludido encadeamento de etapas traduz um procedimento intrinsecamente complexo e moroso, baseado em normativo elaborado por um grupo interministerial com vistas a dar maior lisura à regularização de terras quilombolas. Acrescenta-se ainda que a demora na execução destas etapas está diretamente relacionada à reduzida estrutura operacional e disponibilidade orçamentária e financeira para atingir todo universo de processos abertos. (INCRA, 2012, p. 13). Salvo as dificuldades de reapropriação das terras, o reconhecimento de uma comunidade como remanescente de quilombo contribui para a autoafirmação do grupo – através do resgate da história e da valorização da cultura local. Possibilita ainda a execução de ações governamentais, a exemplo das viabilizadas pelo Programa Brasil Quilombola, coordenado pela Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em articulação com os diversos órgãos responsáveis pela saúde, educação, moradia, infraestrutura de saneamento e abastecimento, entre outros. As ações são solicitadas pelas lideranças locais e uma vez atendidas ajudam a minimizar as dificuldades de sobrevivência e reduzem as desigualdades sociais, contribuindo para amenizar a dívida histórica que o Brasil tem com o negro. A construção da identidade negra em Tijuaçu, conforme verificamos, passou a ser redimensionada a partir do processo de reconhecimento enquanto comunidade quilombola. Com efeito, tornar-se quilombola contribuiu para que os tijuaçuenses assumissem a sua negritude, desencadeando, portanto, o processo de positivação dos elementos que compõem a etnorracialidade do grupo. O processo de produção de identidades é uma construção dinâmica e interminável, reinventada também a partir dos diferentes contatos com outras culturas em seu entorno, que se tocam e se misturam, haja vista o caráter deslizante das fronteiras culturais. Fronteiras que se tornaram ainda mais fluídas frente ao contato com culturas distantes, proporcionado principalmente pelo aparato tecnológico do atual mundo globalizado. É importante salientar que a globalização, ao acelerar o processo de hibridização cultural, investe também na tentativa de homogeneização pela mercantilização da cultura, deflagrando, assim, um processo de esvaziamento de seus sentidos enquanto diferença. No Brasil, os movimentos negros trabalham na contracorrente dessa homogeneização, a fim de positivar a identidade negra com ênfase em sua diversidade. Movimentam-se no sentido de 34 angariar direitos legais historicamente negados e no resgate das lutas históricas, empreendidas pela etnorracialidade negra: isto tudo força a releitura da historiografia oficial, revaloriza culturas e desvela mitos. Ao analisar a representação do negro em sua cultura, no contexto atual, redesenhado em função dos deslocamentos dos centros de poder, Stuart Hall afirma que a semelhança e a diferença combinadas são as claves para entender as redefinições estratégicas ocorridas no âmbito cultural globalizado. Hall rejeita a discussão pautada na simples oposição cultura erudita versus popular, uma vez que ambas as formas culturais lidam com influências recíprocas e negociam espaços. De acordo com o teórico, há uma proeminente produção de espaços conquistados pelas culturas marginais no campo da cultura dominante. Tal conquista “É também o resultado de políticas culturais de diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural”. (HALL, 2011, p. 320). Quanto à percepção do sujeito negro, Hall critica qualquer tentativa de essencialização, uma vez que esta seria uma das formas de atribuir-lhe uma identidade fixa. “O movimento essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e genético”. (HALL, 2011, p. 326). Pensar a categoria “negro” como essência em nada contribui com a discussão em termos de políticas culturais, uma vez que a questão não é o que é negro no sentido genético, mas a diversidade da experiência negra. Hall adverte: Não é somente para apreciar as diferenças históricas e experiências dentro de, e entre, comunidades, regiões, campo e cidade, nas culturas nacionais e entre as culturas diaspóricas, mas também reconhecer outros tipos de diferença que localizam, situam e posicionam o povo negro. (HALL, 2011, p. 327). Na dialética da luta cultural, as posições são estrategicamente negociadas. Os indivíduos se submetem ou são submetidos, ora por opção, reivindicando bens simbólicos que lhe foram usurpados e que podem posteriormente convergir em conquistas materiais, ora assimilando uma identidade imposta pelas classes dominantes. É dentro desse prisma que investir em identidades móveis e dinâmicas se faz necessário, uma vez que estas podem ser reformuladas frente às demandas dos jogos de poder. A discussão de Hall é muito produtiva para se pensar a identidade negra em Tijuaçu, que, em processo contínuo de produção, como acontece em todas as comunidades, negocia as suas diferenças e semelhanças com as demais culturas em seu entorno e forja a sua identidade coletiva com algumas peculiaridades que a distinguem de qualquer outro grupo. 35 Não obstante, a pergunta emergente quanto a esta comunidade, parafraseando Stuart Hall é: que identidade negra é esta ensejada pela comunidade de Tijuaçu? Inseridos nesse contexto contemporâneo de fronteiras culturais vacilantes, os atuais habitantes do distrito de Tijuaçu cultivam e conseguem manter algumas tradições, práticas culturais e a religiosidade dos seus antepassados, com destaque para: a produção de acarajé, o samba de lata e a festa de São Benedito; além de carregarem no seu modo de vestir traços que afirmam a sua etnorracialidade: penteados afro-brasileiros, usados principalmente pelas crianças e os jovens; vestuários e adornos pessoais que lembram signos do continente africano: turbantes, torços, batas e gorros coloridos, usados com mais frequência pelas lideranças locais. O surgimento do samba de lata, manifestação cultural praticada somente pelos tijuaçuenses, de acordo com Paulo Machado (2004), está relacionado com as principais secas que afligiram os tijuaçuenses nos anos de 1900 e 1932-1933. O samba começou para aliviar o sofrimento em função das consequências da seca e posteriormente virou um costume; os mais velhos convidavam as pessoas para se divertirem numa roda de samba em que o único instrumento de percussão disponível era a lata vazia de querosene. A já falecida Luísa Rodrigues (1924-2000), antiga moradora de Tijuaçu, em depoimento ao documentário Quilombos da Bahia, narra a origem do samba de lata: O tempo era seco, não tinha água aqui em lugar nenhum. Então só tinha água nesse rio que chamava rio cocho. [...] quando chegava nesse lugar, nesses bancos de areia, esses lugar assim, a gente botava o baixo e ia cantar roda, cantar roda, bater palma, sambar e dali ia formar o samba, ia buscar água, quando vinha, fazia o mesmo samba e assim a gente ia treinando, aprendendo, dizendo verso e tudo assim era que a gente ia aprender o samba de lata. (OLAVO, 2004, 39:50 min). No depoimento, apresenta-se o contexto do surgimento do samba de lata, criado no percurso da sobrevivência para se conseguir água. A partir do uso do recipiente para armazenagem, a lata de zinco, extraía-se o som para dar ritmo ao samba. Assim através de uma atividade lúdica e espontânea, podiam-se aliviar os momentos de penúria. Essa manifestação cultural de acordo com os estudos de Miranda (2009) foi também utilizada como meio de sobrevivência. Os moradores de Tijuaçu, ao enfrentaram grandes períodos de estiagem, apresentavam também o seu samba de lata às margens da estrada entre Senhor do Bonfim e Salvador, a fim de obter doações. Mesmo no contexto atual, em que os moradores não necessitem mais buscar água em latas para abastecerem as suas casas, pois a comunidade conta com o abastecimento de água 36 encanada, o que torna menos complicados os períodos de estiagem, o samba de lata mantém-se vivo e atravessa gerações. Essa manifestação ainda pode ser vista em comemorações festivas no município ou em outras cidades. O samba de lata tornou-se o principal símbolo cultural de Tijuaçu e é formado em sua maior parte por mulheres e meninas. As participantes usam vestidos brancos rodados, sandálias rasteiras (ou ficam descalças), colares e cabelos trançados. Os poucos homens que participam vestem-se de calça e camisa brancas. Todos cantam, dançam e batem palma, acompanhados do som que uma mulher retira de uma lata de zinco enquanto outra puxa os versos e os demais fazem o coro. As letras das músicas são criadas pelas mulheres e retratam o cotidiano passado e presente dos quilombolas. O samba de lata representa um dos traços distintivos da cultura que resiste em Tijuaçu, contribui na construção positiva da identidade negra local e ganha também notoriedade. Em 2008, por exemplo, o grupo de samba de lata apresentou-se na reitoria da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, na abertura do evento internacional África e Diáspora: refletindo sobre o lugar da mulher negra na geopolítica e os desafios da luta contra a pobreza e o racismo, promovido pela União de Negros pela Igualdade (UNEGRO) e a União Brasileira das Mulheres (UBM). Com relação à religiosidade, na sede do distrito de Tijuaçu há uma igreja católica e o padroeiro do distrito é São Benedito. De acordo com o relatório escrito por Navarro (2012), o festejo em homenagem ao santo negro começou com a chegada de Mariinha Rodrigues a esse território. A festa em homenagem à São Benedito é realizada no dia primeiro de novembro, organizada pelos moradores. Durante o dia, acontecem procissão, missa, batizados, casamentos e à noite a festa profana com apresentações culturais e shows. No Brasil colônia, a devoção a São Benedito foi introduzida pelos missionários. Carmélia Miranda (2009) explica que esse santo se tornou o mais popular entre os negros em função da cor da pele e de sua história de vida, e por esse mesmo motivo foi o escolhido pelos moradores de Tijuaçu19. O culto ao santo católico é um dos traços distintivos da comunidade que fortalece a coesão do grupo a partir de uma crença comum. É importante ressaltar que o processo de construção identitária em Tijuaçu é municiado pelos diferentes 19 Todas as versões relatadas pelos moradores de Tijuaçu à antropóloga Patrícia Navarro sobre São Benedito convergem para o milagre das rosas: narram que o servo Benedito levava comida para os pobres, quando foi abordado pelo seu senhor que o interrogou com relação ao que levava no recipiente e Benedito disse que era flores. O senhor pediu para olhar e realmente tinha apenas flores. Benedito, então, pôde seguir caminho e cumprir a sua missão. 37 elementos culturais que atravessam a sua formação, desde a chegada da sua matriarca fundadora. Em Tijuaçu, há também algumas igrejas evangélicas e nenhum terreiro de candomblé. Quanto às religiões de matriz africana, de acordo com Miranda (2009), embora os membros da comunidade neguem relações com cultos afro-brasileiros, a pesquisadora pode notar que os cultos acontecem nas localidades próximas à vila de Tijuaçu e muitos moradores participam, de forma discreta. É possível que a tentativa dos moradores da comunidade de esconder as suas práticas religiosas de matriz africana seja fruto do histórico de perseguição das elites dirigentes brasileiras aos cultos, da demonização dos seus rituais e de suas divindades e dos ainda vigentes preconceitos e discriminação em relação às religiões afro-brasileiras. Tal atitude de silenciamento nos remete às estratégias utilizadas pelos negros na diáspora africana a fim de e preservar elementos do seu patrimônio simbólico. À medida que os senhores de escravos proibiam determinadas práticas religiosas e culturais, os negros faziam com que tais práticas, aos olhos dos senhores, não divergissem daquelas permitidas. De modo similar, em Tijuaçu, assumir relações com as religiões de matriz africana, ainda nos dias de hoje, é algo que dificulta a convivência entre as pessoas dos mais diversos segmentos religiosos. Neste caso, silenciar pode ser uma das estratégias para resistir. Nas obras e documentos pesquisados sobre o distrito de Tijuaçu está registrada a presença de apenas um terreiro de candomblé fundado na década de 30, localizado na comunidade de Quebra Facão. O pesquisador Paulo Machado (2004) questiona e lança uma hipótese com relação à tímida presença do candomblé nesse território: Como explicar que em outras comunidades negras o candomblé é um culto histórico e enraizado nas origens do próprio povo? Não estaria aí um indício de um forte controle social, por parte das famílias brancas tradicionais, católicas, que possuem fazendas no perímetro de Tijuaçu? (MACHADO, 2004, p. 37). Não obstante, a negação das religiões de matriz africana e a presença ínfima de terreiros, o acarajé, iguaria da culinária afro-brasileira, geralmente produzido pelos filhosde-santo, é um dos principais símbolos que marcam a identidade dos quilombolas de região. A iguaria é comercializada no distrito de Tijuaçu, em Senhor do Bonfim e nas cidades vizinhas. Onde há um vendedor ou vendedora, facilmente identificável em função das marcas identitárias visíveis: vestes, adornos pessoais e penteados no estilo afro-brasileiro, formam-se filas para consumir o acarajé, de modo que é possível perceber o reconhecimento do valor dessa arte culinária para além dos limites territoriais da comunidade. 38 Além de fazer parte dos elementos que fortalecem a identidade negra dos quilombolas de Tijuaçu, o acarajé representa uma importante fonte de renda. As pessoas que produzem e comercializam o acarajé da comunidade são de ambos os sexos (o número de homens e mulheres vendedores é praticamente igual). Cabe pontuar que os produtores tijuaçuenses não associam, pelo menos publicamente, essa comida aos orixás. Outro elemento importante para a afirmação da identidade negra quilombola local é a Associação Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, fundada em março de 2000 pelos moradores de Tijuaçu, com o intuito de se discutir sobre os problemas locais, intermediar a implantação de projetos tanto voltados para a sustentabilidade como para a valorização e resgate da cultura. É através da Associação que os órgãos governamentais responsáveis por assegurarem os direitos dos quilombolas realizam o seu trabalho. Para Paulo Machado (2004, p. 30), o principal objetivo dessa associação é “fortalecer a auto-estima do povo negro e ajudá-lo a defender-se diante de todo tipo de discriminação e de domínio da minoria branca”. Contribui também para tornar a comunidade mais visível do ponto de vista político e é a responsável por administrar e assegurar o uso coletivo das terras. O trabalho que realiza fortalece os laços de solidariedade e de pertencimento do grupo. As tradições culturais, a religiosidade, os modos de se vestirem, a comercialização de acarajé, diferenciam os quilombolas de Tijuaçu dos demais habitantes do município de Senhor do Bonfim, de modo que são a partir dessas marcas distintivas que eles afirmam as suas identidades e são reconhecidos pelo outro. No que se refere à construção da identidade quilombola dos moradores de Tijuaçu, Carmélia Miranda conclui: A população não mais se intimida em expressar seus costumes e sua cultura. Essa identidade foi formada, ao longo do tempo, aliadas às diferentes influências das quais a população comungou e que agora, com a auto-estima elevada e sua auto-identificação enquanto afrodescendente, aparecem com maior visibilidade e vigor. (MIRANDA, 2009, p. 67). A historiadora apresenta a identidade quilombola em Tijuaçu percebida num determinado recorte de tempo-espaço, uma vez que os habitantes de Tijuaçu, assim como os de qualquer outra comunidade negociam e redefinem as suas posições identitárias frente às demandas do contexto no qual estão inseridos. Nesse sentido, não se pode perder de vista que os tijuaçuenses silenciam em relação às influências religiosas de matriz africana, cujos indícios são visíveis em suas manifestações culturais. Tal comportamento expõe as 39 dificuldades em se assumir referências destoantes das que estão estabelecidas pelos grupos dominantes, isto é, pelas vertentes religiosas oriundas do cristianismo. A construção da identidade etnorracial em Tijuaçu nos remete novamente ao pensamento de Stuart Hall (2011) sobre a necessidade dos grupos de culturas consideradas marginais de negociar as suas diferenças tanto internas como externas, com o intuito de afirmar-se. Os resultados convergem para a construção da cultura negra, assim definida por Hall: Todas essas formas são sempre o produto de sincronizações parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e de transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de matérias pré-existentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula. (HALL, 2011, p. 325). A cultura de Tijuaçu, ramificação que se soma à plural cultura popular negra, está sustentada no paradoxo da aceitação/negação daquilo que constitui as suas bases: as influências das culturas africanas. Tal relação conflituosa é resultado do desprestigio e o repúdio históricos direcionados a essas culturas tidas como subalternas. Em Tijuaçu, a construção identitária coletiva é tecida a partir de estratégias de acoplamento de diferenças e semelhanças no sentido enunciado por Hall. É possível perceber que na medida em que as diferenças poderiam tornar-se fardos para os tijuaçuenses, estas são ajustadas à cultura dominante e dessa simbiose cria-se o novo, a partir de um “deslocamento-cruzado”, usando ainda os termos de Hall. O processo de produção e afirmação da identidade negra quilombola em Tijuaçu tem bases na ancestralidade africana, nas culturas e religiões forjadas no encontro dos vários grupos étnicos (negros, brancos e ameríndios) durante a diáspora negra no Brasil. Tal contato, na maioria das vezes pouco amistoso, forçou a seleção de alguns elementos simbólicos que serviram para produzir e perpetuar a identidade da comunidade. Esta é, por conseguinte, fruto de contínuas reelaborações das heranças culturais, principalmente afrobrasileiras. E veio a se afirmar ainda mais com o reconhecimento como quilombola. Na entrada da sede do distrito de Tijuaçu, encontra-se a estátua o negro liberto, construída e inaugurada em 2011, sob responsabilidade da prefeitura municipal de Senhor do Bonfim, que objetivava homenagear a comunidade. Porém, de acordo com a pesquisadora Paula Odilon (2013), os moradores locais não ficaram satisfeitos, pois gostariam de ser homenageados com uma escultura que representasse a sua matriarca 40 fundadora. Tal insatisfação evidencia a preocupação dos tijuaçuenses em manter viva, na memória coletiva do grupo, as referências positivas específicas da comunidade. Os atuais habitantes de Tijuaçu dão prosseguimento à luta iniciada por Maria Rodrigues – uma mulher negra que conseguiu libertar-se dos grilhões e fundar essa comunidade –, positivando a sua identidade etnorracial e buscando modos de ascensão social. São negras e negros que cotidianamente quebram as correntes simbólicas que insistem em tentar subjugá-los. Assim, no decurso da formação da comunidade, os tijuaçuenses têm descoberto e assumido a força do animal que nomeia o distrito: o Tijuaçu “lagarto grande”, termo do vocabulário tupinambá que designa o teiú ou tejú, grande réptil comum em várias regiões brasileiras, conforme Dall‟Igna Rodrigues (1986). Quando acuados, os teiús, a despeito do seu tamanho, costumam fugir para se esconderem. Mas essa não é a imagem que bem representa a comunidade de Tijuaçu após o reconhecimento quilombola. Ao invés de fugirem como fazem os teiús quando amedrontados, os tijuaçuenses, ressurgiram semelhantes a lagartos fortes e corajosos que atacam ou elaboram estratégias de resistência frente às situações adversas e defendem os seus bens materiais e simbólicos. A identidade negra quilombola local vem sendo tramada ao longo dos anos na esteira das dificuldades, impostas pelas classes dominantes. Constitui-se, portanto, símbolo de resistência em movimento. 41 3 DE CADERNO EM CADERNO SE CONSTRÓI UM QUILOMBO DAS LETRAS O Cadernos Negros nasceu na Serra da Barriga, desceu o morro para morar no coração da literatura... E nem mil Rui Barbosa o queimarão da história. (RIBEIRO, CN 10, 1987). O quilombo, ao ser retomado como referência positiva no contexto contemporâneo, inspira muitos negros e negras brasileiros, de diversos campos de atuação, a prosseguirem com inciativas que promovam a positivação da etnorracialidade negra e o acesso aos espaços privilegiados no tecido social. Em Tijuaçu, o reconhecimento quilombola motivou os moradores locais a assumirem a sua negritude e investirem em atitudes coletivas de fortalecimento dos seus laços de pertença. No âmbito da escrita literária, muitos escritores negros também vêm trabalhando coletivamente pelo direito de enunciar as suas subjetividades e pela preservação do seu patrimônio cultural. São ações que, embora utilizem mecanismos diferenciados, convergem para o enfrentamento da desigualdade racial ainda predominante no Brasil. O uso literário das palavras para representar os recônditos das subjetividades do sujeito, das mazelas sociais ou de qualquer outra dimensão imaginada pela mente humana, tem historicamente agregado valor simbólico. Com isso, a literatura permanece como uma prática cultural de prestígio junto às demais que compõem determinadas sociedades, mantendo o seu status sacralizado. Não podemos perder de vista que a literatura é uma construção social e como tal está envolta em jogos de poder, portanto, passível de manipulação. O fazer literário é “atribuído” àqueles que fazem parte da elite cultural que, em geral, é também a elite econômica, a qual cria os mecanismos e os critérios de valoração e legitimação das obras. Desse modo, consegue manter um certo controle sob o discurso literário que faz circular, tendo em vista que as obras legitimadas tem trânsito garantido nos diversos espaços sociais. Nessa perspectiva, fica fácil perceber porque os grupos socialmente marginalizados têm dificuldade de adentrar o campo literário como produtores. Se por um lado, como diz Roland Barthes (1992, p. 19), “A escritura faz do saber uma festa”, por outro nem todos estão convidados a festejar. Os grupos dominantes impõem as regras para o trânsito na festa do fazer literário, que vão desde a determinação de quem deve produzir, quais obras têm valor simbólico e quem é o público leitor preferencial. 42 No tradicional salão de festas das letras brasileiras, comandado por uma elite que se pretende branca, a entrada do negro enquanto escritor sempre foi dificultada. Como leitor não era cogitado e na condição de personagem, ou estava ausente ou era representado pejorativamente. Entretanto, à medida que os negros no Brasil “tornam-se negros”, no sentido enunciado por Neusa Souza, urge a necessidade de requerer representações positivas de si e o direito de expressar literariamente as suas experiências. Por conseguinte, leitores/escritores negros – aqueles que, sendo negros, escrevem sem renegar sua experiência subjetiva-racial e elegem o leitor negro em seu ato de criação, conforme definição de Cuti (2002) –, atentos aos modos de exclusão ou inclusão segregada nos textos da literatura brasileira instituída, forjam o seu espaço de enunciação. Rejeitam o lugar de objeto que lhes foi atribuído e assumem o protagonismo do discurso. Regina Dalcastagné (2012), em sua pesquisa sobre o universo da literatura contemporânea brasileira que abrange os anos 1990 a 2004, apresenta o perfil dos escritores que são publicados pelas grandes editoras: homens, brancos, de classe média, moradores do Rio de Janeiro e São Paulo e que exercem profissões privilegiadas na produção de discurso. Em função disso, de acordo com a autora, acontece um estranhamento quando escritores e escritoras que destoam desse perfil conquistam espaços nesse campo que se pretende restrito, o que incomoda principalmente aqueles que querem manter seu espaço “descontaminado”. Dalcastagné (2012, p. 12) acrescenta que “a definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros, o que significa que determinadas produções estão excluídas de antemão”. A escritora Miriam Alves (2002), em seu ensaio Cadernos Negros (número 1): estado de alerta em fogo cruzado, diz que a vertente negra da literatura brasileira caracteriza-se principalmente por “atitudes literárias de organizar a fala através do coletivo, promovendo mudanças culturais”. Tal vertente é composta de escritores, que além da produção literária, comprometem-se com a publicação de livros, teses e promoção de eventos. (ALVES, 2002, p. 224). Assim, além de forjar espaços de enunciação, produz-se uma rede de legitimação do fazer literário desse grupo que não pretende fazer a sua escrita comungar da literatura dominante. Os Cadernos Negros são um desses espaços construídos e mantidos a partir do trabalho coletivo de produção e divulgação do discurso literário do negro. Intelectuais negros se unem e se reúnem para que as gerações atuais e as próximas tenham 43 possibilidades de representações literárias plurais dos segmentos sociais que compõem a sociedade brasileira. Miriam Alves, em análise do texto-documento publicado no Cadernos Negros 1, relata quais foram as motivações para o surgimento do primeiro volume: [...] rebelava-se contra a perpetuação do negro como segmento mais atingido nas formas de exploração social. Naquele momento a África servia de parâmetro para as duas categorias: a de exploração e a de rebelião. Inspirados nesse devir, os autores diziam fazer da negritude, exposta em poesia, instrumento de luta contra a exploração social. Recusavam-se, então, a inscrever-se na literatura dominante, a qual tem como inspiração um modelo idealizado de “branquitude”. (ALVES, 2002, p. 227). A antologia literária Cadernos Negros foi idealizada pelos militantes/escritores Cuti, pseudônimo de Luís Silva, e Hugo Ferreira. Além desses dois escritores, publicaram no primeiro volume, uma edição de bolso mimeografada, Oswaldo Camargo, Henrique Cunha Jr, Ângela Lopes Galvão, Célia Aparecida Ferreira, Eduardo de Oliveira e Jamu Minka . O lançamento aconteceu em 1978, em São Paulo. O trecho que se segue, retirado do prefácio do CN 1, assinado coletivamente, sintetiza os anseios do projeto: Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das idéias que nos enfraquecem e que só querem nos dominar e explorar. [...] Aqui se trata da legítima defesa dos valores do povo negro. A poesia como verdade, testemunha do nosso tempo. (CN 1 apud ALVES, 2002, p. 222). A escolha do nome do periódico, Cadernos Negros, é creditada a Hugo Ferreira, em homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus, falecida em 1977, que escrevia em cadernos, assim como o grupo de poetas negros formado nessa década, que viria a produzir no periódico criado. (COSTA, 2008). Negra, pobre, com pouca escolaridade formal, para Carolina Maria de Jesus, escrever em cadernos, que por sua vez eram encontrados no lixo, era a única opção. Como catadora de lixo, além de conseguir o seu sustento físico, a escritora alimentava o seu o repertório intelectual por meio dos livros que encontrava. Não somente o fato de utilizarem o mesmo suporte para a produção literária ligam os escritores dos CN à Carolina Maria de Jesus. As funções que as elites dirigentes atribuíam ao negro e à negra na sociedade brasileira nunca estiveram relacionadas com o labor intelectual. Em função disso e dos demais critérios já citados, estabelecer-se como escritor ou escritora negros sempre foi uma tarefa árdua. No caso de Carolina Maria de Jesus, ao 44 preconceito de cor soma-se o de gênero, o de classe e ainda o fato de a escritora ter tido pouco acesso à escolaridade formal. A presença de vozes não “autorizadas” pelo discurso dominante, ao apresentar as suas experiências individuais e coletivas, as mazelas sociais sob pontos de vistas diferenciados provoca deslocamentos nas representações literárias já acomodadas na cena literária brasileira, o que contraria as expectativas dos grupos dominantes. Conscientes das barreiras materiais e simbólicas que dificultam a entrada de escritores e escritoras negras no campo da literatura, desde a publicação do primeiro volume dos CN, os organizadores já anunciavam o segundo e assim sucessivamente. Essa foi uma das estratégias utilizadas para que o periódico se perpetuasse e atravessasse décadas, conforme relata Cuti, na introdução dos CN, Os melhores contos (1998, p.17). Dessa forma, mantinha-se o grupo empenhado na continuidade do trabalho. Os CN são publicados anualmente: nos anos pares são coletâneas de poesias e nos ímpares, contos. Até o presente momento (2014), contam com 36 volumes. A antologia é mantida por um sistema de cooperação, em que os escritores, após terem seus textos aceitos mediante seleção, na qual assinam com pseudônimos, responsabilizam-se com parte dos custos e das vendas. Essas estratégias para a manutenção da antologia estão pautadas em laços de solidariedade e no compromisso de reinvenção de uma identidade que de fato favoreça a raça negra. Segundo Aline Costa (2008), nos primeiros volumes dos Cadernos não havia seleção. Os textos enviados eram automaticamente publicados, ou selecionados pelos próprios escritores que faziam parte do grupo. A seleção começou a ser feita de forma mais rigorosa a partir do número 16. Possivelmente, esse rigor foi necessário devido ao aumento do número de autores solicitantes. Nos primeiros anos (1978 a 1982), os CN ficaram sob responsabilidade de Cuti, com seguinte objetivo inicial: [...] publicar textos de autores negros, pois animava-nos a consideração de que literatura é, também, ideologia. E, em assim sendo, precisávamos, enquanto escritores e militantes do Movimento Negro, mostrar textualmente as vivências da nossa gente, nossa subjetividade individual e coletiva, através da publicação de poemas e contos, e arregimentar escritores de todo o Brasil. (CUTI, 2010a, p. 293). A partir do número 06 (1983), os CN passaram a ser publicados com o selo do grupo Quilombhoje (as palavras aglutinadas fazem uma alusão aos quilombos contemporâneos), uma entidade sem fins lucrativos que, desde então, responsabiliza-se pela organização, 45 edição, lançamento e divulgação da série. Tal grupo, criado em 1980, tinha por objetivos iniciais discutir e estudar literatura negra nacional e internacional, além de divulgar e declamar as próprias produções, segundo Cuti (2010a). De acordo com o texto de apresentação do CN, Os melhores contos (1998), assinado por Esmeralda Riberio e Márcio Barbosa, faziam parte da formação inicial do Quilombhoje estes escritores: Abelardo Rodrigues, Cuti, Mário Jorge Lescano, Paulo Colina e Oswald de Camargo. Em 1982, dos primeiros participantes, apenas Cuti permaneceu e outros escritores ingressaram: Esmeralda Ribeiro, Jamu Minka, José Alberto, Márcio Barbosa, Miriam Alves, Oubi Inaê Kibuko, Sônia Fátima da Conceição e Vera Lúcia Alves. Em 1984, o escritor Abílio Ferreira passou a fazer parte do grupo. Em 1995, a maioria dos participantes se afastou e ficaram apenas três: Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa e Sônia Fátima da Conceição. E, desde 1999, o periódico é coordenado por Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro. Márcio Barbosa, na introdução do CN 17, resume qual seria a motivação do grupo Quilombhoje: [...] o desejo de que a solidariedade venha permear a vida cotidiana não só daqueles que escrevem, mas de todo o nosso povo sofrido, o qual tem sido levado – devido à negação oficiosa de seus valores e à carência de referências fortes e verdadeiras – a um permanente estado de desunião e uma constante necessidade de melhora na auto-estima. (CN 17, 1994, p. 14, grifos nossos) O permanente estado de desunião ao qual o negro foi submetido, citado por Márcio Barbosa, nos remete ao longo período de escravidão no Brasil e os seus legados. Antes de ser “inserido” na sociedade escravista brasileira, o negro já era vitimado por um aparato ideológico engenhosamente articulado para promover a sua dessocialização e coisificação. De início, a desarticulação familiar, a destituição da condição social que ocupava em sua nação, depois a imposição de outros costumes e a tentativa de destruição ou desqualificação das suas referências simbólicas. Dificultar a construção de laços de amizade e de solidariedade entre negros escravizados era mais uma das táticas de dominação utilizadas pelos senhores de escravos. Com essa intenção, compravam negros de grupos étnicos diferentes e por vezes até incitavam a rivalidade entre eles, conforme os estudos da historiadora Kátia Mattoso (2003). Língua, cultura e religião diferentes constituíam-se obstáculos para que os negros escravizados se reorganizassem. No entanto, a condição de oprimido, os infortúnios vividos 46 e o desejo latente por liberdade forjaram novas conexões que resultaram em insurreições, fugas e formação de quilombos, conforme a história nos conta. Os atuais movimentos contra o racismo e a discriminação têm sua gênese no período escravocrata, com a luta quilombola empreendida pelos negros. No período pós-abolição, esses movimentos ganharam outros formatos e enveredaram-se pelas vertentes políticas, educacionais e culturais. Segundo estudiosos, no cenário nacional, dentre as várias entidades de militância negra anteriores ao surgimento dos CN, destacam-se: A Frente Negra Brasileira (FNB), o Teatro Experimental Negro (TEN) e o Movimento Negro Unificado (MNU). Essas entidades foram fundamentais para ajudar a retrançar os fios de união entre aqueles que compartilham as mesmas dificuldades. A FNB, fundada na década de 1930 em São Paulo, embora com existência curta, de apenas seis anos, conseguiu mobilizar negros de vários estados do país. Um dos objetivos era o de integrar o negro na sociedade de classes. A F.N.B. criou uma contra-ideologia racial reafirmando as contribuições da comunidade negra na construção do Brasil e cobrando seus direitos ao trabalho às oportunidades que eram negadas no papel, para todos, mas eram negadas na prática, para o conjunto de oprimidos principalmente os negros. (MNU, 1988 p. 23). Após travar longas batalhas no Tribunal Superior Eleitoral, a FNB transformou-se em partido político, mas este logo foi extinto pelo então presidente Getúlio Vargas quando instituiu o Estado Novo em 1937 e dissolveu todos os partidos existentes. Embora reivindicando mudanças na estrutura social brasileira, que por sua vez era marcada por tensos, porém velados, conflitos nas relações raciais, a FNB assim como todos os movimentos negros que existiram entre os anos 1945 e 1970 “estavam preocupados em dar ao negro uma nova imagem, semelhante àquela proposta pela „ideologia da democracia racial‟”. (MUNANGA, 1999, p. 97). Para tentarmos entender esse posicionamento ambíguo, retornemos à década de 1930, pois nessa época as elites brasileiras abraçavam convenientemente o mito propalado pelo antropólogo Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala (1933), sobre a convivência harmônica entre todos os grupos étnicos que compõem o Brasil e sobre a inexistência do racismo. Embora propagado a partir da década de 1930, o mito da democracia racial, segundo Roberto Martins (2004), tem raízes fincadas na falsa ideia de “brandura” da escravidão no Brasil, em comparação com os sistemas escravistas dos Estados Unidos e o do Caribe. O 47 autor afirma que tal mito nasce de uma visão idílica de uma sociedade hierarquizada, porém patriarcal, onde os de cima devem cuidados paternais aos de baixo, e estes devem respeito filial. Por conseguinte, a abolição da escravatura conferiria aos ex-escravos cidadania imediata, com plenos direitos e amplas possibilidades de mobilidade social. De acordo com Kabengele Munanga, o mito da democracia racial baseia-se na dupla mestiçagem, biológica e cultural, encobrindo os conflitos raciais. Desse modo, impede que os membros que compõem as classes sociais menos favorecidas, formadas em sua maioria por não brancos, tenham “consciência dos sutis mecanismos de exclusão dos quais são vítimas na sociedade”. (MUNANGA, 1999, p. 80). Segundo as reflexões de Lélia Gonzalez (1988), o racismo, em função dos diferentes processos de colonização, apresenta, pelo menos, duas faces, o aberto e o disfarçado, que convergem para um único objetivo: exploração/opressão. A primeira face, característica das sociedades de origem anglo-saxônica, germânica ou holandesa, estabelece que a pessoa descendente de negros seja considerada negra, ainda que seu fenótipo seja branco. A segunda é típica das sociedades que investiram nas “teorias” da miscigenação, da assimilação e da “democracia racial”, por exemplo, as latino-americanas, e de acordo com a autora, é a mais eficaz no processo de alienação dos discriminados. Gonzalez (1988) afirma que o racismo disfarçado é tão sofisticado que consegue manter negros e índios na condição de segmentos subordinados nos interior das classes mais exploradas, graças a sua formação ideológica mais eficaz: o branqueamento. No que se refere ao racismo aberto, constata que seus efeitos sobre os grupos discriminados, reforçam a identidade racial destes. Isso porque, é “a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado „inferior‟”. (GONZALEZ, 1988, p. 73-74). Em consonância com as reflexões de Gonzalez, Antonio Guimarães (2005), referindo-se especificamente ao racismo no Brasil, manifestado na maioria das vezes de maneira disfarçada, reflete sobre como acontece o processo de velamento no interior das relações sociais, e chama atenção para um dos objetivos do racismo: tentar manter os negros em posições subalternas. Nas palavras do autor: Tais práticas racistas são, quase sempre, encobertas para aqueles que as perpetuam por uma conjunção entre senso de diferenciação hierárquica e informalidade das relações sociais, o que torna permissíveis diferentes tipos de comportamentos verbais ofensivos e condutas que ameaçam os direitos individuais. Trata-se de um racismo às vezes sem intenção, às 48 vezes “de brincadeira”, mas sempre com consequências sobre os direitos e as oportunidades de vida dos atingidos. (GUIMARÃES, 2005, p. 70). Considerando as características do racismo à brasileira, formulado como democracia racial, e mascarado por outro mito, o de que a discriminação no Brasil restringe-se às razões socioeconômicas, Guimarães (2005, p. 226) afirma que a maior dificuldade em combatê-lo, “consiste na eminência de sua invisibilidade, posto que é reiteradamente negado e confundido como formas de discriminação de classe”. A ideologia que sustenta o mito da democracia racial corroborou para a ambiguidade dos objetivos propostos pelos movimentos negros do período citado por Munanga, os quais denunciavam a existência do racismo e da discriminação racial, no entanto, buscavam eliminá-los por meio da negação dos seus próprios valores culturais. Tais movimentos procuravam afirmar-se a partir da imitação dos padrões da sociedade branca, acreditando que a “adequação” evitaria a discriminação. A FNB, desatenta às sutilezas do racismo à brasileira, caiu na armadilha do assimilacionismo do comportamento do branco, conforme os estudos de Munanga (1999). Entretanto, isso não desqualifica o trabalho realizado por essa entidade no contexto social brasileiro. Pensada com o olhar de hoje, a FNB atuou na contracorrente dos discursos institucionalizados sobre as relações raciais no Brasil, denunciou o tratamento desigual que o negro recebia em todas as esferas sociais e o fato de que este enfrentava maiores dificuldades de mobilidade social. Em 1944, ganha destaque no cenário cultural afro-brasileiro o Teatro Experimental do Negro, fundado do no Rio de Janeiro por Abdias Nascimento. A motivação para a criação do TEN advém do fato de que, naquela época, o negro não estava presente no teatro, nem com ator, nem como plateia. Aparecia apenas após os espetáculos para limpar a sujeira deixada pelos brancos, conforme afirma Nascimento (2010). Quanto às peças apresentadas pelo teatro brasileiro dessa época, as personagens negras, encenadas por atores brancos, reproduziam os seguintes estereótipos: “moleque bobo de riso fácil, a mãe preta abnegada ou o pai João submisso”. (NASCIMENTO, 2010, p. 208). O negro, nesse contexto, fora duplamente prejudicado, haja vista a sua exclusão enquanto partícipe (ator ou plateia) e a sua inclusão negativada no plano ficcional. De acordo com Abdias Nascimento, o TEN propunha-se a combater a discriminação racial, formar atores e dramaturgos afro-brasileiros, resgatar e positivar a cultura negra. Pretendia a inclusão do negro à sociedade “branca”, sem tentar imitar a cultura europeia, 49 reivindicando “o reconhecimento do valor civilizatório da herança africana” e a construção de uma identidade específica “exigindo que a diferença deixasse de ser transformada em desigualdade”. (NASCIMENTO, 2010, p. 207). A atuação dessa entidade atravessou a dimensão cultural e adentrou o campo político: Pretendi organizar um tipo de ação que a um tempo tivesse significado cultural, valor artístico e função social. [...] De inicio, havia a necessidade de resgatar a cultura negra, e seus valores violentados [...] o negro não deseja a ajuda isolada e paternalista com em favor especial. Ele deseja e reclama um status elevado na sociedade na forma de oportunidade coletiva, para todos, a um povo com irrevogáveis direitos históricos. (NASCIMENTO, 2010, p. 207). Contudo, a ditadura militar, instaurada em 1964, tratou de desarticular todos os movimentos sociais. E apenas no final da década de 1970, ainda sob a repressão do regime ditatorial, alguns grupos começaram a se articular. Houve, por exemplo, em 1978, a retomada do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, que nesse mesmo ano foi abreviado para Movimento Negro Unificado (MNU). E o já citado surgimento do primeiro volume dos CN. Destoando do comportamento da FNB, no que se refere ao mito da democracia racial e ao assimilacionismo, o MNU “não visa adestrar o negro para integrá-lo, mas contribuir para mudanças no perfil da sociedade, de modo que negros e outras minorias tenham suas identidades e espaços de atuação assegurados”, conforme afirma Florentina Souza (2006, p. 80, grifos da autora). Em síntese, o MNU, entidade de caráter nacional, tem por objetivo a defesa do negro em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, com vistas à promoção de uma autêntica democracia racial, conforme consta em sua carta de princípios20. O contexto em que surgem os CN é marcado por um clima de efervescência social. A população brasileira vivenciava os últimos anos da ditadura militar, que foi pressionada pela insurgência de movimentos estudantis e de trabalhadores. No plano internacional, a década de 1970 foi marcada pelo movimento de descolonização do continente africano. E os movimentos de libertação empreendidos pelas colônias portuguesas (Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné Bissau) influenciaram, por certo, a criação dos CN conforme afirma a pesquisadora Maria Nazareth Fonseca (2006, p. 14), “O processo de independência que propiciou, nessa década, o nascimento das nações africanas de língua 20 Ver carta de princípios do MNU na íntegra em: UNIFICADO, Movimento Negro (1988, p. 18-19). 50 portuguesa, foi a motivação maior do surgimento dos Cadernos Negros, que procurava trabalhar a relação entre literatura e as motivações sócio-políticas”. Conceição Evaristo, em ensaio publicado na obra em comemoração aos 25 anos do Movimento Negro no Brasil (MN), diz que a literatura afro-brasileira está intrinsecamente relacionada às pontuações ideológicas do MN, “autores (as), se não estão ativamente no seio do movimento, não podem negar que as suas produções sofreram ou sofrem influências dos discursos propagados pelos anos de luta do MN”. (EVARISTO, 2006, p. 111). Em linhas gerais, com o trabalho intelectual de militância literária, os escritores dos CN utilizam a palavra em sintonia com as propostas de mudanças ensejadas pelos movimentos negros contemporâneos, investindo na reversão da ausência ou da presença negativada do negro no âmbito literário. Nesse sentido, aproximam-se das propostas do Teatro Experimental do Negro. Em seu ensaio 30 Anos de leitura, a pesquisadora Florentina Souza (2008), apresenta um panorama do percurso textual trilhado pelos CN durante essas três décadas e emite o seu parecer acerca da importância e da função desse periódico: Os Cadernos [...] vieram preencher uma lacuna na produção editorial no Brasil, vieram ao encontro de expectativas de um público leitor que não se via representado nos textos e/ou jornais e revistas que circulavam no Brasil pós-abertura política; a militância não dava conta de questões que eram/são vividas mais intensamente por indivíduos que se autodenominam negros/as e são assim reconhecidos. (SOUZA, 2008, p. 44-45, grifos da autora). Esses escritores, impulsionados pelo desejo de expandir a atuação dos movimentos negros, embrenharam-se pelo campo literário e lançaram-se na construção dos Cadernos Negros como quilombo das letras cuja luta está plasmada na rebeldia intelectual. Os CN são um espaço aberto para todos os autores afro-brasileiros que queiram submeter à seleção, a sua produção de contos ou poesias. Os CN configuram-se, portanto, um espaço que reúne forças literárias, criados para que escritores possam realizar suas vozes de forma coletiva. Uma das características dessas vozes é que são dissonantes das enunciadas pela literatura brasileira instituída e têm como um dos objetivos rasurar uma escrita impregnada de estereótipos, conforme veremos a seguir. 51 3.1 VOZES QUILOMBOLAS NA LITERATURA A formação de quilombos, uma outra estrutura social construída fora da instituída pelo branco, foi a solução encontrada por negros fugitivos para se restabelecerem longe do jugo dos senhores de escravos. No contexto atual, novos quilombolas, neste caso, os das letras, encontram uma solução dentro da própria estrutura social na qual estão inseridos. Se os circuitos oficiais, alimentados pelas grandes editoras nacionais, impõem dificuldades para publicar e divulgar escritores negros, estes, por sua vez, criam os seus próprios mecanismos de inclusão e constroem um circuito de produção e circulação alternativo de obras literárias. Ao prefaciar a antologia Quilombo de Palavras, Florentina Souza (2000), enuncia uma aproximação entre o grupo de autores de discursos afro-brasileiros que, a partir do final da década de 1970, passou a publicar seus textos sistematicamente, e os quilombos históricos, posto que ambos estruturaram-se como símbolos de resistência e preservação cultural. É notória, ainda nos dias de hoje, a dificuldade que o escritor negro enfrenta para se estabelecer no cenário das letras nacionais, especialmente quando tenta lançar-se sozinho nesse espaço. Os escritores dos CN, contudo, resolveram lutar coletivamente pelo direito de enunciar as suas vozes. Para Oubi Inaê Kibuko, pseudônimo de Aparecido Tadeu dos Santos, escritor que fez parte do grupo Quilombhoje de 1983 a 1994 e publica textos nos Cadernos desde o volume 03, os CN são um “Qu lo o l terár o”. E desse quilombo, são entoadas vozes literárias que ecoam tanto pelo Brasil quanto por outros países. De algum modo, produzir e publicar literatura negra coletivamente aproxima-se de algumas das estratégias utilizadas por negros escravizados em sua luta por liberdade, pois o fracasso era quase certo, quando as fugas eram empreendidas de modo individual. Para que a fuga fosse bem sucedida era necessário o apoio de outros, além disso, a inclusão em um grupo (quilombo) era o que poderia assegurar a sobrevivência. A continuidade heroica dos CN também depende do emaranhado de forças coletivas que sustentam esse projeto de apropriação e propagação do discurso do negro. O grupo Quilombhoje é o responsável por catalisar essas forças. O Quilombhoje, com sede e lideranças em São Paulo, é o responsável por incluir vários escritores negros brasileiros na antologia literária Cadernos Negros. Atualmente, uma das estratégias de inclusão utilizada pelo grupo é a divulgação via internet do processo de seleção de textos. O acesso aos CN pode despertar o interesse do público em conhecer as 52 produções individuais desses escritores que muitas vezes publicam também pelo grupo Quilombhoje. Em 2004, o historiador Clóvis Moura, no texto de apresentação do CN 17, também associa o empenho dos escritores negros ao dos quilombolas, tendo em vista as dificuldades que enfrentam para levar adiante esse projeto de produção literária coletiva. Os próprios membros do grupo responsabilizavam-se pela publicação, vendas e divulgação, tendo ainda que lidar com o não reconhecimento da crítica oficiosa quanto ao valor literário da antologia. Contudo, aquele momento, segundo a opinião do historiador, seria um divisor de águas, já que a série foi coeditada em parceria com a Editora Anita Garibaldi de São Paulo, o que ajudaria a dar maior visibilidade à obra frente aos críticos. Nos seus termos: Os quilombolas do grupo aparecem agora à luz do dia, com as armas da literatura, para falar, da forma que entendem e consideram melhor adaptadas a sua mensagem de protesto e de lirismo, de uma realidade que muitos segmentos de nossa sociedade querem ignorar [...] Somente assim será possível corrigir a distorção de uma cultura que não reflete a produção de uma das suas partes mais importantes, permanecendo como um espelho deformante e, portanto, alienado. (CN 17, 2004, p. 10, grifo nosso). Apesar de o grupo Quilombhoje precisar manter o sistema de quotas de contribuição e venda por parte dos escritores, as previsões de Clóvis Moura quanto ao reconhecimento no campo das instâncias legitimadoras têm se cumprido, embora a passos lentos. Os CN são traduzidos e estudados fora do país, a exemplo dos Estados Unidos e da Alemanha. Algumas universidades brasileiras os incluíram nas listas de indicação de leitura para os vestibulares e pesquisadores têm tomado essa série como objeto de estudo. Driblando as dificuldades de inserção no circuito editorial-mercantil, o periódico se faz presente nas livrarias e bibliotecas nacionais. Ademais, escritores que publicam nos CN têm conquistado espaços privilegiados no campo literário também com suas produções individuais. Por exemplo, o primeiro romance publicado da escritora Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio (2003), foi indicação de leitura para o vestibular de algumas universidades brasileiras, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2007, e, além de ter sido traduzida para o inglês, essa obra é objeto de estudo de vários pesquisadores. Na orelha do CN 32, a professora e militante do Movimento Negro Ana Célia da Silva, ao se referir à antologia, também a aproxima da saga dos quilombolas: Os Cadernos contam a nossa luta quilombola, as nossas perdas, as nossas construções, criações e voltas por cima, tirando leite das pedras, construindo e reconstruindo nossa identidade e auto-estima, aprendendo a 53 desconstruir a auto-rejeição a nós imposta pelo racismo, branqueamento e branquitude. (CN 32, 2009, grifos nossos). Nos textos que compõem os CN, está explícita a intenção de aproximar a luta desses escritores negros com as dos guerreiros dos quilombos históricos: “O Cadernos Negros nasceu na Serra da Barriga desceu o morro para morar no coração da literatura... E nem mil Rui Barbosa o queimarão da história” faz referência ao maior e mais resistente quilombo histórico construído no Brasil, o dos Palmares, e o seu locus no interior do atual estado de Alagoas, na época pertencente à capitania de Pernambuco. O texto da epígrafe que abre esta seção sugere que, nesse novo quilombo, o das letras, as produções literárias não serão silenciadas, deturpadas, muito menos queimadas da história. Para o escritor Salgado Maranhão (2010, p. 289), “O primeiro estágio de um povo ou pessoa que se liberta é, justamente, a recuperação de sua voz”. Esta conquista do escritor negro nos remete ao pensamento de Michel Foucault (1996) concernente às interrelações entre o discurso, verdade e poder. Foucault nos diz que o discurso é objeto de desejo, representa poder, e que todos nós lutamos por ele. Adverte, porém, que o valor do discurso e os seus modos de circulação são determinados pelos aparatos institucionais eleitos por aqueles que manipulam o poder. Alargando a discussão, Foucault, em Verdade e poder (2012, p. 52), explica que cada sociedade possui os seus “regimes de verdade”, os quais em certa medida funcionam com meios de repressão e exclusão. Esses regimes, produzidos pelas classes dominantes a partir de “múltiplas coerções”, atribuem a certos discursos o status de “verdadeiros” e asseguram que funcionem como tal, de modo a produzir “efeitos específicos de poder”. Na esteira dessas reflexões, Cornel West, em O dilema do Intelectual Negro (1999), discorre sobre o modelo de intelectual foucaultiano, cuja função é promover um “questionamento” dos “discursos de poder” disseminados em uma determinada sociedade. Apesar de colocar ressalvas quanto ao modelo de intelectual foucaultiano e afirmar que este não atende às particularidades dos intelectuais negros, Cornel West apropria-se das análises de Foucault sobre a constituição do “regime de verdade” e das “operações multifacetadas da relação poder/conhecimento”, para compor um novo modelo de intelectual contemporâneo, o insurgente. Para ele, as dificuldades enfrentadas pelos intelectuais negros só serão aplacadas se estes, a partir de “infra-estruturas negras”, articularem um novo “regime de verdade”. Para a realização dessa tarefa, é necessário conhecimento das “prerrogativas” dos regimes vigentes da sociedade da qual fazem parte. 54 Abalar os discursos produzidos e disseminados pelas classes dominantes que impõem as suas “verdades”, com suas falas autorizadas, em função das posições de prestígio que ocupam nas instâncias que representam poder no corpo social, por exemplo, políticas, midiáticas e jurídicas, é uma tarefa complexa. Contudo, o “intelectual insurgente”, ao questionar os “regimes de verdade” a partir de uma prática engajada, pode estimular “percepções alternativas” e ações que promovam tanto o deslocamento de “discursos” quanto de “poderes” instituídos. Eis, portanto, a função principal do intelectual pósmoderno, de acordo com West. Embora o discurso literário não seja objeto de análise nessas reflexões de Foucault e West, a discussão apresentada acerca dos discursos de poder é profícua para se pensar a produção e circulação de representações negativas acerca do negro pela literatura instituída. Mesmo não sendo uma das instâncias responsáveis pela consolidação dos “regimes de verdade” de uma sociedade, de acordo com as reflexões de Foucault, o discurso literário contribui para a construção do imaginário de uma nação. Assim, representações estereotipadas saltam das páginas literárias e podem afirmar-se como “verdades”. A literatura brasileira contribuiu com a cristalização das premissas difundidas por correntes históricas, científicas e religiosas que outrora disseminaram uma suposta inferioridade física e intelectual do negro. Essas premissas produziram marcas extremamente negativas, cujos reflexos, ainda hoje, são percebidos na construção da autoimagem e autoestima do negro e no modo como o outro o percebe. Os escritores dos CN, ao forjar o seu espaço de produção e modos de circulação do discurso literário do negro, fortalecidos pelo trabalho coletivo, atuam na desmistificação dessas “verdades” incutidas no imaginário do leitor. Cuti (2010a), um dos primeiros líderes e ainda vividamente atuante no quilombo literário, acredita que a literatura ajuda a mudar a sociedade, e que, embora não seja possível mensurar a sua influência, ela pode alterar o consciente e o inconsciente das pessoas. É dessa forma que a literatura exerce o seu poder. Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa, no texto de apresentação do CN 34 (2011, p. 12) nos dizem sobre algumas das conquistas do grupo Quilombhoje e dos CN, “há muito deixamos de ser tema para sermos sujeitos da escrita e nos descobrimos plurais, diversos, tanto em termos de conteúdo quanto em termos formais”. A partir do potencial criativo e a persistência de escritores e organizadores, os CN romperam a afonia imposta e se 55 estabelecem no cenário das letras, ainda que enfrentem barreiras para garantir a sua manutenção21. Atualmente, o Quilombo literário mantém-se da seguinte forma: o Quilombhoje envia uma carta aos membros cadastrados em seu site, convidando-os para participarem do processo de seleção para a próxima publicação. Em linhas gerais, o que o grupo espera dos textos submetidos é que sejam inéditos e expressem os múltiplos aspectos da experiência afro-brasileira. Conforme a carta-convite22 para a confecção do CN 35, um texto só é publicado se for classificado como bom ou ótimo pela maioria dos selecionadores de uma comissão. Em média, tal comissão é composta de 14 a 17 pessoas: um membro do Quilombhoje, 25% dos autores participantes (escolhidos por sorteio), críticos de literatura e leitores assíduos dos CN. O voto de todos os participantes tem o mesmo peso. Para garantir a lisura no processo de seleção, o Quilombhoje estabelece que, durante o processo seletivo, a identidade dos escritores participantes, críticos e leitores dos CN só seja conhecida, por uma pessoa do grupo, responsável pelo recebimento e envio dos textos e avaliações, que não tem o direito de avaliar e nem pode alterar prazos. Na carta-convite seguem as normas para aceitação e publicação dos textos: quantidade de páginas, fonte, espaçamento, número de cópias e orientações quanto ao envio. A carta explica também sobre a quota de contribuição para a publicação da antologia e a quantidade de livros que cada escritor/cooperador tem o direito de receber durante ou após o lançamento. Nesse projeto coletivo, os escritores trabalham em todas as etapas para mantê-lo vivo. A festa de lançamento é o principal momento de vendas dos CN, que podem ser adquiridos também por meio do site do Quilombhoje, em livrarias ou sebos. Acrescenta-se o fato de que os CN constam também nas listas de obras que são disponibilizadas pelo Governo Federal para compor o acervo literário das escolas públicas brasileiras. Assim, mesmo à margem dos interesses das grandes editoras nacionais, os CN conquistaram espaços e público leitor, apesar das dificuldades em se manter dentro do 21 Além do desinteresse das mídias convencionais em divulgar a produção dos CN, o fato de o periódico não contar com o apoio de nenhuma das grandes editoras nacionais dificulta a reedição das antologias e por consequência o acesso do leitor a textos publicados anteriormente. 22 QUILOMBHOJE. Carta-convite CN35. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por mim, por meio do endereço virtual [email protected] em 29/06/2012. 56 mercado capitalista, mas de fora dos interesses hegemônicos, perseguindo o desejo inicial de contribuir com a afirmação do segmento social negro. O Quilombo literário é uma fortaleza municiada de representações das subjetividades e dos anseios de escritores e escritoras da literatura afro-brasileira. Os CN, esse locus de liberdade, faz proliferar no campo das letras discursos que ajudam a quebrar as correntes que ainda aprisionam o sujeito negro em conceituações depreciativas. Os CN são, portanto, um espaço de realização de vozes literárias/quilombolas que reconstitui o ideal de liberdade ensejado desde a formação dos quilombos históricos. Por intermédio do labor intelectual, os combatentes das letras travam diariamente a luta pela manutenção desse espaço. No campo da literatura negra, os CN representam um fenômeno de resistência literária. 3.2 IDENTIDADE NEGRA NA CENA LITERÁRIA BRASILEIRA Quando a questão da identidade nacional tornou-se prioridade para consolidar o processo de formação da nação brasileira no período pós-colonial, a literatura foi um dos instrumentos usados para disseminar as características do que seria a comunidade imaginada: Brasil. Nessa construção identitária iniciada no século XIX, o negro e tudo que estava relacionado a ele foi excluído ou representado pejorativamente. Em função disso, as gerações pós-escravistas, pós-coloniais, conviveram com produções que, de modo sutil ou declarado, atribuíam tudo que fosse negativo e lascivo ao negro23. Isso contribuiu para incutir no imaginário da nação brasileira uma obsessão pelo branqueamento e pela necessidade de imitação das imaginadas culturas europeias. Atentos às consequências negativas dos discursos inferiorizantes que ainda circulam sobre o negro, os autores dos CN, por meio de contradiscursos, têm trabalhado na construção de outra possibilidade de identidade, a identidade negra. Em vista disso, os autores rejeitam qualquer necessidade de embranquecimento e buscam no repertório da cultura negra mecanismos de positivação dessa identidade. De acordo com a percepção do sociólogo Manuel Castells (1999), a identidade é um processo que está relacionado com a construção de significados, com base em atributos 23 Sobre a representação estereotipada do negro na literatura, ver os estudos de Roger Bastide (1993), David Brookshaw (1983), dentre outros. 57 culturais inter-relacionados que sempre ocorre em contextos marcados por relações de poder. Castells (1999) distingue três formas de construção social da identidade: legitimadora, resistência e projeto. A primeira é introduzida pelas classes dirigentes com o intuito de expandir e racionalizar a dominação. Com tendência homogeneizante, a identidade legitimadora é reproduzida por um conjunto de instituições (escolas, igrejas, entidades cívicas, partidos etc.) que fazem parte da sociedade civil, a fim de assegurar a sua validade e continuidade. A identidade de resistência é criada por grupos que se encontram em condições desvalorizados pela lógica da dominação e que por isso reforçam os seus princípios que são divergentes dos que permeiam as instituições sociais, com o objetivo de refugiarem-se neles e garantir a sobrevivência. E a identidade projeto, a que mais nos interessa nesta pesquisa, ocorre do seguinte modo: [...] quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscar a transformação de toda a estrutura social. (CASTELLS, 1999, p. 24, grifos nossos) No Brasil, a construção de identidades negras está na contracorrente da identidade imposta pelas instituições dirigentes da sociedade. Os movimentos negros brasileiros contemporâneos trabalham na tessitura de identidades negras que contribuam com a elevação da autoestima, produzam marcas positivas na autoimagem, fortaleçam os laços de solidariedade do grupo, e por consequência, o sentimento de pertença. Positivar a identidade coletiva é uma das formas de fortalecer os grupos minoritários em suas lutas por melhores posições no tecido social. A literatura dos CN, gestada no seio da militância e por escritores/militantes, assume, no campo literário, entre outros, a função de afirmar a identidade negra. Em seu quadro conceitual, Manuel Castells chama a atenção para a mobilidade das identidades, que podem começar como resistência, resultar em projeto e até mesmo tornarem-se legitimadora. Com esse deslocamento de posições, as forças que atuam na manutenção da estrutura social seriam redimensionadas. Para a realização de suas produções, os escritores dos CN investem no resgate e na valorização de elementos relacionados ao segmento social negro, os quais foram ignorados pelo projeto de identidade forjado pelo Estado-nação: história, memória coletiva, heróis, cor, lendas. Trata-se de um patrimônio simbólico que posiciona a cultura negra não apenas como mera contribuinte para a formação da cultura brasileira, mas também como partícipe basilar. 58 Porém, o reconhecimento quanto à ocupação da centralidade da cultura negra junto às demais no discurso da identidade nacional é uma questão lateral frente aos outros objetivos pretendidos pelos CN. A partir da bibliografia pesquisada, é possível inferir que uma das causas defendidas pelo periódico, e quiçá a principal, é a mudança de posição do segmento negro no contexto brasileiro, aproximando-se da ideia de “identidade projeto” definida por Castells. Ainda com relação à identidade projeto, o sociólogo acrescenta: “consiste em um projeto de uma vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade”. (CASTELLS, 1999, p. 26). Segundo Fausto Antonio, a problematização da identidade é o centro pelo qual circulam as poesias, os contos e os textos teóricos que compõem os CN. O pesquisador afirma que, para os periódicos, a identidade racial significa “empreender movimento para a superação das desigualdades raciais, a que estão submetidos os negros” (ANTONIO, 2008, p. 81). Em Literatura negro-brasileira (2010b), Cuti discorre sobre as forças políticoideológicas que atuam no campo da literatura, e afirma que a questão racial, outrora silenciada, tem sido enunciada por vozes negras insurgentes. No entanto, essa tarefa em curso encontra resistência, pois a fibra com a qual foi tecida a literatura brasileira “ainda entoa loas às ilusões de hierarquias congênitas para continuar alimentando com seu veneno o imaginário coletivo de todos os que dela se alimentam direta ou indiretamente.” (CUTI, 2010b, p. 13). Cuti (2010b, p.13) acrescenta que a literatura brasileira precisa “de forte antídoto contra o racismo nela entranhado.” A produção literária dos CN vem há mais de três décadas contribuindo com a reconstrução do imaginário coletivo, de modo a atenuar os prejuízos psicológicos que foram causados ao leitor negro. Seguindo a própria nomenclatura dos CN, que, a partir do volume 18, publicado em 1995, passou a adotar como subtítulo a expressão afro-brasileiro, o termo literatura negra é entendido aqui, como sinônimo de literatura afro-brasileira. O enunciador de tal produção literária sabe ou sentiu as agruras de ser negro em um país cujas culturas prestigiadas têm como modelo a europeia e as vozes ouvidas durante séculos foram a do branco ou a do mestiço que assume somente a parte branca de sua mestiçagem. Vale ressaltar que um dos fundadores e escritor que publica na maioria das edições dos CN, Cuti, rejeita a nomenclatura afro-brasileira para nomear a literatura negra, e afirma 59 que o termo apropriado é literatura negro-brasileira24. Para além da atual polêmica acerca desse termo – que gira em torno das seguintes classificações: literatura afro-brasileira, afrodescendente e negra –, teóricos, escritores, pesquisadores e leitores tem à sua disposição uma vasta produção literária que aborda questões relevantes sobre as relações etnorraciais no Brasil25. Zilá Bernd (1988) destaca esse papel do escritor negro em romper com uma tradição literária brasileira que, salvo algumas exceções, trazia-o apenas como tema ou como objeto, um negro sem voz, “o outro” de quem se falava, constituindo uma literatura sobre o negro. Nesse sentido, a literatura produzida pelo negro é marcada pela presença de um enunciador que se quer negro, imbuído de uma subjetividade intransferível. Trata-se de uma produção literária que surge a partir de uma tomada de consciência da questão negra, com o intuito de desvelar as nuances que desprestigiam o ser negro e positivar valores culturais que foram propositalmente esquecidos ou escamoteados. Estabelece-se um discurso literário assumido por escritores que se autonomeiam negros e inserem a sua escrita no campo da literatura negra. Tal escrita traz à luz outros modos de expressão literária e provocam uma ruptura no círculo de discursos que representam a sociedade a partir da miopia conveniente das classes dominantes. Para Miriam Alves (2002), a presença de escritores e escritoras negros motiva um mal-estar em alguns segmentos da sociedade brasileira, por estarem acostumados a ignorar as vivências do sujeito negro. A escritora acredita que existe uma potencialidade de transformação nesse assumir a subjetividade negra. Ressalta ainda a importância de se reverter a carga semântica negativa do signo “negro”, pois desse modo opera-se a inversão do olhar sobre o brasileiro negro, “tirando-lhe a máscara da invisibilidade e dando existência ao que se considera massa amorfa, sem rosto, sem sentimento, interioridade e humanidade”. (ALVES, 2002, p. 234). Para analisarmos o processo de produção de contradiscursos realizado pelos escritores dos CN, enfocaremos os estudos realizados por Florentina Souza (2006), em Afrodescendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Nessa obra, a pesquisadora analisa o processo de invenção de um discurso de representação e de produção de identidades afro“Denominar de afro a produção literária negro-brasileira [...] é projetá-la à origem continental de seus autores, deixando-a a margem da literatura brasileira, atribuindo-lhe principalmente uma desqualificação com base no viés da hierarquização das culturas, noção bastante disseminada na concepção de Brasil por seus intelectuais”. (CUTI, 2010, p. 35-36). 25 Sobre essa polêmica em torno do termo, ver estudos de Eduardo Assis Duarte (2007), Maria Nazareth Soares Fonseca (2006), dentre outros. 24 60 brasileiras, proposto pelos periódicos citados no título da obra, e afirma que ambos “viabilizam a criação de um espaço público para a expressão de um grupo excluído, silenciado e tornado invisível nos setores privilegiados da sociedade brasileira”. (SOUZA, 2006, p. 13). De início, os autores desses periódicos tiveram de se confrontar com as já citadas imagens negativas que lhes foram introjetadas ao longo da sua formação cultural. Conforme nos explica Souza: Obrigados a conviver desde a infância com os sentidos negativos atribuídos a expressões pertencentes ao campo semântico negro, também utilizadas para nos definir e caracterizar étnico-racialmente, somos colocados diante do dilema: como nos amarmos se o preto é feio, o perverso, o mal, o pecado? (SOUZA, 2006, p. 135, grifos nossos). Livrar-se das imagens depreciativas que circundam a mente de cada escritor negro, a partir dos vários discursos ainda vigentes, foi o primeiro passo para o início de reversão da carga semântica negativa da palavra negro. A partir de então, o escritor começa a trabalhar na produção de um discurso literário do negro, tendo como ponto de partida as suas subjetividades. Contudo, forjar identidades negras, em um contexto que se quer branco, no qual as elites dirigentes se esforçaram exaustivamente na tentativa de apagamento das culturas negras, seja por meio de perseguições seculares, por discursos inferiorizantes ou pela tentativa de invisibilização, é um desafio árduo para o escritor negro. Sobre a (in) visibilidade social do negro, Florentina Souza (2006) afirma que o negro torna-se invisível socialmente quando ocupa os lugares desprestigiados no tecido social, uma vez que esta ocupação é vista como natural. Em contrapartida, quando conquista lugares de prestígio sua visibilidade é excessiva, haja vista a dificuldade que a sociedade tem em aceitar que os afro-brasileiros ocupem lugares que não lhes foram previamente destinados. Outra forma de tornar o negro invisível em determinadas situações é “Apagar os vínculos étnicos e os traços físicos, apagar a „a cor‟”. (SOUZA, 2006, p. 36). Com essa estratégia de apagamento, a atuação desse segmento nos vários setores da sociedade brasileira, torna-se imperceptível. Ainda de acordo com Souza (2006, p. 37), a invisibilidade imposta aos afrobrasileiros, “estende-se ao campo das letras, e à produção textual canônica, na maioria dos casos, continua a reproduzir os estereótipos negativos e a omitir o registro e a aparição da produção textual autodenominada negra ou afro-brasileira.” Essa é mais uma das estratégias 61 utilizadas pela elite dominante para a manutenção do seu status, visto que, se o sujeito negro não tem referências positivas do seu grupo étnico, isso pode levá-lo à descrença quanto as suas chances em angariar conquistas. Com relação ao racismo à brasileira – cujos modos de atuação são denunciados pelos textos que compõem os CN –, Leda Maria Martins, em A cena em sombras (1995), explica que este se exercita por meio de uma “linguagem violenta”, que circula nas falas do cotidiano. Nesses discursos, o signo negro aparece quase sempre negativado. Desse modo, os lugares atribuídos ao negro via produção discursiva, identificam “um sujeito negro enunciado na própria margem do discurso, destaca-o como um outro não apenas diferente, mas indesejável, ou desejável em lugares previamente determinados”. (MARTINS, 1995, p. 36). Regina Dalcastagné (2012) também chama atenção para os processos de invisibilização e silenciamento de grupos sociais inteiros no campo literário brasileiro instituído. Essa é mais uma indicação do caráter excludente de nossa sociedade, de acordo com a autora, que sugere uma mudança de posicionamento frente às obras literárias: de reverência à crítica. Stuart Hall percebe que as classes menos favorecidas têm conquistado alguns espaços no âmbito cultural, mas adverte que tais espaços são “policiados, regulados” e que no lugar da invisibilidade o que existe é “uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada”. Ampliando a discussão acerca desses embates, o teórico diz que algumas estratégias podem “efetuar diferenças” e promover o descolamento “das disposições de poder”. E afirma que o único jogo que vale a pena é o da “guerra de posições culturais”. (HALL, 2011, p. 321). Hall (2011) enfatiza a ambiguidade que paira sobre esses espaços, pois, ao mesmo tempo em que o momento atual representa uma abertura para as margens, para o diferente, as classes dominantes desenvolvem políticas culturais para tentar homogeneizar a identidade, a partir do resgate das grandes narrativas da história, da língua e da literatura. À medida que vários grupos não se sentem contemplados na concepção de identidade construída pelas classes hegemônicas, eles vão reivindicando novas identidades e forçam a redefinição das que estão legitimadas. E é nessa simbiose, imposta pelas relações de forças simbólicas, que vão se reconfigurando as disposições do poder na estrutura social. Essas reflexões de Hall (2011) nos remetem à luta travada no campo da literatura pelos escritores dos CN, que insistem e persistem, a partir das suas próprias experiências, em expressar “contranarrativas” que valorizam a cultura negra e atuam na redefinição de 62 suas próprias identidades. Nessa guerra posicional, em que a página literária tornou-se o campo de luta, os autores dos CN redefinem as suas posições frente aos discursos produzidos pelas classes dominantes. Florentina Souza (2006) sintetiza o amplo universo abordado e o modo de atuação do escritor negro que, [...] seleciona e reelabora os dados culturais de que necessita para construir um desenho identitário positivo para si e para o seu grupo; tentará, por conseguinte, desvelar o apagamento e o desprestígio constituídos pela ocidentalização. Deste modo, assenhorando-se da cosmologia de origem africana dos mitos, rituais e símbolos, proporá práticas eficazes para repensá-los e reconstruí-los dentro de uma perspectiva que instala a discussão sobre a ambivalência da sua relação com o universo cultural do Ocidente. (SOUZA, 2006, p. 62, grifos nossos). Os CN investem na construção da identidade negra a partir dos contos e poesias que destacam a apresentação das situações de discriminação racial. Os processos de invisibilização corroboraram para dificultar a assunção de uma identidade negra nos discursos literários. Os textos dos CN mais do que rejeitam a assimilação de uma identidade negra atribuída pelo branco. Apresentam identidades negras construídas e reconstruídas pelas óticas de escritores e escritoras, fundadas na consciência da ancestralidade africana e afro-brasileira. Ainda seguindo as reflexões de Florentina Souza (2006), em síntese, a identidade proposta pelos CN tem bases na ancestralidade, nas culturas e religiões forjadas no encontro dos vários grupos étnicos durante a diáspora negra no Brasil com as tradições do Ocidente. Tal identidade é reatualizada continuadamente, numa relação dialógica com as necessidades, conflitos e conquistas do sujeito negro contemporâneo. 3.3 ABRINDO CAMINHOS PARA O LEITOR No salão de festas para as letras brasileiras, construído pelos CN e o Quilombhoje, o leitor negro é o convidado de honra, com partituras reinventadas para dar conta das vivências, dos anseios e desejos do sujeito negro. Uma festa orquestrada por maestros não apenas sensíveis ou solidários com as experiências do “outro” – maestros que são este “outro” que sentiu ou sente na pele, os efeitos nocivas da exclusão vigente em todos os setores privilegiados da sociedade. 63 Esse é apenas um dos aspectos contrastantes com o espaço literário instituído pelas elites dirigentes citado anteriormente, que usa habilmente a linguagem literária na tentativa de naturalizar papeis sociais desprestigiados para o segmento negro. Em linhas gerais, os textos que compõem o periódico apresentam outras caracterizações das personagens negras e brancas, a positivação de outros valores e o questionamento dos vigentes, a partir de um sujeito ou narrador construídos sob a ótica e vivência do escritor negro. Assim, amplia-se a possibilidade de percepção do leitor, haja vista a reorientação dos modos de ver literariamente a diversidade que constitui a população brasileira. Com relação aos recursos linguísticos, os escritores dos CN fazem uso da repetição de termos tais como “conscientizar, reflexão, mobilizar, resgatar, lutar, combater” e da redundância, por entenderem que “a eficácia do discurso estará mais garantida se o leitor for bem conduzido e sempre lembrado dos objetivos e intenções dos textos”. (SOUZA, 2006, p. 64). Esses recursos, conforme afirma Florentina Souza (2006, p. 64), os quais são rejeitados pela literatura instituída interessada na “novidade estética” que envolva o “leitor erudito,” são propositalmente usados pelos escritores dos CN, com o intuito de não somente angariar um amplo público leitor, mas também de fazer com que este se “detenha no que foi repetido” e apreenda “a razão/significado da insistência.” A autora acrescenta que os escritores dos CN utilizam a palavra “como instrumento de luta detentor de um alto poder de conscientização”. Em função disso, predomina na linguagem a intenção de “apelo” e “persuasão”, com vistas a motivar o negro a reagir diante das ainda recorrentes situações de discriminação e preconceito racial. (SOUZA, 2006, p. 83). Com efeito, os textos dos CN contribuem para desestabilizar os discursos literários que proliferam na sociedade brasileira que há muito tempo prestigiam apenas o modelo cultural de inspiração europeia e desqualificam os elementos culturais do segmento afrodescendente. Além das estratégias utilizadas nos textos literários, as fotografias presentes nas capas, os depoimentos publicados nas orelhas e contracapas, os textos de apresentação, introdução e prefácio contribuem para a efetivação da função social proposta pelos CN. Todos esses elementos, harmonicamente dispostos, ajudam a manter o leitor atento aos objetivos da antologia. Para Cuti (2010b), uma das motivações para o escritor negro libertar a sua subjetividade foi o surgimento do leitor negro em seu horizonte de expectativa. A partir de 64 então, o escritor passa a contar com a possibilidade de uma recepção solidária por parte do público. Cuti, ao usar a expressão “horizonte de expectativas” nos reporta aos estudos de Hans Robert Jauss e a Estética da recepção. De acordo com Jauss (1994, p. 24), o leitor deve ocupar uma posição central nas discussões sobre a historicidade da literatura que se sustenta “no experenciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores”. Nos estudos sobre as relações que se estabelecem entre literatura e leitor, segundo o autor, o horizonte de expectativa da literatura distingue-se da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.” (JAUSS, 1994, p. 52). Para a análise da experiência do leitor em um tempo histórico determinado, Jauss (2002) considera o caráter duplo do horizonte de expectativa: o “efeito”, como o momento condicionado pelo texto, e a “recepção”, condicionada pelo destinatário. Investiga-se, portanto, o diálogo entre o que é “interno ao texto” e o “mundivêncial” do leitor. De acordo com o autor, essa análise é importante para que se possa entender como as expectativas e experiências se encandeiam e se isso gera momentos de novas significações. (JAUSS, 2002, p. 46). O diálogo entre a obra literária e o leitor, segundo Jauss (1994), depende de fatores determinados pelo horizonte de expectativa, que vão desde as convenções do gênero, estilo e da forma, a fatores implícitos: “normas conhecidas ou poética imanente ao gênero”, “relação implícita com obras conhecidas do contexto-histórico literário” e a “oposição entre ficção e realidade” que está presente durante a leitura como possibilidade de comparação. Com relação ao último fator, o teórico explica que este inclui ainda “a possibilidade de o leitor perceber uma nova obra tanto a partir do horizonte mais restrito de sua expectativa literária, quanto do horizonte mais amplo de sua experiência de vida”. (JAUSS, 1994, p.2930). Em outras palavras, o horizonte de expectativas de um texto relaciona-se com as demandas que o leitor nutre com relação ao texto. Ao concluir as suas reflexões sobre a reescrita da história da literatura, Hans Robert Jauss (1994) propõe que se investiguem as contribuições da literatura para a vida social, pois sua função vai muito além da produção e da representação, elementos privilegiados pelos estudos das estéticas tradicionais. 65 Sayonara Amaral de Oliveira (2010), em seu estudo sobre a recepção de Paulo Coelho nos blogs do escritor, explica que as reflexões lançadas por Jauss no contexto de surgimento da estética da recepção, são fundamentais pela visibilidade conferida ao receptor no campo dos estudos literários. Segundo a pesquisadora: Extrapola-se a concepção comumente admitida nas teorias estéticas, que tomam o leitor como figura abstrata, entidade idealizada ou projetada no tecido textual. À medida que propõe uma historicidade do literário via recepção, o autor sinaliza para o leitor “real”, o leitor como sujeito histórico e “exterior” ao texto, com suas demandas, expectativas, experiências e valores. (OLIVEIRA, 2010, p. 29). No Brasil, o leitor negro esteve por muito tempo fora do horizonte de expectativa dos escritores. Cuti, no ensaio O leitor e o texto afro-brasileiro (2002), ao refletir sobre a experiência do leitor negro perante a produção literária brasileira, explica que este se sente como quem estivesse ouvindo uma conversa entre brancos, atrás da porta. Em função disso, para que o diálogo com essas obras literárias fosse estabelecido, a solução era afastar-se de si, de sua “concretude”, haja vista que o público-alvo pensado para tais obras não incluía o leitor negro. Na produção literária afro-brasileira insurgente, a tríade autor/leitor/texto/ está plasmada numa direção contrastante com a do ideal de brancura deflagrado na produção literária instituída. Com o leitor que adere ao “querer-se branco” e não encontra nessas produções “lugar no texto enquanto referência de discurso” ocorre uma estranheza que o desafia a “experimentar a subjetividade negra”, conforme as reflexões de Cuti (2002, p. 28). A partir da pergunta lançada por Maria Cândida Almeida (2008, p. 78), em seu ensaio sobre o leitor e a leitura através do texto afro-brasileiro, “Para quem escrevem os autores dos Cadernos Negros?”, podemos alargar a discussão apresentada por Cuti. Almeida parte da reflexão que o leitor brasileiro é formado na “tradição moderna literária ocidental”, o que significa dizer que na literatura disponível predominam três características: “cosmopolitismo, dicção masculina e ideologia branca”. A produção dos CN atua exatamente contra esse paradigma e, à vista disso, alguns textos [...] apelam para a tradição dos orixás, para um posicionamento político contra as estruturas do racismo e para a afirmação da identidade étnicoracial, causando um profundo estranhamento para nós, leitores formados nas convenções da leitura ocidental e termina por exigir de nós, de qualquer descendência étnico-racial, uma ampliação de nossos modelos estéticos e de nossos conceitos sociológicos. (ALMEIDA, 2008, p. 78) A estranheza citada por Cuti, quanto ao leitor que adere ao querer-se branco, é estendida a todos os leitores brasileiros, em função da formação a que foram submetidos, 66 conforme as reflexões de Almeida. No entanto, os textos dos CN desafiam o leitor a divagar por entre contos e poesias em que o modelo de produção diverge daqueles que sempre estiveram a sua disposição. Essa produção apresenta tanto outro enunciador ou enunciadora, quanto temáticas e referências culturais que foram ignoradas pela literatura canônica ou tratadas de modo inadequado. Assim, pode trazer como corolário, além da estranheza, o abalo dos conceitos enraizados no imaginário do leitor brasileiro por intermédio daquela tradição literária moderna. A produção literária do escritor negro, por apresentar-se de modo divergente da literatura instituída, ajuda a fomentar outra construção identitária. Esse escritor conquista o poder de falar de si e do grupo ao qual pertence e, desse modo, impõe outro modelo de representação. “Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade”, conforme pontua Tomaz Tadeu da Silva (2007, p. 91), em seu ensaio sobre a produção da identidade e da diferença. Florentina Souza, referindo-se aos escritores dos CN e do MNU, diz que ambos insistem na discussão de temas identitários, objetivando a construção de “uma identidade negra altiva e atuante”. Pressupõem “um grupo de leitores receptivos e em sua maioria afro-brasileiro”. Para alcançar o seu objetivo, “os textos investem em conselhos, sugestões, alegorias, palavras de ordem e uma linguagem simples que facilite o envolvimento e a adesão”. (SOUZA, 2006, p. 70). Referindo-se também ao tipo de leitor pressuposto pelos CN, Maria Cândida Almeida (2008, p.78) afirma que “O projeto que direciona os Cadernos Negros está delineado na busca do leitor afro-brasileiro em sua conformação multifacetada que torna visível a diferença e denuncia o racismo”. Cabe ressaltar que a concepção da literatura negra, no que se refere à reversão de sentidos, à correção de determinados estereótipos, almeja alcançar não somente o público afro-brasileiro, mas o leitor brasileiro no sentido amplo, com vistas a mudar o modo de percepção que o Brasil tem de sua composição etnorracial. Nessa perspectiva, ainda que a primeira preocupação do escritor negro seja dar margens para a composição de identidades negras positivas, pode-se inferir que a grande preocupação é alterar a maneira como as elites e os poderes hegemônicos representam a diversidade afro-brasileira. Não podemos perder de vista também que, embora o escritor dos CN, no ato da produção, eleja como leitorado privilegiado o afro-brasileiro, o seu desejo como o de qualquer outro escritor é atingir o maior número possível de leitores. Os CN disponibilizam, portanto, ao leitor brasileiro, em geral, textos literários que ampliam as possibilidades de 67 diálogo com a cultura plural na qual está inserido. Assim, ajudam na reconstrução do inconsciente coletivo que é adquirido, conforme as reflexões de Frantz Fanon. Reiteramos que os autores dos CN ensejam uma contribuição positiva para a construção identitária do leitor negro, especialmente no que se refere à autoimagem, a autoestima, e busca incentivá-lo a insurgir-se frente às situações de racismo e discriminação racial. Vale destacar que esse leitor passa a contar com a existência de personagens negros com os quais possa identificar-se. Tal identificação foi historicamente negada, tendo em vista os arquétipos negros disseminados pela literatura instituída. A almejada recepção solidária do leitor, por certo, depende de variáveis que vão além da intenção do escritor que o elege como público preferencial em seu texto. Variáveis que vão desde o contexto sociohistórico e cultural em que o leitor está inserido, as suas crenças, valores, repertório de leituras, até as suas experiências mais pessoais. Para o historiador Roger Chartier (1999, p. 181), “A leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: é pôr em jogo o corpo, é inscrição num espaço, relação consigo ou com o outro”. Diante dessa observação, não devemos perder de vista o fato de que as respostas dos leitores podem coadunar, divergir ou passar ao largo do horizonte de expectativas desses escritores. De todo modo, esse outro salão de festas das letras, o salão alternativo, está consolidado. E o leitor afro-brasileiro pode agora dançar em compasso com seus pares, ao som das canções que lhe representam positivamente. Caberá então indagar sobre o modo como determinados leitores se conduzem nessa festa ou como “respondem” à construção afirmativa da identidade negra proposta pelos Cadernos Negros. 68 4 COM A PALAVRA, O LEITOR QUILOMBOLA Ao refletir sobre a mulher na condição de leitora, Jonathan Culler (1997) em Sobre a desconstrução: teoria crítica do pós-estruturalismo, parte da seguinte indagação: “É suficiente ser mulher para ler como mulher?” Segundo o autor, pedir para que se leia como mulher é uma solicitação dupla, pois apela tanto para “identidade sexual” quanto para “as experiências associadas a essa identidade”. Em seu texto, Culler destaca o histórico de “dominação masculina” com relação à produção e circulação de discursos tidos como neutros, mas que influenciam as leitoras a serem solidárias com representações negativadas de si. Apesar de admitir que seja difícil definir o que seria ler como mulher, o autor propõe: “ler como uma mulher é evitar ler como um homem, identificar as defesas específicas e distorções das leituras dos homens e providenciar reparações.” (CULLER, 1997, p. 66). O autor acrescenta: Uma mulher ler como uma mulher não significa repetir uma identidade ou experiência que é dada, mas assumir um papel que ela constrói como referência à sua identidade como mulher, que é também uma construção, de modo que a série pode continuar: uma mulher lendo como uma mulher lendo como uma mulher. A não-coincidência revela um intervalo, uma divisão interna à mulher ou a qualquer sujeito leitor e à “experiência” daquele sujeito. (CULLER, 1997, p. 77). O ato de ler, de acordo com Culler, é influenciado tanto pelas experiências literárias quanto por aquelas não-literárias vivenciadas e interpretadas de diferentes maneiras por cada sujeito. Segundo o autor, a mulher, ao assumir o papel de leitora, toma como referência a sua “identidade”, termo compreendido na mesma clave do pensamento de Stuart Hall (2007), que o define como uma construção sempre em processo de transformação, influenciada por fatores sociais, históricos e culturais, e, desprovido de essencialismos. Por conseguinte, o posicionamento da mulher diante de um mesmo texto pode ser modificado em função das múltiplas identidades que ela assume ou abandona ao longo de vida. Em síntese, “ler é fazer o papel de um leitor e interpretar é propor uma experiência de leitura”. (CULLER, 1997, p. 80). Embora Culler trate especificamente da mulher na condição de leitora, a sua discussão é produtiva para se pensar também o leitor afro-brasileiro, público preferencial do projeto coletivo Cadernos Negros. Adotando esse público como ponto de referência, a questão que se delineia é: basta ser negro para ler como negro? Se a mulher é levada a comungar das ideias propagadas pela dominação masculina, em virtude da imposição de 69 discursos que se pretendem universais, conforme as reflexões de Culler, no caso do leitor negro brasileiro, a dominação é branca. Muitos negros e negras introjetaram estereótipos negativos acerca do seu segmento etnorracial, em função disso, buscam autovalorização e reconhecimento por meio da internalização e reprodução dos valores do grupo economicamente dominante, o branco. Desse modo, pode-se inferir que a posição de leitores negros frente às obras literárias também sofre as influências dessa hierarquização. Reiteramos que, na maioria das obras que compõem a cena literária brasileira, o negro e a negra na condição de personagens foram excluídos ou incluídos de forma negativada e enquanto leitores foram induzidos a afastar-se de si e a ocupar o lugar do “outro”, identificar-se com “outro”, o branco, na realização de suas leituras. A afirmação do segmento negro no Brasil, em linhas gerais, relaciona-se com a releitura de suas histórias e, por conseguinte, das histórias do país, na valorização de sua cultura, religiões e de suas características fenotípicas. É possível que, com esse processo em curso, a posição do leitor negro ante as obras literárias seja redimensionada e o sujeito negro leia como tal. Ademais, a literatura negra pode acionar e municiar o processo de construção social positiva dos sujeitos negros. Não se pretende, contudo, discutir o que é ser negro no Brasil, uma vez que essa é uma construção dinâmica, a qual aponta para a diversidade das experiências tanto individuais quanto coletivas dos sujeitos, num intenso e contínuo processo de negociação. Nesse sentido, Stuart Hall adverte que a fixação de um significado, tomando como exemplo o sujeito “negro”, levaria a uma discussão inútil em torno de que algo é negro ou não. Segundo o autor, “é somente pelo modo no qual representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber como nos constituímos e quem nós somos”. (HALL, 2011, p. 327). Assim, orientando-se pelas reflexões de Culler acerca da mulher, que, na condição de leitora, assume um papel que ela constrói tendo como referência a sua identidade também em construção, investiga-se neste estudo o modo como os estudantes pertencentes a uma comunidade quilombola se representam no contato com textos literários que os convocam a identidades negras afirmativas. Sem, contudo, tencionar a pretensão de uma apreciação conclusiva do que seja ler como negro. Os sujeitos desta pesquisa são estudantes que compõem a turma do 1º ano do Ensino Médio de uma escola situada no distrito de Tijuaçu que, como vimos na primeira seção deste estudo, foi reconhecido como comunidade quilombola em 2000. Essa escola é uma extensão do Colégio Estadual Senhor do Bonfim (CESB), com sede na cidade de Senhor do 70 Bonfim, Bahia. A escolha dessa turma foi motivada pelo fato de que, a respeito da leitura literária, ainda que seja praticada em todas as fases da formação escolar básica dos estudantes, é a partir do Ensino Médio que se destina uma carga horária obrigatória para a literatura dentro do programa da disciplina Língua Portuguesa. A turma é composta por 14 estudantes, 11 são do sexo feminino e 03 do sexo masculino, com idades que variam entre 13 e 19 anos. A maioria reside na sede do distrito de Tijuaçu e os demais em fazendas que fazem parte do perímetro quilombola. Para assegurar o direito de anonimato dos estudantes pesquisados, são utilizadas, neste estudo, as siglas SF e SM referindo-se, respectivamente, aos sujeitos do sexo feminino e aos do sexo masculino. Reiteramos que tais estudantes pertencem a um contexto social cujos elementos da etnorracialidade negra quilombola são evidenciados cotidianamente, tanto nas práticas culturais, com destaque para o samba de lata, quanto em outros símbolos representativos da comunidade, por exemplo: o acarajé. Destaca-se também a festa de São Benedito, a celebração mais aguardada do ano. Dentre os estudantes pesquisados, alguns participam de um grupo de dança, financiado pelo Programa Brasil Quilombola, chamado Corta cana cujas coreografias são inspiradas em tradições afro-brasileiras. O nome Corta cana é uma homenagem aos tijuaçuenses que, na década de 1930, ao fugirem da seca em direção ao sul da Bahia para trabalharem nos canaviais, foram submetidos ao trabalho escravo. Para além dessas práticas culturais mais tradicionais, os estudantes também articulam-se com referências do contexto cultural contemporâneo. Afora o tempo investido nos estudos, os sujeitos pesquisados trabalham em casa ajudando os pais nas tarefas domésticas e utilizam parte do tempo livre assistindo a programas de televisão, jogando futebol ou navegando na internet, sendo que a principal forma de acesso a essa mídia se dá por meio de uma lan house que funciona na comunidade. No que se refere às experiências de leitura literária, os estudantes relataram que conhecem alguns clássicos infantis oriundos ou inspirados em narrativas da tradição oral, a saber: Chapeuzinho Vermelho e Cinderela cujas versões mais divulgadas foram às escritas por Charles Perrault; Branca de Neve e A Bela Adormecida, dos irmãos Grimm; Os três Porquinhos de Joseph Jacobs; O Patinho feio de Hans Christian Andersen; A Bela a Fera de Jeanne-Marie Beaumont; A cigarra e a Formiga de Jean de La Fontaine; entre outros. Acrescenta-se a essas experiências o contato com o material resultante do projeto Estórias Quilombolas (2010), coordenado pela Secretária de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade (SECAD) e distribuído pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) para 71 escolas públicas, preferencialmente as que estão localizadas em áreas quilombolas. O referido material é composto pelos livros Estórias Quilombolas, com narrativas oriundas da tradição oral que fazem parte do imaginário das comunidades quilombolas dos estados de Minas Gerais, Maranhão, Rio Grande do Sul e Goiás, Minas de Quilombo (em formato de história em quadrinhos), com foco nos quilombos de Minas Gerais e Yoté: o jogo da nossa história, com ênfase na vida e na obra de importantes personalidades negras brasileiras26. No acervo literário da biblioteca da escola, locus desta pesquisa, não há exemplares dos Cadernos Negros, embora o MEC distribua essa antologia, há mais de uma década, para as bibliotecas das escolas públicas no Brasil, contribuindo para a efetivação da Lei n. 10.639/2003 que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, cujos conteúdos devem ser ministrados preferencialmente nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileira. Considerando que parte do acervo literário de cada unidade escolar é composta das obras solicitadas pelos docentes, dentre as que estão disponibilizadas pelo MEC, a nossa hipótese sobre essa ausência é que tal antologia não tenha sido solicitada, o que somente vem confirmar a pouca representatividade que a literatura negra ainda apresenta no cenário da cultura nacional, conforme apontado por Dalcastagné (2012). Para as oficinas pedagógicas de leitura e produção textual, objetivando colher dados necessários à realização desta investigação, foram selecionados contos dos CN nos quais os enredos evidenciam, em linhas gerais, a intenção de fomentar construções afirmativas de identidades negras. São eles: “O anjo”, de Débora Garcia, e “O tapete voador”, de Cristiane Sobral, denunciando o mito da democracia racial; “Minha cor”, de Raquel Almeida, e “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem”, de Ademiro Alves, tratando da desconstrução de estereótipos; “Cauterização”, de Cristiane Sobral, e “As máscaras de Dandara”, de Serafina Machado, abordando a beleza negra. Esses contos foram publicados nos CN 30, 32 e 34. No primeiro contato com exemplares dos Cadernos Negros nas oficinas, os estudantes revelaram que não conheciam o periódico e mostraram-se admirados quanto às imagens das capas e igualmente curiosos quanto ao conteúdo dos livros. Os CN 30, 32 e 34 trazem em suas capas representações femininas, (vide anexos A, B e C). No CN volume 30, metade da capa é preta e a outra metade verde claro, com bordas em verde, vermelho e amarelo. Na parte verde clara, destaca-se uma fotografia que apresenta o ombro despido e o rosto em perfil de uma jovem negra usando um brinco vermelho em sua orelha. No volume 26 Além de estar disponível na biblioteca, o material resultante do projeto foi distribuído para todos os estudantes matriculados na escola, locus desta pesquisa. 72 32, a capa é preta e as bordas em cores laranja, preta e vermelha, no centro, há uma fotografia de uma garota negra com os cabelos crespos encaracolados, lendo um livro. E no volume 34, a capa em cor laranja traz o desenho de uma mulher negra de perfil com a cabeça erguida carregando um tacho, e ao fundo, uma cidade. Nas três capas descritas, há uma sequência imagética que começa com a exaltação da beleza do corpo negro, a correlação mulher e labor intelectual e na última capa o papel central da mulher na construção da sociedade brasileira. Destoando, portanto, das imagens estereotipadas comumente vistas da mulher negra na mídia eletrônica e impressa, essas capas apresentam contra-imagens que sugerem contranarrativas dos discursos de inferiorização historicamente propagados. As oficinas de leitura e produção textual foram realizadas durante quatro encontros, com início às treze horas e término às quinze e trinta, num total de dez horas. Os três primeiros encontros foram divididos em dois momentos. Em cada um dos momentos lemos um conto silenciosamente, depois em voz alta e ao final conversamos sobre o conto. A conversa foi motivada por perguntas que versaram sobre as impressões acerca do conto, as atitudes dos personagens e as vivências dos estudantes com relação às temáticas abordadas nas narrativas. Como técnica de investigação, seguimos, no decorrer das oficinas, as orientações quanto aos procedimentos de trabalhos com grupos focais, por entendermos que tais procedimentos servem aos objetivos propostos neste estudo. De acordo com Bernadete Gatti (2012, p. 11), o grupo focal permite que se conheçam as “representações, percepções, crenças, hábitos, valores, restrições, preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no trato de uma dada questão por pessoas que partilham alguns traços em comum, relevantes para o estudo do problema visado.” E como instrumento de coleta de dados foi utilizado o diário de campo para registrar os principais acontecimentos e as impressões acerca do grupo e um gravador de áudio, a fim de capturar, com mais tranquilidade, as falas dos sujeitos da pesquisa. Durante as conversas sobre os contos, foram consideradas as orientações de Gatti (2012) sobre o modo de atuação do pesquisador em grupos focais cujas funções, nesse momento, restringem-se a lançar perguntas e organizar os momentos de fala para que as discussões fluam. Com esse posicionamento, espera-se que o pesquisador interfira o mínimo possível na construção das opiniões dos participantes do grupo. De acordo com Bernadete Gatti (2012), o grupo focal faz emergir uma multiplicidade de pontos de vista e processos de emoções em função do contexto de 73 interação em que os sujeitos da pesquisa estão envolvidos. Desse modo, é possível que o pesquisador capte significados que em outros contextos poderiam ser difíceis de se manifestar. Dentre os contos lidos, o que mais empolgou o grupo foi “Minha cor”, de Raquel Almeida, principalmente no final da narrativa, momento em que a protagonista diz que não é suja, nem mula, que ela é afro, negra, da pele preta. Já na própria expressão facial dos estudantes, foi possível perceber a satisfação com relação ao desfecho do conto. A proposta para o quarto encontro foi a produção de uma carta pessoal endereçada para o escritor ou para um personagem do conto. Para essa produção, foi esclarecido que os sujeitos da pesquisa poderiam dizer o que quisessem aos destinatários. Assim, após folhearem os seis contos trabalhados nas oficinas, cada estudante escolheu um, releu silenciosamente e em seguida produziu a carta. A carta pessoal foi eleita como corpus principal de análise neste estudo, por se tratar de uma produção textual livre, em que o remetente pode dizer o que sentir vontade ao destinatário e assim, pode revelar-se, mostrar-se para o outro. A carta significa “um olhar que se lança sobre o destinatário [...] e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo”, no dizer de Michel Foucault (2006, p. 156). Nas cartas produzidas pelos estudantes, há vários problemas de redação referentes às prescrições da gramática normativa da Língua Portuguesa, reflexo da fragilidade da escola pública brasileira no que diz respeito à promoção dessa habilidade. Contudo, tais problemas não constituíram obstáculos para a compreensão geral dos textos, os quais foram aqui transcritos conforme a versão original. Neste estudo, sem pretender esgotar as nuances discursivas postas nas cartas, mas enforcar os temas postos em questão, as análises são mescladas com as apreciações sobre comentários feitos pelas estudantes no decorrer das oficinas. Para favorecer a reflexão sobre o modo como determinados leitores da comunidade negra de Tijuaçu “respondem” aos processos de identificação lançados pelos Cadernos Negros, agrupamos as cartas em categorias analíticas criadas com base nos posicionamentos predominantes dos leitores frente aos contos dos CN. No entanto, com tais categorias não se pretende estabelecer uma rotulação rígida, pois, os leitores podem, simultaneamente, pertencer a mais de uma, haja vista o entrecruzamento de posições implícitas nos enunciados de cada texto. São três as categorias esboçadas: leitores sabotadores, leitores em contradição e leitores solidários, as quais são apresentadas e justificadas a seguir. 74 4.1 LEITORES SABOTADORES Nas cartas do primeiro grupo, nomeado de leitores sabotadores, destaca-se o distanciamento entre o que tencionam os contos quanto às questões etnorraciais e a recepção manifestada pelos leitores. Com base nos conteúdos das cartas alocadas nessa categoria, verifica-se que os discursos de algumas vão de encontro à proposta do coletivo literário Cadernos Negros e que outras não se atêm às questões centrais apontadas nas narrativas. Tais cartas nos remetem às reflexões de Maria Cândida Almeida (2008, p. 69) acerca do leitor sabotador de uma ordem idealizada que “busca livros proibidos, lê fora de hora, compreende a sua maneira cada palavra, põe rostos desconhecidos ao escritor nas personagens, lê a ele mesmo como personagem, enfim, desobedece ao controle pretendido pelos produtores do livro”. Pode-se atribuir essa “desobediência” do leitor, à ambiguidade que atravessa a experiência de leitura ou a qualquer outra experiência humana, que conforme Antoine Compagnon (2010, p. 161), situa-se entre “compreender e amar, entre a filologia e a alegoria, entre a liberdade e a imposição, entre a atenção ao outro e a preocupação consigo mesmo”. Não obstante, aos nos apropriarmos da imagem do leitor sabotador nesta categorização, o conceito de sabotagem diverge do sentido proposto por Maria Cândida Almeida – o de uma fruição livre e positiva, extrapolando o controle de interpretação pretendido pelo autor. A liberdade de leitura praticada pelos leitores/produtores das cartas analisadas nos sugere um aprisionamento em ideias que estão a serviço da manutenção do preconceito e da discriminação racial. Pode-se inferir, então, que o exercício da liberdade de leitura está atrelado aos vários discursos que constituem o sujeito. De: SF1 (16 anos). Para: Ademiro Alves (Sacolinha), autor do conto “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem”. Querido Ademiro Alves seu conto mostra a realidade. Eu não tenho discriminação com ninguem mas se as pessoas tiverem dando risada se a pessoa for feia eu tambem do risada junto. Cada um tem seu jeito de ser mas o conto fala a verdade ele mostrou seu talento para todos por isso que todo mundo é igual é só erguer a cabeça pra frente e não ligar mas Ariano ele começou a tocar instrumentos para esquecer o passado mas será que ele tocava instrumento porque era feio pra pessoas se admirarem porque ele tocava mas isso não importa. 75 Vou dizer a realidade eu gosto muito de dar risada das pessoas que é louca assim um pouco diferente de nós mas eu acho que isso é normal mas eu não gosto de si misturar com pessoas que são muito diferente, mas de pessoas mais certas eu estou dando a minha opinião Ariano foi muito besta se ele era feio nada ia mudar ele ja nasceu assim agora ele aguente as pessoas dando risada dele batendo nele se ele era feio, a vida é assim mesmo Ademiro Alves eu gostei de ler seu conto gostei de verdade ser negro é normal, eu não ligo para essas coisas, branco, negro pardo para mim tanto faz feio ou bonito mas quem é feio não quer ser, é claro, todo mundo queria ser bonito tem muita gente feia nesse mundo por isso que tem racismo mas eu não quero me misturar com pessoas feias porque as pessoas vão dar risada de mim também, só tenho isso pra falar. Eu tenho mais coisas pra falar o autor também é racista todas as pessoas que falam de negro em texto ou conto porque também é. O conto “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem” publicado no CN 32 (2009) traz a história de Ariano, um rapaz negro bem sucedido que largou a gerência de um banco para seguir carreira musical. Entretanto, para chegar onde chegou, teve que vencer a fome quando era criança, o preconceito racial na faculdade e, depois, nos mais diversos contextos. Certa feita, Ariano foi apresentar-se em uma conferência econômica na Suíça, representando o banco em que trabalhava, quando um dos convidados, ao chamar Ariano de negão, pediu para ele tocar um samba. Ariano então pegou o instrumento de cordas e soltou a voz no microfone. Cantou e tocou Bossa Nova e MPB, depois cantou em inglês Bob Dylan, Marvin Gaye e Ray Charles e todos ficaram pasmos. Em linhas gerais, o conto desvela as ideologias das classes dominantes que, na teoria, asseguram oportunidades iguais para todos, mas na prática colocam o negro em desvantagem e incita o sujeito a insurgir-se diante das situações de discriminação racial, conforme fizera Ariano. Diante do episódio da apresentação na conferência internacional, o narrador conclui: “A partir daí, andava de cabeça erguida, não levava desaforo para casa, nem usava da violência. Procurava seus direitos. Estava se impondo.” (CN 32, p. 17). A narrativa contempla também a afirmação das religiões brasileiras de matriz africana, referendando positivamente a relação de Ariano com os orixás, com a ancestralidade e o atabaque. Está explícito no conto o desejo de reversão de estereótipos inventados para os negros, tendo como clímax o momento final, em que Ariano surpreende o público, mostrando que conhece vários estilos musicais. Tal atitude corrobora a desestabilização dos modos como a sociedade brasileira acostumou-se a enxergar o negro no âmbito cultural, investindo, portanto, contra o estigma de que, nesse campo, ele conhece somente o samba. 76 Na carta redigida para o autor do conto, SF1 começa dizendo que não discrimina ninguém. Declaração recorrente no contexto brasileiro quando se discute a problemática do racismo. Contudo, ainda no início do texto, revela a sua identificação e a sua disposição para cooperar com o grupo opressor e sugere ao oprimido que se conforme com as agressões ou faça de conta que elas não existem. Esse modo de pensar nos reporta ao período escravocrata, quando, ao coisificar o sujeito negro, naturalizava-se a violência física e verbal praticada contra ele. Os resquícios do processo de desumanização ainda são visíveis nos dias de hoje, pois, em várias situações, a violência praticada contra o negro é vista como algo natural. Ariano, protagonista do conto, é negro. A leitora, de imediato, cogita a possibilidade de que ele seja feio no momento em que questiona sobre o motivo que o levou a tocar o instrumento. Isso nos revela a força do discurso que associa a negrura à feiura ainda vigente na sociedade brasileira, um discurso que foi tão fortemente introjetado por SF1, levando-a a sabotar a mensagem positiva proposta pelo conto, o qual, em nenhum momento faz referências à beleza ou à feiura. SF1 reitera que a vítima de agressões tem de apenas suportar, porque segundo ela não há outro caminho possível. Talvez, por acreditar na impossibilidade de mudança, opta por identificar-se com aquelas pessoas que se enquadram num determinado padrão e que por isso são aceitas. Pode-se inferir que a leitora investe em tal comportamento por acreditar que esse é o modo de evitar tornar-se alvo. Seria então uma forma de proteger-se, conforme se verifica no seguinte trecho: “[...] eu não quero me misturar com pessoas feias porque as pessoas vão dar risada de mim também”. Esse receio de tornar-se alvo é evidenciado também em outra fala de SF1, após a leitura do conto “O anjo” de Débora Garcia, durante as oficinas: “[...] Fiquei muito triste porque pode acontecer com qualquer um de nós, isso é preconceito.” Percebe-se a preocupação da autora da carta em dizer que se ajusta ao padrão socialmente aceito e afirmar que exclui as pessoas diferentes. É provável que ela esteja se referindo ao padrão que se aproxima do branco, uma vez que este, tanto nos aspectos culturais quanto estéticos, é o mais valorizado. A crença de que existe um único padrão é resultante de uma formação ideológica que desqualifica as diferenças, transformando-as em anormalidades sociais e produzindo, assim, práticas intolerantes. A leitora segue em seu discurso revelando a sua posição conflituosa quanto ao racismo: reafirma que não é racista, mas sabe que o racismo existe e que a causa dele é a feiura, conforme o trecho que segue: “tem muita gente feia nesse mundo por isso que tem 77 racismo”. É possível perceber que SF1 sabe que se declarar racista é assumir uma posição no mínimo desconfortável, por isso usa a feiura como subterfúgio para tentar velar o próprio preconceito. Em síntese, ela diz que não é racista, apenas não gosta de pessoas feias, mas em seu discurso está implícito que pessoas negras são feias. A leitora diz que só há racismo por conta da existência de pessoas feias. A partir dessa declaração, pode-se inferir que ela responsabiliza Ariano pelo preconceito sofrido e isenta de culpa aqueles que promoveram a violência física e verbal contra o personagem, porque essa seria uma atitude natural diante do diferente. Seguindo esse raciocínio, o discriminado seria o culpado, pelo simples fato de existir e destoar do padrão imposto. A leitora conclui dizendo que tanto o autor quanto todas as pessoas que escrevem sobre o negro são racistas. Isso nos remete a outras artimanhas discursivas utilizadas por pessoas racistas quando estas são denunciadas: tenta-se inverter a situação, atribuindo à vítima o status de racista consigo mesmo. No discurso de SF1 atua a ainda operante carga semântica negativa atribuída ao signo negro e as consequências dos silêncios impostos pelas elites dirigentes sobre as conflituosas relações raciais no Brasil, as quais vigoraram durante décadas após a abolição. Silêncios, que no âmbito legal, passam a ser rompidos somente no final da década de 1980, com a implementação da Lei n. 7437/1985 que considera o racismo crime inafiançável. O texto de SF1 nos informa que, mesmo quando a voz do sujeito negro ecoa as suas subjetividades na intenção de descontruir estereótipos, combater o preconceito e a discriminação racial, conforme ocorrera no conto “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem”, o seu discurso pode ser recebido de forma distorcida, resultado de construções pejorativas acerca do negro, que ainda estão cristalizadas na mente de muitos brasileiros. De: SM2 (19 anos). Para: Serafina Machado, autora do conto “As máscaras de Dandara”. Eu queria te dizer que gostei muito do seu conto é uma história que no começo a menina não gosta de sua aparencia mais no final ela se dar conta que para ser feliz não precisa ser de cor diferente é só fazer muitas amizades eu queria dizer para Serafina Machado continuar fazendo contos interesantes como esse fiquei muito feliz quando Dandara caiu na real que ser negra não era ser diferente dos outros por dentro, só po fora, mas por dentro todos nós somos iguais boa sorte Serafina Machado, continue escrevendo tão bem assim. Gostei muito, parabéns. 78 Em “As máscaras de Dandara” (CN 32, 2009), a protagonista do conto, Dandara, tinha pavor de estar com outras pessoas. E, por conta disso, resolveu esconder-se atrás de máscaras simbólicas. Dentre as várias máscaras usadas por Dandara, havia a de madeira, que ela usava quando se sentia sozinha; a de papel, quando era excluída; a de desprezo, quando invejava alguém; a de indiferença, usada diante de olhares inquisidores, entre outras. No conto, Dandara foi vítima de discriminação e preconceito racial em vários momentos de sua vida. Ela vivenciou esse conflito desde a exclusão em grupos de trabalho na escola, embora fosse uma aluna brilhante, até à recusa de um diretor para contratá-la como professora. O sofrimento de Dandara não acaba, mesmo tendo sido aprovada em concurso público para o cargo de professora, pois continua sendo excluída no ambiente de trabalho. Certo dia, Dandara esbarrou em um novo professor da escola, com quem começou a namorar. No motel, com o namorado, Dandara não sabia que máscara usar, sentiu medo, refugiou-se no banheiro e, em frente ao espelho começou a se tocar, a se enxergar e a sentir orgulho do seu corpo e da sua pele negra. A protagonista do conto é vítima da imposição de um padrão único de beleza, o branco. Como consequência, Dandara desenvolveu uma baixa autoestima e a rejeição de sua autoimagem: “No fundo, achava-se feia, pouco atraente, pois era o que sempre diziam sobre ela; que era feia e tinha cabelo pixains que nunca cresciam.” Contudo, no desenrolar da narrativa, contrariando os discursos de inferiorização do negro e da negra em suas dimensões físicas, culturais e intelectuais, Dandara consegue quebrar as correntes invisíveis que tentavam aprisioná-la e com “negratitude” reconhece sua beleza física e o valor de suas conquistas: “Olhou-se no espelho. Nua, negra, linda. Admirou-se. Passou as mãos nos cabelos. Tocou o nariz, as orelhas...Tocou levemente o queixo.[...] Amava-se.” Esse conto apresenta fases de um processo de construção identitária que vai da introjeção à reversão de estereótipos cuja consequência foi a afirmação da identidade negra da protagonista. De acordo com a leitura de SM2 na carta que dirige à autora do conto, Dandara superou a discriminação racial fazendo amigos. Trata-se de uma possibilidade de leitura que diverge das perspectivas postas no conto e que se alinha com o ideário que permeia a mente de muitos brasileiros, referente às estratégias individuais para tentar minimizar os conflitos raciais: tornar-se popular. Entretanto, esse esforço pessoal, com vistas à aceitação num grupo, contribui para maximizar os efeitos do racismo, pois os que não aceitam jogar o jogo da popularidade são responsabilizados pela discriminação que sofrem; e os que aceitam as regras contribuem para alimentar o mito da democracia racial. 79 O leitor destaca que ser negro é ser diferente apenas por fora. É possível perceber, pelo tom do discurso, que tal diferença, para SM2, constitui-se num fardo que pode ser atenuado pelo fato de que, por dentro, “todos somos iguais”. Esse modo de pensar é, por certo, influenciado pelos discursos de inferiorização propalados acerca do negro desde o período colonial e ainda operante nos dias de hoje. Tais discursos obtiveram como resultado a introjeção de estereótipos negativos por muitos negros, dificultando, assim, as ações de enfrentamento ante as situações de discriminação racial. No decorrer das oficinas, após a leitura do conto “Minha cor” de Raquel Almeida, o leitor, antes de redigir a carta, disse que se identificou com a protagonista: “Fiquei feliz, porque ela não se sentiu mal, ela se orgulhou de ser negra, não ficou triste [...] gostei da personagem porque ela gosta de ser negra.” Embora SM2 aprove a atitude da protagonista do conto, cogitou a possibilidade de ela se sentir mal ou triste, e isso também nos dá indícios da força do imaginário nacional acerca do negro, que ainda o associa a referências negativas. As percepções de SM2 distanciam-se do que pretende fomentar o projeto coletivo Cadernos Negros no leitor afro-brasileiro. Por certo, a mensagem transmitida pelos contos, referendando construções positivas do negro contraria as ideias que foram introjetadas pelo leitor ao longo de sua formação. SM3 (16 anos). Para: Débora Garcia, autora do conto “O anjo”. Para Débora Garcia Querida Débora Garcia Eu achei seu conto muito intrigante você me agradou muito sabe como? eu não era muito de ler mais depois que eu li seu conto você me mudou muito você me ajudou a escolher a minha profissão vou ajudar as pessoas vou me tornar bombeiro e salvar os que merecem e os que não merecem e dar uma segunda chance aos que não dão valor a vida e aos que não dão valor a vida dos outros você me inspirou muito com seu conto muito obrigada por tudo que você me encinou bastante o meu nome é..., tenho 16 anos, vou faser dezessete esse ano ano passado não tinha visto nem o calendario quanto mais lê, não tinha lido a dois anos esse ano mudou minha vida você mudou minha vida e agora eu dedico maior parte do meu tempo a leitura seu trabalho é muito bom você é igual ao anjo para mim assim como o anjo que ajudou a escolher o destino de Inácio você me ajudou a escolher o meu muinto obrigada por tudo meu anjo. Beijos e sempre bom conhecer pessoas como você. 80 Em poucas palavras, o conto “O anjo” (CN 34, 2011) apresenta a história de Inácio, um bombeiro que, desde criança era fascinado pelo fogo. Certo dia em que estava de plantão no quartel, ao assistir à propaganda do filme O Auto de Natal, lembrou-se de um episódio que aconteceu na infância, quando na escola, a sua professora resolveu montar uma peça sobre esse mesmo filme. Inácio pediu à professora para representar o papel de anjo. Ela tentou ignorar o pedido, mas após muita insistência diz que ele não pode ser o anjo porque o anjo é branco e Inácio é negro. Sofrendo a gozação da turma, Inácio sai correndo e coloca fogo em todas as lixeiras da escola. A mãe de Inácio vai buscá-lo na escola, contoulhe a história de suas origens e do povo negro e concluiu dizendo que pela lei todos nós somos iguais, mas que na prática é preciso saber como lidar com as situações em que ocorrem preconceito e discriminação racial. Sendo necessário, então, aprender, a jogar o jogo. E jogando o jogo, Inácio tornou-se bombeiro, o anjo da vida de muitos. A narrativa incita questionamentos quanto à representação de anjos incutida no imaginário ocidental, naturalizada na cor branca, e discute o acolhimento e propagação de ideologias racistas no contexto escolar, o que contribui para a manutenção da ideia de que vivemos em harmonia racial. Está subjacente ao enredo uma reflexão acerca de como se constrói e funciona a engenharia ideológica brasileira, que tenta manter inalteradas as posições hierarquizadas previamente estabelecidas e que historicamente favorecem o segmento branco da sociedade brasileira. Embora a questão central no conto seja a superação da discriminação racial, SM3 deteve-se na capacidade do conto em despertar o seu hábito de leitura e na escolha da profissão feita pelo protagonista, que o inspira em sua escolha também. Trata-se de uma recepção inesperada, se considerarmos somente o que pretendíamos com as oficinas de leitura e produção textual: analisar as percepções dos estudantes diante de textos que os convocam a identidades negras positivas. Entretanto, como cada leitor lê a seu modo, focando o que lhe é relevante no instante da leitura, é natural que SM3, um estudante com quase 17 anos, cursando o Ensino Médio, tenha feito a sua leitura na perspectiva das suas inquietações quanto ao futuro profissional. Hans Robert Jauss (1994, p. 29) considera que o controle da recepção exercido por uma obra é parcial; contudo, há na obra uma série de elementos que “predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida” e “conduz o leitor a determinada postura emocional”, antecipando um “horizonte geral da compreensão vinculada”. Na carta analisada, percebe-se que o leitor não foi envolvido pela teia de elementos que o conduziria para a questão central do conto, entretanto, as outras temáticas que tangenciam a narrativa 81 contemplaram expectativas específicas desse leitor. Essa recepção nos direciona também para as reflexões de Umberto Eco (1986) sobre a construção do “leitor-modelo”. De acordo com Eco, todo autor de um texto constrói, por meio de estratégias textuais, um “leitormodelo”, uma projeção ideal. No entanto, tal projeção não condiz necessariamente com o leitor “real”. Este último pode perfeitamente desviar-se da proposta idealizada pelo autor. No decorrer das oficinas, SM3 emitiu a sua opinião acerca de alguns contos, a saber: “Eu gostei de Ariano porque ele venceu o preconceito e mostrou a todos a nossa cultura”, após a leitura de “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem” e “Dandara foi tola, eu no lugar dela não fugia da minha própria identidade, eu iria de cabeça erguida para a escola e não ia me importar com os comentários, seguia em frente [...] Ela perdeu parte da infância e da adolescência se escondendo atrás de máscaras, sendo tão inteligente, teve uma atitude tão tola.” Nestas últimas falas, ele se refere ao conto “As máscaras de Dandara”. Tomando por base tais depoimentos, percebe-se a identificação do leitor como pertencente ao mesmo segmento social de Ariano, o negro, quando diz que tal personagem mostrou a todos “a nossa cultura”, e a reprovação do comportamento daqueles que são negros, mas não assumem. Contudo, ao sugerir que Dandara não se importe com os comentários, SM3 incentiva a não reação frente às situações de discriminação racial. E, a não reação é uma das formas de fortalecer o racismo no Brasil, visto que quem comete tal crime escora-se no silêncio da vítima para dar continuidade às suas práticas discriminatórias. Nesse sentido, o posicionamento de SM3 passa ao largo do que alguns contos lidos pretendem incitar: o enfrentamento ante as situações de discriminação racial. E é isso que ocorre nesse desvio da temática racial para a temática da escolha profissional em sua leitura do conto “O anjo”. De: SF4 (15 anos). Para: Inácio, personagem do conto “O anjo” de Débora Garcia. De:... Para: O Anjo: Gostei muito da sua atitude de vida mesmo que você não tenha feito nada de errado, tirando fogo na lata de lixo. O negro sofre preconceito até hoje mas não so os negros tem uma coisa pra ser motivo de riso. Sou meio gordinha e sofro muito BULYING. Fico muito triste as vezes vou pra outro lugar e fico mim sentindo escluída. 82 Vou para casa chorando e fico mim perguntando o que eu tenho de diferente dos outros. mas depois, eu penso, nem todos são inguais, então parei de olhar para os outros e passar a mim dar valor. eu não ligo mas porque eu nascir assim vou morrer do jeito que eu sou. Gostei muito da sua atitude. foi muito legal e não achei graça nem uma quando seus amigos riram de você eu gosto muito da galinha pintadinha. muita gente manga de mim, também, mas eu não ligo mais. Mim senti como você quando zombaram da sua cara, isso também acontece comigo, é sempre aquele refrão. gorda, balofa, baleia asacina, minha vez vai chegar e não e ficar zombando de ninguém que vai adiantar. Talvez eu possa conseguir o que eu quero. Bjj... SF4 aprova a atitude de reação de Inácio, protagonista do conto, diante da situação de discriminação racial e aproveita para relatar que também é alvo de preconceito por ser “gordinha” e por gostar da “galinha pitadinha”. Porém, ela adota uma postura diferente da de Inácio, pois opta por fazer de conta que tais situações não estão acontecendo. Silenciar diante do conflito é uma estratégia individual de sobrevivência, na tentativa de ser aceito ou menos rejeitado. No entanto, tal atitude, apenas mitiga a tensão gerada pelo conflito, impedindo ações de enfrentamento individual ou coletivo. A estudante lê o conto na clave dos seus conflitos pessoais e aproveita a oportunidade para denunciar o bullying que sofre porque seu corpo diverge do padrão de beleza midiático e por gostar da Galinha Pintadinha27. Como A Galinha Pintadinha faz parte de uma coleção de DVDs com videoclipes de cantigas infantis do cancioneiro popular brasileiro, pode-se inferir que a autora da carta, uma adolescente com 15 anos, é discriminada porque a sua preferência não está de acordo com o que foi convencionado para a sua idade, uma vez que essa coleção destina-se às crianças e não aos adolescentes. A recepção do conto “O anjo”, flagrada nessa carta, leva-nos a refletir acerca da função social da literatura que, segundo Jauss (2004, p. 50), “se manifesta na plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social”. Embora o conto não tenha direcionado a atenção da leitora no que se refere à afirmação da identidade negra, motivou-a pensar na superação do preconceito e, ainda que ela esteja insegura, a sentir que pode conseguir o que 27 A coleção é composta pelos os seguintes títulos, A galinha Pintadinha e sua turma (2009), A galinha pintadinha 1 e 2 respectivamente (2010) e (2012) criada por Juliano Prado e Marcos Lupori. 83 deseja, assim como o personagem Inácio, que aprendeu a jogar o jogo e por fim conseguiu tornar-se “anjo”. Assim, desviando das questões centrais apontadas no conto, que, a priori, busca contemplar positivamente os elementos da etnorracialidade negra e denunciar o mito da democracia racial, a estudante estabelece um diálogo com o personagem Inácio para falar das questões que a afligem naquele momento e que interferem na constituição de suas outras identidades. O posicionamento dessa leitora e dos outros incluídos nessa categoria, de um modo geral, reflete um certo distanciamento da construção identitária coletiva de Tijuaçu, indicando-nos que o fato de pertencerem a uma comunidade negra e assumidamente quilombola, não quer dizer que, necessariamente, tenham aderido às imagens afirmativas cultivadas e expressadas pelo grupo. Com relação ao cumprimento da função social pretendida pelos CN, notamos, a partir das “respostas” desse grupo de leitores, as dificuldades em se desestabilizar ideários difundidos pelas classes dominantes, que, na maioria das vezes, são introjetados pelos demais segmentos sociais. Em síntese, os discursos presentes nas cartas alocadas nessa categoria, ainda que de modos diferentes, sabotaram as intenções centrais evidenciadas em cada conto, tanto em função do aprisionamento em ideologias racistas, quanto pelo direcionamento das leituras para questões individuais desses estudantes, as quais não dizem respeito à identidade negra. 4.2. LEITORES EM CONTRADIÇÃO Diferente, em alguns aspectos, das cartas dos leitores sabotadores, as cartas situadas nessa categoria, de um modo geral, enfatizam as discussões centrais trazidas nos contos e evidenciam o desejo dos estudantes de serem solidários à abordagem positiva das questões que dizem respeito ao segmento social negro proposta pelos CN. Porém, é possível perceber que tais estudantes, ainda influenciados por ideologias racistas, apresentam em seus textos uma relação ambígua quanto à imagem do negro e das suas referências. Em alguns momentos, essas cartas reproduzem ideários que tencionam neutralizar as ações de enfrentamento dos conflitos etnorraciais. Em função disso, este grupo foi nomeado de leitores em contradição. 84 De: SF5 (14 anos). Para: Cristiane Sobral, autora do conto “O tapete voador”. Cristiane Sobral, adorei seu conto, pois é muito interessante. Você falou bonito, melhor seria se não tivesse racismo. Você mostrou um ponto interessante. O presidente negro que não queria que a personagem do texto fosse negra também. ele queria de todo jeito que ela fosse branca e não se olhava. Pois você poderia mudar algumas coisas tipo parar de racismo com os negros. Vou te contar u a stór a so re u “negro e u ranco” Um dia no colégio a maioria dos Alunos era tudo negro e só um branco no meio de todos. No meio de tantos negros entre tantos negros só um que tinha preconceito com o branco. ele dizia que estava no direito dele pois os brancos não gostavam de negro e ele também não ia gostar de branco, passaram-se dias, meses... Ele foi se aproximando do menino branco e se tornaram melhores amigos. Negros e brancos são iguais só muda a cor e nem por isso precisamos ser preconceituosos porque ninguém é melhor que ninguém. “Negros e rancos so os to os r ãos” Eu sou ..., continue escrevendo seus contos, pois é muito legal e interessante. Beijos... Em síntese, o conto “O tapete voador” (CN 34, 2011) traz a história de uma jovem negra chamada Bárbara. No conto, a protagonista é convocada para uma conversa com o Presidente da empresa em que trabalha, alguns dias depois de ter-lhe enviado uma carta solicitando apoio para começar um curso de pós-graduação. Ao adentrar no gabinete, Bárbara fica surpresa porque o Presidente é negro. Após alguns minutos, a surpresa transforma-se em decepção. De início, o Presidente elogia a competência de Bárbara e diz que ela já chegou longe, em seguida sugere que ela negue a sua negritude se quiser continuar crescendo na empresa. Bárbara depois de ouvir essas declarações, resoluta, diz que é negra ao acordar, dormir, no trabalho e que jamais pode deixar de ser quem ela é. Por fim, Bárbara se demite da empresa. Essa narrativa está centrada na tensão entre a protagonista negra, com sua autoestima e autoimagem positivadas, e o presidente da empresa em que trabalha, aprisionado na ideologia do embranquecimento e do mito da democracia racial. A tensão aumenta quando o presidente, após tentar desqualificar as características fenotípicas do segmento negro, oferece à Barbara um lenço “irresistivelmente branco”, o qual conforme pontua 85 ironicamente o narrador, metaforiza uma chance irrecusável de crescimento na empresa desde que ela negue a sua negritude. Bárbara recusa o lenço, mesmo sabendo que isso significa enfrentar maiores dificuldades de ascensão social. Com essa atitude, a protagonista se posiciona na contracorrente de muitos mestiços brasileiros que, ao galgarem ou para galgarem melhores condições sociais tentam encaixar-se no segmento branco. Após a leitura desse conto durante as oficinas, a autora da carta emitiu o seguinte relato: “Um dia de segunda-feira, uma aluna estava saindo do colégio quando uma menina chamou de negra, ela saiu chorando, não por sua cor, mas pelo jeito que a menina falou”. Esse relato nos direciona para uma questão relevante: o problema não é necessariamente a referência “a cor” e sim ao seu histórico de desvalorização construído socialmente. Assim, a depender do tom de voz da pessoa que enuncia a palavra “negro”, faz emergir toda uma carga semântica que funciona para ofender o outro. E a não reação da vítima pode estar associada à introjeção de estereótipos negativos acerca do seu segmento etnorracial. Não obstante, se as referências simbólicas que fazem parte da construção social do negro estiverem positivadas para o próprio sujeito, é provável que a consequência seja a insurgência frente às situações de discriminação racial, conforme ocorrera com a personagem do conto, Bárbara. Em sua carta, a leitora deixa clara a sua reprovação com relação ao comportamento do presidente da empresa, personagem do conto, que não se assume negro. No entanto, a expressão que ela usa para criticá-lo “e não se olhava”, nos faz pensar sobre os contextos de fala em que tal expressão é utilizada: em geral no sentido irônico, com uma carga semântica pejorativa. Embora SF5 se posicione contra o racismo, a força do imaginário que associa o negro à negatividade atua em seu inconsciente, denunciando, assim, uma contradição. Em seguida, a leitora conta uma história em que ocorre uma inversão de papeis: o negro, em um contexto de maioria negra, discrimina o branco. A exclusão praticada pelo negro, personagem da narrativa de SF5, indica a sua vontade de vingança, conforme é possível verificar no trecho que se segue, “ele dizia que estava no direito dele pois os brancos não gostavam de negro e ele também não ia gostar de branco”. Tal narrativa aponta para a complexidade da convivência entre negros e negros, brancos e negros, em um contexto de maioria negra. Do seu lugar de fala, a estudante atribui ao negro a função de agenciar a igualdade na convivência com o branco e assim evitar conflitos. A construção da história relatada pela autora da carta foi motivada pela leitura do conto, evidenciando que a recepção de textos literários é um lugar de construção de sentidos e de inventividade. Em sua carta, ainda que a narrativa seja fictícia, a estudante dá notícias 86 sobre a existência de conflitos raciais diferenciados daqueles apresentados nos contos lidos no decorrer das oficinas. A narrativa da estudante termina bem, porque o personagem negro aceita tratar o branco como igual, tornando-se amigos. Houve, então, a diluição dos conflitos. Entretanto, ampliando o contexto da narrativa para os demais espaços da sociedade brasileira, não podemos perder de vista o histórico de dominação branca que desqualificou as referências do segmento negro e tentou mantê-lo em posições subalternas. Nessa perspectiva, a inversão de papeis sugere que os negros esqueçam os tratamentos desiguais, aos quais foram e ainda são submetidos na contemporaneidade, em nome da convivência harmônica, o que serve para evitar ações de enfrentamento, coadunando com as pretensões das classes dominantes. Em síntese, o discurso da autora da carta, ainda que bem intencionado, desejando o fim dos conflitos etnorraciais, é relativamente contraditório porque ainda reproduz as ideologias das classes dominantes, que, na teoria, defendem a igualdade entre todos os sujeitos, mas na prática dificultam o acesso aos bens materiais, simbólicos e a ascensão de determinados grupos às instâncias de poder, mantendo assim as posições hierarquizantes inalteradas. De: SM6 (15 anos). Para: Cristiane Sobral, autora do conto “Cauterização”. Para a autora O conto que eu li foi muito legal porque devemos nos aceitar da maneira que nos somos e não do jeito que queremos ser. Durante a minha leitura eu me senti um pouco magoado porque a personagem do conto sentia vergonha da sua aparencia e para mim ser negro não é defeito porque somos todos inguais e não devemos se vergonhar do que somos não importa ser negro, branco, feio ou bonito o que importa e que todos nos temos sentimentos. Eu gostei muito do final do conto por que no final a personagem é feliz do jeito que ela é não do jeito que os outros querem que seja. Nunca devemos jugar ninguém. Principalmente pela sua cor, porque ninguem tem culpa de nascer diferente. E um dia todos nós seremos julgados. Ass:... Em “Cauterização” (CN 32, 2009), Socorro, a protagonista, tentava esmaecer os traços da sua raça: comia pouco para não engordar e ressaltar as curvas acentuadas do seu 87 corpo, características do seu biotipo negroide. Usava maquilagem para afunilar os traços de seu rosto e cauterizava os cabelos. Ela também evitava tudo que pudesse apontar a sua origem cultural, por exemplo, frequentar rodas de samba, cerimônias religiosas afrobrasileiras e vestir-se de branco dia de sexta-feira. Certo dia, enquanto dirigia ouvindo música clássica, após ter alisado o cabelo, Socorro foi “fechada” por um motorista de ônibus que, em tom de provocação, a chamou de negona e perguntou onde ela tinha comprado a carteira. A expressão “negona” provocou uma revolução na mente de Socorro, que, transtornada, tirou da bolsa uma tesoura e começou a cortar os cabelos cauterizados. A chuva que caia tratou de levar por água abaixo o restante do disfarce. Foi quando Socorro sentiu a sensação de nascimento. Jorge, o motorista negro, desceu do ônibus, os dois se olharam e se beijaram apaixonadamente, num típico final feliz. Assim como a protagonista de “As máscaras de Dandara”, de Serafina Machado, a personagem Socorro foi induzida a acreditar que o belo se restringe somente às características fenotípicas do branco e que para ser socialmente aceita era necessário rejeitar as referências simbólicas relacionadas ao negro. O enredo apresentado no conto reflete sobre a atitude de muitas mulheres negras brasileiras, que, influenciadas pelo o ideal de beleza propagado pela TV, dentre outros meios, esmaecem os traços de sua negritude, na tentativa de aproximar-se das características socialmente mais valorizadas, as do branco. O desfecho do conto aponta para a afirmação da estética negra, com vistas a desarticular o ideário de um padrão único. SM6 inicia a sua carta fazendo menção ao comportamento da protagonista do conto, que é negra mas que não se aceitava, e isso o incomodou. Em seguida identifica-se como sujeito negro, porém, essa não parece ser uma questão bem resolvida para o leitor, conforme podemos inferir no seguinte trecho: “devemos nos aceitar da maneira que nos somos e não do jeito que queremos ser”. Considerando que estamos enredados por representações as quais desqualificam a estética e cultura negra e prestigiam as que referendam o branco, pode-se levantar a hipótese que SM6 está se referindo ao desejo de fazer parte do grupo que é socialmente mais valorizado. Uma vez que este desejo não pode se realizar, devemos então nos contentar e aceitar o que somos. Em um dos momentos das oficinas, após a leitura do conto “O anjo”, esse leitor relatou o seguinte: “[...] O menino sofreu preconceito por ser negro [...] fiquei muito magoado com a professora [...] Onde eu moro tem umas pessoas que são negras e muitos ficam dando piadinha, só por causa da cor.”. Tal relato ratifica a relação conflituosa de SM6 com relação a sua identidade, pois, ao mesmo tempo em que na carta, ele afirma ser negro, 88 aqui, em sua fala na oficina, o negro é o outro – as outras pessoas. O estudante revela também que em Tijuaçu, há conflitos entre os habitantes que se consideram brancos e os que são negros e as dificuldades referentes à construção de suas identidades. Destacam-se também na carta as seguintes declarações “ser negro não é defeito [...] o que importa é que todos nós temos sentimentos”. Pode-se inferir que SM6 percebe que há um tratamento desigual em função da cor e o reprova. Entretanto, acaba revelando que está aprisionado no ideário da superioridade do branco: “[...] ninguém tem culpa de nascer diferente.” A diferença (ser negro) é vista como algo negativo, associada à culpa. Embora SM6 tenha ficado feliz com o desfecho do conto, a sua carta e também o depoimento referente ao conto “O anjo” revelam uma atitude de tristeza e de relativo conformismo quanto à desvalorização dos elementos que constituem a identidade negra. De: SF7 (17 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. querida Raquel Almeida lir seu conto longo no início eu não gostei de algumas partes porque aviar muito preconseito. Mais longo foi chegado as partes emocionantes da historia eu fiquei muito feliz me surpriendeu com as atitudes da protagonista, porque ela foi em busca de sua verdadeira origem ela queria Realmente saber qual era sua cor e sua história. então ela não se abateu com as coisas que ela descobriu au contrário ela foi à busca dos seus objetivos, atrás dos seus direitos que um dia foram negados, injustamente aos nossos antepassados que foi negado a vó dela. Oi eu sou..., sou negra, tenho orgulho da minha cor na verdade não ligo para esse negócio de cor. Pra mim, branco, negro ou pardo, não faz diferencia de nada somos todos inguais somos seres humanos é isso que importa e sempre vivo correndo atrais dos meus sonhos tem um sonho um pouco impossível ser atriz é um pouco difícil de Realizar mas nunca vou desistir dele tenho fé em Deus... Bay, bay beijos. Em “Minha cor” (CN 30, 2007), a narradora-personagem vai solicitar a emissão da carteira de identidade e observa que na sua certidão de nascimento está escrito que sua cor é parda. Ela se questiona e questiona os seus pais, pois, no conto, diz saber quais são as outras cores, mas desconhece aquela. Apenas no dia seguinte, ao ouvir as histórias de sua avó sobre a sua ancestralidade, ela se identifica, orgulhando-se de sua negritude e convicta preenche o formulário confirmando a sua cor como negra. No texto, destaca-se a seguinte fala da protagonista: 89 Me emocionei com tudo que ouvi da minha avó. Logo me identifiquei, vi em seus olhos sofridos que ela jamais sentiu vergonha de sua negritude, assim como meu pai. Mais tarde pesquisei por curiosidade o que realmente é ser pardo. Pardo = Branco sujo! Versão atualizada do Aurélio: Mistura de branco e preto. MULA-TO! [...] Não sou suja! Nem mula! Sou afro! Sou negra! Da pele preta! (CN 30, 2007, p. 189) A afirmação da identidade da protagonista de “Minha cor” se constrói ao longo do desenvolvimento do enredo. A inquietação acerca da sua cor a leva ao encontro das narrativas de seus ancestrais relatadas pela sua avó, que são fundamentais para a sua identificação com o segmento negro. Esse conto toca, dentre outras questões, em um dos fatores que enfraquecem os laços de solidariedade da raça negra – a ideologia cromática, conforme definição de Clóvis Moura –, em que mestiço, em decorrência da discriminação racial sofrida, tenta assumir apenas a mestiçagem branca. Na contracorrente dessa ideologia, a narradora-personagem assume a sua mestiçagem negra. Está evidente na narrativa também a intenção de desconstrução de estereótipos relacionados ao negro brasileiro, dentre eles, a sua conexão obrigatória com o samba. No universo dos contos trabalhados, “Minha cor” foi escolhido pela maioria dos estudantes para a escritura da carta, confirmando a empolgação demonstrada quando da leitura e discussão dessa narrativa no decorrer das oficinas. É possível que tal seleção tenha sido motivada pelo fato de que a protagonista, em busca da afirmação de suas identidades, chega à conclusão de que é negra e assume sem hesitar. Tal desfecho satisfez as expectativas dos estudantes, certamente porque a cor negra, evidenciada tanto em seus fenótipos quanto em boa parte dos moradores de Tijuaçu, foi referendada positivamente. Ademais, no conto, a protagonista, após conseguir a emissão de sua carteira de identidade, inscreveu-se para o vestibular, investindo na realização de um sonho que se estende à maioria dos sujeitos desta pesquisa: ingressar numa faculdade, conforme fora relatado por eles durante as oficinas. Na carta, a leitora relata que, de início, não gostou da narrativa por conta das situações em que houve preconceito. Para além do mal-estar diante das situações desagradáveis, tal declaração nos faz refletir sobre o ainda operante mito da democracia racial no Brasil, que agencia “o fazer de conta” que o preconceito racial não existe. Desse modo, o racismo quando é denunciado, como ocorreu no conto, pode causar desconforto ao leitor que possivelmente alimenta uma vida social sem conflitos etnorraciais. 90 Despertou a atenção e satisfez a leitora o fato de a protagonista estar em busca de sua identidade, destacando-se, em sua carta, os elementos crucias para a positivação da identidade etnorracial: origem, cor e história. A leitora orgulha-se do comportamento da personagem e inclui-se no mesmo grupo etnorracial, conforme o trecho que se segue: “[...] atrás dos seus direitos que um dia foram negados injustamente aos nossos antepassados”. Na carta, destaca-se, porém, o seguinte trecho: “ela não se abateu com as coisas que ela descobriu”. Essa declaração leva-nos à seguinte indagação: por que a protagonista se abateria? Não é preciso muito esforço para chegarmos a uma resposta possível. Como certa historiografia brasileira, por muito tempo, negligenciou ou tratou de forma inadequada as referências positivas do negro, é possível que SF7 tenha acionado em sua memória somente os episódios de dor e humilhação, uma vez que são esses que têm alimentado o imaginário nacional. Na carta, SF7 assume a sua cor, comungando com a atitude da protagonista do conto “Eu sou..., sou negra, tenho orgulho da minha cor”, contudo, a estudante se contradiz quando afirma: “[...] não ligo para esse negócio de cor”. Vale ressaltar que a identificação com a protagonista aconteceu exatamente porque ela assume a sua cor e sua origem, conforme podemos verificar também neste depoimento da estudante enunciado após a leitura do conto no decorrer das oficinas: “Eu me identifiquei com a personagem porque não podemos fugir da nossa origem, mesmo com o preconceito que a gente sofre.” No entanto, parece que para SF7 é mais confortável não pensar que existem tratamentos desiguais por conta da cor. Embora os seres humanos sejam iguais do ponto de vista biológico, as diferenças construídas num contexto sociohistórico e cultural funcionam como critérios para inclusão ou exclusão. Um dos objetivos dos escritores dos CN é denunciar os tratamentos desiguais que ocorrem na sociedade brasileira, em virtude do pertencimento etnorracial, com vistas a incitar os segmentos marginalizados a desarticular o complexo mecanismo social que agencia a exclusão. Na carta, a leitora reivindica a humanidade para todas as pessoas, independentemente da cor. Afirmar a humanidade para o negro é uma das formas de combater os resquícios de coisificação gestados no período colonial que ainda reverberam na atualidade. Mas, considerando os demais indícios deixados na carta, pode-se inferir que SF7 revela um processo de construção identitária conflituoso, pois, embora, em seu discurso esteja clara a sua adesão à mensagem transmitida pelo conto, ela busca conforto na ilusão de 91 que a discriminação pela cor negra pode ser facilmente superada em nome de uma suposta humanidade ideal. De: SF8 (16 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. Querida, Raquel Almeida eu lin um seu conto e gostei muito você se espiro muito você estar de parabéns eu me senti após a leitura uma pessoa diferente por que está falando da nossa cor nos temos que aceitar ela da cor que ela é na hora não passou nada na minha cabeça mas pecei, e pecei e encherguei que se trata do que a jente somos negro, branco ou pardo não importa a cor que sou só importa que sou feliz não gostei muito de algumas partes do conto por que só fala de jente negro e por que não fala de branco e isso que não gostei muito nada contra seu conto sua espiração ao coloca um título do texto foi muito bom por que tem tudo a ver com um texto. Eu acho importante para dizer a Autora e que ela continue com esse sucesso dela, e parabéns pelo conto foi muito bom quem não leu perdeu e quem leu garanto que gostou bastante. de: ... Percebe-se, nessa carta, o posicionamento ambíguo de SF8 com relação à cor, uma vez que ela se identifica com o conto exatamente pela temática abordada, e, ao mesmo tempo diz que isso não é importante, porque ela é feliz. Tendo em vista esse posicionamento, a pergunta que se delineia é: se para SF8 a cor não importa, por que ela se incomodou exatamente com a ausência de personagens brancas na narrativa? Com base nas reflexões realizadas na segunda seção deste estudo, pode-se afirmar que a ausência de personagens brancos incomoda porque na maioria das obras que compõem a tradição literária ocidental tais personagens estão sempre presentes e ocupam geralmente posições centrais nas narrativas. Já os personagens negros, quando aparecem, são como secundárias ou com pouco destaque no desenrolar dos enredos. Diante dessa “realidade” construída pela literatura instituída, é pouco provável que o leitor se questionasse sobre a ausência de personagens negros, se fosse esse o caso no referido conto. Dito de outro modo, a autora da carta não gostou porque o conto só fala de negros e não de brancos, certamente porque não é comum para ela o contato com textos que privilegiem a representação de personagens negros, e isso causou um estranhamento. Nas palavras de Regina Dalcastagné (2012, p.33): “Esse estranhamento tem a ver com um novo enquadramento das situações. Novo, justamente, porque não combina com aquilo que estamos acostumados a ver, preparados para ver”. 92 De fato, o olhar do brasileiro acostumou-se a ver o negro, tanto dentro do contexto literário quanto fora, principalmente em posições subalternas, naturalizadas pelos vários discursos sustentados por um aparato político/ideológico que pretende manter inalterado o status da elite. No âmbito da cultura popular, o samba, por exemplo, tornou-se uma das principais manifestações culturais no Brasil, sendo esse um dos poucos espaços prestigiados que são destinados ao negro. Por outro lado, isso corroborou a construção de mais estereótipos acerca do negro e da negra, cujas imagens são fixadas em atividades que são gerenciadas pelo corpo e pela emoção, em detrimento do labor intelectual e da razão, instâncias socialmente mais valorizadas. Com relação a essa manifestação cultural “naturalmente” destinada aos negros, as falas emitidas por SF8, no decorrer das oficinas, após a leitura do conto “Foi Ariano quem fez os caracóis chorarem”, de Ademiro Alves, revelam que ela está atenta ao fato de que os conhecimentos do sujeito negro não se restringem ao samba: “Eu gostei porque Ariano não tinha vergonha do que ele era [...] Achavam que ele só sabia samba, porque era negro.” Nessas falas, a leitora apresenta o porquê de sua identificação com o personagem Ariano e enfatiza positivamente o fato de o personagem ser negro. Tais registros evidenciam o posicionamento contraditório de SF8 diante das narrativas dos CN, pois, na carta, ela tenta demonstrar que não se importa com a cor da pele. No que se refere às expectativas dos leitores em geral quanto às obras literárias, pode-se inferir que estas serão reorientadas à medida que o público tenha acesso a textos que prestigiam personagens brancas e negras na mesma proporção e com múltiplas possibilidades de representação. Entretanto, como a literatura, a seu modo, reflete as vivências de um determinado grupo, a reorientação somente será concretizada se o acesso às posições de prestígios no corpo social for democratizado e visibilizado, de modo que o sujeito contemple, seja na perspectiva do seu cotidiano seja nas das obras literárias, a presença positivada do negro. Em sua carta, SF8 apontou como positivo o fato de o título do conto ter correspondido a sua expectativa quanto ao conteúdo. Assim, nos faz refletir sobre uma das estratégias de controle parcial pretendido pelos escritores quanto à recepção das obras: a escolha do título e seu papel em incitar hipóteses acerca do texto. Sobre essa interação entre obra literária e o leitor, Hans Robert Jauss (2004, p.29) afirma que a obra “não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la 93 de uma maneira bastante definida”. SF8 termina a sua carta prestigiando a narrativa e a recomenda para outros leitores, apesar das ressalvas iniciais. Nas cartas dos leitores em contradição, foi possível perceber que houve identificação com os contos lidos; entretanto, analisando as entrelinhas dos enunciados, constatou-se que ainda estão influenciados pelo ideário de brancura, do mito da democracia racial e dos discursos de inferiorização dos elementos que compõem a etnorracialidade negra. Em vista disso, diante dos textos literários que rompem com esses ideários e propõem identidades negras positivas, os leitores dessa categoria se posicionaram de modo ambivalente, pois, ao tempo em que aderem às propostas dos contos, as suas percepções são afetadas por representações cristalizadas no inconsciente coletivo brasileiro, sedimentado em mitos e preconceitos acerca do negro. Nesse aspecto, tais estudantes apresentam posicionamentos semelhantes aos que foram demonstrados pelos leitores sabotadores. 4.3 LEITORES SOLIDÁRIOS Divergindo da posição de sabotador ou em contradição dos leitores das duas primeiras categorias, verifica-se nas cartas que se seguem a identificação dos estudantes diante da convocação a identidades negras afirmativas proposta pelos contos, bem como o desejo de cooperar com essas construções. São por isso denominados solidários. A nomenclatura dessa categoria é inspirada no pensamento de Cuti (2010b) sobre a possibilidade de a recepção solidária por parte do público afro-brasileiro ter motivado a produção de escritores negros. Os discursos presentes nessas cartas alinham-se com o que pretende fomentar no leitor o projeto coletivo Cadernos Negros. De: SF9 (14 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. Raquel Almeida, minha cor foi um conto ecepsional por falar da cor de todo mundo por levar o conto minha cor para o mundo inteiro, por levar a cultura negra e Afrobrasileira para todas as pessoas e porque fala do negro, do branco, do pardo e do trabalho escravo. Raquel Almeida eu quero falar de alguma experiência so que não vive nenhuma estória. Por que eu queria falar mais de mim. 94 E que seu conto foi lindo demais e eu me identifiquei com o conto eu gostei da parte que ela que não é parda nem branca que ela é afro sou negra, sou da pela preta e que ela não era mulata nem parda nem branca suja eu me identifiquei demais com a personagem e depois que ela se assumiu, eu fiquei imprecionada com tanta certesa e força de vontade. se ela se assumice parda, perderia a sua dignidade. Em sua carta, SF9 deixa evidente a sua satisfação com relação ao conto porque este abarca e divulga elementos que são essenciais para a afirmação do segmento negro: cor, cultura e histórias. Pelo entusiasmo demostrado pela leitora, pode-se inferir que o contato com textos que cumpram essa função não é recorrente, contrariando o que se espera após dez anos da implementação da Lei n.10.639/03, constatação ainda mais grave considerando que os sujeitos dessa pesquisa fazem parte de uma comunidade reconhecida como quilombola desde o ano 2000. Percebe-se também que a leitora entende que é difícil assumir-se negra “eu fiquei imprecionada com tanta certesa e força de vontade”. Essa declaração enfática nos indica que mesmo no contexto em que SF9 está inserida talvez não seja tão comum tal atitude, caso fosse, não provocaria impacto. No trecho “se ela se assumice parda, perderia a sua dignidade.”, a leitora ratifica a importância do assumir-se negra, coadunando com a mensagem transmitida pelo conto, e reprova a atitude de negação da cor. Para SF9, a valoração do sujeito negro está atrelada ao assumir-se negro. O relato que se segue, emitido pela leitora durante as oficinas, referindose à Socorro, protagonista do conto “O tapete voador”, de Cristiane Sobral, confirma a sua opinião: “Ela não deveria esconder quem ela realmente era. Ela não deveria ter vergonha da sua cor e suas origens”. Tal opinião alinha-se com a proposta dos Cadernos Negros: a positivação da identidade etnorracial, tendo como um dos baluartes a exaltação da cor. O conto suscitou na leitora o desejo de falar de si, ainda que não tenha dado vazão a esse desejo, conforme o trecho que se segue: “Raquel Almeida eu quero falar de alguma experiência so que não vive nenhuma estória. Por que eu queria falar mais de mim”. Tal declaração enfatiza a sua posição de leitora solidária diante da narrativa, revelando a vontade de ampliar o diálogo com a autora a partir das suas próprias experiências. De: SF10 (13 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. 95 Querida Raquel de Almeida eu me chamo... tenho 13 anos foi um prazer ter lido o texto minha cor, me fez ver, saber, entender mais ainda quem eu sou, que cor é a minha, eu também era assim ficava confusa sem entender que cor era a minha as pessoas diziam que eu sou morena clara, mas agora, eu sei que eu sou negra e digo com orgulho eu me sentir muito bem após a leitura, gostei dos personagens. Eu não tenho nenhuma critica e nenhuma sugestão eu achei o texto muito bom e muito legal, gostaria de ler mais contos assim para entender foi um prazer. O conto despertou na leitora questões relacionadas à sua mestiçagem. O fato de outras pessoas dizerem que ela é morena clara a deixava confusa, certamente porque ela não se via desse modo. O conto, ao tratar da cor negra de forma positiva, ajudou-a a se identificar como negra, conforme o trecho que se segue: “mas agora, eu sei que eu sou negra e digo com orgulho”, ou como no depoimento emitido pela leitora no decorrer das oficinas: “Me senti bem porque entendi que a gente deve assumir nossa cor [...] Foi legal a personagem ter dito que não era suja, nem mula e sim negra”. O posicionamento assumido por SF10, após a leitura do conto, nos faz refletir sobre um dos questionamentos de Kabengele Munanga (1999, p.124) acerca da mestiçagem: “Como afirmar uma identidade em torno da cor e da negritude não assumidas pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do branqueamento?” Assim como aconteceu com essa leitora, é possível que outros mestiços, em contato com discursos que positivem a identidade negra e denunciem as práticas de discriminação racial vigentes na sociedade brasileira, consigam quebrar as correntes invisíveis, porém, existentes, que os aprisionam na ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial. O relato de SF10 reafirma o poder da literatura para a construção positiva do imaginário acerca do negro e nos informa também sobre as lacunas existentes no repertório do leitor afro-brasileiro em idade escolar quanto à leitura de textos da literatura negra. De: SF11 (13 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. Querido Autor eu gostei muito da história por que fala das cores que cores nós somos, Branco ou pardo, isso mostra que cor realmente nóis somos. Após a leitura, me senti muito feliz ao ver que ela se identificou que viu que não era suja! nem mula, ela era somente Afro! negra! da pela preta. Adorei na hora que ela escreveu no formulário qual era sua cor e escreveu numa forma convicta que era negra e não teve vergonha disso. 96 eu queria criticar a parte da mãe que manda a filha escolher sua própria cor, não concordo. Eu já me confundi! parda, preta ou Branca olhei bem para a minha mãe e me reconheci em seus traços; minha mãe já me disse você é preta não acreditei muito porque ela é mais escura que eu; sempre achei que era morena clara como meu pai, igual no conto já passei por essa experiencia. De início, a autora da carta nos revela a sua adesão à positivação da cor negra. Em seguida critica o fato de mãe da protagonista do conto sugerir-lhe que escolha a sua cor. Para a leitora, cor não é uma questão de escolha e pelos indícios deixados na carta, é possível inferirmos que SF11 gostaria que a mãe da protagonista a ajudasse a chegar numa conclusão quanto à cor dela, assim como fez a mãe da leitora quando ela estava com dúvidas, conforme o trecho que se segue: “você é preta não acreditei muito porque ela é mais escura que eu; sempre achei que era morena clara como meu pai, igual no conto.” Ao trazer o seu exemplo com a mãe, a leitora expõe o modo como a literatura articula-se com a vida pela força da experiência da narrativa, conforme afirma Walter Benjamim (1994). No Brasil, em função do histórico de valoração fenotípica e cultural do segmento social branco, muitos mestiços com características negras pouco pronunciadas usam como estratégia de ascensão social rejeitar ou esmaecer os elementos que revelam a sua negritude e imitar o padrão imposto pelo grupo dominador, na tentativa de serem melhor aceitos. Entretanto, com relação à estudante, percebe-se pelo seu discurso um processo de valoração da parte negra da mestiçagem. Tal posicionamento pode ser verificado também no depoimento enunciado, enquanto conversávamos sobre o comportamento da protagonista do conto “As máscaras de Dandara”, de Serafina Machado, no decorrer das oficinas: “Não gostei da parte que ela diz que sentia raiva da bisavó, da avó e da mãe porque não casaram com homem branco”. Por fim, o fato de ela revelar que já viveu uma experiência igual a do conto nos diz que a sua percepção quanto à sua mestiçagem já tinha sido reorientado. O conto ratificou a valoração que SF11 já dava à cor negra, por isso que ela gostou tanto quando a protagonista assumiu-se negra. De: SF12 (14 anos) Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. O conto foi muito bonito eu não gostei foi que a mãe da personagem não queria que a filha dela foce preta, ela queria que a filha foce parda. Eu me senti muito feliz por que no conto A menina 97 disse que estou me dedicando e tenho certeza de que vou passar no vestibular e conquistar um direito que um dia foi negado à minha Avó que foi negado a minha cor. que foi negado. eu quero ser o qui eu sou porque eu não tenho vergonha da minha cor e nem do jeito que eu sou um dia eu já fui discriminada então desde esse dia eu fiquei muito triste mais eu sou uma negra batalhadora e guerreira não vou deixar de ser uma negra porque fui discriminada. SF12 reprova o comportamento da mãe da protagonista do conto quando ela não diz à filha que ela é negra. Pelo discurso que se segue na carta, percebe-se que tal reprovação é resultado do processo de construção identitária que vivencia a leitora. Ela sente e sabe o quanto é difícil ser negro no Brasil e que negar a cor não resolve os problemas de preconceito e discriminação racial. Vale destacar que o fato de a protagonista do conto mostrar-se otimista quanto ao futuro despertou a identificação da leitora, que, certamente, renovou as suas esperanças quanto a seu próprio futuro. A estudante diz que já foi discriminada e como se sentiu. Pelo relato, percebe-se que ela não reagiu. Esse comportamento revela que o sujeito negro ainda é vítima de um sistema educacional que não o prepara para o enfrentamento das situações de discriminação, fortalecendo, assim, o poder daqueles que tencionam dominar. Quanto a essa leitora, ainda que tenha se entristecido, ela não se conformou e nem introjetou o discurso do discriminador, pois, ao concluir a sua carta apresenta uma atitude afirmativa com relação a sua identidade e assim com a protagonista do conto diz que vai lutar pelos seus objetivos “eu sou uma negra batalhadora e guerreira”. A leitora positiva o que foi usado pelo outro como algo negativo – o fato de ser negra. Evidencia-se, portanto, nessa carta, o entrelaçamento entre os anseios da protagonista da narrativa e os da leitora. De: SF13 (15 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. Querida Raquel Almeida au ler o conto escrito por vc eu realmente fiquei muito emocionada, por que você escoleu uma personagem excelente em que vc fala de uma menina que já na adolecência se interecou em descobrir qual era realmente a sua cor por que pra ela a cor parda não existia, e au ler o seu conto mim lembrei de quando eu tinha 12 anos em que eu mi vi quase na mesma situação em que a personagem viveu, um certo dia eu estava na minha casa e aí pego a minha certidão de nascimento em que na certidão onde indicava a cor da criança que indica assim, branco, preto e 98 pardo e na minha certidão tava como parda e eu perguntei à minha mãe, mãe porque eu não sou preta e sim parda e ela me respondeu. – É que pra nos preta é a mesma cor que pardo. e eu respondi. – mais mãe e que eu queria que na minha certidão tivesse preta com da minha amiguinha, aí ela mim dise que nem tudo na vida poderia ser do geito que a gente queria e em uma parte eu pude mim sentir no lugar dela e que minha mãe é morena bem clarinha só que eu nunca tive vontade de ter a mesma cor que ela, a e a parte que eu mais gostei foi quando ela se identificou com as bisavós por que já tinham cido escravos e tinham sofrido muito eu gostei muito da atitude dela na minha opinião não presiza mudar e nem acrescentar nada no conto e te agradeso muito por você ter falado de uma cor que hoje e discriminada e humilhada e é essa que mim representa uma cor que muitos têm orgulho mais que muitos tambem têm vergonha de dizer qual a sua cor não sei se vc é branca, morena, ou preta, mas eu posso te dizer que eu fiquei muito grata por você falar de mim de você e de todos nós. Bjs: da aluna... SF13 diz que vivenciou as mesmas inquietações da protagonista. Não sabemos se a história narrada por ela sobre o modo como passou a questionar-se sobre a sua cor aconteceu, mas é relevante destacar que os sentimentos e as emoções experenciados pela protagonista são comuns também à leitora que revela uma postura afirmativa quanto à construção de sua identidade negra. A relação que a estudante estabelece entre o conto e as suas experiências de vida nos reporta às reflexões de Hans Robert Jauss (1994) acerca de um dos fatores determinados pelo horizonte de expectativa que orientam o diálogo entre texto literário e leitor, a possibilidade de comparação entre ficção e realidade. Destaca-se na carta, o trecho “a minha mãe é morena bem clarinha”. Percebe-se através dos dois adjetivos “morena”, “clarinha” e do intensificador “bem” o desejo implícito de dizer “a minha mãe é branca”. Porém, mesmo enfatizando a sua mestiçagem branca, ela opta pelo assumir-se negra. Isto nos faz pensar novamente sobre a mestiçagem no Brasil, em que muitos mestiços capturados pela ideologia do branqueamento negam a sua negritude e reafirmam os valores da cultura branca. O que chama a atenção no discurso de SF13 é exatamente a situação contrária: querer-se negra, dizer-se branca também, e assim, afirmarse negra-mestiça. Embora estivesse participando das oficinas ministradas, cujos discursos verbais ou não verbais evidenciaram o negro como autor e produtor de literatura, a autora da carta diz que não sabe se a cor da escritora do conto é branca, morena ou preta. Tal dúvida é reflexo 99 de construções sociais e históricas que insistem em naturalizar a ausência do negro em trabalhos intelectuais, como o da escrita literária. Por outro lado, o fato de SF13 ter duvidado da identidade etnorracial da autora do conto pode ser considerado um avanço, pois revela que no seu horizonte de expectativa como leitora já existe a possibilidade do escritor negro. A leitora identifica-se também com a história dos ancestrais da protagonista, mesmo tomando como base somente uma vertente da história, a do sofrimento, causado ao negro no período escravocrata. E em seu discurso, deixa claro que está consciente da existência da discriminação e do preconceito racial, mas nem por isso rejeita a sua cor e fica satisfeita com o conto lido, isto porque a narrativa ratifica o seu desejo de identificar-se como negra. Pode-se inferir que a intenção do coletivo literário Cadernos Negros quanto à afirmação da identidade negra repercutiu positivamente no processo de construção identitária da estudante. De: SF14 (19 anos). Para: Raquel Almeida, autora do conto “Minha cor”. Oi Raquel eu gostei muito do seu conto, porisso eu o escolhi ele e quero dizer que e muito interecante poriso eu escolhi ele porque ele tem algo que já aconteceu com migo eu também ficava mim perguntando que cor é a minha e depois que leu ouvir esse conto e leu e o outros eu vi que não era só eu que tinha essa duvida não hoje eu cei que cer negro não e vergonha, pois sou negra e tenho orgulho. negro tambem tem valor e esse negócio de preconceito com os negros tem que acabar negro também e inteligente negro também e professor negro também e medico negro também e pai e mãe, negro também sabe ler negro também sabe falar. ha, eu to muito feliz de ta te escrevendo esse conto seu mim chamou muita atenção porisso eu te desejo muita sorte e bons pensamento para continuar escrevendo sobre nois negros boa sorte e que Deus ti abençoi muito e ti de muitos anos de vida sabedoria e inteligência, e te desejo felicidades saude e força para escrever cada dia mais. Eu espero um dia ouvir mais sobre você seus livros e sua inteligencia eu só tenho a dizer a você Deus é contigo em tudo que você faz e já fez e vai fazer ainda boa sorte e muito obrigada por esse livro e esse conto mil felicidades, fique com Deus a cada dia e a cada manhã a cada tarde a cada noite a cada sono e a cada emoção foi um prazer ti conhecer mesmo pelos livros, ok! seja feliz cada dia a mais fim. Beijos. 100 A leitora começa relatando o porquê da sua identificação com o conto: ela também se questionava acerca da sua cor, assim como a protagonista da narrativa. Esse tipo de identificação contempla o que almejam os escritores dos CN ao ofertarem enredos que dialoguem com as subjetividades dos leitores afro-brasileiros. Além de assumir-se e querer-se negra, SF14 apresenta a sua indignação quanto à existência do preconceito e em seu texto agencia palavras de enfrentamento: “esse negócio de preconceito com os negros tem que acabar”. O posicionamento de SF14 nos revela uma postura consciente quanto aos conflitos raciais no Brasil, conforme podemos perceber também a partir da opinião que emite oralmente após a leitura do conto “Minha cor”, no decorrer das oficinas: “Foi bom porque ela assumiu sua cor, um exemplo para todos nós que somos negros.”. Em sua carta, a leitora lança mão de uma série de qualificadores para o sujeito negro, enfatizando as várias posições privilegiadas que este ocupa no tecido social, transcendendo a imagem produzida pelos discursos da elite dominante que tenta naturalizar a presença desse segmento somente em posições subalternas. Na carta, destaca-se a repetição do termo “negro” e do intensificador “também”, que ajuda a enfatizar a mensagem positiva que ela enuncia. Vejamos novamente o trecho: “negro também e inteligente negro também e professor negro também e medico negro também e pai e mãe, negro também sabe ler negro também sabe falar.” Desse modo, SF14 investe contra estereótipos inventados para o negro referentes à inferioridade intelectual e à desumanização. Estão explícitos, na carta, tanto a adesão à mensagem de afirmação da identidade negra transmitida pelo conto quanto o desejo de contribuir nessa afirmação. Vale pontuar também a satisfação de SF14, ao ler o conto, e o modo como demonstra entender a importância da escrita literária para a positivação da identidade negra: “eu te desejo muita sorte e bons pensamento para continuar escrevendo sobre nóis negros”. Em síntese, a experiência relatada no conto encontrou ecos na experiência pessoal da leitora, que, ao sentir-se contemplada pela narrativa, procurou endossá-la e, por comungar das mesmas ideias apresentadas no conto, incentivou a escritora a seguir em frente no seu ofício. No grupo dos leitores solidários, ainda que em determinados trechos dos discursos presentes nas cartas ou enunciados oralmente, tenhamos percebido a influência de representações negativadas acerca do negro, as quais circulam na sociedade brasileira, o que predominou foi o desejo de construções identitárias negras afirmativas e a não acomodação ante as situações do preconceito e discriminação racial. Houve, portanto, o cruzamento das expectativas do projeto coletivo Cadernos Negros com o horizonte dos leitores, que, pelos 101 seus discursos, demonstraram que se sentiram contemplados na narrativa e corroboraram a proposta de positivação de identidade lançada pelo periódico. As cartas, corpus principal de análise desta pesquisa, apresentaram diferentes posicionamentos diante dos seis contos dos CN lidos e discutidos durante as oficinas de leitura de produção textual. Pelos discursos enunciados, pode-se inferir que assim como afirma Jonathan Culler (1997) sobre a mulher como leitora que, influenciada pela dominação masculina pode não ler como tal, o mesmo é válido também para o negro ao assumir o papel de leitor num contexto de dominação branca. Contudo, experiências individuais ou coletivas vivenciadas por cada sujeito orientam distintas formas de ler o mesmo texto literário. Vale reiterar que as identidades são repletas de nuances e complexidades, são construções em processo contínuo de transformação, uma vez que o sujeito está sempre em negociação, não com um conjunto de oposições, mas com uma série de posições diferentes, retornando ao pensamento de Stuart Hall (2011). Embora a identidade negra assumida pelo distrito de Tijuaçu tenha se mostrado resistente e positivada, conforme a bibliografia pesquisada, o que se percebe nos textos de boa parte dos sujeitos pesquisados são relações conflituosas em relação à identidade negra. Nesse sentido, o incentivo ao não enfrentamento ante as situações de discriminação racial, recorrente nos discursos orais e escritos de alguns estudantes é um dos indícios sintomático desse conflito. Pode-se inferir que as contradições apresentadas nas cartas e nos enunciados orais dos sujeitos pesquisados é resultante do contato com uma gama de discursos diferenciados que os interpelam cotidianamente. De um lado as produções simbólicas ostentadas por sua comunidade como quilombola, do outro, os discursos acessados por eles, principalmente, por meio da televisão, que propala representações negativadas acerca do segmento social negro. Acrescenta-se a isso o fato de que o repertório de leitura desses estudantes é composto, em sua maioria, de obras que não contemplam a diversidade etnorracial brasileira. Esses são fatores que, decerto, influenciaram na recepção dos contos dos CN. Foi possível notar, tanto nos textos das cartas quanto nos relatos enunciadas pelos sujeitos pesquisados, a presença de um mosaico de contradições influenciado pelo momento vivenciado por cada estudante quando das oficinas, o lugar de pertença – uma comunidade negra em processo de afirmação da identidade negra –, e por ideologias que, além de investirem na desqualificação das referências do segmento social negro tentam encobrir a existência de conflitos raciais no Brasil. Em suma, os posicionamentos dos estudantes variam entre distanciamento, aproximação ambígua e adesão à proposta dos contos dos 102 Cadernos Negros, o que confirma as complexidades de ordem subjetiva que atravessam as formações identitárias. 103 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Regresso estamos cada vez mais próximos e distantes de tudo aquilo que deixamos no meio do caminho estamos lembrando lutas momentos amores chorando saudades que cedo se fazem presente sem consciência de dia hora e local sabendo apenas que estamos chegando no instante em que partimos. (KIBUKO, CN 17, 1994, p. 67). Esta dissertação se propôs a refletir sobre o modo como os estudantes de uma comunidade quilombola “respondem” a textos literários que os convocam a identidades negras positivas. Tendo em vista esse objetivo, buscamos compreender as representações identitárias coletivas da comunidade na qual os sujeitos da pesquisa estão inseridos – no distrito de Tijuaçu –, bem como as identidades lançadas pelo coletivo literário Cadernos Negros. Por fim, analisamos o corpus principal desta pesquisa, quais sejam as cartas produzidas pelos estudantes. Procuramos mostrar que a afirmação da identidade coletiva de grupos marginalizados é fator determinante na luta por melhores posições no corpo social. Ao investigarmos a identidade negra de Tijuaçu, vislumbramos em seu processo de construção duas fases distintas. A primeira é marcada principalmente pela baixa autoestima e pela negação do ser negro. A segunda, movida pelo processo de reconhecimento quilombola, contribui para redesenhar a identidade negra local, com um traçado que aponta para a positivação, ainda que de maneira ambivalente, pois se sustenta no limiar da aceitação/negação das referências de matriz africana presentes nas manifestações culturais da comunidade. Evidenciamos que as identidades apresentadas pelos Cadernos Negros são representações plurais da diversidade etnorracial que compõe a sociedade brasileira. Os CN são um projeto de resistência literária que trabalha na tessitura de um novo imaginário nacional, com ênfase no resgate da memória ancestral, valorização da cultura afrodiaspórica e positivação das características fenotípicas do negro. Ademais, os textos desse periódico são enfáticos na denúncia do preconceito e da discriminação racial e tencionam incitar o leitor ao enfrentamento. Os escritores dos CN, inspirados no trabalho realizado nos quilombos históricos que provocaram desgastes na estrutura social escravocrata brasileira e 104 forçaram mudanças, por meio de suas armas-palavras, mantêm vivo, há mais de três décadas, o Quilombo literário, com foco nas demandas do tempo presente, objetivando a representação afirmativa do negro em todas as dimensões. Considerando que a identidade negra coletiva em Tijuaçu está em processo de afirmação e que o projeto coletivo Cadernos Negros enseja representações plurais e positivadas de diversidade etnorracial brasileira, a hipótese suscitada, quando do início desta pesquisa, foi a de um possível diálogo entre as identidades apresentadas nos contos do CN e as vivenciadas pelos sujeitos desta pesquisa. Para investigarmos tal possibilidade, realizamos oficinas de leitura e produção textual, que culminaram com a escrita de cartas pelos estudantes. Para analisarmos os dados colhidos nas oficinas, criamos categorias de análise que tiveram por base o posicionamento predominante dos estudantes, evidenciado em suas cartas, diante das temáticas apresentadas pelos contos. Verificamos, então, que alguns estudantes se distanciaram da proposta dos contos, os sabotadores; outros aderiram à proposta, mas, em função da influência de ideologias dominantes no que tange às relações raciais no Brasil, apresentaram discursos contraditórios; outros, ainda, foram solidários ao projeto de positivação das identidades negras lançadas pelos textos dos CN. Percebemos, pelos indícios deixados nas cartas e nas falas enunciadas no decorrer das oficinas pelos estudantes das categorias leitores sabotadores e em contradição, que a identidade coletiva ostentada em Tijuaçu provocou interferências ínfimas na recepção dos contos dos CN. Nesses discursos, predominou a influência das representações identitárias negras propagadas pelas classes dominantes. Entretanto, o contato com tais contos, provocou tensões entre as imagens que estão cristalizadas no imaginário dos leitores e as ofertadas pela literatura negra, interferindo, na maioria das vezes, no modo como negociam suas identidades. Com relação à última categoria de análise, notamos a influência positiva da identidade negra coletiva local nas representações das identidades individuais dos estudantes, contribuindo para rasurar as formas negativadas que circulam no âmbito nacional. As narrativas dos CN dialogaram com as experiências desses leitores e os motivaram a posicionamentos críticos no que ser refere às relações etnorraciais no Brasil. O trecho enfático presente na carta da leitora SF14, “esse negócio de preconceito com os negros tem que acabar”, reflete o posicionamento desses leitores solidários que se integram ao Quilombo literário proposto pelos CN. 105 Embora tenhamos alocado as cartas em categorias e analisado algumas percepções identitárias suscitadas a partir da leitura dos contos, as conclusões a que chegamos são limitadas, haja vista, o caráter subjetivo, fluido, dinâmico e até mesmo contraditório das identidades num mesmo indivíduo. Ademais, a identidade individual é influenciada pelas identidades nacional e cultural e vai além, pois se desdobra em identificações deslizantes em virtude da posição que o sujeito assume em diferentes contextos, nos quais se apega temporariamente, investe e negocia diferentes modos de se assumir. Em linhas gerais, constatamos que a literatura negra corrobora a fomentação de construções identitárias negras positivas; contudo, tal processo depende também de uma gama de outros discursos enunciados em contextos tanto formais quanto informais que sejam convergentes. Trata-se de o sujeito negro, seus pares e aqueles de outros segmentos sociais compartilharem as mesmas representações positivadas, desconstruindo, então, os processos de hierarquização da diferença. Destacamos nesta dissertação que os quilombolas das comunidades remanescentes e os das letras literárias lutam pela realização de anseios que se aproximam dos objetivados pelos guerreiros dos quilombos históricos, isto é a liberdade e a dignidade. São desejos atualizados na luta por condições iguais de ascensão social e de representações plurais e positivadas da diversidade etnorracial brasileira. Vale ressaltar que dentre as instituições legitimadas pela sociedade que atuam na formação do indivíduo, apenas a família, mas especificamente, a mãe, foi citada por alguns leitores como referência positiva na construção das suas identidades negras, por exemplo, nas cartas de SF11 e SF13. Nessa perspectiva, notamos também que, nos discursos dos sujeitos desta pesquisa, não há indícios que revelem as contribuições da escola. Ainda que no âmbito legal o artigo 68 da Constituição Federal de 1988 tenha proporcionado alguns avanços na reparação de danos históricos sofridos pelos habitantes das comunidades negras brasileiras e a Lei n. 10.639/03 tenha obrigado as escolas públicas a incluir em seus currículos o estudo da história e cultura afro-brasileiras, foi possível notar que na prática ainda há longo caminho a ser percorrido. Diante desse descompasso entre o que diz a lei e o que efetivamente acontece no contexto social brasileiro, verificamos que as ações afirmativas coletivas, como as empreendidas pelos quilombolas de Tijuaçu e pelos CN, têm angariado importantes conquistas. Em síntese, este trabalho apresentou um olhar sobre a identidade negra de Tijuaçu, a criação e as estratégias de manutenção dos Cadernos Negros, um periódico compreendido como um quilombo das letras na cena literária brasileira, que enseja, dentre outras questões, 106 representações identitárias afirmativas. O olhar culminou com uma análise das cartas produzidas pelos estudantes tijuaçuenses, após a leitura dos contos dos CN. Ao fechar estas páginas, retornando a epígrafe que abre estas considerações finais, concluímos que estamos próximos e distantes das respostas almejadas quando do início desta pesquisa, contudo esperamos que este término motive outros começos. 107 REFERÊNCIAS ALVES, Mirian. 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Sayonara Amaral de Oliveira 29 Declaro por meio deste termo, que autorizei o (a) adolescente sob minha responsabilidade a participar da pesquisa de campo referente ao trabalho intitulado A recepção dos Cadernos Negros por estudantes de uma comunidade quilombola. Tal pesquisa refere-se a um projeto de dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia. Fomos informados (as) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em linhas gerais, consiste em compreender pelas narrativas/contos dos Cadernos Negros a construção da identidade étnico-cultural dos alunos da escola CESB que vivem na comunidade quilombola Tijuaçu. Afirmo que o adolescente (a) aceitou participar por sua própria vontade, sem receber qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa. Ao participar deste estudo permitirei que as pesquisadoras Sayonara Amaral de Oliveira e Rosilda da Silva Souza colham informações a respeito do adolescente sob minha responsabilidade através de oficinas pedagógicas de leitura de contos e produção textual, utilizando como instrumentos de recolha de dados um diário de campo, as discussões em sala e uma carta produzida 28 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia. [email protected] Tel. (75) 9114 3490 29 Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia.Email [email protected] 114 pelos participantes da pesquisa. E que o adolescente sob minha responsabilidade pode se recusar a realizar qualquer etapa da oficina sem que isso lhe cause constrangimento de qualquer natureza. Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou sinta que o (a) adolescente em questão foi prejudicado (a), poderei contatar a pesquisadora responsável do projeto a qualquer momento e, se necessário através do telefone do Comitê de Ética em Pesquisa 30. A participação nesta pesquisa não traz complicações legais. Os procedimentos adotados obedecem aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução no. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Nenhum dos procedimentos usados oferece riscos à sua dignidade. No entanto é possível que em algum momento das oficinas, o adolescente possa se sentir constrangido em função de algum tema abordado nas narrativas ou das discussões que ocorrerão em sala de aula, caso aconteça, as pesquisadoras assumirão a responsabilidade de mediar eventuais conflitos através de palavras que destaquem a importância do respeito e dos valores positivos que constituem cada sujeito. Todas as informações coletadas neste estudo são confidenciais. As informações somente serão divulgadas de forma anônima, não serão usadas iniciais ou quaisquer outras indicações que possam identificar os sujeitos da pesquisa. Estou ciente de que não teremos nenhum tipo de despesa para participar desta pesquisa, bem como nada será pago pela participação. A pesquisadora me ofertou uma cópia assinada deste Termo Consentimento Livre e Esclarecido, conforme recomendações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa 31 (CONEP). Declaro estar ciente do conteúdo deste TERMO DE CONSENTIMENTO, estou de acordo com participação do adolescente sob minha responsabilidade no estudo proposto, sabendo que dele poderá desistir a qualquer momento, sem sofrer qualquer punição ou constrangimento. Senhor do Bonfim, _____ de _____________2012 _______________________________________________________ Nome do Responsável do Participante da Pesquisa _______________________________________________________ Assinatura do Responsável do Participante da Pesquisa _______________________________________________________ Assinatura do Pesquisador Impressão _______________________________________________________ datiloscópica do participante Assinatura do Orientador 30 31 Universidade do Estado da Bahia – Campus I, Salvador. Tel. (71) 3117 2445 Telefones (061) 3315-5878/5879 (e-mail:[email protected]). 115 ANEXOS ANEXO A – cópia da capa dos Cadernos Negros, volume 30. 116 ANEXO B – cópia da capa dos Cadernos Negros, volume 32. 117 ANEXO C – cópia da capa dos Cadernos Negros, volume 34