CURSO EDUCAÇÃO, RELAÇÕES RACIAIS E DIREITOS HUMANOS RENATO ADRIANO ROSA Resenha do curta-metragem “Cores e Botas” SÃO PAULO 2012 SINOPSE DO FILME Joana tem um sonho comum a muitas meninas dos anos 80: ser Paquita. Sua família é bem sucedida e a apóia em seu sonho. Porém, Joana é negra, e nunca se viu uma Paquita negra no programa da Xuxa. “Cores & Botas” discute os padrões estéticos estabelecidos pela mídia e sua influência na formação das crianças, padrões incoerentes com o povo brasileiro, tradicionalmente miscigenado, provocando também uma reflexão acerca da construção da auto-imagem da família negra. Ficha técnica: Duração: 16 min; Direção: Juliana Vicente; Ano: 2010; Documentário (curta-metragem); Realização: Preta Porte Filmes. Elenco: Jhenyfer Lauren, Dani Ornellas, Luciano Quirino, Bruno Lourenço MÍDIA & IDENTIDADE O Brasil é um país multirracial dada a sua formação étnica diversificada. No entanto, os meios de comunicação não refletem essa diversidade, e quando o faz, tem a tendência de priorizar características de determinado grupo social em detrimento de outros. Sendo assim, o que a mídia transmite diariamente é o reflexo de um modelo de identidade nacional que mais se aproxima do indivíduo de fenótipo e valores europeus a medida em que se afasta da realidade do miscigenado povo brasileiro. É inegável os reflexos da influência da mídia na formação do imaginário nacional, interferindo na interação social e atuando como um elemento externo para construção e identificação de jovens e crianças que, na maioria das vezes, arquitetam pressupostos equivocados de se olhar a negritude. O curta-metragem “Cores & Botas” discute o impacto da padronização do tipo racial branco, este tomado como natural até o momento em que um fato se mostra crucial para o alcance do sonho da protagonista: Joana (Jhenyfer Lauren) é negra, logo, entra em desacordo com o padrão estético e fenotípico que caracterizam as Paquitas, assistentes de palco da apresentadora Xuxa Meneguel, sucesso na década de 80. O argumento que muitas pessoas sustentam de que o preconceito é mais social que racial cai por terra quando se percebe que, mesmo vindo de uma família bem-sucedida economicamente, “querer” nesse caso não é “poder” já que os critérios de escolha das Paquitas eram primordialmente baseados na eugenia: garotas brancas, preferencialmente loiras de olhos claros, sem traços de mestiçagem aparentes. Segundo Maria Aparecida Silva Bento: “A criança negra não consegue identificar os seus heróis porque a memória de seu grupo foi omitida ou deturpada pela ideologia racista (...) Estas passam a não se valorizar, a negar e envergonhar-se da sua cor. Querem fazer parte do grupo valorizado pela sociedade. No caso do Brasil, com o grupo branco.” Assumir a identidade racial negra em um país como o Brasil é um processo extremamente difícil e doloroso, considerando-se que os modelos “bons”, “positivos” e de “sucesso” de identidades negras são restritos e o respeito à diferença em meio à diversidade de identidades raciais/étnicas inexiste. COMO SER NEGRO(A) EM UM MUNDO BRANCO? A família de Joana integra a proporcionalmente pequena classe média negra brasileira que, na visão de muitos que reconhecem o confronto nas relações raciais como sociais, representa a saída individual e liberal do preconceito. Os pais de Joana incentivam a filha na busca seus sonhos e objetivos pelo esforço individual (“querer é poder”, frase entoada pela mãe de Joana), entretanto, enfrentam um conflito interno na tentativa de negar o fato que sua filha não pode ser Paquita, não por incapacidade, e sim unicamente por não atender o padrão estético-racial determinado pela mídia brasileira. A imagem da menina negra não reflete no que o cineasta Renato Cândido chama de “espelho branco da sociedade brasileira”. O final do curta deixa aberta a discussão sobre o conflito vivido por parte da classe média negra que, apesar de acreditar no discurso de que o esforço individual supera os conflitos raciais, estudar e ser bem-sucedido seguindo todos os preceitos e normas brancas, ainda tem sua ascensão social limitada pela cor da sua pele. Nas palavras de Frantz Fanon: “Os sacrifícios do negro eram ridicularizados: (...) o negro ‘evoluído’ de repente se descobre rejeitado por uma civilização que ele, no entanto, assimilou”. O PAPEL DA ESCOLA NA REPRODUÇÃO DO PRECONCEITO É muito recorrente o discurso da educação como a cura de todos os males e na crença de que a escola é fator decisivo na melhoria das condições existenciais do negro. Como afirma João Baptista Borges Pereira: “Em síntese, a escola goza de grande prestígio como peça ideológica e instrumental do projeto de ascensão e integração sociais da população negra”. Não podemos negar a importância do papel da escola no desenvolvimento humano, independente de raça, porém, também não podemos desconsiderar o fato de que a escola é um dos componentes de socialização que reproduz o estigma negativo do negro desde a tenra idade. E é justamente na escola o que a trama do filme Cores & Botas se desenrola. João Baptista Borges aponta que “a instituição escolar reproduz em seu micro-mundo o esquema estrutural da relação brancos e negros da sociedade brasileira que, como se sabe, é uma relação de dominação-subordinação, ou seja, uma relação assimétrica entre dois grupos raciais. Neste ponto, longe de ser corretiva, a escola estimula, através de contatos diários e primários, a reprodução desse sistema não igualitário, a ponto de alunos negros mais sensíveis se recusam a ir à escola para assim evitarem situações constrangedoras e humilhantes para as quais não têm resposta”. A exemplo do que acontece com a Joana no final do filme, em geral, os pais não preparam adequadamente os filhos para enfrentar situações desse tipo a não ser quando a situação se mostra incontornável. “SERÁ QUE TEREMOS UMA PAQUITA ‘EXÓTICA’?” “Será que teremos uma Paquita ‘Exótica’?” - diz a professora do colégio onde Joana estuda no momento em que esta se apresenta para fazer a inscrição para o concurso de Paquita. Essa frase sintetiza, segundo João Batista, “que a mensagem que a escola transmite, reflete, sem maiores críticas, toda a estereotipia que circula na sociedade brasileira, desde o negro aqui chegou e através da qual se constrói a imagem estigmatizada do negro até os dias atuais. A escola brasileira se fecha a possíveis influências corretivas dessa estereotipia. Se recusam em afirmar o negro como co-construtor da história brasileira e adotar uma literatura de autores negros que ajudassem a desnudar a iniqüidade do sistema racial brasileiro”. Por fim, um dos grandes desafios dos movimentos negros é a luta pela efetividade da lei 10.639/03 que obriga: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. Cabe a escola o reforço da identidade positiva do negro enquanto grupo etnicamente singularizado dentro da sociedade plurirracial brasileira através do resgate e valorização da história do negro e da quebra dos estereótipos negativos do negro. REFERÊNCIAS BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania em preto e branco. Editora Atica, 2001. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Disponível no link: http://pt.scribd.com/doc/36623756/Pele-negra-Mascaras-Brancas FERREIRA, Gilberto A. Identidade negra: descaminhos. Revista negro seade v.2 abr-jun 1988. disponível no link: http://www.seade.gov.br/produtos/spp/v02n02/v02n02_04.pdf PEREIRA, João Baptista Borges. A criança negra - identidade étnica e socialização. Caderno de pesquisa nº 63, 1987, disponível no link: http://educa.fcc.org.br/pdf/cp/n63/n63a07.pdf