MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA - 5ª REGIÃO Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo nº 2008.80.00.003152 – 9 AC 466178 – AL Apelante: Felipe Gomes de Souza Apelado: Universidade Federal de Alagoas Relatora: Desembargadora Federal Margarida Cantarelli – Quarta Turma PARECER Nº 0629/2009 EMENTA: CONSTITUCIONAL. SISTEMA DE COTAS SOCIAIS. INSTITUTO DA RESOLUÇÃO. PRINCIPIO DA IGUALDADE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. PRINCÍPIO DO MÉRITO. 1. A criação de um sistema de cotas, com quebra do princípio da legalidade, não se insere na autonomia didático-cientifica da Universidade. 2. O princípio da igualdade exige um tratamento isonômico a qual todos têm direito ao acesso em universidade independente da cor e da raça e de origem social. 3. Não cabe ao Poder Judiciário a formulação de políticas públicas 4. Parecer pelo provimento do recurso de apelação. Trata-se de recurso de apelação ajuizado face a sentença que julgou improcedente pedido para que a ora apelada proceda à matrícula do autor. Alega o autor que foi preterido na classificação de vestibular para o curso de Direito – período diurno, em face da adoção do sistema de cotas raciais pelo Edital nº 3/2007 da Universidade Federal de Alagoas, pelo qual 20% (vinte por cento) das vagas seriam reservadas a estudantes negros e pardos oriundos de escolas de ensino médio públicas. Aduz o autor, ora apelante, a existência de inconstitucionalidade na política de cotas da UFAL, por ofensa aos princípios da igualdade e da legalidade, considerando que se adota um sistema discriminador, que se baseia em elemento subjetivo, além de preconceituoso e arbitrário, além de que adentraria em espaço reservado à lei federal. 1 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA - 5ª REGIÃO Destaca o autor, ora apelante, na exordial, que a nota obtida por ele é superior a maior nota obtida pelo cotista classificado em primeiro lugar no curso de Direito diurno – 636.859, e que o último colocado cotista obteve 574.509. O autor conseguiu, no PSS1, cinco notas 10(dez), mas, sucede que não foi convocado para cursar a Universidade. Ataca, outrossim, o autor, ora apelante, o favorecimento aos estudantes de escolas públicas, no dito ingresso via vestibular, fato que implicaria verdadeira sanção aos egressos de colégios particulares, citando, a propósito, o disposto no artigo 208, V, da Constituição Federal e ainda a Lei nº 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação), as quais importariam a observância da igualdade de condições para o acesso no ensino superior. A defesa da ora recorrida é pautada nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade e, ao final, no princípio da autonomia universitária. Passo à análise do mérito, entendendo presentes os requisitos de admissibilidade recursal. Há um entendimento de que, com a publicação do trabalho de T. H. Marshall (Citizenship and social development, Connectucut: Greenwood Press, 1979), o conceito de cidadania tem sido compreendido a partir do desenvolvimento da igualdade dos direitos universalizáveis. Isso se dá com respeito ao conceito de cidadania que contemple o respeito a diferenças específicas. Haveria uma injustiça simbólica que levaria à expansão do sistema da cidadania, uma vez que seriam estudadas diferenças específicas, seja de orientação sexual, de gênero, de raça ou de cultura específica. Nessa linha de pensamento, Charles Taylor (The politics of recognition, Amy (org.) Multiculturalism, Princepton: Princeton University Press, 1994) percebeu tal concepção do conceito de cidadania, partindo da distinção entre cidadania propriamente dita e autenticidade. Enquanto dignidade refere-se a algo que todos possuem em comum se contrapondo, nesse sentido, ao conceito aristocrático de honra, a autenticidade, em contraposto, diz respeito às características singulares que apenas alguns possuem. Assim, democrático seria o Estado que protege e respeita minorias. 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA - 5ª REGIÃO Analisando a chamada discriminação compensatória, Dworkim (Levando os Direitos a sério, Martins Fontes, São Paulo), traz à colação que, em 1971, um judeu chamado DeFunis candidatou-se a uma vaga na Faculdade de Direito da Universidade de Washington e foi recusado, ainda que as notas dos exames aos quais se submeteu e as de todo seu histórico escolar fossem tão altas que ele teria facilmente admitido se fosse negro, filipino, chicano ou índio americano. DeFunis pediu à Suprema Corte que declarasse que a prática observada pela Universidade de Washington, menos exigente com os candidatos pertencentes a grupos minoritários, violava os direitos que lhe eram assegurados pela Décima Quarta Emenda (Sweatt vs. Painter, 339 U.S 629, 70§ Ct. 848). Leciona Dworkin que o caso DeFunis dividiu os grupos de ação política que tradicionalmente defendiam causas liberais. A chamada Liga Antidifamação B¨nai Brith e a AFL – CIO juntaram seus pareceres aos autos, na condição de amici curiae, em apoio à tese defendida por DeFunis, enquanto que, por exemplo, a American Hebrew Woman¨s Council defendeu posição contrária. É certo que sobre a matéria, no passado, os liberais, nos Estados Unidos, faziam as seguintes proposições: a) que a classificação racial é um mal em si mesma; b) que todos têm direito a uma oportunidade educacional proporcional às suas habilidades; c) que a ação afirmativa estatal é o remédio adequado para as graves desigualdades existentes na sociedade norte-americana. No entanto, reconhece-se que mesmo se a discriminação compensatória realmente beneficia as minorias e diminui o preconceito, a longo prazo, ela é equivocada, uma vez que as distinções com base na raça são inerentemente injustas. São injustas uma vez que violam os direitos de membros individuais de grupos não igualmente favorecidos, que podem sofrer o mesmo processo de exclusão a que foi submetido, por exemplo, DeFunis, no exemplo trazido. A Suprema Corte entendeu, para o caso, que se tratava de um ¨moot case¨, isto é, de uma ação cuja decisão judicial não tem efeito prático sobre a matéria em discussão. Nos Estados Unidos, uma ação é considerada ¨moot¨ quando a questão em disputa já foi resolvida ou o conflito que a gerou deixou de existir. Ora, no exemplo citado, DeFunis alegou que seu direito de que a raça não seja usada como critério de admissão decorre do direito mais abstrato à igualdade, que é assegurado pela Décima Quarta Emenda e determina que nenhum Estado negará a qualquer pessoa a igual proteção perante a lei. 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA - 5ª REGIÃO De toda sorte, a solução está, segundo Dworkim (obra citada, pág. 349), no conceito central de um direito individual à igualdade, transformado em direito constitucional pela Cláusula de Igual Proteção. Devemos nos afastar de critérios meramente utilitaristas para a solução do problema que envolve a implementação de uma política pública voltada a integrar no sistema educacional brasileiro. Data vênia, os critérios raciais, acima do sistema do mérito, não são necessariamente os padrões corretos para decidir quais candidatos serão aceitos pela faculdades de direito. O programa assim só servirá a uma política adequada, que respeite o direito de todos os membros da comunidade de serem tratados como iguais. Essa igualdade no acesso à Universidade Pública passa, primacialmente, pelo mérito. Todos têm direito ao acesso à Universidade, independente de cor da pele e de origem social. A solução passa por um ensino público fundamental de qualidade e eficiente, com professores bem pagos. Essa a melhor fórmula para melhorar a competitividade no acesso a vagas distribuídas em vestibular. . O resto é, data vênia, ¨tapar o sol com a peneira¨. No Brasil, a matéria foi enfrentada em diversos julgamentos. Trago, ab initio, à colação, a AC 321794 – ES, Tribunal Regional Federal da 2ª Região, DJU de 31.03.2005, onde se disse que devem ser considerados, no problema, os seguintes aspectos: o princípio meritório (da capacidade de cada um), o princípio da igualdade, o princípio da legalidade (uma vez que deve haver lei, material e formal, prevendo a reserva de vagas para os egressos do ensino público), o princípio da razoabilidade. Como bem se observa do julgamento da Apelação em Mandado de Segurança nº 200570000057460/PR, pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região, DJU de 25 de agosto de 2008, a criação de um sistema de cotas, com quebra do princípio da legalidade não se insere na autonomia didático-cientifica da Universidade. Na Apelação/Reexame Necessário nº 2007.72.00.014951 – 3/SC, DJU de 26 de agosto de 2008, o Tribunal Regional Federal da Quarta Região concluiu que ato administrativo editado em manifesta violação do princípio da legalidade, não pode ser aceito quando cria uma limitação individual que deve ser tratada de acordo com a lei. Assim, a criação de um sistema de cotas, com quebra do princípio da legalidade não se insere na autonomia didático-cientifica da Universidade. No caso, a questão ultrapassa a autonomia didático-cientifica, ferindo o principio da igualdade, na medida em 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA REGIONAL DA REPÚBLICA - 5ª REGIÃO que todos têm o direito de ingresso em Universidade Pública independente de cor da pele e origem social. Bem dito que a função social da Universidade não é produzir igualdade, ou fazer engenharia social, mas preservar o mérito como um todo. Isso porque o mérito acadêmico é representativo do ¨bem de todos¨, da Justiça Distributiva e do princípio da igualdade. De outra sorte, seria permitir que o Judiciário formule políticas públicas de regra, corrigindo o rumo, em detrimento do princípio da legalidade. Considero, dentro da linha do julgamento do AGTR nº 69.760 – AL, Relator Desembargador Federal Élio Siqueira (convocado), que o regime de cotas para acesso às Universidades não prescinde da existência de lei em sentido estrito. No mesmo sentido, colho o julgamento do AGTR 61.893 – AL, Rel. Des. Paulo Gadelha, julg. 24 de agosto de 2006. Na matéria, cogita-se da existência de Projeto de Lei nº 3.627/2004, que trata da reserva de vaga para negros nas universidades brasileiras. Tenho, como ilegal a Resolução que disciplinou o dito vestibular. Diante do exposto, opino pelo provimento do recurso de apelação. É o parecer Recife, 11 de março de 2009. ROGÉRIO TADEU ROMANO Procurador Regional da República 5