O ALFABETIZADOR EM MATEMÁTICA – APRENDENDO A CONHECER E A FAZER O CONHECIMENTO MATEMÁTICO. Profª. Solange Maria Gomes dos Santos Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá - Paraná As exigências educativas da sociedade contemporânea são crescentes e estão relacionadas à diferentes dimensões da vida das pessoas: ao trabalho, à participação social e política, à vida familiar e comunitária, às oportunidades de lazer e desenvolvimento cultural. O mundo contemporâneo passa atualmente por uma revolução tecnológica que está alterando profundamente as formas do trabalho. Estão sendo desenvolvidas novas tecnologias e novas formas de organizar a produção que elevam bastante a produtividade, e delas depende a inserção competitiva da produção nacional numa economia cada vez mais mundializada. Essas novas tecnologias e sistemas organizacionais exigem trabalhadores mais versáteis, capazes de compreender o processo de trabalho como um todo. Daí a necessidade da reciclagem contínua, de buscar e relacionar informações diversas. Portanto, pode-se dizer que, de forma geral, uma inserção vantajosa no mercado de trabalho exige hoje uma melhor formação geral e não apenas treinamento em técnicas específicas. Trabalhadores com capacidade de resolver problemas e aprender continuamente têm mais condições de trabalhar com eficiência e negociar sua participação na distribuição das riquezas produzidas. Outro ponto das exigências educativas que a sociedade nos impõe está no âmbito político. A possibilidade de os diversos setores da sociedade negociarem coletivamente seus interesses está na essência da idéias de democracia. Na história da civilização moderna, a idéia de democracia sempre contemplou o ideal de uma educação escolar básica universalizada. Através dela, pretende-se consolidar a identidade de uma nação e criar a possibilidade de que todos participem como cidadãos na definição de seus destinos, e para isso, uma pessoa precisa ter acesso a um conjunto de informações que exigem o domínio de instrumentos da cultura letrada. Assim, chega-se às exigências educacionais que a própria vida cotidiana impõe crescentemente. Para se ter acesso a muitos benefícios da sociedade moderna, é preciso ter domínio dos instrumentos da cultura letrada: para tirar os documentos, para mover-se no 1 mercado de consumo, para se locomover de uma localidade para outra e, finalmente, para poder usufruir de muitas modalidades de lazer e cultura. Vê-se assim que promover a educação fundamental de Jovens e Adultos que não tiveram a oportunidade de cumpri-la na infância é importante para responder aos imperativos do presente e também para garantir melhores condições educativas para as próximas gerações. Melhorar o nível educacional de um país é um desafio grande e complexo, que exige esforços em todos os níveis. Segundo Paulo Freire, (1990,p.65): “o ato educativo deve ser sempre um ato de recriação, de re-significação de significados.” Sabe-se que os motivos que levam os Jovens e Adultos à escola referem-se predominantemente às suas expectativas de conseguir um emprego melhor. Mas suas motivações não se limitam a este aspecto. Muitos referem-se também à vontade mais ampla de “entender melhor as coisas”, “se expressar melhor”, de “não depender sempre dos outros”. Do ponto de vista sócio-econômico o público dos Programas de Educação de Jovens e Adultos caracteriza-se como um grupo homogêneo. Entretanto do ponto de vista sóciocultural eles formam um grupo bastante heterogêneo. Chegam à escola já com uma grande bagagem de conhecimentos adquiridos ao longo de histórias de vida as mais diversas, trazem conhecimentos, crenças e valores já constituídos. Para Regina Zilberman: "escola, na medida mesma em que trabalha com indivíduos diferentes, com valores, crenças, hábitos lingüísticos e comportamentais diferentes, é também um campo de batalha – luta de idéias e de linguagens, como expressão da luta de classes". (Zilberman:1982, p. 43) É a partir do reconhecimento do valor de suas experiências de vida e visões de mundo que cada jovem e adulto pode se apropriar das aprendizagens escolares de modo crítico e original, sempre da perspectiva de ampliar sua compreensão, seus meios de ação e interação no mundo. 2 Em seu livro Educação como Prática da Liberdade, Paulo Freire propõe a utilização de uma metodologia na Alfabetização de Jovens e Adultos, que tem como fio condutor, a alfabetização visando à libertação. E essa libertação não se dá somente no campo cognitivo, mas acontece essencialmente nos campos social e político. A metodologia de Freire compreende dois princípios: o primeiro diz respeito à politicidade do ato educativo (observação – reflexão – readmiração – ação) e o segundo diz respeito à dialogicidade do ato educativo (a base da pedagogia é o diálogo). Essa proposta foi completamente inovadora, diferente, por possibilitar uma aprendizagem libertadora, que requer uma tomada de posição frente aos problemas em que vivemos. Foi diferente, pois promovia a horizontalidade na relação educador-educando, a valorização de sua cultura, de sua oralidade, enfim, foi diferente, acima de tudo pelo seu caráter humanístico. Uma aprendizagem integradora, abrangente, não compartimentada, não fragmentada, com forte teor ideológico. Dessa forma a metodologia proposta por Paulo Freire rompeu com a concepção utilitária do ato educativo, propondo uma outra forma de alfabetizar. Num país com imensas desigualdades e contradições, a educação se apresenta como um fator de esperança e transformação para a sociedade, não apenas permitindo o acesso ao conhecimento, à participação, mas propiciando condições para que o indivíduo construa sua cidadania. A construção da cidadania exige transformações profundas na sociedade e mudança de paradigmas a partir de uma visão ético-política. Mudar os paradigmas é a parte mais desafiante do drama humano. De fato, são muito poucos aqueles que, em sua área de atuação, são capazes de mudar a maneira de ver, entender e agir, ou seja, o modo como são feitas as coisas. Contudo, as grandes mudanças de paradigmas para saírem do conceito inicial e se tornarem realmente prática, precisam de um tipo especial de pessoa ou organização. De fato, são aqueles que abraçam uma idéia ainda em fase inicial e levam-na à prática, fazem com que aconteça e difundem-na em escala significativa. E para isso, eles investem tempo e energia em conceitos que, para a maioria das pessoas, são apenas possibilidades remotas. As possibilidades de mudança acontecem através do exercício da cidadania participativa, que vai se construindo de muitas formas, articulando entre si uma teia de experiências que têm diferenciado o movimento social nos últimos anos. 3 Nesse contexto histórico-social se insere o alfabetizador, cuja ação é comparável a uma chave que abre horizontes. Cabe-lhe desenvolver ações que respondam aos anseios dessa população para o mundo do trabalho, cada vez mais complexo, exigente e competitivo. Aos alfabetizadores que atuam em comunidades populares, é necessária a consciência de que se pode construir novas relações consigo mesmo, com o outro, com o mundo, a partir de um processo educativo que leva em conta a realidade da população, acreditando ser possível tomar um rumo novo, mudar o destino, quebrar preconceitos e livrar-se de estereótipos. Qualquer que seja a origem deste alfabetizador, é preciso que ele se distancie, em alguns momentos, para ser espectador da própria prática e assim percebê-la com um olhar mais crítico e menos emocional. Em contrapartida, em outros momentos, é necessário inserirse no meio, fazer parte dele, viver sua realidade, solidarizando-se com ela. diferentes de ver, perceber, agir e se relacionar com o mundo. A função social do educador é ser agente de transformação. Cabe a ele auxiliar na organização dos desejos e necessidades da população com a qual trabalha. As rápidas mudanças sociais e o aprimoramento cada vez mais veloz da tecnologia, impedem que se faça uma previsão exata de quais habilidades, conceitos e algoritmos matemáticos seriam úteis hoje, para preparar um alfabetizando para sua vida . Para tal, é fundamental desenvolver nele iniciativa, espírito explorador, criatividade e independência através de um conhecimento objetivo, capaz de atender as necessidades do contexto matemático. Novas metodologias e tendências pedagógicas são conhecidas, visando a melhoria e a qualidade da Educação Matemática para Jovens e Adultos, porém, a maior preocupação tem sido a busca do conhecimento por meio de temas geradores, que alie a teoria com a prática, de forma unificada. A Educação Matemática como objeto de reflexão é definida como uma área autônoma de conhecimento matemático cujo objeto de estudo e pesquisa é interdisciplinar e que diz respeito ao processo de produção e aquisição do saber matemático, tanto mediante a prática pedagógica em todos os graus de ensino, quanto mediante outras práticas sociais. A Educação Matemática se faz na relação dialética entre o saber matemático e os fundamentos da Educação como um lugar de construção de novas identidades profissionais, 4 em constante renovação, com potencial para produzir conhecimento novo, e contribuindo para a inovação do Ensino da Matemática. O ato de educar não pode ser conceituado simplesmente como transmissão de conhecimentos. Consiste, sobretudo em aprender na prática constante, a fim de criar este conhecimento. Dessa forma acredita-se ser o conhecimento, não apenas um estado desse, mas também, o processo de sua apropriação, voltado ao cotidiano da sala de aula. Já dizia FRAGA (1988, p.43): "O discurso matemático desligado da vida cotidiana do aluno, não o estimula para explorar e conhecer a Matemática como um bem cultural criativo, real e prático." A dificuldade no uso de eixos articuladores por parte do alfabetizador de Matemática na transmissão dos conteúdos, ocasiona uma perda significativa no tratamento da ação didática, comprometendo seu papel de orientador da aprendizagem de seus alfabetizandos, ou seja, de criar condições para que o aluno adquira informações, e impedindo que haja uma transferência deste conhecimento para outras circunstâncias e situações da vida real, razão por que se perde uma parte do sentido científico e pedagógico do Ensino da Matemática. Muitos teóricos da Educação, a partir da constatação da complexidade das variáveis que intervêm nos processos educativos, seja em número como em grau de inter-relações que se estabelecem entre elas, afirmam a dificuldade de encontrar referências para uma prática pedagógica mais significativa. O professor que modifica algum aspecto de sua prática docente como resposta a algum problema prático, ou seja, adota uma estratégia de mudança, está realizando uma postura onde a ação inicia a reflexão. Um dos grandes desafios da Alfabetização Matemática para Jovens e Adultos é mostrar uma nova forma de representar os números e as relações numéricas através de situações do cotidiano do alfabetizando, oportunizando a ampliação de seus conhecimentos e a construção do seu saber lógico-matemático, E, sendo trabalhada a partir de eixos temáticos possibilitará a ele, um resgate de sua historicidade e um contato no contexto político, social e cultural no qual está inserido. Nesta concepção, foi trabalhada uma Oficina de Matemática com a integração dos eixos temáticos “Nosso Corpo” e “Medidas do Corpo”, com a atividade chamada “Beleza 5 Áurea”. Esta oficina consiste em avaliar as proporções de medidas do corpo humano dentro de uma tabela matemática, e tem como objetivos: • evidenciar a importância do corpo humano e sua relação com a aprendizagem matemática; • mostrar a história sobre a perfeição do corpo humano cultivada pelo povo grego através da Beleza Áurea; • fazer o reconhecimento dos diferentes instrumentos de medidas; • explorar e aplicar as relações métricas de forma mais criativa; • refletir a importância das medidas no cotidiano das pessoas; • o fortalecimento do conceito de auto-estima e de auto-imagem como referenciais de identidade social. A metodologia aplicada consiste no grupo de alfabetizadores espalhado pela sala, onde cada participante recebe uma folha de papel ofício, com o desenho de uma figura humana, de corpo inteiro, demarcada com pontos de medição e uma tabela matemática(ver tabela em anexo). Formam-se então subgrupos. Cada pessoa irá medir o seu colega de grupo, anotar na folha e fazer os cálculos matemáticos. Em seguida, recolhem-se estas folhas e os monitores, acadêmicos do 4º Ano de Matemática, com uma planilha de cálculos, verificam as pessoas que estão mais próximas das proporções de Beleza Áurea. No encerramento da oficina são eleitos o Mister e a Miss Beleza Áurea entre os alfabetizadores. Com este trabalho, estamos mobilizando o alfabetizador para perceber-se, permitindo a reflexão e a expressão dos sentimentos referentes à sua auto-estima e autoimagem através da Educação Matemática. Esta atividade está sendo aplicada em todos os encontros da Alfabetização Matemática e hoje há uma disputa “criativa” de títulos entre as cidades participantes do Programa de Alfabetização Solidária. É a Matemática presente em todas as situações do cotidiano de nossas vidas! 6 OFICINA DE MATEMÁTICA TEMA: BELEZA ÁUREA descrição cabeça (h) cabeça (v) olhos-nariz nariz-queixo nariz-lábio olhos-nariz cabeça-umbigo umbigo-pés umbigo-joelhos joelhos-pés Entre 1,57 e 1,66 = na mosca! Entre 1,45 e 1,57 ou 1,66 e 1,78 = ainda está nas proporções! Entre 1,29 e 1,45 ou 1,78 e 1,94 = quase lá! 7 código C1 C2 F1 F2 F3 F1 H1 H2 P1 P2 medida cálculo C2 : C1 F2 : F1 F1 : F3 H2 : H1 P1 : P2 BIBLIOGRÁFIA: ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998. BEISIEGEL, Celso de Rui. Estado e Educação Popular: um estudo sobre a educação de adultos. São Paulo: Pioneira 1974. BELLONI, Maria Luiza. Educação a distância. Campinas: Autores Associados, 1999. BRASIL: Educação para Todos: avaliação da década. Brasília: MEC/INEP,2000. D'AMBROSIO, Ubiratan. Da realidade à ação: reflexão sobre educação e matemática. São Paulo: Summus, 1986. DELORS, Jacques. 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