UMA CAPACITAÇÃO “IN LOCO”...
ANÉSIA MARIA COSTA GILIO
FACULDADES INTEGRADAS MARIA THEREZA – FAMATH
Este artigo é um relato do novo...
A partir do velho. Ou, do vivido?
Uma capacitação “in loco”.
Contrário ao, até então, vivido.
Este relato se fez do ontem e do hoje.
A idéia de escrever este artigo surgiu a partir de meu exercício de
observação; da ação de fazer relações, de perceber admirações nos sujeitos
que permeiam meu cotidiano. Para este fim, busquei em
Lüdke (1986), o
respaldo que procurava para justificar essa necessidade que sinto de ser parte
deste relato, dispondo, também, da minha leitura do mundo e das minhas
emoções para nortear este trabalho. Diz esta autora, que “é igualmente
importante lembrar que, como atividade humana e social, a pesquisa traz
consigo inevitavelmente, a carga de valores, preferências, interesses e
princípios que orientam o pesquisador” (Lüdke e André, 1986, p. 3).
Mais segura sobre a liberdade no pensar e no agir como pesquisadora,
iniciei um exercício para definir a metodologia que seria adequada à análise do
que tomo como objeto deste estudo: Primeira capacitação de alfabetizadores
nas FAMATh, Niterói RJ e, também, primeira
capacitação “in loco” no
município de Planaltino/ Bahia.
Lüdke e André (1986), apontaram-me como caminho metodológico a
análise de conteúdo. Esta se constitui em um conjunto de instrumentos
metodológicos que tem, como fator comum, técnicas múltiplas e multiplicadas,
que levam a uma hermenêutica controlada, baseada na inferência. Seu esforço
de interpretação é norteado por dados objetivos e subjetivos, dando maior
prioridade ao segundo, permitindo ao pesquisador a constante formulação de
hipóteses, partindo para as suas inferências, ao não-dito no discurso. Analiso,
então, os dados recolhidos para este estudo com base na análise de conteúdo,
fundamentada nos estudos realizados por Bardin (1977).
Partindo destes pressupostos, apresento dados objetivos, mas a
atenção e o olhar estão definitivamente voltados
para a subjetividade no
discurso do universitário envolvido em um projeto solidário. Este movimento, foi
assim definido por Wagner de Araújo Rezende (7º período de Psicologia,
2001):
“Os alunos (graduandos) eram movidos por desafios e a cada momento
surpreendiam e eram surpreendidos com a beleza criativa e a responsabilidade
política no querer e no fazer, marcas de todas as oficinas. Vínculos de amizade
foram estabelecidos, reforçando a motivação daqueles que saudosos de seus
lares,se
envolviam incessantemente no aprimoramento de seus
conhecimentos. Havia a expectativa primeira de conhecer melhores
metodologias de ensino que possibilitassem o sorriso nos rostos daqueles que
aprenderiam a assinar seus nomes e se integrariam à sociedade dignamente,
pois a condição de analfabeto não mais representaria motivo de segregação e
preconceito. Foram estes ensinamentos, que possibilitaram-nos perceber a
emoção que contagiou esta Instituição de Ensino Superior. Período de recesso,
intervalo entre semestres, e a IES com um trânsito intenso de 107 alunos em
suas instalações. Direção Acadêmica, Coordenadores, Professores, Monitores
e Coordenadores de grupos eram solicitados insistentemente. Era o fazer
pedagógico contagiando a academia. Os trabalhos propostos eram em sua
totalidade, práticos, dinâmicos, defendendo a proposta de Vygotsky (1991), que
quando fazendo com a ajuda do outro, aprende-se a fazer”.
Assim, resgato dois diferentes momentos tomados de admirações,
quando compartilhei e registrei o dito e o não dito nos discursos e nos olhares
dos meus alunos:
Período de férias, 15 dias, ano de 2001, nas FAMATh, 107 alunos
envolvidos na capacitação de alfabetizadores;
Período letivo, 3 dias, ano de 2003, no município de Planaltino, 3 alunas
envolvidas na capacitação de alfabetizadores.
O projeto que elaborei para o ano de 2001, foi respeitado em 2003.
Matematicamente impossível? Como foi feito?
A capacitação nas FAMATh, Município de Niterói, RJ, acontecia em 15
(quinze) dias, destes dias 4 (quatro), eram destinados a atividades culturais,
que aconteciam nos sábados e domingos. De 2ª a 6ª feira, os trabalhos
aconteciam de 8:00h às 20:00h, com intervalo de 12:00h às 14:00h para
almoço. Total, portanto,
de 10 (dez) horas/dia,
trabalhando o conteúdo
proposto, que contabilizavam 110h/a. Nesta ocasião cada oficina proposta
tinha a duração necessária, ou seja, 22 delas, duravam três horas e as 11
restantes duravam quatro horas.
Nos cronogramas das FAMATh, existiam dois horários de três horas de
visitas e orientação nos laboratórios do curso de Biologia, além de peça de
teatro com o objetivo de provocar motivações diferenciadas para reflexão sobre
o cotidiano vivido, estas eram outras três horas, que, também, não
aconteceram na capacitação “in loco”. Cabe destacar, ainda, que a oficina de
prática de ensino dispunha de quatro tempos de quatro horas, momentos em
que alfabetizadores faziam as aulas e aconteceram em Planaltino em apenas
um tempo. Assim sendo, estes 21 tempos ou oficinas foram subtraídos do
total.
Na proposta deste cronograma, então, foram distribuídos dezesseis
títulos que aconteceram em 11 horas (dia), durante três dias, ou 33h/a de 01/06
a 03/06/2003, o que significou, aproximadamente, duas h/a para cada uma das
oficinas. Estes dezesseis títulos, entendidos como oficinas compõem, portanto,
a proposta metodológica do processo de capacitação de alfabetizadores das
FAMATh, proposta esta destacada a seguir:
A proposta metodológica deste projeto de capacitação de alfabetizadores
de jovens e adultos, tem por base a multidisciplinaridade. Isto significa que
independente do título dado ao momento proposto, o capacitador estará
buscando os vários conteúdos possíveis, independente de ser esta ou aquela
disciplina. Exemplo: discutindo questões matemáticas, pode-se chamar a
atenção para a elaboração do texto que sugere a resolução de um problema
ou
um rápido cálculo matemático, ou ainda neste texto, é possível estar
referindo-se a questões alimentares, ambientais, ou, sociais.
Procedimentos Metodológicos:
1- Prática de ensino: o objetivo é dar ao alfabetizador a oportunidade de
planejar e apresentar uma aula, tendo orientação durante todo o processo.
2- Resgate da cultura do Município:
o objetivo central do processo
ensino/aprendizagem é partir da realidade do aluno. É fundamental, portanto,
um momento de valorização da cultura de cada um dos municípios envolvidos
no projeto.
3- Respeito àqueles que, com sabedoria, conseguiram viver sem saber ler
e escrever: o objetivo deste momento é mostrar ao jovem alfabetizador que
lidar com as dificuldades da vida é difícil quando se sabe ler e escrever, mais
difícil, ainda, é fazê-lo sem dispor destes recursos. Sendo assim, estarão eles
alfabetizadores tentando acrescentar mais um saber na vida daqueles que são
a sabedoria. São, portanto, os alfabetizadores que precisam calar-se para ouvir
o alfabetizando; são os alfabetizadores que devem incentivar, elevar a autoestima e acima de tudo ser afetivo no sentido proposto por Wallon (apud
Dantas, 1992), de afetar o outro, trazendo-o para junto de si. A importância
deste momento se deve a necessidade do poder inerente ao ser humano. O
título de professor, faz com que o alfabetizador reproduza falas e ações de
seus antigos professores. Sendo possível, então, posturas autoritárias no
sentido de calar o aluno. Estes, por sua vez, se na escola estiveram,
abandonaram-na por não terem vez nem voz, o espaço proporcionado pelo
PAS, não poderá ser cenário de um filme já visto e abandonado antes de
terminar.
4- Lidando com as diferenças: este momento prioriza a noção de grupo. É de
grande importância o entendimento de que ser diferente, não significa ser
melhor ou pior que o outro. Cada pessoa tem sua história, esta é construída
individualmente na relação com o coletivo. As questões e situações
apresentadas por este coletivo, provocam reações diferenciadas em cada um.
Assim sendo, o que é importante para um pode não ser importante para o
outro, o medo de um pode ser a coragem do outro e assim sucessivamente.
5- Canções: Diz o ditado popular que “quem canta os males espanta” é
partindo dessa premissa, que as canções aparecem na capacitação. Canções
contam a história do país e marcam as histórias individuais. Segundo Bosi
(1987), a memória é a única coisa que não conseguem tirar dos mais velhos. A
proposta metodológica de trabalhar com canções, tem o objetivo de relaxamento
muscular daqueles que, na maioria das vezes, trabalham na lavoura. Quando
cantam estão preocupados com a letra e a melodia, distanciam-se de seus
problemas. Voltando para a realidade contam o que a canção fez relembrar,
discutem o que diz a letra e elegem palavras geradoras de novas questões.
6- Pedagogia do ambiente: esta é uma proposta de educação ambiental,
entretanto, discutir a destruição da floresta Amazônica, ou a camada de ozônio,
são
questões
distanciadas
da
realidade
vivida
por
alfabetizadores
e
alfabetizandos. A pedagogia do ambiente discute como cuidar do espaço da sala
de aula, da escola, da casa de cada um, da água, do esgoto, do lixo, da
comunidade e assim sucessivamente.
É importante que cada um se sinta
responsável pelo espaço geográfico em que vive. Só assim será possível a
preservação da natureza.
7- Cuidados com saúde e remédios: este momento refere-se a questões
simples que nem sempre são percebidas com simplicidade e responsabilidade.
É comum nas comunidades menos favorecidas economicamente, o uso de
medicamentos naturais, que quanto a operacionalidade, segundo Anjos (1980),
é um saber técnico difuso, quem o recomenda sabe a técnica, mas não sabe
explicar o porquê. É um saber por tradição oral e depende da crença de
terceiros. Exemplo: chás de ervas. Esta questão será discutida a partir do
saber técnico difuso dos alfabetizadores. Uma outra questão discutida neste
momento é o aproveitamento das partes dos alimentos, que geralmente se joga
fora.
8- Recursos escritos: Cabe neste momento trabalhar com o alfabetizador a
criação de situações em que os alfabetizandos exponham e reconheçam aquilo
que já sabem sobre a escrita. Assim, poderá decidir que novas informações
serão fornecidas aos alunos. O trabalho com a linguagem escrita deve envolver
inicialmente atividades de leitura e produção de textos, curtos e simples, como
por exemplo: listas; folhetos; cartazes; bilhetes; poesias; receitas culinárias;
anedotas; cartas; crônicas; pequenas histórias; manchetes de jornais.
9- Leitura de figuras: Segundo o grupo Vereda/SP, no projeto que intitulam
“Viver é Aprender”, com base na proposta freireana de alfabetização, as figuras
servem para estimular a conversa e a reflexão sobre a questão do
conhecimento. Deve-se, então, orientar os alfabetizadores que escolham
figuram que sugiram frases. Mais importante do que a leitura destas frases,
portanto, é a leitura das figuras, como: o que é, e, como é . É este movimento
que leva o aluno ao processo de decodificação destas figuras, esta acontece
quando o aluno começa a estabelecer relações entre o que está acontecendo
na figura e suas experiências e conhecimentos. Este é o momento mais
importante do processo, é o exercício do pensar, do sentir-se parte da figura,
parte do cenário que inicialmente era esvaziado de significado, não
contextualizado, apenas apresentado. O conhecimento se constrói quando
conseguimos fazer relações. Assim novas palavras geradoras são eleitas, que
levantarão novas questões.
10- Matemática, presente no cotidiano do aluno: Este momento destina-se a
desmistificar o conceito construído no senso comum de que esta ciência está
distante dos que têm pouca escolaridade, são estes os mais próximos dela, são
estes que constroem uma cumplicidade com a matemática sem ter ido à
escola. Dentro da intimidade de seus lares reside a assustadora e também
querida, sem sabê-lo, matemática. Separam roupas brancas das coloridas,
para lavá-las sem correr o risco de manchar as primeiras; após secarem e
serem passadas, são divididas para serem guardadas; quando fazem compras
guardam-nas em lugares previamente estabelecidos, para melhor encontrá-las
quando necessário. Esses são alguns dos momentos em que a matemática faz
parte da realidade do lar. Assim sendo, a proposta é transformar situações do
cotidiano, que envolvem noções matemáticas, em suporte para a aprendizagem
significativa
de
conhecimentos
mais
abstratos
como
por
exemplo:
Levantamento de dados pessoais, endereços, números de telefones etc.;
Atividades de compra e venda, cálculo do valor da cesta básica, do orçamento
doméstico; Leitura e interpretação de informações que aparecem em moedas e
cédulas de dinheiro, contracheques, contas de luz, calendários; Cálculo de
medidas de terrenos e edificações.
11- A letra: Este é o momento de se trabalhar a auto-estima. É prazeroso para
o alfabetizando mostrar o que sabe, como já foi proposto em momentos outros,
como o das canções, das figuras etc., para depois, então, aprender a registrar
(escrevendo) este saber. A construção da escrita, permitir que o alfabetizando
brinque formulando hipóteses sobre ela. Não importa o tipo de letra usada
nesta escrita . As diversas formas de apresentação de uma letra devem ser
priorizadas nos momentos de leitura, a partir do questionamento: Que letra é
esta? É um outro modo de escrevê-la. Com base na proposta de alfabetização
do método D. Bosco, propomos aos alfabetizadores a seguinte reflexão: a partir
de uma bolinha, metades de bolinhas em várias posições, traços horizontais,
verticais, inclinados para a esquerda e para a direita, são escritas todas as
letras, portanto, se escreve, também, todas as palavras. Ex: ALFABETIZAÇÃO.
Assim, chega-se a conclusão de que é fácil escrever. O difícil, para quem
trabalha na lavoura, é a letra cursiva, conhecida como letra de mão dada. Letra,
esta, que acompanhou aqueles, poucos, que foram à escola e que lá
permaneceram por também, pouco, tempo, nas terríveis e intermináveis cópias.
Brincando com letras, palavras e famílias silábicas, os alfabetizandos formulam
hipóteses e encontram resultados que os surpreendem. Na escrita, na leitura e
na construção de significados, o aluno se percebe gerente da informação, com
desejo de vida, construindo movimentos, ações e emoções. O alfabetizador não
pode possibilitar o desejo de morte quando o alfabetizando se percebe, aquele
que nada sabe, obediente, cansado e desmotivado.
As palavras geradoras, usadas para ampliação do movimento dialógico, citadas
em momentos anteriores, são trabalhadas como propõe o exemplo:: Maracujá fruta do município de Areal, cujo suco está sendo industrializado. O que esta
palavra lembra? Trabalho, Emprego, Alimento, fome, natureza etc. Discutindo
tais ligações estamos, a partir de uma fruta, relacionando o social, o político, o
mundo, o vivo, o presente.
Trabalhando, então,
com a formulação de hipóteses sobre a escrita das
palavras, surgem novas palavras e frases,
na oralidade, que devem ser
discutidas e registradas por todo o grupo, que saberá exatamente o que está
escrevendo, além de provocar novos temas a serem discutidos.
12- Produção de textos: A produção de textos inicialmente, é registrada pelo
alfabetizador, mas quem constrói o texto oralmente é o aluno, ou alunos. A
Língua Portuguesa, por muitas décadas contribuiu para a discriminação e
exclusão dos diferentes, principalmente quanto ao regionalismo, ao considerar
esta forma de linguagem distanciada da norma culta da língua. Hoje, nova
importância vem sendo dada à diversidade lingüistica, propiciando aos
alfabetizandos maior liberdade de relatar e registrar suas idéias. Dando
prioridade, assim, a ação de comunicar-se.
Do ponto de vista sociocultural,
jovens e adultos formam um grupo bastante heterogêneo. Chegam à escola
com uma grande bagagem de conhecimentos adquiridos ao longo de histórias
de vida, as mais diversas. São donas de casa, agricultores, operários,
serventes da construção civil, jovens ou velhos, homens ou mulheres, trazendo
conhecimentos, crenças e valores já constituídos. É a partir do reconhecimento
de suas experiências de vida e visões de mundo, que podem construir textos,
podem se apropriar das atividades escolares de modo crítico e original,
ampliando sua compreensão e interação com o outro e com o mundo.
13- Língua padrão e o erro ortográfico: Não se corrige o erro ortográfico do
aluno, ou melhor, não se chama atenção para ele. Caso o alfabetizador tenha
que reproduzir a palavra, o fará corretamente. Se o aluno perceber a diferença
e questioná-lo deverá dizer que a forma como escreveu não é a correta, mas
que o som produzido foi o mesmo, assim quem ler entenderá e ele terá mais
tempo de ir se acostumando com a forma correta. Ex: o aluno escreveu
“fexadura”, o alfabetizador sabe que a forma correta é “fechadura”, entretanto,
se partimos do pressuposto de que o aluno deve exercitar a formulação de
hipóteses sobre a escrita, se ele está acostumado a ver escrito Xuxa, na
televisão, e o som é o mesmo, escreveu de forma a se comunicar.
14- Identidade pessoal: Neste momento será realizado com o alfabetizador
um trabalho de autoconhecimento: Dados estes, fundamentais para que seja
possível se perceber parte de uma sociedade na postura de cidadão e não
como um indivíduo à margem desta sociedade. Será trabalhado, então, nome e
sobrenome, idade, data e local de nascimento, nome completo dos pais, nome
dos irmãos, esposa/o, filhos, endereço, documento de identidade etc.
15- Identidade do espaço vivido e cultural: Neste momento será trabalhado o
Município, o que nele é produzido na agricultura e na indústria, as festas
típicas, danças, canções, pontos turísticos. É um
resgate da história do
município.
16- O corpo fala: Arte e movimento- é importante que o alfabetizador saiba
que seu corpo fala e que seus alunos estarão sempre o ouvindo. Ele também
deve estar atento ao que o corpo de cada aluno está falando. Neste momento
se trabalhará com o alfabetizador as diferentes posturas corporais. Observar é
aprender a conhecer o outro.
Esses itens retratam a individualidade e merecem uma reflexão sobre
eles.
Quando é proposto, aos alfabetizandos, fazer um desenho, dizem ser
coisa de criança, que estão na escola para aprender e não para brincar. Se a
proposta é fazer um movimento mais delicado seguindo um comando ou uma
melodia, as mulheres riem envergonhadas e os homens reclamam dizendo
que isso não é coisa de macho. Tais respostas retratam a forma reprimida que
lhes foi ensinada para se manterem vivos. Diz o ditado popular que “pobre foi
feito para obedecer”.
Foi negado a eles, o muito, que é a escola, a
possibilidade de aprender a ler e escrever, mas lhes foi oferecido a resignação,
como diz a canção: “Veio os home com as ferramenta, que o dono mando
derrubar (..) os home tá qua razão, nós arranja outro lugar. Só se conformemos
quando o Joca falou: - Deus dá o frio conforme o cobertor” (Saudosa Maloca de
Adoniran Barbosa). Será que o frio é dado por Deus? Ou será o frio o resultado
de uma realidade desigual?
A opção, portanto, foi por transformar a realidade que está posta,
acreditando com Freire (1980) que:
“O homem existe no tempo. Está dentro. Está fora. Herda.
Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo
reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele.
Banha-se nele. Temporaliza-se.” (p. 41)
A partir destes esclarecimentos, volto a reportar-me ao ano de 2001,
quando José César Vieira Rosa (6º período de Psicologia, 2001), declarou: “À
Alta Administração da FAMATh, os meus agradecimentos, por ter viabilizado o
mais importante projeto realizado por esta instituição.”
Dircelene Junia de Oliveira (7º período de Psicologia, 2001),
emocionada dizia que as ações ultrapassaram o ver, concretizaram-se no viver:
“Vivi momentos de emoção, pude ver oficinas muito bem elaboradas, vi
estudantes dos Cursos de Biologia, Educação Física, Pedagogia e Psicologia
ligados não somente pela cadeira de Licenciatura, mas pela vontade de
elaborar um trabalho em EDUCAÇÃO, vi pessoas querendo aprender para
ensinar, dedicando-se, vi alunos, que inicialmente criticaram o projeto,
mudarem o discurso e aplaudirem, enfim eu saí da linha das minhas leituras e
vivi a prática de realizar algo além de um curso...”
Renato Aurélio Pereira Coelho, (7º período de Psicologia, 2001),
registrou seus medos, ensurdecimento e transformação:
“Tudo era novidade e senti até um pouco de medo. Elís Regina já
cantava que “é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre
vem” e veio.(...) nas reuniões de grupos, comecei a ver o novo de forma
diferente e aprender com esta diferença. Comecei a sentir que a escola que eu
estava era uma escola muito distante do que pode ser uma escola. (...) ela( a
escola) não estava só surda (...)nós também estávamos ensurdecidos. Posso
afirmar que muitos dos meus conceitos e posturas mudaram a partir deste
encontro.”
Antonia de Jesus Ferreira Himelick (7º período de Psicologia, 2001),
preocupou-se em registrar o processo harmonioso vivido por todos os
envolvidos:
“... num clima de alegria, despojado de vaidades sem sentido, que
transcorreram todas as oficinas, gerando por parte dos capacitandos
expressões de apreço, de satisfação, de reconhecimento, de vitória, numa
empresa que reuniu o esforço de todos e cujo desfecho
gratificou
sobremaneira a ambos os lados.”
Sheila Beatriz de Carvalho Mello (7º período de Psicologia, 2001),
registra sua surpresa:
“Estava com bastante expectativa com relação ao projeto, mas não
pensei que com tão pouco tempo se construísse um trabalho que envolvesse
os alunos, professores e alfabetizadores, trazendo um resultado muito positivo
não só de conteúdo, mas de vivência e experiência, que tenho certeza não
serão esquecidas.”
Karla Soares Pereira (6º período de Psicologia, 2001), percebeu maior
aprendizado dos alunos das FAMATh: “Acredito que o aprendizado maior foi o
nosso (alunos da FAMATh), muito mais do que eles (alfabetizadores de Goiás),
saímos daqui “capacitados”.”
Novamente resgato depoimento de Wagner de Araujo Rezende (7º
período de Psicologia, 2001),
“Participar do PAS foi uma oportunidade ímpar de desnaturalizar
conceitos e ir contra a alienação. Representou uma práxis revolucionária aliada
ao social. O educador que em toda minha experiência escolar teve papel de
dono do saber, sempre colocado num pedestal, foi desmistificado. Agora, não
mais idealizado, critico o dono do saber, questiono; o pedestal, desmoronouse, pois entendi que educar não requer superioridade, mas igualdade, respeito
e humildade.”
Percebi, então, como momento privilegiado de aprendizagem todo o
processo
de
elaboração,
planejamento,
organização
e
realização da
capacitação em questão. Isto porque, professores e alunos desta Instituição de
Ensino perceberam a necessidade de ampliar o tempo das discussões, com
esses professores em formação, sobre questões sociais, políticas e éticas que
compõem o processo de alfabetização de jovens e adultos, percebendo os
alfabetizandos como sujeitos históricos, que mesmo não fazendo uso dos
saberes da leitura e da escrita, influenciam e são influenciados pelo contexto
social em que vivem. Entendo, portanto, que fomos além das questões
metodológicas do ato de alfabetizar. Priorizou-se trabalhar na busca de uma
proposta curricular plena, fazendo desta capacitação de alfabetizadores, um
momento
privilegiado
de
aprendizagem
para
professores,
alunos
e
alfabetizadores.
Estes depoimentos, registrados em 2001, vêem consolidar o sentido de
existir, “O homem existe no tempo. Herda. Incorpora. Modifica” tão bem
explicitado por Freire (1980, p.41), reflexão, esta, destacada no encerramento
da proposta metodológica do projeto de capacitação, em momento anterior
deste artigo, apontando que é possível transformar a realidade que está posta.
Ano de 2003, capacitação “in loco”, alfabetizadores de Planaltino e Nova
Itarana reunidos no primeiro. Até então, representantes das FAMATh ficavam e
faziam refeições em seus lares e os alfabetizadores ficavam no hotel e faziam
suas refeições na IES. Neste mês de junho, estávamos hospedados juntos,
representantes da IES e alfabetizadores de Nova Itarana e compartilhávamos
as refeições, também, com os alfabetizadores de Planaltino. Os 107 alunos de
2001 foram substituídos por 3 alunas: Tatiani Cristine de Vasconcellos Torres
(8º período de Psicologia); Carolina Moreira Mota (4º período de Psicologia) e
Márcia D`Andréa (8ºperíodo de Ciências Biológicas)
Viajar com alunos para a capacitação “in loco” me fez lembrar os
movimentos de alfabetização da década de 60, quando universitários iam para
as salas de aulas alfabetizar adultos, seguindo a metodologia freireana.
Iniciando os depoimentos, disse Carolina:
“Os dias que antecederam esta viagem foram repletos de ansiedade,
basta lembrar que esta não foi semelhante a nenhuma das que senti nas
viagens que fiz, afinal não tinha como sinônimo as férias. A ansiedade se
juntou ao trabalho, a responsabilidade, ao dever de cumprir um bom trabalho e
finalmente ao desejo de desenvolver uma boa capacitação. Fui me permitindo
ao longo dessa esperada viagem tornar-me mais sensível, sem muitas
cobranças e tentando, abandonar o radicalismo presente na vida”.
Márcia, pede a palavra...
“Quando decidi entrar para o Programa Alfabetização Solidária, sabia
que iria conhecer uma realidade diferente da minha, uma realidade que não
nos é passada pela faculdade, que iria ver coisas lindas mas, também
revoltantes, porém, nunca iria imaginar o quanto essa viagem mudaria minha
vida. Pude aprender que não se deve esperar que ninguém nos ame, mas sim,
que se deve deixar ser amado porque ser amado, querido, ser importante é
muito bom e faz muita falta; o mais valioso não é o que se possui na vida mas
a quem se tem ( os amigos, a família, os filhos, enfim, quem nos ame de
verdade),as pessoas são valiosas...”
Tatiani, complementa...
“O que digo não é demagogia, se pararmos para analisar algumas
constatações: Uma dessas constatações seria o nosso mundinho quadrado de
saber. Criado por nós, ao estarmos cursando uma Faculdade. Quando,
durante alguns anos ficamos restritos a esse mundinho sem que muitas vezes
possamos nos dar conta da diversidade cultural e social que existe ao redor
desse mundinho. Quando estamos na Faculdade é comum ouvirmos que
somos privilegiados em estarmos nos graduando, pois somos a minoria em
nosso país. Esse discurso fica gravado em nossa memória e no nosso
comportamento, mas, em vez de nos ajudar, acaba por nos colocar no lugar
de senhores absolutos do saber, e esquecemos que um dia sonhamos como
muitos dos alfabetizadores que encontramos, em cursar uma Faculdade. Mas,
ao contrário deles, não achávamos esse sonho impossível ou irreal. A
realidade, para eles, é outra, localização, dinheiro, família e comunidade são
questões que fazem com eles finquem com os pés tão fundos no chão ,
impedindo, assim, que
eles
se imaginem cursando uma Faculdade,
escrevendo um livro ou até mesmo conhecendo outro Estado”.
Márcia, emocionada, retoma a palavra...
“Participar da alfabetização solidária, foi uma das experiências mais
marcantes e emocionantes da minha vida. Nunca poderei descrever a emoção
que senti e sinto ao lembrar de cada momento ,cada gesto, cada rosto, cada
minuto que passei ao lado de pessoas tão sofridas mas, ao mesmo tempo, tão
maravilhosas, com tantas coisas a acrescentar que até mesmo eles
desconhecem.
Aprendi que cada um tem seu valor e que não se deve ficar
comparando as pessoas, ninguém é igual a ninguém, por isso devemos vê-las
de acordo com suas capacidades e dons, tirando sempre proveito do que elas
têm de mais belo, o amor pela vida .Porque uma pessoa rica não é a que tem
mais coisas mas ,sim a que precisa de menos, que se contenta com o sol, com
a chuva ou com as moscas que significam fertilidade do solo. As pessoas que
conheci nesta capacitação são assim, ricas, muito ricas... O dinheiro pode
comprar muitas coisas mas, a felicidade que eles possuem com certeza não. É
muito lindo ver como as pessoas cuidam uma das outras sem esperar nada,
dando o pouco que cada um pode mas, dando. Sabe, existem muitas pessoas
em vários lugares que nos amam muito mas, que simplesmente não sabem
como se expressar ou demonstrar seus sentimentos mas, amam e é isso que
importa. Mas, principalmente, aprendi que um amigo é uma pessoa que sabe
perceber o momento certo para lhe estender a mão e, no Programa
Alfabetização Solidária , módulo XIII , muitas mãos foram estendidas”. ...”
Pensativa, Tatiani volta a falar...
“Os quatro dias que passamos no Município de Planaltino capacitando
os alfabetizadores selecionados pelo Projeto de Alfabetização Solidária, foram
de grande importância não só para a minha vida acadêmica, mas também,
para a minha vida social e para o papel que exerço como cidadã brasileira.
Pude constatar que tanto alfabetizadores quanto nós capacitadores
aprendemos
a compartilhar nossos conhecimentos . O que mais me
emocionou e me levou a uma reflexão sobre o que é a palavra solidariedade,
foi presenciar toda uma comunidade comovida por causa da perda de duas
vidas. A solidariedade que presenciei estava desprovida de qualquer
envolvimento financeiro, algo que é normalmente utilizado para qualquer
finalidade na cultura em que estamos inseridos. Essa solidariedade, é sinônimo
de respeito de toda uma comunidade diante da morte. Hoje eu posso dizer que
pessoas de grande valor e de um grande conhecimento podem ser
encontradas em qualquer lugar, é só estarmos abertos para perceber, receber
e dar-nos a oportunidade de conhecer o outro sem esperar algo em troca .
Conhecimento deve ser compartilhado e não trocado”.
Carolina, que por algum tempo manteve-se silenciosa, completou:
“O grupo que me esperava parecia sentir o que eu sentia, e assim
refletia os vários sentimentos que se misturavam dentro de mim, foi quando,
saber e experiência se cruzaram, tendo como resultado o despertar de um
olhar que já não fazia parte de mim, e que muitos, de onde parti, já o haviam
perdido. Por um momento lembrei-me do cotidiano em que vivo, onde o
imediato já não impressiona: meninos de rua, pedintes, bandidos, favelas,
desempregados, enfim, lembrei-me de todos os personagens que fazem parte
de uma vida que se tornou natural. Recuperei a lucidez, mas não, aquela
conhecida nos grandes centros urbanos, fui levada a parar e a reparar nos
olhos, a perceber os afetos mais básicos que circundam as relações. Vi o que
ninguém nunca havia me contado. Confesso já ter escutado histórias que
mexeram comigo, mas por mais que eu tentasse imaginar nunca consegui ver
o sorriso do Gileno, o toque da Agmália, a humildade do Damião ou à vontade
do Deodório. Passei três dias marcantes, vi o desabrochar de algumas
sementes, o amadurecimento de outras e tive a certeza de que minha árvore
voltou mais oxigenada. Trouxe comigo outras histórias, outros personagens
que já fazem parte de mim, dos meus olhos, das minhas atitudes e das minhas
palavras. Não canso de repetir o que escutei: “... no caminho da roça pegava
meu caderno que era preto, porque eu colocava a mão suja de lenha, não tinha
como lavar, e, a professora ainda brigava. Eu pegava sempre que podia, queria
aprender, meu pai não entedia e perguntava porque eu não parava de estudar.
Chegava na escola com fome, era duas horas, e a professora perguntava
porque tinha atrasado. Eu tinha andado muito tempo de bicicleta até chegar lá
e voltava sem merenda, meu estômago parecia talbua. Estudava no escuro,
meu nariz ficava preto por dentro por causa do diesel...” . No entanto, o mais
importante eu não posso reproduzir, posso contar na tentativa de que todos,
um dia, possam ver aquele sorriso, que para mim, é único. Preciso dizer que
algumas palavras voltaram com significados diferentes, lembra da lucidez?esta última já não significa qualidade de quem mostra o uso da razão, mas sim
de quem percebe o brilho do olhar, de quem não tem vergonha de demonstrar
afeto, de quem não naturaliza momentos e de quem, não tem vergonha de
chorar”.
As dificuldades, questionamentos, inquietações, surpresas e emoções
que permearam o antes,
alfabetizadores, merece
durante e
depois
uma avaliação na busca
da capacitação dos
dos conhecimentos
construídos. Neste espaço, registrarei, também, a conclusão de que a vontade
política, o querer, torna possível um movimento solidário para com os
diferentes, mas também e principalmente, dentre iguais, que apenas
cumprimentavam-se, parceiros de diferentes cursos tornaram-se cúmplices na
busca de fazer o melhor.
Amizades foram construídas na destruição da
dicotomia entre o discurso da academia e o senso comum, ficando a certeza de
que toda teoria nasce no cotidiano da sabedoria do viver.
Uma das finalidades do Ensino Superior, segundo a LDB 9394/96, é de
transformar a realidade em que está posta. Entendo que esta capacitação “in
loco” transformou sujeitos sociais e culturais, redefiniu o conceito de cidadania.
Universitários deixaram de perceber o cidadão com o perfil da classe média,
entenderam que ser cidadão é ter dignidade no viver. Na simplicidade do
sertão da Bahia perceberam o valor do ser e abandonaram, mesmo que
temporariamente, o valor do ter.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1977.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2 ed. São Paulo: T.
A. Queiroz Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980.
.LA TAILLE, Yves de, OLIVEIRA, Marta Kohl de, DANTAS, Heloysa. Piaget
Vygotsky Wallon Teorias Psicogenéticas em Discussão. SP: Summus, 1992.
LÜDKE, Menga e ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. São Paulo: Ed. Pedagógica e Universitária, 1986.
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UMA CAPACITAÇÃO “IN LOCO”... ANÉSIA MARIA COSTA GILIO