UMA CAPACITAÇÃO “IN LOCO”... ANÉSIA MARIA COSTA GILIO FACULDADES INTEGRADAS MARIA THEREZA – FAMATH Este artigo é um relato do novo... A partir do velho. Ou, do vivido? Uma capacitação “in loco”. Contrário ao, até então, vivido. Este relato se fez do ontem e do hoje. A idéia de escrever este artigo surgiu a partir de meu exercício de observação; da ação de fazer relações, de perceber admirações nos sujeitos que permeiam meu cotidiano. Para este fim, busquei em Lüdke (1986), o respaldo que procurava para justificar essa necessidade que sinto de ser parte deste relato, dispondo, também, da minha leitura do mundo e das minhas emoções para nortear este trabalho. Diz esta autora, que “é igualmente importante lembrar que, como atividade humana e social, a pesquisa traz consigo inevitavelmente, a carga de valores, preferências, interesses e princípios que orientam o pesquisador” (Lüdke e André, 1986, p. 3). Mais segura sobre a liberdade no pensar e no agir como pesquisadora, iniciei um exercício para definir a metodologia que seria adequada à análise do que tomo como objeto deste estudo: Primeira capacitação de alfabetizadores nas FAMATh, Niterói RJ e, também, primeira capacitação “in loco” no município de Planaltino/ Bahia. Lüdke e André (1986), apontaram-me como caminho metodológico a análise de conteúdo. Esta se constitui em um conjunto de instrumentos metodológicos que tem, como fator comum, técnicas múltiplas e multiplicadas, que levam a uma hermenêutica controlada, baseada na inferência. Seu esforço de interpretação é norteado por dados objetivos e subjetivos, dando maior prioridade ao segundo, permitindo ao pesquisador a constante formulação de hipóteses, partindo para as suas inferências, ao não-dito no discurso. Analiso, então, os dados recolhidos para este estudo com base na análise de conteúdo, fundamentada nos estudos realizados por Bardin (1977). Partindo destes pressupostos, apresento dados objetivos, mas a atenção e o olhar estão definitivamente voltados para a subjetividade no discurso do universitário envolvido em um projeto solidário. Este movimento, foi assim definido por Wagner de Araújo Rezende (7º período de Psicologia, 2001): “Os alunos (graduandos) eram movidos por desafios e a cada momento surpreendiam e eram surpreendidos com a beleza criativa e a responsabilidade política no querer e no fazer, marcas de todas as oficinas. Vínculos de amizade foram estabelecidos, reforçando a motivação daqueles que saudosos de seus lares,se envolviam incessantemente no aprimoramento de seus conhecimentos. Havia a expectativa primeira de conhecer melhores metodologias de ensino que possibilitassem o sorriso nos rostos daqueles que aprenderiam a assinar seus nomes e se integrariam à sociedade dignamente, pois a condição de analfabeto não mais representaria motivo de segregação e preconceito. Foram estes ensinamentos, que possibilitaram-nos perceber a emoção que contagiou esta Instituição de Ensino Superior. Período de recesso, intervalo entre semestres, e a IES com um trânsito intenso de 107 alunos em suas instalações. Direção Acadêmica, Coordenadores, Professores, Monitores e Coordenadores de grupos eram solicitados insistentemente. Era o fazer pedagógico contagiando a academia. Os trabalhos propostos eram em sua totalidade, práticos, dinâmicos, defendendo a proposta de Vygotsky (1991), que quando fazendo com a ajuda do outro, aprende-se a fazer”. Assim, resgato dois diferentes momentos tomados de admirações, quando compartilhei e registrei o dito e o não dito nos discursos e nos olhares dos meus alunos: Período de férias, 15 dias, ano de 2001, nas FAMATh, 107 alunos envolvidos na capacitação de alfabetizadores; Período letivo, 3 dias, ano de 2003, no município de Planaltino, 3 alunas envolvidas na capacitação de alfabetizadores. O projeto que elaborei para o ano de 2001, foi respeitado em 2003. Matematicamente impossível? Como foi feito? A capacitação nas FAMATh, Município de Niterói, RJ, acontecia em 15 (quinze) dias, destes dias 4 (quatro), eram destinados a atividades culturais, que aconteciam nos sábados e domingos. De 2ª a 6ª feira, os trabalhos aconteciam de 8:00h às 20:00h, com intervalo de 12:00h às 14:00h para almoço. Total, portanto, de 10 (dez) horas/dia, trabalhando o conteúdo proposto, que contabilizavam 110h/a. Nesta ocasião cada oficina proposta tinha a duração necessária, ou seja, 22 delas, duravam três horas e as 11 restantes duravam quatro horas. Nos cronogramas das FAMATh, existiam dois horários de três horas de visitas e orientação nos laboratórios do curso de Biologia, além de peça de teatro com o objetivo de provocar motivações diferenciadas para reflexão sobre o cotidiano vivido, estas eram outras três horas, que, também, não aconteceram na capacitação “in loco”. Cabe destacar, ainda, que a oficina de prática de ensino dispunha de quatro tempos de quatro horas, momentos em que alfabetizadores faziam as aulas e aconteceram em Planaltino em apenas um tempo. Assim sendo, estes 21 tempos ou oficinas foram subtraídos do total. Na proposta deste cronograma, então, foram distribuídos dezesseis títulos que aconteceram em 11 horas (dia), durante três dias, ou 33h/a de 01/06 a 03/06/2003, o que significou, aproximadamente, duas h/a para cada uma das oficinas. Estes dezesseis títulos, entendidos como oficinas compõem, portanto, a proposta metodológica do processo de capacitação de alfabetizadores das FAMATh, proposta esta destacada a seguir: A proposta metodológica deste projeto de capacitação de alfabetizadores de jovens e adultos, tem por base a multidisciplinaridade. Isto significa que independente do título dado ao momento proposto, o capacitador estará buscando os vários conteúdos possíveis, independente de ser esta ou aquela disciplina. Exemplo: discutindo questões matemáticas, pode-se chamar a atenção para a elaboração do texto que sugere a resolução de um problema ou um rápido cálculo matemático, ou ainda neste texto, é possível estar referindo-se a questões alimentares, ambientais, ou, sociais. Procedimentos Metodológicos: 1- Prática de ensino: o objetivo é dar ao alfabetizador a oportunidade de planejar e apresentar uma aula, tendo orientação durante todo o processo. 2- Resgate da cultura do Município: o objetivo central do processo ensino/aprendizagem é partir da realidade do aluno. É fundamental, portanto, um momento de valorização da cultura de cada um dos municípios envolvidos no projeto. 3- Respeito àqueles que, com sabedoria, conseguiram viver sem saber ler e escrever: o objetivo deste momento é mostrar ao jovem alfabetizador que lidar com as dificuldades da vida é difícil quando se sabe ler e escrever, mais difícil, ainda, é fazê-lo sem dispor destes recursos. Sendo assim, estarão eles alfabetizadores tentando acrescentar mais um saber na vida daqueles que são a sabedoria. São, portanto, os alfabetizadores que precisam calar-se para ouvir o alfabetizando; são os alfabetizadores que devem incentivar, elevar a autoestima e acima de tudo ser afetivo no sentido proposto por Wallon (apud Dantas, 1992), de afetar o outro, trazendo-o para junto de si. A importância deste momento se deve a necessidade do poder inerente ao ser humano. O título de professor, faz com que o alfabetizador reproduza falas e ações de seus antigos professores. Sendo possível, então, posturas autoritárias no sentido de calar o aluno. Estes, por sua vez, se na escola estiveram, abandonaram-na por não terem vez nem voz, o espaço proporcionado pelo PAS, não poderá ser cenário de um filme já visto e abandonado antes de terminar. 4- Lidando com as diferenças: este momento prioriza a noção de grupo. É de grande importância o entendimento de que ser diferente, não significa ser melhor ou pior que o outro. Cada pessoa tem sua história, esta é construída individualmente na relação com o coletivo. As questões e situações apresentadas por este coletivo, provocam reações diferenciadas em cada um. Assim sendo, o que é importante para um pode não ser importante para o outro, o medo de um pode ser a coragem do outro e assim sucessivamente. 5- Canções: Diz o ditado popular que “quem canta os males espanta” é partindo dessa premissa, que as canções aparecem na capacitação. Canções contam a história do país e marcam as histórias individuais. Segundo Bosi (1987), a memória é a única coisa que não conseguem tirar dos mais velhos. A proposta metodológica de trabalhar com canções, tem o objetivo de relaxamento muscular daqueles que, na maioria das vezes, trabalham na lavoura. Quando cantam estão preocupados com a letra e a melodia, distanciam-se de seus problemas. Voltando para a realidade contam o que a canção fez relembrar, discutem o que diz a letra e elegem palavras geradoras de novas questões. 6- Pedagogia do ambiente: esta é uma proposta de educação ambiental, entretanto, discutir a destruição da floresta Amazônica, ou a camada de ozônio, são questões distanciadas da realidade vivida por alfabetizadores e alfabetizandos. A pedagogia do ambiente discute como cuidar do espaço da sala de aula, da escola, da casa de cada um, da água, do esgoto, do lixo, da comunidade e assim sucessivamente. É importante que cada um se sinta responsável pelo espaço geográfico em que vive. Só assim será possível a preservação da natureza. 7- Cuidados com saúde e remédios: este momento refere-se a questões simples que nem sempre são percebidas com simplicidade e responsabilidade. É comum nas comunidades menos favorecidas economicamente, o uso de medicamentos naturais, que quanto a operacionalidade, segundo Anjos (1980), é um saber técnico difuso, quem o recomenda sabe a técnica, mas não sabe explicar o porquê. É um saber por tradição oral e depende da crença de terceiros. Exemplo: chás de ervas. Esta questão será discutida a partir do saber técnico difuso dos alfabetizadores. Uma outra questão discutida neste momento é o aproveitamento das partes dos alimentos, que geralmente se joga fora. 8- Recursos escritos: Cabe neste momento trabalhar com o alfabetizador a criação de situações em que os alfabetizandos exponham e reconheçam aquilo que já sabem sobre a escrita. Assim, poderá decidir que novas informações serão fornecidas aos alunos. O trabalho com a linguagem escrita deve envolver inicialmente atividades de leitura e produção de textos, curtos e simples, como por exemplo: listas; folhetos; cartazes; bilhetes; poesias; receitas culinárias; anedotas; cartas; crônicas; pequenas histórias; manchetes de jornais. 9- Leitura de figuras: Segundo o grupo Vereda/SP, no projeto que intitulam “Viver é Aprender”, com base na proposta freireana de alfabetização, as figuras servem para estimular a conversa e a reflexão sobre a questão do conhecimento. Deve-se, então, orientar os alfabetizadores que escolham figuram que sugiram frases. Mais importante do que a leitura destas frases, portanto, é a leitura das figuras, como: o que é, e, como é . É este movimento que leva o aluno ao processo de decodificação destas figuras, esta acontece quando o aluno começa a estabelecer relações entre o que está acontecendo na figura e suas experiências e conhecimentos. Este é o momento mais importante do processo, é o exercício do pensar, do sentir-se parte da figura, parte do cenário que inicialmente era esvaziado de significado, não contextualizado, apenas apresentado. O conhecimento se constrói quando conseguimos fazer relações. Assim novas palavras geradoras são eleitas, que levantarão novas questões. 10- Matemática, presente no cotidiano do aluno: Este momento destina-se a desmistificar o conceito construído no senso comum de que esta ciência está distante dos que têm pouca escolaridade, são estes os mais próximos dela, são estes que constroem uma cumplicidade com a matemática sem ter ido à escola. Dentro da intimidade de seus lares reside a assustadora e também querida, sem sabê-lo, matemática. Separam roupas brancas das coloridas, para lavá-las sem correr o risco de manchar as primeiras; após secarem e serem passadas, são divididas para serem guardadas; quando fazem compras guardam-nas em lugares previamente estabelecidos, para melhor encontrá-las quando necessário. Esses são alguns dos momentos em que a matemática faz parte da realidade do lar. Assim sendo, a proposta é transformar situações do cotidiano, que envolvem noções matemáticas, em suporte para a aprendizagem significativa de conhecimentos mais abstratos como por exemplo: Levantamento de dados pessoais, endereços, números de telefones etc.; Atividades de compra e venda, cálculo do valor da cesta básica, do orçamento doméstico; Leitura e interpretação de informações que aparecem em moedas e cédulas de dinheiro, contracheques, contas de luz, calendários; Cálculo de medidas de terrenos e edificações. 11- A letra: Este é o momento de se trabalhar a auto-estima. É prazeroso para o alfabetizando mostrar o que sabe, como já foi proposto em momentos outros, como o das canções, das figuras etc., para depois, então, aprender a registrar (escrevendo) este saber. A construção da escrita, permitir que o alfabetizando brinque formulando hipóteses sobre ela. Não importa o tipo de letra usada nesta escrita . As diversas formas de apresentação de uma letra devem ser priorizadas nos momentos de leitura, a partir do questionamento: Que letra é esta? É um outro modo de escrevê-la. Com base na proposta de alfabetização do método D. Bosco, propomos aos alfabetizadores a seguinte reflexão: a partir de uma bolinha, metades de bolinhas em várias posições, traços horizontais, verticais, inclinados para a esquerda e para a direita, são escritas todas as letras, portanto, se escreve, também, todas as palavras. Ex: ALFABETIZAÇÃO. Assim, chega-se a conclusão de que é fácil escrever. O difícil, para quem trabalha na lavoura, é a letra cursiva, conhecida como letra de mão dada. Letra, esta, que acompanhou aqueles, poucos, que foram à escola e que lá permaneceram por também, pouco, tempo, nas terríveis e intermináveis cópias. Brincando com letras, palavras e famílias silábicas, os alfabetizandos formulam hipóteses e encontram resultados que os surpreendem. Na escrita, na leitura e na construção de significados, o aluno se percebe gerente da informação, com desejo de vida, construindo movimentos, ações e emoções. O alfabetizador não pode possibilitar o desejo de morte quando o alfabetizando se percebe, aquele que nada sabe, obediente, cansado e desmotivado. As palavras geradoras, usadas para ampliação do movimento dialógico, citadas em momentos anteriores, são trabalhadas como propõe o exemplo:: Maracujá fruta do município de Areal, cujo suco está sendo industrializado. O que esta palavra lembra? Trabalho, Emprego, Alimento, fome, natureza etc. Discutindo tais ligações estamos, a partir de uma fruta, relacionando o social, o político, o mundo, o vivo, o presente. Trabalhando, então, com a formulação de hipóteses sobre a escrita das palavras, surgem novas palavras e frases, na oralidade, que devem ser discutidas e registradas por todo o grupo, que saberá exatamente o que está escrevendo, além de provocar novos temas a serem discutidos. 12- Produção de textos: A produção de textos inicialmente, é registrada pelo alfabetizador, mas quem constrói o texto oralmente é o aluno, ou alunos. A Língua Portuguesa, por muitas décadas contribuiu para a discriminação e exclusão dos diferentes, principalmente quanto ao regionalismo, ao considerar esta forma de linguagem distanciada da norma culta da língua. Hoje, nova importância vem sendo dada à diversidade lingüistica, propiciando aos alfabetizandos maior liberdade de relatar e registrar suas idéias. Dando prioridade, assim, a ação de comunicar-se. Do ponto de vista sociocultural, jovens e adultos formam um grupo bastante heterogêneo. Chegam à escola com uma grande bagagem de conhecimentos adquiridos ao longo de histórias de vida, as mais diversas. São donas de casa, agricultores, operários, serventes da construção civil, jovens ou velhos, homens ou mulheres, trazendo conhecimentos, crenças e valores já constituídos. É a partir do reconhecimento de suas experiências de vida e visões de mundo, que podem construir textos, podem se apropriar das atividades escolares de modo crítico e original, ampliando sua compreensão e interação com o outro e com o mundo. 13- Língua padrão e o erro ortográfico: Não se corrige o erro ortográfico do aluno, ou melhor, não se chama atenção para ele. Caso o alfabetizador tenha que reproduzir a palavra, o fará corretamente. Se o aluno perceber a diferença e questioná-lo deverá dizer que a forma como escreveu não é a correta, mas que o som produzido foi o mesmo, assim quem ler entenderá e ele terá mais tempo de ir se acostumando com a forma correta. Ex: o aluno escreveu “fexadura”, o alfabetizador sabe que a forma correta é “fechadura”, entretanto, se partimos do pressuposto de que o aluno deve exercitar a formulação de hipóteses sobre a escrita, se ele está acostumado a ver escrito Xuxa, na televisão, e o som é o mesmo, escreveu de forma a se comunicar. 14- Identidade pessoal: Neste momento será realizado com o alfabetizador um trabalho de autoconhecimento: Dados estes, fundamentais para que seja possível se perceber parte de uma sociedade na postura de cidadão e não como um indivíduo à margem desta sociedade. Será trabalhado, então, nome e sobrenome, idade, data e local de nascimento, nome completo dos pais, nome dos irmãos, esposa/o, filhos, endereço, documento de identidade etc. 15- Identidade do espaço vivido e cultural: Neste momento será trabalhado o Município, o que nele é produzido na agricultura e na indústria, as festas típicas, danças, canções, pontos turísticos. É um resgate da história do município. 16- O corpo fala: Arte e movimento- é importante que o alfabetizador saiba que seu corpo fala e que seus alunos estarão sempre o ouvindo. Ele também deve estar atento ao que o corpo de cada aluno está falando. Neste momento se trabalhará com o alfabetizador as diferentes posturas corporais. Observar é aprender a conhecer o outro. Esses itens retratam a individualidade e merecem uma reflexão sobre eles. Quando é proposto, aos alfabetizandos, fazer um desenho, dizem ser coisa de criança, que estão na escola para aprender e não para brincar. Se a proposta é fazer um movimento mais delicado seguindo um comando ou uma melodia, as mulheres riem envergonhadas e os homens reclamam dizendo que isso não é coisa de macho. Tais respostas retratam a forma reprimida que lhes foi ensinada para se manterem vivos. Diz o ditado popular que “pobre foi feito para obedecer”. Foi negado a eles, o muito, que é a escola, a possibilidade de aprender a ler e escrever, mas lhes foi oferecido a resignação, como diz a canção: “Veio os home com as ferramenta, que o dono mando derrubar (..) os home tá qua razão, nós arranja outro lugar. Só se conformemos quando o Joca falou: - Deus dá o frio conforme o cobertor” (Saudosa Maloca de Adoniran Barbosa). Será que o frio é dado por Deus? Ou será o frio o resultado de uma realidade desigual? A opção, portanto, foi por transformar a realidade que está posta, acreditando com Freire (1980) que: “O homem existe no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se.” (p. 41) A partir destes esclarecimentos, volto a reportar-me ao ano de 2001, quando José César Vieira Rosa (6º período de Psicologia, 2001), declarou: “À Alta Administração da FAMATh, os meus agradecimentos, por ter viabilizado o mais importante projeto realizado por esta instituição.” Dircelene Junia de Oliveira (7º período de Psicologia, 2001), emocionada dizia que as ações ultrapassaram o ver, concretizaram-se no viver: “Vivi momentos de emoção, pude ver oficinas muito bem elaboradas, vi estudantes dos Cursos de Biologia, Educação Física, Pedagogia e Psicologia ligados não somente pela cadeira de Licenciatura, mas pela vontade de elaborar um trabalho em EDUCAÇÃO, vi pessoas querendo aprender para ensinar, dedicando-se, vi alunos, que inicialmente criticaram o projeto, mudarem o discurso e aplaudirem, enfim eu saí da linha das minhas leituras e vivi a prática de realizar algo além de um curso...” Renato Aurélio Pereira Coelho, (7º período de Psicologia, 2001), registrou seus medos, ensurdecimento e transformação: “Tudo era novidade e senti até um pouco de medo. Elís Regina já cantava que “é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem” e veio.(...) nas reuniões de grupos, comecei a ver o novo de forma diferente e aprender com esta diferença. Comecei a sentir que a escola que eu estava era uma escola muito distante do que pode ser uma escola. (...) ela( a escola) não estava só surda (...)nós também estávamos ensurdecidos. Posso afirmar que muitos dos meus conceitos e posturas mudaram a partir deste encontro.” Antonia de Jesus Ferreira Himelick (7º período de Psicologia, 2001), preocupou-se em registrar o processo harmonioso vivido por todos os envolvidos: “... num clima de alegria, despojado de vaidades sem sentido, que transcorreram todas as oficinas, gerando por parte dos capacitandos expressões de apreço, de satisfação, de reconhecimento, de vitória, numa empresa que reuniu o esforço de todos e cujo desfecho gratificou sobremaneira a ambos os lados.” Sheila Beatriz de Carvalho Mello (7º período de Psicologia, 2001), registra sua surpresa: “Estava com bastante expectativa com relação ao projeto, mas não pensei que com tão pouco tempo se construísse um trabalho que envolvesse os alunos, professores e alfabetizadores, trazendo um resultado muito positivo não só de conteúdo, mas de vivência e experiência, que tenho certeza não serão esquecidas.” Karla Soares Pereira (6º período de Psicologia, 2001), percebeu maior aprendizado dos alunos das FAMATh: “Acredito que o aprendizado maior foi o nosso (alunos da FAMATh), muito mais do que eles (alfabetizadores de Goiás), saímos daqui “capacitados”.” Novamente resgato depoimento de Wagner de Araujo Rezende (7º período de Psicologia, 2001), “Participar do PAS foi uma oportunidade ímpar de desnaturalizar conceitos e ir contra a alienação. Representou uma práxis revolucionária aliada ao social. O educador que em toda minha experiência escolar teve papel de dono do saber, sempre colocado num pedestal, foi desmistificado. Agora, não mais idealizado, critico o dono do saber, questiono; o pedestal, desmoronouse, pois entendi que educar não requer superioridade, mas igualdade, respeito e humildade.” Percebi, então, como momento privilegiado de aprendizagem todo o processo de elaboração, planejamento, organização e realização da capacitação em questão. Isto porque, professores e alunos desta Instituição de Ensino perceberam a necessidade de ampliar o tempo das discussões, com esses professores em formação, sobre questões sociais, políticas e éticas que compõem o processo de alfabetização de jovens e adultos, percebendo os alfabetizandos como sujeitos históricos, que mesmo não fazendo uso dos saberes da leitura e da escrita, influenciam e são influenciados pelo contexto social em que vivem. Entendo, portanto, que fomos além das questões metodológicas do ato de alfabetizar. Priorizou-se trabalhar na busca de uma proposta curricular plena, fazendo desta capacitação de alfabetizadores, um momento privilegiado de aprendizagem para professores, alunos e alfabetizadores. Estes depoimentos, registrados em 2001, vêem consolidar o sentido de existir, “O homem existe no tempo. Herda. Incorpora. Modifica” tão bem explicitado por Freire (1980, p.41), reflexão, esta, destacada no encerramento da proposta metodológica do projeto de capacitação, em momento anterior deste artigo, apontando que é possível transformar a realidade que está posta. Ano de 2003, capacitação “in loco”, alfabetizadores de Planaltino e Nova Itarana reunidos no primeiro. Até então, representantes das FAMATh ficavam e faziam refeições em seus lares e os alfabetizadores ficavam no hotel e faziam suas refeições na IES. Neste mês de junho, estávamos hospedados juntos, representantes da IES e alfabetizadores de Nova Itarana e compartilhávamos as refeições, também, com os alfabetizadores de Planaltino. Os 107 alunos de 2001 foram substituídos por 3 alunas: Tatiani Cristine de Vasconcellos Torres (8º período de Psicologia); Carolina Moreira Mota (4º período de Psicologia) e Márcia D`Andréa (8ºperíodo de Ciências Biológicas) Viajar com alunos para a capacitação “in loco” me fez lembrar os movimentos de alfabetização da década de 60, quando universitários iam para as salas de aulas alfabetizar adultos, seguindo a metodologia freireana. Iniciando os depoimentos, disse Carolina: “Os dias que antecederam esta viagem foram repletos de ansiedade, basta lembrar que esta não foi semelhante a nenhuma das que senti nas viagens que fiz, afinal não tinha como sinônimo as férias. A ansiedade se juntou ao trabalho, a responsabilidade, ao dever de cumprir um bom trabalho e finalmente ao desejo de desenvolver uma boa capacitação. Fui me permitindo ao longo dessa esperada viagem tornar-me mais sensível, sem muitas cobranças e tentando, abandonar o radicalismo presente na vida”. Márcia, pede a palavra... “Quando decidi entrar para o Programa Alfabetização Solidária, sabia que iria conhecer uma realidade diferente da minha, uma realidade que não nos é passada pela faculdade, que iria ver coisas lindas mas, também revoltantes, porém, nunca iria imaginar o quanto essa viagem mudaria minha vida. Pude aprender que não se deve esperar que ninguém nos ame, mas sim, que se deve deixar ser amado porque ser amado, querido, ser importante é muito bom e faz muita falta; o mais valioso não é o que se possui na vida mas a quem se tem ( os amigos, a família, os filhos, enfim, quem nos ame de verdade),as pessoas são valiosas...” Tatiani, complementa... “O que digo não é demagogia, se pararmos para analisar algumas constatações: Uma dessas constatações seria o nosso mundinho quadrado de saber. Criado por nós, ao estarmos cursando uma Faculdade. Quando, durante alguns anos ficamos restritos a esse mundinho sem que muitas vezes possamos nos dar conta da diversidade cultural e social que existe ao redor desse mundinho. Quando estamos na Faculdade é comum ouvirmos que somos privilegiados em estarmos nos graduando, pois somos a minoria em nosso país. Esse discurso fica gravado em nossa memória e no nosso comportamento, mas, em vez de nos ajudar, acaba por nos colocar no lugar de senhores absolutos do saber, e esquecemos que um dia sonhamos como muitos dos alfabetizadores que encontramos, em cursar uma Faculdade. Mas, ao contrário deles, não achávamos esse sonho impossível ou irreal. A realidade, para eles, é outra, localização, dinheiro, família e comunidade são questões que fazem com eles finquem com os pés tão fundos no chão , impedindo, assim, que eles se imaginem cursando uma Faculdade, escrevendo um livro ou até mesmo conhecendo outro Estado”. Márcia, emocionada, retoma a palavra... “Participar da alfabetização solidária, foi uma das experiências mais marcantes e emocionantes da minha vida. Nunca poderei descrever a emoção que senti e sinto ao lembrar de cada momento ,cada gesto, cada rosto, cada minuto que passei ao lado de pessoas tão sofridas mas, ao mesmo tempo, tão maravilhosas, com tantas coisas a acrescentar que até mesmo eles desconhecem. Aprendi que cada um tem seu valor e que não se deve ficar comparando as pessoas, ninguém é igual a ninguém, por isso devemos vê-las de acordo com suas capacidades e dons, tirando sempre proveito do que elas têm de mais belo, o amor pela vida .Porque uma pessoa rica não é a que tem mais coisas mas ,sim a que precisa de menos, que se contenta com o sol, com a chuva ou com as moscas que significam fertilidade do solo. As pessoas que conheci nesta capacitação são assim, ricas, muito ricas... O dinheiro pode comprar muitas coisas mas, a felicidade que eles possuem com certeza não. É muito lindo ver como as pessoas cuidam uma das outras sem esperar nada, dando o pouco que cada um pode mas, dando. Sabe, existem muitas pessoas em vários lugares que nos amam muito mas, que simplesmente não sabem como se expressar ou demonstrar seus sentimentos mas, amam e é isso que importa. Mas, principalmente, aprendi que um amigo é uma pessoa que sabe perceber o momento certo para lhe estender a mão e, no Programa Alfabetização Solidária , módulo XIII , muitas mãos foram estendidas”. ...” Pensativa, Tatiani volta a falar... “Os quatro dias que passamos no Município de Planaltino capacitando os alfabetizadores selecionados pelo Projeto de Alfabetização Solidária, foram de grande importância não só para a minha vida acadêmica, mas também, para a minha vida social e para o papel que exerço como cidadã brasileira. Pude constatar que tanto alfabetizadores quanto nós capacitadores aprendemos a compartilhar nossos conhecimentos . O que mais me emocionou e me levou a uma reflexão sobre o que é a palavra solidariedade, foi presenciar toda uma comunidade comovida por causa da perda de duas vidas. A solidariedade que presenciei estava desprovida de qualquer envolvimento financeiro, algo que é normalmente utilizado para qualquer finalidade na cultura em que estamos inseridos. Essa solidariedade, é sinônimo de respeito de toda uma comunidade diante da morte. Hoje eu posso dizer que pessoas de grande valor e de um grande conhecimento podem ser encontradas em qualquer lugar, é só estarmos abertos para perceber, receber e dar-nos a oportunidade de conhecer o outro sem esperar algo em troca . Conhecimento deve ser compartilhado e não trocado”. Carolina, que por algum tempo manteve-se silenciosa, completou: “O grupo que me esperava parecia sentir o que eu sentia, e assim refletia os vários sentimentos que se misturavam dentro de mim, foi quando, saber e experiência se cruzaram, tendo como resultado o despertar de um olhar que já não fazia parte de mim, e que muitos, de onde parti, já o haviam perdido. Por um momento lembrei-me do cotidiano em que vivo, onde o imediato já não impressiona: meninos de rua, pedintes, bandidos, favelas, desempregados, enfim, lembrei-me de todos os personagens que fazem parte de uma vida que se tornou natural. Recuperei a lucidez, mas não, aquela conhecida nos grandes centros urbanos, fui levada a parar e a reparar nos olhos, a perceber os afetos mais básicos que circundam as relações. Vi o que ninguém nunca havia me contado. Confesso já ter escutado histórias que mexeram comigo, mas por mais que eu tentasse imaginar nunca consegui ver o sorriso do Gileno, o toque da Agmália, a humildade do Damião ou à vontade do Deodório. Passei três dias marcantes, vi o desabrochar de algumas sementes, o amadurecimento de outras e tive a certeza de que minha árvore voltou mais oxigenada. Trouxe comigo outras histórias, outros personagens que já fazem parte de mim, dos meus olhos, das minhas atitudes e das minhas palavras. Não canso de repetir o que escutei: “... no caminho da roça pegava meu caderno que era preto, porque eu colocava a mão suja de lenha, não tinha como lavar, e, a professora ainda brigava. Eu pegava sempre que podia, queria aprender, meu pai não entedia e perguntava porque eu não parava de estudar. Chegava na escola com fome, era duas horas, e a professora perguntava porque tinha atrasado. Eu tinha andado muito tempo de bicicleta até chegar lá e voltava sem merenda, meu estômago parecia talbua. Estudava no escuro, meu nariz ficava preto por dentro por causa do diesel...” . No entanto, o mais importante eu não posso reproduzir, posso contar na tentativa de que todos, um dia, possam ver aquele sorriso, que para mim, é único. Preciso dizer que algumas palavras voltaram com significados diferentes, lembra da lucidez?esta última já não significa qualidade de quem mostra o uso da razão, mas sim de quem percebe o brilho do olhar, de quem não tem vergonha de demonstrar afeto, de quem não naturaliza momentos e de quem, não tem vergonha de chorar”. As dificuldades, questionamentos, inquietações, surpresas e emoções que permearam o antes, alfabetizadores, merece durante e depois uma avaliação na busca da capacitação dos dos conhecimentos construídos. Neste espaço, registrarei, também, a conclusão de que a vontade política, o querer, torna possível um movimento solidário para com os diferentes, mas também e principalmente, dentre iguais, que apenas cumprimentavam-se, parceiros de diferentes cursos tornaram-se cúmplices na busca de fazer o melhor. Amizades foram construídas na destruição da dicotomia entre o discurso da academia e o senso comum, ficando a certeza de que toda teoria nasce no cotidiano da sabedoria do viver. Uma das finalidades do Ensino Superior, segundo a LDB 9394/96, é de transformar a realidade em que está posta. Entendo que esta capacitação “in loco” transformou sujeitos sociais e culturais, redefiniu o conceito de cidadania. Universitários deixaram de perceber o cidadão com o perfil da classe média, entenderam que ser cidadão é ter dignidade no viver. Na simplicidade do sertão da Bahia perceberam o valor do ser e abandonaram, mesmo que temporariamente, o valor do ter. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1977. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2 ed. São Paulo: T. A. Queiroz Editora da Universidade de São Paulo, 1987. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 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