UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I FERNANDA CRISTINA MELO A MORAL NA LITERATURA INFANTIL: UM ASPECTO DISPENSÁVEL OU INDISPENSÁVEL? SALVADOR SETEMBRO, 2009 FERNANDA CRISTINA PEREIRA DE MELO A MORAL NA LITERATURA INFANTIL: UM ASPECTO DISPENSÁVEL OU INDISPENSÁVEL? Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de graduação do curso de Licenciatura em Pedagogia com habilitação em Pré-escolar, da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação do Profº Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho. SALVADOR SETEMBRO, 2009 FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB Bibliotecária : Jacira Almeida Mendes – CRB : 5/592 Melo, Fernanda Cristina A moral na literatura infantil : um aspecto dispensável ou indispensável / Fernanda Cristina Melo .- Salvador, 2009. 38f. Orientador: Raphael Rodrigues Vieira Filho. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Educação. Colegiado de Pedagogia. Campus I. 2009. Contém referências. 1. Literatura infanto-juvenil brasileira. 2. Crianças - Livros e leitura. I. Vieira Filho, Raphael Rodrigues. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação. CDD: 808.899282 FERNANDA CRISTINA PEREIRA DE MELO A MORAL NA LITERATURA INFANTIL: UM ASPECTO DISPENSÁVEL OU INDISPENSÁVEL? Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de graduação do curso de Licenciatura em Pedagogia com habilitação em Pré-escolar, da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação do Profº Dr. Raphael Rodrigues Vieira Filho. Salvador _________ de __________________ de 2009. __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ Aos meus pais e especialmente aos meus filhos, Emile e Lucio, pela inspiração. AGRADECIMENTOS Somente nesse momento, percebo o quanto agradecer uma ajuda ou até mesmo uma crítica é tão difícil. Então, para não correr o risco de injustiças, agradeço antecipadamente a todos aqueles, colegas e professores, que de forma direta ou indireta passaram pela minha vida e contribuíram para a construção de quem sou hoje. Agradeço a Deus, que me deu muita força e saúde para continuar essa luta. Aos meus pais, filhos e toda minha família que com carinho, amor e muito apoio, compreenderam minhas ausências e inseguranças. À Profª Maria Antônia Ramos Coutinho, que suscitou em mim, um novo olhar para a literatura infantil e ajudou a transformar uma idéia em realidade. Ao Profº Raphael Rodrigues Vieira Filho que me orientou com paciência e competência a fim de tornar possível a conclusão deste trabalho de conclusão de curso. À Solange Bispo, Angela Soares por todo afeto nessa longa caminhada e em especial, a Eudes Mata Vidal, pela ajuda, incentivo e amizade incondicionais. A criança é o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles próprios, ser e temem torna-se. Bernard Charlot RESUMO Este trabalho verifica a utilização da literatura infantil como elemento relevante para o desenvolvimento da construção moral na criança. A necessidade de fornecer valores morais apresenta-se na literatura infantil desde seus primórdios, a fim de justificar a utilização e sua divulgação na época. Essa perspectiva atravessou os séculos e se instaurou no seio da sociedade atual, sobretudo, pela dualidade de sua natureza pedagógica e artística. Realizado a partir da metodologia de pesquisa bibliográfica, o presente trabalho apresenta um panorama histórico e social do surgimento do gênero no Brasil e no mundo, ressaltando os principais fatores que contribuíram para delimitação de sua natureza, além do estudo sobre o desenvolvimento moral na criança, delimitando suas fases, características fundamentais e como se apresenta e interfere na literatura infantil. Por fim, considero a necessidade da atuação, dentro da literatura infantil, dos valores sociais que permeiam a realidade social atual, no intuito de erigir uma consciência crítica na criança. Palavras-chave: literatura infantil; literatura infantil brasileira; desenvolvimento moral. ABSTRACT This work reports the use of children's literature as relevant to the development of moral construction in children. The need to provide moral values is presented in children's literature from its beginnings in order to justify the use and disclosure at the time. This perspective through the centuries and has been established within the society, especially the duality of his nature and teaching art. Held from the methodology literature, this paper presents an overview of the historical and social emergence of the genus in Brazil and worldwide, highlighting the main factors that contributed to the delimitation of its nature, beyond the study of moral development in children, delimiting its phases, key features and how to present and interferes with children's literature. Finally, consider the necessity of acting in children's literature, the social values that permeate the current social reality in order to build a critical awareness in children. Keywords: children's literature; Brazilian children's literature; moral development. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10 2 A LITERATURA INFANTIL: UMA HISTÓRIA DENTRO DAS HISTÓRIAS .. 13 2.1 O surgimento e contexto da literatura infantil ........................................... 14 2.2 O surgimento e contexto da literatura infantil no Brasil ............................ 19 3 A MORAL NA LITERATURA INFANTIL ....................................................... 26 3.1 O desenvolvimento moral na criança ......................................................... 27 3.2 A moral na história ....................................................................................... 30 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 34 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 37 11 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa contemplar a história e a evolução da literatura infantil no Brasil e no mundo, ressaltando seu contexto histórico e social, a fim de demarcar as especificidades do gênero em questão, analisando sua natureza intrinsecamente pedagógica e artística. Dentro dessa conjuntura, se faz mister considerar que a literatura infantil foi, e ainda é, um sustentáculo em que a sociedade burguesa recorreu no intuito de disseminar seus valores e normas vigentes durante os séculos. Esses ensinamentos morais atrelados à linguagem literária, via de encantamentos e sonhos, contribuí para incutir na mente das crianças conceitos abstratos em conceitos concretos, salientando a dominação do adulto sobre a criança. A literatura infantil surge refletindo as mudanças de perspectiva no que tange as relações sociais, a família e principalmente a criança. A necessidade de criar novos valores a fim de enfatizar o modelo de homem/cidadão pretendido pela sociedade favoreceu que esse gênero nascesse carregado de ensinamentos morais. A estrutura maniqueísta presente nas obras, em que o bem é premiado e o mal castigado, exprimia a maneira com que as crianças deveriam se portar diante desses novos valores sociais. Desta forma, a escola exerce um papel importante na obtenção desses objetivos na medida em que era por via dela que as crianças aprendiam a habilidade fundamental para o consumo da literatura infantil, o ato de ler. A intencionalidade do texto para a criança contribuiu para que esse gênero fosse colocado numa condição secundária, comprometendo sua expressão artística, uma vez que se fazia mais pedagógica do que literária. Nesse sentido, é notória a discussão em torno da especificidade da literatura infantil, uma vez que o gênero literário/artístico se entrelaça ao aspecto didático/pedagógico do texto, impossibilitando a delimitação de uma natureza e de objetivos enquanto arte ou enquanto pedagogia. Desta forma, surgem diferentes questionamentos: a literatura infantil visa, através de uma forma lúdica, apenas transmitir conhecimentos 12 e valores? Visto que ela é apresentada para criança como uma forma de entretenimento, como é trabalhado o caráter moralizador na literatura infantil? Diante dessas inquietações, emerge a necessidade de promover uma análise da questão da utilização do ensino de normas e virtudes presentes em nossa sociedade na literatura infantil - ensinamento moral - e suas nuances, bem como entender como ocorre a percepção e a interferência da criança nesse processo de construção e desenvolvimento moral. A problemática desse trabalho poderá ser de grande valor para formação do pedagogo na medida em que suscita a busca por um entendimento acerca da influência ideológica da literatura infantil sobre a criança, favorecendo o reconhecimento desta como um canal de difusão de valores tradicionais e contemporâneos. Tendo como metodologia a pesquisa bibliográfica, esse trabalho apresenta duas vertentes: uma vertente retrospectivo-histórica acerca da literatura infantil considerando, sobretudo, os aspectos que tangem o surgimento, contextos e especificidades no Brasil e no mundo, além dos aspectos do desenvolvimento moral na criança; e outra vertente prospectiva para o futuro da literatura infantil no Brasil. Fundamentam esse trabalho os pressupostos teóricos de Zilberman (1987), Lajolo (1984), Áries (1973), Coelho (2000), Piaget (1977), Becker (2001), Palo (1986), entre outros que vêm contribuindo para enriquecer o conhecimento sobre a questão. Dentro dessa perspectiva, o presente trabalho disserta, através de três capítulos, acerca do surgimento e contexto da literatura no Brasil e no mundo; a questão da moral na literatura infantil e a perspectiva para uma nova literatura infantil. Com relação ao surgimento e contexto da literatura infantil, discorre-se sobre a natureza, a finalidade e a intencionalidade desse gênero no que tange à inserção do discurso moralizador e pedagógico do seu texto. As relações da literatura infantil com as instituições, em especial a família e a escola, também são ressaltadas, bem como, o panorama social e histórico do contexto brasileiro e europeu em que esse gênero emerge. 13 O capítulo destinado à análise da questão moral na literatura infantil pondera o uso da emissão de valores sociais via literatura, bem como, o processo de desenvolvimento e construção da moral na criança, estabelecendo seus períodos e características. Também são observados os traços marcantes da atuação dos ensinamentos morais na literatura infantil, caracterizando sua aplicabilidade no texto. A consideração frente a uma nova perspectiva para a literatura infantil se faz presente na medida em que os questionamentos em torno da sua natureza artística e pedagógica vão sendo respondidos. A necessidade de criar uma nova visão frente disseminação de valores e normas via literatura infantil é um dos objetivos dos autores contemporâneos. É em torno dessa perspectiva que esse trabalho pretende se fixar. 14 2 A LITERATURA INFANTIL: UMA HISTÓRIA DENTRO DAS HISTÓRIAS Entrelaçar-se nas teias da literatura infantil não parece uma tarefa difícil, considerando que todos nós, algum dia de nossas vidas, nos deparamos de alguma forma com um ou outro livro do gênero em questão. Se revirarmos o baú de nossas memórias, com certeza, lembraremos que, quando crianças, ouvimos nossos pais, avós e professores ou até nós mesmos lemos histórias fantásticas que nos permitiram uma viagem a um mundo repleto de imaginação e encantamento, em que os personagens instigavam em nós a vontade de ser como eles: heróis, fadas, príncipes e princesas, onde as tramas sempre levavam a uma felicidade ampla e eterna dos mocinhos e os piores castigos aos vilões. No entanto, entender a especificidade desse gênero vai muito além de um país distante. Desde seu surgimento a literatura infantil carrega uma discussão em torno de sua natureza e objetivos, a quem pertenceria a literatura infantil: a arte ou a pedagogia? Apesar de toda discussão gerada ao longo dos tempos por teóricos da literatura e da educação, é inegável que a essas duas vertentes, a arte e a pedagogia, se encontram e muitas vezes se divergem dentro da literatura infantil, contudo as duas estão sempre presentes. Zilberman e Magalhães (1987) apontam que a ressonância entre os estudos da psicologia infantil, a aplicação didática desses estudos através da pedagogia e o terreno artístico propiciaram o surgimento da literatura infantil, na medida em que [...] se decorre de uma situação histórica particular, vinculada à origem da família burguesa e da infância como “classe” especial, participa desta circunstância não apenas porque provê textos a esta faixa etária, mas porque colabora na sua dominação, ao aliar-se ao ensino e transforma-se em seu instrumento. (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1987, p. 12) Palo (1986, p. 6) salienta que essa ligação entre psicologia infantil e pedagogia emerge na literatura infantil no intuito de adequar a arte literária ao raciocínio da criança, visto que “[...] o pensamento infantil ainda não está apto para inferências, 15 abstratas e generalizadoras” da mente do adulto-escritor. Essa ação pedagógica no texto infantil viabiliza, a partir de aspectos concretos, o entendimento e aprendizagem da criança dos conceitos abstratos usados pela literatura. Segundo Zilberman e Magalhães (1987): É esse lugar que a literatura infantil preenche de modo particular, porque, ao contrário da pedagogia ou dos ensinamentos escolares, ela lida com dois elementos que são especialmente adequados para a conquista desta compreensão do real: com uma história, que apresenta, de maneira sistemática, as relações presentes na realidade, que a criança não pode perceber por conta própria; [...] e com a linguagem, que é mediador entre a criança e o mundo (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1987, p. 13) E é por meio dessa nuance que a sociedade utilizou-se da linguagem fantasiosa da literatura infantil para enfatizar crenças, valores e comportamentos desejados nas mentes das crianças. Assim, carregada de ideologia, emerge a literatura infantil, no intuito de doutrinar os pequenos a refletir os interesses no meio social a qual está inserido. 2.1 Surgimento e contexto da literatura infantil A produção de obras literárias direcionadas especialmente ao público infantil surgiu com maior força na metade do século XVIII. Considerando os estudos de Zilberman (1987) antes desse período, só durante o classicismo francês1, apresentaram-se algumas obras e textos que também poderiam ser apreciados e lidos por crianças, como: as “Fábulas” de La Fontaine, publicadas entre 1668 e 1694; “As aventuras de 1 O classicismo é um movimento cultural que valoriza e resgata elementos artísticos da cultura clássica (grecoromana). Nas artes plásticas, teatro e literatura, o classicismo ocorreu no período do Renascimento Cultural (séculos XIV ao XVI). CLASSICISMO. In: Sua Pesquisa. Disponível em <http://www.suapesquisa.com/artesliteratura/classicismo.htm>. Acesso em 09 de julho de 2009. 16 Telêmaco”, de Fénelon, lançadas postumamente em 1717; e os “Contos da Mamãe Gansa” - cujo título original “Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades” -, de Charles Perrault, publicada em 1697. Essa ausência de uma literatura dirigida à criança aconteceu, sobretudo, pela inexistência de um sentimento de infância como concebemos atualmente. Considerando os estudos de Ariès (1981) sobre a história da infância, em meados do século XVIII, a criança apresentava-se no meio social de forma meramente utilitária e substituível. Sua participação frente a essa sociedade resumia-se a um convívio estritamente de adultos, a fim de que essa ligação a torna-se rentável na economia familiar pelo desempenho de diversas tarefas e obrigações referentes a seu núcleo. O autor ainda aponta que as crianças não recebiam um tratamento especial da sociedade, que as via e as faziam se comportar como pequenos adultos, desde a maneira de se vestir até a forma de pensar. A quebra desse paradigma ocorrerá somente em meados da Idade Moderna, quando surge uma nova concepção de infância, agora visando estabelecer paradigmas que salientassem os interesses próprios das crianças e a necessidade de um desenvolvimento diferenciado. Todo esse avanço em relação à percepção das especificidades da criança foi advento das mudanças no pensamento burguês em ascensão na época. Dentro desses novos paradigmas, a nova família moderna emerge, sobretudo, da estimulação do Estado no intuito de centralizar o poder político e equilibrar a nobreza feudal em decadência, desta forma irradiando alguns valores como: a valorização do casamento e a educação dos herdeiros, assim como a privacidade, o afeto e a solidariedade entre seus membros. A partir da nova concepção de família, a criança é vista como um “[...] tipo de indivíduo que merece atenção especial [...]”, passando assim a desempenhar o papel central dessa nova família. (ZILBERMAN, 1987, p.16) 17 A responsabilidade da família moderna era o de permitir que seus filhos que atingissem a idade adulta de forma saudável e madura, contribuindo com sua formação intelectual. Segundo Lajolo (1984): A manutenção de um estereótipo familiar, que se estabiliza através da divisão do trabalho entre seus membros, converte-se na finalidade existencial do indivíduo. Contudo, para legitimá-la foi necessário promover, em primeiro lugar, o beneficiário maior desse esforço conjunto: a criança. A preservação da infância impõe-se enquanto valor e meta de vida. (LAJOLO, 1984, p.17) Lajolo (1984) salienta que os postulados dos novos ramos da ciência como a psicologia infantil, pedagogia e a pediatria asseguram a singularidade da infância, sendo a fragilidade biológica o fundamento primordial para estabelecer a diferença do período infantil em relação ao período adulto. Desta forma, os laços de dependência com os adultos principalmente os membros de sua família se estreitaram. Apesar de adquirir um novo olhar, uma nova posição na sociedade e até mesmo produtos industrializados e culturais destinados a ela, a função social da criança era, sobretudo, de natureza simbólica, pois assumia a imagem apenas de alvo da atenção e de interesse dos adultos. Segundo Zilberman e Magalhães (1987), as idéias agregadas à nova concepção de infância como fragilidade, desproteção e dependência escamoteavam a intenção da sociedade burguesa em afastar as crianças do setor de produção, pois economicamente elas não atraiam vantagens econômicas, ou até mesmo, eram contraproducentes. O círculo se fecha: postula-se a fragilidade natural da criança a partir de sua situação biológica em formação; em razão disso, é distanciada dos meios produtivos, o que determina sua dependência, acentuada pelo fato de que não vem a ser dotada de um conhecimento pragmático que a ajude a transmutar em trabalho suas habilidades. (ZILBERMAN; LAJOLO, 1987, p.16-17) 18 A nova concepção de infância surge de um idealismo sem consonância com as circunstâncias presentes na vida infantil da época, enquanto os autores e poetas românticos difundiam a infância como um período de excelência da vida, uma série de atributos asseguravam a dominação do adulto sobre a criança, qualificando e reproduzindo ideologicamente uma condição social de fragilidade física, moral e imaturidade intelectual e afetiva. Lajolo (1984) ratifica que apesar de ter surgido na aristocracia francesa, a literatura infantil expande-se na Inglaterra, país que mais se associa aos acontecimentos econômicos e sociais da época2, proporcionando assim que esse gênero surja extremamente marcada pelo seu tempo e contexto, assumindo a condição de mercadoria para a infância. A maior mola propulsora dessa condição é a escola, pois como as obras dependem da capacidade de leitura das crianças, supõe-se que estas tenham passado pelo âmbito escolar para garantir a habilidade de ler: Isto aciona um círculo que coloca a literatura, de um lado, como intermediária entre a criança e a sociedade de consumo que se impõe aos poucos; e, de outro, como caudatária da ação da escola, a quem cabe promover e estimular como condição de viabilizar sua própria circulação. (LAJOLO, 1984, p.18) A escola qualifica-se assim, como um espaço de mediação entre a criança e a sociedade. Facultativa até o século XVIII, a escolarização torna-se paulatinamente uma atividade obrigatória para a criança, bem como a freqüência às aulas, o destino automático de todas elas, não somente oriundas da burguesia, mas de todos os segmentos da sociedade. Toda essa veemência escolar justificava-se pela urgência em preparar as crianças para o enfrentamento maduro do mundo, resgatando-os da fragilidade e do despreparo naturais, porém outro papel também era atingido, como assinala Lajolo 2 Refere-se ao surgimento e ascensão da Revolução Industrial nos meados do Séc. XVIII. 19 (1984), o de ajudar a enxugar do mercado um contingente respeitável de operários mirins, ocupantes, nas fábricas, dos lugares dos adultos. Zilberman (1987) aponta que o papel da escola nesse processo: [...] caracteriza-se por inverter simetricamente a atividade materna, na medida em que lhe cabe reintroduzir a criança na realidade externa. Porém, mesmo assim, exerce uma tarefa feminina, uma vez que atua como mediadora entre o mundo interior do pequeno e a sociedade. Por sua vez, esta última só aparece ao estudante de modo indireto, via livros didáticos, laboratórios, conferências, mapas, dando-se ainda a convivência social apenas entre garotos, e não com os adultos. É, pois, outra modalidade de clausura, que também reforça o estado pueril e sua ausência do conjunto da sociedade. (ZILBERMAN, 1987, p.10) Com os laços entre a escola mais fortalecidos, a literatura infantil passa a configurar um mercado específico, tendo, com isso, que motivar e respeitar as características de seu alvo, sob punição de frear suas possibilidades de circulação e consumo. Em virtude disso, a literatura infantil adota uma atitude nitidamente pedagógica, a fim de tornar mais evidente sua utilização, inspirando com isso a confiança da burguesia em sua utilização no intuito de defender valores e comportamentos desejados. Segundo Arroyo (1989): Tais leituras eram quase sempre pesadas, de um espírito moralista acentuado na sua falsidade ou precariedade, obrigacionais, sem o menor interesse pelo entretenimento, como compreendemos hoje. O objetivo de tais leituras era armazenar na cabeça da criança conhecimentos, fatos e conceitos dentro dos padrões sociais e educacionais então vigentes. (ARROYO, 1989, p.83) A necessidade didática e a incumbência da dominação da infância por parte dessa literatura ainda vêm atrelada ao cunho artístico das obras infantis. O pensamento mágico, sem limites, intrinsecamente ligado às ilustrações, permite que o gênero literário navegue por aspectos reais e imaginários. Esse caráter dualista da literatura 20 infantil, de um lado o cunho pedagógico e do outro a expansão do repertório lingüístico através do conto, confere a esta produção um desprestígio frente ao público adulto, devido aos seus aspectos doutrinários. Foi essa perspectiva utilitária conferida à literatura infantil que a atrelou à função, sobretudo, de educar pela transmissão de valores morais e/ou de informações. Por conta desse olhar pedagógico, a imaginação infantil era compreendida como domínio da ilusão, do sonho, da mentira ou de anseios absurdos, domínio do qual caberia eliminar no intuito de cercar a criança de uma compreensão prática do homem e do mundo. A literatura infantil emerge com a tarefa primordial de domar as forças imprevisíveis do imaginário infantil, oferecendo em troca verdades morais que preparavam a criança para atuar como adulto responsável na sociedade burguesa. Desse modo, a obra literária infantil atravessa os séculos apresentando-se como o lugar de um sentido inquestionável, o de fomentar a aplicação das normas e virtudes através da ficção. 2.2 Surgimento e contexto da literatura infantil no Brasil Considerando que o surgimento da Literatura Infantil no panorama europeu ocorreu em meados do século XVIII com as obras de Charles Perrault, somente em fins do século XIX, a literatura infantil começa a ser registrada no Brasil. Segundo Lajolo e Zilberman (2002), algumas obras apresentaram-se antes desse período, sobretudo impulsionadas pela oficialização da atividade editorial com a Imprensa Régia em 1808, iniciando com a tradução de “As aventuras pasmosas do Barão de Munkausem”, e em 1818, a coletânea de José Saturnino da Costa Pereira “Leitura para meninos, contendo uma coleção de histórias morais relativas aos defeitos ordinários às idades tenras, e um diálogo sobre geografia, cronologia, história de Portugal e história natural”, porém essas publicações ocorreram esporadicamente, desta forma insuficiente para determinar uma produção regular de uma literatura infantil brasileira. 21 A entrada tardia do Brasil na produção literária para a infância sofreu, assim como na Europa, influências diretas do contexto social e das transformações ocorridas no país nesse período. A mudança no modelo governamental, advento da Proclamação da República, acarretou o desejo de expressar uma imagem de modernização do país. A necessidade de criação e desenvolvimento de uma indústria nacional favoreceu ao surgimento de uma política econômica que não poupava esforços para angariar consumidores para uma produção ainda nascente. Zilberman e Lajolo (2002) ponderam que essa camada consumidora, sobretudo, intermediária entre os dois grupos sociais, aristocracia rural e escravos, que compunha agora a população das cidades, antes habitadas por uma escassa administração e pelo comércio, era constituída por uma parcela fragmentada da classe dominante detentora de pequenas terras; imigrantes e pelo crescente número de empregados envolvidos direta ou indiretamente com a comercialização do café. Diante da diversificação de públicos, se fez interessante o desenvolvimento da literatura, na medida em que o contato com livros e publicações reforçava uma imagem de escolarização e cultura muito almejada pela classe intermediária, no intuito de se diferenciar das classes mais humildes e se aproximar da alta burguesia, surgindo com isso, diferentes tipos de publicações como revistas de variedades, romances ligeiros e material didático escolar. (ZILBERMAN; LAJOLO, 2002) Dentro dessa perspectiva, apresentou-se o momento propício para o surgimento da literatura infantil, a fim de justificar a transformação da sociedade rural em urbana. Campanhas em prol da instrução e da alfabetização dos pequenos escamoteavam a intenção de favorecer o desenvolvimento do consumo de bens culturais. A escola dentro desse contexto aparece novamente como ponto fundamental para ratificar a utilização do livro pelas crianças, como analisa Zilberman e Lajolo (2002): Como é à instituição escolar que as sociedades modernas confiam a iniciação da infância tanto em seus valores ideológicos, quanto nas habilidades, técnicas e conhecimentos necessários inclusive à 22 produção de bens culturais, é entre os séculos XIX e XX que se abre espaço, nas letras brasileiras, para um tipo de produção didática e literária dirigida em particular ao público infantil. (ZILBERMAN; LAJOLO, 2002, p. 25). Contudo, a escassez de um material adequado para a leitura das crianças nas escolas e até mesmo fora delas, era constantemente ressaltada por professores e intelectuais. Essas solicitações e declarações traziam consigo uma concepção bem arraigada na época, a concepção da importância do hábito de ler para a formação do cidadão brasileiro, outro ponto que alavancava esses apelos era a presença maciça das obras estrangeiras traduzidas nas editoras brasileiras. Segundo Becker : Sendo essas obras destinadas ao público europeu infantil, as traduções e as adaptações apresentavam problemas, devido não só ao distanciamento lingüístico entre o português em que esses textos eram expressos e ao falar típico dos brasileiros, mas também quanto à representação de mundo, redundando em problemas de identidade cultural. (BECKER, 2001, p. 35). Com um emaranhado de ponderações e problemas em torno da literatura circundante no Brasil, não tardou uma invasão de livros produzidos por intelectuais, professores e jornalistas, todos destinados ao “[...] corpo discente das escolas igualmente reivindicadas como necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno” (ZILBERMAN; LAJOLO, 2002, p. 28). Arroyo (1989) enfatiza em sua obra que “[...] toda essa enorme massa de traduções lida durante o século XIX no Brasil criou condições, sem dúvida, para o próprio aparecimento da literatura infantil brasileira em suas fortes e definidas características” (ARROYO, 1989, p.101). Segundo Zilberman e Lajolo (2002) as primeiras publicações essencialmente brasileiras começam a surgir em 1886 com o livro “Contos Infantis” de Júlia Lopes de 23 Almeida e Adelina Lopes Vieira, depois se seguem “Contos Pátrios” de Olavo Bilac e Coelho Neto em 1904, “Histórias da nossa terra” de Júlia Lopes de Almeida em 1907, “Através do Brasil” de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, entre outras obras. Também foram registrados nesse período livros de poesia para crianças como “Coração” de Zalina Rolim, em 1893, e “Poesias Infantis” de Olavo Bilac, em 1912. Livros com antologias folclóricas e temáticas também foram freqüentes nesse período, pois tinham como finalidade compor um material didático adequado para as comemorações escolares, como “Os nossos brinquedos” em 1909, “Cantigas das crianças e do povo” e “Danças populares” de Alexina de Magalhães Pinto, em 1916, entre outros. (ZILBERMAN; LAJOLO, 2002) Esse início da literatura infantil brasileira, como aponta Arroyo (1989), apresentou histórias de aventuras, muitas vezes vivenciadas por crianças, em que o amor à pátria, à família e aos heróis nacionais estavam constantemente presentes. As manifestações de obediência, virtudes e de atos modelares dos protagonistas reafirmavam a intenção pedagógica de reprodução de valores e comportamentos por parte das crianças-leitoras. Além do forte cunho moral, patriótico e cívico dessas obras, a exaltação da natureza nacional ressaltando sua beleza e opulência sublinhava o projeto maior das obras. A postura pedagógica na produção brasileira retrata a intenção do meio intelectual de promover o projeto de modernização da nação. Zilberman (1987) considera que a aceitação de valores patrióticos pela população, iniciando, sobretudo, pela criança era objetivo primordial da escola, e a literatura infantil integrou-se a esses esforços sociais de construção de uma cultura nacional na medida em que dava impulso ao nacionalismo em suas obras. De acordo com Zilberman e Lajolo (2002), a intenção dos autores na inserção de aventuras e desafios propiciava uma identificação das crianças-leitoras com os protagonistas, com isso a sua aplicabilidade na escola diminuía a rigidez dos conteúdos didáticos tornando mais fácil e prático o ensino de disciplinas como geografia, agricultura, história e até mesmo higiene pessoal. 24 Outra forma também utilizada pelos autores desse período, a fim de suscitar o projeto de nacionalização, foi o enfoque nas manifestações folclóricas do país. O material selecionado e produzido aguçava o interesse das crianças pelas cantigas, histórias e brinquedos regionais, além de parlendas e provérbios. Contudo, como salienta Zilberman e Lajolo (2002), o material selecionado apresentou dificuldades aos educadores da época, na medida em que tinham que lidar com diferentes culturas do Brasil, muitos textos sofreram adaptações dos autores a fim de cumprir com o objetivo pedagógico a qual se destinava. Um ponto também a ser salientado nesse período de surgimento da literatura infantil no Brasil é a extrema preocupação com a linguagem para as crianças. A interiorização de modelos de atitudes, valores e sentimentos frente à vida social e ao país por parte da criança acresciam-se com a veemência na correção da linguagem. De acordo com Zilberman e Lajolo (2002): [...] além deste objetivo de inculcar, pela exposição a um modelo congelado de perfeição, adequados hábitos lingüísticos (isto é, hábitos lingüísticos semelhantes aos adotados na modalidade escrita da classe dominante), a língua nacional também constitui símbolo palpável, emblema da pátria [...] (ZILBERMAN; LAJOLO, 2002, p. 4243) Até a segunda década do século XX, o panorama não se altera significativamente, e a literatura infantil permanece atrelada aos interesses do Estado e da instituição escolar. No entanto, é a partir da década de 20, que Monteiro Lobato, escritor que, também após escrever livros para adultos, volta-se para a literatura infantil, inova indiscutivelmente o percurso do gênero, sem desistir, contudo, de incorporar às suas produções o projeto nacionalista doutrinário. De acordo com Becker (2001), a partir desse momento, a literatura infantil brasileira “[...] recebe uma roupagem nova, visível na inovação temática das historias e na aproximação entre a linguagem e o tom coloquial que caracteriza a fala brasileira” (BECKER, 2001, p.37). Considerado por muitos como o “verdadeiro pai” da literatura 25 infantil brasileira, Lobato é até hoje reverenciado pela crítica especializada, apesar de ser pouco lido pelas novas gerações. Becker (2001) aponta que a grande mudança ocorrida na literatura infantil só vai ocorrer, no entanto, a partir dos anos 70, na época do “milagre econômico”, auge da ditadura militar, em que há o início do “boom” da literatura infantil, o qual atingiria seu ápice nos anos 80, quando começa a florescer igualmente vasta produção dirigida aos jovens, além de uma vertente da crítica destinada a estudar esses novos títulos. Não se trata mais do surgimento de um ou outro autor de destaque, mas de uma produção em massa – em parte bastante revitalizada – destinada aos mais novos. Dessa nova safra, destacam-se, entre vários: Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós, Elvira Vigna, João Carlos Marinho, Lygia Bojunga Nunes, Ruth Rocha, Ziraldo etc. Com raras exceções, eles continuam escrevendo para crianças e/ou jovens até os dias atuais. Becker (2001) considera que: A narrativa infantil dessas duas décadas produziu obras diversificadas, modernos contos de fadas e de ficção científica, narrativas de cunho social e policial. Além do abandono da postura didático-pedagógica, ao mostrar personagens e enredos livre do estigma de modelos exemplares [...]. O ambiente urbano em que ocorrem as histórias revelou uma sociedade marcada por problemas socioeconômicos [...] Discutiram-se as fontes e o contexto dos valores que tradicionalmente caracterizaram as histórias infantis. (BECKER, 2001, p. 41) Assim como no contexto europeu, a ideologia da classe dominante emergia nos textos literários para as crianças brasileiras como forma de validar e divulgar uma imagem, sobretudo, de um país forte e virtuoso, no entanto, as obras para infância escamoteavam a realidade social do país. 26 Durante muito tempo, a literatura infantil brasileira fixou-se no meio cultural em decorrência de sua utilização na sociedade e desta forma persistiu expressando normas e valores para a infância. Contudo, como podemos perceber a caminhada da literatura infantil brasileira segue rumo à maturidade do gênero, revestindo cada vez mais suas produções com qualidade estética e textual. 27 3 A MORAL NA LITERATURA INFANTIL Como foi visto, a literatura infantil nasce e se estabelece na sociedade, principalmente, por sua utilidade pedagógica. A transmissão de valores e normas sociais apresentou-se como objetivo primordial dessa produção literária para criança. Desta forma, a perspectiva moral, como um “[...] conjunto de regras de conduta admitidas em determinada época ou por um determinado grupo”, se fez presente nos textos e obras com a função de dominação da infância desde seu surgimento. (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 274) Essa construção moral estabelecida pelo texto infantil apresentava forte cunho dogmático, de caráter religioso, onde a presença da estrutura maniqueísta muitas vezes era imprescindível. Coelho (1997) ressalta que “[...] essa moral aparece na rigidez da conduta certa ou errada, que se condensa na moral da história ou no prêmio ou castigo recebido pelos personagens” (COELHO, 1997, p.21). A ideologia moral presente na literatura infantil refletia o contexto social a qual estava inserida e, desta forma moldava os comportamentos e virtudes desejados para a formação de um cidadão apto a viver na sociedade. Segundo Cotrim (2002), as normas morais surgem para regularizar as relações humanas e mudam de acordo com as transformações histórico-sociais, contudo essas normas “[...] se caracterizam, em tese, pela liberdade, ou seja, elas dependem da escolha individual para se fazer aceitas e serem cumpridas” (COTRIM, 2002, p. 265). Desta forma, percebe-se que é necessária uma consciência da conduta e juízos dos atos passados para que as normas morais sejam interiorizadas pelo indivíduo. Contudo, é evidente que no caso da criança, público alvo da literatura infantil, essa liberdade de escolha frente aos ensinamentos morais não acontece, assim a coerção social impõe-se determinando a conduta desejada. Dentro desse panorama, 28 se faz mister entender como se dá a maturação do pensamento infantil no que tange o entendimento de conceitos morais. 3.1 O desenvolvimento moral na criança Tomando como referência os postulados piagetianos apontados por Rappaport (1982), a moral é um sistema de regras sociais e morais, que são construídas, transmitidas e respeitadas pelos indivíduos da sociedade. Essa transmissão de valores e normas evidencia a existência de uma relação repressiva entre o adulto e a criança, a fim de encobrir, disfarçar e reforçar o egocentrismo desse último. Para analisar esse processo de desenvolvimento moral e de justiça na criança, Piaget (1977) utilizou-se como procedimento o jogo de bolinhas de gude, pois se tratava de um jogo social transmitido à criança pelo adulto, caracterizado pela existência de regras previamente estabelecidas e obrigatórias. Rappaport (1982) reitera a utilização deste determinado jogo como procedimento para análise do comportamento e julgamento moral, na medida em que: As regras do jogo determinam a maneira que os jogadores devem se portar [...], controlam os direitos individuais, regulam o direito à propriedade e, nada mais são do que uma criação cultural, transmitida de geração em geração. Desta forma, a relação entre o jogo de bolinhas de gude e o código moral se torna clara, pois ambos preenchem as mesmas condições. (RAPPAPORT, 1982, p. 80) Dentro desses estudos, Piaget (1977) identificou três estágios de desenvolvimento de uma consciência moral na criança. O primeiro estágio que compreende de 0 a 02 anos de idade, denominado por Piaget (1977) de motor e individual ou consciência da regularidade, apresenta como característica o ato de repetir um determinado comportamento de forma minuciosa e ordenada, reflexo da fase motora que, por sua vez, é ordenada pela inteligência prática e independente de toda relação social. A criança, nesse período, manuseia o objeto em virtude de seus próprios desejos e de 29 seus hábitos motores, desta forma, não há direcionamento de conjunto, as regras coletivas são superadas pelas regras motoras e individuais. O segundo estágio que envolve dos 02 aos 06 anos, corresponde ao estágio egocêntrico ou consciência da obrigação/obediência. Sua característica principal é a submissão da criança à regra imposta pelo adulto, contudo Piaget (1977) salienta que a criança somente expressa um sentimento de obrigação às imposições dos adultos pelos quais ela demonstra estima. O respeito místico a regra, que é tida pela criança como algo sagrado, eterno e imutável é outra característica desse estágio. A origem da regra implica o surgimento do comportamento de imitação, sendo assim a criança ao imitar a regra exterior não se importa com os parceiros, joga para si. No terceiro estágio que abrange dos 07 aos 10 anos, denominado de estágio de cooperação, a criança busca um entendimento mútuo da regras, apesar de não as conhecê-las plenamente. A preocupação com a uniformidade das regras quando obrigatórias e a reelaboração de novas regras a partir da necessidade e consenso do grupo são as características marcantes desse estágio. O quarto estágio do desenvolvimento moral é denominado de estágio de codificação da regra que compreende dos 11 em diante, apresenta como característica uma livre decisão por parte da criança. Neste estágio, os detalhes em torno do código de regras do jogo são discutidos e regulamentados de forma coletiva. O estágio de cooperação e de codificação de regra marca o início do processo de interação da criança com o meio físico e social a qual está inserida. Percebe-se com isso, a evolução do comportamento moral na criança, que partindo da fase egocêntrica, no qual a criança está centrada nela mesma, caminha para um estado de socialização, em que é considerado o ponto de vista dos outros. O desenvolvimento do comportamento moral apresenta dois tipos opostos de moral: a da obrigação ou heterônoma, que compreende o processo de construção da consciência da regularidade e da consciência da obrigação/ obediência, e a da 30 cooperação ou autonomia, que compreende o estágio de cooperação e da codificação da regra. Segundo Piaget (1977): A moral da autoridade, que é a moral do dever e da obediência, conduz, no campo da justiça, à confusão entre o que é justo com o conteúdo da lei estabelecida e à aceitação da sanção expiatória. A moral do respeito mútuo, que é a do bem (por oposição do dever), e da autonomia, conduz, no campo da justiça, ao desenvolvimento de igualdade, noção constitutiva da justiça distributiva e da reciprocidade. (PIAGET, 1977, p. 279) Os dois primeiros estágios da perspectiva piagetiana que correspondem ao processo de heteronomia são também denominados de realismo moral. Segundo essa perspectiva, a criança tende a julgar os atos de terceiros de acordo com a quantidade do dano e não por sua culpabilidade. Como reitera Rappaport: “[...] o que determina a culpa não é a intenção das pessoas (critério subjetivo), mas, sim, a quantidade de dano (critério objetivo ou real)” (RAPPAPORT, 1982, p. 86). Esse julgamento da criança apresenta-se essencialmente heterônomo, e as regras não são elaboradas, avaliadas ou interpretadas por elas. Para Piaget (1977), essa tendência, de obediência ao pé da letra das regras, é reflexo da coação do adulto que pune severamente as transgressões e recompensa as ações desejadas pelas crianças. Em virtude disso, a heteronomia apresenta-se como uma característica do desenvolvimento infantil, inviabilizando a discriminação, por parte da criança, das imposições, das idéias e dos pontos de vista de outras pessoas. Contudo, à medida que a criança vai crescendo, ganha independência, pois passa a interagir com mais pessoas e tendo contato com uma diversidade de pontos de vista. Com o tempo, o processo egocêntrico vai desaparecendo e sendo substituído por diferentes perspectivas trazidas por outras pessoas no que tange aos sentimentos, intenções e referenciais, possibilitando que a criança adote um critério mais subjetivo em seus julgamentos morais. 31 3.2 A moral na história A necessidade de tornar os comportamentos exemplares dos personagens contidos no texto infantil em um padrão entre o convívio da criança com a sociedade, fez com que a burguesia lançasse mão de vários artifícios que escamoteiam o forte teor pedagógico e doutrinário desse gênero durante os séculos. Segundo Zilberman (1987) a literatura infantil reafirma os laços ideológicos com a sociedade na medida em que atua na mente da criança: [...] seja através da atuação de um narrador que bloqueia ou censura a ação de suas personagens infantis; seja através da veiculação de conceitos e padrões comportamentais que estejam em consonância com os valores sociais prediletos; seja pela utilização de uma norma lingüística ainda não atingida por seu leitor, devido à sua falta de experiência mais complexa na manipulação com a linguagem. (ZILBERMAN, 1987, p.20) Podemos observar que nos textos dos livros infantis clássicos ou até mesmo alguns livros mais atuais, a delimitação de traços característicos da imposição de valores morais apresenta-se de forma tão sutil que cremos que a intencionalidade do texto é meramente o entretenimento da criança. Uma das principais características da atuação moral no texto infantil é a busca da exemplaridade. É através dela que o modelo de comportamento desejado pela sociedade emerge, sobretudo, ponderado pela “[...] obediência absoluta aos valores, padrões, tabus ou ideais consagrados pelo poder ou pelo saber da autoridade” (COELHO, 2002, p.20). Para Rosemberg, conforme citado por Cunha, a veemência da utilização de modelos na literatura infantil explica-se pela necessidade de operar conceitos abstratos em concretos para a criança, de acordo com a autora: Quando, por exemplo, a literatura infanto-juvenil manipula um certo conceito de criança, ou de adulto, ela não está apenas pregando um 32 modelo, ela está agindo de acordo com um modelo, de acordo com um conceito. Criar um texto, criar uma imagem não é refletir. É agir. É atuar no concreto. É executar uma ação. O escritor se utiliza de símbolos, está concretizando, atualizando uma forma, dentre as muitas possíveis de se relacionar com crianças [...]. (ROSEMBERG, 1985, p. 75-6 apud CUNHA, 2002, p. 29) Palo (1986) também reforça essa perspectiva quando afirma que na literatura infantil “[...] é preciso lançar mão de estratégias concretas e próximas à vivência cotidiana da criança, para que, por contigüidade, se possa fazer a transferência e a aprendizagem do conceito.” (PALO, 1986, p.6). A utilização desse recurso, o de concretização do abstrato, promovido pelo texto infantil advêm, sobretudo, da linguagem simbólica e comparativa que permeia esse gênero. È em virtude dela que a criança faz conexões entre o real e o imaginário. Coelho (1997) aponta que para a criança a literatura infantil “[...] é o meio ideal não só para auxiliá-la a desenvolver suas potencialidades naturais, como também para auxiliá-las nas várias etapas de amadurecimento que medeiam entre a infância e a idade adulta” (COELHO, 1997, p.43). Esse processo de amadurecimento propicia o desenvolvimento de uma relação da criança consigo mesma e com o mundo ao seu redor, ou seja, favorece a passagem da fase egocêntrica, no qual a criança está centrada nela mesma para um estado de socialização, principalmente no que tange ao desenvolvimento moral. A manipulação do castigo e da premiação comum entre os personagens no texto infantil conduz a um sentimento de dever por parte da criança, contudo com sinaliza Piaget (1998) “[...] essa aceitação não é simplesmente o produto da vontade do mais forte: o medo só por si não coage, mas propicia uma obediência toda exterior, e aliás simplesmente interessada.” (PIAGET, 1998, p.65). Brearley (1973) também concorda com essa perspectiva ao afirmar que: 33 É com freqüência às custas do adulto e não por causa dele que as noções de justo e injusto penetram na mente infantil. Em contraste com determinada regra, que desde o começo foi imposta de fora à criança e que durante muitos anos ela não conseguiu compreender, como a regra de não dizer mentiras, a regra da justiça é uma espécie de condição imanente de relações sociais ou uma lei que governa o equilíbrio dessas relações. (BREARLEY, 1973, p.148). A partir dessas afirmações podemos perceber que o respeito às regras de conduta moral e social acontece, inicialmente, de forma exterior a criança, pois ao provir do adulto, a mesma não elabora interiormente essas regras. À medida que se desenvolve a criança percebe que as mesmas regras de conduta se aplicam também aos adultos, aos quais obedecem por força da afeição e do medo, e a todo meio social, com isso, passando a entender a aplicabilidade e intencionalidade da regra para o meio social ao qual esta inserida. Desta forma, o respeito unilateral típico do estágio de heteronomia, passa gradualmente ao estágio em que o aspecto subjetivo do indivíduo reelabora, opta e estabelece prioridades em relação às regras preestabelecidas pelo adulto, assim caracterizando a autonomia. Segundo Coelho (1997), apesar do forte cunho doutrinário e moralizante, a atuação do conjunto de valores exemplares, pelos quais a literatura infantil se pauta desde seus primórdios, é, sobretudo, são os valores perenes arraigados em nossa sociedade que ela mais explora: O maniqueísmo que divide as personagens em boas e más, belas e feias, poderosas e fracas, etc. facilita à criança a compreensão de certos valores básicos da conduta humana ou do convívio social. [...] O que a criança encontra nos contos de fadas são, na verdade, categorias de valor que são perenes. Impossível prescindirmos de juízos valorativos: a vida humana, desde as origens, tem-se pautado por eles. O que muda é apenas o conteúdo rotulado de “bom” ou “mau”, “certo” e “errado”. (COELHO, 1997, 54-5) 34 Ou seja, apesar da humanidade atravessar os séculos e transformar seus costumes e regras sociais, os valores contidos nos textos originais e determinantes do surgimento da literatura infantil, continuam presentes até hoje, pois tratam principalmente de peculiaridades intrinsecamente humanas, de natureza social e ética, sendo constantemente resgatados e atualizados pelas gerações. Desta forma, podemos perceber a força de difusão que esses ideais e valores tiveram - e ainda tem – durante os tempos. A natureza da literatura infantil, seja ela de instruir ou divertir, tem a finalidade primordial de proporcionar o conhecimento resultado da formação de uma consciência da relação entre a criança e o mundo. Em virtude disso, a nova perspectiva para a literatura infantil pretende retirar a intenção pedagógica do texto, sem lançar mão dos valores perenes, intensificando sua capacidade de observação e reflexão do mundo a qual esta inserida, a fim de desenvolver uma consciência crítica na criança. Coelho (1997) ressalta que: Mais do que dar exemplos ou conselhos, a literatura inovadora propõe problemas a serem resolvidos, tende a estimular, nas crianças e nos jovens, a capacidade de compreensão dos fenômenos; a provocar idéias novas ou uma atitude receptiva em relação às inovações que a vida cotidiana lhes propõe (ou proporá) e também capacitá-los para optar com inteligência nos momentos de agir. (COELHO, 1997, 154-5). Nessa perspectiva a literatura infantil visa, acima de tudo, o desenvolvimento da autonomia na criança, partindo do aspecto simbólico à realidade. O desenvolvimento de novas formas de relacionamento da criança com o seu interior e o mundo que a cerca favorecerá uma consciência dos valores em transformação em nossa sociedade pela criança. 35 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura infantil, desde suas origens, foi usada como instrumento de transmissão de valores sociais. Sendo entendida como uma via de comunicação entre o adulto e a criança, o ato de ler transformou-se também em um ato de aprendizagem. Contudo sua valorização, quer como elemento significativo na formação das mentes infantis, quer como uma produção cultural e artística, é conquista recente na sociedade. A literatura infantil foi, por muito tempo, encarada como um gênero secundário, devido ao seu caráter pedagógico, utilitário, ou apenas como mercadoria para a infância, atribuindo um caráter de objeto ou brinquedo. A utilização da linguagem poética, literária, pelo adulto proporcionou a compreensão e/ou assimilação de valores e padrões basicamente abstratos por um grupo de natureza essencialmente sensorial e concreta, a infância. A linguagem literária tem como capacidade fundamental a possibilidade da representação e da imaginação, desta forma, o poder de tornar concreto o abstrato, através de comparações, uso de imagens, símbolos, alegorias, etc. Essa capacidade de intervenção da literatura infantil propiciou a delicada capacidade de percepção intelectual da criança o desenvolvimento do pensamento lógico-abstrato, característico da mente adulta. Contudo, diante desses quatro séculos de produção para a infância, uma polêmica quanto à natureza da literatura infantil se instala: ela serve para instruir ou divertir? É notório que a essas duas linhas, tanto a arte quanto o pedagogia, se encontram e muitas vezes se divergem dentro do texto infantil, porém as duas estão sempre presentes. A produção de uma literatura infantil voltada para a diversão ou para a instrução dependerá da época em que esta for produzida, prevalecendo a predominância de um fator sobre o outro, principalmente nos momentos de transformações no sistema da vida e dos valores sociais. Desta forma o embate de forças se mostra na literatura infantil, de um lado aqueles que exigem uma literatura voltada ao entretenimento, desarticulada das estruturas cristalizadas, do outro, a necessidade do teor informativo, perpetuado com os valores já consagrados. Contudo, o que 36 percebemos realmente é que no seio da literatura infantil esses aspectos, o pedagógico e o artístico, estão fortemente ligados e a presença deles no contexto literário infantil é imprescindível. Atualmente observamos que na literatura infantil equívocos acontecem, sobretudo, na tentativa de retirar totalmente um ou outro aspecto. A intenção demasiada de fornecer o entretenimento e a diversão abre espaço para produções muitas vezes fragmentadas e bobas, tornando sem sentido o texto infantil, por outro lado, essa mesma intenção pedagógica das produções fornece obras extremamente informativas, sem perpassar pelo campo do imaginário e da fantasia. Apesar de todos esses problemas na produção literária atual, a literatura infantil busca estimular a criatividade e atrair as crianças, promovendo a descoberta de novos valores. Percebe-se agora que a dimensão lúdica e a dimensão pedagógica da literatura infantil não devem se impor uma sobre a outra, mas sim buscarem uma via pela qual as duas caminhem juntas, buscando uma fusão perfeita. Esses novos valores vêem para agregar novos conteúdos aos valores perenes em nossa sociedade e que constantemente se reciclam a fim de atender as mudanças de pensamento. Dentro dessa perspectiva, a valorização da consciência crítica principalmente no que tange a relação da criança com o meio social apresenta-se como aspecto fundamental para atuação e participação dessa criança no processo de transformação social. Desta forma, os novos paradigmas da literatura infantil visam exploração da realidade social, promovendo nas crianças novas idéias e atitudes frente a problemas concretos da vida social. A literatura infantil ganha um novo olhar, que visa operar com determinadas estruturas do pensamento da criança, viabilizando com isto um exercício contínuo de experimentações e descobertas. No entanto, essa nova literatura infantil, que surge carrega de responsabilidades principalmente no que tange o manuseio com contrastes e diferenças sociais, não impede de fornecer uma lição de vida e moral para a criança. 37 O comprimento das regras sociais dispostas através da motivação do castigo e dos prêmios, sede lugar a consciência do papel social que cada personagem apresenta dentro do texto infantil. A atuação da moral no texto infantil deve erigir caminhos que conduzam a criança-leitora a uma vida social mais justa, considerando as responsabilidades das posturas a serem tomadas. Enfim, apesar de controvérsia, percebo que a difusão dos valores sociais presentes no texto infantil é um aspecto indispensável para a natureza e objetivos da literatura infantil. A presença desse aspecto, sobretudo no texto infantil, é necessária para o desenvolvimento e construção moral na criança, na medida em que, é através dela que a criança estabelece relações com a sociedade ao seu redor. Contudo, essa transmissão de valores e normas via literatura infantil deve propor a consciência dessas normas para que a criança-leitora possa, de forma livre, interiorizar, aceitar e posteriormente cumprir a conduta estabelecida. A imposição dos valores de forma imperativa como nos acostumamos a presenciar durante séculos e séculos, tenderá a deixar a literatura infantil, para que está encante e delicie as crianças através de descobertas, problematizações e divertimento, suscitando valores mais próximos e atuais que tanto carecem de cuidados em nossa sociedade. 38 REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lucia de A.; MARTINS, Helena P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993. ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. ARROYO, Leonardo. Literatura infantil Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1989. BECKER, C. D. ; SARAIVA, J. I. A.; VALLE, L.; JARDIM, M. F.; VARELA, N. K. ; ASSUMPÇÃO, S.; SILVA, A. R. N. E. . 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