Fernanda Ferreira Montes e Regina Herzog
A relação do sujeito com o tempo na atualidade
O presente artigo se propõe discutir a relação do sujeito com o tempo. Para tanto,
vai abordar, no contexto cultural, as transformações quanto ao modo como o tempo
passou a ser concebido na atualidade. A seguir, considerando que estas mudanças
têm conseqüências para a própria constituição da subjetividade, caberá apontar, do
ponto de vista da clínica psicanalítica, a incidência cada vez mais freqüente de um
tipo de narrativa que remete para uma espécie de condensação do fluxo do tempo,
efeito de uma descrença nos próprios sentidos e de uma permanência do sujeito
num tempo presentificado.
Este artigo surgiu no bojo de questões clínicas que se apresentam na atualidade. Seu
objetivo é trazer alguns subsídios para a discussão da relação do sujeito com o tempo,
considerando que nos deparamos, nos atendimentos, com uma série de perturbações
psíquicas que remetem a dificuldades desta
ordem. Se na época de Freud os chamados
“pacientes difíceis” que basicamente compunham a clínica de Ferenczi eram raros, hoje
não podemos dizer o mesmo. Agora, os sujeitos que procuram análise mais se assemelham aos traumatizados de Ferenczi do que
às histéricas de Freud. Esta mudança aponta para uma problemática trazida pela teoria do trauma de Ferenczi, que se refere,
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ano XVIII, n. 184, dezembro/2005
The present article discusses the relationship between subject and time. For it, it will
approach, in a cultural context, the transformations by which time started to be
conceived in actuality. Following it, considering that these changes have
consequences to the subjectivity’s construction itself, it will show, from the clinical
point of view, the ever more frequent incidence of a type of narrative that remotes
to a type of time flux condensation, effect of a misbelieve in the senses itself and of
a subject’s permanence in a fixed present time.
>Key words: Time, subject, actuality, narrative
artigos > p. 49-59
> Palavras-chave: Tempo, sujeito, atualidade, narrativa
>49
artigos
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mais especificamente, a uma perda da certeza de si (Cf. Pinheiro, Jordão & Martins,
1998) . No âmbito do sujeito, esta perda
comportaria uma espécie de condensação
do fluxo do tempo, efeito de uma descrença nos próprios sentidos e de uma permanência do sujeito num tempo presentificado.
Já a questão do tempo se refere a uma transformação no contexto cultural contemporâneo que não é sem conseqüências para a
própria constituição da subjetividade.
Tal configuração implica dizer que a psicanálise concebe a constituição da subjetividade
a partir de sua inserção na cultura. É o que
nos ensina a obra de Freud, tanto nos artigos metapsicológicos quanto nos textos denominados culturais. Assim, nada mais
pertinente do que recorrer ao contexto cultural na tentativa de dar conta das indagações acerca do modo como o sujeito lida com
os impasses que se colocam na atualidade.
Com este objetivo em vista, propomos analisar algumas características da sociedade
contemporânea, indicativas de uma idéia de
tempo que não carrega a marca da historicidade, marca essencial para se pensar o processo de subjetivação no referencial
psicanalítico. Conforme veremos, o modo
como está disposta a sociedade atual acaba
abalando a própria concepção de sujeito tal
como se depreende do pensamento freudiano. Na presente discussão, pretendemos
mostrar que o mundo atual concebido como
o mundo do curto prazo, do capitalismo flexível, da velocidade da informação, não
confere um grande valor à narrativa de uma
história, entendendo-se, com isso, o que
permite ao sujeito se representar para o outro e para si próprio. Configuração que nos
conduz a indagar se, hoje, o discurso do su-
jeito não apontaria muito mais para um
texto imagético, no sentido de um discurso
que remete à descrição de imagens sem conexão entre si (Pinheiro & Martins, 2001),
lançando-o em uma busca desenfreada de
algo que lhe dê a sensação de permanência
no tempo.
Sujeito, tempo e mundo
contemporâneo
Sem desmerecer os vários ângulos com que
se pode pensar a atualidade, nos interessa,
neste trabalho, enfatizar uma grande mudança relativa ao modo como o tempo é concebido pelo sujeito e o modo como esta
mudança o afeta. Essa concomitância visa
indicar que não se trata de conceber qualquer tipo de antecedência ou primazia – lógica ou cronológica – no enfoque da questão.
Consideramos, em última instância, que sujeito e tempo são formas de se falar da mesma coisa, na medida em que entendemos a
subjetividade como constituída a partir de
uma narrativa. Neste sentido, entre os inúmeros aspectos que se presta a delinear esta
mudança, ressaltamos alguns dos avanços
tecnológicos que tiveram lugar em vários setores da sociedade. Como característica
maior observamos, em função da valorização
da informação, a preocupação em se reduzir
o tempo, praticamente tornando a velocidade um bem de consumo. Do trem ao avião,
do telefone à internet, os meios de transporte e de comunicação foram um dos responsáveis pela transformação nos modos de
relação, já que por princípio viabilizam a redução das distâncias e a aproximação das
pessoas (Sant’Anna, 2001). Entretanto, tudo
indica que viabilizar e realizar não pertencem ao mesmo registro. O que, sem sombra
lismo é aquele que repele a burocracia e a
hierarquização em função da velocidade dos
negócios, colocando em primeiro plano a
noção de flexibilidade (Sennett, 2004); outro fator que certamente interfere no modo
de relação do sujeito com o tempo, e que
não poderia deixar de ter conseqüências,
pois o que está em jogo, aqui, é a paranóia
do resultado, a qualquer preço. Sennet concebe o “capitalismo flexível” da era da globalização da seguinte forma:
Nesta passagem, enfatiza as repercussões
causadas por uma economia dedicada ao
curto prazo, tanto no trabalho quanto na
vida privada. Conforme assinala em sua argumentação, esse mundo não oferece muita coisa, nem econômica, nem socialmente,
para a construção de uma narrativa sobre si
mesmo. Diversamente do que ocorreu em
vários momentos da história da humanidade, na atualidade a incerteza faz parte do
cotidiano, e não mais depende de um desastre histórico tal como, por exemplo, uma
guerra (Sennett, 2004). Dentro desta lógica,
como fazer projetos se nos encontramos
imersos em uma sociedade que não permite o comprometimento a longo prazo? Afinal,
quanto mais ágil e capaz de se adaptar às
1> Utilizamos o conceito lacaniano de Outro em função de sua dimensão simbólica.
artigos
A expressão “capitalismo flexível” descreve
hoje um sistema que é mais que uma variação
sobre um velho tema. Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as formas rígidas de burocracia,
e também os males da rotina cega. Pede-se aos
trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos
a mudanças a curto prazo, assumam riscos
continuamente, dependam cada vez menos de
leis e procedimentos formais. (p. 9)
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de dúvida, deveria ser visto como possibilitando, e mesmo promovendo um estreitamente dos laços, parece ter tido um efeito
inverso. Pois essa redução das distâncias
com sua aparente aproximação das pessoas
acabaram gerando uma quebra da fronteira
que separa o público do privado, o fora do
dentro, enfim, o eu do outro. Em outras palavras, se a subjetividade é tributária do
Outro1 como limite e diferença, este estado
de coisas conduziu a um desmantelamento
dos laços sociais, minando uma concepção
de sujeito que tem, na alteridade, sua
consistência imaginária e sua garantia simbólica.
No campo da medicina, por exemplo, a questão da imortalidade nos ronda como possibilidade efetiva. De acordo com Baudrillard
(2000), a morte deixou de ser “um evento
fatal ou simbólico” (p. 11), tornando-se tãosomente uma “realidade virtual” (ibid.). Essa
quebra da fronteira entre vida e morte, ampliando os limites da vida aponta para uma
revolução ímpar no processo de subjetivação. Na atualidade, a categoria do impossível perdeu o lugar: se ainda não podemos
encontrar a cura “definitiva” de uma doença, ou criar com sucesso tantos órgãos quanto necessários para promover a vida eterna,
trata-se simplesmente de uma “questão de
tempo”.
Por outro lado, cabe lembrar que o mundo
contemporâneo é freqüentemente enfocado
pelo viés da globalização e da sociedade de
consumo. Nesta vertente, a idéia de trabalho no mundo globalizado sofreu uma
profunda modificação. Afinal, o novo capita-
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mudanças o sujeito precisa ser, mais deve
ser capaz de se reinventar; reinvenção que
deve ter lugar a todo instante. Distintamente dessa configuração, na época do chamado “capitalismo burocrático”, a experiência
de cada um se acumulava física e materialmente e a vida era construída numa narrativa linear, considerando que, de acordo com
Benjamin (1994), narrar é intercambiar experiências (p. 198). Segundo as palavras de
Sennett (2004):
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artigos
O sinal mais tangível dessa mudança talvez seja
o lema “Não há longo prazo”. No trabalho, a
carreira tradicional, que avança passo a passo
pelos corredores de uma ou duas instituições
está fenecendo; e também a utilização de um
único conjunto de qualificações no decorrer de
uma vida de trabalho. (p. 21)
>52
Neste contexto, o autor sublinha que o princípio de que “não há longo prazo” limita a
formação de laços sociais, assim como a
criação de laços de confiança. Adverte, ainda, que também no âmbito social mais amplo a dimensão do tempo no novo
capitalismo afeta diretamente a vida das
pessoas. Afinal, este lema significa, conforme salientamos acima, não se comprometer
e não poder acreditar que o outro esteja
comprometido. Tendo como foco a questão
do trabalho, Sennett vai apontar as dificuldades com que o ser humano se defronta,
na contemporaneidade, para formar uma
imagem de si, levando-o a formular a seguinte indagação: “Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade
e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?” (p. 27).
A nosso ver, essa questão expressa uma inquietação que não se reduz ao âmbito do
trabalho. Daí a pertinência de tomarmos
sua indagação a partir de uma outra dimensão: a dimensão clínica, levando em conta
a necessidade de trabalhar a questão dentro do ponto de vista metapsicológico, para
conferir a esta dimensão um estatuto psicanalítico. E isto porque, segundo já ressaltamos, está em jogo, nesta discussão, uma
forma de se conceber o sujeito, forma que
tem no tempo uma referência fundamental.
Deste modo, a seguir propomos delinear
como, na atualidade, o sujeito estabelece
uma narrativa peculiar, não linear, situando-se de um modo particular com respeito à
temporalidade. Com essa perspectiva, um
dos aspectos a ser levado em consideração
refere-se à necessidade de marcar a relação
que se estabelece entre tempo e espaço.
Idéias tais como fronteira, limite, redução
de distâncias, aproximação das pessoas são,
antes de tudo, categorias espaciais. Ou seja,
as transformações que apontamos incidem
sobre o espaço de um modo singular. Se antes, conforme aponta Doctors (2003), o tempo, operando sobre a matéria, modificava e
reordenava as relações espaciais, na atualidade, “... a liberação crescente do tempo
das amarras do espaço foi desfazendo a segurança original que tínhamos com a dualidade tempo-espaço” (p. 7).
O tempo, o sujeito e a
metapsicologia
Na obra freudiana, a questão do tempo não
é explorada isoladamente. Apesar de sua
importância para a compreensão de diversos
conceitos psicanalíticos, Freud só traz à
tona esta problemática quando vinculada à
do sujeito, ou seja, quando o sujeito é colocado em questão através do tempo do a posteriori. Ainda assim, desde os primórdios da
dobraria em vários tempos e, concomitantemente, em vários lugares. Na verdade, desde 1893, na postulação de que os histéricos
sofrem de reminiscências, essa característica já se coloca: trata-se de uma lembrança
que se tornou determinante do fenômeno
histérico, persistindo com bastante clareza
durante um tempo consideravelmente longo; todavia, por estar recalcada, essa lembrança seria inconsciente. Verifica-se,
assim, como lembrança e esquecimento se
encontram implicados na memória. De acordo com Gondar (2000)
Dois anos depois, no “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1895[1950]), Freud
utiliza a idéia de a posteriori para postular
sua teoria do trauma. Ao mencionar o “caso
Emma”, propõe que o trauma se dá em dois
tempos, sendo que o segundo ressignifica o
primeiro. Há uma trama de representações
que se associam entre estes dois tempos,
desencadeando o sintoma. Vale ressaltar
que Freud trabalha, aqui, com a idéia de
uma memória inconsciente.
Já nestes primeiros textos podemos entrever a importância que a concepção de um
aparelho de memória tem para a trama conceitual freudiana, principalmente porque
permite extrair uma concepção da histeria,
que vai funcionar como paradigmática da
própria concepção acerca da constituição
subjetiva. De modo breve, lembramos que
esta se sustenta na idéia de posterioridade,
artigos
... o esquecimento desempenha um papel fundamental na própria constituição mnêmica. Se
o recalque é necessário à produção de traços,
a suspensão deste recalque, trazendo consigo
uma nova configuração da memória, exige um
remanejamento entre o lembrado e o esquecido. (p. 41)
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elaboração freudiana encontramos elementos que nos levam, inclusive, a poder depreender uma teoria do tempo, na
psicanálise (Gondar, 1995).
Façamos um breve percurso, na obra freudiana, visando salientar as passagens mais
relevantes acerca do tema. Realizaremos
este trabalho através da circunscrição das
implicações que o tempo possui com a memória e com o trauma.
Em 1895, Freud desenvolve a idéia de um
aparelho neuronal de memória, vindo a sistematizar a noção de memória inconsciente. Essa noção é remetida ao sistema de
neurônios impermeáveis Y e se forma pela
diferença entre as facilitações neste sistema. Trata-se, portanto, de uma memória relacionada aos traços, ou melhor, aos
trilhamentos realizados pelos fluxos de excitações; e que não corresponde à reprodução idêntica de um traço imutável, mas a um
processo de diferenciação entre trilhamentos possíveis. Esta modalidade de memória
se distingue daquela que pode ser evocada
(a memória pré-consciente). Com relação
à memória inconsciente, os ditos “traços
mnêmicos” se referem a representações “inconciliáveis” com uma determinada representação de si, que se tenta preservar,
visando conferir ao “eu” certa consistência.
A propósito da configuração dada ao aparato psíquico, na ‘“Carta 52’’, Freud (1896) trabalha com a hipótese de que o mecanismo
psíquico tenha se formado por um processo
de estratificação: o material presente em
forma de traços da memória estaria sujeito,
de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias – a uma retranscrição. Dessa maneira, a memória não
se faria presente de uma só vez, mas se des-
>53
artigos
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pressupondo uma historicização. O que a
idéia de tempo a posteriori traz de inédito
com respeito à dimensão histórica é, sem
dúvida, o rompimento que propicia a propósito da linearidade na história. Ao apresentar o aparelho psíquico como um aparelho
de retardo, operando basicamente no tempo do a posteriori, ganha relevo a idéia de
que “o ‘passado’ é lido como uma escritura
que só se deixa perceber em um determinado ‘agora’” (Seligmann-Silva, 2003, p. 398). 2
A idéia de retardo inaugura o aparelho de
memória a partir de uma forma particular
de conceber a temporalidade, isto é, articulando-a à temporalidade e à causalidade
psíquica; essa, por sua vez, atrelada ao funcionamento no tempo do a posteriori.
Conforme realçamos, esta não é a única referência, na obra freudiana, da noção de
memória – leia-se, em última instância, de
tempo; além desta, também podemos encontrar a idéia de memória como pano de
fundo para a formulação de conceitos centrais como o de recalque e de sexualidade
infantil. Indo mais longe, a própria idéia de
traço (Spur) entendida como traço de memória, apresentada por Freud sobretudo na
“Carta 52” (1896) e em A interpretação dos
sonhos (1900), vai se constituir como fundamental para pensarmos o mecanismo de
identificação e de constituição do Eu.
Alguns anos depois, a idéia de uma “lembrança” vir a ser construída a posteriori ganha consistência teórica, com a introdução
da noção de fantasia, quando Freud passa a
duvidar de “sua neurótica” que se refere à
lembrança de uma cena de sedução ocorrida de fato (Freud, 1897).
A noção de uma significação a posteriori vai
permitir conceber o inconsciente não regido
por um tempo linear e contínuo, franqueando, também, seu caráter imprevisível. Considerações que descartam, de saída, a idéia
de uma relação de causa e efeito com respeito aos processos inconscientes. Entretanto, com isso, não se trata de afirmar que
o que está em jogo é uma total descontinuidade ou mesmo que imprevisibilidade remete, necessariamente, a caos. É preciso ter
presente que o inconsciente possui uma lógica própria, regida pelas associações entre
as representações. Nesta medida, conforme
reitera Winograd (2004), o sentido do que
ocorre ao sujeito “... deriva (...) das articulações atuais entre as representações que o
sujeito faz, sempre prontas a novos rearranjos e novas significações” (p. 211).
Além disso, somente a posteriori se estabelece uma relação de causa e efeito. As representações se associam e são produzidas a
partir de um traço em comum. Deste modo
se faz história e se constitui a continuidade
no tempo, ainda que não linear.
Estabelecendo uma relação entre memória e
esquecimento, a narrativa, perpassada pelos
desejos inconscientes, descarta a idéia de
uma “restituição e representação total do
passado” (Seligmann-Silva, 2003, p. 70); a
história não está ligada a um acontecimento de fato. No rastro desta elaboração, a retomada da questão do trauma (1920), acaba
problematizando a dimensão narrativa que,
2> Interessante marcar que esta citação se refere, segundo Seligmann-Silva, ao caráter dado por Walter
Benjamin à historiografia. Para esse comentador, Freud é “uma referência central na visão benjaminiana
da historiografia como uma grafia da memória” (p. 399) .
O trauma, o tempo e a perda da
certeza de si
Para construir sua teoria acerca do trauma,
Ferenczi (1933) propõe a montagem de uma
cena mítica: a criança seduz um adulto no
registro da ternura (“linguagem da ternura”)
e o adulto faz uma leitura dessa sedução a
partir da “linguagem da paixão”. Ocorre,
então, uma confusão de línguas que
engendra a violência sexual. A criança, sem
poder dar sentido ao que aconteceu, procura
um outro adulto para ajudá-la a
compreender o fato. Porém, esse adulto a
desmente de forma categórica, restando à
criança identificar-se com o agressor que,
por sua vez, se sente completamente
culpado após a violência. Tal identificação
tem lugar somente porque a criança não
compreende o sentimento de culpa do
artigos
tenha o caráter de uma tentativa de ressignificação. Logo, distintamente do modo
como é concebido o tempo, na primeira tópica, com a segunda tópica, o trauma passa
a se relacionar com a problemática do tempo de um outro modo; trata-se, agora, de um
tempo que permanece sempre presente.
Assim, enquanto o trauma na primeira tópica
– e até nos textos ditos pré-psicanalíticos –
aponta para a possibilidade de ressignificação e para o tempo do “só depois”, após
1920, o trauma remete para um tempo diferente, em que a cena é fixa e o “só depois”
não pode ser agenciado. Apoiando-se na
leitura deste texto de Freud, Benjamin
(1994) vai designar este tempo do presente
como tempo do choque. Dado o relevo que
a questão do trauma ganha com relação ao
tempo, vamos nos servir da teoria do trauma de Ferenczi, para avançar na discussão.
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de alguma forma, conferia ao sujeito um lugar, posto que a história narrada – ainda que
subvertida – remetia, em última instância, à
busca de realização de um desejo proibido.
Em outras palavras, ainda que na perspectiva psicanalítica, a narrativa não siga – de
acordo com a distinção de Jameson sobre os
dois modos de “historicizar” – “o caminho do
objeto” que alude às “origens históricas das
próprias coisas” (Jameson, 1992, p. 9) – não
podemos esquecer que tomar “o caminho do
sujeito”, dando relevo “às categorias ou códigos interpretativos” (ibid.) significa conceber “a narrativa como ato socialmente
simbólico” (ibid.). É segundo esta lógica que
a dimensão narrativa, até este momento da
elaboração freudiana, operou.
O trabalho empreendido em “Além do princípio do prazer” (1920), com a noção de compulsão à repetição da neurose traumática
promove uma inflexão no arcabouço conceitual freudiano ao colocar em xeque a máxima de que todo o sonho é uma realização de
desejo. Neste artigo vai ser trabalhada a
questão da compulsão à repetição da neurose traumática, remetida a um além do princípio de prazer, levando Freud a formular o
conceito de pulsão de morte. Este conceito,
conforme sabemos, é associado ao que não
ganha sentido e insiste. Trata-se da repetição da cena do trauma sem (re)elaboração
alguma, ou seja, ocorreria a interrupção do
processo de associação. Portanto, o trauma
se mantém no presente como um instante
único sem vinculação com algo capaz de
significá-lo. Se não há resignificação, não é
o tempo do a posteriori que “está em curso”.
Ou ainda, na impossibilidade de significar
a posteriori, o que resta é a repetição de
uma cena fixa, mesmo que essa repetição
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adulto agressor. Ferenczi vai considerar que
o desmentido é o fator traumático, pois é o
que impede a introjeção. Conceito que
expressa a forma de funcionamento do
aparelho psíquico que compreende a
introdução dos objetos externos na esfera
do Eu com um “alargamento” – assim
podemos entender – do próprio Eu
(Ferenczi, 1912).
Cabe ressaltar, aí, a importância da relação
do sujeito com o outro, representante do
mundo externo, na teoria do trauma. É através dele que o sujeito pode atribuir sentido
ao mundo e a si mesmo. Com isso, destacase que, para Ferenczi, o acesso à linguagem
se dá pela apropriação de um sentido fornecido pelo objeto. Tomando suas palavras:
“O mecanismo dinâmico de todo amor objetal e de toda transferência para um objeto
é uma extensão do ego, uma introjeção”
(ibid, p. 182). Assim, a introjeção é um processo de apropriação de sentido – através
dela o Eu se forma –, e compreende a transferência e a identificação. Nestes termos,
Pinheiro (1995) aponta que a partir da introjeção o sujeito pode fantasiar, associar e
produzir imaginariamente. Ferenczi afirma
textualmente que “... o neurótico procura
incluir em sua esfera de interesses uma parte tão grande quanto possível do mundo externo , para fazê-lo objeto de fantasias
conscientes ou inconscientes” (Ferenczi,
1909, p.84, grifo nosso). Sendo assim, a introjeção caracteriza o aparelho psíquico
como um aparelho de interpretação.
Retomando a teoria do trauma em Ferenczi,
verifica-se que como conseqüência do desmentido, a criança perde a certeza de si (Pinheiro; Jordão & Martins, 1998). Essa perda
da certeza de si estaria relacionada à perda
da crença nos próprios sentidos, implicando,
por assim dizer, uma ruptura na sensação
de existir. Desta maneira, na tentativa de
significar o acontecimento, o traumatizado
se identificaria mimeticamente com o agressor. Assim como o neurótico, apresentado por
Freud em “Além do princípio do prazer”, podemos dizer que o traumatizado de Ferenczi
é um sujeito que se encontra em incessante trabalho. Sua forma de organização se daria na tentativa de restabelecer a certeza de
si. O próprio autor (Ferenczi, 1909) nos lembra que Freud concebeu os sintomas patológicos como tentativas do sujeito curar-se a
si mesmo.
Com relação ao trauma, o desmentido produz a impossibilidade de introjeção, conseqüentemente a cena vivida deixa de ganhar
sentido. Sendo assim, o sujeito não se encontra no registro do a posteriori, mas no de
uma cena fixa e aqui vemos uma aproximação com o trauma descrito por Freud em
1920. Podemos pensar que se trata de uma
imagem parada, sem enredo, sem continuidade, sem historicização. O que nos permite considerar que o trauma em Ferenczi
(1873-1933) pertenceria ao tempo do presente, já que não se encadeia numa trama.
Considerações Finais
Este breve percurso nos permitiu indicar de
que forma a questão da temporalidade tem
um estatuto fundamental, tanto no processo de subjetivação quanto nos obstáculos
para que tal processo tenha lugar. Para finalizar, tentaremos articular estas considerações com os impasses com que nos
defrontamos na clínica. Não é raro nos perguntarmos se o discurso pouco elaborado
não inviabiliza o atendimento psicanalítico
artigos
Para vários autores, o que marca o mundo
de hoje é a velocidade dos acontecimentos,
que são fragmentados. Chega-se a falar que,
atualmente, vivemos no tempo da antecipação. No entanto, esta antecipação não seria da ordem da fantasia, do projeto. O
passado tornou-se virtual e o futuro é “vivido” no presente, antecipadamente. Ou seja,
não temos certeza do passado e o futuro determina o presente, descaracterizando-se
como futuro a ser imaginado (Doctors et al.,
2003). Sendo assim, tudo que se têm é o presente. Esse presente instantâneo, que não
pressupõe história. Uma imagem sem conexão com uma cena anterior e que é antecipada a fim de proteger o sujeito do
engano e da dúvida. Neste contexto, o número de deprimidos cresce na medida em
que, diante da exigência de velocidade e dinamismo, não é raro o sujeito considerar-se
ineficiente.
Além disso, de acordo com a sociedade de
consumo, o tempo a ser vivido é o do presente, o que provoca enorme angústia no
sujeito, que não se imagina construindo um
projeto para o futuro. O sujeito se imagina
no futuro, mas este é igual ao presente. Não
há projeto e tempo de espera. Não há uma
narrativa com passado, presente e futuro,
mas blocos de imagens sem continuidade.
Acreditamos que esse é o tempo do trauma,
provocado pela falta de sentido que põe em
xeque a certeza de si.
Desta forma, o modo como o sujeito de hoje
se relaciona com o tempo, que muito nos
lembra o tempo do trauma tanto em Freud
no texto de 1920 quanto em Ferenczi, pode
lançar uma luz acerca de seu mal-estar. Este
mal-estar parece remetido à ameaça à certeza de si na medida em que o sujeito se
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ou se o próprio dispositivo analítico não poderia servir como facilitador do processo de
subjetivação, tendo em vista a falta de uma
narrativa sobre a própria história que muitos
pacientes apresentam. Freqüentemente
presenciamos uma fala puramente descritiva, de cenas que não se interligam, diferentemente do discurso histérico, rico em
fantasias e associações.
Pinheiro (2002) considera que encontramos
hoje uma modalidade de discurso imagético,
em que uma cena é narrada apenas como
uma descrição de percepções visuais e corporais. Assim, não podemos prever a cena
seguinte, pois ela não aparece como conseqüência de uma cena anterior, caracterizando-se, por conta disso, pela imobilidade. De
acordo com a autora, esse discurso pode indicar um modo de produção fantasmática
que estabelece uma relação peculiar com a
temporalidade, pois nele não há uma seqüência de imagens com intervalos entre
elas. Temos uma sucessão de imagens instantâneas que colocam em risco a possibilidade de encadeamento de sentido.
Deste modo, podemos pensar numa temporalidade que não é linear e não pressupõe
continuidade. Ela comportaria fragmentos
que não estão necessariamente interligados. Como imagens pontuais que não são da
ordem do imaginário, mas do semiótico (cf.
Kristeva, 2002). Não dizem respeito à dimensão imaginária, porque esta exige, como
condição de possibilidade, um outro modo
de expressão, o simbólico, que indicaria um
momento de advento histórico do sujeito
(Lambotte, 1996).
Resta-nos indagar se a temporalidade no
mundo contemporâneo não seria dessa ordem da fragmentação, da descontinuidade.
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queixa da perda de controle sobre sua vida,
quando esta se torna um somatório de episódios não interligados.
Todos devem ser dinâmicos, ágeis, capazes
de mudar a própria vida a todo momento. A
temporalidade não obedece à lógica da continuidade, mas acreditamos que ela produza
um outro tipo de narrativa. Configuração que
muito se aproxima daquela abordada por
Lissovsky (2003), que discute a questão do
tempo na fotografia, apontando para o refluir do tempo sempre presente em toda
imagem fixa. Ou seja, a imagem fixa condensaria vários tempos num só tempo, o
instante. Esse instante teria uma positividade na medida em que é concebido como
impulsionado pelo tempo. Sendo assim, a fixidez se aproximaria da idéia de condensação. No entanto, no caso das imagens
pontuais e descritivas que escutamos no discurso daqueles que padecem, a condensação estaria expressa em imagens que não
formam um texto a priori. É preciso o testemunho de um outro para que se faça uma
“costura” destas imagens a fim de que elas
se transformem em texto. Acreditamos que,
mais do que interpretar, este seja nosso trabalho como analistas nos últimos tempos.
Referências
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A relação do sujeito com o tempo na atualidade