NOVOS SINTOMAS OU NOVOS MODOS DE ABORDAGEM DA CLÍNICA PSICANALÍTICA? Maria Luiza Furtado Kahl A alternativa sob forma de questão presente no título deste trabalho constitui uma primeira fornada de resultados de pesquisa sobre a obra de Sándor Ferenczi, realizada no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria, sob minha coordenação. A partir de considerável aumento de literatura especializada voltada para a clínica psicanalítica dos chamados “novos sintomas” ou “modos novos de subjetivação”, ao lado da constatação clínica de que as categorias psicopatológicas herdadas da psiquiatria do século retrasado apresentam-se esgotadas, buscou-se subsídios teórico-clínicos na obra de S. Ferenczi cuja obra, por sua vez, vem sendo contemplada com novos investimentos. Compreender este revival do enfant terrible da psicanálise, bem como buscar novas ferramentas para lidar com as patologias de hoje foram nossos motes. Trauma e mecanismos de cisão, retomados de Ferenczi, apresentaram-se, então, como eixos cruciais para um aprimoramento da compreensão metapsicológica da matéria e da dinâmica dos quadros clínicos atuais. Em artigo anterior (KAHL, 2006), abordei os chamados “casos difíceis”, de Ferenczi, e sua releitura da concepção freudiana de trauma. Parti do pressuposto de que a exigência maior da clínica psicanalítica hoje não é tanto a de propor novos modelos teóricos para a compreensão de novos sintomas, mas a de levar às últimas conseqüências a concepção de pulsão de morte, formulada por Freud nas duas últimas décadas de sua trajetória (1920-30), e sua incidência maciça nas patologias contemporâneas. Cabe ressaltar que, após propô-la, Freud não retornou com ela aos quadros clínicos. Uma das grandes contribuições de Ferenczi foi, então, a de facilitar esse percurso. Afirmo lá também que a consideração da pulsão de morte na clínica implica na inauguração de um outro patamar da análise que se acrescentaria aos procedimentos já considerados standard, centrados no pressuposto de que o inconsciente seria todo dizível e verbalizável. No presente artigo, pretendo abordar o mecanismo da cisão do Eu como ferramenta privilegiada não só para pensar os casos difíceis de hoje, como também para reconsiderar a clínica das psiconeuroses. 1. Breve caracterização dos casos difíceis de hoje A maior parte da literatura clínica que hoje se dedica ao estudo dos chamados “novos sintomas” ou “modos novos de subjetivação” os tem caracterizado seja como manifestações predominantemente corporais, tais como dores inespecíficas sem motivo aparente, angústias e transtornos da alimentação (anorexias e bulimias), seja como patologias da ação, no sentido de implicarem ações que oscilam entre uma intensidade sem controle (compulsões e adições de diversas ordens) e sua anulação (apatias, esgotamentos e depressões). Dois aspectos chamam a atenção: o fato de se tratar de quadros psicopatológicos atinentes, por um lado, a obsessões/compulsões/manias e, por outro, a depressões, como uma espécie de contrapartida daqueles. Que aproximações podem ser feitas entre tais manifestações e os “casos difíceis”, de Ferenczi? De um ponto de vista meramente fenomenológico, trata-se de quadros clínicos pouco explorados na clínica freudiana centrada na histeria e, conseqüentemente, na inteligibilidade desta como fruto de processos de recalcamento da libido. Por outro lado, sabe-se que a clínica dos casos difíceis ferenczianos é uma clínica do trauma, ou seja, uma clínica que leva em conta o “ambiente” em que se desenvolve a criança e que busca evitar qualquer hipertrofia do pulsional e do fantasmático que implique na desconsideração do papel do outro parental na etiologia do trauma. Esses dois aspectos nos levam ao exame das considerações de Freud sobre as obsessões/compulsões/manias e sobre as depressões, com vistas a um cotejo com a atitude prática e conceitual de Ferenczi diante de tais casos e o que possa isso implicar para uma reconsideração de novos caminhos e limites do analisável. 2. Algumas considerações de Freud sobre compulsões e depressões Dissemos acima que a clínica freudiana centrou-se nos quadros de histeria cuja inteligibilidade foi alcançada a partir dos processos de recalcamento da libido. Isso não significa que Freud não tenha se detido em outros quadros clínicos, especialmente nos quadros obsessivos. Estes, porém, foram entendidos com base no modelo das histerias. A idéia de fixação em determinada fase do desenvolvimento da libido – a fase anal, com seus componentes sádicos e agressivos – é colocada como modo próprio de encenação regressiva do mesmo tipo de conflito encontrado nas histerias: o conflito edípico entre intensos impulsos de desejo e suas interdições. Ao lado de traços de caráter próprios do obsessivo, tais como meticulosidade, avareza, economia, considerava a ambivalência de sentimentos para com os objetos de amor (pai e mãe), igualmente amados e odiados, o cerne da dúvida obsessiva. Pode-se dizer que o modelo freudiano de entendimento da matéria e da dinâmica dos casos clínicos que coloca como referência e núcleo essencial destes o Complexo de Édipo, centrado em suas fantasias fundamentais (cena primária, sedução e castração) não só isenta o mundo adulto de sua responsabilidade na etiopatogenia das neuroses, como acaba por reduzir o entendimento destas ao modelo decorrente da escuta das histerias. Cabe ressaltar a amplitude e, ao mesmo tempo, o enfraquecimento da concepção de trauma que acaba por se tornar qualidade própria de toda e qualquer aquisição da sexualidade. A fantasia de sedução, típica do imaginário histérico, é, então, estendida aos demais quadros clínicos como o próprio da realidade psíquica. O que se quer destacar é que, com esta postura clínica, deixa-se de fora um extenso campo de manifestações psicopatológicas não atinentes aos processos edípicos e ao desenvolvimento libidinal propriamente dito. Queremos incluir neste rol especificamente as neuroses obsessivas, mas também os quadros ditos fronteiriços ou borderline, esquizoidias e demais tipos de neuroses narcísicas. Para os fins do presente trabalho, porém, pretendo me ater ao exame metapsicológico das neuroses obsessivas, sem perder de vista a possibilidade de ampliar o estudo para outros quadros clínicos. A escolha das neuroses obsessivas se justifica pelos seguintes aspectos: o primeiro diz respeito ao fato de que os chamados “novos sintomas” são caracterizados com freqüencia pela presença de obsessões, compulsões e manias; o segundo decorre de observações clínicas que me mostram zonas de indistinção das neuroses obssessivas com relação às psicoses e aos chamados casos-limite. Cabe ainda destacar que já em Freud estão presentes esboços de outros modelos de entendimento de quadros clínicos distintos do modelo das histerias, tais como o da melancolia e o das compulsões à repetição. Ambos requerem considerações metapsicológicas centradas na concepção de pulsão de morte. Falar sobre compulsão nos remete, então, à virada metapsicológica da teoria pulsional, inaugurada em 1920 por Além do princípio do prazer. Sem entrar nos meandros deste complexo texto, cabe destacar que Freud circunscreve novas manifestações sintomáticas, tais como a compulsão à repetição nas neuroses de destino, o sentimento inconsciente de culpa, a reação terapêutica negativa, o masoquismo primário. Todas essas manifestações encontram de algum modo guarida nos quadros de neurose obsessiva. Com relação ao modelo da melancolia, cabe-nos destacar apenas dois pontos: a indicação de Freud, em Luto e Melancolia, de uma distinção entre neuroses narcísicas e psicoses, dando a entender a existência de um outro patamar entre neuroses e psicoses em que estariam situadas as melancolias/manias e que, em trabalho de maior fôlego, poderá vir a nos auxiliar na busca de outros modos de compreensão dos fenômenos clínicos da contemporaneidade; um segundo ponto está numa possível aproximação entre a identificação melancólica com o objeto perdido e os processos de clivagem do Eu que veremos mais adiante. Esta última indicação pode vir a ser útil numa tentativa de compreensão das neuroses obsessivas à luz do modelo da melancolia. Por fim, a seguinte citação de Freud (1977) parece-nos testemunhar o que se vislumbra como hipótese deste trabalho: “...quando ela [pulsão de morte] emerge desvinculada de Eros é impossível desconhecer que a satisfação que ela propicia se enlaça com um gozo extraordinariamente elevado, representando para o ego o cumprimento de seus antigos desejos de onipotência”. Uma nova inteligibilidade dos aspectos cruéis de um supereu sádico pode ser vislumbrada. 3. Cotejo com a clínica de Ferenczi Devido às limitações do presente trabalho, vamos nos ater tão somente ao exame do modelo ferencziano de entendimento das neuroses obsessivas[1]. Nosso objetivo aqui é o de mostrar que Ferenczi já havia suspeitado da exigência de novos modelos de compreensão da matéria e da dinâmica dos casos clínicos. Mais do que fixados à fase anal de desenvolvimento da libido, distantes também de conflitos relativos à realização de desejos incestuosos, Ferenczi (1970) via os obsessivos presos à problemática de uma onipotência incondicional: dão a impressão de terem tudo o que querem e não terem mais nada a desejar. Como se pode ver, trata-se aí de questão menos relativa às vicissitudes do prazer libidinal e suas interdições e mais relacionada a problemas com o gozo. Nada desejar é almejar um estado de gozo absoluto, além do prazer. O ponto mais importante, porém, da proposta de reconsideração do entendimento das neuroses obsessivas está no destaque dado por Ferenczi (1970) à presença do ambiente em sua causação: os pensamentos onipotentes do futuro obsessivo são prontamente “adivinhados” pelos adultos que se apressam em realizálos – o que faz com que se exacerbe a crença no poder mágico das palavras e pensamentos, presentes em todas as crianças, e os leve a jamais quererem renunciar aos desejos inconscientes irracionais. Pode-se ver aí o prenúncio da importância dos descompassos entre o ambiente adulto e o infantil, levando-o mais tarde à proposta de uma confusão de línguas entre ambos e à ênfase nos aspectos traumáticos decorrentes da cumplicidade do adulto para com a satisfação absoluta. Já não é mais o adulto que proíbe e obriga a renunciar às satisfações pulsionais de acordo com as leis edípicas o que se coloca como fonte do trauma, mas o que responde à ternura da criança com a linguagem da paixão, às margens da lei. Já não se trata mais de atribuir à neurose obsessiva conflitos com o supereu herdeiro do Complexo de Édipo, este sim relacionado à nomeação e à interdição do desejo, mas de vê-la às voltas com um supereu arcaico cuja imposição é de gozo absoluto, expressão da pulsão de morte. 4. O mecanismo da cisão do Eu A partir da ênfase no trauma como efeito do outro parental com suas atitudes invasoras, de abuso ou maltrato, Ferenczi (1992) privilegia o mecanismo da cisão do Eu como seu principal efeito, ao invés do recalcamento. Nos casos de neurose obsessiva, fica clara a clivagem da inteligência, a hipertrofia do pensamento e, especialmente, a introjeção do agressor. De acordo com Pinheiro (1995) que se refere a Torok e Abraham, não se trata tanto de introjeção do agressor, mas de incorporação deste em função da impossibilidade de mediação da introjeção. Em outras palavras, o evento traumático não consegue ser metabolizado pelo Eu e no lugar da inscrição de traços do trauma “realiza-se” a presença do agressor no Eu. O adulto agressor permanece idealizado e quem se sente culpada é a criança. Nesta clivagem, uma parte do Eu é destruída, tal como nos processos de autotomia que Ferenczi vai buscar na etologia animal. Trata-se da reação de certos animais que perdem um pedaço do próprio corpo para se protegerem de um perigo. Podemos nos referir aqui, no caso das neuroses obsessivas, à perda do corpo, a um corpo paralisado, sem sensibilidade, em benefício de uma hipertrofia da mente. Um dos motivos que impedem a introjeção/metabolização do trauma é o desmentido por parte de um outro adulto. Conforme Pinheiro (1995), o que é roubado da criança com o desmentido é a possibilidade de ressignificar o trauma, adquirindo este um sentido unívoco, “real”. Outras reações, tais como a perda da confiança no outro, a dúvida quanto a ser ela própria quem não merece confiança, sentir-se culpada e inocente ao mesmo tempo, questionar-se sobre as noções de justiça, verdade e mentira, privar-se do prazer, tornar-se ela própria quem cuida dos adultos que a cercam numa espécie de maturidade forçada são traços de fácil reconhecimento nas neuroses obsessivas. Com relação a este último traço, é digna de nota a metáfora utilizada por Ferenczi (1992) para se referir à criança que se torna “sábia” para se defender do sofrimento decorrente do trauma. A metáfora é a de um fruto que se torna precocemente maduro e saboroso devido ao fato de ter sido ferido por um pássaro. Isso significa que uma parte clivada do Eu se torna adulta, protetora e previdente para não se deixar mais surpreender. Em contrapartida, resta uma parte propriamente clivada desta outra, a que corresponde à criança frágil e assustada que permanece na ternura. Como não reconhecer aí muitos de nossos analisandos vistos como neuróticos obsessivos? 5. À guisa de conclusão Iniciamos nosso trabalho com a proposta de repensar a clínica psicanalítica diante dos chamados “novos sintomas” aproximando-os da clínica proposta por Sándor Ferenczi para os casos por ele considerados difíceis. Neste percurso, detivemo-nos nas proposições do autor sobre a neurose obsessiva, pois encontramos aí relevantes aportes para a compreensão de quadros clínicos resistentes ao método psicanalítico standard de entendimento e intervenção na matéria e na dinâmica de tais casos. Nossa postura, desde o início, foi a de questionar se seria mesmo o caso de identificar os sintomas do contemporâneo como novos ou se não estaríamos diante da necessidade de repensar os referenciais psicanalíticos utilizados por Freud para a compreensão das neuroses histéricas e estendidos para a neurose obsessiva. Ao fim e ao cabo desta etapa de nossa empreitada, deparamo-nos com uma inusitada semelhança entre aspectos da neurose obsessiva decorrentes da visada ferencziana e as chamadas “novas sintomatologias”. A essa altura do percurso, consideramos conveniente refazer nossa questão inicial. Os casos difíceis de Ferenczi mostravam-se difíceis de analisar devido à impossibilidade de acesso às lembranças do trauma ou o modelo de análise centrado nos processos de recalcamento da libido e que pressupõe como traumático o advento mesmo da sexualidade não mais se adequaria aos quadros da contemporaneidade? Examinando a clínica ferencziana, nos deparamos com manifestações da pulsão de morte que não acreditamos corresponderem a categorias nosológicas, mas a momentos específicos da análise, podendo estar presentes, por sua vez, em diferentes quadros. Chegamos enfim à conclusão de que a clínica ferencziana preocupou-se não tanto com o enquadramento nosológico dos casos, mas com uma tímida iniciativa de reconstruir a clínica privilegiando diferentes modos de manifestação do trauma. O modo obsessivo mostrou-se locus privilegiado de ensaio dessas novas abordagens da clínica. Não queremos deixar a impressão de que pretendemos fazer do modelo ferencziano de compreensão das neuroses obsessivas um modelo único de compreensão de todas as patologias. Mas queremos, sim, afirmar que nosso próximo ponto de partida será propor este modelo como um novo paradigma para a clínica psicanalítica não mais preocupada com a identificação de estruturas clínicas específicas, mas com diferentes patamares ou gradações de expressão, mistura ou dissociação, do par pulsões de vida-pulsão de morte. Referências bibliográficas Costa, Jurandir Freire 1988: “Ferenczi e a clínica”. Cadernos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, ano 10, n. 6, pp. 42-52. Ehrenberg, Alain. 2000: La fatigue d´être soi – depresión et societé. Paris, Odile Jacob. Ferenczi, Sándor 1991: Obras completas. Psicanálise I. São Paulo, Martins Fontes. ____ 1992: Obras completas. Psicanálise II. São Paulo, Martins Fontes. ____ 1993: Obras completas. Psicanálise II. São Paulo, Martins Fontes. ____ 1992a: Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo, Martins Fontes. Freud, Sigmund 1977. Edição Standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago. Pinheiro, Teresa 1995: Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. : Ed. UFRJ. [1] Esta parte do texto deve muito de seu desenvolvimento ao esclarecedor embora sucinto artigo de Jurandir Freire Costa, Ferenczi e a clínica (1988)