Partituras de uma polifonia sobre a paz CAPÍTULO 5 Partituras de uma polifonia sobre a paz As conversas passam por muitos caminhos e fazem-se tanto através das palavras que são ditas, como com aquelas que não são sequer pronunciadas. Há um ano e meio que temos vindo, eu e mais dezassete mulheres, a conversar sobre nós mesmas, sobre Timor Leste e sobre a paz. É interessante porque, além desta conversa ser longa, ela tem sido trazida regularmente para a linguagem escrita. Temos registado os nossos diálogos, em diversas versões e, de cada vez que o fazemos, acrescentamos mais uma reflexão, eliminamos o que nos parece ser uma incoerência ou, então, alteramos, porque parece que não está ainda bem explicado e, portanto, prolongamos o argumento. De facto, após a transcrição das primeiras entrevistas continuou-se com a conversa sobre o que tinha ficado escrito e o que ainda era preciso escrever. Algumas de nós preferimos eliminar detalhes, enquanto outras quisemos acrescentar informação, clarificar o contexto dos acontecimentos e enriquecer a história com o nome de mais protagonistas. Estas conversas acerca das nossas histórias são as nossas interpretações do que aconteceu e acontece agora que Timor Leste é um país independente e precisa de sarar as feridas da guerra e quer construir uma sociedade pacífica e próspera. Reflectimos em conjunto sobre a paz e como as mulheres re-significam a paz na sua vida e na vida da sua comunidade, tendo, na sua história, experiências muito traumáticas. Escolhemos as palavras com as quais, em português, nos podíamos explicar melhor e também criámos outras que não existiam em português, para dizer certas coisas. Esta conversa entre algumas de nós acontecem à distância de quase 16.000 km e, por isso, os nossos diálogos têm sido entrecortados pelo ritmo imposto pelo telefone ou pelo correio electrónico. Outras de nós vivemos mais perto, podemos ver-nos e conversar pessoalmente, mas nem sempre mantivemos o mesmo interesse 2004 179 Capítulo 5 nesta obra colectiva e neste diálogo. Escrever estas entrevistas e estas histórias tem sido, por um lado, fixar as lembranças mas, por outro, é só lembrar e deixar de lembrar algumas coisas. De certa forma re-escrevemos o passado, o presente e o futuro nestas longas conversas de palavras que se dizem, outras que se balbuciam e outras que não chegam sequer a poder pronunciar-se. Transformar estes documentos orais em documentos escritos e em fontes escritas é um trabalho que comporta muitos dilemas e riscos. Por um lado, sabemos que estamos no coração de um processo de diálogo que implica uma tradução, porque não somos todas dos mesmos lugares, nem da mesma geração nem pensamos da mesma maneira. Como estabelecer os termos da nossa conversa ou como evitar que algumas interfiram demasiado na conversa, para que todas possamos falar, não é fácil. As nossas reflexões determinaram sobre o quê e como vamos falar de nós, da paz e de Timor Leste. Sobrepuseram-se nessas reflexões, sentimentos, a necessidade de denunciar memórias e interesse em conhecer como foi e como é com as outras mulheres. Cada conversa gravada, cada página escrita são factos que colonizámos, com os nossos conhecimentos individuais e com a selecção que fizemos deles, enquanto membras de uma determinada comunidade. Contaminámos os textos com as nossas emoções e também com os nossos a priori sobre os assuntos de que falámos. Inevitavelmente, muitas coisas estão por ser ditas; muitas foram ditas, mas depois, tornaram-se num longo silêncio, porque a lembrança ainda fazia doer demasiado. Falámos de nós, e também de outras mulheres, e continuamos a escrever, em conjunto, outras dezanove histórias, que são parte da nossa maneira de interpretar o que nos imaginamos ser: uma comunidade de mulheres à procura de fazer as pazes. Seleccionar o que se escreve num trabalho académico é sempre uma espécie de mutilação, que se segue a todas as outras que levamos a cabo, vezes sem conta, quando escolhemos dizer algumas coisas em detrimento de outras. Sabemos que observar é participar na/o observada/o com a nossa observação; não há distanciamentos puros e absolutos. Escrever o que observamos é erradicar, de alguma maneira, a complexidade e a contemporaneidade de um conjunto de coisas que só têm sentido quando estão em movimento. Escrever sem tornar as conversas 180 2004 Partituras de uma polifonia sobre a paz e os diálogos em mais uma objectivação do olhar, é aceitar um desafio com muitos riscos, mas também com muitas potencialidades. A mim não interessa, como já ficou dito, resgatar a autenticidade, mas sim entrar nesta conversa, fazer parte dela, correndo os riscos de não a transformar num objecto sistemático e escolástico, que proporciona à razão a devida separação das partes, a análise intensa e esgotada de cada uma das células do pensamento, de forma a produzir um conhecimento aplicável e replicável em muitos contextos. O padrão e a normatividade universalizante, assim como a total singularidade, não fazem parte dos meus horizontes epistemológicos, neste capítulo. O (possível) labirinto desta minha parte na nossa conversa pretende levar-me a contribuir para a ampliação da diversidade dos conhecimentos e das experiências, disponíveis e acessíveis, sobre as mulheres e a paz, a partir da subalternidade epistemológica do contexto sócio-político que é Timor Leste. 2004 181