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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
VANESSA CRISTINA GAVIÃO
AS COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO
BRASILEIRO COMO AÇÃO AFIRMATIVA: UMA
CONSTRUÇÃO A PARTIR DA HERMENÊUTICA
POLÍTICA DE RONALD DWORKIN
POUSO ALEGRE - MG
2014
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VANESSA CRISTINA GAVIÃO
AS COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO
BRASILEIRO COMO AÇÃO AFIRMATIVA: UMA
CONSTRUÇÃO A PARTIR DA HERMENÊUTICA
POLÍTICA DE RONALD DWORKIN
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do Título de Mestre em
Direito ao Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Orientador: Prof. Dr. Edson Vieira da Silva Filho
FDSM - MG
2014
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VANESSA CRISTINA GAVIÃO
AS COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO COMO AÇÃO
AFIRMATIVA: UMA CONSTRUÇÃO A PARTIR DA HERMENÊUTICA POLÍTICA
DE RONALD DWORKIN
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
Data da aprovação ____ / ____ / ____
Banca Examinadora
________________________________
Prof. Dr.(a) Edson Vieira da Silva Filho
Orientador
FDSM
Banca Examinadora
________________________________
Prof. Dr. Rafael Lazzarotto Simioni
FDSM
Banca Examinadora
________________________________
Profa. Dra. Volneida Costa
PUC/MG
POUSO ALEGRE – MG
2014
3
Aos meus pais, Tânia e Carlos, por serem a maior
representação do amor de Deus em minha vida, o meu
porto mais seguro e por terem permitido que eu chegasse
até aqui.
A minha irmã Kelly, por ser o meu grande amor e por
representar o exemplo de profissionalismo, dedicação e
ética que carrego comigo.
Ao meu marido Lucas por ter, com o seu amor
incondicional, sido o meu companheiro, apoiado as
minhas batalhas e compreendido a minha ausência,
quando necessário.
4
AGRADECIMENTOS
Ao orientador Professor Doutor Edson Vieira da Silva Filho pelos ensinamentos,
dedicação e paciência. Foi, antes de tudo, a cada encontro movido por ricos
diálogos, um grande incentivador e companheiro, sempre atento e compreensivo.
A todo o corpo docente do mestrado da FDSM e em especial aos Professores Dr.
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Dr. Dierle Nunes, Dr. Eduardo Henrique
Lopes Figueiredo, Dr. Elias Kallas Filho, Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, Dr.
Rafael Lazzarotto Simioni, Dr. Walter Guandalini Jr. e Dr. Renato Maia, cujas lições
contribuíram não apenas para o presente trabalho, mas para toda a minha formação
acadêmica.
À Deus que além de me conceder a vida, me proporcionou saúde, força, coragem e
fé durante toda a minha caminhada.
A toda a minha amada família por ter compreendido os momentos em que não pude
estar presente; por comemorar comigo as vitórias e me apoiar nas dificuldades, por
acreditar no meu sucesso e por estar ao meu lado me incentivando nos momentos
mais difíceis.
Aos meus queridos amigos que sempre estiveram torcendo por mim, em especial à
minha sócia Mayara, que suportou a minha ausência e contornou todos os
obstáculos, às minhas amigas Patrícia Prado, Eliziane Pereira e Daniela Vieira que
por todo o tempo me incentivaram.
Aos colegas e à direção do DMAE por apoiar a minha caminhada e compreender as
minhas ausências.
Aos estimados colegas e amigos do mestrado, pelo apoio, companheirismo e
amizade.
5
Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha
macieira. O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos.
Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não
aprendemos a sensível arte de viver como irmãos. (Martin Luther King)
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RESUMO
GAVIÃO, Vanessa Cristina. As cotas no ensino superior público brasileiro como
ação afirmativa: Uma construção a partir da hermenêutica politica de Ronald
Dworkin. 2014. 203f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do
Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2014.
A presente dissertação analisa a política de cotas no ensino superior público
brasileiro, conferindo ênfase às cotas criadas para acesso de afrodescendentes,
com base, principalmente, no julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) nº. 186-DF, a partir da hermenêutica política de
Ronald Dworkin. Para tanto, parte-se de uma averiguação de um horizonte autêntico
que culmina na realidade de constante discriminação econômica e racial que ainda
vivenciamos. A apreciação dos valores da liberdade e igualdade e a influência
destes na formação do Estado demonstrará que, embora sob o manto de um Estado
Democrático de Direito, o Brasil ainda é considerado um país de modernidade tardia,
no qual muitas das promessas do Estado Social ainda não foram efetivadas. As
ações afirmativas seriam, então, uma tentativa de resgate de tais promessas que,
em que pese seu caráter transitório, caracterizam-se como mecanismo de
equalização de oportunidades para efetivação de direitos fundamentais (a igualdade,
enquanto direito à diversidade) e direitos sociais (no caso, a educação). Analisa as
cotas a partir de preceitos advindos da Constituição Federal de 1988 em seu caráter
promotor. Para encontrar a legitimidade e validade dos programas de cotas,
considera-se a distinção estabelecida por Ronald Dworkin entre políticas públicas e
princípios morais, a partir de uma compreensão que demande a prevalência dos
princípios morais, no interior da chamada comunidade de princípios. Sublinhando o
direito como integridade de Dworkin e a precisão de se considerar a adequação e
coerência aliadas a um horizonte autêntico, o presente trabalho perpassa pela
compreensão do caminhar até este marco teórico, analisando importantes teóricos
que contribuíram. Por fim, o presente trabalho analisa o julgamento da ADPF nº.
186-DF pelo Supremo Tribunal Federal (STF), proposta pelo Partido Democratas e
que objetivou a declaração de inconstitucionalidade de cotas para afrodescendentes
na Universidade de Brasília - UnB. Abordando os votos dos Ministros do STF, o
estudo verifica a argumentação principal por eles adotada, buscando a coerência e
adequação desta como forma de legitimar a reserva de vagas nas Universidades,
averiguando ainda a possível aplicação deste precedente às discussões oriundas da
Lei nº. 12.711/2012 que determina a implementação de cotas sociais e raciais nas
Universidades Públicas Federais. Conclui-se pela legitimidade das cotas a partir de
um horizonte autêntico, com a necessária visualização destas a partir de
argumentos de princípios, atendendo, via de consequência, um projeto comunitário
comum.
Palavras-chave: Ação afirmativa. Discriminação. Educação. Igualdade. Integridade.
7
ABSTRACT
GAVIÃO, Vanessa Cristina. The quotes in the brasilian graduation as affirmatives
actions:
A
building
from
the
political
hermeneutics
of
Ronald
Dworkin. 2014. 203f. Dissertation (Master of Law) – Faculdade de Direito do Sul de
Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2014.
The present dissertation analyzes the politics of quotes in the Brasilian public
graduation, with emphasis to the quotes established for afrodescendants access,
based primarily on the judgment of the Accusation of Breach of Fundamental Precept
(ADPF) nº. DF-186, from the politic hermeneutic of Ronald Dworkin. To do so, one
starts from an investigation of a real horizon that culminates in the reality of constant
economic and racial discrimination that we still experienced. The appreciation of the
values of freedom and equality and their influence on the formation of the State will
show that, although under the cover of a Democratic State, Brasil is still considered a
country of late modernity, in which many of the promises of the welfare state have
not been effect yet. The affirmatives actions would then be a rescue attempt of
these promises,
despite its a
transitory
character, are
characterized
as
a equalization of opportunities for enforcement of fundamental rights (equality as a
right to diversity) and social rights ( in this case, education). Analyzes quotes coming
from provisions of the Federal Constitution of 1988 in its programmatic character. To
find legitimacy and validity of quote programs, considers the distinction made by
Ronald Dworkin
between
public
policy and
moral
principles, from an
understanding that demands the prevalence of moral principles within the
community called principles. Underlining the law as Dworkin integrity and accuracy of
considering
the adequacy
and consistency allied
to
a genuine horizon,
this dissertation goes through the understanding of walking up to this theoretical
framework, analyzing important theorists who contributed to this idea.Finally, this
paper analyzes the judgment
of ADPF nº 186-DF by the Federal Supreme
Court (STF), proposed by the "Partido Democratas" aimed to declare the
unconstitutionality of afrodescendants quotes in the University of Brasilia - UNB. By
addressing the
votes
of the
Ministers
from
STF, the study verifies the
main arguments adopted by them, seeking coherence and adequacy as a way of
legitimizing the
reservation of
vacancies at
Universities, also ascertaining the
potential application of this precedent to the discussions arising from
the law 12.711/2012, which determines the requirement for implementation of
social and racial quotes in the Federal Public Universities. This paper concludes the
legitimacy of quotas from an authentic horizon, with the necessary view of these
principles given, as a result, a joint community project.
Keywords: Affirmative Action. Discrimination. Education. Equality. Integrity
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................9
1. A (RE) CONSTRUÇÃO DE UM CHÃO HISTÓRICO .............................................16
1.1. Raízes da dívida (ou déficit) histórica-social: A construção de um modelo social
discriminatório ...........................................................................................................18
1.2. Breves linhas sobre as ações afirmativas...........................................................39
1.3. O julgamento da ADPF 186 pelo Supremo Tribunal Federal e a aprovação da
Lei nº. 12.711/2012 ...................................................................................................51
2. A VIRADA CONSTITUCIONAL E A MODERNIDADE TARDIA: BREVES
NOÇÕES SOBRE CRISES E CONTRADIÇÕES DA TARDO DEMOCRACIA
BRASILEIRA ............................................................................................................60
2.1. O Estado de Direito e suas transformações .......................................................60
2.2. O Estado (Social) Democrático de Direito em seu papel de Estado promotor:
Consecução da Constituição Dirigente e as promessas não cumpridas...................75
3. AS COTAS SOB O ENFOQUE DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE RONALD
DWORKIN.................................................................................................................82
3.1. Os primeiros fundamentos na construção de um possível modo de se
compreender a problemática relacionada às cotas: Um caminho traçado até Ronald
Dworkin 82
3.2. Regras, princípios morais e políticas públicas em Ronald Dworkin .................118
3.2.1. Ações afirmativas por meio de cotas em universidades: política pública ou
princípio moral?.......................................................................................................128
4. O JULGAMENTO DA ADPF N. 186/DF PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO .................145
4.1. A aprovação de Lei nº. 12711/12 após manifestação do Poder Judiciário:
Possível influência de precedentes judicias na esfera legislativa............................146
4.2. O julgamento da ADPF 186: palco para discussões sociais, políticas e
econômicas. ............................................................................................................156
CONCLUSÃO .........................................................................................................181
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................187
9
INTRODUÇÃO
O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 186-DF que resultou na
declaração de constitucionalidade das cotas raciais, aliado à publicação da Lei nº
12.711/2012 que estabelece a obrigatoriedade de reserva de cotas sociais nas
universidades públicas brasileiras, desencadeia uma série de questionamentos
relacionados à legitimidade das cotas.
Não obstante a manifestação do STF e a regulamentação de programa de
cotas por legislação federal, as cotas ainda são objeto de uma multiplicidade de
argumentos, gerando diversos debates perante a sociedade, sendo que o tema, em
grande medida, é analisado de forma superficial, desconsiderando-se um horizonte
autêntico. Entende-se que a reserva de cotas no ensino superior público reflete na
vida
de
inúmeros
indivíduos
que
buscam
ingressar
nas
universidades,
caracterizando-se como um importante fator de mudança no caminho dos cidadãos,
sejam aqueles beneficiados pelas cotas, sejam aqueles que não podem usufruir
desta benesse. A problemática se concentra na questão se o mecanismo de
inclusão não segrega mais do que equaliza.
Não só vislumbrada, portanto, como fenômeno jurídico, mas também
como fenômeno social, a discussão sobre a efetividade das cotas no ensino superior
público e o seu potencial discriminatório ou igualitário, implica na reconstrução de
um horizonte histórico, o que será realizado no primeiro capítulo. Isso porque, desde
o século XIX, o Brasil passa por profundas mudanças estruturais e sociais, as quais
se intensificaram a partir da virada do século XX, isto é, após os períodos de
colonização, abolição e da República. A sociedade brasileira, durante todos estes
períodos, se caracterizou como estratificada e hierarquizada, sobretudo se
observado o momento de colonização, aliado à escravidão, que apresentava de
forma implícita um conjunto de estereótipos negativos, principalmente, em relação
ao negro, valorizando uma superioridade branca.
Em um primeiro momento, antes mesmo da abolição, não se falava em
ideologia
racial,
discriminação
por
preconceito
ou
excluídos,
pois
tais
caracterizações simplesmente inexistiam em seu sentido conceitual. Todavia, a
10
própria condição da escravidão é suficiente para demonstrar a absoluta
inferiorização do negro e dos povos nativos do Brasil durante a colonização ibérica,
quando a forma hierarquizada da sociedade era tida como natural e aqueles nem
sequer eram considerados sujeitos de direito.
As primeiras exposições científicas que tratavam do racismo surgiram em
meados de 1870, quando o país já estava na iminência da abolição e iniciava o
procedimento de modificação da condição do negro no meio social, surgindo, então,
uma ideologia racial. Não obstante, com a abolição e a posterior chegada da
República (1889), esta trouxe consigo ideais e propostas de igualdade e cidadania,
lançando novos supostos valores e, com eles, novas esperanças.
No entanto, não parece ter sido a República suficiente para garantir a real
igualdade dos indivíduos e a implantação de direitos sociais de forma igualitária, tal
qual foi proposta, mormente se analisado que o discurso da ideologia racial em
muito contribuiu para manter os negros, principalmente, na base da pirâmide social,
inseridos em um ambiente demasiadamente desqualificado e com persistente
restrição de oportunidades.
O novo regime republicano, portador das promessas democratizantes, foi
também palco do que se concebeu como “democracia racial” que ganhou forças
aproximadamente em 1940 e representava a busca da convivência pacífica da
sociedade, independentemente das raças, fundada na ideia de nação heterogênea.
Nesta esteira, ao se falar em desigualdade social, pensava-se, via de consequência,
em distribuição de renda, tendo sido aparentemente superado o mito da raça.
Não parece, no entanto, que o cenário acima descrito reflete a realidade dos
fatos, tendo em vista que, conforme será abordado neste trabalho, a ideia de
democracia racial não afastou os estereótipos existentes na sociedade e nem
tampouco foi o bastante para equalizar oportunidades no seio da sociedade. A
República, embora posterior à abolição, colaborou para o aumento da segmentação
social, seja em relação aos negros, seja em relação aos grupos étnicos e sociais
excluídos.
Assim, por mais que se vislumbre que a abolição da escravatura e a
República geraram relativa liberdade e igualdade formal aos indivíduos, é fato que
nesta corrida por oportunidades, alguns indivíduos, a exemplo dos brancos da elite
colonial, largaram muito antes de outros, a exemplo dos negros e indivíduos
11
pertencentes a grupos étnicos e sociais excluídos. Parece claro, então, que estes
últimos necessitam correr de forma muito mais intensa para alcançá-los.
No capítulo 2 analisar-se-á que embora a República não tenha atingido os
seus supostos ideais, a dualidade entre igualdade e liberdade se modifica conforme
a forma que o Estado adota, atingindo o seu ápice com a promulgação da
Constituição Federal de 1988, a qual traz em seu bojo o objetivo de erradicar a
pobreza e reduzir as desigualdades sociais, apresentando um rol de direitos sociais
que devem ser garantidos a todos os indivíduos. Surge, então, a ideia de se buscar
efetivar uma justiça distributiva, a fim de corrigir a desigualdade oriunda de um
horizonte histórico de exclusão social, especialmente pelo fato de o Brasil ser um
país de modernidade tardia1, isto é, um país onde as promessas feitas no Estado
Social não foram efetivadas.
Diante desta ideia de tardo democracia, demanda-se do Estado a criação de
políticas públicas e sociais, a fim de garantir a eficácia dos direitos então previstos
na Constituição da República, sendo que as questões referentes à desigualdade
racial e social ganham destaque e passam a ser constantemente suscitadas quando
do questionamento sobre a efetividade dos direitos sociais a todos. Daí pode-se
levantar a importância das ações afirmativas que se configuram como elementos
que proporcionam, respeitada a sua transitoriedade, a correção de distorções
sociais.
Neste viés, a partir do Capítulo 3, a presente pesquisa abordará, a par do
chão histórico esboçado, o direito social à educação e as ações estatais para
garanti-lo diante do cenário atualmente existente na sociedade, especialmente no
que concerne à validade e efetividade dos programas de cotas para o ensino
superior público. Haja vista, no entanto, a amplitude do assunto, embora relate sobre
as cotas sociais recentemente criadas, o presente trabalho centrará a sua atenção
nas cotas raciais, posto que, embora esta questão esteja eivada de alta carga
ideológica, é seguramente possível afirmar que a “discriminação racial” está longe
do seu fim e que as desigualdades em decorrência meramente da cor do indivíduo
continuam assustadoramente a se manter.
Em um país de modernidade tardia, um dos objetivos da criação da política
de cotas é proporcionar, principalmente, a grupos com déficit em relação à inclusão
1
A expressão “modernidade tardia” é utilizada por Lenio Streck em suas obras, a fim de caracterizar o Brasil
como um país no qual as promessas advindas do Estado Social ainda não foram cumpridas.
12
social, um tratamento diferenciado, a fim de criar oportunidades que estejam ao
alcance de todos e no mesmo patamar de indivíduos que tiveram qualidade de vida
e ensino superior àqueles. Invoca-se, então, o princípio constitucional da igualdade,
consagrado pela Constituição Federal, a fim de considerar a realidade concreta e a
efetiva necessidade de se superar obstáculos que proporcionem desigualdades de
fato. Deve-se atentar que o princípio da igualdade, sob esta leitura, é entendido
enquanto o direito à diversidade2, e não na clássica divisão de dimensões formal e
material.
A importância de se apreciar os princípios constitucionais na oportunidade
de análise das cotas é indiscutível, já que estes, na visão dworkiana, se configuram
como padrões de moralidade transpositivos. São padrões políticos e morais a que as
decisões recorrem, mormente, para solucionar casos difíceis que não encontram
solução ou amparo no direito positivo. Seu cumprimento é questão de adequação e
coerência, abordando questões de peso na justificação de uma decisão, a qual,
segundo Dworkin, deve ter como característica marcante a abordagem por meio de
princípios.3
Neste viés, a reserva de cotas no ensino superior público, muito além da
finalidade de efetivar o direito social da educação, objetiva a redução de
desigualdades, por meio da equalização de oportunidades, fazendo-o por meio da
implementação de critérios baseados em classe social, raça e etnia. Tal questão,
todavia, parece se posicionar no interior da tensão existente entre constitucionalismo
e democracia4, o que demanda uma análise cautelosa no sentido de verificar se
deve a cota ser entendida enquanto política pública ou princípio moral5.
Vale reiterar que esta perspectiva das cotas enquanto inserida em uma
comunidade de princípios se adapta com a atual figura do Estado em seu aspecto
promotor, isto é, com fins e tarefas determinadas, bem como com diretivas
devidamente estabelecidas para o um desenvolvimento social, enquanto projetar-se,
por meio daquilo que se conhece como Constituição Dirigente.
2
A ideia do direito à igualdade enquanto direito à diversidade pode ser encontrada em SANTOS,
Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez,
2006, p. 462
3
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Tradução: Nelson Boeira. 3ª ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010. P, 132
4
DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e Democracia. Tradução: Emílio Peluso Neder Meyer.
Publicado originalmente no European Journal oh Philosophy, nº.3:1, p.2-11, em 1995. P. 13
5
Ibidem, Levando os direitos à sério Op. Cit., P. 129
13
Busca-se, então, o meio mais adequado para se proceder à análise das
cotas no ensino público, a partir da implementação das cotas raciais, por meio de
uma análise de conteúdo hermenêutico político, apreciando-as como um possível
instrumento para a efetividade do direito social à educação, bem como respeito ao
princípio da igualdade. A busca por esta resposta, todavia, a qual intenta elucidar a
validade e efetividade dos programas de cotas, não é tarefa fácil, exigindo um
esforço por meio de uma reflexão crítica que atinja os seus níveis mais intrínsecos
de compreensão, para a qual a presente pesquisa terá como marco teórico as ideias
dworkianas referentes à hermenêutica ou fenomenologia política.
No capítulo 4, será ressaltado que durante muitos anos foram travados
diversos debates em níveis institucionais variados, acerca da utilização de sistemas
de cotas para ingresso de alunos no ensino superior, discussões estas que
envolveram em demasia questões ligadas à efetividade de tais projetos e o direito à
igualdade constitucionalmente consagrado. Em abril de 2012, o STF julgou a ADPF
186/DF, conforme relatado, a qual questionava a constitucionalidade de programas
de reserva de vagas para alunos afrodescendentes implantados em algumas
universidades brasileiras, tendo decidido pela constitucionalidade destes.
Naquela oportunidade foi destacado o caráter social das políticas
implementadas, bem como os graves problemas de desigualdade enfrentados por
determinadas classes e raças dentro do território brasileiro, advindos de uma história
de rejeição e preconceito.
O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPF 186/DF aborda a
questão referente à inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser
vencido pela instituição de cotas, aduzindo que “A histórica discriminação dos
negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador,
mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão social gera a
perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de
perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto
sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação
eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos
repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que,
consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”.6
6
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
14
Até a decisão tomada pelo STF, embora o tema já causasse
discussões e questionamentos variados, o poder legislativo, não obstante a
existência de projetos de lei relativos a cotas, se mantinha inerte, não decidindo
sobre a (im)possibilidade de implantação destas. Após o julgamento, entretanto, o
Poder Legislativo, assumindo o seu papel até então esquecido, apreciou e
encaminhou para sanção o projeto de Lei nº. 180/2008, o qual resultou na Lei nº.
12.711/2012, sancionada em 29 de agosto de 2012, cujo objeto é dispor sobre o
ingresso de estudantes nas universidades federais e nas instituições federais de
ensino técnico de nível médio, estabelecendo o dever de observância da reserva de
cotas sociais e raciais em tais instituições.
Assim, a mencionada lei surgiu aparentemente com o intuito de pacificar e
determinar limites à questão que há muito vinha sendo tratada pelo Poder Judiciário,
por meio da análise de casos concretos e discussões acaloradas acerca da
constitucionalidade de medidas de discriminação positiva ou as denominadas ações
afirmativas, as quais se voltavam, até então, para questões raciais. Daí justifica-se a
maior importância conferida neste trabalho às cotas raciais, posto que a partir destas
é possível averiguar uma construção interpretativa sobre o tema proposto.
Considerada a importância do julgamento da ADPF 186-DF para reflexão
acerca da legitimidade das cotas, o presente trabalho realizará uma análise sobre os
votos proferidos pelos Ministros naquela oportunidade, visando comparar a
convergência destes com as propostas teóricas traçadas nos capítulos anteriores.
Busca-se, assim, a coerência dos argumentos apresentados com a integridade do
direito, para que seja possível adequá-los à legitimidade conferida à reserva de
vagas para afrodescendentes nas universidades públicas.
Diante de tal escolha metodológica, é de se ressaltar que para que seja
possível a compreensão da fenomenologia política de Dworkin e a construção
interpretativa do direito, é indispensável que se entenda as suas bases teóricas, a
partir de Heidegger e Gadamer, já que apenas a partir de suas propostas será viável
analisar a adequação e legitimidade das cotas no ensino superior e a coerência
destas, a partir de uma adequada leitura do horizonte autêntico.
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>.
agosto de 2013.
Acesso
em:
21
de
15
É de se entender, portanto, que para uma busca da resposta correta para o
caso das cotas, em observância à tradição histórica, bem como ao seu objetivo
político-social, há de se compatibilizar tais elementos com o direito e com os
princípios morais da comunidade política, sem afastar, todavia, a possibilidade de
mutação da compreensão e interpretação encontrada de acordo com a realidade
prática existente.
16
1. A (RE) CONSTRUÇÃO DE UM CHÃO HISTÓRICO
Para a adequada compreensão de algo que se pretenda discutir, é essencial
observar o seu delineamento histórico, pois apenas conhecendo a coisa analisada,
será possível realizar uma dinâmica de (re) construção, conferindo-lhe um rosto e
uma formação autêntica. Não basta, portanto, uma mera análise superficial de como
a coisa se encontra atualmente, mas sim dos fatores que contribuiram para o seu
estado presente e de todas as peculiaridades existentes em sua essência, ainda que
sejam elam veladas por estereótipos artificiais.
O traçar do modo de ser histórico deve prezar pela veracidade dos fatos
ocorridos, refletindo-os de forma crítica, a fim de afastar uma eventual limitação
decorrente do exame pouco sólido do passado que formou e transformou aquele
objeto. Não se resume, então, em uma narrativa de acontecimentos, mas na
observância de como e por que aqueles fatos culminaram na situação hoje existente
e o que ficou mascarado e perdido em meio a este passado.
Diante desta necessidade de se (re)construir um horizonte histórico
autêntico7 do momento em que os fatos estão circunscritos, antes de adentrarmos
no cerne das questões referentes às cotas e efetividade de direitos, buscar-se-á
construir um horizonte histórico, a partir de uma perspectiva gadameriana, visando
adequar a proposta deste trabalho ao modelo hermenêutico buscado.
Isso porque, conforme será aprofundado no Capítulo 3, a partir do século
XIX, com a ocorrência das Viragens Linguísticas8, a linguagem ganha uma nova
roupagem, estando agora voltada à interpretação, sendo que sob a perspectiva
gadameriana, uma melhor compreensão exige a fusão de horizontes, isto é, exige a
consideração de um horizonte histórico para que, então, seja possível a
confrontação de visões de mundo.
7
Conforme se verá adiante, a (re)construção de um horizonte autêntico trata-se de um processo que
implica necessariamente na desconstrução ou, para utilizar a expressão heideggeriana, destruição de
preconcepções inadequadas ou inválidas, para que, então, se possa atingir a realidade desvelada.
8
A Viragem Linguística Lógica, bem como a Ontológica serão aprofundadas no capítulo 3 do
presente trabalho.
17
É bem verdade que o traçar de um histórico nem sempre nos concede
certezas sobre os acontecimentos, fazendo-se imperativa a sua análise de forma
crítica e cautelosa. Neste sentido, Eduardo Henrique Lopes Figueiredo:
As vicissitudes históricas que podem ilustrar a captura do passado jurídico
como informador do presente legal que nos informa, fundamenta ações,
infundindo no observador que a compreensão a respeito dos direitos, levada
na devida conta a dimensão sócio-histórica, deve ser colocada na
quarentena da suspeita, no plano de singular consciência cética, isto
relativamente e contrariamente às certezas que infestam e emprestam
sentido ao direito de nosso tempo, sejam elas a ideia de evolução, marcada
pela positividade histórica, ou, ainda, a correspondência quase que
9
simétrica entre etapas do passado até o presente.
Para uma melhor análise das cotas no ensino superior público, todavia, a
consideração de um horizonte histórico parece ser imprescindível, posto que os
déficits atualmente encontrados na sociedade e que originam estas ações
afirmativas advêm de um processo de transformação da sociedade, sendo resultado
de um caminho de desigualdades e discriminação. É preciso, então, conhecer este
caminho, para que então seja possível a compreensão dos programas de cotas para
além de seu aspecto meramente político.
Diante da importância de uma (re) construção histórica para a melhor
compreensão de um tema, partiremos para uma reflexão crítica sobre a possível
origem do modelo social discriminatório que hoje se verifica. Todavia, antes de
adentrarmos no histórico propriamente dito, chama-se a atenção para a ideia
estampada de que trataremos das “raízes da dívida histórica-social”.
Sob esta ótica, é necessária a análise da possibilidade de se considerar o
passado enquanto uma dívida social, no sentido de condenar aqueles que em um
momento histórico específico, com compreensões delimitadas, agiram da forma que
atualmente se entende inadequada. Seria, então, viável sustentar a validade de uma
dívida social?
Parece imperioso analisar que as perspectivas do homem se modificam de
acordo com as novas propostas que surgem, sendo que ele se adapta ao meio
ambiente em que vive e conforme as condições que a própria sociedade lhe oferece.
A racionalidade existente há séculos atrás não parece ser a mesma que hoje se
9
FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. História, direito e sociedade: a captura histórica do direito
– itinerários da metodologia e interpretação. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MONACO,
Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHAES, José Luiz Quadros de. (Coord.) Constitucionalismo e
democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 9.
18
enfrenta, de forma que aquilo que atualmente temos como inconcebível, tal como a
escravidão, pode já ter sido indiferente e compreendido como uma mera
naturalidade.
A cobrança de uma dívida social, neste termo propriamente dito, exigiria a
mesma racionalidade àqueles que praticaram os atos agora condenáveis, o que,
todavia, é de difícil averiguação e comprovação. A mudança da proposta do Estado
gera a mudança da racionalidade e, consequentemente, gera novas perspectivas.
Assim, parece demasiadamente temeroso se falar em dívida social, o que,
no entanto, não afasta a realidade de um eventual déficit social, cuja compensação
se faz agora exigível. A nova forma social plural democrática do Estado pede ações
governamentais afirmativas que garantam a sua promoção e efetivação, a fim de
que crie e implante esta nova perspectiva. Não necessariamente em virtude de uma
dívida social, mas concretamente como forma de efetivação de direitos e correção
de distorções.
1.1. Raízes da dívida (ou déficit) histórica-social: A construção de um modelo social
discriminatório
Dada a importância acima mencionada da construção de um horizonte
autêntico, a partir de uma (re)construção histórica, com ênfase no preconceito racial,
buscar-se-á uma análise a partir, principalmente, da colonização ibérica seguida
pela proclamação de uma suposta República no Brasil, período no qual parece
ganhar força a segregação da sociedade.
Necessário advertir, todavia, que em verdade a proclamação da República
não se caracteriza como um ato isolado10, mas como o resultado de um processo
10
Oportuno aqui mencionar que nada é um ato, uma data, um autor ou um fato isolado. Neste
contexto, lembramos a música “Guararapes” de Dorival Caymmi: “Vamos saber se contaram nossa
história certo. Vamos rever o que existe de nosso passado. Devemos conhecer nossos heróis de
perto. Tentando consertar o que aprendeu-se errado. Quem foi o herói que libertou o homem. Foi
quem lutou para não passar mais fome.Quem foi o Herói que libertou o homem. Foi quem lutou para
não passar mais fome. Talvez alguém não aceite outra versão dos fatos. Que a fantasia é a mordaça
da realidade. Os ídolos de barro para os insensatos. E aos verdadeiros homens, homens de
verdade.Quem foi o herói que era fidalgo e nobre. Foi um barão duma rabeira pobre. Ontem foi o
herói que era fidalgo e nobre.Foi um barão duma rabeira pobre. O rei, o herói, o santo, o assassino e
o mártir. Foram também como nós em decadência ou glória.Da história foram eles que fizeram
parte.Feito amanhã seremos nós parte da história.”
19
que há muito já se construía no seio da sociedade11, em vista dos objetivos e
finalidades que serão aqui tratados. Utilizar-se-á a proclamação e a sua data
instituída, no entanto, como marco simbólico para que se possa abordar as
consequências desta nova roupagem do Estado e o modelo social criado a partir de
então.
Neste viés, inicia-se o contorno histórico a partir das considerações acerca
da colonização do Brasil, quando os portugueses ocuparam as terras brasileiras e
iniciaram um processo de (re) formulação de cultura, se apoderando e, ao mesmo
tempo, ignorando os costumes e valores aqui existentes e, principalmente, os povos
que habitavam esta região12. Em verdade, cuidou-se de um extermínio da liberdade
e da cultura de povos nativos. Embora muitas vezes esta realidade seja velada, a
história da colonização foi marcada por aspectos estruturais e constantes de
assenhoreamento e violência em engenhos e quilombos.13
Este velamento se faz presente até mesmo em obras que relatam este
período histórico. Sérgio Buarque de Holanda, buscando demonstrar uma suposta
pacificação na colonização, solidifica a inferioridade dos indígenas, afirmando que a
forma de vida dos índios resultava em incompreensões recíprocas que, de parte dos
indígenas, assumiam quase sempre a forma de uma resistência obstinada, ainda
quando silenciosa e passiva, às imposições da raça dominante.14
No entanto, desde o primeiro século da colonização, em um encontro
deveras conflitivo, a partir do descobrimento da América pelos portugueses que
entendiam que aquele território lhes pertencia, foi iniciado um processo de real
extermínio da cultura indígena, sendo que muitos nativos, se não dizimados, foram
inicialmente mantidos como escravos, juntamente aos negros africanos. A ideia de
que os colonizadores se apossaram da cultura dos povos nativos e negros como
uma forma democrática e de aproximação não se mostra convincente, parecendo
apenas uma forma de esconder a realidade que se instaurou.
11
Cf. CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
12
Sobre o início da colonização, Caio Prado Junior afirma “A idéia de povoar não ocorre inicialmente
a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por estes territórios primitivos e
vazios que formam a América; e inversamente, o prestigio do Oriente, onde não faltava objeto para
atividades mercantis”. PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense,
2004. p. 15.
13
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.p. 27.
14
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
p. 48.
20
Neste sentido, desvelando as reais práticas dos portugueses colonizadores,
Bosi:
O colono incorpora, literalmente, os bens materiais e e culturais do negro e
do índio, pois lhe interessa e lhe dá sumo gosto tomar para si a força do seu
braço, o corpo de suas mulheres, as suas receitas bem-sucedidas de
plantar e cozes e, por extensão, os seus expedientes rústicos, logo
indispensáveis, de sobrevivência. Desfrute no nível da pele e apropriação
daquelas técnicas do corpo, tão bem descritas por Marcel Mauss, não
instauram um regime propriamente recíproco de aculturação. O máximo que
se poderia afirmar é que o colonizador tirou para si bom proveito da sua
15
relação com o índio e com o negro.
Ainda que não houvesse a efetiva matança de índios, os colonizadores
aniquilaram as suas bases culturais, transmudando a sua língua e usurpando a
religião, intensificando nos índios o medo e o horror a espíritos malignos,
diabolizando toda e qualquer cerimonia alheia à doutrina católica oficial.16 O
massacre foi físico e cultural; vital e psicológico.17
A dominação dos índios se deu em grande parte em virtude da religião, haja
vista a grande influência e o poder da Igreja naquele tempo. A catequese era
considerada como prelúdio da submissão da raça inferior.18
O colono queria o índio convertido em mão de obra barata, em escravo,
escravo com os sentimentos humildes do bom cristão19. O colono quer braços e
concubinas, o índio, arrancado de seus costumes, reage com ferocidade contra o
branco, rebelde na sua cultura bravia.20
Em que pese este cenário, a conquista do trópico pelos portugueses, com a
finalidade de implementação de uma cultura notadamente ibérica, foi um grande
triunfo para aquele povo. Nas férteis e desbravadas terras tropicais, encontraram
15
Ibidem, p. 28.
Ibid., p, 69.
17
No ano de 1563, na Bahia, existiam 40.000 índios aldeados, ao passo que no decorrer de vinte
anos, devido aos constantes maus-tratos e o fato de não possuírem imunidade suficiente para se
proteger das doenças européias, restaram apenas 3.000 índios. TAUNAY, A. de E. História geral das
bandeiras paulistas. São Paulo: Museu Paulista, 1924. v. 1. p. 85.
18
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. Porto Alegre: Editora
Globo, 1976. v. 1. p. 199.
19
Inicialmente, como tentativa de solucionar a escassez de mão-de-obra, recorreu-se à força de
trabalho dos nativos “relativamente numerosos e pacíficos do litoral”. In. NOVAIS, F.; MOTA, C. G.
(Org.). Brasil em perspectiva, São Paulo: Difel, 971, p. 32-33.
20
FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Op. Cit. p. 199.
16
21
fonte de farta riqueza, sendo que a produção agrária se tornou o vetor mais forte
para o desenvolvimento daquela cultura.21
Assim, impetuosos por esta nova possibilidade de abundância, os
portugueses, extirpando a presença dos indígenas nas terras tropicais, retiraram
destes seus instrumentos de trabalho, deturparam sua cultura e passaram a buscar
a incessante produção agrícola. Neste panorama, toda a organização política
nacional tem sua origem na hierarquia, rigidamente aristocrática, de grande
propriedade rural.22
Durante aproximadamente três séculos de colonização, os portugueses
pareciam estar, de fato, preocupados com as relações econômicas, as quais se
intensificavam no aspecto rural. Nos dizeres de Sérgio Buarque de Holanda23, não
possuíam o “orgulho da raça”, pouco se importando com uma unidade nacional.
Contudo, estereotipando os indígenas e os negros como raças inferiores e
detentores de maior força e resistência, empregaram a forçosa mão de obra destes
para servir aos interesses dos colonos portugueses. Afinal, o português veio buscar
a riqueza, mas aquela riqueza que custa ousadia e não a riqueza que custa
trabalho.24
Com o tempo, todavia, foi revelada uma menor produtividade dos índios, em
decorrência do modo de vida em que estavam até então inseridos e da sua
fragilidade diante de doenças25. Em vista disto, os portugueses recorreram mais
enfaticamente à mão de obra escrava, trazendo negros da África, a fim de aumentar
a produção. Sobre a preferência pela mão de obra escrava negra e consequente
extermínio dos indígenas, Moura afirma
21
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 48.
QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Sociologia política de Oliveira Vianna. São Paulo: Convívio,
1975. p. 108.
23
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 53.
24
Ibidem, p. 49.
25
Sobre a não adaptação ao trabalho indígena, Caio Prado aduz que conforme “afluíam mais
colonos, e portanto as solicitações de trabalho, ia decrescendo o interesse dos índios pelos
insignificantes objetos com que eram dantes pagos pelo serviço. Tornam-se aos poucos mais
exigentes, e a margem de lucro do negócio ia diminuindo em proporção (...) aos poucos foi se
tornando necessário forçá-lo ao trabalho, manter vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga e
abandono da tarefa em que estava ocupado. Daí para a escravidão pura e simples foi apenas um
passo. Não eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva do Brasil e do
estabelecimento da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e instituíra firmemente
em toda parte”. PRADO JÚNIOR, C. Op. cit., p. 34,35. O autor ainda complementa que “além da
resistência que ofereceu ao trabalho, o índio se mostrou mau trabalhador, de pouca resistência física
e eficiência mínima. Nunca teria sido capaz de dar conta de uma tarefa colonizadora levada em
grande escala” PRADO JÚNIOR, C. Op. cit., p. 3.
22
22
O sistema colonial no Brasil atua consequentemente com certas
particularidades. Não se interessa pelo aproveitamento do trabalho
indígena; na comparação que faz entre as possibilidades das técnicas
produtivas nativas e o valor da terra, cultivada por populações ligadas à
agricultura, opta pelo extermínio das primeiras, a ocupação da terra, e a
26
importação, em larga escala, do negro africano como trabalhador básico.
Além disso, a ideia de escravidão dos negros já era amplamente aceita
pelas sociedades como um todo, estando, em verdade, já implantada em Portugal.
Na colonização ibérica, a presença do negro representou sempre fator obrigatório no
desenvolvimento dos latifúndios coloniais.27 Sem a força escrava, a riqueza buscada
pelos portugueses não seria alcançada, mesmo com a terra farta e fértil.
As bases da vida Imperial foram, então, além de marcadas pelo extermínio
de indígenas, calcadas no trabalho forçado realizado em condições, em regra, cruéis
e desumanas, sendo os escravos considerados “objetos de direito” ou coisas28 e
nunca como “sujeitos de direito”. É fato que existem relatos históricos de senhores
da casa-grande que criaram uma relação protetiva e até mesmo amorosa com seus
escravos, no entanto, tais relações afetivas e sexuais não afastavam a condição de
servo determinada pelo branco e assumida pelo negro.
Neste sentido, Bosi
A libido do conquistador teria sido antes falocrática do que democrática na
medida em que se exercia quase sempre em uma só dimensão, a do
contacto físico: as escravas emprenhadas pelos fazendeiros não foram
guindadas, ipso facto¸à categoria de esposas e senhoras de engenho, nem
tampouco os filhos dessas uniões furgzes se ombrearam com os herdeiros
29
ditos legítimos do patrimônio dos seus genitores.
Naquele momento, pensar em uma melhoria nas condições de vida dos
escravos por parte de alguns senhores e/ou famílias brancas, era pensar em tratálos melhor e garantir a ausência de crueldade, mas jamais retirá-los da condição de
servos. Estava consagrada e enraizada a ideia do negro servir ao branco, em virtude
da sua cor e da sua suposta inferioridade, sem falar na impossibilidade desta
população oferecer obstáculos sérios à esta dominação30.
Diante deste cenário da colonização, velado em tantos relatos históricos,
nota-se a delimitação de diferenças entre conquistados e conquistadores, baseada,
26
MOURA, Clóvis. Brasil: raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983. p. 12.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 48.
28
MOURA, Clóvis. Op. cit., p. 12.
29
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 28.
30
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 61.
27
23
primordialmente, na questão de raças. A dominação dos brancos sobre os índios e
negros se fazia natural, conforme lembra Quijano:
Em primeiro lugar, as diferenças entre conquistadores e conquistados
codificaram-se na ideia de raça, ou seja, em uma suposta estrutura
biológica diferente, que localizava uns em situação natural de inferioridade
em relação aos outros (...) na medida em que as relações sociais que se
estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades (índio,
mestiço e negro) foram associadas às hierarquias, lugares e papeis sociais
correspondentes a cada um e interpretadas como determinantes destas e,
31
portanto, do padrão de dominação colonial que se impunha.
Foi neste cenário de escravidão e quase desaparecimento da cultura
indígena que o Brasil caminhou desde a sua descoberta e por todo o período da
colonização. A mão de obra escrava era empregada para o desenvolvimento deste
território e, via de consequência, do Império, por meio da exploração e investimentos
em áreas rurais.
Ainda no Século XVI, a Administração da colônia era exercida por uma
Monarquia, enquanto que a burguesia não subjugava ou aniquilava a nobreza, se
incorporando a ela e aderindo à sua consciência social.32 O maior detentor de poder
era o Rei que, desde o Século XIV, havia adquirido o poder supremo de comando.
No Século XVII, todavia, algumas transformações começam a ser sentidas
com maior vitalidade na Monarquia estabelecida no território brasileiro. A presença
do comerciante ocupa o centro do palco, reforçando-se no início deste Século,
quando há a venda de cargos públicos, o que permite à burguesia acotovelar a
aristocracia.33
Percebe-se naquele contexto notável desenvolvimento de aspectos
comerciais e bancários, o que desencadeou reformas e modificações intensas na
estrutura da colônia. Assim, embora presentes as raízes rurais do desenvolvimento
da colonização ibérica, o cenário inclinava-se também para o aspecto negocial,
sendo que entre muitos disseminou-se a crença de que as reformas políticas eram o
caminho que abriria portas para o progresso geral da nação34.
31
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LEHER, Roberto;
SETÚBAL, Mariana. (Orgs.). Pensamento crítico e movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2005. p.
36-37.
32
FAORO, Raymundo. Op.cit., p. 176.
33
Ibidem, p. 208.
34
MAURO, José Eduardo Marques. Os primórdios do desenvolvimento econômico brasileiro:
(1850/1930). In: PELAEZ, Carlos Manoel (Coord.). A moderna história econômica. Rio de Janeiro:
Apec, 1976. p. 141.
24
A falência de alguns aspectos do colonialismo é lembrada por Mauro:
No caso de um colonialismo eivado de vícios de origens, por exemplo, a
colonização portuguesa no Brasil, esses obstáculos opuseram uma
resistência considerável à difusão de forças de transformação da sociedade
econômica. A colonização portuguesa no Brasil, mercantilista como as
demais europeias, caracterizou-se por apresentar peculiaridades dentre as
quais: a universalização no emprego do escravo nas mais variadas tarefas
existentes no país, poucas oportunidades aos nacionais de exercerem o
comércio, entraves continuados ao estabelecimento de manufaturas, a
instalação de uma administração rotineira e burocrática, desídia completa
com relação à instrução popular, média e superior, implantação de um
35
arcabouço social bastante primitivo.
Com suas bases já fragilizadas, os padrões coloniais passaram a ser mais
enfaticamente ameaçados após a migração forçada da família real portuguesa para
o Brasil, em 1808.36 A fazenda rural, antes constituída como uma monocultura,
passa a ter caráter de latifúndio, sendo que esta passagem do empresário
exportador para o senhor de rendas coincide com a transmigração da corte.37
A partir destas transformações, inicia-se um movimento liberal, chamado por
Bosi de liberalismo oligárquico brasileiro38 que pretendia reforçar a sua economia em
face do regime monárquico até então estabelecido, fundamentado em ideais
maiores de liberdade. No entanto, não parecia ser este liberalismo congruente, já
que o discurso ou silêncio de todos, foi cúmplice do tráfico e da escravidão39. Talvez,
porque não poderia este movimento atacar a rentabilidade da classe mais abastada,
garantida, até então, pelo trabalho escravo, ainda que houvesse sinais e
manifestações contrárias à prática da escravidão.
Em que pese esta aparente cumplicidade, as inúmeras modificações pelas
quais a sociedade passava culminaram na Lei Eusébio de Queiroz de 4 de setembro
de 1850, por meio da qual se definiu a supressão do tráfico negreiro, um importante
marco para
abolição da escravidão.
Contudo, embora o tráfico tivesse sido
suspenso, a sua apologia ainda se fazia presente na boca daqueles que tinham sido
obrigados a proibi-lo de vez.40
Apenas em meados de 1868 que este cenário começou a ser modificado,
pela implantação de um novo liberalismo que pareceu ser o início da decadência do
35
Ibidem, p. 141.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 161.
37
FAORO, Raymundo. Op.cit., p. 246.
38
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 208.
39
Ibidem, p. 217.
40
Ibid., p. 218.
36
25
Imperialismo.41 A ruína do Império, no entanto, não se deu por um golpe do Estado,
mas pela força de uma “maré democrática”.42
Os especuladores, cientes do acúmulo de grandes fortunas pelos
colonizadores, pretendiam então ganhar o apoio do povo, no sentido de prometer o
desenvolvimento nacional e político, com a participação de todos no governo do
país. Assim, o regime monárquico, vivendo à sombra do Poder Moderador, era
condenado pelo manifesto republicano de 1870 como incompatível com a soberania
nacional, que só poderia ser baseada na vontade popular.43
Os movimentos contrários à Monarquia e, por conseguinte, implicitamente
contrários à escravidão em virtude de ser ela o motor propulsor desta última, se
dimensionaram44 e a questão referente à ideologia racial acaba sendo agora
observada. O Brasil negocial e mais liberal começava a tomar espaço do Brasil
eminentemente rural e patriarcal, sendo que a difícil convivência destes dois
universos distintos se fazia eloquente.
Para os reformistas, o desafio social e ético que a sociedade teria de
enfrentar era o de redimir um passado de abjeção, fazer justiça aos negros, dar-lhes
liberdade a um curto prazo e integrá-los em uma democracia moderna.45
Deve-se ressaltar que a cultura patriarcal se deu sempre em vista do pátrio
poder que os senhores da Monarquia possuíam, o que reforçava, de certa forma, a
aceitável submissão de negros escravos. A própria família parecia estar relacionada
a uma ideia de escravidão, já que o patriarcal agia, muitas vezes, com demasiada
tirania com os membros de sua própria família. A família colonial era, quiçá, a maior
representante de poder no Império.
Contudo, a exigência da reformulação de parâmetros e pensamentos para
acolher as iniciativas progressistas que se aproximavam era cada vez mais latente.
Corroborando o enfrentamento destes dois extremos (poder rural oriundo da
colonização ibérica e crescimento da vida comercial), Sérgio Buarque de Holanda:
41
Ibid., p. 222.
FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 445.
43
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p.11.
44
BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 225.
45
Ibidem, p. 234.
42
26
A presença de tais conflitos já parece denunciar a imaturidade do Brasil
escravocata para transformações que lhe alterassem profundamente a
fisionomia. Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o
primeiro passo para a abolição de barreiras ao triunfo decisivo dos
mercadores e especuladores urbanos, mas a obra começada em 1850 só
se completará efetivamente em 1888. Durante esse intervalo de quarenta
anos, as resistências hão de partir não só dos elementos mais abertamente
retrógradas, representados pelo escravismo impenitente, mas também das
forças que tendem à restauração de um equilíbrio ameaçado. Como esperar
transformações profundas em um país onde eram mantidos os fundamentos
tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar? Enquanto
perdurassem intatos e, apesar de tudo, poderosos os padrões econômicos
e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande
lavoura servida pelo braço escravo, as transformações mais ousadas teriam
46
de ser superficiais e artificiosas.
O anseio por esta modificação originou, então, a transição entre o Império e
a República, sendo que a abolição da escravatura em 1888 parece ser o grande
marco da efetivação deste movimento. Os negros foram libertos e envoltos pela
disseminação de ideais de igualdade e cidadania apresentados pelos reformadores.
É de se afirmar, a colonização ibérica parece ter sido responsável pela
miscigenação racial e étnica e por uma ousada mescla cultural na busca por maiores
riquezas. Entretanto, foi concomitantemente responsável pela marginalização de
grupos e distinção de sujeitos em decorrência da cor da sua pele ou status social,
hoje ainda presentes em terras brasileiras47. Ainda que não tivesse àquele tempo a
ideia de preconceito racial propriamente dito, conforme alguns entendimentos
existentes48, a ideia de inferiorização do negro já se fazia evidente, pelas próprias
condições a que eram submetidos.49
46
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 78.
Segundo Petrônio Domingues, o modelo de “transição” ocultava uma campanha ideológica
empreendida pela elite agrária paulista do século XIX, que visava legitimar a exclusão social do
negro. A suposta escassez de mão-de-obra para a lavoura cafeeira em expansão, sobretudo, após o
fim do trafico negreiro e da aprovação das consecutivas leis que acenavam para a abolição, e a
suposta necessidade da entrada dos imigrantes brancos europeus para suprir tal escassez, não pode
ser dissociada da compreensão do projeto de substituição étnica da força de trabalho. DOMINGUES,
Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e o branqueamento em São Paulo no pósabolição. São Paulo: SENAC São Paulo, 2004. p. 88.
48
Cf. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000. p. 7.
49
Nesse particular Octávio Ianni ensina que “mesmo depois da Abolição da Escravatura, ocorrida em
1888, as empresas continuaram a empregar preferencialmente os imigrantes e seus descendentes.
Muitas vezes, os empresários ou proprietários de oficinas são co-nacionais dos empregados que
selecionam. Os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da prosperidade geral,
bem como de seus proventos políticos, porque não tinham condições para entrar nesse jogo e
sustentar as suas regras. Em consequência, viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela
e através dela. Constituíram uma congérie social, dispersa pelos bairros, e só partilhavam em comum
uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria. Nessa situação, agravou-se, em lugar de
corrigir-se, o estado de anomia social transplantado do cativeiro. A experiência social diversa, os
horizontes culturais diferentes colocaram os negros e mulatos em desvantagem em face dos
47
27
Em 1889, com a proclamação da República, sensíveis transformações de
ordem econômica, social e cultural atingiram o Brasil, causando grandes
modificações e exaltação na sociedade. A República surge com uma série de
propostas democratizantes50 e sociais. Esta nova roupagem do Estado deu
esperanças para parte da população, o que, inclusive, foi decisivo para o apoio de
distintas camadas sociais nesta transição de regimes51.
Segundo Carvalho,
O movimento republicano era constituído de uma frente ampla de
interesses, que abrangia escravocratas e abolicionistas, militares e civis,
fazendeiros, estudantes, profissionais liberais, pequenos comerciantes. A
52
ideia de povo, de pátria, tinha o mérito de unir a todos, sem embaraços.
Em que pese esta diversidade de apoio, há de se registrar que a maior parte
da população demonstrava uma apatia política no momento da proclamação da
República, já que, embora houvesse o apoio de grupos conforme acima delimitado,
não havia participação do povo nos negócios públicos, restando este assunto
apenas às classes dominantes.53 Por este fato, há registros da frase de Aristides
Lobo no sentido de que “O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem
conhecer o que significa. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada.
Mas o que fazer?”54.
Assim, a começar pela sua proclamação meramente assistida e não
entendida pelo povo, o que se viu após a Proclamação da República foi
diametralmente oposto às ideologias até então disseminadas. Para Queiroz, a
República continuou mergulhada no mais inconsequente utopismo político, não
evoluindo para nenhuma forma definida de organização.55
A transição monárquico-republicana, com o novo regime a se forjar dos
escombros dos antigos, não seguiu um curso eufórico que lhe era predito.56 O
sistema republicano era demasiadamente rígido e a ideia de cidadania se fazia
imigrantes. Em consequência, a estrutura do operariado incipiente constitui-se permeado pelo
preconceito de cor e o etnocentrismo”. Cf. IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 2004. p. 44.
50
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 46.
51
Ibidem. p. 64.
52
Ibid., p. 48.
53
Ibid., p. 68.
54
FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 487.
55
QUEIRÓZ, Paulo Edmur de Souza. Op. cit., p. 68.
56
FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 515.
28
restrita, o que culminou no esvaziamento do encanto inicial com a República, dando
origem à decepção e ao desânimo.57 Sobre as concepções de cidadania no início da
República, José Murilo de Carvalho lembra que
No inicio da República nasceram ou se desenvolveram várias concepções
de cidadania, nem sempre compatíveis entre si. Se a mudança de regime
político despertava em vários setores da população a expectativa de
expansão dos direitos políticos, de redefiniçao de seu papel na sociedade
politica, razões ideológicas e as próprias condições sociais do país, fizeram
com que as expectativas se orientassem em direções distintas e afinal se
58
frustrassem.
Os republicanos mais enfáticos que buscavam os ideais da liberdade e
igualdade social, muitos deles intelectuais negros abolicionistas como José
Patrocínio, no Rio de Janeiro, Manoel Querino, em Salvador, Astolfo Marques, em
São Luis, Luis Gama, em São Paulo59, frustraram-se com os rumos tomados pela
República em seus primeiros anos, já que era ela marcada pelo militarismo e ações
positivistas. A trajetória autoritária da República buscava, por meio de seus ideias
iluministas, domesticar à força a plebe urbana e rural.
Doutro lado, importante destacar ainda que, a passividade do momento da
transição monárquica-republicana não perdurou por muito tempo, posto que alguns
anos mais tarde a força das irresignação da população diante de tantos obstáculos à
democratização se fez valer por meio de inúmeras revoltas, tal como ocorreu com a
Revolta da Vacina.
Esta revolta, emblemática na época da República Velha, embora tenha tido
como pano de fundo a obrigatoriedade da vacina determinada pelo governo em
meados de 1903, parece ter sido motivada, em verdade, por conceitos morais da
população que não admitia a entrada do governo em suas casas para desrespeitar a
virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar.60
Daí já se percebe que os revoltosos demonstravam, em verdade, irritação
com a invasão do governo em suas casas; com a invasão do público no privado.
Passou-se a perceber, então, que a República, na realidade, contrariava todos os
princípios os quais defendiam a princípio, já que não abria espaço para a opinião
57
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p.56.
Ibidem, p. 64.
59
FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 515.
60
CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 136.
58
29
pública e nem participação legítima do povo e tampouco abria espaço para a
liberdade cívica.61
Entretanto, não obstante as manifestações sociais, as novas elites se
empenhavam em reduzir a complexa realidade social brasileira, singularizada pelas
mazelas herdadas do colonialismo e da escravidão.62 A elite formada por intelectuais
advindos, principalmente, da oligarquia cafeeira, utilizou as ideologias republicanas
para moldar uma (re) construção nacional da forma que compreendiam correta, com
consequente reurbanização e substituição da mão de obra negra e mestiça por meio
do incentivo da imigração de camponeses europeus.
Isso
porque,
em
que
pesem
os
ideais
republicanos
inicialmente
disseminados, após a abolição da escravidão, o negro foi atirado compulsoriamente
às grandes cidades em formação, em busca de trabalho. No entanto, o grupo
migratório estrangeiro, já entrava maciçamente para excluí-lo deste sistema que se
dinamizava.63
Acerca da insistente inferiorização dos negros na época da República,
Moura afirma:
E aquele elemento humano que, durante quase quatro séculos foi o único
trabalhador da sociedade brasileira, passou a ser considerado preguiçoso,
ocioso, de má índole para o trabalho. O migrante estrangeiro, por outro
lado, vinha como sendo o povoador ideal, superior, capaz de injetar os
64
valores da poupança e do labor perseverante que o negro não possuía.
Neste sentido, a formação da República e, por conseguinte, o início de um
capitalismo dominante das elites, fez com que os antigos escravos, agora como
negros livres, fossem abandonados à periferia da sociedade, mantendo a sua
marginalização e as condições subversivas de vida, obrigando-os ao rebaixamento
para trabalhos que ofereciam salários irrisórios e condições degradantes de vida.
Diante deste delineamento histórico, percebe-se, então, que a abolição
ocorreu sem qualquer garantia de inserção do negro no trabalho livre, o que o
manteve próximo à antiga fazenda. Nas cidades, a escassez do trabalho e
“incorporação à escória do operariado” passaram a se mostrar como as únicas
61
Ibidem, p. 137.
SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso.
Introdução à História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 7- 48. v. 3. p. 27.
63
MOURA, Clóvis. Op. cit., p. 11.
64
Ibidem, p. 12.
62
30
expectativas para os negros, o que culminou em uma grande parcela de negros na
criminalidade. Só o vício e o crime ofereciam saídas realmente brilhantes ou
sedutoras de carreiras rápidas, compensadoras e satisfatórias.65
A degradante vida nas senzalas e a exclusão social dos negros naquele
momento foi meramente transplantada para as cidades. As dificuldades sociais
contribuíram para o maior empobrecimento dos negros que, embora vivessem nas
cidades, de forma teoricamente livre, não progrediram com ela. A abolição e a
consequente proclamação da República trouxeram desilusão para os ex-escravos,
agora negros libertos e ociosos, tornando-se, quiçá, um ônus por eles suportado.
Na época da República Velha, que se deu até por volta de 1930, a situação
marginalizada dos negros intensifica o chamado branqueamento da sociedade
brasileira, sendo as desigualdades raciais reafirmadas em um novo espaço político e
a capacidade dos negros enxergada como uma restrição decorrente das próprias
diferenças de raças. A tese do branqueamento defendia a superioridade da raça
branca e a busca pelo desaparecimento da raça negra, o que ocorreria por meio da
miscigenação.
Por esta tese, os povos mestiços ou mulatos seriam admissíveis, já que na
mistura de raças predominaria a raça branca, tendo em vista ser ela superior, de
forma que, com o passar do tempo, em uma trajetória ao ideal da raça branca,
eliminar-se-ia a raça negra e garantir-se-ia o pleno desenvolvimento nacional.
Inegável o preconceito que ali já imperava.
Tadei retoma que o processo de mestiçagem como eliminação da raça
negra surgiu já na época da colonização, que tinha como ideia disseminar o sangue
e a cultura europeia, de modo a produzir uma nacionalidade brasileira que seria
cada vez mais branca. Segundo ele, as pessoas nascidas nesse processo de
mestiçagem (mestiços e mulatos) eram consideradas estando em um estágio
intermediário entre o bom (europeu) e o mau (negros e indígenas). A mestiçagem
teria sido utilizada como uma forma de impor a cultura branca como a ideal, em um
processo de construção de uma identidade nacional.66
65
Sobre a marginalização dos negros e o seu caminho para a criminalidade, recomenda-se a leitura
de FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Cia. Editora
Nacional, 1965. v. 1.
66
TADEI, Emanuel. A mestiçagem enquanto um dispositivo de poder e a constituição de nossa
identidade nacional. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 22, n. 4, p. 2-13, 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932002000400002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 mai. 2013.
31
A marginalização da população negra durante a República parece, então,
evidente, seja politicamente em decorrência das limitações da República (sufrágio e
as outras formas de participação política); seja social e psicologicamente, em face
das doutrinas do racismo científico e da “teoria do branqueamento”; seja ainda
economicamente, devido às preferências em termos de emprego em favor dos
imigrantes europeus67.
Diante deste cenário, o negro encontrava-se livre fisicamente, entretanto
mantinha-se escravo de uma configuração social que lhe mantinha na linha da
marginalização e em completo estado de pobreza e carência, sendo comumente
caracterizado como pertencente à vadiagem.68
O discurso do embraquecimento perdurou por toda a República Velha,
embora muitas vezes velado, sendo que nos anos de 1920 e 1930 discutiam-se,
inclusive, projetos de legislação que abordavam este assunto69. Hofbauer esclarece:
No Congresso, debatiam-se não apenas formas de incentivo à imigração
européia; foram também apresentados projetos que propunham a proibição
da imigração de asiáticos e africanos. [...] Ainda no final do Estado Novo,
Getúlio Vargas justificaria a assinatura de um Decreto-Lei (1945) que devia
estimular a imigração européia com as seguintes palavras: ‘[...] a
necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da
população, as características básicas mais desejáveis de sua
70
ascendência’.
67
ANDREWS, George Reid. O protesto político negro em São Paulo (1888-1988). Estudos AfroAsiáticos, n. 21, Rio de Janeiro, 1991. p. 32.
68
Neste sentido, Thomas Skidmore lembra que“(...) tornava-se evidente que quanto mais escura
fosse a pele de um brasileiro, mais probabilidades ele teria de estar no limite inferior da escala
socioeconômica, e isso de acordo com todos os indicadores – renda, ocupação, educação. Os
jornalistas não tardaram em aderir, dando provas circunstanciais de um modelo de discriminação sutil
mas indisfarçável nas relações sociais. Já não era possível afirmar que o Brasil escapara da
discriminação racial, embora ela nunca tenha sido oficializada, desde o período colonial. O peso cada
vez maior das evidências demonstrava justamente o contrário, mesmo sendo um tipo de
discriminação muito mais complexo do que o existente na sociedade birracial americana. As novas
conclusões levaram alguns cientistas sociais a atacar a 'mitologia' que predominava na elite brasileira
a respeito das relações raciais em sua sociedade. Florestan Fernandes acusava seus compatriotas
de 'ter o preconceito de não ter preconceito' e de se aferrar ao 'mito da democracia racial'. Ao
acreditar que a cor da pele nunca fora barreira para a ascensão social e econômica dos não brancos
pudesse ser atribuída a qualquer outra coisa além do relativo subdesenvolvimento da sociedade ou
da falta de iniciativaindividual” SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no
pensamento brasileiro . (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 296.
69
O ideal do embraquecimento marca toda a história brasileira do século XX, tendo como auge a
política nacional de promoção de imigração européia, que pressupunha que a solução para o
problema racial do brasileiro ocorreria pelo ‘melhoramento’ da raça negra com a miscigenação e pelo
crescimento gradual da população branca, oriundo da alta taxa de mortalidade entre os negros e dos
incentivos estatais para a imigração e européia. SANTOS, João Paulo de Faria. Ações afirmativas e
igualdade racial: a contribuição do direito na construção de um Brasil diverso. São Paulo: Loyola,
2005. p. 56
70
HOFBAUER, Andréas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Unesp,
2006. p. 213.
32
Esta ideia foi reforçada pela denominada frenologia71, consistente em
ciência que apresenta a possibilidade de medição de caráter, características de
personalidade e grau de criminalidade pela mensuração da análise do formato do
crânio.72
A partir de 1930, no entanto, o discurso da diferença de raças e a
inferiorização negra por termos biológicos começa a perder força, sendo que em
meados de 1940 ganha espaço uma nova tese, denominada mais tarde como
“democracia racial”73. Por meio desta, se elevaria a unidade nacional e valorizar-seia a cultura brasileira, incentivando a tolerância com negros e mulatos, diante de
uma visão benevolente da escravidão74.
A democracia racial, posteriormente entendida como um mito, oferecia, a
priori, elementos que reduziam a importância de um caráter biológico e valorizava a
cultura do povo brasileiro, a fim de fundir os grupos raciais existentes na formação
de uma única nação, ainda que heterogênea. Entendia-se, então, por meio desta
“democracia racial” pela inexistência de preconceitos em relação à raça, igualando,
em termos, brancos e negros.
Em virtude da predominância deste discurso, a questão racial deixa de ser
enfocada nos debates políticos, no sentido de que a desigualdade passa a ser vista
como apenas aquela decorrente da distribuição de renda.75 No entanto, esta suposta
heterogeneidade escondia os preconceitos raciais que ainda se mantinham na
sociedade, impedindo aos negros o acesso aos empregos de maior renda e
importância social.
Para Moura,
71
“Daí as avaliações das cabeças de negros, brancos e índios para se constatar que as dos africanos
possuíam dimensões menores que as dos europeus e por isso eram inferiores intelectualmente.”
SANTOS, G. A. dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo: Pallas, 2002. p. 59.
72
Neste sentido, ver BLACK, E. A guerra dos fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para
criar uma raça superior. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003.
73
Para maiores esclarecimentos ver FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro:
Record, 1998.
74
A ideia de uma “democracia racial” constituiu fator determinante na consolidação de um sentimento
nacional brasileiro, até então inexistente no contexto fragmentado da República Velha, dominado
pelas elites agroexportadoras. ZONINSEIN, J.; FERES JÚNIOR, J. Ação afirmativa e
desenvolvimento. In: ZONINSEIN, J.; FERES JÚNIOR, J. Ação afirmativa e universidade:
experiências nacionais comparadas. Brasília: UnB, 2006. p. 27.
75
JACCOUD, Luciana. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial
no Brasil. In: THEODORO, Mario. et. al. (Orgs.). As políticas públicas e a desigualdade racial no
Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008. p. 52.
33
A chamada democracia racial é ua ideologia através da qual se justifica o
processo discriminatório contra o negro, jogando-se nos seus próprios
ombros a responsabilidade da sua discriminação. O discurso liberal é,
portanto, um mecanismo com o qual se justifica a existência do ghetto
invisivel que barra a população negra, colocando-a naqueles espaços
sociais altamente limitados, inferiorizados, e que um sistema secular de
76
compressão permite que seja por ele ocupado.
É fato que a ideia de “democracia racial” por si só poderia ser utilizada
enquanto instrumento para que os negros alcançassem a igualdade pretendida e a
sua valorização dentro de um contexto social e político. Todavia, a sua utilização
enquanto discurso para encobrir os preconceitos ainda efetivos acabou por gerar
movimentos contrários a esta ideologia, principalmente a partir de 1980, por meio da
resistência criada pelo Movimento Negro.
Fernandes brilhantemente aborda a manipulação do mito da democracia
racial,
Portanto, as circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com que o
mito da ‘democracia racial' surgisse e fosse manipulado como conexão
dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes,
comportamentos e ideais 'aristocráticos' da 'raça dominante'. Para que
sucedesse o inverso, seria preciso que ele caisse nas mãos dos negros e
dos mulatos; e que estes desfrutassem de autonomia social equivalente
para explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins, como
77
um fator de democratização da riqueza, da cultura e do poder.
Muitos são os debates e as teorias existentes acerca da “democracia racial”,
algumas no sentido de ser ela um mito, outras no sentido de ser a ideologia
necessária para a constituição da nação brasileira. No entanto, o que importa agora
observar é que sob qualquer um dos pontos de vista, o preconceito racial persistiu,
de forma que a mobilidade da população negra não foi, desde então, notada.
A partir da década de 1940 e até os dias de hoje, a posição dos negros na
sociedade se mantém a mesma, não havendo modificação considerável no aspecto
social, político ou econômico. Ainda após a industrialização, as minorias raciais
parecem ainda subordinadas à população branca, como um retrato de todo o
passado escravocrata e marginalizado acima relatado.
Alguns fatores poderiam ser apontados como motivação desta ausência de
mobilidade dos negros. Poder-se-ia citar a estagnação econômica de regiões ou
atividades onde a população negra está mais representada; o acesso a serviços de
76
77
MOURA, Clóvis. Op. cit., p. 11.
FERNANDES, Florestan. Op. cit., p. 205.
34
baixa qualidade (especificamente relacionados à educação) e piores redes sociais e
de trabalho devido à concentração dessa população em bairros dotados de menos
recursos; as diferenças familiares relacionadas ao acúmulo de capital humano.78
Percebe-se, a partir dos relatos históricos aqui traçados, que houve uma
inclusão tardia do negro na sociedade e, quando esta ocorreu, não se deu de forma
plena e satisfatória. O racismo ganhou novos traços após a abolição e, passando
por discriminações em virtude de supostas diferenças biológicas e inferiorização
científica até a ideia de democracia racial, parece estar presente em cada estágio
social alcançado pelo negro.
É o que Hasenbalg chama de “ciclo cumulativo de desvantagens”79, pois,
quando vencida uma etapa de preconceito, novos fatores de discriminação surgem
para o negro. Assim, além do histórico que o negro carrega consigo, os preconceitos
se multiplicam em cada nível social que atinge, dificultando constantemente a sua
inserção na sociedade e a efetivação de seus direitos sociais.
A população negra parece, então, estar ainda em um estado de
inferioridade, senão absoluto, altamente considerável. O preconceito racial é
presente na dinâmica social, mormente se considerada a proximidade histórica dos
relatos de preconceito e rejeição desnudada que sofreram.80
Lado outro, em um discurso inautêntico, é propagada a ideia de que este
preconceito estaria ligado apenas e tão somente à desigualdade social, isto é, seria
dirigido aos pobres e não aos negros81. Revela-se neste sentido o mito da
democracia racial.
O mito da democracia racial torna visível a necessidade de a sociedade se
auto afirmar enquanto não preconceituosa, com a falsa ideia de, assim, afastar
qualquer estereótipo ou paradigma existente em relação à raça e à cor. Se desvela
como uma tentativa inócua de não enfrentar um problema que perpassa o histórico
mais recente da sociedade brasileira e, por conseguinte, a formação do modelo
discriminatório velado nos dias de hoje.
78
JACCOUD, Luciana. Op. cit., p. 55.
HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro:
Graal, 1979.
80
O histórico da escravidão ainda “afeta negativamente a vida, a trajetória e inserção social dos
descendentes de africanos em nosso país”. MUNANGA, K.; GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje.
São Paulo: Global, 2006. p. 17.
81
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raça e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. p.
67.
79
35
Batisde e Fernandes assim trabalham a ideia do receio em se assumir o
preconceito:
Nós brasileiros, dizia-nos um branco, temos preconceito de não ter
preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto [o
preconceito racial] está arraigado no nosso meio social’. Muitas respostas
negativas [que dizem não haver preconceito racial no Brasil] explicam-se
por esse preconceito de ausência de preconceito, por esta fidelidade do
82
Brasil ao seu ideal de democracia racial.
É difícil, no entanto, negar o fato de que ainda hoje vivenciamos situações
rotineiras que demonstram um preconceito velado e uma ideia subentendida sobre a
exclusão de grupos da sociedade, tais como negros, pobres, índios, etc. As próprias
convenções sociais, decorrentes da tradição considerada, escondem uma
discriminação persistente, a qual ainda reflete nas condições sociais dos indivíduos
marginalizados.
Basta uma rápida análise em relação aos ocupantes de cargos dotados de
poder, bem como das universidades brasileiras e do mercado de trabalho no que
concerne aos profissionais cuja formação dependa do ensino superior, para se
verificar que a predominância em todos eles é de brancos que, em regra, são
advindos de uma condição financeira mais estável. Não seria sequer necessário que
se fizesse pesquisa estatística para esta constatação, embora esta exista, pois uma
observação geral da sociedade e de suas camadas é suficiente para verificar os
estereótipos criados diante de grupos excluídos.
Ninguém se assusta quando se depara nas ruas com um mendigo negro,
que não possui condições de se alimentar ou de se vestir, fazendo valer o que se
pode conceber como uma invisibilidade social diante daquele sujeito. Entretanto, se
este mendigo é de pele branca, loiro, com os olhos claros e advindo de uma família
de classe social média, é motivo para repercussão em toda a mídia nacional e para
sua imediata recondução para o meio que, supostamente, lhe é adequado. A
dignidade de um seria mais importante que a do outro pela cor de sua pele ou
condição social? Esta pergunta parece simplesmente ignorada pela sociedade.
Nas novelas, nos filmes e nos teatros, a figura responsável pelo serviço
doméstico, muitas vezes designada como "criada", é quase sempre uma pessoa
negra e de origem humilde, enquanto doutro lado encontram-se os patrões brancos
82
BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo.
São Paulo: Unesco-Anhembi, 1955. p. 123.
36
e bem sucedidos, e nada há de se estranhar. A sociedade parece já ter absorvido
estes estereótipos, sem nem mesmo perceber a imperiosidade de se derrubá-los.
Visualiza-se ainda que a questão da negritude está intimamente ligada à pobreza.
É fato que a partir da Constituição Federal de 1988, a qual se reveste de um
caráter promotor, conforme se verá adiante, instituiu-se como objetivo fundamental
da República a erradicação de desigualdades sociais e regionais, bem como a
vedação do preconceito e discriminação em virtude de raça, cor, sexo, religião, etc,
retomando a discussão referente ao preconceito racial, até então velada e
encoberta. Com base em tais premissas e no caráter dirigente da norma
constitucional, visando efetivar os direitos sociais de forma equalizada, surgiram
ações governamentais com um objetivo aparentemente compensatório do histórico
de discriminação sofrido pelos grupos excluídos.
A luta pela garantia do exercício da cidadania e da efetividade dos direitos
sociais pelo negro ganha agora uma nova aliada, conhecida como “ação afirmativa”
por meio da qual se efetivou, como será mais aprofundado adiante, o sistema de
cotas para garantir o acesso de negros e pobres ao ensino superior brasileiro. A
discussão proposta, focando-se na questão “racial” é sensivelmente relevante,
especialmente no Brasil que possui a segunda maior população negra do mundo,
existindo cerca de 49,5% de negros na população, os quais encontram-se,
invariavelmente, sofrendo por problemas sociais dos mais graves.83
Neste sentido e conforme já adiantado, a (re) construção histórica se faz
necessária a fim de se buscar a melhor interpretação das medidas atualmente
adotadas para enfrentamento das questões de desigualdade e preconceito racial
e/ou social. O cerne do assunto envolve, então, a legitimidade de programas de
cotas e o seu potencial para a garantia da efetividade do direito social à educaçao e
do direito fundamental à igualdade aos grupos historicamente excluídos.
O entendimento sobre programas de cotas carece de uma verificação
aprofundada da (in)justiça social cultivada em relação àqueles ora beneficiados. Não
se pode abandonar, neste diapasão, a perspectiva moral na apreciação do Direito, a
83
IPEA. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição. Brasília, 13 de
maio
de
2008.
p.
1
16.
Disponível
em:
<
http://www.afrobras.org.br/pesquisas/pesquisa_ipea_desigualdades_raciais.pdf>. Acesso em: 18 de
agosto de 2013.
37
qual deve ser fundida enquanto moral coletiva com a vida política dos cidadãos: é
basicamente o que Dworkin chama de integridade.84
Assim, com base na perspectiva da hermenêutica filosófica de Gadamer,
para que a questão referente às cotas seja melhor compreendida, é necessária a
realização de uma reflexão sobre o ser que ocupa o texto da lei, observado-se toda
a tradição e a história efeitual que lhe acompanha. Neste sentido, busca-se ir além
do texto, compreendendo o “ser” que reside na legislação entificada, e buscando a
essência da problemática.
Em verdade, conhece-se a tensão existente entre texto e norma, no sentido
de que norma é o sentido que se dá ao texto, enquanto que à medida que o texto é
ente, a norma é o seu ser. Significa, pois, que a explicação do texto como coisa, é
como ele deve ser entendido.
Nos ensinamentos de Rafael Lazarotto Simioni:
Na dimensão hermenêutica encontramos o ser dos entes objetificados na
dimensão apofântica. Para a decisão jurídica ter acesso à dimensão
hermenêutica, ela precisa perguntar e refletir sobre o sentido da
problemática do caso concreto. Ela precisa deixar florecer a intuitividade
hermenêutica do mundo prático sobre o problema concreto, mas ao mesmo
tempo estar atenta às ideologias e tradições inautênticas que interferem na
85
compreensão da problemática do caso.
Por isso, no anseio de se encontrar o melhor aspecto hermenêutico do
assunto em comento, não se pode permitir uma análise sob um panorama unilateral
e desprovido de qualquer apreciação do histórico e da tradição da sociedade na qual
ele é inserido. A redução hermenêutica à opinião do autor é tão inadequada como
nos acontecimentos históricos, a redução à intenção dos que atuam neles.86 A
questão referente ao preconceito racial exige uma análise mais zelosa de sua
problemática.
Deve-se, além disso, conscientizar-se que a interpretação que agora é feita
não é impassível de modificação, posto que pode se adequar a outras situações em
outros momentos históricos. Conforme Gadamer, a compreensão é sempre passível
84
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. p. 213.
85
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão para
além do constitucionalismo e democracia. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MÔNACO,
Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (Orgs.). Constitucionalismo e
Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 157.
86
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p. 549.
38
de modificação, de forma que as opiniões prévias e os pré-juízos inerentes à ideia
de “ser” não devem se caracterizar como arbitrários, sob pena de impossibilitar o
alcance das várias probabilidades de interpretação.
É preciso considerar para a construcao de um horizonte autêntico, o fato de
que, historicamente, o Brasil é marcado por um modelo de poder que lida muito bem
com a dinâmica da opressão e desigualdades existentes em seu âmbito, tais como
aquelas enfrentadas pelas classes excluidas, a exemplo de negros, pobres,
marginalizados, entre outros87. Como se pode desconhecer a dificuldade daqueles
advindos do ensino de base público no ingresso de universidades públicas federais,
em vista da divergência entre qualidade de ensino? Como ignorar que outros
fatores, tais como a vida no fio da navalha daqueles que estão abaixo da linha da
miséria, lutando diariamente contra a fome e saúde precária, influenciam
diretamente no desenvolvimento das capacidades do indivíduo? Como esquecer que
os negros, pardos e índios, sofrem ainda hoje discriminação e parecem encontrar
obstáculos muito maiores em seu caminho para o desenvolvimento profissional?88
Muito além disso, o próprio modelo liberal se encaixa com perfeição nos
desígnios dos donos do poder, conforme será falado adiante, transferindo
insistentemente a culpa do insucesso do indíviduo a ele próprio, no afã de se
absolver o sistema.
Na ótica de Gadamer, as perguntas permitem vislumbrar aquilo que ficou
suspenso. Deve-se, antes de tudo, compreender os questionamentos e provar as
87
As desigualdades persistentes na sociedade brasileira podem ser exemplificadas pela discussão
que circunscreveu a PEC das domésticas. Diante da novação no ordenamento jurídico que passou a
abranger mais direitos aos trabalhadores domésticos, inúmeros questionamentos sobre o risco destas
medidas aumentar o desemprego e causar prejuízos à sociedade surgiram, como lembra Lenio
Streck, no seu artigo “A PEC das domésticas e a saudade dos bons tempos” na Coluna da CONJUR.
Em seus dizeres: “A revolta contra o fim da desproteção jurídica do trabalhador doméstico (e a
consequente reação à Emenda Constitucional) é o sintoma de uma sociedade que ainda não
conseguiu virar uma importante página da história: a que revela a existência de um estrato de
pessoas juridicamente inferiorizadas”. STRECK, Lenio Luiz. A PEC das domésticas e a saudade dos
“bons tempos”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pecdomesticas-saudade-bons-tempos>. Acesso em: 17 mai. 2013.
88
Cf. Vera Mari Candau, “No momento atual é possível constatar que mudaram as formas, as
linguagens e algumas práticas sociais frentes às questões relacionadas à raça, ao gênero e a classe,
porém, a situação de desvantagem em que os negros vivem mede-se pelas disparidades
multidimensionais de que são vitimas e que se atualizam através do encobrimento de dissimulação”.
In: CANDAU, Vera Maria et al. Somos todos iguais? Escola, discriminação e educação em direitos
humanos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 23.
39
variadas possibilidades de sentido. Indica que “aquele que quer pensar tem que
perguntar”.89
Seria possível, então, encontrar uma única resposta correta para um caso
concreto, aqui revelado como o da latente discriminação sofrida pelos negros e da
legitimidade de programas governamentais para a redução daquela?90 No nível da
dimensão hermenêutica e não da sintaxe, esta busca se dá por um sentido mais
autêntico e mais originário, visando a melhor solução jurídica. Hoje, neste momento,
existe uma melhor resposta, que, todavia, pode não ser a melhor resposta amanhã.
Feitas estas considerações e diante dos questionamentos apresentados
como forma de suscitar o debate aqui pretendido, torna-se importante a apreciação
do que seja uma ação afirmativa. Apenas assim, será possível, em vista do histórico
relatado, encontrar um horizonte autêntico que sustente a (in)aplicação e
(in)efetividade deste instrumento, no cenário de um estado social e promotor.
1.2. Breves linhas sobre as ações afirmativas
As ações afirmativas, assim entendidas como aquelas medidas que visam
minimizar ou erradicar a desigualdade e discriminação sofrida por grupos
tradicionalmente excluídos, funcionam como um instrumento hábil a garantir a
equalização de oportunidades especialmente em relação à efetividade de direitos
sociais.
Corroborando o conceito acima, Marcelo Campos Galuppo:
As ações afirmativas podem ser definidas como medidas públicas ou
privadas, coercitivas ou voluntárias, implementadas com vista a promoção
da inclusão social, jurídica e econômica de indivíduos ou grupos
91
sociais/étnicos tradicionalmente discriminados por uma sociedade .
89
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica
Op. cit., p. 551.
90
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luis Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
91
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença. Estado democrático de direito a partir do
pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.17.
40
Assim, a partir do histórico apresentado, denota-se que parece haver o
enraizamento de uma cultura, na qual, embora exista uma aparente aceitação da
heterogeneidade do povo, vários grupos étnicos e sociais são mantidos em uma
área de discriminação e desigualdade, onde há evidente restrição de oportunidades
e direitos, fazendo-se mister a atuação, principalmente estatal, para a minimização
de seus efeitos.
Esta área de discriminação é formada em decorrência de diversos fatores de
segregação que se associam, principalmente, à pobreza, das mais distintas formas
possíveis, fundindo vários comportamentos excludentes e confundindo uma série de
ideologias liberais burguesas. Neste contexo, pode-se também vislumbrar a questão
das formas díspares de poder, as quais são heterogêneas e se encontram em
constante transformação, isto é, inexiste uma emanação homogênea de poder.
Neste viés, o poder exercido, majoritariamente, por indivíduos considerados
intelectuais e que contribui para a exclusão e segregação social, não é algo unitário,
podendo, ao revés, ser considerado como prática social, construída historicamente.
O discurso proferido pelos detentores do poder, a serviço do capitalismo, traduziu-se
por muito tempo (e talvez se mantenha até a atualidade), como verdades, as quais
persuadiam a sociedade, distorcendo as mencionadas ideologias liberais. Segregase a sociedade entre aqueles que têm o poder, manifestado de várias formas, e
aqueles que não o possuem.92
Vale lembrar, neste diapasão, a ideia propagada de que o preconceito
existente no Brasil é social e não racial (O “mito” da democracia racial). Em verdade,
parece que este se reveste da característica de um discurso de poder para que o
foco do problema seja desviado.93
92
Para maior esclarecimento do assunto, oportuno lembrar que Michel Foucault aborda na obra
“Microfísica do Poder” a heterogeneidade do poder, mencionando como manifestação deste e
consequente segregação, instituições estatais que foram criadas com o objetivo de excluir uma
parcela da sociedade, tais como os hospitais e prisões. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.
Trad. Roberto Machado. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004.
93
O discurso de poder, baseado no sucesso dos excluídos por “mérito próprio” é propagado
constantemente como uma forma de transferir a responsabilidade ao indivíduo, independentemente
de sua história, sexo, cor, raça ou classe social. Recentemente, a Revista “Veja”, edição de 18 de
outubro de 2012, noticiou em sua capa a história de Joaquim Barbosa Gomes com um menino negro
e pobre, cuja mãe “também nasceu analfabeta” e que hoje se tornou ministro do Supremo Tribunal
Federal. Estaria ai o retrato do sucesso pessoal e da inexistência de preconceito? Sem aprofundar
em todas as críticas que tal publicação merece, deve-se ressaltar apenas que as exceções não
podem ser tidas como regras, sob pena de velar a realidade existente e permitir a circularidade de
uma compreensão baseada em um horizonte inautêntico. A mídia, em geral, especialmente a mídia
voltada para interesses específicos, parece tentar sustentar a inexistência do racismo, do preconceito
e das desigualdades, como forma, talvez, de impedir que providências concretas sejam efetivamente
41
Diante deste cenário e buscando evitar a exclusão em virtude de discursos
de poder, procura-se minimizar a marginalização de alguns grupos, a qual é
decorrente de estereótipos negativos criados durante a composição da sociedade.
Para tanto, se aposta na implementação de ações afirmativas, cuja finalidade
precípua é buscar a erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as
desigualdades socias e regionais, tal qual previsto no texto constitucional. Neste
sentido, oportuno salientar o importante papel do Estado Democrático de Direito na
consecução destes objetivos.
Streck afirma,
A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente
ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissolúvel
que exsurge aquilo qe se pode denominar de plus normativo do Estado
Democrático de Direito. Mais do que um classificação de Estado ou de uma
variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma
síntese das fases anteriores, agregando a construção das confições de
possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas
pela necessidade do resgate das promessas da modernindade, tais como
igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentasi. A
essa noção de Estado se acopla o conteudo das Constituições, atraves do
ideal de vida consubstanciado nos princípios que apontam para uma
mudança no status quo da sociedade. Por isso, como já referido
anteriormente, no Estado Democrático de Direito a lei (Constituição) passa
a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca
do desiderato apontado pelo texto constitucionl, entendido no seu todo
94
dirigente-principiológico.
Assim, busca-se equalizar oportunidades entre aqueles historicamente
desfavorecidos e os grupos que, pela sua composição ou pelo seu lugar
determinado pelo chão histórico retro definido, são dominantes.
Se constituindo enquanto políticas sociais, as ações afirmativas visam
equalizar a igualdade de oportunidades entre os indivíduos, almejando a efetividade
da chamada igualdade material, a qual será mais adiante aprofundada. Não são
programas que garantem a concessão de direitos de forma privilegiada, mas tão
somente igualam a oportunidade de acesso de todos aos direitos sociais.
Poder-se-ia, inclusive, afirmar que cuidam as ações afirmativas de um
instrumento que efetiva uma justiça compensatória. Esta ideia parte do pressusposto
tomadas. É um discurso de poder que fecha os olhos da sociedade aos problemas enfrentados por
ela própria. Daí a dificuldade em se fazer compreender programas como o referente às cotas, já que
a visão de muitos está embaçada em virtude do véu de falácias e distorções proporcionado por tal
compreensão inautêntica.
94
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção
do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 53-54.
42
que tal instrumento busca a reparação de uma “dívida social” existente em virtude de
um histórico de abusos e desproporcionalidades, os quais culminaram na
estratificação da sociedade.
Vale ainda mencionar que a sua observância pode resultar também na
diversificação de indivíduos em meios que, tradicionalmente, são dominados por
elites, cujos formadores, em regra, advém de classe social privilegiada, composta
em sua grande maioria por homens brancos. A mais visível segregação no que
concerne aos meios sociais, se encontra no meio acadêmico e no meio profissional,
mormente no que concerne às profissões intelectuais, bem como aquelas que
exigem formação superior específica.
Ainda em relação à exclusão nos meios acadêmicos e profissionais, poderse-ia suscitar a ideia norte americana de valorização do self-made man, que retrata
um indivíduo que alcança o seu sucesso pessoal e/ou profissinal por meio de seu
mérito próprio, isto é, através unicamente de seus esforços. Parece, então, que
diante desta questão, aqueles excluídos das universidades ou de bons empregos,
assim o estão, pois não tiveram competência, capacidade ou vontade suficiente para
alcançar estes níveis, merecendo, via de consequência, a segregação ou exclusão
sofrida.
Entretanto, percebe-se que se trata de um vestígio do liberalismo que
transfere ao indivíduo as responsabilidades por aquilo que poderia ser considerado
como suas próprias falhas, eximindo o Estado e a sociedade de qualquer encargo
em relação ao insucesso dele. É um discurso que, em sua essência, acaba por
neutralizar a desigualdade e, consequentemente, reforça-la, sendo que enquanto um
discurso de ordem liberal, este ratifica as falhas do sistema pela existência de casos
fortuitos que, todavia, não comprovam a regra na sua plenitude.
Está ótica liberal, todavia, parece não ser a mais ajustada, posto que é
preciso que se tenha em mente que os indivíduos se inserem em grupos
diversificados, de origens diferentes e, portanto, com condições variadas de alcance
ao sucesso, não bastando que se garanta apenas e tão somente um caminho livre
para o esforço. Mesmo porque, questões de saúde e educação, por exemplo, em um
mundo altamente competitivo, influenciam sensivelmente a busca pelo sucesso,
sendo que aqueles que estão garantidos nestes aspectos possuem imensa
vantagem em relação àqueles que encontram dificuldades nas questões basilares
de sobrevivência.
43
As questões relativas à igualdade serão mais aprofundadas no capítulo 3 do
presente trabalho, todavia, necessário destacar desde já que o discurso meritório em
prol de uma suposta isonomia dos indivíduos é extremamente danoso para a própria
sociedade. Ele se reveste de uma veracidade que não existe e vela a discriminação
e a desigualdade, tornando ainda mais difícil o combate a elas. A nocividade deste
discurso é tamanha que muitas vezes ele é interiorizado pelas próprias classes
excluídas que acabam por aceitar, sem assim assumir, uma posição de
inferioridade.95
Ao se afastar, todavia, deste panorama para melhor compreendê-lo, é de
fácil visualização que estas dificuldades geradas pela diferença na colocação do
indivíduo na sociedade impedem que o caminho a ser traçado pelo mérito próprio
seja o mesmo para todos. É possível até mesmo realizar um contraponto, abordando
a teoria marxista que já mencionava que “os que no regime burguês trabalham não
lucram e os que lucram não trabalham”.96 Se assim ocorre, o esforço individual não
se configura como o caminho para o êxito.
Diante deste cenário, torna-se imprescindível que o Estado garanta iguais
oportunidades e condições de acesso a direitos sociais, a fim de equalizar as
condições de competitividade dos indivíduos. Apenas desta forma, todos poderão
desenvolver suas reais capacidades e então conquistar suas vitórias, em
decorrência de seus méritos.97 Eis aqui a formula do nosso self made man, quando
bem aplicada.
O individualismo valorizado e estimulado pelo capitalismo, decorrente dos
fundamentos burgueses, não parece se encaixar no teor do que atualmente se
concebe como Estado Democrático de Direito, mormente se observado que a lógica
burguesa é a da exploração do homem pelo homem. A proposta do Estado Social,
95
[...] Boa parte da população negra brasileira foi e é doutrinada, a frequentemente, se sentir culpada
da violência da qual é, na verdade, vítima. “Se não estudam mais, é porque não querem”, “se
precisam trabalhar, então ai é que deveriam estudar mais” e colocados numa posição de inferioridade
e de subordinação: as frases são suficientemente eloqüentes e ainda, infelizmente podemos escutálas até mesmo da própria população negra, já que sabemos que uma grande parte das mulheres e
dos homens negros (adultos ou crianças) no Brasil ainda incorpora este papel/lugar da inferioridade
como sendo um componente quase “natural” e inerente à raça negra, fazendo assim se perpetuar a
possibilidade do exercício arbitrário dessa mesma violência e dominação. ALMEIDA, Marilise Miriam
de Matos. Ações Afirmativas: dinâmicas e dilemas teóricos entre a redistribuição e o reconhecimento.
In: II Seminário Nacional – Movimentos sociais, participação e democracia. Anais. Florianópolis:
UFSC, 2007. p. 465-476.
96
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 54.
97
Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de RAWLS, John. Justiça com equidade.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
44
em decorrência da lógica do Estado Democrático, vem da solidariedade, última das
professias da Revolução Francesa.98
É o individualismo considerado como um instrumento que gera competições
no seio da sociedade e um comportamento egoísta dos indivíduos, o que poderia
sustentar até mesmo a própria necessidade da desigualdade social, já que a vitória
de uns, dependeria da derrota de outros.
Assim, detentoras de um importante papel no cenário brasileiro pós
Constituição de 1988, as ações afirmativas são também adotadas em diversos
outros
países,
tendo
sido
inicialmente discutidas na
Índia,
onde muitas
desigualdades ainda prevalecem. O ministro Ricardo Lewandowski, relator da ADPF
186-DF, fez em seu voto menção ao surgimento das ações afirmativas naquele país,
haja vista tratar-se de um local com rídiga estratificação e desigualdade social.99
O campo de discussão referente às ações afirmativas foi posteriormente
ampliado quando estas passaram a fazer parte do direito norte-americano, sendo
aplicadas com a finalidade de reduzir algumas discriminações ali predominantes.
Empregou-se a expressão “ação afirmativa” pela primeira vez, na Executive Order
nº. 10.925, editada pelo Presidente John F. Kennedy, na oportunidade da criação do
Presidente’s Comitee on Equal Employment Opportunity.100
Ainda em relação à sociedade norte-americana, em que pese o banimento
formal dos atos discriminatórios, decorrente da Civil Rights Act de 02 de julho de
1964 que implementou normas que visavam a coibição de discriminação em setores
como educação, emprego, habitação, entre outros, as mudanças sociais pretendidas
pelas minorias não foram efetivamente percebidas, sendo seus efeitos discretos e
insuficientes.
Mais tarde, a Executive Order nº. 11.246, editada pelo Presidente Lyndon B.
Johnson (1908-1973), em 25 de setembro de 1965, estabeleceu medidas efetivas de
98
Para mais esclarecimentos, recomenda-se a leitura de STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso:
constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
99
Referindo-se ao quadro indiano de desigualdade social, Lewandoksi afirma que “Com o intuito de
reverter esse quadro, politicamente constrangedor e responsável pela eclosão de tensões sociais
desagregadoras e que se notabilizou pela existência de uma casta “párias” ou “intocáveis”
proeminentes lideranças políticas indianas do século passado, entre as quais o patrono da
independência do país, Mahatma Gandhi, lograram aprovar, em 1935, o conhecido Government of
India Act.” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito
fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.)
100
MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte americano. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.p. 88.
45
combate à discriminação étnica, através do recrutamento, contratação, promoção,
treinamento e outras formas.101
Assim, buscando a efetividade do combate à discriminação, outrora não
alcançada, em 1972, o Presidente Nixon, por meio do plano Filadélfia, implementou
legalmente a possibilidade de criação das denominadas “discriminações positivas”,
tolerando a aceitação de fatores como cor, sexo e raça, desde que fossem para
beneficiar aqueles que, historicamente, forma prejudicados pelas restrições de
oportunidade. Mais adiante, o movimento das ações afirmativas se manteve nos
Estados Unidos,
Mais recentemente, em 1997, Martin Luther King III, anunciou a criação da
"Americans United for Affimative Action" (AUAA), organização sediada em
Atlanta visando a manutenção e ampliação das ações afirmativas como
medida de proteção as oportunidades iguais para todos, verbis in verbis:
"o programa de ações afirmativas permanece como garantia fundamental
para proteção das oportunidades iguais. Ressalta que esta foi a razão pela
qual meu pai e outros profissionais que trabalhavam com direitos civis
defendiam a ação afirmativa tão fortemente em suas vidas, e é por esse
102
motivo que temos que apoiar tais programas contra os ataques atuais".
A par desta mudança legislativa, alguns casos concretos surgiram e
corroboraram com a discussão sobre a implementação de ações afirmativas como
forma legítima de se garantir a efetividade de direitos sociais às minorias
prejudicadas. Um dos casos pioneiros foi o caso Norwood Vs. Harrison, o qual
objetivou decidir se seria possível o governo federal punir por meio da restrição de
concessão de livros, uma entidade inteiramente privada que se julgava
completamente livre para adotar uma política de admissão de alunos discriminatória.
O julgamento da Corte foi no sentido de que tais escolas não poderiam
receber qualquer tipo de auxílio governamental e nem seus alunos poderiam receber
qualquer incentivo financeiro, sob pena de estarem contribuindo para a
discriminação, a qual justificaria a intervenção judiciária.103
A partir de então, inúmeros outros casos surgiram, sendo que, entre eles,
pode-se dizer que o mais notável caso norte-americano foi aquele envolvendo a
101
Ibidem. p. 91.
LORENTS, Lutiana Nacur. A luta do direito contra a discriminação no trabalho. São Paulo: Juris
Sintese IOB, jan-fev. 2006. Disponível em: <http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes/pub61.html>.
Acesso em: 15 mai. 2013.
103
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito
como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.
95-98.
102
46
Regents of the University of California e o candidato Allan Bakke. Este será no
presente trabalho considerado como o paradigmático caso Bakke, cuja leitura
realizar-se-á a partir de Ronald Dworkin.
O litígio mencionado se deu em meados de 1978, quando à Corte norteamericana foi apresentada a discussão acerca de um programa de admissão
diferenciado adotado na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em
Davis, o qual reservava 16% (dezesseis por cento) das vagas para o curso de
medicina aos candidatos que fossem assim classificados como minorias, sendo que
para as vagas restantes, todos, inclusive indivíduos pertencentes às minorias,
poderiam concorrer.
Diante deste cenário, Alan Bakke, não se encaixando em nenhum grupo
considerado como minoria e irresignado com o aparente privilégio concedido a
determinados candidatos e com o seu insucesso no ingresso ao ensino superior, em
detrimento de outros candidatos que obtiveram nota inferior a sua e foram
beneficiados pelas cotas, propôs uma ação judicial em face da Universidade,
aduzindo violação ao direito à igual proteção das leis e afronta ao Título VI da Lei
dos Direitos Civis de 1964.
No julgamento do caso, embora o relator, Juiz Lewi Powell, tenha
reconhecido a compatibilidade de ação afirmativa com a Constituição norteamericana, entendeu que na situação concreta analisada, os requisitos de validade
destas ações não estariam presentes, anulando o ato da Universidade e
concedendo a Allan Bakke o direito de matrícula na Universidade.
A importância do caso Bakke se faz presente, especialmente, por ter sido ele
palco de valorosos debates e discussões sobre a questão referente às ações
afirmativas, tornando-se referência nesta seara, já que, em que pese a decisão
desfavorável à Universidade, naquela oportunidade a corte norte-americana
ressaltou e reafirmou a imperiosidade dos programas de discriminação positiva e a
validade daqueles que possuem como critério a raça.
Com este pano de fundo, Dworkin afirma:
Os quatro juízes que votaram para apoiar o programa de Davis não
afirmaram que classificações raciais “benignas” deviam atender apenas ao
padrão rotineiro – isto é, que é possível que servissem a um objetivo social
útil. Contudo, tampouco acharam apropriado usar o mesmo padrão
elevado da investigação rigorosa utilizado para julgar classificações raciais
que prejudicam as minorias. Sugeriram um padrão intermediário, que é o
47
de que classificações raciais reparadoras “devem servir a objetivos
governamentais mais importantes e devem estar substancialmente
relacionadas com a obtenção desses objetivos”. Sustentaram que o
propósito da escola de medicina de Davis, de “reparar os efeitos da
discriminação social passada”, era suficientemente importante, e que a
classificação racial usada em Davis estava “substancialmente relacionada”
104
com esse objetivo.
Em terras brasileiras, a primeira manifestação de ações afirmativas se deu
com a Lei nº. 5.465 de 1968, conhecida como a “Lei do Boi”, que previa a reserva de
50% (cinquenta por cento) das vagas nos estabelecimentos de ensino médio
agrícolas e nas escolas superiores de agricultura e veterinária mantidos pela União,
a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que
residissem com suas famílias na zona rural. Previa ainda a reserva de 30% (trinta
por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que
residissem em cidades ou vilas que não possuíssem estabelecimentos de ensino
médio.
Naquele mesmo ano, o Ministério do Trabalho, bem como o Tribunal
Superior do Trabalho se manifestaram a favor da criação de uma legislação que
obrigasse as empresas privadas a reservar um percentual de vagas para
empregados negros, conforme a atividade e a demanda.105
Atualmente, pode-se ainda citar, como programa decorrente de ação
afirmativa, a existência de cotas para portadores de deficiência em empresas com
mais de cem trabalhadores e a reserva obrigatória de vagas em concursos para
portadores de deficiência, estas últimas previstas constitucionalmente no art. 37,
inciso VIII, da Constituição da República.
Temos ainda a Lei nº. 12.034/2009 passou a obrigar o percentual mínimo de
30% (trinta por cento) de mulheres em partidos políticos, visando o combate à
discriminação em decorrência do critério “sexo”. Em relação a este programa, apesar
de ter sido um grande avanço na tentativa de resolver a baixa participação feminina
na política, o resultado prático não foi o esperado.
Isso porque, os partidos políticos reservam as vagas, conforme determinado
por
legislação,
e
lançam
as
candidaturas
femininas,
todavia,
após
tais
procedimentos, não fornecem o apoio necessário, inclusive financeiro, para que as
campanhas das mulheres se desenvolvam e tenham êxito. Assim, é possível arguir
104
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 465.
AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p.
70.
105
48
que, em determinados casos, os partidos registram as candidaturas femininas
apenas para cumprir a formalidade legalmente exigida, sem, no entanto, realizar
qualquer campanha que possa levar à eleição daquelas, a fim de aumentar
efetivamente a participação feminina na política.
O Ministério Público Eleitoral investigou no Rio de Janeiro partidos políticos
que utilizaram mulheres como “laranjas” para alcançar o percentual de 30% (trinta
por cento) das cotas nas eleições, havendo denúncia, inclusive, de mulheres que
nem sequer tinham conhecimento de suas candidaturas.106
Embora o trabalho não seja direcionado às cotas de partidos políticos, tais
considerações estão sendo aqui abordadas, com o objetivo de demonstrar que, não
obstante a imperiosidade das cotas e a relevância destas para a minimização de
desigualdades históricas, em qualquer caso de ação afirmativa, é preciso que esteja
atento para eventuais desvios de finalidade. Não basta a implantação das cotas; é
preciso levá-las a sério.
Sob esta perspectiva, as ações afirmativas efetivadas como forma de
correção de possíveis distorções no âmbito da sociedade, podem também ser
analisadas como resposta ao Estado Social e suas demandas. Isso porque, o
modelo social se implantou no Brasil explicitamente, a partir da Constituição de
1988, surgindo com ele os direitos sociais e, em contrapartida, os seus ônus.
Nesta esteira, os ônus sociais ganham relevância diante das benesses
concedidas por este novo modelo de Estado. A necessidade de se conceder função
social à propriedade, ao contrato e à empresa é um típico retrato de ônus social, em
decorrência do modelo do Estado após a Constituição de 1988.
Diferentemente não ocorre com o trabalho ou com a educação, sendo que
para esta última, em especial, igualmente deve se dar uma finalidade social
adequada. Entende-se, pois, a imperiosidade de se considerar a finalidade das
ações afirmativas concretizadas como finalidade decorrente dos ônus sociais
gerados em decorrência dos direitos sociais resguardados.
Ao se falar em ações afirmativas, no entanto, deve-se reiterar a premissa de
que são elas medidas necessariamente transitórias. Isso porque, a sua permanência
é necessária apenas enquanto seus efeitos estiverem atingindo sua finalidade
106
Para cumprir cota, partidos usam candidatas laranjas. O Estado de São Paulo. Noticias
Procuradoria Regional Eleitoral no Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.prerj.mpf.gov.br/noticias/o-estado-de-s-paulo-para-cumprir-cota-partidos-usamcandidatas-laranjas/>. Acesso em: 15 mai. 2013.
49
principal, isto é, enquanto houver a redução de desigualdades estabelecidas e da
segregação entre os grupos.
Não se pode, portanto, permitir que sejam os efeitos das ações afirmativas
perenes, pois, a partir do momento em que estas alcançarem uma equalização de
oportunidades entre os grupos, erradicando ou, ao menos, minorando os
estereótipos deixados por um histórico de discriminação, não fará mais sentido que
os seus efeitos sejam mantidos. Se assim ocorresse, estar-se-ia criando novas
formas de segregação social e privilégios indevidos para certa parcela da sociedade.
Neste esteio, convém ressaltar que o artigo 1º, item 4, da Convenção
Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial
prevê e admite medidas especiais criadas com o objetivo de assegurar o progresso
de grupos raciais ou étnicos e indivíduos que necessitem da proteção para que
gozem do exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. No que
concerne à possibilidade de consideração da Convenção retromencionada como
parte do ordenamento jurídico brasileiro, apenas para que não pairem dúvidas,
convem destacar que a eliminação de discriminação, diretamente associada à
garantia de igualdade/isonomia, deve ser efetivamente considerada como direito
fundamental, uma vez que os direitos sociais assim são considerados no interim da
Constituição de 1988.107
Em relação ao caráter fundamental dos preceitos constitucionais, Ingo Sarlet
Em síntese, firma-se aqui posição em torno da tese de que – pelo menos no
âmbito do sistema de direito constitucional positivo nacional – todos os
direitos, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, estejam
eles sediados no Título II da CF (dos direitos e garantias fundamentais),
estejam localizados em outras partes do texto constitucional ou nos tratados
internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, são direitos
108
fundamentais.
107
Em verdade, deve-se ressaltar a existência de outros dois tratados internacionais, o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, os quais impingiram vinculação e obrigatoriedade aos direitos constantes da Declaração
Universal. Segundo Flávia Piovesan, foi a partir da elaboração desses pactos que se constituiu a
Carta Internacional dos Direitos Humanos, International Bill of Rigths, integrada pela Declaração
Universal de 1948 e pelos dois pactos internacionais de 1966. Desta maneira, a Carta Internacional,
inaugurou o Sistema Global de proteção dos direitos humanos, ao lado do qual, delineava-se o
Sistema Regional de proteção, nos âmbitos europeu, interamericano e africano. PIOVESAN, F.
Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva,
2006. p. 152.
108
SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um
balanço
aos
vinte
anos
da
Constituição
Federal
de
1988.
Disponível
em
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/artigo_Ingo_DF_sociais_P
ETROPOLIS_final_01_09_08.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013.
50
Nesta seara, então, não se olvida do fato de serem os direitos sociais
considerados como direitos fundamentais e de ser o combate à discriminação assim
também caracterizado, o que, consequentemente, gera a necessária observância da
Convenção Internacional de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial109. Assim, retomando o mote da transitoriedade das ações afirmativas, a
Convenção ressalta que tais medidas não devem levar à manutenção de direitos
separados e especiais para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem
alcançado os seus objetivos.
Dworkin também aborda o aspecto temporal das ações afirmativas:
(...) categorias constitucionalmente importantes estariam, então, mudando
constantemente à medida que mudassem as condições sociais ou
econômicas (ou a percepção de tais condições pelos juízes do Supremo
Tribunal), de modo que a minoria em desvantagem de ontem se tornaria a
maioria poderosa de hoje, ou a ajuda de ontem se tornaria o estigma de
110
hoje.
Não parecem ser, portanto, as ações afirmativas os instrumentos mais
adequados para que se enfrente a causa e raíz dos problemas de discriminação ou
desigualdade social. Isso porque, são elas aplicadas para que as distorções já
ocorridas possam ser minimamente remediadas, a fim de garantir uma tempestiva
oportunidade para o individuo já prejudicado.
Neste viés, as ações afirmativas são necessárias em um momento histórico
específico, de acordo com o cenário já moldado no tempo e local, adequando-se às
necessidades atuais. Todavia, devem se dissolver e findar, assim que sejam
atingidos os seus objetivos, isto é, tão logo seja implementada a equalização das
oportunidades almejada.
Se considerada a Constituição de 1988 enquanto Constituição Dirigente, o
que será abordado mais adiante, a questão da transitoriedade das ações afirmativas
pode ser melhor visualizada, no sentido de serem estas necessárias em uma etapa
do desenvolvimento da sociedade, tal como a Constituição em seu caráter dirigente.
109
“Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao
revés, para a promoção de direitos”. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional
internacional. Op. cit., p. 178,179
110
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Op.cit., p. 466.
51
Assim, se a constituição dirigente é feita para morrer, as ações afirmativas também
são.111
Em assim sendo, as ações afirmativas, mormente aquelas que instituem
cotas nas universidades brasileiras, parecem se adequar ao cenário histórico já
delimitado, fazendo-se necessárias no sentido de minimizar as desigualdades já
estabelecidas e atender, via de consequência, os objetivos constitucionais retro
referenciados. Não significa, contudo, que são as cotas a melhor e única forma de
combate à origem das desigualdades.
Nesta esteira, despidos da intenção de tratar da origem e evolução das
ações afirmativas nos sistemas jurídicos de forma mais aprofundada, em virtude
desta pesquisa partir da premissa de legalidade destes programas, mormente após
a Constituição Federal de 1988 e traçadas as linhas gerais sobre o tema, partir-se-á
para a análise mais específica dos programas de cotas implementados para acesso
ao ensino superior público, especialmente aqueles relativos às cotas raciais.
1.3. O julgamento da ADPF 186 pelo Supremo Tribunal Federal e a aprovação da
Lei nº. 12.711/2012
A importância das ações afirmativas enquanto forma de atingir os objetivos
constitucionais, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais parece,
então, se fortalecer quando observado o momento e tempo que a sociedade está
inserida, diante do chão histórico traçado. Neste contexto, a partir da análise
realizada acerca da utilização das ações afirmativas em todos os âmbitos sociais,
como instrumento de combate às mais variadas formas de discriminação, passamos
a analisar as ações afirmativas direcionadas para a garantia do direito à educação,
centradas, especialmente, no ensino público superior.
Inicialmente, é necessário observar que atualmente o acesso ao ensino
superior parece se fazer deveras restrito, estando ainda distante da realidade de
grande parte da população brasileira que, por inúmeros fatores, encontra-se dele
afastada. Estes fatores são os mais variados possíveis, podendo ser citada a
111
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a constituição dirigente. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 39-40.
52
necessidade de trabalho dos jovens para ajudar a família economicamente; falta de
recursos financeiros para arcar com o pagamento de um ensino privado de boa
qualidade; defasagem do ensino público, entre outros.
Dentre os indivíduos excluídos historicamente do ensino superior, os negros
ocupam um espaço considerável112, lembrando que, conforme já abordado, eles
estão constantemente aliados à ideia de pobreza, o que corrobora a restrição no
acesso ao direito social da educação, especialmente quando se trata de ensino
superior. Daí o foco do presente trabalho estar a eles voltado, em que pese a ciência
da importância das cotas sociais criadas pela Lei nº. 12.711/2012.
Diante deste cenário de discriminação, o qual é anualmente confirmado por
estatísticas oficiais que denunciam a minoria negra no ensino superior, algumas
Universidades brasileiras passaram a adotar ações afirmativas, a fim de reduzir as
desigualdades decorrentes da discriminação em virtude de raça, criando,
voluntariamente, programas de cotas para ingresso de negros, pardos e índios em
seus vestibulares.113
A criação de tais programas, todavia, gerou grandes cizânias, em virtude do
fato de que aparentemente as cotas, ao mesmo tempo em que pretendem incluir
grupos historicamente prejudicados pela discriminação, acaba excluindo indivíduos
de grupos dominantes. Embora tenham sido programas criados voluntariamente
pelas Universidades Públicas, a reação dos indivíduos foi, inicialmente, de
estranhamento, gerando uma série de divergências.
Diante deste panorama de contradições e em vista da implementação dos
programas de cotas, o partido político DEM provocou o Supremo Tribunal Federal
mediante Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), a
qual foi proposta em face das cotas instituídas pela Universidade de Brasília – UnB,
cujo julgamento se deu aliado ao do Recurso Extraordinário (RE 597285) proposto
por um aluno da UFRGS em face de cotas raciais ali adotadas.114
112
De acordo com a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2012, divulgada em 28 de novembro de
2012 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o percentual de negros no ensino
superior foi de 35,8% (trinta e cinco vírgula oito por cento) em 2011, enquanto que o número de
brancos entre 18 e 24 anos que estão na universidade atinge 65,7% (sessenta e cinco vírgula sete
por cento) do total. A pesquisa aponta ainda que entre as pessoas de cor preta ou parda, 11,8%
(onze vírgula oito por cento) não sabem ler nem escrever, enquanto entre as de cor branca, esse
percentual cai para menos da metade, a saber, 5,3% (cinco vírgula três por cento).
113
É o caso, por exemplo, da Universidade de Brasília – UnB, cujo programa foi alvo da ADPF
186/DF, além de outras universidades, tais como a UFRG, UFRJ, entre outras.
114
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Op. cit.
53
Naquela oportunidade o DEM questionava a reserva de 20% (vinte por
cento) das vagas da UnB a candidatos negros e aduzia que tal medida criava o que
chamava de “tribunal racial”, ferindo, consequentemente, os ditames de igualdade
da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, após dois dias de
julgamento considerou a validade das cotas raciais adotadas pelas universidades
brasileiras, sendo que em passagens de alguns votos foi declarado louvor a tais
medidas, que foram consideradas pioneiras e dignas de serem observadas como
exemplo.115
Assim, na data de vinte e seis de abril de 2012, após longos debates e
discussões acaloradas sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela
constitucionalidade das ações afirmativas instrumentalizadas por meio da criação de
cotas raciais para ingresso em Universidades Públicas, já adotadas. A questão
ganhou repercussão nacional e representou o assentamento de um importante
posicionamento do Supremo Tribunal Federal no Brasil no que concerne às políticas
de cotas.116
Neste cenário, cerca de quatro meses depois, quando o julgamento do
Supremo Tribunal Federal ainda sofria fortes questionamentos, o tema de cotas
voltou a ser destaque com a aprovação e sanção da Lei nº. 12.711/2012. A
mencionada lei decorre do Projeto de lei nº. 180/2008 que tramitou no Senado por
cerca de quatro anos, até sua aprovação. Em sua origem, este era o Projeto nº.
73/99, tendo lenta tramitação desde sua apresentação, perfazendo, portanto, 13
(treze) anos de espera.
A Lei nº. 12.711 de 29 de agosto de 2012, possui como objeto dispor sobre o
ingresso de estudantes nas universidades federais e nas instituições federais de
ensino técnico de nível médio. Fica estabelecido, a partir de então, o dever de
observância da reserva de cotas a todas as Universidades Federais de Educação
Superior vinculadas ao Ministério da Educação e às Instituições Federais de ensino
técnico. Visualiza-se, então, que a aludida legislação surgiu após a atuação do
115
O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPF 186/DF aduz:” Eis, aqui, demonstrada a
importância da aplicação das políticas de ação afirmativa nas universidades e no ensino superior de
modo geral. Tais espaços não são apenas ambientes de formação profissional, mas constituem
também locais privilegiados de criação dos futuros líderes e dirigentes sociais.” Ibidem.
116
Haja vista a importância do julgamento da ADPF 186/DF, o capítulo 4 do presente trabalho será
dedicado para analisa-lo minuciosamente, abordando as principais questões levantadas nos votos
dos ministros, em busca da fundamentação desta decisão.
54
Poder Judiciário117 por meio da análise de casos concretos que levaram à discussão
acerca da constitucionalidade de medidas de discriminação positiva ou as
denominadas ações afirmativas.118
Partindo para uma análise com um viés inicialmente dogmático da Lei nº.
12.711/2012, é de se ressaltar que esta, em seu primeiro artigo, mostra para que
veio. Logo no seu início, estabelece o dever de observância da reserva de cotas a
todas as Universidades Federais de Educação Superior vinculadas ao Ministério da
Educação. Trata-se, pois, da estipulação de uma obrigação às universidades
federais, saindo os programas referentes às cotas da álea da conveniência e da
discricionariedade de cada universidade.
Isso porque, até o advento desta nova legislação, algumas Universidades
Federais já haviam implantado programas de cotas por meio de projetos sociais ou
legislações específicas, conforme acima assinalado. Entretanto, após a inovação
legislativa, os programas referentes às cotas sociais não mais se constituem como
uma mera preocupação social da Universidade, mas sim como um efetivo dever
desta no momento da realização dos processos seletivos para ingresso de
estudantes.
Assim, a partir de agosto de 2012, esta obrigação passa a abranger
qualquer Universidade Federal de Ensino Superior vinculada ao Ministério da
Educação, independentemente de políticas locais. Parece, então, consubstanciar-se
117
No julgamento da ADPF 186/DF que versa sobre programas de ações afirmativas que estabelece
sistema de reserva de cotas em Universidades com base em critério ético-racial, o ministro Celso de
Mello afirmou que o desafio do país seria a efetivação concreta, no plano das realizações materiais,
daqueles deveres internacionalmente assumidos. Por outro lado, frisou que, pelo exercício da função
contramajoritária — decorrente, muitas vezes, da prática moderada de ativismo judicial —, dar-se-ia
consequência à própria noção material de democracia constitucional. Consignou que as políticas
públicas poderiam ser pautadas por outros meios que não necessariamente pelo modelo institucional
de ações afirmativas, caracterizadas como instrumentos de implementação de mecanismos
compensatórios — e temporários — destinados a dar sentido aos próprios objetivos de realização
plena da igualdade material. Por fim, o Min. Ayres Britto, Presidente, repisou a preocupação do texto
constitucional, em seu preâmbulo, com o bem estar e, assim, com distribuição de riqueza, patrimônio
e renda. Reputou que o princípio da igualdade teria sido criado especialmente para os desfavorecidos
e que a Constituição proibira o preconceito. Como forma de instrumentalizar essa vedação, fomentara
as ações afirmativas, a exigir do Estado o dispêndio de recursos para encurtar distâncias sociais e
promover os desfavorecidos. STF julga constitucional política de cotas na UnB. Supremo Tribunal
Federal,
Brasília,
26
abr.
2012.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042>. Acesso em: 15 mai.
2013.
118
"Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa
privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente
acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como compensar perdas
provocadas pela discriminação e marginalização, por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e
outros". BRASIL. Ministério da Justiça (MJ). Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH).
Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial População Negra. Brasília, 1996.
55
como um reflexo de o Estado relativizando a autonomia das Universidades, a fim de
garantir um interesse ora considerado supremo.
Ainda em seu primeiro artigo, a nova lei determina a forma da reserva de
cotas, a qual se dará por curso e turno em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento)
das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas.
Destaca-se, então, que a legislação em análise estabelece a
reserva de no mínimo 50% (cinquenta por cento) das vagas, por curso e turno,
criando uma margem de discricionariedade para as Universidades admitirem, caso
seja conveniente, percentual superior ao delimitado.
Sem adentrar ao mérito de questões políticas ou de uma análise da validade
das políticas públicas de cotas, o que será mais adiante abordado, não se pode
olvidar que a inexistência de critérios certos e seguros para a limitação da reserva
de cotas, pode surtar efeitos prejudiciais ao amplo acesso às universidades federais,
restringindo, nestes casos específicos, o ingresso de alunos advindos de escolas
particulares. A discriminação e a segregação outrora condenadas seriam patentes e
a preservação da diversidade de forma desmedida abriria espaço para o ferimento à
igualdade, haja vista a desproporção da medida adotada.
Mais adiante, o parágrafo único do artigo 1º estabelece que do total de
vagas reservadas, 50% (cinquenta por cento) deverão ser destinadas a estudantes
oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (um salário
mínimo e meio) per capita. Percebe-se, pois, que mais do que garantir o acesso dos
alunos advindos de escolas públicas em virtude da inferior qualidade de ensino
recebida por estes, a legislação assegurou parte destas vagas àqueles estudantes
considerados de baixa renda, em patente cumprimento ao seu aspecto social.
Assim, a partir, inclusive, das discussões realizadas no âmbito do Poder
Judiciário, entende-se que a criação da política de cotas visa proporcionar a alunos
advindos de classes sociais desfavorecidas um tratamento desigual que possa criar
e ofertar oportunidades no mesmo patamar que os demais alunos egressos de
escolas particulares e, via de consequência, com a qualidade de ensino superior.
Ademais, o artigo 3º da Lei em apreço dispõe que em cada instituição
federal de ensino superior, as vagas referenciadas no art. 1º serão preenchidas, por
curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no
mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas da população da unidade da
Federação, informada pelo IBGE. Nota-se, pois que a lei traz a autodeclaração como
56
garantia de reserva de quotas em universidades federais, o que é motivo para que
os não adeptos às cotas levantem a possibilidade de fraudes.
Vale dizer, todavia, que embora a autodeclaração possa fatidicamente abrir
espaço para fraudes de indivíduos que pretendam, indevidamente, se beneficiar dos
programas de cotas, este fator não parece suficiente para afastar a legitimidade de
tais programas, nem tampouco para retirar a sua finalidade e operacionalidade.
Mecanismos de controle devem ser criados e enrijecidos, a fim de garantir,
especialmente, a conscientização do real intuito das cotas em universidades
públicas, garantindo assim a realização dos objetivos e o alcance dos princípios
intrínsecos nesta legislação.
Finalmente, o artigo 7º da lei define o prazo de 10 (dez) anos para que o
Poder Público realize a revisão do programa instituído pela lei em comento,
permitindo uma flexibilidade na análise das cotas que, caso não venham obter êxito
ou não atendam as expectativas de redução das desigualdades sociais, poderão ser
revistas. Em sendo assim, as ações afirmativas em tela possuem caráter transitório,
tendo em vista o objetivo imediato de corrigir distorções sociais. Em razão disso, se
verificado, após decurso de lapso de tempo, a eliminação de tais desigualdades, não
parece haver motivo para a manutenção das políticas direcionadas, pois a
equalização de oportunidades já terá sido alcançada.
Não se olvida que a mencionada legislação suscita uma série de
questionamentos de ordem prática em relação aos seus critérios dogmáticos e
limites não expressos, todavia, optou-se por não abordá-los com maior profundidade
no presente trabalho, por se pretender, principalmente, buscar a essência e a
adequação das cotas, perante a comunidade. Para tanto, utilizar-se-á da proposta
central da nova legislação, bem como do julgamento da ADPF 186/DF, que foi
decisivo para as mudanças aqui discutidas.
Isso porque, não obstante a posterior abordagem sobre a questão do
precedente, pode-se já conceber que a possível relação estabelecida entre o
julgamento da ADPF 186 e a Lei nº. 12.711/12 se coaduna com as noções de
coerência e integridade advindas da hermenêutica política de Ronald Dworkin119. Na
ADPF 186, a discussão primordial se deu em torno das ações afirmativas que
garantem cotas raciais em universidades brasileiras e circundou temas relevantes,
119
A integridade em Ronald Dworkin será melhor abordada no capítulo 3 do presente, onde será feita
a sua relação com a discussão acerca das cotas.
57
tais como o suposto ferimento ao princípio da igualdade em virtude de uma
conjeturada discriminação causada por esta política e a criação de cotas como
forma de superar distorções sociais historicamente consolidadas.120
Assim, ao decidir pela constitucionalidade das cotas implementadas pelas
universidades brasileiras, fundamentou-se que estas ações afirmativas não possuem
o condão de ferir a igualdade constitucionalmente resguardada, sendo aduzido,
inclusive, a potencialidade destas de superar o inegável histórico de discriminação
racial existente.
Ademais, cumpre também observar que o julgamento do STF se deu sobre
cotas raciais, enquanto que a Lei nº. 12.711/12 prevê cotas sociais, abordando além
da desigualdade em virtude de raças, a desigualdade social decorrente de classes
sociais, favorecendo os alunos advindos de escolas públicas. Assim, a promoção da
constitucionalidade das cotas sociais e, consequentemente, da nova legislação, em
virtude da constitucionalidade declarada pelo STF carece de uma observância mais
criteriosa. Isso porque, muitos argumentos utilizados pelos ministros (a superação
de uma história de discriminação, tal qual acima relatada, por exemplo)
necessitariam de uma revisão e adequação.
120
No julgamento da ADPF 186/DF, o ministro Ricardo Lewandowski assim decidiu: “Isso posto,
considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de
Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando
distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no
concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão
periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o
princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF.” Também defendendo a
implementação das cotas, o ministro Marco Aurélio defendeu “É preciso chegar às ações afirmativas.
A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o
acesso à educação; urge implementar programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário
integral, de modo a tirar meninos e meninas da rua, dando-lhes condições que os levem a ombrear
com as demais crianças. O Estado tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem
liberar verbas para os imprescindíveis financiamentos nesse setor.” Doutro lado, o ministro Marco
Aurélio assim fundamentou: “Pode se dizer, sem receio de equívoco, que se passou de uma
igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização
eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança
de óptica, ao denotar “ação”. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar e a Carta da República
oferece base para fazê-lo as mesmas oportunidades. Há de ter se como página virada o sistema
simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. Que fim almejam esses
dois artigos da Carta Federal, senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza,
uma das maneiras de discriminação, visando, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas
daqueles nascidos em berços de ouro?” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de
em:
descumprimento
de
preceito
fundamental
(ADPF
186).
Disponível
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf186mma.pdf >. Acesso em: 15 mai.
2013.
58
Não obstante, ainda que, após a extração da ratiodecidendi121 se entenda
pela constitucionalidade das ações afirmativas de forma geral, sem adentrar no
mérito dos seus destinatários e das suas justificativas, é possível encontrar outra
peculiaridade que se mostra essencial na diferenciação entre o caso julgado pelo
STF e a nova legislação, qual seja, a obrigatoriedade das cotas. Isso porque, no
cenário da nova legislação poderia se questionar a autonomia das Universidades no
que concerne à adoção dos critérios para ingresso de alunos, tema que já está
gerando dissensos, especialmente, no âmbito das próprias universidades.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia
Brasileira de Ciências (ABC) publicaram no início de julho de 2012 manifesto
contrário ao projeto de lei nº. 180/2008. Neste documento, pleiteava-se aos
senadores que "não aprovem o referido instrumento", haja vista o entendimento de
que este feria o princípio da autonomia universitária, aduzindo ainda que "Diferentes
propostas de ações afirmativas, adequadas a cada cultura institucional e regional
têm sido adotadas e é nosso entender que não se deve ceifar este movimento com
uma obrigação uniforme e atentatória à autonomia universitária".122
Ao que parece, as razões deste manifesto consistem não na contrariedade
explícita às cotas, mas na oposição à obrigatoriedade delas na forma determinada
pela legislação. Questiona-se, então, a autonomia universitária, a qual seria um dos
fatores responsáveis pela excelência do ensino superior, cuja importância não pode
ser reduzida.
Vale dizer, então, que, embora já analisado o tema pelo STF, as questões
envolvidas no discurso de cotas, especialmente a partir da obrigatoriedade
determinada
por
legislação
específica,
se
mostram
ainda
relevantes.
As
contradições e a pluralidade de entendimentos parecem impedir, a priori, a aplicação
mecânica e a análise superficial do precedente da Corte Superior em relação à
efetividade das cotas, bem como à validade da nova legislação.
Adverte-se que não se pretende aqui aduzir a inconstitucionalidade da nova
lei, já que esta apreciação não é objeto do presente trabalho, nem tampouco a
impossibilidade de se adotar o precedente do STF. Todavia, intenta-se demonstrar
121
Conforme será esclarecido no Capítulo , a ratiodecidendi é, em termos gerais, o fundamento
central de uma decisão.
122
SBPC/ABC. Manifestação conjunta ABC e SBPC sobre o PLC 180 que obriga a adoção de quotas
para ingresso em universidades públicas e proíbe a realização de exames vestibulares. Disponível
em:
<http://www.unesp.br/secgeral/Pautas/CEPE/20120814/para-conhecimento-documento%20pesquisa.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013.
59
que a utilização de um precedente, também em relação ao processo constitucional,
sem a sua devida adaptabilidade, pode gerar o empobrecimento do discurso jurídico,
fechando a argumentação em torno da temática envolvida, o que será objeto de
melhor análise no capítulo 4 do presente trabalho.
Ressalva-se desde já que as mazelas do ensino público de base, que
supostamente justificam as cotas sociais para egressos deste sistema, não serão
aprofundadas nesta oportunidade, por demandar uma análise demasiadamente
específica que foge do objetivo desta pesquisa, centrando-se as ideias prioritárias na
validade e efetividade do sistema de cotas, sobretudo em relação à reserva para
negros, pardos e índios.
60
2. A VIRADA CONSTITUCIONAL E A MODERNIDADE TARDIA:
BREVES NOÇÕES SOBRE CRISES E CONTRADIÇÕES DA TARDO
DEMOCRACIA BRASILEIRA
2.1. O Estado de Direito e suas transformações
A partir das raízes históricas levantadas, é de se destacar que nos
constituímos enquanto um país de modernidade tardia123, haja vista o atual cenário
de ausência de efetivação de direitos sociais, que hoje se verifica. Nesse sentido,
faz-se necessário observar as transformações sofridas pelo Estado para que, enfim,
seja possível compreender o modelo do Estado enquanto Estado Social.
É de se destacar que variação das formas assumidas pelo Estado se dá por
meio das diferentes compreensões sobre as relações deste com os indivíduos, posto
que a sociedade oscilou no tempo e no espaço entre modelos liberais, com primazia
da liberdade, em detrimento da igualdade e, outrora, entre modelo de socialismo, no
qual predominava a igualdade, em detrimento da liberdade.124
Nos séculos XVII e XVIII, o paradigma predominante na Europa Central foi o
do Estado Liberal. Quando se fala em Estado Liberal, tem-se a ideia de um Estado
centrado no indivíduo, figura esta que começa a ganhar relevância diferenciada
desde o final do Medievo, em um constante processo de desobjetificação que
acontece até os dias de hoje, especialmente mediante a assunção do paradigma
plural. Trata-se, então, de um conceito moderno, decorrente de novas estruturas
surgidas ao final da Idade Média.125 Este paradigma se funda em uma racionalidade
cientificista, havendo a retirada da religião do âmbito público.
123
Destaca-se que o Brasil é considerado um país de modernidade tardia, pois mesmo fazendo parte
do BRICS, é assolado por inúmeras deficiências em relação à efetivação dos direitos sociais dos
indivíduos. As promessas advindas do Estado Social não foram ainda hoje concretizadas, mesmo
após a promulgação da Constituição da República de 1988.
124
BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade.5. ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2002, p. 07,10. Para maiores esclarecimentos, sugere-se a leitura de DWORKIN,
Ronald. A virtude soberana., 2005.
125
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre
interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.p. 242
61
Este novo formato do Estado surge a partir da Revolução Francesa no
século XVIII, a qual trouxe consigo importantes renovações institucionais.126 Neste
momento nasce o que pode se chamar primeiramente de Estado jurídico, já que no
medievo esta figura era inexistente. O Estado Liberal possuía a burguesia agora
como classe dominante, que se desenvolveu sob a proteção do Rei.
Neste viés, as ideias do Estado Liberal se faziam inovadoras e encantavam
os indivíduos ao oferecer a tríade da liberdade, igualdade e fraternidade127, o que,
até então, praticamente se desconhecia. A nova perspectiva do conceito de
individuo, a qual se encontra ainda em gestação, parecia conferir uma possibilidade
deste, eventualmente, se inserir na sociedade de forma competitiva, o que tornava
demasiadamente atrativos os princípios liberais. Cuidava-se, talvez, de uma
novidade que encantava.
Uma análise crítica, todavia, revela que tais promessas mascaram a
intenção da burguesia de aniquilar os poderes e monopólio da Coroa até então
imperantes, ainda que tivesse aquela classe se desenvolvido exatamente sob a
proteção do Rei. Pregava-se uma suposta liberdade, para que esta classe em
ascensão tivesse condições de auferir maiores poderes políticos, realidade esta
encoberta pelo discurso oficial.
Assim, os princípios filosóficos do Estado Liberal foram criados pela própria
burguesia com o objetivo de se opor à Coroa, tendo sido generalizados como ideais
comuns, indicando superficialmente que estariam tais ideais a serviço dos
indivíduos. Ocorre que, conforme Bonavides, a universalização destes ideais não foi
sustentada quando a burguesia efetivamente se apodera do controle político da
sociedade, tornando-se tais princípios apenas existentes em seu aspecto formal, já
que, no plano da aplicação política, a burguesia conservava, de fato, princípios
construtivos de uma ideologia de classe.128
Isto significa que o Constitucionalismo burguês e liberal era absolutamente
incompatível com a ideia de democracia, posto que tinha como função afastar o
estado da esfera privada e das decisões individuais dos homens proprietários.129
126
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Ed. Malheiros, 1996. p. 30
Ibidem.
128
Ibidem.p. 42
129
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia e Constituição: tensão histórica no paradigma
da democracia representativa e majoritária – a alternativa plurinacional boliviana. In: FIGUEIREDO,
Eduardo Henrique Lopes; MÔNACO, Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHÃES, José Luiz Quadros
de (Orgs.). Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 92
127
62
Neste sentido, entende-se que o Estado Liberal, a partir da nova perspectiva de
indivíduo, constantemente em fase de construção, propiciou a criação de gêneros e
padrões, os quais predominavam e balizavam toda e qualquer ação do Estado.
Significa, pois, que a racionalidade cartesiana e cientificista demandava a
formulação de gêneros, os quais se constituíam como padrões de normalidade de
uma sociedade e que, via de consequência, ignoravam as possíveis e eventuais
divergências e pluralidades dentro de uma sociedade. Era crucial aos interesses
burgueses que a sociedade se estruturasse por gêneros, pois esta padronização
facilitaria o controle.
Conforme Quadros, no paradigma do Estado Liberal “as constituições
garantem direitos individuais de homens brancos, proprietários e ricos, criando uma
ordem segura para os proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas
expressivas da população”.130 A diversidade inerente ao ser humano foi, portanto,
esquecida, de forma que a ideia do “macho adulto branco sempre no comando”131
imperava com aparente legitimidade e natural aceitação.
No Estado Liberal, a atuação estatal é mínima em relação aos indivíduos
excluídos do liberalismo elitista, inexistindo qualquer intervenção pública para
assegurar
melhores
condições
sociais,
criando-se
uma
cultura
totalmente
individualista e, quiçá, egoísta. Esta mínima (ou inexistente) atuação estatal na
esfera econômica e social garantia à burguesia uma estabilidade em suas relações
decorrentes do poder econômico, resguardando o contrato e a propriedade privada.
A Constituição submetia o próprio Estado aos ditames liberais e o caminho
da classe dominante parecia livre para ser traçado de acordo com os seus
interesses. Considera-se, então, o estado mínimo.
O estado nasceu liberal, tendo um constitucionalismo que objetivou limitar o
poder do estado frente aos direitos de homens, brancos proprietários e ricos.132 As
demais parcelas da sociedade eram tão somente submetidas à ordem constitucional
existente, mas sem quaisquer garantias e possibilidades de participação no Estado.
130
Ibidem. P. 92
Trecho de música de Caetano Veloso – O Estrangeito- É chegada a hora da reeducação de
alguém, Do Pai do Filho do espirito Santo amém, O certo é louco tomar eletrochoque, O certo é saber
que o certo é certo, O macho adulto branco sempre no comando, E o resto ao resto, o sexo é o corte,
o sexo, Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita Riscar os índios, nada esperar dos pretos"
132
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia e Constituição: tensão histórica no paradigma
da democracia representativa e majoritária. Op. Cit. p. 91
131
63
Vislumbra-se, entretanto, em contraponto à autonomia e exclusividade da
burguesia, a proeminência da propagação dos princípios da igualdade, liberdade e
propriedade aos indivíduos. Isso porque, a Revolução Francesa, marco principal da
força e dominação da burguesia, foi profética133 ao trazer como lema a Liberté,
Egalité, Fraternité, posto que foi ela capaz de premonizar condições de possibilidade
comuns a toda a humanidade e que são objeto de anseio de todo e qualquer
indivíduo. Tratou-se da criação de critérios universais, capazes de perdurar como
princípios normativos, haja vista que delimitam formas ideais de sociedades. As
novas
perspectivas
francesas
despertavam
nos
homens
a
ideia
de
um
comportamento social que preserva o seu próprio bem.
Não obstante a prioridade de direitos à elite burguesa, os quais se
configuravam basicamente como os direitos de primeira geração de direitos
humanos134 é de se destacar que foi no Estado Liberal que os indivíduos passaram
a possuir algum grau de consciência quanto à sua liberdade e seus direitos políticos,
ainda que estes não fossem realmente efetivados para grande parcela da
sociedade. Bonavides afirma que foi neste cenário liberal onde surge a ideia de um
contrato social, o qual figura como um recurso racional, uma vez que por meio dele o
Estado se manifestaria como forma de representação da vontade consciente dos
indivíduos, o que, via de consequência, poderia ser revogável, teoricamente, a
qualquer tempo.135
Este processo parece resultar, todavia, de uma precária consciência de
pessoalização das pessoas que, não obstante as promessas recebidas, ficavam
submetidas aos interesses eminentemente burgueses. Isso porque o Estado deveria
garantir liberdade aos indivíduos, interferindo o mínimo possível, no sentido de que a
autonomia privada no Estado Liberal se refere basicamente a direitos negativos
diante do Estado e de outros cidadãos, isto é, direitos individuais.136 Este era o pacto
social existente: a preservação de garantias.
133
Cf. STRECK, Lenio Luiz. O Pan-Principiologismo e a autonomia do Direito: Uma abordagem a luz
da hermenêutica filosófica. Aula Inaugural do Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da UNIVALI,.
Itajaí-SC, 20.marc.2009
134
O termo “gerações” de direitos deve ser entendido em sua concepção meramente didática para
representar a sucessão de períodos históricos. Isso porque, critica-se a sua utilização, haja vista não
ser possível admitir uma indivisibilidade e interdependência dos direitos de diversas gerações.
135
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Op. Cit. p. 41
136
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre
interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.p. 235 - 236
64
O problema residia exatamente na abrangência destas garantias. A
igualdade tão difundida pode ser lida como a igualdade de gêneros, mas neste
gênero estabelecido pela burguesia como modelo padrão de indivíduo, grande
parcela da sociedade não se encaixava, ficando às margens de toda e qualquer
condição razoável de vida.
Em verdade, o Estado liberal tinha como uma de suas maiores premissas o
liberalismo econômico, caracterizando, naquele momento, um mundo de mercado
racionalmente constituído.137 Esta esfera econômica inseria-se no âmbito da vida
privada do indivíduo padrão, sobre a qual o Estado não possuía domínio, já que à
burguesia deveria proteger a estabilidade e o direito à propriedade.
Segundo Alexandre Mussoi Moreira
A sociedade burguesa, instituindo o chamado mercado livre, firmou-se,
fazendo da sociedade civil um sinônimo deste, sendo que, para o
desenvolvimento de tal tipo de sociedade, era imperativa a separação entre
o público e o privado, a fim de que os contornos deste se tornassem mais
138
nítidos.
A ideia propagada de igualdade poderia ser assegurada pelo próprio
liberalismo econômico, já que neste cenário todos poderiam se inserir no mercado,
em que pese a existência de diferenças sociais. A não intervenção estatal permitiria,
pois, a manutenção da igualdade e liberdade dos indivíduos, cabendo a ele tão
somente assistir de longe tais funcionalidades.
Contudo, conforme já se expôs, esta igualdade era tão somente de cunho
formal, posto que a igualdade material já havia nascido mitigada pelos interesses
burgueses, inexistindo qualquer mecanismo que buscasse reduzir desigualdades
sociais. Conformem Quadros, o liberalismo, elitista e não democrático em sua
essência, não podia admitir que a vontade do coletivo majoritário prevalecesse sobre
a vontade do coletivo minoritário e, logo, sobre a vontade de cada um.139
Para Queiroz:
137
QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Sociologia política de Oliveira Vianna. São Paulo: Convívio,
1975.p. 64
138
MOREIRA, Alexandre Mussoni. A transformação do estado: neoliberalismo, globalização e
conceitos jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 52.
139
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia e Constituição:tensão histórica no paradigma d
democracia representativa e majoritári. Op. Cit. p. 92.
65
A situação dos proprietários burgueses tornava-se realmente ideal, num
mundo em que o poder perderia seus condicionantes não econômicos, para
tornar-se um poder economicamente condicionado; mundo em que a
“ordem social” tenderia a confundir-se com a “ordem econômica” em favor
140
da qual se colocaria a “ordem legal”.
Assim, vislumbrando o desenvolvimento do burguês proprietário e sob o
domínio desta classe, o Estado Liberal objetivava o exercício estrito da legalidade
como a forma mais adequada de se garantir os interesses dos indivíduos,
assumindo uma feição não interventora. A teoria de Montesquieu sobre a separação
de poderes, em que pesem as inúmeras objeções atualmente direcionadas a ela, se
consagrou como uma das técnicas adotadas para a preservação da liberdade no
sistema do liberalismo141, posto que assim seria possível se limitar a soberania,
impedindo a ideia de onipotência.
Vale mencionar que após a racionalização que baseou o Estado Liberal,
criam-se formas sociais que receberão do indivíduo a confiança de um
compromisso, de forma que o Estado, em vista de ser autoridade assim
reconhecida, passa a determinar regras, as quais vincularão a conduta dos
indivíduos e determinarão a atuação do Poder. Esta seria a separação dos poderes,
no sentido de que as tais regras seriam determinadas, especialmente na função
judiciária. A “Constituição” passa a ser a expressão jurídica do acordo político
fundante do Estado. 142
Para Mello
a eficácia do Estado na manutenção da segurança social estaria sempre
ligada ao cumprimento das leis, as quais deveriam estar orientadas por
valores representados pelos referidos direitos inalienáveis. Assim, estar-seia diante de uma sociedade racional, na medida em que a vida social estaria
estabelecida pelas leis, simplificando a própria tarefa do Estado, pois
estariam reguladas as relações dos indivíduos entre si e desses com o
143
Estado – por isso a noção de um contrato social.
A liberdade formal, portanto, pregada no Estado Liberal caracterizava-se
como a possibilidade de o indivíduo (padrão–gênero) poder fazer tudo aquilo que a
lei não proibia, o que limitaria o poder estatal. Neste cenário, a separação de
140
QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Sociologia política de Oliveira Vianna.Op. Cit. p.52
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 46.
142
STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de.Tribunal do juri: símbolos e rituais. 3.ed.
Porto Alegre:Libraria do Advogado, 2006. – Buscar outras obras do Lenio
143
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito internacional da integração. Rio de Janeiro: Imago,
1998. p. 700.
141
66
poderes tem igual importância, já que o judiciário deveria agir estritamente conforme
a interpretação literal da legislação. Ao Estado caberia, principalmente e, quiçá tão
somente, o poder de polícia, cumprindo as condições de liberdade e igualdade, as
quais, a priori, parecem independer de uma atuação estatal prestativa.
O Estado seria, até aquele momento, estranho ou até avesso aos direitos
sociais, os quais nem sequer eram pensados, emitindo prescrições legislativas com
o intuito de regulamentar apenas as relações intersubjetivas. Segundo Marcelo
Cattoni Oliveira, competia ao Estado garantir a certeza nas relações sociais, através
da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos,
mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo. 144
Neste mesmo sentido, Streck e Morais,
Suas tarefas (do Estado) circunscrevem-se à manutenção da ordem e
segurança, zelado que as disputas porventura surgidas sejam resolvidas
pelo juízo imparcial sem recurso à força privada, além de proteger as
liberdades civis e a liberdade pessoal e assegurar a liberdade econômica
dos indivíduos exercitadas no âmbito do mercado capitalista. O papel do
145
Estado é negativo, no sentido da proteção dos indivíduos.
Os valores máximos da liberdade, igualdade e propriedade deveriam fazer
parte da esfera privada, ao passo que na esfera pública encontrava-se a ideia de
segurança e igualdade perante a lei. Para Bonavides:
Disso não advinha para a burguesia dano algum, senão muita vantagem
demagógica, dada a completa ausência de condições materiais que
permitissem às massas transpor as restrições do sufrágio e, assim,
concorrer ostensivamente, por via democrática, à formação da vontade
estatal. (...) (os direitos de liberdade eram) válidos para toda a comunidade
humana, embora, na realidade, tivesse um bom número deles vigência tão
146
somente parcial, e em proveito da classe que efetivamente os podia fruir.”
Em síntese, no cenário do Estado Liberal a liberdade difundida aos
indivíduos se resumia à liberdade da burguesia, que necessitava deste elemento
para garantir a sua ordem financeira, a manutenção de seus contratos e a
estabilidade de sua propriedade sem a intervenção do Estado, havendo o domínio
do poder político por esta classe dominante, ainda que, aparentemente, se
144
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito constitucional. Belo Horizonte:Mandamentos,
2002. p. 55.
145
STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de.Tribunal do juri: símbolos e rituais. p. 61.
146
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. Op. cit., p. 42.
67
estendesse às demais classes sociais.147 Tratava-se, pois, de uma liberdade de
cunho político, que se compadecia com os interesses desta classe social
predominante.148
A exclusão de indivíduos do convívio social no Estado Liberal surgiu da
necessidade de se excluir do poder aqueles que causavam estranheza à classe
dominante149. Daí é possível abrir um parêntese para consignar que é a inclusão que
faz a democracia, pois, caso contrário, seria constituída uma madecocracia grega,
isto é uma democracia de cidadãos para cidadãos, sem a participação do povo.
150
Por isso pode-se afirmar que as cotas representam um convite tardio para uma festa
que já começou há muito tempo, servindo como uma gota de refresco em um
horizonte de exclusão.
Ocorre, no entanto, em que pese o crescimento e desenvolvimento da
tecnologia e da produção garantido pelo Estado Liberal, que a democracia, naquele
momento, se tornara inviável, haja vista a dificuldade de os indivíduos em alcançar
uma disputa igualitária. O princípio liberal triunfara indiscutivelmente sobre o
princípio democrático.151
Via de consequência, em virtude da mínima intervenção estatal na
sociedade, o que tornava o judiciário adstrito às legislações previamente definidas,
as desigualdades econômicas e sociais começam a ganhar força, revelando que os
direitos dos indivíduos, envoltos pelo trinômio igualdade, liberdade e propriedade,
não eram efetivamente materializados. As complexidades da vida moderna tornam a
contenção dos gozos mais difícil.152
A consciência da exclusão, antes abafada pelo receio do próprio poder e
pela aceitação da condição de discriminação, abre espaço para um reconhecimento
147
O principal alvo da assertiva de que todos são iguais perante a lei é o Estado de ordens ou
estamentos, ou seja, aquele Estado no qual os cidadãos encontram-se divididos em categorias
jurídicas distintas, dispostas numa ordem verticalizada de hierarquia, na qual os superiores possuem
privilégios, e isentos de ônus, e os inferiores, ao contrário, despossuem privilégios e acumulam ônus.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Trad. Waltensir Dutra. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2002.
p. 27.
148
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. Op. cit., p.67.
149
Todos aqueles que não se enquadravam nos moldes e no poder burguês geravam irritação para o
Estado Liberal. Tanto a mulher como o negro, o pobre e o alcoólico irritam. Os feios são rejeitados
não por serem feios, mas simplesmente por que devem ser alijados do poder.
150
Nesta o povo alijado nem sequer percebe tal exclusão, sentindo-se confortável em não estar
incluído, pois tem em seu inconsciente que, mesmo que fizesse parte do poder, não saberia como lá
se comportar.
151
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. Op. cit., p. 68.
152
Pode-se conceber, inclusive, que este cenário se contrapõe ao novo papel do Judiciário, no
sentido de ser ele responsável por zelar pela integridade do sistema jurídico, levantando-se
atualmente até mesmo questões relativas ao ativismo judicial.
68
deste estado excludente, gerando, via de consequência, sensíveis modificações
neste cenário. Diante da crise deste Estado Liberal, surgem ideias socialistas,
comunistas e anarquistas, as quais se opõem à realidade de grande exploração do
homem pelo homem e que animam os movimentos coletivos de massa cada vez
mais significativos e neles reforça com a luta pelos direitos coletivos e sociais.153
A partir de meados do século XIX, em verdade, o Estado Liberal já inicia
uma fase diversa das suas bases originais, passando a assumir tarefas positivas,
prestações públicas a serem asseguradas ao cidadão como direitos peculiares à
cidadania.154 Neste momento, pode-se perceber que o individuo está em
permanente ascensão, desobjetificando-se.
Sob esta ótica, com receio da força dos novos movimentos e buscando
preservar o mercado, principalmente diante do Manifesto Comunista de 1948, o
Estado Liberal assume uma nova postura e passa a praticar determinados atos que
até então não lhe incumbiam, intervindo no domínio econômico e no próprio aspecto
social155. Assim, o Estado assume o papel de garantir condições mínimas de vida a
toda a sociedade e regular o mercado e a economia.156
No entanto, não obstante esta nova face do Estado Liberal, a típica
separação entre trabalhadores de um lado e capital acumulado nas mãos da classe
dominante de outro se mantém, ou seja, os trabalhadores continuavam distantes de
um tratamento igualitário ou ao menos digno, tal como a classe dominante. Por tal
fato, as demandas sociais aumentavam progressivamente e buscavam alcançar a
efetividade dos direitos individuais formalmente difundidos no Estado Liberal, mas
jamais praticados perante a sociedade.157
A partir de então, surge com o advento do Século XX, um novo paradigma
no constitucionalismo, a saber, o paradigma do Estado Social. Neste, se vislumbra
153
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o
paradigma do Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3,
mai, 1999. p. 478.
154
STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 63.
155
Este aumento de funções do Estado se remete também “à complexidade da estrutura produtiva
social e ao acirramento da concorrência capitalista, e os impasses das crises deste sistema de
produção [...]”. COSTA, Lucia Cortes da. Os impasses do estado capitalista: uma análise sobre a
reforma do Estado no Brasil. São Paulo: Cortez, 2006. p. 49
156
STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Op. Cit.
p. 70.
157
Para Dworkin, a liberdade e a igualdade não necessariamente estão em conflito, sendo possível,
por meio da reconciliação das duas virtudes, “ter tudo o que devíamos querer de ambas”. DWORKIN,
R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 162.
69
uma maior aposta no Executivo, expandindo a esfera do público e ganha relevância
os chamados direitos sociais, buscando-se, então, a materialização da igualdade e
liberdade158. Segundo Menelick, com o Estado Social se pressupõe precisamente
toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o
reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social
ou economicamente mais fraco da relação.159
Em verdade, não obstante a comum utilização indiscriminada das
expressões “Estado Social”, “Welfare State” e “Estado Assistencialista”, estas
comportam características específicas, representando diferentes perspectivas de um
Estado caracterizado como interventor. Ao se remeter a Estado Social, tem-se,
genericamente, um modelo que demanda a intervenção do domínio público em
questões eminentemente sociais, a fim de regular a sociedade de acordo com as
suas carências e necessidades mais básicas.
Não se pode confundir, ainda, o estado assistencialista com o modelo do
Welfare State, em que pese os dois serem considerados perspectivas de um Estado
Social.No Welfare State160 ou Estado de Bem Estar Social, os âmbitos em que o
domínio público interfere são menores do que aqueles atingidos pelo Estado
Assistencialista. Este último, propagando as necessidades sociais e regulamentando
a vida dos indivíduos, oferecia determinadas condições como forma de caridade aos
indivíduos que, teoricamente, não poderiam alcança-las enquanto cidadãos.
Cuidava-se o Estado Assistencialista, portanto, de um Estado que apenas e
tão somente atendia as necessidades sociais dos indivíduos, sem, no entanto,
preocupar-se com a ideia de cidadania e tampouco de direitos políticos. O Estado
tinha como intuito prover as questões sociais, evitando, via de consequência, o
declínio absoluto da sociedade em decorrência de ausência de condições de vida,
mas jamais reconhecer o individuo como um sujeito de direitos.
Doutro lado, no chamado Estado de Bem Estar Social ou Welfare State, a
proteção aos direitos sociais era realizada pelo Estado em virtude da figura do
158
Conforme Dworkin, nenhum governo é legítimo “a menos que demonstre igual consideração pelo
destino de todos. Os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade”.
Ibidem, p. 9.
159
Ibid., p. 480.
160
Sobre a dificuldade de se localizar no tempo o surgimento do welfare state, Marcelo Medeiros
afirma que esta se justifica pois “formas embrionárias de sistematização de políticas sociais pelo
Estado remontam pelo menos ao início do capitalismo”. SOUSA, Marcelo Medeiros Coelho de. A
transposição de teorias sobre a institucionalização do Welfare State para o caso de países
subdesenvolvidos. Texto para discussão. n. 695, dez. 1999. p. 1.
70
cidadão, independente, inclusive, de sua renda ou poder econômico, objetivando
satisfazer os direitos à educação, alimentação, previdência e saúde. Conforme
Bobbio161, o bem estar voltou a ser o objetivo mais importante da gestão do poder,
embora não mais em função declaradamente fiscal e político-econômica, como nos
tempos do Estado Absoluto, e sim em vista de um progressivo e indefinido processo
de integração social.
Possui o Estado de Bem Estar Social, portanto, uma natureza promotora, no
sentido de que visa promover os indivíduos a cidadãos, rompendo, portanto, com as
meras políticas assistenciais assistidas, inclusive, na segunda fase do Estado
Liberal. Garante-se, então, uma maior proximidade e uma relação mais equalizada
entre indivíduo e Estado.
Conforme Streck e Bolzan,
O que irá diferenciar substancialmente o modelo do Estado interventivo
contemporâneo à forma do Bem Estar dos Estados assistenciais anteriores
é o fato de a regulação não significar a troca das garantias pela liberdade
pessoal, uma vez que o beneficiado, no último caso, era considerado
perigoso à ordem pública e na perspectiva da caritas protestante, eram
vistos como não iluminados pelas bençãos divinas, enquanto que no
modelo de Bem-Estar as prestações públicas são percebidas e construídas
162
como um/uma direito/conquista da cidadania.
Diante deste cenário, tem-se que o Estado Social há muito já consolidava as
suas matrizes ideológicas, apostando no assistencialismo estatal como forma de
conceder e suprir necessidades individuais sociais, tendo já estabelecido raízes em
manifestos socialistas e comunistas.
O Estado do Bem Estar Social, ao revés, ganhou forças após a Segunda
Guerra Mundial, isto no segundo e terceiro quarto do século XX, quando o Estado
reconhece um conjunto de direitos sociais e objetiva manter uma estabilidade social,
preservando, portanto, a ideia de universalismo, já que a proteção deveria ser
conferida a todos indistintamente.
As crises econômicas, elementos que intensificaram o desenvolvimento da
ideia de um Estado do Bem Estar Social, demonstraram a falibilidade do mercado e
a sua insuficiência para cuidar de determinadas esferas que mantinham a sociedade
161
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Tradução de Carmen C. Varrialle et al. 6. ed. Brasília:
UNB,1994.p.430
162
STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Op. Cit.
p. 70. p. 78
71
harmônica. O crescimento estável se fez inviável em uma visão unicamente
mercadológica, exigindo-se que o Estado assumisse o papel de afiançador da
qualidade de vida do indivíduo.163
A universalização dos direitos garante no Estado do Bem Estar Social, para
Bobbio, que “independentemente da sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm
direito de ser protegidos (...) contra situações de dependência de longa duração
(velhice, invalidez, ...) ou de curta (doença, desemprego, maternidade).”164
Importante perceber que no Brasil, esta universalização e, via de consequência, a
formalização de um Estado de Bem Estar Social apenas foi alcançada pela
Constituição de 1988, posto que antes disso as políticas sociais pareciam ter um
cunho eminentemente assistencialista, sem a experiência da incorporação de
direitos políticos e da visão da cidadania.
Neste viés, vale lembrar que as primeiras políticas de cunho social
consideráveis ocorreram de forma mais substancial na chamada Era Vargas,
principalmente em função das bandeiras das exigências sindicalista e trabalhistas,
em decorrência de movimentos operários. Apenas nas décadas de 70 e 80 que o
governo iniciou a construção da ideia do Bem Estar Social, com a criação do
Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), do FUNRAL e das Ações
Integradas da Saúde (AIS).165
Utilizando-se, pois, da expressão genérica “Estado Social”, após o contato
com as suas perspectivas, esclarecendo que aqui se trata mais efetivamente do
Estado do Bem Estar Social, é de se ressaltar que a maior aposta no executivo
manifestada neste novo paradigma ocorre exatamente em decorrência da
necessidade de criação de mecanismos que garantam a materialidade da igualdade
outrora existente apenas no aspecto formal, bem como que possam efetivar os
direitos sociais emergentes166. A Administração passa a ser fornecedora de direitos
e garantias, bens e serviços.
Trata-se de uma proposta para a construção de uma sociedade mais
solidária, onde todos os indivíduos e grupos sociais possam ter acesso aos
163
Ibidem. p. 142
BOBBIO, Norberto. Et al. Dicionário da política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 5. ed. Brasília:
UnB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. p. 417.
165
SANTOS, Leila Borges Dias; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. Reflexões em torno à crise do
Estado de Bem-Estar-Social. R. Fac. Dir. UFG. v.32, n. 1, p-61-75; jan/jun. 2008.p. 64
166
Conforme será discutido ao longo de todo este trabalho, se esta foi a aposta realizada, o
apostador certamente perdeu todas as suas fichas, pois ainda hoje vivenciamos um Estado que não
conseguiu efetivar os direitos sociais prometidos com o advento da “pós modernidade”
164
72
benefícios, direitos e garantias advindos da própria sociedade, já que o liberalismo
havia deixado como herança uma postura ultra individualista, assentada em um
comportamento egoísta.167
Segundo Buffon,
É necessário assegurar, também, os meios necessários para que os
indivíduos tenham acesso a educação e à cultura de modo que tal direito
possa ser exercido de uma forma plena, visto que nada adiante garantir a
liberdade de expressão àquele que está desprovido das condições mínimas
168
de exercê-la.
Além desta nova significância do Poder Executivo, a teoria da Separação
dos Poderes sofre uma releitura, de modo que se reestruturam as funções do Poder
Executivo, Legislativo e Judiciário e, no aspecto do direito inicia-se a ideia de sua
otimização a partir de valores fundamentais. Conforme Menelick:
Neste cenário surgem métodos capazes de emancipar o sentido da lei da
vontade subjetiva do legislador na direção da contade objetiv da própria lei,
profundamente inserida nas diretrizes de materialização do direito que
mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos
169
programas e tarefas sociais.
Resta claro, portanto, que neste novo paradigma do Estado Social, este
passa a intervir nas questões sociais, se aproximando da sociedade através da
política e do direito. No entanto, em que pese a base pública da proposta do Estado
Social, este acabou gerando clientes ao revés de cidadãos, caracterizando um
desvio de finalidade econômica em demasia, uma vez que se busca efetivar apenas
e tão somente a igualdade material, abdicando de outros valores inerentes ao
processo de cidadania.
Para Bahia,
Ao contrário da promoção de cidadania (que era, afinal, a meta do Estado
Social) o que se viu foi o Estado tomando para si toda a dimensão do
167
STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Op. Cit.
p. 70.. P. 69
168
BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 27.
169
CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o
paradigma do Estado democrático de direito. Op. cit., p. 481.
73
público, deixando os indivíduos na posição (cômoda?) de clientes, numa
170
relação paternalista e dependente.
Esta assunção total de um dever promocional pelo Estado se mostrou,
então, frágil e inviável, deixando os indivíduos alheios à atuação do Estado e
plenamente dependentes deste. No entanto, esta abrangência excessiva do Estado
Social acabou frustrada pelas próprias crises advindas do modelo capitalista, pois as
demandas por direitos trabalhistas e sociais, deflagraram processos inflacionários,
gerando a crise das economias de mercado.171
Para manter, então, a sua proposta enquanto Estado Social, fazia-se
necessário uma economia enrijecida com um constante crescimento econômico.
Não
obstante,
a
queda
do
comunismo,
ascensão
do
neo-totalitarismo
fundamentalista na mesma proporão em que se decantava a globalização,
neoliberalismo, terrorismo em escala global, etc., derrubaram por terra as certezas
do welfare state.172
A partir desta crise gerada no Estado Social, intensificada na década de 70
do século passado173, surge um novo paradigma, o chamado Estado Democrático
de Direito, o qual apresenta a formação racional da vontade coletiva e abre espaço
para a discussão pública, trazendo consigo a ideia de maior materialização de todos
os direitos fundamentais.
Assim, em razão da nova concepção de igualdade e liberdade, novos
direitos fundamentais surgiram. Igualdade e liberdade requerem agora
materialização tendencial; não mais podemos nelas pensar sem considerar
as diferenças, por exemplo, entre o proprietário dos meios de produção e o
proprietário apenas de sua força de trabalho, o que passa a requerer a
redução do Direito Civil, com a emancipação do Direito do Trabalho, da
previdência social e mesmo a proteção civil do inquilino. Enfim, o lado mais
fraco das várias relações deverá ser protegido pelo ordenamento e, claro,
174
por um ordenamento de leis claras e distintas.
170
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ: conflito entre
interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.p. 260.
171
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência.
5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 153.
172
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ: conflito entre
interesse público e privado. p. 259.
173
É na década de 1970 que se inicia o terceiro período do capitalismo, a saber, aquele do
capitalismo desorganizado. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. Op. cit., p. 153.
174
CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Op. cit., p.
13.
74
Além disso, no
Estado Democrático
de
Direito, a crescente do
constitucionalismo reflete diretamente na maior importância oferecida ao Judiciário,
que ganha um espaço relevante no cenário dos poderes do Estado. Tal questão foi
apontada por Lenio Luiz Streck em trecho de seu livro Jurisdição Constitucional e
Hermenêutica.
A democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da
democracia no segundo pós-guerra e a redemocratização de países que
saíram de regimes autoritários/ditatoriais, trazem à luz Constituições cujos
textos positivam os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de
fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o
Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política,
isto porque o Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro,
e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa de
legitimação do nazi-fascismo pela vontade da maioria, confiou à justiça
constitucional a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente
nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. Tais fatores
provocam um redimensionamento na clássica relação entre os Poderes do
Estado, surgindo o Judiciário (e suas variantes de justiça constitucional, nos
países que adotaram a fórmula dos tribunais ad hoc) como uma alternativa
para o resgate das promessas da modernidade, onde o acesso à justiça
assume um papel de fundamental importância, através do deslocamento da
esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos políticos, para os
175
procedimentos judiciais.
Neste interim, a ideia de constitucionalismo adstrita ao Estado Democrático
de Direito, regulamenta e apresenta direitos individuais que figuram também em uma
dimensão política e que estão limitados no que concerne à possibilidade de
alteração pelo legislador, sendo passíveis de apreciação e amparo pelo Poder
Judiciário. Neste, há a pretensão de que liberdade e igualdade convivam
pacificamente.176
Cumpre salientar que este paralelo entre liberdade e igualdade está em
perfeita consonância com a questão das cotas, pois estas, ao buscarem a
materialização da igualdade, concedem maior liberdade aos cotistas, ao passo que
relativizam esta liberdade aos não cotisas. Lado outro, a igualdade dos cotistas, em
virtude de suas peculiaridades e colocação na sociedade, apenas pode ser mantida
se supostamente relativizada esta liberdade dos não cotistas.
175
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 147.
176
Para Ronald Dworkin nenhum governo é legítimo “a menos que demonstre igual consideração
pelo destino de todos. Os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique
fidelidade”. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Op. cit., p. 9.
75
Daí surge a necessidade de se entender a posição ocupada pelo Estado
diante desta suposta “tensão” para que, então, seja possível a busca de um caminho
para a legitimidade destes programas. A partir de tais premissas, buscar-se-á
visualizar a possível conjugação destes dois elementos para a apresentação de uma
resposta mais coerente.
No entanto, é necessário consignar que não obstante a nova roupagem do
Estado, enquanto Estado Democrático de Direito, é de se destacar, todavia, que no
Brasil a Constituição Federal de 1988, enquanto instrumento que efetivou este
Estado Democrático de Direito, ainda não teve a sua plenitude atingida,
especialmente em virtude das deficiências já deixadas pelo welfare state. Isso
significa que embora exista a proposta de garantia de direitos fundamentais e sociais
aos indivíduos, a realidade aponta um cenário diverso, no qual muitos ainda são
destituídos de condições mínimas de uma vida saudável e digna. Por isso, afirma-se
o Brasil enquanto um país de modernidade tardia. 177
2.2. O Estado (Social) Democrático de Direito em seu papel de Estado promotor:
Consecução da Constituição Dirigente e as promessas não cumpridas
A par do exposto, reconhecendo-nos como um país de modernidade tardia,
houve, consequentemente, a necessidade de nos impulsionarmos nos sentido de
resgatar as promessas da modernidade, o que nos levou a nos construirmos
democraticamente em um modelo de Estado Social. A Constituição Federal, neste
modelo de Estado, se coloca enquanto um fundamento de horizonte, no sentido de
que é ela que irá determinar o modo de ser do Estado, bem como a sua
necessidade de se projetar.
177
Sobre a ideia de ser o Brasil um país de modernidade tardia, Streck: “Às facetas ordenadora
(Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o Estado Democrático de Direito
agrega um plus (normativo-qualitativo), representado por sua função nitidamente transformadora,
uma vez que os textos constitucionais passam a institucionalizar um “ideal de vida boa”, a partir do
que se pode denominar de co-orignariedade entre direito e moral (Habermas). Os conteúdos
compromissórios e dirigentes das constituições – e a do Brasil é típico exemplo - , apontam para as
possibilidades do resgate das promessas incumpridas da modernidade, questão que assume
relevância ímpar em países de modernidade tardia, onde o welfare state não passou de um
simulacro. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. Op. cit., p. 369.
76
Toda discussão do presente trabalho apenas faz sentido pela opção de se
considerar a Constituição enquanto um fundamento de horizonte, somada ao fato de
não havermos provado grande parte dos frutos da modernidade. Ainda hoje se
percebe uma grande amplitude de contradições, as quais frequentemente estão
ligadas ao individualismo e egoísmo, típicos de um Estado Liberal.178
Isso porque, é necessário ressaltar que as promessas realizadas no Estado
Social ainda não se concretizaram179. Ainda hoje, supostamente sob o paradigma
do Estado Democrático de Direito, vê-se que os direitos fundamentais sociais são,
muitas vezes, esquecidos sob argumentos de indisponibilidade orçamentária,
prioridades políticas, crise da economia nacional ou programaticidade (em seu
sentido pejorativo) das normas constitucionais.
Neste interim e pensando na questão relativa às cotas, faz-se necessário
destacar o direito à educação, previsto no artigo 6º da Constituição como um direito
social. A bem da verdade, o fundamento das cotas não se encontra exatamente no
direito social à educação, mas de forma mais enfática no próprio direito à igualdade,
conforme será minuciosamente abordado. Entretanto, em que pese esta
consideração, se não como fundamento ou objetivo, as cotas atingem o resultado
prático de garantir o direito a educação, o que não pode ser descartado no presente
estudo.
Aliás, cumpre esclarecer que, em regra, o direito social à educação trata-se
de um direito cuja efetividade demanda prestação positiva do Estado, o que, a
princípio, diferenciaria dos direitos à igualdade e liberdade, envoltos nesta
concepção das cotas. Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, ensina que
Os direitos de defesa - precipuamente dirigidos a uma conduta omissiva –
podem, em princípio, ser considerados destituídos desta dimensão
econômica, na medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade,
liberdades,etc.) pode ser assegurado juridicamente, independentemente
180
das circunstâncias econômicas.
178
Frequentemente, vê-se predominar a máxima de “dar a cada um o que é seu”, representado pelo
clássico brocardo latino “suum cuique tribuere”.
179
“Como resultado, temos que em terrae brasilisi, as promessas da modernidade só são
aproveitadas por um certo tipo de brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheid social!” STRECK,
Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
Op. cit., p. 28.
180
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. atual. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001. p. 263.
77
Assim, esta exigência de prestação positiva do Estado implícita nos direitos
sociais poderia ser promovida, em uma primeira leitura, enquanto uma limitação de
efetividade do direito resguardado à educação, por questões como, por exemplo, de
insuficiência de recursos públicos, tal como já aventado. Surgiria, a partir dai, a ideia
de que as cotas são insustentáveis por não ter o Estado condições de garantir o
acesso ao ensino superior público a todos os indivíduos.
Entretanto, em que pese esta insuficiência do Estado em relação aos direitos
sociais, há de se destacar que a limitação da efetividade alhures suscitada, se dá
em todo e qualquer direito fundamental e social, o que não justifica a desvinculação
do direito à educação e do direito à igualdade. Sobre a necessidade de dispêndio de
recursos públicos para todos direitos fundamentais, corroborando que não apenas
os direitos sociais estão limitados neste sentido, Stephen Holmes e Cass R.
Sunstein afirmam,
Os direitos não podem ser protegidos ou exercidos sem o financiamento e o
sustento público. Tanto os direitos sociais quanto o direito de propriedade
privada geram custos públicos. O direito de liberdade de contratar tem
custos públicos não menos que o direito de assistência médica, o direito de
181
liberdade de discurso não menos que o direito à habitação digna.
Os mesmos autores ainda prosseguem,
O financiamento dos direitos fundamentais por meio de receitas fiscais nos
ajuda a ver claramente que os direitos são bens públicos: contribuintesfinanciadores e governo de gestão dos serviços sociais destinados a
melhorar o bem-estar coletivo e individual. Todos os direitos são direitos
182
positivos.
Em sendo assim, vê-se que não apenas os direitos sociais, mas também os
direitos fundamentais estão envoltos em uma atuação positiva do Estado, o que
impede que seja dada maior importância ou efetividade a estes últimos. É preciso
que se garanta ao indivíduo a concretização também dos seus direitos sociais, sob
pena de gerar a ineficácia dos próprios direitos fundamentais.
Ainda em relação ao direito da educação, poder-se-ia visualizar o
questionamento sobre a possibilidade deste abranger o direito ao ensino superior,
181
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York:
W.W. Norton & Company, 1999. p. 48.
182
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Op
Cit.p.48
78
tornando cogente a sua efetividade perante a sociedade, no sentido do particular
poder reclamar perante o Estado o acesso à universidade, caso não o alcançasse
pelos métodos tradicionalmente disponibilizados, ou seja, pelos critérios puramente
meritórios.
É relevante frisar, neste aspecto, que inexiste no texto constitucional
qualquer referência específica ao ensino superior, sendo entendido em uma leitura
superficial decorrente do senso comum (jurídico), que é obrigação do Poder Público
atender a demanda educacional até o ensino médio, considerado ensino de base.
Assim, inicialmente poder-se-ia aduzir que não há previsão expressa que possibilite
um direito fundamental-social a todo e qualquer individuo de exigir do Estado uma
vaga em uma destas universidades, sem que atenda os requisitos (em regra,
meritórios) de acesso ao ensino superior.
Doutro lado, parece correto lembrar que o Estado oferta possibilidades de
ensino público superior por meio da criação e fomento de Universidades Públicas
Federais e Estaduais, cumprindo, via de consequência, algum papel nesta seara.
Diante disto, a inexistência da previsão explícita no texto constitucional se
torna relativa quando verificado que este se limita a dizer “educação”, não
restringindo também o seu alcance, pelo o que se pode entender que o direito à
educação superior se faz da mesma forma consagrado e é, portanto, digno de
observância pelo Estado e de ser efetivado por meio de sua atuação promotora.
Promovendo o direito à educação como uma consequência de sua
implementação, é fato que as cotas sociais/raciais intentam garantir a equidade de
oportunidades de acesso entre grupos excluídos e grupos dominantes do meio
acadêmico às universidades federais, efetivando, sob determinado aspecto, o direito
à educação, aliado à dignidade da pessoa humana. A imperiosa efetividade de
direitos constitucionalmente previstos e que, destaca-se, são primordiais para a
concretude do Estado (Social) Democrático de Direito, não deve ser analisada de
forma simplista e demasiadamente objetiva.
De acordo com o entendimento de Andreas Krell,
Os Direitos Fundamentais Sociais não são direitos contra o Estado, mas sim
direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações
materiais. São os Direitos Fundamentais do homem-social dentro de um
modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalência
aos interesses coletivos antes que aos individuais. O Estado, mediante leis
parlamentares, atos administrativos e a criação real de instalações de
79
serviços públicos, deve definir, executar e implementar, conforme às
circunstâncias, as chamadas ‘políticas sociais’ (de educação, saúde,
assistência, previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo
183
dos direitos constitucionalmente protegidos.
Pode-se afirmar, então, que as cotas ao menos se coadunam com o direito
fundamental social à educação, corroborando para a sua efetividade plena, ainda
que não se admita a sua exigência enquanto direito absoluto. Todavia, ao analisalas sob o prisma do direito à igualdade, a sua fundamentação ganha força, por se
consubstanciarem enquanto elementos que equalizam oportunidades e reduzem
desigualdades. Significa, pois, que o Estado possui o dever de concretizar
efetivamente os direitos fundamentais sociais dos indivíduos, pois apenas assim
será possível cumprir as promessas da modernidade, cumpridas apenas para uma
parcela da sociedade.
Sob este aspecto, convém lembrar a figura da Constituição Dirigente, cuja
morte foi supostamente declarada pelo seu próprio precursor. Seria esta possuidora
de uma natureza positiva, vinculando o legislador a imposições materiais
constitucionais, isto é, criando tarefas a serem seguidas por ele e pela própria
Administração Pública.
Esclareça-se, todavia, que a anunciação da morte da Constituição Dirigente
por J.J. Canotilho se deu em virtude do contexto histórico e territorial em que ela
estava inserida (Portugal), onde as suas diretrizes já foram alcançadas, de modo
que a sua manutenção de forma isolada não seria mais suficiente, pelo menos
enquanto medida isolada, para as transformações pretendidas.
Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Constituição dirigente está morta se o
dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional
revolucionário capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias.
Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional
dirigente introvertidamente vergado sobre sí próprio e alheio aos processos
de abertura do direito constitucional ao direito internacional e aos direitos
supranacionais. Numa época de cidadanias múltiplas e de múltiplos de
cidadanias seria prejudicial aos próprios cidadãos o fecho da Constituição,
erguendo-se à categoria de "linha Maginot" contra invasões agressivas dos
direitos fundamentais. Alguma coisa ficou, porém, da programaticidade
constitucional. Contra os que ergueram as normas programáticas a "linha de
caminho de ferro“ neutralizadora dos caminhos plurais da implantação da
cidadania, acreditamos que os textos constitucionais deve estabelecer as
premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa
183
KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos
de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 19.
80
sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticas e
184
sociais.
No entanto, especialmente em relação ao Brasil, o caráter dirigente da
Constituição de 1988 parece se fazer presente e indispensável, pois esta não se
caracteriza tão somente como um instrumento governamental, mas efetivamente
estabelece diretrizes a serem perseguidas pelo Estado para a melhoria das
condições sociais e econômicas da vida dos cidadãos.185
A ideia do Estado promotor ganha forças no panorama brasileiro, pois,
insista-se, embora este país esteja passando pela gestação da modernidade, muitas
promessas inicialmente realizadas, especialmente quando da Constituição de 1988,
não foram ainda cumpridas, estando o país envolto atualmente em um cenário
político de modernidade tardia. Assim, a necessidade de se ter um texto
constitucional que determine uma intervenção do Estado para a efetivação de
direitos fundamentais e sociais, a fim de alcançar um progresso social, se faz ainda
mais imperiosa. Daí a consideração da Constituição enquanto um horizonte
autêntico.
Afirma Lenio Luiz Streck,
A noção de Constituição dirigente e compromissária não pode ser relegada
a um plano secundário, mormente em um país como o Brasil, onde, repito, as promessas de modernidade, explicitadas generosamente no texto
constitucional de 1988, longe estão de ser efetivadas. Para tanto, há que se
enfrentar/superar alguns dos problemas e/ou obstáculos que fizeram com
que a expressiva parcela dos dispositivos da CF/88 não obtivessem, até
186
hoje, efetivação.
Adotando a Constituição Dirigente como pano de fundo, é possível ainda
chamar atenção para as novas perspectivas do que é público e do que é privado a
184
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2. ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2001. Prefácio, p. XXIX-XXX.
185
Conforme Eros Grau, “Deveras, a Constituição do Brasil não é um mero "instrumento de governo",
enunciador de competências e regulador de processos; mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e
programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão-somente um
"estatuto jurídico do político", mas sim um "plano global normativo" da sociedade e, por isso mesmo,
do Estado Brasileiro. Daí ser ela a Constituição do Brasil, e não apenas a Constituição da República
Federativa do Brasil. Os fundamentos e os fins definidos em seus arts. 1º e 3º são os fundamentos e
os fins da sociedade brasileira.” GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988
(Interpretação e Crítica). São Paulo: Malheiros, 2008. p. 359.
186
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e concretização da constituição. Revista Latino- Americana
de Estudos Constitucionais, n. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 682.
81
partir, principalmente, da década de noventa, quando se iniciou um movimento de
imbricação destas esferas.
No Estado (Social) Democrático de Direito, a Constituição da República
Federativa do Brasil cria uma base axiológica que passa a ser observada pelos
demais setores do Direito, antes dotados de uma autonomia bastante peculiar, a
exemplo do Direito Civil, passando o âmbito público a interferir cada vez mais no
âmbito privado, a fim de regular, além das relações verticais, entre Estado e sujeito,
também as relações horizontais, entre particulares. Os valores não patrimoniais, a
justiça social, a solidariedade e as questões sociais ganham um espaço substancial,
passando a influir em todo o ordenamento jurídico.
Neste esteio, o Estado Promotor que pretende efetivar os direitos que até
então se consubstanciavam em promessas não cumpridas, em virtude do processo
ainda de gestação da modernidade, passa a criar medidas e ações que influenciam
diretamente na vida dos cidadãos, fazendo valer o seu aspecto prestativo.
Conforme Bercovici,
A Constituição de 1988 é uma constituição dirigente, pois define, por meio
das chamadas normas constitucionais programáticas, fins e programas de
ação futura, no sentido de melhoria das condições sociais e econômicas da
187
população.
É neste cenário que se destacam as ações afirmativas enquanto medidas
que objetivam erradicar pobreza e reduzir desigualdades, diretrizes traçadas pelo
texto constitucional em seu artigo 3º. Por este aspecto, é preciso que se considere o
caráter dirigente da Constituição para que se compreenda a necessidade e
importância da efetividade de direitos fundamentais e sociais. Se o nosso país se
caracteriza como um país de modernidade tardia, é tempo de buscar as correições
das desigualdades oriundas deste panorama, a fim de finalmente atingir os ideais da
igualdade e liberdade a todos os indivíduos, afastando, via de consequência, a
violência simbólica188 que atualmente vivenciamos.
187
BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o
caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 36, n. 142 abr./jun. 1999.
188
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. Op. cit., p. 36.
82
3. AS COTAS SOB O ENFOQUE DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE
RONALD DWORKIN
3.1. Os primeiros fundamentos na construção de um possível modo de se
compreender a problemática relacionada às cotas: Um caminho traçado até Ronald
Dworkin
A questão referente às cotas no ensino superior público suscita, a par do
que já foi exposto sobre a reconstrução histórica e atual formato do Estado
brasileiro, uma análise cuidadosa, a fim de que se possa compreendê-las ou criticálas, construindo um horizonte nos moldes gadamerianos. Para tanto, optou-se por
traçar um caminho até a hermenêutica política de Ronald Dworkin, iniciando esta
leitura a partir do positivismo jurídico kelseniano189, cuja teoria possui, ainda que
veladamente, um alto grau de discricionariedade.
No caminho a ser traçado até Dworkin, Kelsen ganha relevância por se
apresentar como uma barreira sólida a ser ultrapassada, já que foi com ele que se
inicia a ideia de interpretação enquanto elemento do direito e é em sua teoria que se
encontra um grande nível de decisionismo190. A compreensão de sua proposta é
crucial para que se possa proceder à análise das cotas pela visão de integridade de
Dworkin.
É de se destacar que quando se fala em positivismo jurídico, observa-se
uma costumeira confusão entre o positivismo normativista e o positivismo
189
Vale lembrar que o positivismo jurídico é um gênero extenso, compreendendo uma série de
diferentes concepções, tais como o positivismo exegético, jurisprudência dos conceitos,
jurisprudência dos interesses, jurisprudência dos valores, normativismo, etc. O presente trabalho
optou por concentrar-se mais detidamente no positivismo sob a perspectiva de Kelsen (normativismo)
e Hart (Neopositivismo semântico), não abrangendo as suas demais facetas, a fim de demonstrar a
constituição do caminho proposto a partir de Ronald Dworkin.
190
Importante lembrar que Kelsen não afirma ser o decisionismo a solução das problemáticas que
apresenta, sendo que este foi, na verdade, o problema levantado e denunciado por ele.
83
exegético191. Este último, no entanto, diferencia-se do primeiro e se caracteriza como
extremamente dogmático, em que pese ainda hoje representar, em muitos casos, a
imagem de positivismo que é refletida.
Tal construção se faz necessária a partir da ideia de que na Escola da
Exegese é evidente uma intenção de desconectar-se do passado histórico, isto é,
romper com aquilo que é considerado ultrapassado e negativo, exigindo uma
concepção jurídica que se desvincule de tradições. A Escola da Exegese questiona
a multijurisdicionalidade do direito, no sentido da quebra do direito. Pretendia, em
verdade, o absoluto fechamento do direito dogmático, por meio do seu isolamento
total, defendendo a ideia de um código único, independentemente da classe social,
rechaçando igualmente o direito costumeiro que permitia a existência de diversas
regras regionais convivendo de forma fragmentada.
Assim, a partir da Escola de Exegese começa-se a perceber a importância
da necessidade da codificação, pois apenas um código permitiria resolver, em um
único ato, os problemas naquele momento enfrentados. É fato que a novidade não
se encontrava no código, mas no fato de que o direito existente na lei escrita passa
a ser exclusivo, suficiente e único, não podendo existir nenhum outro elemento
normativo, senão aquele expresso na codificação192. Não reconheciam, pois, a
existência de lacunas, nem tampouco princípios ou objetivos políticos, vez que a
decisão para além da lei escrita, seria a criação de direito por um juiz, o que era
inadmissível.
Todavia, não obstante a busca de uma racionalidade pela Escola de
Exegese, não se pôde conceber a qual tipo de racionalidade ela atendia, uma vez
que a aplicação mecânica do direito escrito não parece ser suficiente para atingir a
legitimidade desta ciência. Os dogmas do que seria certo ou errado poderiam, diante
desta justificativa de racionalidade, serem ditados e estabelecidos sem, no entanto,
apresentar-se qualquer justificativa de validade para estes.
A crítica à Escola da Exegese, portanto, reside no fato de qualquer
estipulação que venha a ser transformada em direito escrito ser legitimada, já que a
191
Conforme Streck, “por isso alguns juristas compreenderam mal o sentido do novo
Constitucionalismo. Explicando melhor: por não terem compreendido o problema da diferença entre o
velho positivismo exegético (sintático) e o positivismo normativista (semântico), pensaram que o
‘neoconstitucionalismo’ seria a forma de superar o exegetismo.” STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica
jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 78.
192
A partir da Escola da Exegese, o Direito passa a ser uma técnica e, a partir de então, pode ser
ensinado.
84
questão de fato e de direito são cindidas. A lei é a lei e, sendo assim, pode se impor.
A subsunção do direito, como uma mera forma de aplicação da previsão legal ao
caso concreto, torna-se, em verdade, um mito promotor da segurança e de uma
imparcialidade, as quais, contudo, não se sustentaram a partir desta Escola.
Parece ser um grande problema permitir que todas as apostas fiquem no
juiz, o que, todavia, ficou caracterizado como consequência negativa da opção
realizada pela Escola Exegética, que considerava ele um intérprete plenipotente
alocado em um plano racional superior ao plano das leis. A negatividade deste efeito
colateral se dá porque parece bem provável que os juízes tenham racionalidades
diferentes, o que permitirá, via de consequência, que esta plenipotência seja
exercida de acordo com as convicções pessoais de cada julgador, o que permitira a
influência da moral pessoal em um direito que deveria ser avesso a este fator.
A proposta exegética de criar um Direito hermeticamente fechado vai de
encontro à própria natureza do Direito, qual seja, a de se organizar enquanto
elemento regulador da sociedade. Criticando e referenciando o positivismo, Ronald
Dworkin menciona que, para aquele, o direito é o direito. Não é o que os juízes
pensam ser, mas aquilo que realmente é. Sua tarefa é aplicá-lo, não modificá-lo para
adequá-lo à sua própria ética ou política193, o que acaba se tornando uma armadilha.
Conforme suscitado por Dworkin, ao abordar o positivismo, a leitura do
direito enquanto hermeticamente fechado não diz praticamente nada, pois se
reveste de uma superficialidade que o direito em si talvez não permita. É de fácil
constatação que a norma escrita e positivada não será capaz, por si só, de abranger
todos os potenciais casos concretos, mormente aqueles considerados “difíceis”194,
quando a aplicação mecânica do direito pode não se adequar ou, quiçá, pode nem
sequer ser possível, seja em virtude da inexistência de uma previsão normativa
(lacuna), seja pela necessidade de uma digressão para além da mera semântica
contida no texto legal.
Sob esta ótica, a segurança e a imparcialidade buscadas pela Exegese
mostram-se inviáveis e inatingíveis, pois a sua proposta acaba por gerar um juiz
solipsista, contrariando suas próprias bases.195 Esta ausência de adequação da
proposta exegética pode ser explicada pelo fato de o juiz existir enquanto ser
193
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 141.
A possível explanação sobre o que seja “casos difíceis” será abordada ainda neste capítulo 3.
195
A partir de uma leitura exegética, pode-se afirmar que o juiz se fecha nos limites do seu mundo,
pois domina a subsunção.
194
85
concreto, isto é, ele não é originado no mundo das ideias, o que impossibilita uma
análise puramente semântica do direito pelos julgadores.
A questão semântica de subsunção e aplicação das regras se faz, portanto,
não apenas como insuficiente, mas também como contrária aos seus propósitos, já
que permite uma sensível discricionariedade do julgador, além de não considerar
outros elementos alheios ao texto jurídico. É de se ressaltar que não há padrões
prévios e determinados de racionalidade para compreensão de um texto normativo.
Esta compreensão acabava, então, ocorrendo de forma aleatória.
Assim, o modelo de raciocínio lógico-dedutivo por meio do movimento
subsuntivo carecia de uma fundamentação das decisões judiciais, apostando em
uma racionalidade universal, a qual, todavia, não poderia ser concretizada. Cada ser
humano é único e detentor de suas próprias experiências, convicções e
compreensões. Não parece possível, portanto, que se tenha, apenas diante da
semântica do texto, o mesmo resultado do movimento subsuntivo para vários
julgadores. A subsunção como elemento único de racionalidade passa, então, a
demonstrar suas falhas.
A partir das características do modelo exegético acima apresentadas, podese perceber a existência de alguns problemas, os quais se consubstanciavam como
problemas de difícil resposta quando de uma análise mais perfunctória do Direito.
Diante disso, outras Escolas e movimentos surgiram, ainda no âmbito do positivismo
jurídico, as quais acabaram por propiciar um decisionismo em excesso, tais como a
Escola Histórica, o movimento do Direito Livre e ainda a Jurisprudência dos
Conceitos, dominantes nos séculos XVIII ao XIX, a partir de quando se passou a
admitir a existência de lacunas na lei.196 Percebe-se, pois, que no combate à
subjetividade, mais subjetividade foi gerada, já que diante de uma lacuna na lei,
alguém ou algo precisa dizer o direito e, consequentemente, abre-se margem aos
atos de vontade.
Como resposta às insuficiências apontadas anteriormente, importante
destacar a Jurisprudência dos Interesses e a Jurisprudência dos Valores surgidas a
partir do século XIX, as quais trouxeram sensíveis e importantes modificações na
196
O movimento do Direito Livre e a Escola Histórica se perderam em si mesmas, se considerada a
assistematicidade do movimento do Direito Livre, e a busca histórica e subsequente abdicação a
esta, levando a Escola Histórica a abandonar o critério histórico e retornar ao positivismo exegético.
No entanto, em que pese a importância de tais fases, optou-se por não se aprofundar com detalhes
nestas, por não serem elas objeto central do presente capítulo, o qual busca traçar um caminho até o
pensamento de Ronald Dworkin, em observância às suas críticas ao positivismo jurídico.
86
interpretação do direito. Estas, por suas particularidades e pelo desenvolvimento que
apresentaram, interessam mais diretamente ao presente estudo, por fazerem parte,
efetivamente, do caminho aqui percorrido.
Isso porque, a partir da Jurisprudência dos Interesses, os interesses
assumem um papel fundamental na atividade jurídica, passando a ser a sua
referência principal.197 O Direito se reveste, então, com um objetivo prático, pois
estaria direcionado a atender os interesses que o fundamentavam, ainda que
devesse respeitar a lei escrita.
A partir desta perspectiva, é possível identificar uma estrutura lógico-formal
do Direito, no sentido de que o elemento prático permite a introdução de novas
finalidades ao direito. A Jurisprudência dos Interesses pode ser mencionada assim
como uma “teoria que precisaria não só garantir um esquema de interpretação,
argumentação e decisão jurídica com respeito à lei, mas ao mesmo tempo
estabelecendo referências às finalidades do direito e também à realidade da
sociedade.”198
Segundo Heck, defensor da Jurisprudência dos Interesses,
O escopo da Jurisprudência e, em particular, da decisão judicial dos casos
concretos, é a satisfação de necessidades da vida, de desejos e aspirações,
tanto de ordem material como ideal, existentes na sociedade. São esses
desejos e aspirações que chamamos interesses e a Jurisprudência dos
interesses caracteriza-se pela preocupação de nunca perder e vista esse
escopo nas várias operações a que tem de proceder e na elaboração dos
199
conceitos.
A busca pela finalidade do Direito culminava, portanto, na análise dos
interesses, a qual, por sua vez, era realizada por meio da sociologia da época. A
necessidade, todavia, da absorção de valores e princípios pelo Direito, em especial
quando da compreensão de casos concretos, exigiu a transição da Jurisprudência
dos Interesses para a Jurisprudência dos Valores.
Na Jurisprudência dos Valores, as lacunas da lei são tidas como axiológicas,
posto que dizem respeito à valoração do Direito. A partir desta, a matéria extraída da
lei é que deve ser aplicada, de acordo com sua carga valorativa. Não mais se tem o
197
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica na Jurisprudência
dos Interesses. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 4.
198
Ibidem, p. 6.
199
COSTA,
Alexandre
Araújo.
Hermenêutica
jurídica.
Disponível
em:
<http://www.arcos.org.br/livros/hermeneutica-juridica/>. Acesso em: 15 out. 2013. p. 162.
87
direito como uma mera regulamentação formal e nem mesmo como um instrumento
que contém em si objetivos práticos, mas sim como uma ciência que possui de fato
valores a serem resguardados e aplicados.
Sobre a preponderância da Jurisprudência dos Valores, a qual pode ser
argumentada até mesmo nos dias atuais, Reale se posiciona no sentido de existir
um:
[...] entendimento amplo e flexível da vida jurídica em sentido de
integralidade, para o qual tem contribuído notavelmente a compreensão do
Direito em termos axiológicos, a tal ponto que já se pode admitir uma
passagem da Jurisprudência de Interesses para a Jurisprudência de
200
Valores.
De outro lado, é viável questionar uma suposta ausência de racionalidade
em critérios meramente valorativos, bem como a supremacia destes perante a lei.
Isso porque, a ideia de valores (subjetivos) se mostra intimamente relacionada a um
critério meramente discricionário, pois o que se consubstancia como um valor válido
e relevante para determinado sujeito pode ser plenamente inválido diante de outro.
É bem verdade que estas insuficiências e armadilhas, não apenas da
Jurisprudência dos Valores, mas também de todas as teorias anteriores,
denunciaram o solipsismo do qual o direito era escravo. Todas as propostas que
identificam uma carga pessoal do juiz e o individualismo extremo apresentam
características que as levariam à ruína.201
Assim, a Jurisprudência dos Valores, surgida diante desta aparente
necessidade de considerar aspectos valorativos202 para além dos interesses em
200
REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, apud HORTA,
José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do Estado de Direito: Uma inverstigação Tridimensional
do Estado Liberal, do Estado Social e do Estado Democrático de Direito, na perspectiva dos Direitos
Fundamentais. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais, 2002 cit., p. 172
201
Importante ressaltar que, muito embora o abandono do solipsismo seja mencionado na crítica à
Jurisprudência dos valores, ainda hoje é possível encontrar um solipsismo interpretativo na prática do
direito, quando de julgamentos atropelados por critérios exclusivamente pessoais e discricionários. A
integridade proposta por Dworkin visa, inclusive, afastar esta carga solipsista, na medida em que
torna o juiz responsável por suas decisões de acordo com os princípios de uma comunidade,
independentemente de suas convicções pessoais.
202
Em relação aos aspectos valorativos, esclarece-se que são “[...] reconhecimento de valores ou
critérios de valoração supralegais ou pré-positivos que subjazem às normas legais e para cuja
interpretação e complementação é legítimo lançar mão, pelo menos sob determinadas condições.
Pode-se a este propósito invocar os valores positivados nos direitos fundamentais, especialmente nos
artigos 1º a 3º da Lei Fundamental, recorrer a uma longa tradição jusfilosófica, a argumentos
lingüísticos ou ao entendimento que a maior parte dos juizes tem de que é sua missão chegar a
decisões justas. A quase totalidade dos autores envolvidos nas mais recentes discussões
88
casos concretos, apresentou o ilusório intuito de solidificar e justificar a aplicação do
direito. Não obstante, ela acabou por carregar consigo uma carga subjetiva deveras
grande que, em uma perspectiva mais aprofundada, comprometia a certeza do
direito.203
A partir destas distorções e vícios da Jurisprudência dos Interesses e
Jurisprudência dos valores que, a bem da verdade, culminavam em uma ótica
discricionária do direito, Hans Kelsen, expoente do positivismo normativo, trabalha
as suas ideias, refutando estes aspectos anteriores, em virtude de enxergar uma
suposta abertura no direito (direito como um ramo da sociologia e não mais como
uma ciência) que poderia comprometer a sua racionalidade científica.
Naquele momento, o grande diferencial da ideia de Kelsen foi a
problematização do fato de que o Direito não é oriundo de uma determinação
externa (como seria na Jurisprudência dos Interesses, quando advindo da
sociologia) e nem de uma determinação interna (do psíquico, como na
Jurisprudência dos Valores), mas sim o resultado de uma interpretação. Neste
sentido, a interpretação é, segundo Kelsen, uma operação mental que acompanha o
processo de aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um
escalão inferior204, ou seja, cuida-se de um ato de conhecimento205.
Para entender Kelsen, todavia, é preciso primeiramente se aventurar, ainda
que de forma breve, em questões que se remetem aos seus referenciais teóricos. É
preciso, pois, salientar que o século XIX, em seu contexto filosófico, sociológico,
econômico e político, com diretas influências no cenário jurídico, foi marcado pela
ocorrência de duas grandes modificações que o tornaram um divisor de águas para
metodológicas partilha a concepção de que o Direito tem algo a ver com a justiça, com a conduta
socioeticamente correta”. LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. José Lamego.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 167.
203
Segundo Lenio Streck, a jurisprudência dos valores abria caminhos distorcidos de sua aparente
proposta: “[...] nos anos que sucederam a consagração da lei fundamental, houve um esforço
considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legitimar uma carta que não tinha sido
constituída pela ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da Lex, ou
seja, a invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se
encontravam fora estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como
mecanismo de abertura de uma legalidade extremamente fechada, que possibilitaria, em alguma
medida, o totalitarismo nazista.” STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha
consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 21.
204
KELSEN, H. Teoria pura do direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984. p. 463.
205
Para Streck, as teorias posteriores a Kelsen não compreenderam com exatidão a sua teoria, pois o
ato de interpretar reconhecido por Kelsen era tido como um ato de conhecimento, ao passo que o ato
de vontade decorrente da interpretação foi por ele considerado como uma fatalidade. Cf. STRECK,
Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito.
Op. cit., p. 77.
89
a compreensão da linguagem e da relação dos sujeitos no mundo contemporâneo,
as quais receberam a denominação de “Viragem Linguística”.
Esta passagem pelas Viragens Linguísticas se faz importante neste ponto,
pois a partir destas origina-se uma grande aposta na quase plenipotência das
palavras, as quais adequadamente postas, seriam suficientes para qualquer
interpretação do direito e das coisas. Significa, pois, que se constroem conceitos
capazes de abraçar todas as coisas e elementos, agora não mais pela razão, mas
sim pela sua estrutura linguística. Daí sustenta-se a ideia kelseniana e, a partir dela,
pode-se traçar o caminho em direção às propostas de Ronald Dworkin.
Neste sentido, com diretas influências do Círculo de Viena206, uma resposta
inicial às vicissitudes até então apontadas nas teorias anteriores à Kelsen, surgiu
com a primeira viragem linguística, denominada “Viragem Linguística Lógica”, que
teve como um de seus principais representantes Ludwig Wittgenstein, em meados
de 1922207 e promoveu sensíveis transformações que culminaram na linguagem
como o centro de uma reflexão filosófica. Depois dela, o sentido das coisas passou a
não estar mais nem nas coisas, nem na consciência, mas na linguagem do ser,
entendida esta como relação essencial e ainda como tudo o que torna possível o
entendimento entre as pessoas.
A partir daquele momento, só poderia se conhecer aquilo que poderia
também se expressar. Isso significa que embora possa existir um mundo muito
maior do que aquele que se quer ver, se não conseguir expressá-lo, não será
possível enxergá-lo.
208
Tem-se, portanto, que a palavra intermedia a tensão entre
sujeito e objeto.
Assim, com a viragem linguística lógica, o modo de se pensar as coisas
estava centrado no sentido dado pela interpretação. Trazendo esta questão para o
206
O Círculo de Viena foi uma associação fundada na década de 20 por um grupo de lógicos e
filósofos da ciência, tendo por objetivo fundamental chegar a uma unificação do saber científico pela
eliminação dos conceitos vazios de sentido e dos pseudoproblemas da metafísica e pelo emprego do
famoso critério da verificabilidade que distingue a ciência (cujas proposições são verificáveis) da
metafísica (cujas proposições inverificáveis devem ser supressas). Ao recusar a introdução dos
elementos sintéticos a priori no conhecimento, o Círculo, liderado por Rudolf Carnap, visando eliminar
definitivamente a metafísica, prega que todos os enunciados científicos devem ser sempre a
posteriori, pois não são outra coisa senão simples constatações, ou seja, enunciados protocolares, só
tendo significado pelo conjunto lógico, isto é, pelo sistema de transformações analíticas no qual se
integram. Para maiores esclarecimentos ver JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário
básico de filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008
207
O chamado giro linguístico teve origem no Círculo de Viena, com as influências de Wittgenstein
em sua obra Tractatus, além de Rudolf Carnap e outros, sustentando o neopositivismo lógico.
208
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1961.
90
caminho aqui traçado, nota-se a sua discrepância com a ideia da Escola da Exegese
e seu positivismo clássico, o qual, conforme já abordado, limitava a aplicação do
Direito à mera observância da literalidade dos textos, existindo, pois, uma relação
íntima com a razão plena. Este positivismo legal que se constituía observando a lei
como um monopólio do Direito209, parecia ruir diante da proposta de inserção do
novo elemento, qual seja, a interpretação das palavras.
O normativismo kelseniano, por outro lado, ganha força diante desta
viragem, pois nele a importância das palavras se coloca como um núcleo central, a
partir do qual a linguística passa a ser combinada com a lógica formal do direito.
Kelsen busca a pureza da teoria do direito, todavia, esta apenas será alcançada
mediante o entendimento de que as palavras trazem com elas a necessidade de
uma interpretação.210
Isso porque, a partir das influências desta Viragem e do deslocamento do
conhecimento ao sujeito, o Direito passa a não estar mais na lei ou no texto da lei,
sendo que o seu sentido passa a ser determinado pela interpretação, isto é, o Direito
é norma e norma é resultado da interpretação dos textos jurídicos.211 Intensifica-se
com Kelsen o processo de rompimento com o positivismo exegético, sem contudo se
abrir para o mundo concreto, no qual a razão retiraria a pureza cientificista do saber,
já que enquanto moderno busca-se um resultado empírico.
A ideia então construída pretendia que tudo que há no mundo tem que caber
na nossa língua, de forma que se modificou, oportunamente, a compreensão de
mundo.212 Por isso, entendia-se que “os limites da minha linguagem denotam os
limites do meu mundo”213. Houve, assim, um rompimento com a filosofia da
consciência (metafísica), colocando o Direito, como uma ciência da linguagem, não
apenas no sentido das palavras, mas efetivamente na lógica de suas estruturas de
construção.
209
HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Portugal:
Publicações Europa-América, 1997. p. 267.
210
Considerar o viés de ato de vontade da interpretação como uma fatalidade mantinha a pureza
metodológica de sua teoria, que permanecia a salvo da subjetividade, da axiologia, da ideologia, etc.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção
do Direito. Op. cit., p. 77.
211
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 389-390.
212
Numa palavra: interpretar é compreender. E compreender é aplicar. A hermenêutica não é mais
metodológica. Não mais interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para
interpretar. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias
discursivas. Op. cit., p. 294.
213
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Op. cit., p. 111.
91
Percebe-se, portanto que, partindo destes referenciais teóricos e tendo o seu
pensamento inserido na proposta da Viragem Linguística, Hans Kelsen buscava
construir uma linguagem nova e própria para o Direito, o que revelava, pois, ser a
pureza da teoria do Direito. O objetivo precípuo da Teoria Pura do Direito era, então,
garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir deste conhecimento
tudo quanto não pertença ao seu objeto.214
Para Kelsen, o elemento responsável por manter um fechamento ou a
própria pureza da teoria do direito é a norma fundamental. Esta não possui um
fundamento exterior ou um interior, nem tampouco conteúdo, valor ou princípio,
cumprindo tão somente um requisito de justificação de comportamento, de forma
que, para Kelsen não deveria se admitir influências externas ao direito.215
Seria, portanto, uma norma pressuposta que se configura como uma
condição sem a qual o direito não pode ser criado, isto é, passa a norma a ser o
objeto principal do direito. Esta proposta de uma nova linguagem para o direito,
parece se sustentar na ideia de que se a ciência normativa deve seguir uma lógica
do dever-ser, então ela não pode admitir determinações externas ou internas, mas
tão somente uma determinação acerca da lógica do dever, que, por sua vez,
pressupõe
uma
linguagem analítica.
Ressalta-se, então, a relevância
da
interpretação.
Assim, em relação à norma fundamental, Kelsen propõe a aceitação da
“validade das normas jurídicas em normas jurídicas hierarquicamente superiores e
temporalmente pré-existentes”.216 A validade do Direito está no próprio Direito.217 A
norma como objeto central do direito passa a ser o seu próprio parâmetro de
validade.
A partir disto, Kelsen afirma duas dimensões o Direito, quais sejam o Direito
como
214
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 1.
É de significativa importância destacar que a Constituição Federal não é e nunca foi tida como a
norma fundamental mencionada por Kelsen. Assim, se a norma constitucional tivesse a sua validade
contestada, esta seria comprovada, igualmente, mediante a sua adequação perante uma norma
fundamental.
216
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. p. 215.
217
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica no Neopositivismo
de Hans Kelsen. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 30
215
92
[...] uma ordem transcendente ideal, que não é estabelecida pelo homem
mas lhe está supraordenada, e uma ordem real estabelecida pelo homem,
218
isto é, positiva.
Sob esta perspectiva, a novidade e crítica apresentada por Kelsen e que
modificou as concepções sobre direito se sustenta na ideia de a norma sempre
levantar possibilidades de interpretação, haja vista a parcial indeterminação
existente nos textos da lei. Isso porque, tal indeterminação, invariavelmente,
culminará na interpretação, que por sua vez será sempre uma escolha, embora
esteja esta limitada àquilo que foi por ele chamado de “moldura”.
A moldura proposta por Hans Kelsen, contudo, apresenta determinada
limitação de um lado, já que as possibilidades de interpretação estão nela inseridas.
Entretanto, doutro lado, permite a extrapolação da norma, bem como do texto e de
suas possibilidades, configurando por si só como um paradoxo. Em verdade, a
moldura é a confissão de que a subsunção por si só não funciona.
Assim, Kelsen afirma que,
[...] o direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma moldura dentro da
qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao
direito todo o ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que
219
preencha esta moldura em qualquer sentido possível.
Não obstante as críticas sofridas, esta novidade apresentada por Hans
Kelsen se fez tão sólida que ainda hoje sentimos os seus reflexos, mormente
quando da aplicação do direito em casos concretos e na atuação do Poder
Judiciário, tal como se encontra estruturado.
A partir da proposta de Hans Kelsen, não seria possível encontrar uma única
interpretação correta para uma norma, posto que a linguagem pode ser sempre
entendida de várias formas, as quais ficam limitadas (e ao mesmo tempo liberadas,
como acima mencionado) apenas à moldura ou ao quadro do Direito, em que pese
esta moldura colocar freio a possível arbitrariedade. De acordo com seu
entendimento, “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a
uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias
soluções que têm igual valor”.220
218
KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. p. 68.
219
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p. 467.
220
Ibidem, p. 391.
93
Assim, uma leitura kelseniana do problema relativo às cotas parece indicar
que inexistiria uma resposta correta, sendo, no entanto, possível justificar as
possibilidades de resposta do direito situadas dentro da moldura, por ser este o
espaço fixo dentro do qual se pode falar em indeterminação. A decisão desta análise
se caracterizaria, portanto, como a escolha de uma das possibilidades de
intepretação. Assim, o ato de julgar esta questão proposta seria, ainda que
veladamente, um ato de vontade, onerando notoriamente, a figura do juiz.
Os juízos de justiça, hoje muito questionados quando se pensa na
“discriminação compensatória” ou “discriminação positiva” estariam em Kelsen
afastados desta análise, pois segundo ele tais juízos não podem ser postos à prova
objetivamente, portanto, na ciência do Direito, não tem espaço para eles.221 A partir
do momento que a decisão passa a ser uma escolha entre alternativas, os juízos de
valor estão intrínsecos no julgador e não mais fazendo parte do Direito.222
Assim, a ideia de “ser justo” fará parte do aspecto emocional do julgador.
Segundo Kelsen, a ciência jurídica “não tem de decidir o que é justo, isto é,
prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de
fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de
valor"223.
Kelsen propôs um paralelo entre texto e norma, identificando a divergência
destes elementos, sendo que o primeiro seria a palavra contida na legislação e o
segundo seria o sentido do texto legal. Essa dicotomia permite a percepção de que
neste “Neopositivismo jurídico”, a lógica analítica possui maior peso. Neste aspecto,
vale aqui recordar a cisão entre questões de fato e questões de direito que
prevalecia naquele momento.
As questões de fato seriam relacionadas às circunstâncias que ocorreram,
isto é, ao caso concreto analisado, enquanto que as questões de direito se
caracterizam como o fundamento e embasamento normativo que se encaixa no caso
concreto a ser analisado. Essa separação se faz notória no positivismo normativo, a
partir do momento em que as questões de direito serão aplicadas por meio do
221
KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Cidade: 3.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 222-223.
222
Embora estejamos falando em uma concepção kelseniana, ainda hoje é possível encontrar muitos
julgadores que efetivam os seus julgamentos a partir de valores totalmente subjetivos. Conforme
Strek, “o caso concreto passou a servir de álibi para qualquer decisão, proferida segundo a
subjetividade (vontade) do juiz ou do tribunal.” STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso:
constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 79.
223
KELSEN, Hans. O problema da justiça. Op. cit., p.16.
94
movimento subsuntivo às questões de fato, consubstanciando a diferença de planos
destes elementos.
É preciso, no entanto, considerar a tensão entre as coisas e os seus
possíveis modos, especialmente porque as palavras nem sempre satisfazem o
sentido das coisas, o que não fica claro na teoria kelseniana. Significa que a
concepção da linguagem como núcleo da aplicação do direito por meio da norma
parece limitar o conhecimento, tendo em vista a própria insuficiência das palavras. A
presente crítica se justifica, pois, embora seja a palavra uma condição de
possibilidade, ela sozinha não é capaz de dar sentido a todas as coisas e em todo o
tempo.
Esta noção de que inexiste a cisão entre questões de fato e questões de
direito e que os objetos e ideias não podem ser separados será entendida apenas
muito tempo depois de Kelsen, tendo, para tanto, importantes contribuições de
Castanheira Neves. A divisão do mundo em dois planos, tal como pensado por
Kelsen, parece perder o sentido para Neves, pois toda questão de fato é também
questão de direito e vice-versa.224
Para Castanheira Neves, o caso concreto deve ser entendido como um
problema jurídico, um problema de direito, em uma certa situação histórica e
real.225Não se pode, a partir desta perspectiva, entender a questão de fato e a
questão de direito como fatores existentes em planos distintos, pois um apenas
ganha sentido com a influência do outro. A problematização jurídica de um caso
concreto é por si só a ilustração desta necessária imbricação.
Castanheira Neves assim explica:
Ao considerar-se a questão-de-fato; ao considerar-se a questão-de-direito
não pode prescindir-se da solidária influência da questão-de-fato. Ou numa
formulação bem mais expressiva: "para dizer a verdade o "puro fato" e o
"puro direito" não se encontram nunca na vida jurídica: o facto não tem
existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação
do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de
aplicar o facto; pelo que, quando o jurista pensa o facto, pensa-o como
matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada
226
ao facto.
224
NEVES, Antônio Castanheira. Questão-de-facto, questão de direito ou o problema metodológico
da juridicidade: (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967. p. 55-56.
225
NEVES, Antônio Castanheira. A distinção entre a questão-de-fato e a questão-de-direito e a
competência do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de “Revista”. In: NEVES, Antônio
Castanheira. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e
outros. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. v. A, p. 483-539. p. 517.
226
NEVES, Antônio Castanheira. Questão-de-facto, questão de direito ou o problema metodológico
da juridicidade: (ensaio de uma reposição crítica). Op. cit., p. 55-56.
95
Considerando-se, pois, que o fato corresponde ao ser e o direito
corresponde ao dever-ser, a segregação estanque destes elementos não sobrevive,
já que, em verdade, o direito é a análise normativa de um fato, de forma que um
pensamento jurídico apenas se sustentará mediante a análise da problemática
advinda dos fatos.227 A fragilidade da divisão kelseniana entre ser e dever-ser; entre
fato e direito, portanto, se torna aparente.
A proposta de Kelsen, embora deveras importante no caminho de
compreensão do direito, apresenta a sua falibilidade, a qual, conforme visto, é
oriunda da completa aposta nas palavras e na subsunção, problemas que hoje se
tornaram mais notórios e evidentes. Em verdade, Kelsen acaba por se tornar
escravo ou, talvez, se enconder dos limites da moldura por ele próprio criada, não
podendo limitá-la e nem tampouco expandi-la, sob o risco de perder-se ou perder
sua teoria.
Estes problemas decorrentes do positivismo normativista permitiram o
surgimento de outros pensamentos, os quais, embora sejam também considerados
como positivistas, assumem novas feições. Assim sendo, rompido o modo de ver o
ser e o vir a ser, novos problemas surgem, nos fazendo deslocar para Herbert Hart,
que pode ser compreendido como representante do neopositivismo semântico, em
vista das suas peculiaridades.
Hart sustenta a necessidade do elemento regra em qualquer explicação
sobre o sistema jurídico, aduzindo uma centralidade do conceito “regra”.228 Segundo
Hart, as regras não compõem um modelo homogêneo, mas sim um modelo
heterogêneo que se subdivide em regras primárias (estipulam um dever) e regras
secundárias (estabelecem poderes e identificação).229
227
Castanheira Neves ainda critica: “(...) o direito não é elemento, mas síntese; não é premissa de
validade, mas validade cumprida. (...) Pelo que o sem-sentido metodológico do esquema
normativista-subsuntivo é agora um evidência. Não é “ o direito” que se distingue de “o fato”, pois o
direito é a síntese normativo-material em que o facto é também elemento, aquela síntese que
justamente a distinção problemática também fundamenta.” NEVES, Antônio Castanheira. Questãode-facto, questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade: (ensaio de uma reposição
crítica). Op. cit., p.58.
228
Na concepção de Dworkin, em que pese inúmeras críticas direcionadas a Hart “A versão do
positivismo de H.L.A. Hart é mais complexa que a de Austin. Em primeiro lugar, ele reconhece ao
contrário de Austin, que regras podem ser de tipos lógicos diferentes (Hart distingue dois tipos de
regras, que chama de ‘primárias’ e ‘secundárias’). Em segundo lugar, ele rejeita a teoria de Austin
segundo a qual uma regra é uma espécie de ordem e a substitui por uma análise mais elaborada e
geral do que são regras.” DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Levando os direitos a sério.
3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 31.
229
Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de HART, H.L.A. O conceito de direito. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
96
Hart trabalha com a ideia da existência de uma norma de reconhecimento, a
qual se faz como um instrumento que identifica a regra como regra dentro de um
sistema. Para ele, a norma de reconhecimento é a situação social em que os
membros do grupo e autoridades possuem um critério comum para identificar as
regras primárias de obediência.230
Segundo Hart,
A norma de reconhecimento que estabelece os critérios para avaliar a
validade de outras normas do sistema é, num sentido importante, que
procuraremos esclarecer, uma norma última (ultimate rule); e, quando, como
geralmente ocorre, houver diversos critérios hierarquizados por ordem de
subordinação e primazia relativa, um deles será considerado supremo
231
(supreme).
A existência da regra de conhecimento, manifestada no seu uso pelos
tribunais e funcionários para identificar as regras do sistema, se confirmaria pela sua
aceitação por meio do exame dos enunciados das pessoas que a utilizam. Assim, a
norma de reconhecimento seria comprovada mediante a maneira como os tribunais
identificam o direito, e à aceitação geral dessas identificações ou obediências a
elas.232 Isto é, seria possível, conforme Hart, a existência de um ponto de vista
interno, o qual representa uma regra, e do ponto de vista externo, que representa o
fato da observância de uma regra.
Regra válida é, desse modo, aquela identificada como regra do sistema por
meio dos critérios de regra de reconhecimento. Assim, segundo Hart, a validade da
norma nem mesmo se caracteriza como um atributo da norma de reconhecimento.
Para ele, não pode surgir um questionamento sobre a validade da própria norma de
reconhecimento que provê critérios, pois esta não pode ser válida, nem inválida.233
Em Hart, é a regra de reconhecimento a resposta para o problema do
fundamento último do sistema jurídico, por meio de critérios de aceitação. Percebese, pois, que esta visão positivista não consegue abordar as questões de nível
prático, tais como a referente às cotas, por se fechar em um modelo teórico,
esquecendo-se das relações humanas. Daí a dificuldade de se ler o problema das
cotas sob esta perspectiva e de se tornar essencial a compreensão a partir de
Dworkin.
230
Cf. HART,H.L.A. Op. cit., p.129-130.
Ibidem, p. 136.
232
Ibid., p. 140.
233
Ibid., p. 140.
231
97
Hart realiza uma notória separação entre o Direito e a Moral, embora
vislumbre um conteúdo comum mínimo entre estes, normalmente relacionado ao
direito natural e a uma abstenção, geralmente formulada em termos negativos como
proibições234. Este filósofo não ignora a existência de questões morais, tampouco a
eventual afinidade desta com o Direito, mas argumenta que estes elementos –
Direito e Moral – devem se manter em planos separados e distintos.
Segundo Hart, não se pode negar que o desenvolvimento do direito tem de
fato sido influenciado, tanto pela moral quanto pelos ideais convencionais de grupos,
no entanto, isso não significa que necessariamente o sistema jurídico deve mostrar
alguma
conformidade
específica
com
a
moral
ou
justiça,
ou
basear-se
obrigatoriamente numa convicção amplamente difundida de que existe a obrigação
moral de obedecer à lei.235
Inclusive no que concerne ao critério de aceitação da regra de
reconhecimento por ele defendido (ponto de vista interno), Hart refuta a influência da
moral e a conotação valorativa deste elemento, justificando-o no temor, na inércia da
vontade, respeito pela tradição ou no cálculo egoístico dos interesses. Não significa,
no entanto, que o Direito não reconheça elementos morais.
Para Hart,
A lealdade das pessoas ao sistema pode, na verdade, se basear em muitas
considerações diferentes: cálculos do interesse a longo prazo; consideração
desinteressada por outras pessoas; uma atitude irreflexiva herdada ou
tradicional; ou o simples desejo de agir como os demais. Não há realmente
nenhuma razão para que os que aceitam a autoridade do sistema não
examinarem sua consciência e decidam que, moralmente, não deveria
236
aceita-la; e entretanto, por diversas razões, continuem a fazê-lo.
Diante de um caso, então, tal como relativo às cotas, por meio de uma
leitura de Hart, poder-se-ia entender que haveria a possibilidade de adoção de um
ou mais critérios morais, pois esta escolha nem sempre tem um significado claro a
oferecer, não havendo, todavia, uma conexão necessária entre estes elementos. 237
As ideias trabalhadas por Hart ainda parecem aduzir a necessidade de se
precisar conceitos debatidos originariamente por juristas, de uma forma descritiva.
Seria possível para Hart a identificação de uma essência do Direito. Ronald Dworkin,
234
Ibid., p. 251.
Ibid., p. 239.
236
Ibid., p. 262.
237
Ibid., p. 264.
235
98
ao analisar e criticar as propostas de Hart compara esta essência do direito com o
DNA, reconhecendo-se o direito e instrumentos jurídicos por meio de um processo
científico e não normativo.238
Assim, Hart tem a ideia de justiça assentada no fato de que sempre que o
comportamento humano for controlado por normas gerais, publicamente anunciadas
e judicialmente aplicadas, um mínimo de justiça é necessariamente concretizado.239
Em observância às ideias de Hart, todavia, é possível notar que, não
obstante a discordância do próprio jurista neste aspecto, a regra de aceitação do
direito por ele proposta possui, de fato, uma conotação valorativa, já que do ponto
de vista interno, a pressão por esta aceitação se daria por serem as regras
valorosas e necessárias para a manutenção da vida social.
Neste sentido, a própria teoria apresentada por Hart já sucumbe aos seus
próprios argumentos. Ademais, em relação à regra de conhecimento enquanto
fundamento de validade, é inviável se admitir que esta elencaria todos os critérios de
validade possíveis e, sendo assim, pela própria leitura de Hart seria ela insuficiente
como instrumento de identificação das normas de um sistema, prejudicando a ideia
de sistema jurídico.
Além disso, a regra de reconhecimento se faria válida em virtude de sua
circularidade, já que se manifesta pela prática dos Tribunais. Contudo, é bem
verdade que se os próprios Tribunais são identificados pela regra de conhecimento,
esta pressupõe que o sistema já esteja funcionando, tornando, igualmente, esta
teoria falha e eivada de vícios.
Diante disto, após as leituras acima e a identificação de suas respectivas
vicissitudes que inviabilizam a adoção das ideias até agora apresentadas, e a fim de
traçar um caminho até Ronald Dworkin como forma de se buscar possibilidades de
resposta para o caso relativo às cotas, parece necessário abordar também o cenário
criado com a Viragem Linguística Ontológica, com Martin Heidegger, até
alcançarmos a perspectiva de Gadamer.
O adequado entendimento da Viragem Linguística se mostra importante na
medida em que esclarece o último giro linguístico, o qual apresenta um núcleo
central em que o presente trabalho se assenta, qual seja, a ideia de
intersubjetividade.
238
239
Cf. DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 216.
HART, H. L. A. Op. cit., p. 266.
99
Primeiramente, já lançando mão da perspectiva histórica, destaca-se que
desde Aristóteles havia sido estabelecida a distinção entre conhecimento teorético
(científico) e conhecimento prático (prudencial), o qual pergunta pela correção
normativa das nossas práticas no mundo240. Tratava-se, então, de uma relação
tensa entre o sujeito e o objeto, com ênfase neste último, posto que o conhecimento
estava nas coisas, prevalecendo os ideais de uma razão pura. Cuidava-se, portanto,
de um razão cientificista, objetificante e assujeitadora do objeto.
Após o século XV, todavia, a ideia de que a ciência fornecia todas as
respostas necessárias perdeu forças, cedendo espaço à filosofia da consciência241,
a qual possuía um aspecto mais subjetivista. Nesta, a linguagem é tida como um
instrumento que relaciona o sujeito e o objeto, dando ênfase ao primeiro. O
conhecimento passa a estar no pensamento, isto é, na consciência interior de cada
sujeito. O pensar é tido como a forma de se estruturar a percepção de como o
mundo realmente é, isto, a reflexão se concentra naquilo que é pensado242.
Com diretas influências de Immanuel Kant243 (Crítica da razão pura e Crítica
da razão prática), um dos principais precursores da filosofia da consciência, o
sentido das coisas passa a não estar mais nas coisas, mas sim na consciência, no
sentido de entendimento das coisas. Neste cenário, o direito era fundamentado
como diferente da moral, em virtude desta ser da consciência de dever interno e
aquele como uma consciência do dever de fora.
Ao lado de Kant, Descartes entende o pensamento como o fundamento de
tudo, tornando famosa a ideia de que “penso, logo sou”.244 Neste viés, o homem se
conheceria como tal, reconhecendo a sua existência, por meio da sua atividade
pensante. O empirismo de David Hume, a quem é também atribuída esta virada
240
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão
para além do constitucionalismo e democracia. Op. cit., p. 156.
241
A filosofia da consciência pode ser considerada como uma virada paradigmática advinda na
modernidade, pela qual o conhecimento se deslocou do objeto para o sujeito, no sentido que a
linguagem se colocava como um terceiro instrumento entre eles. O conhecimento deixa de estar na
coisa e passa a estar na razão. O caráter subjetivo do conhecimento passa a prevalecer sobre a
objetividade e cientificidade até então predominantes.
242
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1995.
p.109.
243
Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de KANT, Immanuel. Crítica da razão pura.
Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2010.
244
Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de DESCARTES, Rene. Discours de la
Méthode. Paris: Larousse, 1972.
100
paradigmática245, contribuiu igualmente para a concepção subjetiva, entendendo que
o conhecimento teria origem em ideias e impressões, isto é, na experiência de cada
ser humano.
A noção de conceitos dependia, então, de fundamentos e conceitos práticos
que os definiam, havendo a busca pela certeza e por um fundamento da verdade, de
forma lógica e racional. Buscava-se fontes e critérios que pudessem definir os limites
da razão. Vale mencionar que tanto na visão aristotélica (objetivista), quanto na
filosofia da consciência (subjetivista), a linguagem representa um mero instrumento
que liga o conhecimento do objeto ao sujeito, na primeira, e o conhecimento do
sujeito ao objeto, na segunda. A linguagem, portanto, se transforma em relação
instrumental.246
Por fim, a partir da filosofia de linguagem, nosso ponto principal, a relação
passa a ser sujeito-sujeito, pois o conhecimento transfere-se para a linguagem. É
neste aspecto que se encontra o início do desenvolvimento da hermenêutica política
de Dworkin.
A relação entre objeto cognoscível e sujeito cognoscente é de grande
importância para o entendimento do caminho proposto por este trabalho. É curial
que se entenda que inicialmente o objeto dominava o próprio sujeito, isto é, o objeto
o assujeitava. Não interessava a racionalidade do sujeito, pois a correição de
entendimento estava objetificada. Já em um seugndo momento, o sujeito passa a
dominar o objeto, sendo possível ai o estabelecimento de inúmeros sentidos para
uma mesma situação, já que cada sujeito compreendia o objeto, a partir do seu
próprio ponto de vista. Finalmente, em um terceiro momento, abre-se espaço para a
relação entre sujeitos cognoscentes, sendo a linguagem a forma do conhecimento.
A busca da ruptura do esquema sujeito-objeto significa, pois, conceder à
liguagem o status de condição de possibilidade de uma hermenêutica, pois permite a
inserção do mundo prático no mundo das ideias. Sigifnica, portanto, que a
interpretação deixa de se concentrar apenas no âmbito das ideias e passa a existir
também no mundo concreto.
Tem-se, pois, que a partir viragem linguística ontológica, “estar-ai” no mundo
seria estar no mundo construído pela linguagem, sendo que é exatamente o fato de
245
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. Op. cit., p. 175.
246
Ibidem, p. 254.
101
nos comunicarmos por meio de linguagem que nos distingue dos animais. As
palavras tornam-se, assim, condição de possibilidade. Foi esta uma viragem
linguística mais filosófica ou, quiçá, poética, a qual considerava que a língua é a
morada do ser.247 A partir desta nova visão, pretende-se enxergar e buscar a
essência do ser. Pode-se afirmar que hoje só enxergamos aquilo que é um ente
(materialmente falando).
A importância desta segunda Viragem Linguística é notória, uma vez que,
rompida a razão pura a partir das ideias de Wittgenstein, é lançada um carga
deveras pesada sobre as palavras, conforme já verificado. Em real verdade, no
entanto, naquela oportunidade deixou-se de observar a insuficiência do que seja
uma palavra e de como ela pode representar tudo aqui que existe. Parece, então,
necessária a retomada da construção das coisas por elas mesmas e por intermédio
das palavras, preenchendo, concomitantemente, a lacuna deixada.
Diante disto, faz-se adequada a busca pelo ser presente no ente. A
compreensão ontológica, “é a forma originária de realização do ser-aí humano
enquanto ser-no-mundo”.248 Neste sentido, Heidegger observou que a palavra
parecia insuficiente. A palavra havia adquirido uma plenipotência que não possui,
sendo que para completá-la seria necessário o elemento “tempo”, o qual definirá os
limites, sentidos, perspectivas e possibilidades da palavra como caminho para
expressão.
Martin Heidegger trata ainda da cura, como autocompreensão, no sentido de
que é preciso que o ser se compreenda para que possa, então, compreender suas
possibilidades, abrindo-se para si no estar-lançado. Para Heidegger, o estarlançado, porém, é o modo de ser de um ente que sempre é suas próprias
possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e
a partir delas (projeta-se para elas).249
A autocompreensão, desta forma mencionada como cura, está presente no
pensamento de Martin Heidegger como uma forma de preocupação com o sentido
do ser, construindo, assim, a hermenêutica como elemento de ligação com o próprio
preocupar-se do homem consigo mesmo. Na medida em que se compreende, o
247
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I e II. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1998. p. 40.
249
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. p. 244.
248
102
homem compreende o ser e, assim, compreende-se a si mesmo.250 A pre-sença é
um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.251
A dúvida consiste, todavia, no que seja o ser. Na visão da filosofia da
hermenêutica de Heidegger, o ser está naquilo que é óbvio para nós, isto é, aquilo
que dispensa qualquer questionamento. É o pressuposto na linguagem; é um
sentimento e uma percepção que temos sobre as coisas (é, em verdade, um outro
mundo).252 A linguagem funciona como um mecanismo de mediação entre o sujeito
que conhece (sujeito cogniscente) e o objeto a ser conhecido (objeto cogniscível).
Oportuno destacar que a linguagem pode ser considerada, em verdade,
como uma série de acordos linguísticos pré-estabelecidos. A linguagem é acessória
e instrumental, todavia não fica relegada a um terceiro plano, já que atua mediando
a razão e o ser253. A grande tensão ocorre quando não se consegue modular essa
linguagem.
Quase toda a filosofia, até Heidegger, trabalhou essencialmente com a
distinção entre a razão prática (ética, moral, normas em geral) e razão pura (ciência,
metodologia). No entanto, para Heidegger, a razão prática, a razão pura e tudo
aquilo que se observa no mundo é uma dimensão apofântica (Não há nenhuma
garantia de verdade no que é feito na dimensão da experiência científica e humana).
A dimensão verdadeira passa a ser a hermenêutica.254
Significa, pois, que tudo aquilo que organizamos racionalmente são
“coisificações” que utilizamos para conseguir lidar com toda a complexidade em que
250
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 108.
251
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Op. cit., p. 256.
252
“Insere-se aqui o Dasein que, segundo Heidegger, é a condição ôntica da possibilidade de
descobrir o ente que se encontra no mundo, no modo de ser da prestabilidade. O Dasein é de tal
maneira que sempre “soube” (compreendeu) – ou não “soube” (compreendeu)-ser tal ou tal. O Dasein
é, pois, pré-ontológico, isto porque o sentido de ser que é buscado já é alcançado préontologicamente na compreensão do Dasein”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise:
uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 251.
253
Destaca-se que a linguagem possui caráter instrumental, todavia enquanto um instrumento
fundamental. Conforme Lenio, “a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um
sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e
consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 217.
254
Para Rafael Lazzarotto Simioni,” [...] somente com a virada linguística da filosofia hermenêutica de
Heidegger tornou-se possível superar [aquela] cisão entre teoria e prática ou entre razão pura e razão
prática. Essa é uma longa história que não cabe aqui conta-la. O importante é ter presente que o
mundo prático é a dimensão da experiência humana e social na qual são articulados todos aqueles
valores éticos e convicções morais que constituem o sentido da integração social e – se assim se
quiser – o sentido da humanidade do homem. É precisamente o resgate desse mundo prático que
constituiu a tarefa pós-positivista da decisão jurídica. Mas como ter acesso a ele sem se deixar
contaminar por todas as ideologias e diferenças culturais nele presente?” SIMIONI, Rafael Lazzarotto.
Decisão jurídica e autonomia do direito. Op. cit., p. 142.
103
vivemos. Mas o verdadeiro sentido das coisas está na dimensão hermenêutica e
naquilo que podemos ver e entender sem questionar, tamanha sua obviedade (nem
sequer chegamos a percebê-lo).255
A Virada linguística ontológica é, então, sentimento, sensibilidade para
entender que a interpretação que o sujeito faz em relação ao mundo não tem
relação com a experiência científica que se vive (Heidegger descobriu um novo
mundo: o mundo hermenêutico). A compreensão se faz sempre circular, já que na
medida em que desvela sentidos, esconde outros.
A circularidade da compreensão se caracteriza como um meio de
testificação, já que a partir dela, ideias são construídas, difundidas e testadas,
muitas vezes, de forma inautêntica. É por meio desta circularidade que fundamentos
de horizontes já constituídos serão questionados e averiguados, de forma que,
quando houver incompatibilidade daquilo que se propagou e que se tem como précompreensão com uma fundamentação diversa, ocorrerá o estranhamento, gerando,
via de consequência, novas (pré)compreensões.
A difusão do pensamento heideggeriano ocorreu de forma célere e
extensiva, em virtude do espaço por ele conquistado, tendo como um de seus
principais discípulos Hans-Georg Gadamer que, continuando as suas ideias,
desenvolve uma nova forma de pensamento, a qual foi denominada “hermenêutica
filosófica”. Em que pese a existência de semelhanças entre as teorias de Heidegger
e Gadamer, decorrentes da própria influência que o primeiro exerceu sobre este
último, a hermenêutica filosófica parece carecer do caráter eminentemente filosófico
outrora encontrado no pensamento heideggeriano.
Vale mencionar que tanto Heidegger quanto Gadamer não refutam a
existência de métodos. Os seus pensamentos, no entanto, desconstituem o método
como algo que por si só leva à verdade, ou seja, é preciso ir além dele. Está ai a
essência da hermenêutica filosófica. Neste sentido, o processo de conhecer as
coisas transcende uma simples tarefa ordenadora de passos e etapas construída de
maneira ideal, de forma a adequar o conhecer às coisas sem de fato ter contato com
elas.
Na perspectiva de Gadamer, a linguagem é a condição de todas as coisas e,
por isso, entende que ser que pode ser compreendido é linguagem. Para ele, o
255
Para maiores, consultar STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da
interrogação heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001.
104
sentido não se encontra somente na locução ou no que está escrito, mas em todas
as criações humanas, sendo seu descobrimento uma tarefa hermenêutica. É
preciso, portanto, deixar que as coisas falem sobre elas antes de se chegar a uma
conclusão precipitada.
Diante desta nova visão, diferentemente de Heidegger, a compreensão em
Gadamer é desenvolvida no contexto de um projeto que procura recuperar a
historicidade da cultura e do mundo vivido256, em uma perspectiva crítica e nova. Daí
a importância da (re)construção histórica proposta no primeiro capítulo, pois é a
partir da análise de uma herança jurídica que será possível preencher as lacunas
temporais do direito. 257
Gadamer, baseado na fenomenologia de Edumund Husserl e Heidegger,
atuou basicamente em face do extremo positivismo e suas verdades absolutas,
indicando maior primazia à compreensão da adequação por meio da linguagem do
que à questão de método. A linguagem é elevada na hermenêutica filosófica de
Gadamer, sendo esta que determina a compreensão, limitando a capacidade de agir
do indivíduo e de observar e/ou analisar o mundo de acordo com sua linguagem. A
linguagem afasta o intérprete da subjetividade. 258
Se antes da viragem linguística ontológica, o sentido das coisas estava na
compreensão, para Gadamer, a tarefa hermenêutica se converte por si mesma num
questionamento pautado na coisa, e já se encontra sempre determinada por este.
Significa, pois, que aquele que quer compreender não pode se entregar às suas
opiniões prévias e ignorar a opinião do texto; não até que este já não possa ser
ouvido e perca sua suposta compreensão.259
Diante deste panorama, sob a perspectiva gadameriana, o exercício da
compreensão se faz a partir de um horizonte, que pode ser entendido como um
âmbito de visão que abarca tudo que é visível de determinado ponto.260 É proposta,
então, a existência de horizonte inautêntico e autêntico.
256
STEIN, Ernildo. Gadamer e a consumação da hermenêutica. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio
Luiz (Coords.). Hermenêutica e Epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2011. p. 14.
257
FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. História, direito e sociedade: a captura histórica do direito
– itinerários da metodologia e interpretação. Op. cit., 6.
258
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. A virada hermenêutica. Rio de Janeiro:
Vozes, 2007.
259
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Op. cit., p. 405.
260
Ibidem, p.452.
105
O primeiro se refere à forma apriorística de se existir no mundo, bem como
de buscar a compreensão de forma superficial, sem ter se apropriado previamente
da coisa, revelando-se enquanto um discurso revestido de impropriedade. Este
discurso se furta a revolver o chão histórico.
Já o horizonte autêntico se revela no modo como o homem passa a
compreender a coisa a partir do próprio acontecimento do mundo, ampliando o seu
âmbito de visão para além de uma superficialidade. Este horizonte busca desvelar
aspectos equivocados, haja vista que o ser possui a tendência de se encobrir, isto é,
de se apresentar de maneira falsa, o que ocorre, v.g., se for apresentada uma
perspectiva histórica distorcida.
Assim, autêntico é aquilo que em dado momento fornece uma somatória
correta do passado, não sendo, portanto, uma característica auferível de maneira
abstrata, já que as construções históricas levaram a um modo de ser. A
autenticidade ou inautenticidade, em verdade, se refere a como o sujeito
cognoscente é capaz de perceber a coisa. É a sua capacidade de perceber todas as
camadas que se sobrepõem, fazendo um determinado desenho em um determinado
momento.
A autenticidade é, então, enxergar e compreender a coisa como ela é e não
apenas como ela parece. É o ‘é’ fenomenológico, o que significa que “o horizonte é”,
enquanto que a autenticidade ou inautenticidade é a capacidade do sujeito ler este
horizonte. A mediação linguística entre a coisa e a compreensão, a partir do que nós
somos (tempo), constitui-se como o horizonte. A ideia de horizonte permite a
compreensão de que o ser é tempo, uma vez que ele se dilui em todas as
perspectivas da sua existência.
Pontua-se que não é possível falar em horizontes do mundo; é preciso
limitá-los, o que gera a necessidade de se afastar para compreender um horizonte,
já que a autenticidade e inautenticidade não pertencem ao horizonte, mas são a
adequação da leitura daquele que o enxerga. Por isso é válido aduzir que a
coerência e e integridade buscadas por Ronald Dworkin podem se estabelecer
quando se age de acordo com o horizonte, pois quando se rompe com ele, rompe-se
com as coisas como elas realmente são.
A tendência do ser encobrir-se (velar-se) acima afirmada leva ao
entendimento de que a racionalidade (razão pura) não é suficiente para entender
determinada coisa a partir de distinções práticas, pois até mesmo as palavras
106
podem esconder as coisas, de forma que se estabelecem métodos e normas e se
esquece da substância. A ideia de horizonte é, portanto, essencial para desvelar o
direito, no qual o horizonte é desenhado em um sistema.
Daí a nossa escolha metodológica da reconstrução na perspectiva de um
horizonte autêntico261, a fim de desvelar fatos e fundamentos eventualmente
encobertos por pré-compreensões inadequadas, visando buscar a melhor resposta
para o objeto de estudo. Trata-se de uma tentativa de, no interím da circularidade da
comprensão, atingir o estranhamento em relação a fatos e conceitos difundidos por
horizontes inautênticos, alcançando uma interpretação mais íntegra.
No entanto, em uma perspectiva prática, observa-se que os horizontes
autênticos e inautênticos parecem, muitas vezes, estar imbricados, no sentido de
que estes últimos, embora estejam na seara da impropriedade, se fazem presentes
na interpretação cotidiana, velando, muitas vezes, o horizonte autêntico, por meio de
um desgaste do discurso público. A importância dos horizontes para Gadamer é
assim explicitada:
Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente
longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo.
Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais
próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe
valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro
deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A
elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do
horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam
262
frente à tradição.
Os horizontes estão constantemente sendo formados, no sentido de que as
pré-compreensões são invariavelmente alcançados pelo passado e pela tradição. O
horizonte histórico é, portanto, parte da compreensão, sendo que com o projeto de
horizonte histórico, leva a cabo a sua superação. Essa realização é denominada por
Gadamer como “consciência histórico-efeitual”.263
Neste interim, a consideração de dados históricos nada mais é que parte da
interpretação e produção de um entendimento, levando-se em conta aquilo que
261
Em bem verdade, a leitura do horizonte que é autêntica ou inautêntica. “O horizonte do sentido énos dado pela compreensão que temos de algo. O ser humano é compreender. Ele só se faz pela
compreensão. Ele só se dá pela compreensão. Compreender é um existencial, que é uma categoria
pela qual o homem se constitui. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma
exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 253.
262
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Op. Cit., p. 452.
263
Ibidem, p. 449.
107
outrora já foi lido, interpretado ou decidido, caracterizando um caráter construtivo na
história, edificando, assim, o seu horizonte autêntico. Trata-se, então, da
reconstrução dos modos de ser possíveis. É nesta sustentação que Gadamer afirma
que os pré-juízos de um indivíduo, muito mais do que seus juízos são a realidade
histórica do seu ser.264
Assim, a história seria para Gadamer a condição necessária para que um
ente exista enquanto ser-no-mundo, sendo ele um ser concreto, real e existente em
um determinado tempo. Sob esta perspectiva, a tradição ganha força na experiência
hermenêutica, não no sentido de uma análise linear do passado, mas enquanto um
fenômeno decorrente da distância temporal que permite uma abertura de
possibilidades no compreender, de acordo com a sua historicidade, isto é, uma
melhor compreensão das coisas.
Segundo Gadamer,
Quando procuramos compreender um fenômeno histórico a partir da
distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um
todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual. Ela
determina de antemão o que se mostra a nós de questionável e como
objeto de investigação, e nós esquecemos logo a metade do que realmente
é, mais ainda, esquecemos toda a verdade deste fenômeno, a cada vez que
265
tomamos o fenômeno imediato como toda verdade.
Sob esta perspectiva, para Streck, Gadamer assim considera a tradição:
A experiência hermenêutica, diz o mestre, tem direta relação com a
tradição. É esta que deve anuir à experiência. A tradição não é um simples
acontecer que se possa conhecer e dominar pela experiência, senão que é
linguagem, isto é, a tradição fala por si mesma. O transmitido, continua,
mostra novos aspectos significativos em virtude da continuação histórica do
acontecer. Através de sua atualização na compreensão, os textos integramse em um autêntico acontecer. Toda atualização na compreensão pode
entender a sim mesma como uma possibilidade histórica do compreendido.
Na finitude histórica de nossa existência, devemos ter consciência de que,
266
depois de nós outros entenderão cada vez de maneira diferente.
264
Para uma análise crítica do pensamento de Gadamer, recomenda-se a leitura de STEIN, Ernildo.
Aproximações sobre hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2004.
265
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Op. cit., p. 448.
266
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. Op. cit., p. 265.
108
Assim, na visão gadameriana, a tradição é essencialmente conservação e
como tal sempre será atuante nas mudanças históricas. Ainda nesta perspectiva, na
realidade, a tradição é sempre um momento da liberdade e da própria história.267
A compreensão do horizonte autêntico contribui para o desvelamento que
nos leva a adequada compreensão do ser. Em análise, então, ao papel dos
horizontes históricos enquanto uma forma de melhor e mais autêntica compreensão,
a produção de novos sentidos em virtude da consideração de tais horizontes origina
o que se concebeu enquanto fusão de horizontes.
Na medida em que os horizontes vão se sobrepondo, vão se assentando
como camadas de tempo sobre as coisas e se fundem em uma só coisa: o que é
agora; o presente. Quando novas perspectivas surgirem, estas irão se fundir a ele,
que passará a ser um novo horizonte. Tem-se, então, que a fusão de horizontes é a
consolidação do horizonte vigente, formando sempre uma nova coisa, diferente do
que foi, que efetivamente é e que inexoravelmente deixará de ser268. Reconstrói-se
constantemente, pois é esta reconstruçao que nos cobra o compreender como algo
que se solta dos entes.269
Faz-se necessária, nesta esteira, uma confrontação entre visões de mundo e
experiências prévias a fim de gerar a melhor compreensão para a produção de
novas ideias diante de problemas atuais. Através da fusão de horizontes se procura
explicitar ou desvelar as razões mais originárias e fundamentais que podem justificar
alguma decisão ou interpretação.
A dinâmica da fusão de horizontes não pretende, contudo, que seja o
passado engessado enquanto único momento correto e de cogente aplicação. É
preciso que se quebre o gesso, possibilitando, assim, o movimento das coisas.
Segundo Gadamer,
A fusão se dá constantemente na vigência da tradição, pois nela o velho e o
novo crescem sempre juntos para uma validez vital, sem que um e outro
270
cheguem a se destacar explicitamente por si mesmos.
267
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Op. Cit., p. 422.
268
Fundem-se os horizontes de sentido da coisa com o intérprete. O sentido somente se dá se for
possível ultrapassar as “capas de sentido endurecidas” do nível ôntico. STRECK, Lenio Luiz. Verdade
e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 576.
269
As coisas só adquirem sentidos em virtude de serem transcendidas. Esse sentido ocorre a partir
da força dos efeitos que a história tem sobre a fusão de horizontes. In. STRECK, Lenio Luiz. Verdade
e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 569.
270
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Op. cit, p. 457.
109
Neste diapasão, a fusão permite o enfrentamento entre o texto e o presente,
propiciando uma melhor produção, já que compreender é sempre o processo de
fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos.271 Não são os
horizontes, portanto, fechados em si.
Valendo-se, então, da fusão horizôntica de Hans-Georg Gadamer, dentre
tantas outras perspectivas de seu pensamento, vislumbra-se que a compreensão
decorre de uma fusão de horizontes da tradição influenciada pela pré-compreensão
do intérprete, sendo o conjunto de preconceitos absorvido pelo indivíduo por meio da
tradição linguística.272
Assim, segundo a hermenêutica de Gadamer, composta por três variáveis
(tradição linguística, destaque e aplicação), compreender não é se deslocar para o
outro e reproduzir suas vivências, mas efetivamente colocar-se de acordo com a
coisa, encerrando sempre em um momento de aplicação.273Por isso, na história
efeitual de Gadamer, a fusão dos horizontes do texto e do intérprete permite que se
torne consciente a pré-compreensão, para que assim se possa afastar os obstáculos
advindos da comunicação linguística.
Imprescindível ainda levar em conta, para Gadamer, a finitude humana,
representada pelo ser-para-morte, sendo considerada verdade aquela que se
caracteriza como histórica e temporal, posto que o ser humano é e sempre será
incompleto. Em vista desta realidade, deve ele admitir a complementação de todos
os preconceitos que se tornaram conscientes após o exercício da hermenêutica.
Observa-se, portanto, que a partir da Viragem Linguística, a linguagem é
dotada de grande valor, como uma condição de possibilidade a regular a relação
intersubjetiva, estando em destaque também a possibilidade e necessidade de se
traçar um horizonte histórico autêntico, a fim de possibilitar a tradição e a fusão de
horizontes que, por sua vez, podem permitir a compreensão de determinadas
situações.
Pois bem. Em assim sendo, o aprofundamento nas ideias de Heidegger e
Gadamer permitirá um melhor entendimento acerca da proposta dworkiana, a qual
se pretende observar para o enfrentamento da questão relativa às cotas. Cumpre
271
Ibidem, p. 457
Ibid., p. 559-560.
273
Ibidem.
272
110
mencionar que Dworkin sustenta questões relativas à integridade do direito, bem
como adequação e coerência, elementos estes umbilicalmente ligados às ideias
trabalhadas nas viragens linguísticas. Dworkin, marco teórico deste trabalho, busca
os seus fundamentos nas teorias de Heidegger e Gadamer, o que denota a
importância de se conhecer estas, para compreender o fenômeno das cotas a partir
da hermenêutica política.
Neste sentido, em uma análise da instituição de cotas no ensino superior
público brasileiro, revisitando as teorias do positivismo clássico, percebeu-se que
para estes há um viés decisionista. Doutro lado, a partir de uma leitura gadameriana
deve-se compreender a questão das cotas com base na tradição histórica que esta
carrega consigo, interpretando-a para além do conceito semântico de igualdade e
enaltecendo o objetivo político-social nela intrínseco. Entre esses dois polos,
encontra-se a proposta de Ronald Dworkin, cujos principais pontos passaremos a
abordar.
De qualquer sorte, dada a importância e complexidade da discussão sobre
cotas no ensino superior público brasileiro, antes de adentrarmos no marco teórico
essencialmente, fez-se necessário traçar estas linhas para permitir uma vasta visão
sobre a questão tratada e justificar os posicionamentos aqui adotados. Tal
necessidade se explica, pois a implantação de cotas para ingresso no ensino
superior se mostra paradoxal, já que ao mesmo tempo em que pretende incluir,
parece de outro lado privilegiar determinada parcela da sociedade, sendo
comumente questionado se o mecanismo de inclusão não segrega mais do que
equaliza. A resposta para estas questões exige, então, um resgate teórico, a fim de
melhor sustentar a opção metodológica do trabalho e permitir uma clara
compreensão do problema enfrentado.
A partir destas perspectivas, o substancialismo274 de Ronald Dworkin parece
oferecer alternativas que tornam a questão das cotas passível de uma sustentação
mais sólida dentro do paradigma do constitucionalismo contemporâneo do Brasil.
Dworkin apresenta uma teoria que possui em sua essência uma perspectiva jurídica
hermenêutica, caracterizando o Direito como uma prática interpretativa, isto é, como
274
A corrente substancialista dedica uma maior atenção ao conteúdo material de uma Constituição,
atribuindo a esta um importante papel, considerando seus vetores axiológicos e atribuindo-lhe um
conteúdo valorativo, de forma que consideram ela como o instrumento que define os fins do Estado e
da sociedade. Para os substancialista, é necessária a observância de uma leitura moral do Direito (o
que não representa a moral individual) e a garantia de sua integridade, por meio da consideração de
princípios.
111
uma questão da justificação adequada, a qual está, invariavelmente, comprometida
com princípios e convicções morais da comunidade. Para ele, o direito constitui a
melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas.275
Em sendo assim, o Direito é muito mais do que uma mera interpretação da
semântica da linguagem, a qual Dworkin denomina “armadilha do positivismo”276,
isto é, vai muito além da redução dos textos à função empírica de verdade ou
falsidade. Esta concepção meramente semântica do positivismo jurídico, isto é, a
análise isolada da linguagem, é criticada por Dworkin, que aduz que esta
interpretação gera o problema de diversas possibilidades de combinação lógica
linguística, mantendo o Direito em um campo duvidoso.277
Doutro lado, para Dworkin, não basta apenas uma argumentação racional,
pois esta não seria suficiente para atingir o Direito enquanto prática interpretativa,
divergindo, portanto, da teoria de Habermas278. Por isso, na construção de uma
teoria política do direito, Dworkin trabalha com dois pilares principais, quais sejam, a
integridade e coerência, abordando em sua teoria um ponto de vista prático do
Direito.
Corroborando o que ora se expõe, oportuno consignar as lições de Menelick
Carvalho Neto:
O ponto de partida de Dworkin aqui, portanto, é o da crítica ao excesso de
racionalidade inconsciente que marcava a visão anterior não só do conceito
de ciência mas do próprio conceito de direito, de norma e de ordenamento
jurídico, é saber que uma norma geral e abstrata nunca regulará por si só
as situações de aplicação individuais e concretas, até mesmo pela
incorporação de maior complexidade ao ordenamento de princípios que a
sua adoção necessariamente significa, ao dar uma maior densidade aos
princípios constitucionais básicos e ao, simultaneamente, abrir novas
279
possibilidades de pretensões abusivas.
275
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. XI.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 1-35.
277
Em inúmeras passagens de sua obra, Dworkin debate a teoria de Herbert Hart, sendo que no livro
“O conceito do Direito”, há um pós-escrito elaborado por Hart para responder às críticas de Dworkin, o
qual, no entanto, foi publicado apenas após o seu falecimento.
278
A proposta de Habermas é a substituição da razão prática pela razão comunicativa, a qual, por
sua vez, se configura como um conceito procedimental de racionalidade, que se expressa numa
compreensão descentrada de mundo. HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade.
Trad. A. Marques et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. p. 275-307.
279
CARVALHO NETO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista
Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, Imprensa Universitária da UFMG, n. 88, p. 81-146,
dezembro, 2003. p. 66.
276
112
De início, é importante ressaltar que Dworkin se opõe ao procedimentalismo
discursivo, pois trabalha com a ideia da existência de métodos diversos utilizados
por cada intérprete na prática interpretativa. Para Dworkin,
Interpretar uma prática social é apenas uma forma ou ocasião de
interpretação. As pessoas interpretam em muitos contextos diferentes e,
para começar, devemos procurar entender em que esses contextos diferem.
A ocasião mais conhecida de interpretação tão conhecida que mal a
reconhecemos como tal é a conversação. Para decidir o que uma outra
pessoa disse, interpretamos os sons ou sinais que ela faz. A chamada
interpretação científica tem outro contexto: dizemos que um cientista
começa por coletar dados, para depois interpretá-los. Ou, ainda, tem a
interpretação artística: os críticos interpretam poemas, peças e pinturas a
fim de justificar algum ponto de vista acerca de seu significado, tema ou
propósito. A forma de interpretação que estamos estudando, a interpretação
de uma prática social, é semelhante à interpretação artística no seguinte
sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma
entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na
interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no
280
caso da interpretação científica.
Dworkin propõe, portanto, uma nova leitura para a interpretação social, a
partir do ponto de vista interno dos intérpretes. Segundo ele, a “interpretação
construtiva consiste em impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo
o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que
pertençam”.281
Visando exercer a prática interpretativa e entendendo que esta ocorre por
meio da reconstrução de práticas sociais, Dworkin apresenta três fases de um
processo interpretativo, quais sejam a pré-interpretativa (identificação de regras e
padrões); etapa interpretativa (justificação geral para as regras e padrões
identificados); e etapa pós-interpretativa (ajusta a prática identificada na etapa préinterpretativa em face da justificação da etapa interpretativa).282
Segundo Dworkin, uma interpretação correta deve abordar tanto a ideia de
convencionalismo, pensando na história do Direito, quanto a ideia do pragmatismo
que visa dar importância também à prática. Dworkin começa, então, a criar a ideia
da hermenêutica política.
Um dos importantes elementos da narrativa de Dworkin quando da
propositura de uma interpretação construtiva é a ideia do romance em cadeia (chain
280
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 60.
Ibidem, p. 57.
282
Ibid., p. 81-82.
281
113
novel) que confirma o direito enquanto uma prática interpretativa283. Para Dworkin,
esta tarefa exigiria que os aplicadores do direito conhecessem toda a história deste,
já que cada sentença ou ato jurisdicional/legal é um pequeno capítulo do direito.
Deve-se observar aquilo que foi decidido no passado e aquilo que se espera para o
futuro – as visões do convencionalismo e pragmatismo, portanto, combinadas.
Percebe-se o dimensionamento de um conteúdo valorativo do Direito e,
principalmente, da Constituição, para além de uma validação apenas pelo
procedimento, embora Dworkin reconheça igualmente a importância da prática de
interpretação. O substancialista não encontra, todavia, uma teoria da interpretação
única que seja suficiente para a resolução de todas as questões teóricas,
inexistindo, para ele, critérios comuns para tanto.
A partir, então, de uma análise de integridade, a qual será melhor analisada,
e refutando a ideia do procedimento como validação do Direito e de um ideal
democrático, Dworkin apresenta a convicção da possibilidade empírica e do direito a
respostas corretas para os casos práticos, o que pode, efetivamente, contribuir em
grande medida com o assunto aqui exposto, haja vista as cotas tratar-se de assunto
sensivelmente controverso.
Parece claro que Dworkin busca o ideal da decisão jurídica. Não estabelece
que encontrar a única resposta correta seja uma tarefa fácil ou lógica, mas busca
uma teoria política convincente284. Vale aqui ressaltar que ao se mencionar “teoria
política” não significa que a política fundamentará o direito ou a decisão referente à
resposta correta, tendo sido por ele realizada uma clara distinção entre política e
princípios morais, dando ênfase na importância destes últimos, o que será
aprofundando em tópico adiante.285
Neste sentido, Dworkin funda uma teoria política do Direito, abalizada pela
interpretação, afirmando que a decisão jurídica única é correta e exigida por questão
de coerência e integridade, sendo esta uma escolha política, ou seja, de acordo com
o projeto político da comunidade e fundada em princípios morais.286
283
Ibid., p. 275.
CF. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 175-215.
285
Em verdade, trata-se de uma interpretação política de acordo com os princípio de uma
comunidade.
286
Conforme Simioni, o direito é uma atividade interpretativa com um inevitável caráter político, no
sentido de uma atividade interpretativa construtiva do sentido das proposições jurídicas em uma
perspectiva mais abrangente. In. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão
Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012.
p. 37
284
114
A coerência e a integridade, por sua vez, são em exata medida a descoberta
do horizonte autêntico, isto é, observar tais elementos da proposta de Dworkin
significa aplicar o direito a partir de uma leitura autêntica de um horizonte. Neste
sentido, se busca-se um horizonte autêntico é necessário um parâmetro para auferilo. Daí chegarmos a Dworkin partindo de Heidegger e Gadamer.
Isto é, o horizonte de Gadamer, enquanto horizonte jurídico autêntico, cobra
coerência e integridade, o que se fecha na hermenêutica política de Dworkin. Se
houver a supressão de Heidegger e Gadamer, volta-se para Kelsen. A tentativa é
nos livrar da armadilha do positivismo normativista.
Neste viés, sob uma perspectiva substancialista, há uma série de problemas
que afastam a ideia de uma interpretação absolutamente neutra, fazendo-se crucial
que esta seja direcionada de acordo com as convicções morais políticas comuns. A
dificuldade parece residir, todavia, na forma de se encontrar a moralidade política do
projeto comunitário comum. Parece existir uma linha muito tênue entre a moral
comum e a moral subjetiva, a qual foi base do positivismo normativista e é a causa
da discricionariedade.
Isso porque, a concepção hermenêutica de Dworkin busca combinar
compromisso com a lei e/ou convenções políticas e a realidade social, possibilitando
um movimento circular entre o passado e futuro. Trata-se, então, de um círculo
hermenêutico que significa a ideia da integridade. Esta, em verdade, é uma terceira
virtude criada por Dworkin287, a qual se coloca ao lado da justiça e do devido
processo legal e que possui como supedâneo a coerência entre as normas
existentes e o julgamento ou aplicação do direito, fazendo-se novamente crucial a
figura dos princípios morais.
Quando se concebe o direito como integridade deve-se entender os
princípios morais de forma cautelosa, uma vez que estes não são instituídos por
qualquer moral. Existe, então, a moral privada (particular, pessoal) e a moral política.
A moral privada é aquele que se cria na vida própria e particular; que se acredita.
Mas além desta, os indivíduos estão também inseridos em uma moralidade política.
A maior dificuldade é separar a moralidade privada da moralidade política. A
resposta correta é do Direito e não do juiz.288
287
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 215.
A opção de Dworkin pela comunidade de princípios e sua correlação com a questão da integridade
buscada em sua proposta será mais abordada no presente trabalho, de forma mais minuciosa.
288
115
Para Dworkin, a integridade, mais que qualquer superstição de elegância, é
a vida do direito tal qual o conhecemos. É ela um ideal político, no sentido de se
exigir do Estado e da comunidade a mesma atitude e no sentido de se exigir que o
Estado aja de acordo com um conjunto único e coerente de princípios.289
A
comunidade como um todo é vista, via de consequência, como um agente moral,
sendo exigido que esta se comporte de forma a também respeitar a integridade e
coerência, se esforçando para buscar critérios sobre o que seja justiça, devido
processo legal e equidade.
A busca pela melhor virtude290 do direito está também intimamente ligada à
ideia de integridade de Dworkin, sendo que o fundamento do direito está na
comunidade, nas tradições e projetos mais autênticos da comunidade política.
Afirmando as virtudes mais originárias do direito com base na liberdade, igualdade,
equidade processual e integridade, Dworkin firma as bases do direito em uma
convicção jurídica autônoma para resolver os problemas sociais concretos.291
Pode-se afirmar então que esta perspectiva corrobora o que foi outrora
alegado, no sentido de se conceber maior força aos princípios morais, posto que
apenas
com
base
nestes
a
prática
jurídica
mantém
o
equilíbrio
entre
constitucionalismo e democracia e entre uma leitura moral do direito e uma leitura
pragmatista de eficiência econômica.292
Sobre a integridade do direito, Menelick assim aduz:
A integridade do Direito significa, a um só tempo, a densificação vivencial do
ideal da comunidade de principio, ou seja, uma comunidade em que seus
membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como
coautores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida cotidiana
em comum, bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz
da sua história institucional como um processo de aprendizado em que cada
293
geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal.
289
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Op. cit., p. 202-203.
Em relação às várias possibilidades de resposta e a necessidade, em Dworkin, de se buscar
aquela que atenda à melhor virtude do direito, Simioni: “Quer dizer, somente uma, entre as várias
interpretações possíveis, será a interpretação que melhor revela a virtude do direito, que melhor
explicita o verdadeiro valor do texto jurídico, que mostra o que o direito tem de melhor”. SIMIONI,
Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material
disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 29
291
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão
para além do constitucionalismo e democracia. Op. cit., p. 152.
292
Ibidem.
293
CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Op. cit., p.
67.
290
116
Sob outra perspectiva, todavia, é cediço que a atual prática jurídica faz com
que se esqueçam dos fundamentos, dos motivos, da história, dos argumentos que
representam o que é o direito hoje. O juiz se transformou, em sua grande maioria,
em um sujeito que participa da lide emitindo decisões automaticamente, apenas
conferindo o direito de forma supérflua, sem se preocupar em entender os seus
fundamentos e buscar, consequentemente, a resposta correta do Direito, almejada
por Dworkin. As decisões assumem um alto grau de previsibilidade.
O dinamismo do atual direito é bem representado por Dworkin quando este
menciona
De repente, o que parecia incontestável é condenado; uma nova
interpretação – ou mesmo uma interpretação radical – de uma parte
importante da aplicação do direito é desenvolvida por alguém em seu
gabinete de trabalho, vendo-se logo aceita por uma minoria “progressista”.
294
Os paradigmas são rompidos e surgem novos paradigmas.
No entanto, tal dinamismo não pode induzir ao esquecimento daquilo que se
passou, já que todo capítulo da história é crucial para se entender a coerência do
direito e, consequentemente, a sua integridade, independentemente de opiniões
pessoais e íntimas do legislador, aplicador ou qualquer operador do direito.
Neste
diapasão,
a
moralidade
pessoal
pode
apresentar
inúmeras
divergências entre os indivíduos de uma comunidade, haja vista a perspectiva de
vida de cada um, bem como as suas convicções subjetivas. Tais divergências não
podem prevalecer, todavia, sobre os princípios da moralidade política, os quais
formam um ponto de vista comum, independentemente de consenso, sob o manto
da integridade.
Assim, ainda que existam opiniões divergentes e particularidades no modo
de pensar e agir de cada indivíduo, a elaboração de uma legislação e a aplicação do
direito exigem que se observe a chamada integridade, no sentido de existir respeito
e coerência aos princípios morais e políticos da comunidade, sem interferência dos
anseios privados do legislador e/ou julgador.
Para Dworkin, a integridade contribui da mesma forma para a eficiência do
Direito.
295
Isso porque, quando as pessoas aceitam que não são governadas apenas
por regras explícitas (decisões políticas passadas), mas também por regras que
294
295
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 112.
Ibidem, p. 229.
117
decorrem de princípios, o conjunto de normas públicas se expandirá, sem ser
necessário detalhar a legislação ou a jurisprudência em cada possível ponto de
conflito.
Sob esta ótica,
O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e
deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram
todos criados por um único autor – a comunidade personificada –,
296
expressando uma concepção coerente de justiça e equidade.
Vale ainda lembrar que, com o intuito de demonstrar a prática da
observância desta integridade, Dworkin cria a figura do juiz Hércules297, paladino do
direito, que seguindo alguns elementos, percorre um caminho na busca pela
resposta correta do direito. Referindo-se ao Juiz Hércules, Dworkin desenvolve:
Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana
representativa. Considero que ele aceita as principais regras não
controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras
palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos
jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores
de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional
298
(rationale) como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo.
Erika Juliana Dimitruk traçou, em linhas gerais, o caminho proposto por
Dworkin a ser seguido pelo juiz Hércules.
1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos em conflito, tal que um
membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse
chegar a maioria dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais
relatam; 2) Selecionar diversas hipóteses que possam corresponder à
melhor interpretação do histórico das decisões anteriores; caso elas se
contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a hipótese
correta, a partir do pensamento de que o direito é estruturado por um
conjunto coerente de princípios sobre justiça e equidade e o devido
processo legal adjetivo, e que esses princípios devem ser aplicados de
forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa do direito. A partir de uma
teoria coerente sobre política e direito é possível encontrar uma resposta
satisfatória quando princípios conflitam (DWORKIN, 2003, p. 253); 4)
Eliminar toda hipótese que seja incompatível com a prática jurídica de um
ponto de vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se
296
Idem, 2003, p. 271-272.
Extrai-se da mitologia grega a história de Hércules , um herói (semideus) grego, filho de Zeus, que
foi incumbido da realização de doze perigosos trabalhos, em virtude de um crime cometido, lutando
contra a natureza e eliminando invencíveis ameaças, saindo de todos eles vencedor.
298
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 165.
297
118
essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e
decisões políticas anteriores de sua comunidade (DWORKIN, 2003, p. 288294). Neste momento Dworkin justifica o nome de Hércules, uma vez que
299
nenhum juiz real poderia aproximar-se da tarefa que a ele foi confiada.
Nota-se, então, que o juiz Hércules, ainda que utilize argumentos de política
para a interpretação da lei, fundamenta o direito e reforça a sua argumentação por
meio de argumentos de princípios. Esta perspectiva, não obstante a característica
ideal do juiz Hércules, retoma a ideia outrora estabelecida de que, ainda que se
revista determinada conduta da formalidade de uma política pública, sua
interpretação para a correta aplicação do direito, far-se-á, invariavelmente, diante de
princípios morais comuns, sob pena de ferir de morte a coerência e integridade
propostas por Ronald Dworkin.
Vale mencionar que, embora o juiz Hercules atue com um viés de buscar a
moral da comunidade, ele não se caracteriza enquanto um juiz solipsista, já que
deve ser entendido como uma metáfora e não como um sujeito do paradigma
representacional, que “assujeita” o objeto. 300
Em verdade, se analisadas todas as etapas e peculiaridades da teoria de
Ronald Dworkin, é plenamente visível que o autor, durante toda a sua construção,
busca a melhor virtude do Direito, de acordo com um projeto político da
sociedade.301
3.2. Regras, princípios morais e políticas públicas em Ronald Dworkin
A distinção entre regras, princípios e políticas públicas se caracteriza como
um dos principais elementos da teoria de Ronald Dworkin e naturalmente merece
especial atenção.
302
A exata noção de cada um destes elementos é crucial para
uma adequada apreciação do fenômeno da integridade proposto por Dworkin, pois,
a partir disto, será possível um melhor entendimento acerca da importância das
299
DMITRUK, Erika Juliana. O princípio da integridade como modelo de interpretação construtiva do
Direito em Ronald Dworkin. Revista Jurídica da UniFil, Cidade, ano IV, 4, p. 144-155, 2007. p. 153.
300
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 18.
301
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão
para além do constitucionalismo e democracia. Op. cit., p. 152.
302
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p.35-37.
119
cotas, possibilitando, consequentemente, um melhor exame da Lei nº. 12.711/2012
e, principalmente, do julgamento da ADPF 186/DF.303
Em relação às cotas, esta discussão ganha especial relevância, por se
configurar as cotas como, aparentemente, uma política do governo, mas que carrega
consigo questões históricas, econômicas, sociais, principiológicas e, pode-se dizer,
até morais. Percebe-se, então, que ao mesmo tempo em que se formaliza como
uma política pública, a cota social e/ou racial parece estar direcionada por princípios,
o que torna indispensável a distinção ora proposta.
Assim, para uma tentativa de compreensão das cotas e a busca de
adequação de seu entendimento sob uma perspectiva dworkiana, é indispensável
que, traçadas as primeiras linhas sobre a proposta trabalhada por este filósofo norte
americano, se aprofunde na distinção estabelecida entre regras, princípios e
políticas públicas.
Para tanto, há de se compreender, inicialmente, a concepção dworkiana
sobre regras, para a qual regras são normas jurídicas escritas que obrigam, proíbem
ou facultam algo e são inflexíveis na sua aplicação. Se aplicam a fatos na forma do
“tudo ou nada”304, isto é, são ou não aplicadas, sendo impossível a sua graduação.
Trata-se de uma hipótese predeterminada que, quando concretizada, gera a
consequência prevista. Em um conflito de normas, uma exclui a outra por critérios de
validade.305
A regra se estabelece, portanto, como um critério abrangente e no direito se
concretiza na formalidade de uma legislação aprovada e devidamente vigente no
ordenamento jurídico, sendo válida mediante a observância de critérios previamente
fixados. Contudo, repousa em uma regra questões diversas e variadas, as quais
foram construídas de acordo com a necessidade de uma comunidade. Assim,
embora seja a lei “tudo ou nada”, o seu conteúdo material apresenta uma carga
diversa, consistindo em uma carga principiológica, seja no seu sentido estrito, seja
considerada como uma política pública. Persiste, notoriamente, a dicotomia entre
estes dois elementos.
303
Simioni destaca que “as políticas afirmativas de cotas raciais é um excelente exemplo da
dificuldade que uma decisão jurídica pode sofrer se pretender encontrar uma coerência entre os
objetivos das políticas públicas de cotas raciais do governo e as convicções morais da comunidade
como um todo. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em
Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 15
304
305
Ibidem, p. 39.
Ibid., p. 43.
120
Com efeito, a partir de Dworkin, princípios podem ser considerados como
fundamentos, isto é, princípio, na perspectiva substancialista, parece significar algo
incondicional306. É de se ressaltar que Dworkin não afirma isso expressamente, no
entanto, é uma visão que parece estar implícita em sua proposta. Neste sentido,
princípio trata-se de um fundamento que não está submetido a nenhuma condição,
ou seja, não admite um “se”. Não é passível de ponderação ou condicionamentos a
serem feitos307. Dworkin considera, neste ínterim, que princípios revelam os
fundamentos das regras.308
Sob esta ótica, os princípios não podem ser violados e em um eventual
conflito, prevalece aquele que possuir maior peso e se revestir de maior fundamento
normativo diante daquele caso concreto específico, considerando-se, para tanto, a
integridade do ordenamento jurídico. Assim, outro diferencial dos princípios é
exatamente a sua dimensão de peso e importância,309 tendo força relativa diante de
casos concretos310.
Em verdade, para Dworkin não há colisão entre princípios, uma vez que
diante de um caso concreto, não existe choque entre aqueles, mas sim um princípio
adequado e um principio não adequado e, portanto, um princípio que se aplica e um
que não se aplica311. A partir de uma leitura de Ronald Dworkin, o desafio consiste,
então, em descobrir qual é o principio correto para determinada situação.
Assim, os princípios podem ou não estar positivados, já que existem
independentemente do texto jurídico. Significa, pois, que o princípio pode
eventualmente estar inserido em uma regra, no entanto, esta última não é condição
de validade do primeiro.312 Para Dworkin, fundamento é o que está antes da
306
O princípio é o elemento compreensivo que vai além da regra, ou seja, transcende à onticidade da
regra. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas.
Op. cit., p. 568.
307
Princípios são padrões de moralidade política da comunidade. SIMIONI, Rafael Lazzarotto.
Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante
as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 17
308
O princípio só se “realiza” a partir de uma regra. Não há princípio sem (alg)uma regra. Por trás de
uma regra necessariamente haverá (alg) um princípio. Ibidem, p. 568.
309
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 42.
310
Importante aqui constar que não se está a defender as teorias da argumentação ou ponderação, já
que a hermenêutica não considera que os princípios abrem a interpretação e, portanto, não são eles
mandados de otimização. Não se trata, portanto, de uma distinção apenas de grau ou intensidade,
sendo inviável utilizar os princípios como regras de segundo nível, diante, especialmente, da
virtuosidade que possuem.
311
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p.43.
312
Conforme nos lembra Lenio Luiz Streck, “quando afirmo que a regra está subsumida no princípio
ou que o mundo prático [...] ingressa no direito a partir dos princípios, significa que, em sendo o
direito formado por textos jurídicos, cada texto jurídico tem uma motivação, ou seja, o enunciado
121
positivação e dos princípios, ao contrário de Robert Alexy313, v.g., que entende que
fundamento é aquilo que está sendo buscado a partir das regras e dos princípios.
Assim, os princípios não devem ser compreendidos como alternativas no
caso de lacunas de regras, portanto, nem tampouco serem considerados como
“mandados de otimização”, mas sim entendidos no contexto da ruptura
paradigmática pela qual se superou o positivismo.314 Entende-se, então, que
princípios e regras, embora apresentem diferenças devem ser compreendidos
conjuntamente, por fazerem parte de um mesmo círculo hermenêutico.315
Explicando e clareando a diferença entre regras e princípios para Ronald
Dworkin, ensina Simioni:
Princípios são muito diferentes das regras em vários aspectos. Princípios
não estabelecem as condições prévias de sua aplicação, tal como fazem as
regras. E por isso os princípios não são questões de tudo ou nada. O seu
cumprimento não é uma questão de correção, mas de adequação, de
coerência. Os princípios não são válidos ou inválidos, mas, sim, questões
de peso, de importância, questões de fundamento, de justificação
316
adequada. Princípios prevalecem ou não prevalecem.
Entende-se,
pois,
que
princípios
são
padrões
de
moralidade
317
transpositivos
. São padrões políticos e morais que as decisões jurídicas recorrem,
mormente, para solucionar casos difíceis que não encontram solução ou amparo no
direito positivo.
Seu cumprimento é questão de adequação e coerência, abordando questões
de peso na justificação de uma decisão. Retoma-se, então, a ideia de adequação
relacionada ao horizonte autêntico anteriormente apresentada. Cada interpretação
possui uma motivação, que não está simplesmente à disposição dos intérpretes do direito. E se o
constitucionalismo está assentado em regras e princípios – e isso faz parte da tradição – não se pode
ignorar o papel fenomênico dos princípios de cariz constitucional”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e
consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 303.
313
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
fundamentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy Editora, 2005.
314
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 297.
315
Para Lenio Luiz Streck, qualquer regra está “subsumida” em um princípio, sendo tarefa do
intérprete compreender esse fenômeno a partir da diferença ontológica”. Ibidem, p. 315.
316
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Regras, princípios e políticas públicas em Ronald Dworkin: a questão
da legitimidade democrática das decisões jurídicas. Revista Direito Mackenzie. São Paulo, v. 5, n.1.
p. 203-218, 2011. p. 207.
317
Elementar ratificar que a moralidade tratada em Dworkin é a moralidade da comunidade, não se
confundindo em nenhum aspecto com a moralidade subjetiva e individual que culmina em
discricionariedade.
122
necessita de uma reconstrução histórico-institucional318 e a concepção de princípios
não se faz de forma diferente.
Inexiste, neste cenário, hierarquia entre princípios e regras, pois os
primeiros, na concepção de Dworkin, estão em outra dimensão, a saber, a dimensão
da prática interpretativa. Curial consignar a nítida preocupação de Dworkin em
conciliar a teoria interpretativa do Direito e uma teoria de justificação política,
remetendo à ideia da permanente tensão existente ente o Constitucionalismo e a
Democracia, que será mais adiante abordada.319
Segundo Lenio,
É nesse contexto que deve ser compreendida a diferença entre regra e
princípio, e não no contexto em que o princípio seja a norma da regra ou a
regra seja um “ente disperso no mundo jurídico, ainda sem sentido”. A
diferença é que sempre há uma ligação hermenêutica entre regra e
princípio. Não fosse assim, não se poderia afirmar que atrás de cada regra
há um principio instituidor. Esse princípio, que denominamos instituidor, na
verdade, constitui o sentido da regra na situação hermenêutica gestada no
Estado Democrático de Direito. Essa é a especificidade; não é um princípio
geral do direito, um princípio bíblico, um principio (meramente) político. No
fundo, quando se diz que entre regra e principio há (apenas) uma diferença
(ontológica, no sentido da fenomenologia hermenêutica), é porque regra e
princípio se dão, isto é, acontecem (na sua norma) no interior do círculo
hermenêutico. O sentido de um depende do outro, a partir desse
320
engendramento significativo.
Significa, pois, que a perspectiva dworkiana se opõe à discricionariedade
positivista, no sentido de que o contraponto e, ao mesmo tempo, a necessária
convivência de regras e princípios, faz com que estes, de certa forma, limitem a
mera subsunção das primeiras. Por isso a dificuldade de se distinguir casos difíceis
e fáceis, no sentido de que casos fáceis se resolveriam tão somente com um
mecanismo subsuntivo. Não há como separar a regra do princípio, pois são
elementos que necessariamente se completam, sendo que Dworkin compreenderá
os princípios jurídicos também como espécie do gênero norma.321
318
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 577.
319
DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e democracia. Trad. Emílio Peluso Neder Meyer.
Publicado originalmente no European Journal oh Philosophy, n.3:1, p.2 -11, 1995.
320
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e “o problema da discricionariedade
dos
juízes”,
Disponível
em:
http://www.anima72opet.com.br/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_ hermeneutica.pdf. Acesso em: 15.08.2013.
p. 17/19
321
PEDRON, Flávio Quinaud. Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dworkin. Revista CEJ,
Brasília, n. 30, p. 70-80, 2005. p. 73.
123
Não obstante, analisada a diferença estabelecida entre regras e princípios,
deve-se ressaltar que Dworkin apresenta ainda duas categorias abrangidas pelo
elemento “princípio”, quais sejam os princípios morais e as policies, traduzida para o
português como “políticas públicas”322, distinção esta que se reputa ainda mais
importante que a primeira.
Isso porque, este é o ponto crucial da proposta
dworkiana para o enfrentamento da questão referente às cotas. A partir deste
aspecto, pode-se iniciar um desdobramento mais ponderado e adequado sobre a
validade dos programas de cotas em um país de modernidade tardia, tal como o
Brasil.
Esta diferença albergada na perspectiva dworkiana, se revela dimensionada,
especialmente quando da análise da distinção entre casos fáceis e casos difíceis
(hard cases) sob o ponto de vista de Dworkin323. Convém ressaltar que a justificação
desta suposta cizânia assume uma feição mais prática neste momento, conferindo
melhor aplicabilidade aos conceitos oriundos da teoria substancialista.
Nesta medida, se entendidos como possíveis, casos fáceis seriam aqueles
que, para o positivismo jurídico, por exemplo, não haveria dificuldade em sua
resolução, pois existe para estes uma resposta pronta no direito. Nos casos fáceis,
ainda que sejam eles permeados por questões complexas e importantes, a resposta
certa que origina a sua solução não é algo que gera divergências entre os juristas.
Bastaria, pois, a subsunção da norma ao caso concreto.
Casos difíceis ou hard cases são aqueles cuja interpretação apresenta
divergências, isto é, não há um acordo sobre a solução jurídica correta para o caso.
Ronald Dworkin explica que os hard cases existirão quando uma ação judicial não
puder ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por
alguma instituição.324 Nesta perspectiva, portanto, há o abandono da visão
322
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 129.
A distinção entre easy cases e hard cases não significa a cisão entre casos difíceis de casos
fáceis. Isso porque, ambos estes aspectos trabalham com o elemento compreender, que não pode,
por sua vez, ser cindido. Um caso apenas é difícil, pois não teve ainda a sua solução encontrada por
meio do processo de compreensão, todavia quando atingi-la tornar-se-á um caso fácil. Da mesma
forma, um caso inicialmente considerado fácil pode se tornar um caso difícil, a partir do momento que
a compreensão originária encontrar estranheza em um novo plano. Não parece ser, então, uma
diferença tão somente pertencente à metafísica. Daí o questionamento acerca da possibilidade de
cisão e separação das ideias de casos fáceis e/ou difíceis, em que pese as inúmeras concepções que
assim entenderam, tais como Habermas, Günther e Dworkin. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e
consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 298.
324
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 127.
323
124
meramente semântica da norma e passa-se a considerar aspectos principiológicos a
ela ligados.
A valorização dos princípios sob a ótica de Dworkin a partir da análise de
casos difíceis foi abordada por Lenio Streck,
De fato, para Dworkin, nos casos difíceis, se os princípios não são criados
pelas autoridades de aplicação, também não são previamente dados, em
um plano contra factual. Dworkin, contrapondo-se ao formalismo legalista e
ao mundo de regras positivista, busca nos princípios os recursos racionais
para evitar o governo da comunidade por regras que possam ser
incoerentes em princípio. É nesse contexto que Dworkin trabalha a questão
dos hard cases, que incorporam, na sua leitura, em face das dúvidas sobre
o sentido de uma norma, dimensões principiológicas, portanto, não
325
consideradas no quadro semântico da regra.
Teresa Arruda Alvim Wambier, ao tratar sobre os hard cases, menciona que
são estes casos que devem ser resolvidos à luz de regras e/ou princípios típicos de
ambientes decisionais que nomeia de “frouxos” e cuja solução não está claramente
na lei, devendo ser criada pelo Judiciário, a partir de elementos do sistema
jurídico.326
Aproximando-se da discussão sobre cotas, a jurista exemplifica suas ideias
mencionando os problemas referentes às medidas segregatórias ou protetivas em
função do critério raça, exemplificando exatamente com tais ações afirmativas.
Os problemas que giram em torno das medidas segregatórias ou protetivas
em função do critério raça são dos mais interessantes. No passado, diz
Dworkin, os liberais entendiam que a classificação racial era um mal, em si
mesmo; todos tinham o direito a uma oportunidade educacional, compatível
com suas habilidades; as ações afirmativas do Estado eram tidas como o
remédio adequado para serias desigualdades da sociedade americana.
Mais recentemente (1960-1970) a opinião no sentido de que estas
proposições são incompatíveis ganhou expressão, justamente porque os
programas mais efetivos do Estado são aqueles em que se dá uma
vantagem competitiva a minorias raciais. Há infinitos argumentos a favor da
constitucionalidade das quotas raciais e outros tantos contra. Também sob
o ponto da produção de efeitos sociais benéficos, as opiniões se dividem
327
dramaticamente.
A diferença estabelecida entre casos fáceis e casos difíceis poderia originar
a sensação de “suficiência ôntica” dos primeiros em detrimento dos últimos, no qual
325
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 299.
326
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. Direito jurisprudencial. In:
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012. p. 27.
327
Ibidem, p. 28.
125
prevalece uma falta de sentido, reduzindo o elemento essencial da interpretação a
uma relação sujeito-objeto328, abandonando-se a intersubjetividade. É bem verdade
que se fosse possível estabelecer essa divergência tão somente pela fácil (ou não)
adequação das regras aos problemas concretos, estar-se-ia admitindo uma noção
muito superficial do Direito, reduzindo-o a uma mera análise semântica, tal como
ocorria no positivismo. Onde estaria, então, o pós positivismo?
No entanto, não obstante tais críticas, partindo-se da premissa que a
institucionalização de casos fáceis e casos difíceis é inviável e impossível, ante a
imbricação destes quando do processo de compreensão, não se pode ignorar a
existência de fenômenos que permitem a distinção destes, ao menos em questões
práticas. Admitir-se-ia, inclusive, que o caso das cotas é um caso difícil, por exigir
uma compreensão mais aprofundada, a partir de uma intersubjetividade, haja vista
as diversas facetas deste assunto.
Admitindo esta diferença, ao menos para estes fins estruturais e, após
realizar uma pesquisa empírica na jurisprudência americana, Dworkin constata que,
para a solução de casos difíceis na prática, buscam-se fundamentos externos, ou
seja, fundamentos que não estão positivados, quais sejam: argumentos de política
(políticas públicas) e argumentos de princípio (princípios morais).329
Sob este enfoque, sustenta que enquanto os princípios dizem respeito às
convicções morais da comunidade, dependendo da integridade e coerência para
prevalecer, as políticas públicas se revestem do caráter de objetivos e/ou
preferências do governo, as quais buscam uma melhoria para a comunidade.
Segundo Dworkin, de um lado os argumentos de política justificam uma
decisão política e mostram que ela fomenta algum objetivo coletivo da comunidade
e, de outro, os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando
que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou grupo.330 Assis,
para ele, um direito político é um objetivo político individuado.331
Com efeito, a par desta distinção, a dúvida consiste na força dos argumentos
de política e na força dos argumentos de princípio, bem como na viabilidade e
cabimento de cada um destes diante de casos concretos a serem analisados,
328
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 301.
329
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 130.
330
Ibidem, p. 129.
331
Ibid., p.142.
126
mormente se considerados casos difíceis.332 A questão que se impõe, muitas vezes,
é se determinada decisão ou conduta se reveste das caraterísticas de uma política
pública ou de princípios. Parece existir, a priori, uma linha demasiadamente tênue
entre ambos os elementos.
Parece-nos, diante da teoria substancialista, que a ideia de se considerar
princípios morais e políticas públicas de Ronald Dworkin está intimamente ligada
com a concepção de integridade por ele anunciada, posto que de um lado se atende
aos objetivos políticos direcionados a uma comunidade e de outro à moralidade
política comum, baseada nos direitos já existentes, ainda que não positivados.
Em Dworkin, quando se recorre a argumentos de políticas públicas para
solucionar casos difíceis, o poder judiciário acaba por infringir o princípio da
democracia, uma vez que o juiz passa a ser um segundo legislador ao decidir sobre
objetivos políticos.333 Acrescenta-se, inclusive, que uma politica pública pode ferir
princípios jurídicos, pois ainda que se revista deste caráter, pode ser equivocada
diante dos princípios do Direito. Qual deve prevalecer, então?
Nesta perspectiva e analisando a dicotomia estabelecida, politicas públicas
parecem mais apropriadas para serem utilizadas como argumentos e possuem peso
significativo neste momento, no entanto, este peso não é suficiente para
fundamentar uma decisão do direito. Já os princípios morais se fortalecem como um
argumento de racionalidade mais adequado para justificar uma decisão, ainda que
não estejam de acordo com políticas publicas.
Isso porque, quando se utiliza argumentos de princípio, se encontra direitos
que são reconhecidos pela decisão jurídica e não criados por ela. Isto é, os direitos
já existiam e foram apenas levantados e fundamentados pelo intérprete do direito.334
Quando o juiz compreende o direito regido pela integridade, ele não pratica
inovações, mas simplesmente desvela qual o direito do caso apresentado.335
Os princípios respeitam, assim, a sua condição de estarem subsumidos na
regra, carregando consigo uma força e rigidez sensivelmente maiores diante da
332
Ibid., p. 131.
Ibid., p. 131.
334
Segundo Dworkin, mesmo quando não há regra que regule o caso, o juiz tem o dever, ainda em
casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes e não de inventar novos direitos
retroativamente, o que não pressupõe, todavia, a existência de um procedimento mecânico.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 127.
335
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 109.
333
127
necessidade da análise a partir de uma integridade. Tem-se, pois, que os princípios
são proposições que efetivamente prescrevem direitos336 e justificam as práticas.337
Percebe-se, pois, que após apresentar as questões referentes aos
argumentos de princípio e argumentos de política, Dworkin sustenta a ideia de que
as decisões judiciais nos casos civis são e devem ser, de maneira característica,
geradas por princípios, e não políticas.338 O direito deve ser visto como algo mais
forte do que o exercício de um poder político discricionário de autoridades públicas,
mas efetivamente como uma questão de direito e deveres.339
Observando a distinção entre argumentos de política e de princípios e sua
adequada utilização, Simioni explica:
Essa distinção entre princípios morais e políticas públicas então se torna
importante, porque podemos interpretar uma lei e vê-la tanto como
expressão de um princípio moral quanto de uma política pública
(DWORKIN, 1978, p. 23). Essa decisão depende de uma atitude
fundamental do intérprete: considerar o direito de modo instrumentalestratégico, como um instrumento da política do governo para o bem-estar
geral, e ajustar a interpretação a essas políticas públicas, ou considerar o
direito em sua integridade e coerência com princípios de moralidade
política, para ajustar a interpretação do direito àquilo que revela o seu
340
melhor valor, a sua maior virtude.
Ainda com base nas lições de Simioni, os princípios em Dworkin são aquelas
convicções de moralidade política mais profundas, mais intuitivas, mais originais e
autênticas, que justificam uma determinada interpretação do direito como a melhor
interpretação possível.341 Apesar de reconhecer, então, a importância dos
argumentos de política, para Dworkin somente os princípios morais podem
fundamentar uma correta resposta do direito, pois em se tratando de uma decisão
jurídica (baseada em princípios) estas devem levar a sério os direitos, quer dizer,
devem tratar os direitos como uma questão de princípio, como uma questão de
moralidade política da comunidade.342
336
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 141.
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Regras, princípios e políticas públicas em Ronald Dworkin: a questão
da legitimidade democrática das decisões jurídicas. Op. cit., p. 210.
338
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 132.
339
MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao
protagonismo judicial. Op. cit., p. 135-136.
340
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Regras, princípios e políticas públicas em Ronald Dworkin: a questão
da legitimidade democrática das decisões jurídicas. Op. cit., p. 208.
341
Ibidem, p. 208.
342
Idem
337
128
Além disso, na perspectiva dworkiana os argumentos de princípios podem
ser opostos à maioria, ao revés dos argumentos de política que estão suscetíveis e
sujeitos à escolha da maioria.343 Com efeito, os argumentos de política parecem
atender com mais especificidade a própria democracia, enquanto que os
argumentos de princípio enfocam no constitucionalismo e no seu amparo.
Neste diapasão, a partir de Dworkin, entende-se que existe, em verdade, um
direito a respostas corretas, não sendo esta discussão apenas uma questão
cientifica.344 Existe um direito a esta resposta e isto se configura como um princípio
moral, o qual, por sua vez, configura-se como o elemento mais relevante para
justificar uma decisão jurídica. A resposta correta para Dworkin é, portanto, um
direito dos jurisdicionados e não uma mera questão de objetivos políticos.345
A proposta de Dworkin suscita um questionamento que se mostra razoável e
cuja resposta parece ser essencial para uma adequada compreensão da aplicação
de uma teoria substancialista quando de um exame crítico acerca das cotas sociais
e/ou raciais. Qual seria a resposta correta que validaria a utilização das cotas como
forma de garantir a igualdade entre os indivíduos?
3.2.1. Ações afirmativas por meio de cotas em universidades: política pública ou
princípio moral?
Naturalmente, muitas legislações e decisões jurisdicionais se revestem, ao
menos inicialmente, de um caráter de política pública, tal como ocorre com as
políticas afirmativas. São estas, em uma primeira leitura, objetivos políticos que
visam, de forma temporária e pontual, corrigir distorções e desigualdades aparentes
no seio da sociedade.
343
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 129.
Conforme Lenio Luiz Streck, ao tratar sobre a resposta correta, há uma umbilical relação entre a
exigência de fundamentação e o direito fundamental que cada cidadão tem a uma resposta correta
(adequada à Constituição). STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração
hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 396.
345
Para Dworkin, a resposta correta para determinado caso deve adequar-se ao conteúdo jurídico
relevante em discussão, de forma que se não houver nenhuma resposta certa para um caso, isso
deve acontecerem virtude de algum tipo mais problemático na indeterminação ou
incomensurabilidade na teoria moral. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 215.
344
129
Em que pese existir a diferença entre os argumentos de política e os
argumentos de princípio, parece crucial notar que estes podem, perfeitamente,
conviver de forma harmônica, no sentido de que uma política pública, ainda que seja
um objetivo do governo, pode garantir a sua fundamentação por meio de princípios
morais de uma comunidade.
É possível que existam situações em que políticas públicas não serão
compatíveis com princípios morais. No entanto, nestes casos, parece que a política
não deve prevalecer, eis que sua manutenção poderia ferir os ditames mais
valorosos do direito. Isso porque, na perspectiva de Dworkin é atribuído o status de
trunfos aos princípios, que, em uma discussão, devem sobrepor-se a argumentos
pautados em diretrizes políticas, excluindo a possibilidade de os juízes tomarem
decisões embasadas em diretrizes políticas.346
Pensar na impossibilidade de se analisar uma política pública sob o enfoque
de princípios morais é se esquecer da necessidade da prática interpretativa para
buscar a melhor virtude do direito, almejada por Dworkin. Apenas a moral da
comunidade e a coerência da interpretação, possuem força para garantir a
adequada manutenção de qualquer objetivo político que se pretenda.
Oportuno
destacar
as
considerações
de
Dworkin,
a
respeito
da
imprescindibilidade da fundamentação em princípios.
As questões políticas que o modelo centrado nos direitos recomenda,
porém exigem que as respostas políticas dadas a elas sejam explícitas e
fundadas e princípios, para que seu apelo e compatibilidade com princípios
347
mais geralmente endossados possam ser testados.
Vislumbra-se, então, uma nítida preferência pelos argumentos de princípio
em detrimento dos argumentos de política na visão de Dworkin, ao menos em
relação à justificação e fundamentação de uma decisão de direito. Daí ser
apropriada a compreensão desta dissensão, conquanto se pretenda buscar um
melhor caminho para a análise das cotas.
346
PEDRON, Flavio Barbosa Quinaud. A mutação constitucional na crise do positivismo jurídico:
histórica e crítica do conceito no marco da teoria do direito como integridade. 2011. 229f. Tese
(Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Minas
Gerais,
Belo
Horizonte,
2011.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS8QGKX9/tese_fl_vio_pedron___impress_o.pdf?sequence=1>. Acesso em: 3 nov. 2013.
347
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 36.
130
Importante, então, destacar que Dworkin propõe a denominada comunidade
de princípios, a qual se constitui quando uma dada sociedade é compreendida como
formada por pessoas que concordam que sua prática é governada por princípios
comuns e não somente por regras criadas em conformidade a um acordo político.348
Esse modelo de comunidade abandona, assim, a visão solipsista e individualista do
mundo, admitindo que em uma sociedade, os seus membros poderão adotar os
critérios de justiça, equidade, justo processo legal e moral que sejam comum a
todos.349Isto, todavia, apenas seria possível mediante uma interpretação da história
das práticas sociais.350
A questão que se faz presente é, contudo, se ainda possuindo um caráter de
política pública em sua origem ou em sua formalidade, devem ou não ser
observadas também sob o enfoque de princípios morais de uma comunidade. Ou
seja: ainda que sejam políticas públicas, devem também passar pelo crivo dos
argumentos de princípio ou dispensam esta fundamentação?
Os programas de cotas enquanto ações afirmativas surgiram aparentemente
com a proposta de proteção de minorias e /ou resgate de uma suposta dívida
histórica, o que já foi tratado no primeiro capítulo do presente, para o qual
remetemos a leitura, buscando concretizar a ideia do constitucionalismo, enquanto
garantia de direitos fundamentais-sociais a todos. Foram então considerados como
ações afirmativas, no sentido de propiciar a eventuais desfavorecidos o acesso ao
ensino público superior, sendo inicialmente implantados em universidades que assim
optaram e, a partir do ano de 2012 tornaram-se obrigatórios, em virtude de nova
determinação legal.351
348
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 254. Em sua concepção, neste modelo de
sociedade os seus membros admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas
decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas depende, em termos mais gerais,
do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam.
349
“A comunidade de princípios é uma comunidade moralmente plural, ou seja, ela procura uma
integridade entre os diversos valores morais, respeitando igualmente a moral de todos os cidadãos.
Ela adota um compromisso com os seus princípios e os manifesta na elaboração das políticas por
meio da legislação e na sua aplicação pelo judiciário nas decisões judiciais” In: CHUEIRI, Vera Karam
de; SAMPAIO, Joanna Maria de Araújo. Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a
suspensão de tutela antecipada n. 91. Revista Direito GV, São Paulo, n.5, v. 1, p. 45-66, jan/jun de
2009. p. 56.
350
Remetemos à leitura do primeiro capítulo para questões relativas à reconstrução histórica crítica.
351
Em síntese, a Lei nº. 12.711/2012 estabelece a reserva de cotas em universidades federais, por
curso e turno em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das vagas para estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Determinou-se que do total de vagas
reservadas, 50% (cinquenta por cento) deverão ser direcionadas para estudantes oriundos de
famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (um salário mínimo e meio) per capita.
131
Estes programas, no entanto, sejam aqueles facultativamente concretizados
ou os atualmente estipulados por lei, ainda carecem de uma sólida justificativa que
conceda à sociedade e aos indivíduos de forma geral, uma fundamentação válida
para a sua implementação diante dos ditames de um Estado Democrático de Direito.
As cotas estão em um âmbito de constante cizânia, não havendo um consenso
sobre sua adequação, mesmo depois de defendida a sua constitucionalidade e
instituída a sua legalidade.
Isso porque sendo as cotas implementadas inicialmente por meio de ações
afirmativas, constata-se que elas se formalizam enquanto políticas públicas e, por
isso, estão sujeitas ao questionamento da maioria352. Todavia, a leitura estrita das
cotas enquanto objetivo governamental parece muito rasa, além de desconsiderar
por completo todo o horizonte existente antes delas. Vale lembrar que maiores
considerações acerca das ações afirmativas poderão ser encontradas no primeiro
capítulo do presente trabalho.
Nesta esteira, o programa de cotas em universidades públicas e escolas
técnicas federais é uma política pública adotada pelo governo ou por instituições,
que visa igualar possibilidades quando do ingresso de alunos no ensino superior
público. Todavia, em uma análise mais perfunctória, parece que a sua
fundamentação isolada enquanto política pública, deixando-se de considerar os seus
demais aspectos, não se faz suficiente para justificar a sua manutenção e a sua
adequação à moralidade política da comunidade, não se ajustando, via de
consequência à integridade proposta por Dworkin.353
Com vistas nos debates acima estipulados, desconsiderar os princípios que
permeiam a proposta das cotas é ignorar a necessária interpretação construtiva do
direito. Isto é, o direito constitui-se como uma história narrativa, da qual há a
possibilidade de extração de várias interpretações, no entanto apenas uma delas é a
mais adequada.
Uma justificação prática de sua adoção exige a observância dos princípios
morais de uma comunidade implícitos ou explícitos na adoção de tal mecanismo.
352
As policies, entendidas por Dworkin como objetivos políticos, correspondem ao aspecto da
democracia do Estado Democrático de Direito, uma vez que representam estratégias governamentais
que visem asseguram o bem de uma coletividade.
353
Observar as cotas enquanto princípio é necessário, em virtude dos princípios são aquelas
convicções de moralidade política mais profundas, mais intuitivas, mais originais e autênticas, que
justificam uma determinada interpretação do direito como a melhor interpretação possível. SIMIONI,
Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material
disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 18
132
Conforme assinalado por Dworkin, o argumento em favor das leis contra a
discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de
consideração e respeito é um argumento de princípio.354
Tendo em vista as cotas se formatarem enquanto uma garantia às minorias
excluídas, é de se ressaltar que apenas a sua consideração enquanto princípio é
válida diante da tensão entre constitucionalismo e democracia. Conforme Simioni
destaca:
Só assim o constitucionalismo pode fortalecer a democracia. E só assim a
jurisdição pode exercer a sua mais autêntica função, que é a de garantir
que, mesmo contra a opinião das maiorias, existem princípios de
moralidade política que devem ser respeitados por questão de princípios,
por uma questão insensível às escolhas políticas da maioria democrática,
por uma questão que não depende de argumentos de política ou de
355
eficiência econômica.
Neste mesmo sentido, analisando especificamente ações afirmativas,
Dworkin confirma que no caso de subsídios, poderia se dizer que os direitos
conferidos são gerados por uma política e qualificados com princípios; no caso
contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por uma política.
356
Assim, vislumbra-se que, independentemente da sua origem (como princípio ou
como política), o direito pode ser qualificado pelo outro elemento, tendo sempre a
presença, todavia, dos princípios morais, razão de sua fundamentação válida.357
A partir deste cenário, é de se lembrar que a nova lei de cotas, bem como a
declaração de constitucionalidade destas na ADPF 186/DF, possuem como
finalidade precípua a mitigação das desigualdades sociais e raciais ainda existentes
em nossa sociedade. Apresenta critérios que, embora se apresentem como
prerrogativas em razão de classe social, raça ou ainda etnia, demonstram objetivar a
redução de desconformidades sociais e gerar, consequentemente, a consecução do
projeto civilizatório da sociedade em todos os seus aspectos.
Em que pese esta busca pelo progresso, é de se ressaltar que, após o
julgamento da ADPF 186 e aprovação da Lei 12711/12, inúmeros argumentos
354
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 130.
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin.
Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 23
356
Ibidem.
357
Dada a preponderância dos argumentos de princípios no caso da discriminação, Dworkin afirma
que “no caso contra a discriminação, são (direitos) gerados por princípios e qualificados por uma
política. Ibid.
355
133
contrários foram apresentados, declarando total repúdio aos programas criados358.
Entre eles destaca-se a ideia de que as cotas, embora pretendam incluir acabam
gerando discriminação perante os demais pretensos alunos das universidades,
culminando, via de consequência, na colaboração destas para maior inferiorização
dos grupos que se pretende proteger.359
A análise ora proposta, então, se faz mister tendo em vista que, enquanto os
argumentos de princípio procuram justificar que um grupo possui um direito por uma
questão de princípio, sendo, portanto, insensível à escolha, o argumento de política
se submete à escolha da maioria democrática, baseado na ideia estatística. Neste
diapasão, entende-se, pois, que ao passo que as questões de princípios podem ser
opostas contra a opinião das maiorias democráticas, já que se encontram em um
nível senão superior, alheio àquela, as questões de política estão sujeitas e
submetidas à escolha da maioria, sendo realizadas de acordo com esta.
Os programas de cotas revestem-se, inicialmente, como políticas públicas,
vez que almejam um objetivo político, qual seja garantir uma maior integração na
sociedade. Tal análise, entretanto, não parece satisfatória no sentido de garantir a
legitimidade destes programas, tornando imprescindível a sua releitura.
Doutro lado, ao se pensar na utilização dos argumentos de princípio no caso
em comento, denota-se que estes buscariam justificar a igualdade pretendida pela
legislação e a necessidade de estabelecimento de critérios para reduzir a
desigualdade já existente, bem como a provável eficácia de tais medidas.
358
Em meados de agosto de 2012, tão logo o projeto da nova lei de cotas foi aprovado pelo Senado,
antes mesmo da lei ser sancionada pela Presidente da República, incontáveis oposições à política de
reserva de cotas foram anunciadas, sendo exteriorizadas por meio de manifestações públicas de
estudantes e representantes das Universidades, opiniões da sociedade como um todo e ainda por
meio de declarações de contrariedade de vários reitores e diretores de universidades e, inclusive, da
Federação Nacional das Escolas Particulares, entre outros. Insta consignar que estas universidades,
fundações e federações anunciam até mesmo que ingressarão com medidas judiciais cabíveis para
contestar a lei em comento.
359
O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPG 186/DF aborda a questão referente à
inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas,
aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um
componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão
social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de
perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da
marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa
inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados
como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”. BRASIL,
Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Op.
cit.
134
É preciso, pois, que se adote o pressuposto da comunidade de princípios,
pois ela, conforme Dworkin,
[...] faz com que essas responsabilidades sejam inteiramente pessoais:
exige que ninguém seja excluído; determina que, na política, estamos todos
juntos para o melhor ou o pior; que ninguém pode ser sacrificado, como os
360
feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total.
Embora tenha sido exteriorizado através de ato estatal, o sistema de cotas
inicialmente solidificado pelo julgamento da ADPF 186/DF e, posteriormente
delimitado pela Lei nº. 12.711, apresenta questões descomedidamente importantes
para a sociedade como um todo, não admitindo serem tratadas tão somente como
objetivos políticos de um governo.361 A necessidade de observar este ato estatal a
partir da ideia da comunidade362 de princípios parece imperativa, pois, apenas assim
será possível identificar e discutir as questões suscitadas frequentemente em
relação às medidas de cotas, como, por exemplo, a constitucionalidade ou
efetividade da lei ou a validade do julgamento da ADPF 186/DF, diante de uma
suposta agressão ao princípio da igualdade.
A importância da comunidade de princípios estaria, todavia, afastada, caso
se entendesse as cotas tão somente com objetivo político. O assunto exige um olhar
mais cauteloso e aprofundado, com base na moral comum e necessária para a
existência de uma coletividade. O estabelecimento de cotas, para sua plena
aceitação e eficácia, não pode se traduzir em uma mera negociação política, mas,
mormente, em uma efetiva necessidade de se resguardar direitos e garantir a
integridade moral da comunidade.
Neste esteio, compreendendo a necessidade de se considerar uma análise
principiológica para além do caráter político dos programas de cotas, o princípio
360
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 257.
A efetividade de qualquer direito fundamental por meio de políticas de inclusão é assunto que
origina uma dificuldade natural, devendo prevalecer, entretanto, uma resposta principiológica. Bolzan
sobre a existência de um pacto estruturante da sociedade: “Pôr um prato de comida nas mãos de
cada um não parece ser tarefa fácil, embora inevitável e imediata, sem que enfrentemos a tensão
permanente e intransponível entre uma estratégia econômica excludente e as tarefas includentes de
uma política democrática, alicerçada nos direitos humanos e expressa em um pacto estruturante da
sociedade – nacional, regional, local, mundial.” MORAIS, Jorge Luis Bolzan de. As crises do Estado e
da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002. p. 100.
362
“[...] a comunidade tem papel central para o sucesso da vida de seus membros, pois ela é
entendida como um agente moral sem que isso implique uma concepção metafísica da agência”. Cf.
FURQUIM, Lilian de Toni. O liberalismo abrangente de Ronald Dworkin. São Paulo, 2010. 235f. Tese
(Doutorado em Ciência Política) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 12.
361
135
constitucional da igualdade ganha relevância e notoriedade, por ser ele o principal
pilar desta discussão. É ele que sustenta a necessidade da implementação das
cotas e que carrega consigo a justificação destas.
A igualdade dos indivíduos é, dentro da sociedade o que sustenta a sua
integridade. Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração
pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais
reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da
comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania. 363
Pois bem. No cenário das políticas de cotas, consideradas estas enquanto
ações afirmativas, o cerne do debate é a igualdade dos indivíduos, haja vista o
objetivo daquelas em garantir a equiparação de oportunidades para determinadas
classes de indivíduos historicamente discriminados e cuja posição social se faz
ainda prejudicada. Remetemos o leitor aqui ao primeiro capítulo, no qual se
apresentou uma análise crítica do histórico de discriminação existente em relação,
principalmente, aos negros.
A questão que surge seria então, até que ponto o direito à igualdade estaria
sendo ferido pela determinação de critérios diferenciados para ingresso no ensino
superior. Seria necessária uma igualdade material absoluta?364
Neste viés, não parece razoável a leitura do princípio da igualdade no
sentido deste garantir idêntico tratamento a todos de forma indiscriminada,
especialmente se observada a tradição existente, na qual há um histórico de
discriminação e de desigualdade em relação a oportunidades de crescimento no
meio social. Seria como garantir regras idênticas em uma corrida, na qual um de
seus competidores já inicia a disputa com um atraso considerável. O ponto de
partida daqueles inseridos neste histórico é diferente dos demais indivíduos da
sociedade e, portanto, exige um tratamento diferenciado que vise a sua igualação.365
363
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões.
2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. IX.
364
Segundo, Dworkin, “o princípio da igual importância não afirma que os seres humanos em nada
são iguais: não que sejam igualmente racionais ou bons, ou que as vidas que geram sejam
igualmente valiosas. A igualdade em questão não se vincula a nenhuma propriedade da pessoa, mas
à importância de que sua vida tenha algum resultado, em vez de ser desperdiçada.” Cf. DWORKIN,
Ronald. A virtude soberana. Op. cit., p. XV.
365
O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPG 186/DF aborda a questão referente à
inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas,
aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um
componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão
social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de
136
Recentemente, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos – DIEESE366 divulgou uma pesquisa que ilustra com precisão a
desigualdade ainda vivenciada em relação aos negros, em virtude da falta de
oportunidades oriunda de um histórico de discriminação. Segundo os dados
apresentados, nas áreas metropolitanas, os negros correspondem a 48,2%
(Quarenta e oito vírgula dois por cento) dos ocupados, mas, em média, recebem por
seu trabalho 63,9% (sessenta e três vírgula nove por cento) do que recebem os não
negros, não havendo considerável influência da região pesquisada. Além disso,
apurou-se que na medida que acrescentam anos de estudo a sua formação, negros
e pardos melhoram suas condições de remuneração, mas é nos patamares de maior
escolaridade que se constatam as discrepâncias mais acentuadas de rendimentos
entre negros e não negros. Segundo esta pesquisa ainda, na indústria
metropolitana, o confronto de rendimentos-hora de trabalhadores com ensino
superior completo indica que, em média, os ganhos dos negros ficam em R$ 17,39
(dezessete reais e trinta e nove centavos), enquanto os dos não negros ficam na
ordem de R$ 29,03 (vinte e nove reais e três centavos). Por fim, constatou-se que os
negros ocupam os grupos ocupacionais de menor prestigio e valorização: Na região
metropolitana de São Paulo, enquanto 18,1% (dezoito vírgula um por cento) dos
ocupados não negros alcançam cargos de Direção e Planejamento, apenas 3,7%
(três vírgula sete por cento) dos negros chegam lá.367
Percebe-se, então, que o princípio da igualdade em seu aspecto reformulado
não deve ser invocado para saldar uma dívida histórica. Entretanto, deve ele se
fazer valer para corrigir distorções atuais e que ainda permeiam toda a sociedade,
em decorrência de um horizonte de desigualdades, racismo e discriminações. Não
se está a condenar o passado, mas efetivamente a garantir a equalização de
oportunidades no presente, em vista do cenário atual existente. E esta apenas será
perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da
marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa
inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados
como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”. BRASIL,
Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Op.
cit.
366
O Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos foi fundado em 1955, a
partir de uma iniciativa do movimento sindical, sendo atualmente uma entidade de abrangência
nacional, reconhecida como instituição de produção científica que realiza estudos sobre os mais
diversos temas especialmente nas áreas relacionadas ao trabalho.
367
DIEESE: negro com ensino superior ganha 60% do salário do não negro. São Paulo, 13 nov. 2013.
Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/denuncias/dieese-negro-com-ensino-superior-ganha60-do-salario-do-nao-negro.html>. Acesso em: 13 nov. 2013.
137
possível a partir da leitura da igualdade como respeito à diferença; a partir da
conscientização de que o ponto de partida é desigual e o discurso meritório não
permitirá a o sucesso de muitos indivíduos.
A dicotomia entre igualdade formal e igualdade material já não mais se faz
adequada, por inexistir espaço para estas limitações em uma sociedade plural. A
concepção de igualdade deve ser entendida no sentido de se garantir as diferenças
entre os indivíduos e, ainda assim, permitir o acesso de todos aos direitos
fundamentais e sociais. Defende-se, portanto, a concepção de igualdade como
diferença.
A possibilidade/necessidade de se estabelecer critérios diferenciados
quando há um panorama de inferiorização já foi abordada por Boaventura de Sousa
Santos:
(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e
temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as
diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
368
desigualdades.
Ainda, para ilustrar a possível combinação existente entre o princípio da
igualdade e o estabelecimento de tratamentos diferenciados , J. J. Gomes Canotilho:
A fórmula “o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente”
não contém o critério material de um juízo de valor sobre a relação de
igualdade (ou desigualdade). A questão pode colocar-se nestes termos: o
que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma
igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?
... existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais
não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por
outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade
de tratamento surge como arbitraria. O princípio da igualdade não proíbe,
pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja,
proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material
bastante, que o mesmo dizer sem qualquer justificação razoável,
segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente
desiguais. E proíbe ainda a discriminação: ou seja, as diferenciações
de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas ... existe
uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não
se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii)
369
estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável.
Grifos
não constantes no original.
368
SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São
Paulo: Cortez, 2006, p. 462
369
CANOTILHO, J. J Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1995.
p. 401.
138
A isonomia se consagra como o maior dos princípios garantidores dos
direitos individuais e a presunção genérica e absoluta é a da igualdade, vez que o
texto constitucional a impõe.370 A igualdade é, pois, o signo fundamental da
democracia371, o qual anda de mãos dadas com a liberdade. Não há como admitir a
liberdade se inexiste igualdade.
Assim, falar em liberdade sem a correspondente garantia da igualdade ou
ainda, tratar esta última deixando-se de considerá-la como um elemento garantidor
das diferenças, é retornar a ideia liberal burguesa de um individualismo exacerbado
e das conquistas meritórias, já tratadas anteriormente. Se não há igualdade de
oportunidades, respeitando-se as concepções plurais da sociedade, não há também
a liberdade.
Dworkin, ao tratar de igualdade e liberdade, afirma que o seu argumento:
[...]não pretende subordinar a liberdade à igualdade, mas pelo contrário,
demonstrar que embora seja comum distinguirmos essas duas virtudes nas
discussões e análises políticas, elas expressam mutuamente aspectos de
372
um único ideal humanista.
Uma sociedade plural apenas pode ser vista como uma sociedade
democrática se houver a garantia da liberdade, e somente com a inclusão de
projetos de vida diferenciados em uma sociedade pluralista é que ela se
autocompreenderá como uma sociedade democrática, ainda que tais projetos
necessitem de uma aplicação desigual do direito.373 Significa, portanto, que se
propiciar a inclusão, critérios eventualmente discriminatórios podem ser tidos como
produtores da igualdade.374
Sobre discriminação positiva, Álvaro Ricardo de Souza Cruz:
Há que se deixar claro que é absurdo afirmar que toda discriminação é
odiosa ou incompatível com os preceitos do constitucionalismo
contemporâneo. Muitas vezes, estabelecer uma diferença, distinguir ou
separar é necessário e indispensável para a garantia do próprio princípio da
370
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 45.
371
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros,
2010. p. 211.
372
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins
Fontes, 2005. p. 178.
373
GALUPPO, Marcelo Campos. Op. cit., p. 210.
374
Ibidem, p. 216.
139
isonomia, ou seja, para que a noção de igualdade atenda às exigências do
princípio da dignidade humana e da produção discursiva (com argumentos
375
racionais de convencimento) do direito.
Neste sentido, conforme lições de Dworkin376, em algumas circunstâncias, o
direito de tratamento como igual não implicará a um só tempo um direito a igual
tratamento. O primeiro se refere ao direito a igual distribuição de alguma
oportunidade, recurso ou encargo; o segundo ao direito de não receber a mesma
distribuição de algum encargo, mas ser tratado com o mesmo respeito e
consideração.
Vislumbra-se, nesta esteira, a proteção às minorias, que pode redundar na
diferenciação entre igualdade como política e igualdade como direito.377 O direito a
igualdade admite e, mais do que isso, exige o respeito e a observância das
diversidades, sendo apenas oposto às discriminações arbitrárias, conforme aduz
Moraes:
Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as
discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais,
na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio
conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades,
somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento
discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo
378
direito [...].
No caso das cotas, partindo-se principalmente do horizonte traçado no
primeiro capítulo e considerando-se a aplicação da proposta do chain novel de
Ronald Dworkin, parece existir com clareza uma justificativa para o tratamento
diferenciado, o que permite concluir que a declaração de constitucionalidade das
cotas convive perfeitamente com a ideia de igualdade.379 Embora insista-se na
necessidade de um critério meritório, uma análise do direito exige que se reconheça
que determinados grupos ainda se mantêm alheios à efetividade de muitos direitos
sociais, a começar pelo direito à educação.
375
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: ações afirmativas como mecanismo de
inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003. p. 21-22.
376
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p.
349-350.
377
Ibidem, p. 349.
378
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 36.
379
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e
desequiparações permitidas. In: Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1993. p.
79-83.
140
Menelick Carvalho realiza um contraponto entre aqueles que detêm os seus
direitos reconhecidos contra outros ainda excluídos, o que parece retratar em grande
medida a proposta da instituição de cotas no ensino de nível superior:
O sujeito e a identidade constitucional são complexos, abertos, nunca
podem se fechar, se completar, sob pena de se eliminar o
constitucionalismo mesmo, de se instaurar a ditadura daqueles que têm
seus direitos reconhecidos contra aqueles excluídos, ou seja, que ainda não
gozam do reconhecimento jurídico-constitucional do seu direito à diferença,
380
do direito à igualdade constitucional.
O sistema meritório, tão suscitado nos argumentos contrários às cotas no
ensino superior no Brasil não parece, doutro lado, se sustentar enquanto um
elemento da comunidade de princípios, pois o mérito trata-se apenas de um critério
determinado, mas não necessariamente mais adequado. Aliás, a constituição do
mérito de um indivíduo depende de inúmeros fatores, os quais se encontram
destacados no horizonte autêntico que lhe precede, além da notória influência do
ambiente externo em sua construção enquanto ser.
É bem verdade que o princípio da igualdade, núcleo forte da análise crítica
sobre as cotas, não está contrariando igualmente o aspecto meritório, pois as cotas
garantem a igualdade de condições, isto é, a isonomia de oportunidades. Permitem,
portanto, que todos os indivíduos estejam colocados em um mesmo plano quando
da disputa para o ingresso no ensino superior público, incidindo, a partir do respeito
de tais diversidades, o julgamento meritório.381
Acerca deste sistema meritório, Ronald Dworkin:
Não há nenhuma combinação de capacidades, méritos e traços que
constituam o ‘mérito’ no sentido abstrato; se mãos ágeis contam como
mérito no caso de um possível cirurgião, é somente porque mãos ágeis irão
capacitá-lo a atender melhor o público. Se uma pele negra, infelizmente,
capacita outro médico a fazer melhor outro trabalho médico, a pele negra,
em prova do que digo, também é um mérito. Para alguns, esse argumento
pode parecer perigoso, mas apenas porque confundem sua conclusão –
380
CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Op. cit., p.
18.
381
Ronald Dworkin apresenta, inclusive, a ideia de que o próprio sistema de mérito pode ser
discriminatório em relação aos indivíduos que não consegue o acesso ao ensino superior por não
serem considerados preparados, aduzindo que “(...) qualquer critério adotado colocará alguns
candidatos em desvantagem diante dos outros, mas uma política de admissão pode, não obstante
isso, justificar-se, caso pareça razoável esperar que o ganho geral da comunidade ultrapasse a perda
global e caso não exista uma outra política que, não contendo uma desvantagem comparável,
produza, ainda que aproximadamente, o mesmo ganho ”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a
sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 350-351.
141
que a pele negra pode ser característica socialmente útil em dadas
circunstâncias – com a ideia muito diferente e desprezível de que uma raça
382
pode ter inerentemente mais valor que outra.
O programa de cotas objeto da ADPF 186/DF e Lei nº. 12.711/2012, não
necessariamente possui como finalidade excluir o mérito do indivíduo no ingresso ao
ensino superior, especialmente o público. O que em verdade se busca é a
combinação do mérito com outros elementos que garantam uma equalização de
acesso à universidade, mormente quando pensado que as universidades públicas
são subvencionadas por toda a sociedade e, portanto, devem beneficiar a todos
indistintamente. Se no quadro fático, concreto e real, percebe-se um monopólio
destas universidades por determinada parcela da sociedade, é preciso que se criem
mecanismos que corrijam esta distorção e permitam a ampla acessibilidade
institucional.
A partir desta perspectiva que Dworkin383 sustenta a ideia de que deve existir
uma igualdade de recursos coerente com os princípios morais da sociedade
democrática, no sentido de que, se há desigualdades em virtude de uma má
distribuição destes recursos, é preciso redistribuí-los. Uma simples análise do
histórico apresentado no primeiro capítulo deixa evidente que nunca houve uma
adequada distribuição de recursos, o que culminou na exclusão de vários grupos em
nossa atual sociedade, seja pelo critério da raça, seja pela condição social que, ao
final, acabam se imbricando.
Parece, então, correto aduzir que a adoção de cotas no ensino superior
brasileiro considera a tradição existente e carrega consigo aspectos sociais e
meritórios, cuja efetiva compreensão demanda a consideração hermenêutica e a
observância, muito além das opiniões prévias, preconceitos existentes e da
literalidade do texto, de todos os horizontes que permeiam seu sentido, fazendo-se
imprescindível a fusão destes. É nítida a existência de um círculo vicioso de
insucesso e exclusão, especialmente dos negros, ilustrado, inclusive, pelas atuais
estatísticas de ausência destes nas classes sociais e econômicas em destaque e
nos mais importantes postos de trabalho.
Este cenário se agrava na medida em que, ainda que consigam sair da
margem da pobreza ou de patamares abaixo da linha da pobreza, os negros
382
383
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Op. cit., p.446.
DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Op. cit.
142
continuam sofrendo discriminação, independentemente de seu status econômico, a
exemplo da pesquisa feita pela DIESEE, acima relatada, que demonstra a diferença
salarial entre negros e brancos em um mesmo cargo. A análise das cotas exige,
portanto, uma visão da comunidade e a perspectiva dos seus efeitos para a garantia
do bem estar de todos os indivíduos. A possibilidade de equalizar oportunidade de
ingresso em universidades públicas a negros e sujeitos pertencentes a classes
excluídas permitirá que estes, futuramente, venham a ocupar, em igualdade, o
mercado de trabalho em seu maior status econômico, desconstituindo, assim, os
topois ainda existentes acerca da inferioridade de raças.
O sujeito julgador não está, portanto, imbuído de poder que lhe possibilite se
valer de um exercício interpretativo a partir de padrões morais e políticos para impor
sua concepção de justiça.384 O Direito, enquanto possibilidade inclusive de se
constituir como regra contra majoritária, muito além de se portar enquanto
instrumento de mera concretização de programas políticos, necessita de uma
sensibilidade maior em sua compreensão e aplicação, restando cogente a
consideração da sua essência em seus mais variados aspectos.385
Nesta perspectiva, as cotas se constituem como instrumento de garantia do
princípio constitucional da igualdade e, via de consequência, dos princípios da
liberdade e da dignidade da pessoa humana, adequando-se à comunidade de
princípios proposta por Dworkin, independentemente dos anseios e da moral
individuais. Flávia Piovesan igualmente defende a política de cotas enquanto medida
para combater a discriminação sofrida por determinados grupos:
Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do
direito à igualdade, todavia, por si só, é medida insuficiente. Faz-se
necessário combinar a proibição da discriminação com políticas
compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Para
assegurar a igualdade, não basta apenas proibir a discriminação, mediante
legislação repressiva, pois a proibição da exclusão, em si mesma, não
386
resulta automaticamente na inclusão.
384
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. Cit., p. 452.
Insta destacar que embora o direito fale expressamente em políticas públicas, o que, a princípio
impediria a fuga de padrões políticos, a ideia expressa por Dworkin é que, em que pese serem
válidos os argumentos de política, os argumentos de princípio são mais adequados, pois não estão
sujeitos à vontade da maioria e representam com maior exatidão o constitucionalismo e a garantia de
direitos fundamentais. Pode-se ainda conceber a separação de poderes (que na verdade, sabemos
que se trata da separação de funções do Estado), posto que permitir que o julgador se baseie
eminentemente em argumentos de política parece ferir tal separação, posto que o Judiciário estaria
interferindo em questões, a princípio, reservadas ao Executivo e Judiciário.
386
PIOVESAN, Flávia. A compatibilidade das cotas raciais com a ordem internacional e com a ordem
constitucional brasileira. Audiência pública sobre políticas de ação afirmativa de reserva de vagas no
385
143
A autora ainda menciona a constitucionalidade e aceitabilidades das cotas
raciais, por ser o Brasil signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial, cujo art. 1º, § 4º, prevê a possibilidade de adoção
das ações afirmativas, através de medidas especiais de proteção adotadas com a
finalidade de garantir o progresso de certos grupos raciais ou étnicos e amenizar as
consequências de um passado de discriminação.
Cumpre destacar, todavia, que ainda que considere a validade das cotas sob
uma perspectiva da hermenêutica política, estas se revestem necessariamente de
um caráter transitório, haja vista a sua função primordial de reparar eventuais danos
e, neste caso, desigualdades originadas por uma tradição marcada pela
discriminação e segregação racial e social.
Além disso, embora dotadas de validade imediata, as cotas não parecem
suficientes para garantir perenemente a efetividade do direito à educação, já que
além delas, deve-se pensar em uma reparação gradual dos danos resultantes do
problema de déficit educacional e social identificados, não podendo o Estado se
manter inerte quanto à insuficiência do ensino público e manutenção de
desigualdades sociais e raciais. Parece ineficiente, em longo prazo, tratar apenas e
tão somente os sintomas gerados pelo problema sem, todavia, combater as causas.
Temos, então, que as cotas no ensino superior público federal, analisadas
para além de sua condição como política pública e lidas a partir de argumentos de
princípios não são, possivelmente, a resolução do problema referente à
discriminação atualmente existente, entretanto constituem-se como elementos
válidos para garantir a igualdade enquanto diversidade, assegurando uma isonomia
nas condições de participação e nas oportunidades dos indivíduos. Coadunam com
a moral da comunidade, por permitirem a inclusão de cidadãos antes excluídos do
ambiente educacional e, via de consequência, contribuir com o desenvolvimento
social.
Ronald Dworkin se manifesta em relação ao potencial das cotas em reduzir
desigualdades nos Estados Unidos:
ensino
superior.
2010,
Brasília.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa>.
Acesso em: 16 out. 2012.
144
A discriminação racial sistemática do passado gerou uma nação na qual os
cargos de poder e prestígio sempre ficaram reservados para uma só raça.
Não foi ato irresponsável os críticos se oporem à ação afirmativa,
argumentando que faria mais mal do que bem, quando as consequências
da política ainda eram incertas. Mas seria um erro a nação proibir tal política
agora, quando estatísticas e análises abrangentes demonstraram de
maneira óbvia seu valor. A não ser que, e ate que, o estudo River seja
refutado por um estudo maior e mais pormenorizado, não temos motivo
para proibir a ação afirmativa universitária, como arma contra nossa
estratificação racial, exceto nossa indiferença ao problema, ou nossa ira
387
petulante por ela não ter desaparecido sozinha.
Neste esteio, o programa de cotas se faz adequado não só ao ordenamento
jurídico, em sua concepção semântica, mas também aos preceitos da sociedade em
que se insere, o que apenas pode ser observado a partir do abandono da leitura
dogmática jurídica estática e sistêmica, evitando, via de consequência, uma
“fetichização do discurso”.388 As cotas devem ser compreendidas com base na
tradição histórica que carregam consigo, sendo interpretadas para além do conceito
simplório de igualdade e enaltecendo o objetivo político-social nela intrínseco. Há de
se compatibilizar tais elementos com o direito e com os princípios morais da
comunidade política, sem afastar, todavia, a possibilidade de mutação da
compreensão e interpretação encontrada de acordo com a realidade prática
existente.
Insista-se, não significa dizer que se trata de uma compensação pelo
passado, mas efetivamente de um meio de promoção de igualdade em vista das
divergências ainda persistentes no presente, de forma que o horizonte traçado tão
somente figura para delinear os passos da sociedade até a atual situação.389
387
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 579.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op.
cit., p. 340.
389
"Em todo o mundo... Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente pobres,
desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente menos escolarizadas que
os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas estruturas políticas e super-representadas nas
prisões. Têm menos acesso a serviços de saúde de qualidade e, consequentemente, menor
expectativa de vida. Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso tempo;
mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro". ANNAN, Kofi Annan. Secretário Geral da ONU.
Disponível
em:
<http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/cc/a_pdf/modulo3-tema3-aula1.pdf>.
Acesso em: 17 de julho de 2013.
388
145
4. O JULGAMENTO DA ADPF N. 186/DF PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO
CONSTRUTIVA DO DIREITO
Conforme já apresentado no decorrer do presente trabalho, a questão
relativa a cotas raciais390 em Universidades Públicas, antes de se transformar em
objeto de lei, foi deveras discutida no âmbito do Poder Judiciário, quando da análise
da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 186/DF, decidida pelo
Supremo Tribunal Federal em 26 de abril de 2012. A ADPF nº. 186 foi proposta pelo
partido político DEM contra as cotas instituídas pela Universidade de Brasília – UnB,
tendo sido julgada em conjunto com o recurso extraordinário (RE 597285) proposto
por um aluno da UFRGS em face de cotas raciais lá adotadas. 391
A declaração de constitucionalidade das cotas no ensino superior público
brasileiro foi, sem dúvidas, uma decisão histórica, sem precedentes e que
representou uma grande modificação na sociedade, no que se refere à efetividade
do direito social à educação392. Destaca-se, inclusive, que após o julgamento da
ADPF 186, houve a aprovação da Lei nº. 12711/2012, denotando imperiosa
influência do julgamento da Suprema Corte, o que será objeto de maior digressão
abaixo.
Nestes termos, diante da importância deste julgamento e a fim de permitir
um mais adequado entendimento sobre as razões do STF, passamos a analisar a
390
Lembramos que em que pese a existência de lei que regulamenta a questão relativa às cotas
sociais, a qual foi também abordada no presente trabalho, optou-se por destacar as cotas raciais em
razão dos insistentes índices que demonstram a mantença do preconceito racial, em que pese se
encontrar tais desigualdades veladas por uma suposta exclusiva discriminação de classe, além da
riqueza dos debates travados em virtude da ADPF 186.
391
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
392
A defesa da constitucionalidade das cotas na ADPF 186 contou com o apoio da Educafro,
associação civil, sem fins lucrativos, sediada na cidade de São Paulo, que figurou como amicus
curiae no processo. A missão desta associação é promover a inclusão da população negra (em
especial) e pobre (em geral), nas universidades públicas e particulares com bolsa de estudos, através
do serviço de seus voluntários/as nos núcleos de pré-vestibular comunitários e setores da sua Sede
Nacional, em forma de mutirão.
146
possível influência deste julgamento na nova legislação, bem como os votos dos
ministros.
4.1. A aprovação de Lei nº. 12711/12 após manifestação do Poder Judiciário:
Possível influência de precedentes judicias na esfera legislativa.
Não se olvida que a decisão do STF parece ter motivado e quiçá despertado
o funcionamento da engrenagem do Poder Legislativo que, desde 2008, discutia o
Projeto de Lei nº. 180 no Congresso, sem, no entanto, dar-lhe cabo, seja com sua
aprovação ou não. A delimitação do entendimento do órgão jurisdicional supremo
acerca da constitucionalidade das cotas raciais minimizou, de certa forma, debates
no Poder Legislativo e facilitou a justificação da aprovação da nova legislação,
mormente, perante a sociedade. Vale mencionar que em sua origem, este era o
Projeto nº. 73/99, tendo lenta tramitação desde sua apresentação, perfazendo,
portanto, 13 (treze) anos de espera.
Isso porque, conforme já exposto acima, em 30 de agosto de 2013 foi
publicada a Lei nº. 12711/12, ou seja, logo após o STF ter firmado o seu
entendimento quanto à constitucionalidade das cotas. Parece, contudo, existir
questões específicas que circundam a Lei nº. 12.711/12 e que se confundem com o
episódio do julgamento da constitucionalidade de cotas, fazendo-se crucial a análise
de uma eventual relação entre as decisões proferidas em relação às cotas, as quais
tanto mudaram o panorama da educação superior no Brasil.
Coincidência ou não, se observado o trâmite do Projeto de Lei nº. 180/2008
no Congresso Nacional393 constata-se que, na data de 07 de dezembro de 2011,
este teve a sua situação definida como “pronta para a pauta na comissão”. Antes
deste andamento, a movimentação do projeto ocorria em datas razoavelmente
próximas, no entanto, adiou-se por inúmeras vezes a análise do projeto,
especialmente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Verifica-se, então, que o projeto apenas foi movimentado efetivamente em
28 de maio de 2012, isto é, cerca de um mês após a declaração de
393
Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=88409
147
constitucionalidade das cotas pelo STF, sendo que naquele momento o PL nº.
180/2008 foi incluído na pauta de reunião da Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania e, ato contínuo, definitivamente votado.
Noutro giro, embora não exista nenhuma declaração oficial nos relatórios
das Comissões do Senado que indiquem a espera pelo posicionamento do STF, é
possível encontrar manifestações de grupos e organizações que acompanhavam a
votação do projeto neste sentido. A exemplo deste fato, encontra-se a manifestação
do presidente do MSU - Movimento dos Sem Universidade394, o economista Sérgio
Custódio, que menciona que o Senado estava aguardando a verificação da
constitucionalidade das cotas pelo Poder Judiciário.395
Acima de todas as suposições e conjecturas realizadas, é fato que após ter
sido pauta de três audiências públicas e ter sua votação adiada por diversas vezes,
o Projeto de Lei nº. 180/2008, que chegou ao Senado em dezembro de 2008, teve
sua conclusão e consequente aprovação aceleradas após a declaração de
constitucionalidade das cotas raciais pelo STF.
Insta consignar que este posicionamento é reforçado por trecho do voto em
separado do Senador Lobão Filho, quando ele menciona expressamente o
julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que para complementar
a necessidade de criação também de cotas sociais e não meramente raciais.
Em primeiro lugar, no que se refere às chamadas ‘cotas raciais’, embora
tenhamos consciência de que o Supremo Tribunal Federal as considerou
em acordo com a Constituição, somos da convicção de que
preferencialmente devemos adotar sistema de ‘cotas sociais’, que permite e
favorece o acesso à educação superior e técnica a todos os brasileiros que
tenham cursado o ensino médio e fundamental nas escolas públicas, em
especial àqueles oriundos de famílias com baixa renda. Cabe salientar, a
propósito, que as ‘cotas sociais’ não são de modo algum antagônicas às
‘cotas raciais’, pois os seus beneficiários são os brasileiros de menor renda,
que estudam nas escolas públicas e, como todos bem sabemos, os dados
estatísticos comprovam que a maioria dos brasileiros negros e pardos
compõe exatamente a parcela de menor renda da nossa população. Desse
modo, as ‘cotas sociais’ permitem alcançar os mesmos objetivos das ‘cotas
raciais’, sem os riscos de uma perigosa divisão da sociedade brasileira
396
contidos nessas últimas. (Voto do Senador Lobão Filho)
394
Apenas para que “não passe em brancas nuvens”, o MSU é um movimento que surgiu na década
de 90 em São Paulo e que desde então luta, primordialmente, pela democratização do ensino
superior brasileiro, tendo garantido grande representação no Senado quando da votação da Lei
12.711/2012.
395
Entrevista disponível em http://www.campanhaeducacao.org.br/?pg=Entrevistas&id=8
396
Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=88409
148
De certa forma, sendo a aprovação da legislação posterior à declaração de
constitucionalidade das cotas raciais pelo Supremo Tribunal Federal, o seu
recebimento pela própria sociedade tornou-se mais pacífico, uma vez que sabia-se
de antemão que o guardião da Constituição Federal, a priori, estaria favorável às
ações afirmativas, gerando maior segurança e confiabilidade ao próprio Poder
Legislativo.
Doutro lado, a par da discussão da força do precedente judicial exercida
sobre o Poder Legislativo, a qual será mais adiante retomada, parece indispensável
que se reflita sobre a real possibilidade de se utilizar o precedente do STF como
parâmetro no momento da análise da nova lei de cotas, em que pese toda a notória
influência acima relatada.
Esta preocupação se justifica em virtude do fato de já ser possível identificar
entendimentos, mormente no interior da própria sociedade e dos grupos informais de
discussão sobre a implementação do programa de cotas, no sentido de que a
legislação ora analisada estaria de antemão declarada constitucional e, via de
consequência, se faria inquestionável, tendo em vista o posicionamento já definido
pelo STF.397
A despeito da discussão sobre a aplicabilidade e cabimento da teoria da
transcendência dos motivos determinantes398 ou da observância da lei nº. 9869/99
que imprime força vinculante das decisões do STF quando do controle de
constitucionalidade concentrado, há de se verificar, todavia, que o precedente criado
pelo julgamento da ADPF 186 tem nome, sobrenome e individualidade399, posto que
decidido nos exatos termos de um caso concreto apresentado ao Supremo Tribunal
Federal e por ele analisado.
Por tal fato, a sua mera repetição quando da análise de casos posteriores
pode se mostrar temerária, especialmente levando-se em consideração que se trata
397
PEREIRA, Gustavo Leonardo Maia. Lei de cotas nas universidades: constitucionalidade e
necessidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3365, 17set.2012. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/22632>. Acesso em: 15 jan. 2013
398
Em breves linhas, por esta teoria, os fundamentos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal
teriam efeito vinculante. Luis Roberto Barroso, afirma que “por essa linha de entendimento, tem sido
reconhecida eficácia vinculante não apenas à parte dispositiva do julgado, mas também aos próprios
fundamentos que embasaram a decisão. Em outras palavras: juízes e tribunais devem acatamento
não apenas à conclusão do acórdão, mas igualmente às razões de decidir" (BARROSO, Luis
Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
184)
399
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas, vaguezas e ambiguidades: necessitamos de um “Teoria Geral
dos Precedentes”?. Direitos Fundamentais e Justiça. Nº. 5. Out/Dez. 2008, p. 164
149
da interpretação, inclusive, de uma nova legislação e não de um caso concreto
semelhante ao outrora discutido.
Dierle Nunes adverte que, nem mesmo em países onde é tradicional a
utilização de precedentes, estes são aplicados de forma mecânica, sem a
reconstrução histórica de aplicação decisória e sem discutir a sua adaptabilidade.400
É preciso que se retire do precedente a sua ratiodecidendi, assim considerada a
regra central retirada da justificação do precedente401 ou como conjunto de
fundamentos jurídicos que sustentam a decisão e a opção hermenêutica adotada na
sentença.402
A extração da ratiodecidendi, todavia, não é tarefa simples, exigindo uma
cautelosa análise e interpretação do julgamento do órgão jurisdicional, a fim de que
se determinem os fundamentos por ele escolhidos e a tese jurídica por ele adotada.
Dierle Nunes traz importantes lições sobre a violação à igualdade quando ocorre a
aplicação mecânica de precedentes, as quais, não obstante terem sido direcionadas
oportunamente à análise do processo civil e suas peculiaridades, podem também
ser aproveitadas para o exame ora realizado.
Costuma-se dizer, como já pontuado, que se preserva a igualdade quando,
diante de situações idênticas há decisões idênticas. Entretanto, viola-se o
mesmo princípio da igualdade quando em hipóteses de situações
“semelhantes”, aplica-se, sem mais, uma “tese” anteriormente definida
(quanto às questões próprias do caso a ser decidido e o paradigma): ai há
também violação à igualdade, nesse segundo sentido, como direito
403
constitucional à diferença e à singularidade.
Considerando este atual cenário em relação aos precedentes, necessário
analisar a força da difusão da ideia de mantença e vinculação destes em um
caminho oposto ao que comumente é traçado: o caminho do Poder Judiciário ao
Poder Legislativo.
Se já existem dúvidas no que concerne à aplicação de técnicas de
padronização de decisões e, dentre elas, dos precedentes judiciais em julgamentos
400
NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para
a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de
padronização decisória. Revista dos Processos 2011 – RePro 19/29. Teresa Arruda Alvim Wembier,
coordenação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.p. 64
401
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a aplicação
de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. P. 283
402
DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil.
Salvador: Jus Podivm. 2010, v.2. p. 381
403
NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático. Op. Cit. p. 70
150
realizados pelo Poder Judiciário a partir da interpretação de legislações existentes,
maior se faz o questionamento de como se deve enfrentar um precedente que é
anterior até mesmo à legislação que trata do tema por ele abordado e,
eventualmente, pacificado.
O fato consiste, então, em uma eventual decisão do Poder Judiciário que
agindo, seja provocado para cumprir seu estrito papel, seja guiado pelo
protagonismo judicial404, decide determinada questão ainda não amparada
expressamente pelo ordenamento jurídico e que futuramente será objeto de nova
legislação. Depara-se com a circunstância de um precedente sendo anterior à
própria legislação. Seria possível, então, aplicar-lhe seus efeitos aos entendimentos
decorrentes da nova lei?
Em regra, os precedentes surgem diante de determinados fatos onde há
ausência de legislação positivada expressa ou quando o texto da lei não é suficiente
para apresentar as respostas necessárias para determinada problemática, fazendose crucial uma interpretação mais minuciosa pelo órgão julgador. A falta de
legislação expressa e específica é, portanto, causa natural da criação de
precedentes.
A questão que se pretende enfrentar, todavia, consiste na elaboração de
legislações posteriores a um julgamento de um caso concreto e a influência ou
(in)aplicabilidade do precedente já delimitado nos casos futuros, ainda que
abrangidos por legislação outrora inexistente. Isso porque a questão das cotas
ganhou repercussão nacional em decorrência do julgamento da ADPF 186 que,
indubitavelmente, representou o assentamento de um importante posicionamento do
STF no Brasil no que concerne às políticas de cotas, o que parece ter força para
influenciar casos futuros que abordem as problemáticas ali analisadas.
404
Estamos atualmente vivenciando um movimento de protagonismo judicial, por vezes denominado
judicialização. Costumeiramente atribuindo-se um aspecto negativo sobre este protagonismo, fala-se
também em ativismo judicial. Sobre a judicialização, Barroso, “judicialização significa que algumas
questões de larga repercussão político ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder
Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo –
em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública
em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais,
com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da
sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial;
404
outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro”. BARROSO, Luís Roberto.
Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Miranda;
FRAGALE, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição e ativismo judicial: limites e
responsabilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011,
p. 276.
151
Entretanto, na tradição do civil law o Judiciário possui o papel de interpretar
e julgar os casos concretos de acordo com a legislação e com o ordenamento
jurídico advindos, em regra, do Poder Legislativo, e não este último agir em função
das decisões daquele.405
É neste aspecto que se percebe a possibilidade de argumentar uma
inversão de papeis, tendo em vista que é exatamente no processo legislativo que se
demanda uma abertura argumentativa sensivelmente maior àquela plausível no
Poder Judiciário, já que envolve outras áreas que, a princípio, escapam da análise
do Judiciário, ao menos em sua função técnica. Observa-se que na criação do
precedente, parece ter ocorrido uma abertura argumentativa tal que o Tribunal,
usando um discurso de justificação, proporcionou maior amplitude argumentativa,
assim como deveria se dar no processo legislativo.
Ao decidir sobre a constitucionalidade das cotas, diante da inércia do
Legislativo em tratar sobre o tema, o STF apresentou argumentos políticos, sociais,
econômicos, culturais e diversos outros que fogem à estrutura técnica que
originariamente traçava o seu perfil406. No caso em análise, encontra-se atribuída ao
Poder Judiciário uma lógica bastante similar à função legislativa em relação à
abertura e formação de argumentos.
É certo, por outro lado, que o STF apresenta há muito a tendência de
modificar sua própria significância e função perante a sociedade, haja vista o
405
Segundo o presidente do MSU, o projeto de lei estava parado no Senado desde o final de 2008,
sendo que em 2009, o senador Demóstenes Torres, havia solicitado e convencido seus colegas
sobre a necessidade de aguardar as decisões sobre a constitucionalidade das cotas no STF. Em
outra oportunidade menciona ainda que após o julgamento, estaria sendo retomada a análise do
Projeto de Lei. Entrevista disponível em http://www.campanhaeducacao.org.br/?pg=Entrevistas&id=8.
Além dele, o professor Hernán Chaimovich Guralnik afirmou que “O Supremo Tribunal Federal já se
manifestou sobre a constitucionalidade do assunto entendendo que a reserva de cotas não fere a
autonomia das universidades que, aparentemente, teria sido consagrada no Art. 207 da Constituição
de 1988. Quiçá a partir desta decisão do STF a ação do congresso estende o conceito da
constitucionalidade das cotas e impõe uma reserva de vagas que se aplica a todas as Universidades
Federais.
Entrevista
disponível
em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010040422012000900001&script=sci_arttext
406
O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPG 186/DF aborda a questão referente à
inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas,
aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um
componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão
social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de
perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da
marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa
inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados
como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”. Voto
Ministro
Lewandowski.
ADPF
186.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf> Acesso em 21-08-2013.
152
crescimento exponencial de sua importância no meio social. No entanto, não
obstante esta modificação em sua atuação, o Poder Judiciário possui uma função
contra majoritária em sua essência e, por tal fato, não se reveste das características
de uma arena pública para discussão de argumentos variados, tal qual ocorre com o
Legislativo representando a democracia majoritária.
Esta função é também lembrada por Dierle Nunes que afirma ser no campo
processual que se suscitam as digressões em face do fenômeno da judicialização de
diversas temáticas, tendo o processo a função de viabilizar uma Jurisdição com
função contra majoritária e como espaço institucional para as demandas que não
foram ouvidas nas arenas institucionais majoritárias.407
Todavia, percebe-se que o Poder Legislativo, arena institucional majoritária,
parece, em determinados momentos, aguardar propositadamente o posicionamento
do Poder Judiciário, mantendo-se inerte em relação a questões de imensurável
importância no seio da sociedade, a fim de que assim possa ter maior garantia e
segurança em sua decisão. Figura-se, então, a crise da democracia representativa e
a imagem do Parlamento sem agenda.408
Destaca-se que não se pretende criticar o posicionamento do STF que agiu
mediante provocação específica e concedendo a resposta necessária aos
jurisdicionados. Mas, em outra percepção, a abertura da formação de argumentos
no Poder Judiciário, abrindo-o para a lógica política, econômica, entre outras, parece
retornar à matriz de aplicação do Direito de acordo com um senso solipsista.
A formação de opinião e da vontade pública se dá em espaços públicos de
deliberação (institucionalizados ou não) que se consubstanciam em discursos de
justificação. Esta não é a lógica própria dos Tribunais, mas sim de aplicação do
Direito.409
Além disso, se não bastasse a necessidade de se garantir o adequado
espaço de argumentação, no sistema do Civil Law o ponto de partida de qualquer
407
NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para
a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de
padronização decisória. Revista dos Processos 2011 – RePro 19/29. Teresa Arruda Alvim Wembier,
coordenação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 45
408
THEODORO JÙNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da
Politização do Judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência
entre o ‘civil law’ e o ‘common law’ e dos problemas de padronização provisória. RePro. Teresa
Arruda Alvim Wambier/coordenadora. São Paulo: Ed. RT, nov. 2010. P. 16.
409
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre
interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.P. 302
153
discussão é a legislação e não os precedentes criados no Judiciário, tal qual ocorre
no sistema do Commom Law.410 Novamente denota-se a confusão na tentativa de
aplicação deste último sistema, quando a história e o costume do nosso Direito
insistem naquele.
Pois bem. Esta nítida confusão entre o Civil Law e o Commom Law,
decorrente da nova significância do Estado pode ser também considerada como
consequência do que se concebe como crise do Estado, já que este último não
parece mais ser o centro único e autônomo de poder e sujeito exclusivo da
política.411
Isso porque, diante da consolidação de novas relações sociais, o modelo do
welfare state transfere ao próprio Estado um novo elemento, qual seja, a
solidariedade. Assim, agora é dever também do Poder Público produzir a
incorporação de grupos sociais aos benefícios da sociedade contemporânea412,
quadro este que parece ter levado o Poder Judiciário a assumir dimensões até então
pertencentes apenas aos Poderes Legislativo e Executivo.
É a partir destas observações que se reafirma a inversão de papeis dos
Poderes e a grande influência exercida pelo Poder Judiciário na elaboração de
legislação. Diante disto, oportuno destacar as lições de Luis Roberto Barroso.
O ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema.
Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado.
(...) A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção
que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade,
legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma
413
política. E essa não pode ser feita por juízes.
Daí justifica-se que a concretização de políticas públicas na área da
educação por meio do Poder Judiciário parece ter dado azo a uma aceleração ou
indução da atuação legislativa, no que concerne às cotas. O caminho foi reverso: a
pretensão de se efetivar direitos fundamentais por meio de uma decisão que analisa
410
ABBOUD, Georges. Precedente judicial ‘versus’ jurisprudência dotada de efeito vinculante : A
ineficácia e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de precedentes. In:
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012.p. 521
411
STRECK, Lenio Luiz. MORAIS. José Luiz Bolzan.Ciência Política e Teoria do Estado. 7ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2012. P. 139
412
Ibidem. P. 142
413
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In:
COUTINHO, Jacinto Miranda; FRAGALE, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição e ativismo
judicial: limites e responsabilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2011. P. 290
154
para além do texto da lei e de sua literalidade se deu anteriormente à escolha
democrática da política pública mais adequada à sociedade pelos seus
representantes.
Esta inversão de passos, todavia, não obstante todas as merecidas críticas
direcionadas ao Legislativo, haja vista a sua inércia e passividade, se coaduna com
o novo papel que o Tribunal Constitucional ganhou nas últimas décadas, o qual é
oriundo da necessidade de adequar as suas premissas e as suas próprias bases às
exigências de solidariedade e de democracia participativa (re) inauguradas pela
Constituição de 1988. Isto é, o Tribunal Constitucional parece assumir um
posicionamento diferenciado, a fim de, senão garantir, ao menos colaborar com o
alcance da concretização dos fundamentos e objetivos apresentados pela nova
ordem constitucional.
Dworkin, ao defender a comunidade de princípios justifica um papel ativo do
Tribunal Constitucional para a concretização de direitos fundamentais, pois a
sociedade democrática exige decisões contra majoritárias, com força nos princípios
exigidos por uma moralidade política sem, evidentemente, caracterizar um aspecto
autoritário dos juízes.414
Tem-se, portanto, que embora a decisão do STF pareça ter despertado o
Poder Legislativo a agir, inexistem razões para que se argumente a extrapolação do
Poder Judiciário que, assumindo a postura como Tribunal Constitucional, cuidou de
proteger a Constituição, tal como lhe é dever. Se o Poder Legislativo falhou, sendo
demasiadamente moroso, é ele quem merece as críticas.
Sedimentado o acerto do STF em relação aos limites de sua decisão,
importante analisar a relação entre o seu julgamento e a nova lei aprovada. Neste
esteio, reitera-se que o STF promoveu o seu julgamento diante de um caso concreto
onde universidades brasileiras, por mera liberalidade, adotaram sistemas de cotas
raciais, implementando-os nos termos por elas próprias determinados. A Lei nº.
12.711/12, no entanto, parece fugir sensivelmente deste parâmetro. Isto porque, a
nova legislação determina e obriga que universidades e escolas técnicas federais
pratiquem programas de cotas sociais, de acordo com a regulamentação da
legislação e nos termos por ela previstos.
414
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério, Op. Cit. p. 31
155
As diferenças existentes entre a matéria julgada constitucional pelo
Supremo Tribunal Federal e a determinada pela legislação se fazem presentes já em
uma primeira leitura. Inicialmente, visualiza-se que o julgamento do STF se deu
sobre cotas raciais, enquanto que a Lei nº. 12.711/12 prevê cotas sociais,
priorizando os alunos advindos de escolas públicas, de acordo com os critérios por
ela estabelecidos, não obstante defina também um percentual negros, pardos e
índios.
Outrossim, o julgamento do STF versou sobre programas de cotas criados
pelas próprias Universidades e de acordo com os critérios por elas escolhidos, ao
passo que a nova lei estabelece a obrigatoriedade de implantação destas ações
afirmativas. Logo, questiona-se de imediato a autonomia das Universidades no que
concerne à adoção dos critérios para ingresso de alunos, tema que já está gerando
dissensos, especialmente, no âmbito das próprias universidades.
Vale dizer, então, que as questões envolvidas na nova lei de cotas se
mostram diversas daquelas observadas e analisadas pelo Supremo Tribunal
Federal, quando do julgamento da ADPF 186, motivo que, a priori, parece impedir ao
menos a aplicação mecânica daquele precedente em relação à constitucionalidade
da nova legislação. Adverte-se
que
não
se
pretende
aqui
aduzir
a
inconstitucionalidade da nova lei, já que esta apreciação não é objeto do presente
trabalho, nem tampouco a impossibilidade de se adotar o precedente do STF.
Todavia, faz-se necessário considerar que a utilização de um precedente,
também em relação ao processo constitucional, sem a sua devida adaptabilidade,
pode gerar o empobrecimento do discurso jurídico, não correspondendo à
integridade do direito em torno da temática envolvida.
É preciso que se proceda à extração da ratiodecidendi do precedente e,
posteriormente, analisar a sua adequação perante o que dispõe a lei 12.711/12, não
deixando, ao mesmo tempo, de se considerar os demais elementos existentes nesta
norma que influenciam, diretamente, a sua aplicação e os seus efeitos na sociedade
e nos casos concretos a serem apreciados.
Embora o presente trabalho não aborde a aplicação de precedentes em
casos processuais, mas sim na interpretação de legislação nova posterior a uma
decisão correlata do Judiciário, a precisão da demonstração discursiva da identidade
156
dos casos ou das questões tratadas, tal qual ocorre na tradição do Commom Law,
se faz igualmente presente. 415
Não se pode, neste esteio, trabalhar com generalidade do ordenamento, é
preciso que se reconstrua a ratiodecidendi e que se possibilite, consequentemente,
a aplicação das técnicas de superação e distinção do precedente, premissas
indicadas por Dierle Nunes416, evitando, pois, o fechamento argumentativo e a
aplicação mecânica de um padrão decisório. Neste sentido, passamos à análise dos
votos dos ministros na ADPF 186.
4.2. O julgamento da ADPF 186: palco para discussões sociais, políticas e
econômicas.
Durante o desenvolvimento do presente trabalho, alguns importantes trechos
dos votos dos ministros na ADPF 186 foram transcritos, objetivando embasar ou
corroborar ideias expostas, especialmente aqueles referentes ao voto do ministro
relator, Ricardo Lewandowski. Entretanto, o julgamento em apreço foi palco para
importantes discussões, as quais merecem destaque, especialmente no sentido de
colaborar para a possível confirmação das cotas enquanto instrumento efetivo e
legítimo de equalização de oportunidades para acesso ao ensino superior público.
Inicialmente, antes de aprofundar nos votos, importante mencionar que a
ADPF 186 foi julgada improcedente pela unanimidade dos ministros do STF, sendo,
via de consequência, declarada a constitucionalidade das cotas. O ministro Dias
Toffoli foi o único a não participar do julgamento por ter se declarado impedido.417
A análise dos votos se faz importante especialmente para que se possa
discutir acerca dos principais pontos levantados na inicial da ADPF 186, os quais
representam a síntese das objeções opostas aos programas de cotas em toda
sociedade. Conforme Barroso,
415
NUNES, Dierle. Precedentes, padronização decisória preventiva e coletivização – Paradoxos do
sistema jurídico brasileiro: uma abordagem Constitucional Democrática. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.P. 266
416
NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para
a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de
padronização decisória. Ps. 81/82.
417
O ministro Dias Toffoli posicionou-se como impedido para o julgamento da ADPF nº. 186-DF, pois
quando atuou como Advogado Geral da união se posicionou favorável às cotas, tendo, portanto, um
entendimento já previamente conhecido pelas partes.
157
É possível identificar, no debate público e nas ações propostas perante o
Supremo Tribunal Federal, três argumentos principais contra a validade da
reserva de vagas em universidades: (i) inexistência de racismo no Brasil,
onde as desigualdades teriam fundamento socioeconômico; (ii)
impossibilidade de se identificar negros e pardos por meio de critérios
objetivos, dada a miscigenação predominante na sociedade brasileira; (iii)
418
violação ao princípio da proporcionalidade.
A partir destes pontos, cada qual a sua maneira, os ministros apresentaram
suas razões e fundamentos, com base em dados e argumentos, para decidir pela
constitucionalidade das cotas raciais. Conhecer estas razões e analisar os votos é
essencial para que se possa buscar a construção de um agumento forte e
consistente em favor das cotas.
Em sendo assim, iniciando-se pelo voto do ministro Marco Aurélio,
vislumbra-se que este, posicionando-se favorável às cotas, confirma o que foi aqui
discutido, no sentido de que as cotas caracterizam-se como instrumento válido para
a correção de desigualdades, devendo apenas ser devidamente observada a sua
transitoriedade419. Corroborou ainda o que foi exposto neste trabalho sobre o
aspecto meritório, afirmando que “A meritocracia sem igualdade de pontos de
partida é apenas uma forma velada de aristocracia”.
Assim, tem-se que o voto do ministro Marco Aurélio parece estar em perfeita
consonância com a proposta de que são as cotas uma forma de equalizar
oportunidades para que, após tal equânime distribuição, seja o aspecto meritório
devidamente avaliado. Não há que se falar em mérito próprio, sem que os indivíduos
possuam as mesmas perspectivas, especialmente porque, a partir das lições de
Dworkin já aqui tratadas, o mérito é apenas um elemento de averiguação da
potencialidade dos indivíduos, não sendo o único plausível e válido.
Em relação ao princípio da igualdade, o ministro aborda com bastante
propriedade o necessário afastamento de uma igualização estática, afirmando a
necessidade de o Estado atuar positivamente, além de apenas proibir a
discriminação. Segundo ele, “Não basta não discriminar. É preciso viabilizar as
418
BARROSO, Luis Roberto Barroso. Ações afirmativas, cotas raciais e escolhas legítimas. Resposta
à consulta formulada pelo Instituto EDUCAFRO, em razão do julgamento da ADPF 186.
419
Ao afirmar sobre a transitoriedade das ações afirmativas em análise, o ministro deixou claro que
“estamos bem longe disso”, ou seja, há um árduo caminho a ser percorrido até que estejamos aptos a
excluir as medidas decorrentes desta ação afirmativa.
158
mesmas oportunidades”420, complementando ainda que “ação afirmativa evidencia o
conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica”.
Em sua exposição, o ministro Marco Aurélio cita ainda a Convenção
Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação:
A Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil, em 26 de março de 1968,
dispôs: "Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais"
– e adentrou-se o campo das ações afirmativas, da efetividade maior da não
discriminação – “tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso
adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que
necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais
grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e
liberdades” – no sentido amplo – “fundamentais, contanto que tais medidas
não conduzam, em consequência" – e, hoje, ainda estamos muito longe
disso –, "à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais
421
e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos."
Por fim, conclui o ministro que “Só existe a supremacia da Carta quando, à
luz desse diploma, vingar a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo
democrático do princípio da igualdade jurídica”422. Assim, identifica o princípio da
igualdade como aquele que sustenta a aplicação da Constituição merecendo,
consequentemente, a adoção de medidas que permitam a sua efetividade.
Vê-se, portanto, que em que pese não referenciar expressamente o marco
teórico adotado por este trabalho, pode-se apontar no voto do Ministro Marco Aurélio
algumas especificidades que convergem com a proposta dworkiana, especialmente
a acima relatada, concernente ao mérito enquanto apenas uma das possibilidades
de avaliação.
Já a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, também votando pela
improcedência da ADPF 186, defende que não se pode fechar os olhos à situação
real e concreta dos negros no país. Segundo ela, “tantas vezes decantada, a
igualdade é o princípio mais citado na Constituição Federal. Quem sofre preconceito
420
Segundo o ministro Marco Aurélio, pode-se dizer, sem receio de equívoco, que se passou de uma
igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização
eficaz, dinâmica, já que os verbos ”construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança
de óptica, ao denotar “ação”. In. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de
preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Marco
Aurélio. Disponível em: <> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013
421
Ibidem
422
Ibidem
159
percebe que os princípios constitucionais viram retórica”423, corroborando a ideia de
que, embora velada, a discriminação faz parte de nossos dias atuais, deixando,
todavia, de utilizar igualmente, ao menos de forma expressa, a fenomenologia
política.
Ressaltando o caráter temporário das cotas e argumentando uma
responsabilidade social do estado em relação às ações afirmativas, entende estas
como uma etapa necessária para o alcance da igualdade, a qual deve ser efetivada
em conjunto com outras medidas que impeçam o aumento do preconceito.
Doutro lado, o ministro Joaquim Barbosa, seguindo o voto do relator da
ADPF 186, destacou os possíveis motivos da rejeição de parcela da sociedade
diante dos programas de cotas, afirmando tratar-se da tentativa de manutenção de
um status quo. Segundo o ministro,
Acho que a discriminação, como componente indissociável do
relacionamento entre os seres humanos, reveste-se de uma roupagem
competitiva. O que está em jogo aqui é, em certa medida, competição: é o
espectro competitivo que germina em todas as sociedades. Quanto mais
intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que
impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre o
discriminador e o discriminado (...) É natural, portanto, que as ações
afirmativas – mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar essa
dinâmica perversa –, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam
considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que
historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação de que
424
são vítimas os grupos minoritários.
Denota-se, então, que o ministro denuncia um possível aproveitamento
daqueles que não sofrem a discriminação racial, já que a exclusão de parcela da
sociedade, a priori, torna o mundo de oportunidades menos competitivo, explicando,
assim, a rejeição dos programas de cotas. Caracteriza, então, as ações afirmativas
como um meio de concretizar o princípio da igualdade e neutralizar os efeitos da
discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física.
423
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto da Ministra Carmen Lucia. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013:
424
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
160
Em verdade, o ministro Joaquim Barbosa há muito já havia defendido a
instituição de cotas raciais em outras produções científicas de sua autoria, sendo um
árduo defensor das ações afirmativas no ensino superior público. Em uma destas
produções, o ministro defende que
Além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria
entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas o de induzir
transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a
subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de
uma raça em relação à outra, (...). As ações afirmativas têm como objetivo
não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os
‘efeitos persistentes’ da discriminação do passado, que tendem a se
perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’,
espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e
425
grupos dominados.
Mantendo, então, o seu posicionamento favorável às cotas afirma que “A
igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por
todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela
sociedade”426. Assim, parece que o voto do ministro atende à ideia da igualdade
como diversidade, posto que é exatamente neste princípio que fundamenta as suas
razões, além de abranger a proposta da interpretação construtiva do direito,
valendo-se do horizonte histórico que lhe pertence.
Vale destacar, todavia, em que pese tal convergência com o marco teórico
do presente trabalho, nota-se no voto do Ministro Joaquim Barbosa alta carga de
subjetividade, vê-se que este, ao argumentar sobre a competição, apresenta
argumentos que lhe são pessoais, deixando de justificar adequadamente a origem
destes. Não se falou, portanto, em moralidade política, mas apenas apresentou-se
convicções pessoais. Não obstante, o cerne de seu voto, identificando as cotas
como forma de reduzir desigualdades, atende as ideias aqui expostas.
Seguindo também o voto do ministro relator, o ministro Cezar Peluso se
manifestou, principalmente, no sentido de afastar a ideia de que as cotas, enquanto
ação afirmativa,ofendem o princípio constitucional da igualdade. Entretanto, em
sentido oposto ao já tratado neste trabalho, o ministro menciona a igualdade em seu
425
GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional
brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. Ações Afirmativas e o combate ao racismo nas Américas.
Brasília: ONU, BID e MEC, 2007. pp. 55-56
426
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
161
aspecto formal e material, no sentido de que ela possui um sentido próprio de
acordo com o caso concreto em que se insere.
Neste esteio, convém lembrar que atualmente o direito à igualdade teve
incorporado em seu discurso constitucional a sua caracterização enquanto
diversidade ou reconhecimento, de forma que estes três conceitos (material, formal
e reconhecimento) operam em sinergia para realizar a ideia de igual respeito e
consideração.427
Não obstante, o ministro também defende a existência de um histórico que
propiciou a atual exclusão dos negros, estabelecendo que “é fato histórico
incontroverso o déficit educacional e cultural dos negros, desde os primórdios da
vida brasileira, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais do
acesso dos negros às fontes da educação e da cultura”428. Demonstra-se, então,
novamente a interpretação do direito como uma narrativa histórica, em seu aspecto
construtivo, revelando entendimentos dworkianos. A partir dai, entende-se pela
necessidade de aprimoramento do acesso da educação:
“o raciocínio de que o acesso à educação tem que ser visto como meio
indispensável de acesso ou, pelo menos, da possibilidade de acesso mais
efetivo aos frutos de desenvolvimento socioeconômico e, portanto, de uma
condição sociocultural que corresponda ao grande ideal da dignidade da
429
pessoa humana e do projeto de vida de cada um”.
Diante deste histórico, o ministro afirma um dever da sociedade em diminuir
estas desigualdades. Este dever, para o ministro, está respaldado no artigo 3º da
Constituição Federal que prevê a sociedade solidária, erradicação da marginalidade
e desigualdade e promoção do bem de todos, sem preconceito de cor. Assim, para
ele, a própria Constituição prevê a possibilidade de instituição de ações
promocionais, na medida em que protege determinados grupos hipossuficientes, tal
como empregados, crianças e adolescentes, o que por si só afastaria os argumentos
contrários referentes à inconstitucionalidade das cotas.
A partir da conclusão pela legitimidade das cotas e reconhecimento das
desigualdades atualmente existentes, o ministro utiliza um argumento também
427
BARROSO, Luis Roberto Barroso. Ações afirmativas, cotas raciais e escolhas legítimas. Op. Cit.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Cezar Peluso. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
429
Ibidem.
428
162
defendido por este trabalho, eis que menciona a inexistência de uma ideia de uma
dívida histórica, no sentido de serem as ações afirmativas elementos que permitem
uma compensação histórica. Vejamos.
A meu ver, a política pública afirmativa volta-se para o futuro, independe de
intuitos compensatórios, reparatórios, de cunho indenizatório, simplesmente
pela impossibilidade, não apenas jurídica, de responsabilizar os atuais por
atos dos antepassados. [...] essas políticas públicas são voltadas para o
futuro. Não compensam. Estão atuando sobre a realidade de uma injustiça
430
hic et nunc (aqui e agora).
Em verdade, o ministro argumenta sobre uma injustiça histórica, ao
estabelecer que há a responsabilidade ético-jurídica da sociedade e do Estado para
responder ao déficit histórico, a fim de superar as desigualdades materiais
existentes, desfazendo esta injustiça histórica. Mas, adverte-se, a menção à injustiça
histórica não é a justificativa das ações afirmativas, que se sustentam efetivamente
nas desigualdades hoje visualizadas.
Isso porque, conforme já aqui defendido, não há que se falar em
compensação histórica, posto que este argumento fragiliza a ideia de cotas. O
histórico construído a partir de um horizonte autêntico é certamente essencial para
que se compreenda a situação atualmente existente. Entretanto, a sociedade é uma
só e não há como saldar divida do passado se naquele momento as condutas
praticadas eram consideradas naturais. O fato é que este histórico culminou em uma
desigualdade que hoje é efetivamente caracterizada, sendo ela o foco central das
ações afirmativas. A solução das cotas é para uma situação presente e não para
compensar um passado.
O ministro ainda aborda um importante argumento utilizado para rechaçar a
instituição das cotas, qual seja, a ideia de que são elas um incentivo ao racismo.
Segundo ele, “não há elemento empírico para sustentar essa tese. A experiência é
que não tem ocorrido e, se tem, foi em escala irrelevante que não merece
consideração”.431
Neste sentido, muito se vê argumentar que seriam as cotas a
“institucionalização do racismo” por aqueles que rechaçam esta proposta, tendo este
430
Ibidem.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Cezar Peluso. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
431
163
argumento sido elevado, inclusive, na inicial da ADPF 186. No entanto, esta
fundamentação parece não se sustentar, a partir do momento que se percebe que
esta “institucionalização” se faz presente na própria sociedade, na medida em que
os negros são a maioria nas classes sociais menos favorecidas.432 O preconceito e o
racismo, a bem da verdade, estão interiorizados nos indivíduos e apenas poderão
ser superados a partir do momento em que se desmistificar a ideia de exclusão dos
negros, mediante a inserção massiva destes em todos os meios da sociedade.
Já o ministro Gilmar Mendes, também votou pela improcedência da ADPF
186, entretanto apontou algumas falibilidades da política de reserva de cotas para
negros, especialmente pela seleção poder ficar a critério de um “tribunal racial”433.
Isso porque indicou que as distorções no momento de caracterizar uma raça são
conhecidas, no sentido de que as jovens políticas contestadas pela ADPF 186 ainda
devem ser aprimoradas. Para ele, as dificuldades de acesso ao ensino superior
público se dão por inúmeros fatores que não apenas a raça, de forma que a
exclusividade deste critério poderia gerar situações inadequadas, como um negro
com boas condições sócio-econômicas se aproveitando do programa de cotas.434
Neste esteio, deve-se admitir que existe fatidicamente uma grande
dificuldade em se determinar raças, já que o próprio Supremo Tribunal Federal, no
julgamento do Habeas Corpus 82424 RS435 definiu a inexistência de raças, no
432
Vale aqui destacar que na própria petição inicial da ADPF 186, subscrita pela Dra. Roberta
Fragoso Menezes Kaufmann, foi feita menção à situação de pobreza dos negros que são ainda a
maioria da classe social menos favorecida. Embora sustente-se esta ideia para afirmar que o
preconceito é de classe e não de raça, não se pode negar que se trata de um dado real e que
necessita de especial antenção. Vejamos.“Defende-se nesta ADPF que, no Brasil, ninguém é
excluído pelo simples fato de ser negro, diferentemente do que aconteceu em outros países, como
nos Estados Unidos e na Árica do Sul. Aqui, a dificuldade de acesso à educação e a posições sociais
elevadas decorre, sobretudo, da precária situação econômica, que termina por influir em uma
qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele. Infelizmente, no Brasil, os
negros são as maiores vítimas do fenômeno da desigualdade social: dados do PNAD/IBGE (2001)
demonstram que aproximadamente 70% dos indigentes no Brasil são negros, e, dentre os pobres, a
proporção de negros é de 64%”.
433
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
434
Ibidem
435
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME
IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE
EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros
"fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei
7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas
de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da
prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode
haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência
164
da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do
genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da
pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos
se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na
essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um
processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por
sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do
pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os
primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a
segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta
Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado
democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos
princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e
dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações
aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de
sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a
tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí
compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor,
credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo
sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A
Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e
repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei
memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo.
Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos
ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação
teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas,
políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance
da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a
égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal
punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema
Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia
nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem
as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A
edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar
credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos
históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e
desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista,
reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do
agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de
que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e
geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e
dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as
consequências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional
que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode
abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As
liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O
preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado
que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede
com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se
escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da
lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente
respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar
da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e
incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de
prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de
amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência
jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (Processo:-HC 82424 RS. Relator(a):-
165
sentido biológico do termo, tornando penoso o estabelecimento deste critério,
mormente quando pensado no requisito da autodeclaração para a participação nas
cotas.
Entretanto, há de se reconhecer que o racismo, em seu sentido político
social existe concretamente na sociedade brasileira, em que pese o mito da
democracia racial, já amplamente discutido no presente trabalho. Sendo constatado
o racismo como situação real que origina desigualdade e exclusão social, não
parece legítimo invocar a sua impossibilidade (se pensado nos termos da definição
pelo genoma humano) para afastar possíveis medidas que objetivam a minimização
de seus efeitos, pois tal conduta não reduziria a desigualdade existente e permitiria a
perpetuação das desigualdades.
Neste sentido, Flávia Piovesan ressalta que a complexa realidade brasileira
vê-se marcada por um alarmante quadro de exclusão social e discriminação como
termos interligados a compor um ciclo vicioso, em que a exclusão implica
discriminação e a discriminação implica exclusão. 436
Não obstante, o ministro Gilmar Mendes destacou a legitimidade das ações
afirmativas como forma de aplicação do princípio da igualdade, pois “a própria
Constituição
preconiza
437
compensação”
medidas
de
assistência
social
como
política
de
e, diante do caráter então experimental das cotas raciais
instituídas pelo UnB, reconheceu a sua importância e legitimidade. Afastou-se, neste
voto, qualquer ligação com a construção de Dworkin, não havendo convergência
com as propostas deste trabalho e, novamente, demonstrou sinais de um
decisionismo, já que o julgamento se deu assentado em convicções pessoais.
Parece evidente que ao argumentar a possível existência de um tribunal
racial, o Ministro ignorou todos os possíveis argumentos de princípios envoltos neste
tema, analisando-o apenas em seu aspecto prático e superficial, expressando uma
opinião que lhe é própria. É certo que no caso em comento, o subjetivismo
MOREIRA ALVES . Julgamento:-16/09/2003 .Órgão Julgador:-Tribunal Pleno. Publicação:-DJ 19-032004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524.Parte(s):-SIEGFRIED ELLWANGER WERNER
CANTALÍCIO JOÃO BECKER. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA) grifos nossos
436
PIOVESAN, Flávia . Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. In. CAMARGO, Marcelo
Novelino. Leituras complementares de constitucional – direitos fundamentais. 2ª ed. Salvador:
Juspodivm, 2007, p. 226.
437
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
166
apresentado foi benéfico, pois a decisão se deu, de qualquer forma, em favor das
cotas, mas o contrário poderia ter ocorrido.
O voto proferido pelo ministro Celso de Mello igualmente reconheceu a
constitucionalidade das cotas raciais, afirmando inclusive que estas se encontram de
acordo com os tratados internacionais de direitos humanos. Adverte, todavia, que
deverão ser acompanhadas do critério temporário, a fim de evitar a manutenção de
direitos desiguais após o alcance dos objetivos da ação afirmativa.
Importante aspecto do voto do ministro Celso de Mello é a sua menção à
dimensão moral do assunto relativo às cotas:
O racismo representa grave questão de índole moral que se defronta
qualquer sociedade, refletindo uma distorcida visão do mundo de quem
busca construir hierarquias artificialmente fundadas em suposta hegemonia
438
de um certo grupo étnico-racial sobre os demais.
Talvez aqui se possa compreender o porquê de insistirmos na inexistência
da tão relatada democracia racial. Atualmente o que se vê é um grupo dominante
que inseriu esta ideia no seio da sociedade, a fim de garantir a sua contínua
supremacia. Como se pode afirmar a democracia racial se os negros continuam
vivendo à margem da miséria e, ainda quando superado o obstáculo econômico, se
mantém em uma posição inferior à classe branca?439
A moral da comunidade exige que se preserve a fraternidade entre os
indivíduos, de forma que qualquer destas divergências e formas de exclusão, ainda
quando veladas, sejam definitivamente extirpadas. É fato que os negros são a
maioria na classe pobre440, entretanto, isto não significa, por si só, que o preconceito
438
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso dle Melo. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
439
Além da recente pesquisa da DIESEE já apresentada, válido também ressaltar os números
constantes no relatório de síntese de indicadores sociais de 2012 do IBGE: “A desigualdade por cor
ou raça também é visível, posto que o rendimento médio das pessoas ocupadas pretas ou pardas
com 16 anos ou mais de idade equivale a 60,0% do rendimento médio da população branca nessa
faixa etária (Tabela 4.8 e Gráfico 4.8), situação que já foi mais grave, uma vez que, em 2001, o
rendimento de pretos ou pardos era 50,5% do auferido pelos brancos.” Disponível em
ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf
440
Em análise à distribuição de riquezas no país em 2012, o IBGE concluiu que “No 1% mais rico, em
2001, 9,3% eram pretos ou pardos, proporção que passou a 16,3% em 2011 (Gráfico 5.6). Trata-se,
em todo caso, de uma participação ainda muito distante do total de pretos ou pardos na população,
cuja
proporção
é
51,4%.”
Disponível
em
ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf
167
é de classe. Aliás, o próprio fato da classe menos favorecida economicamente ser
predominantemente negra ilustra com perfeita nitidez que o preconceito ainda é
também racial.441
Além disso, o ministro Celso de Mello destaca a relação direta existente
entre a garantia dos preceitos constitucionais, no sentido que
[...] ao frustrar e aniquilar a condição de cidadão da pessoa que sofre
exclusão estigmatizante propiciada pela discriminação e ao ofender valores
essenciais da pessoa humana e da igualdade, representa a própria antítese
dos objetivos fundamentais da República, dentre os quais figuram aqueles
que visam a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária,
442
inteiramente comprometida com a redução das desigualdades sociais.
Baseando-se em conceitos mundiais apresentados na Conferência Mundial
contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata,
organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2001, na cidade de
Durban (África do Sul), o ministro reafirma a real violação dos direitos humanos pelo
racismo, aduzindo a necessidade de que os atos formalizados na Constituição e em
Tratados Internacionais saiam do papel, e passem a ter a sua efetivação concreta.
Segundo o ministro Celso de Mello, “O desafio não é apenas a mera proclamação
formal de reconhecer o compromisso em matéria dos direitos básicos da pessoa
humana, mas a efetivação concreta no plano das realizações materiais dos
encargos assumidos”.443
Tratando, pois, do preceito constitucional de redução de desigualdades
sociais e considerando a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, além
de expressamente tratar da moral de uma sociedade, embora não haja a referência
expressa, parece correto aduzir que seguiu-se, em certa medida, uma hermenêutica
política, afinal a moral política exige coerência e justificação, o que foi respeitado no
Voto em comento.
441
Conforme Norberto Bobbio, “não existe preconceito pior do que o acreditar não ter preconceito”. In.
BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais.São Paulo. Unesp, 2002. P. 122
442
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
443
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013..
168
O ministro Ayres Britto, por sua vez, se posicionou pela constitucionalidade
das cotas enquanto políticas públicas de justiça compensatória, realizando uma
distinção entre cotas sociais e cotas raciais, no sentido de que o “bem estar” tem
caráter material e se refere à distribuição de riquezas, enquanto a fraternidade, a
pluralidade e a ausência de preconceitos vão além da questão material.444
Esta diferenciação se deu com fundamento no preâmbulo da Constituição, o
qual prevê a proteção ao bem estar e a promoção de uma sociedade “fraterna,
pluralista e sem preconceitos”, sendo que tais expressões tão somente constaram
no texto constitucional em virtude da existência de “um estado genérico e persistente
de desigualdades sociais e raciais”445. Assim, na visão do ministro o preconceito
racial hoje existente é histórico e decorre desde a época da colonização.
Sobre a fraternidade e a suposta democracia racial, Boaventura de Souza
Santos expõe:
Falar em fraternidade no Brasil significa, essencialmente, enfrentar o peso
desse legado, o que representa um grande desfio para um país em que
muitos tomam a ideia de democracia racial como dado, não como projecto.
Mas se o desafio for enfrentado em sua inteireza pelas instituições sem que
se busque diluir a gravidade do problema em categorias fluidas como a dos
“pobres”, o país caminhará não apenas para a consolidação de uma nova
ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de
446
uma nova ordem verdadeiramente pós colonial, no plano sócio-político.
Sob este aspecto, o voto do ministro Ayres Britto trata com bastante
propriedade sobre questão que se insiste no presente trabalho: A nação não está
pagando uma dívida histórica, mas corrigindo distorções atuais. Segundo ele, “a
nação é uma só, multigeracional. [...] O que fez uma geração pode ser revisto pelas
gerações seguintes”.
O ministro ainda completa sobre a possibilidade e necessidade de
implementação dos programas de cotas:
Não basta proteger, é preciso promover as vítimas de perseguições e
humilhações ignominiosas”, destacou. Por isso o artigo 3º, inciso III, afirma
que são objetivos fundamentais da República erradicar a pobreza e a
marginalização, e o inciso IV fala na promoção do bem de todos, sem
444
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Ayres Britto. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
445
Ibidem
169
preconceito de origem, raça, sexo, etc. O artigo 23, inciso X, por outro lado,
impõe a todos os entes da Federação “combater as causas da pobreza e os
fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores
447
desfavorecidos.
A internalização da desigualdade por aqueles que não estão bem
posicionados na escala social também foi suscitada pelo ministro, que conclui que o
preconceito passa a definir o caráter e o perfil da sociedade448. Para ele, as cotas
raciais são válidas, pois abrangem situações nas quais há “desigualdades dentro
das desigualdades”449, isto é, o preconceito em relação à cor potencializa a
desigualdade econômica, sendo imprescindível a criação de políticas públicas que
retirem a notória segregação existente na sociedade.450
Finalmente, enaltecendo as cotas, o ministro conclui que “São políticas
afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e
respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”. Percebe-se, pois, a clara
preocupação do Ministro com os princípios da comunidade e com o respeito às
divergências, utilizando com veemência argumentos de princípios e, perante
Dworkin, legitimando sua decisão.
447
Ibidem.
Cf. Daniel Sarmento: “Ora, também no Brasil, a internalização da naturalidade da subordinação do
afrodescendente compromete a capacidade de visualização da opressão racial. E este fenômeno não
ocorre apenas no âmbito das consciências individuais, mas também no espaço das interações
sociais, sendo agravado em nós pela persistência do mito nacional da democracia racial. Assim, a
discriminação torna-se opaca, e a prova da intenção discriminatória dificílima de ser produzida”. In.
Daniel Sarmento, Direito constitucional e igualdade étnico-racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA,
Douglas Martins de (coord.), Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-racial. Brasília, Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2006, p. 80.
449
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
450
Em relação aos dados referentes ao ensino obtidos pelo IBGE em 2012, visualiza-se que a
ausência de negros nas universidades ainda é evidente, sendo que, embora esteja sendo
gradativamente modificada esta realidade, ela ainda não atingiu o seu ideal. Cf. “A frequência desses
estudantes no ensino superior também evoluiu positivamente, aumentando de 27% para 51% no
período. Esses resultados evidenciam os efeitos da expansão educacional, mas importantes
disparidades podem ainda ser observadas. A proporção de jovens estudantes brancos de 18 a 24
anos de idade que frequentavam o ensino médio diminuiu em função da elevação da frequência
líquida descrita anteriormente. Em contrapartida, os jovens estudantes pretos ou pardos na mesma
faixa etária mantêm a frequência nesse nível. Isso é uma evidência de que o crescimento substancial
na frequência líquida dos estudantes de cor ou raça preta ou parda no ensino médio não foi suficiente
para reverter os efeitos do atraso escolar desse grupo ao longo dos últimos dez anos. O aumento da
frequência observada para os jovens pretos ou pardos no ensino superior, nível educacional
adequado para essa faixa etária, não foi suficiente para alcançar a mesma proporção apresentada
pelos
jovens
brancos
dez
anos
antes.”
Grifos
nossos.
Disponível
em
ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf
448
170
Também seguindo o voto do relator, a ministra Rosa Weber destacou a
instrumentalização das cotas para garantir as mesmas chances de acesso dos
indivíduos às oportunidades sociais, sendo que “A desigualdade material que
justifica a presença do Estado nas relações sociais só se legitima quando
identificada concretamente”. A ministra propõe, então, uma análise da igualdade em
seu aspecto formal e material.
Muito já se tratou no presente trabalho acerca da impossibilidade de
consideração da igualdade apenas sob estas duas perspectivas, haja vista a ideia
mais coerente de igualdade também enquanto respeito à diversidade. Em que pese
esta divergência de nosso entendimento com o da ministra, cumpre destacar trecho
do seu voto em que relata as questões referentes à igualdade:
A igualdade se apresenta na construção do constitucionalismo moderno de
duas formas: viés formal e material. A igualdade formal é a igualdade
perante a lei, que permite que todos sejam tratados em abstrato da mesma
forma. Se todos têm os mesmo direitos e obrigações, todos são igualmente
livres para realizar suas próprias perspectivas de vida. [...] a igualdade
formal é também presumida, já que desconsidera processos sociais
451
concretos de formação de desigualdades.
Seguindo esta concepção, a ministra afirma que quando identificadas
desigualdades concretas, a presunção de igualdade deixaria de ser benéfica, pois
“passa a ser um fardo, porque impede que se percebam as necessidades concretas
de grupos que, por não terem as mesmas oportunidades, ficam impossibilitados de
galgar os mesmos espaços daqueles que estão em condições sociais mais
favoráveis”452.
É bem verdade que o objetivo da ministra é a defesa das cotas raciais,
entendendo pela impossibilidade de simplesmente se aplicar a mesma regra do jogo
a todos os participantes, independentemente da posição que ocupam, ideia
compartilhada pelo presente trabalho. Entretanto, é de se reiterar que o princípio da
igualdade não deve ser esquecido ou inaplicado por isso, já que a sua faceta
enquanto respeito à diversidade é plenamente adequada e coerente ao assunto em
451
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto da Ministra Rosa Weber. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
452
Ibidem
171
comento, de forma que ele se mantém como um princípio imperioso para o alcance
de uma melhor resposta em relação às cotas.
Interessante, doutro lado, a afirmação da ministra de que “liberdade e
igualdade andam de mãos dadas”, ao mencionar a igualdade racial como uma
questão de construção social. Segundo ela,
Sem igualdade mínima de oportunidade, não há igualdade de liberdade. As
possibilidades de ação, de escolhas de vida, de visões de mundo, de
chances econômicas, de manifestações individuais ou coletivas específicas
são muito mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade,
453
não têm consideradas as suas condições particulares.
Esta concepção está em consonância com a proposta deste trabalho de que
é impossível que se pleiteie a liberdade de todos se a igualdade inexiste. O indivíduo
apenas poderá ser livre na sociedade se possuir oportunidades para alcançar a
efetividade de direitos sociais, posto que o critério simplesmente meritório é
superficial e não consegue atingir a complexidade de uma sociedade plural e
democrática, revelando um caráter egoístico e individualista do ser humano. É
preciso que se pense, pois, na sociedade como uma comunidade de princípios,
mormente quando da aplicação do direito.
No que concerne à constante alegação de que a desigualdade existente no
Brasil é social e não racial, a ministra sustenta a ideia de que os negros ainda são
maioria, afirmando que “se a quantidade de brancos e negros pobres fosse
aproximada, seria plausível dizer que o fator cor é desimportante. [...] Enquanto as
chances dos mais diversos grupos sociais brasileiros, evidenciadas pelas
estatísticas, não forem minimamente equilibradas, a mim não parece razoável
reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico”.454
Evidencia-se, portanto, a ideia de que, em que pese a existência de
indivíduos não negros também marginalizados na sociedade, a proporção de negros
na linha da pobreza ainda é esmagadora, o que é confirmado não apenas pelas
estatísticas oficiais, mas por uma simples análise da sociedade atual. Assim,
segundo a ministra o Estado deve “adentrar no mundo das relações sociais e corrigir
453
454
Ibidem
Ibidem
172
a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel
benéfico”.455
Com as cotas, a segregação hoje evidente será minimizada, já que a
inclusão de negros nas universidades e a necessária convivência destes em locais
hoje
predominados
por
brancos,
permitirá
um
ambiente
mais
plural
e
democrático.Com as cotas, o estigma da segregação entre brancos e negros que a
sociedade insiste em velar, poderá ser desfeito. Daí a ministra ressalta também a
temporalidade das cotas, pois “quando o negro se tornar visível nas esferas mais
almejadas das sociedades, política compensatória alguma será necessária.”
Acompanhando o voto do relator, o ministro Luiz Fux destaca que entre os
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil está a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, lembrando ainda que o artigo 208, inciso V, da
Constituição atribui ao Estado o dever com a educação, no sentido de garantir
“acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,
segundo a capacidade de cada um”.456
Ressalta-se, todavia, que o ministro arguiu a necessidade de reparação e
danos pretéritos do país no que concerne aos negros. Muito já se discutiu no
presente acerca da não aceitação desta ideia, pois seria impossível que a sociedade
pagasse uma dívida histórica em relação a uma situação já passada e pretérita, o
que foi reforçado no voto do ministro Cezar Peluso.
Sobre o princípio da igualdade, o ministro Luiz Fux trata a ideia de que é
preciso que se faça algo além da abolição da escravatura, devendo ser concedida
ao negro a igualdade material em relação ao branco, proclamando a proposta de
tratar desigual os desiguais. Reitera-se aqui a atual dimensão da igualdade
enquanto direito à diversidade, no sentido de que não se trata de aplicar uma
desigualdade, mas sim a igualdade e equalização como forma de consideração das
diferenças.
Justificando ainda a legalidade e legitimidade da criação de ações
afirmativas, o ministro citou uma série de legislações que já criaram políticas
públicas neste sentido, tais como a Lei 9.394/1996 (Lei das Diretrizes e Base da
455
Ibidem
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Luiz Fux. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
456
173
Educação Nacional), que preconiza o dever do Estado com a educação, inspirada
nos princípios da liberdade e na solidariedade humana; a Lei 10.172/2001 (Plano
Nacional de Educação); a Lei 10.558/2002, que criou o Programa Diversidade na
Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, que também trata da promoção
do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente
desfavorecidos, tais quais os afrodescendentes e os indígenas; a Lei 10.678/2003,
que criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e o
Decreto-Lei 65.810/69, que promulgou a Convenção Internacional sobre Eliminação
de todas as Formas de Discriminação Racial.457
O ministro ao defender a constitucionalidade das cotas, utilizou de
argumentos quase que poéticos, afirmando que “Justiça não é algo que se aprende,
é algo que se sente”, afirmando ainda que “Prefiro a leitura pela alma humana”.458
Trata-se, claramente, de um julgamento calcado em critérios de ordem subjetiva e,
quiçá pessoal, já que o próprio ministro equiparou a discriminação sofrida por negros
e judeus, para afirmar que, enquanto judeu, entende o sofrimento da classe negra.
É bem verdade que no caso em comento, o julgamento a partir de critérios
pessoais foi bem sucedido, na perspectiva do presente trabalho, pois revelou a
concretude de um preconceito existente e reconheceu a validade das cotas raciais.
No entanto, pode-se pensar que o oposto poderia ter ocorrido, ou seja, um
ministro poderia, calcado em razões subjetivas, expor o seu próprio preconceito no
julgamento, afastando assim a proteção constitucional às classes marginalizadas.
Insiste-se, pois, que a resposta correta não deve partir de uma visão individual e
pessoal, mas efetivamente da análise do que melhor se adequa à comunidade de
princípios, já que apenas assim se atingirá a integridade do direito.
Por fim, crucial analisar o voto do Ministro Relator, Ricardo Lewandowski,
que, embora possua uma importância destacada no processo, optou-se deixar para
o final, pois ele fecha as principais ideias trazidas pelos demais ministros e indica,
com maior precisão, a fundamentação da decisão pela improcedência da ADPF 186.
Primeiramente, abrindo o seu voto, o ministro relator aborda a questão
referente à igualdade, identificando, todavia, tal princípio nos planos formal e
457
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Luiz Fux. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
458
Ibidem
174
material, o que, reitera-se, parece não mais fazer sentido se entendida a igualdade
enquanto direito à diversidade. Para o ministro, as cotas se caracterizam como
instrumento efetivo que assegura não apenas a isonomia no plano formal, mas que
empresta a máxima concreção a esse postulado, assegurando a igualdade material
ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no País.459
Entretanto, não obstante a menção a estes dois aspectos do princípio da
isonomia (formal e material), o ministro acertadamente menciona que a concretude
deste princípio deve levar em consideração “a diferença que os distingue por razões
naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais, além de atentar,
de modo especial, para a desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os
distintos grupos sociais”460, corroborando ainda que esta concepção da igualdade
integra o próprio conceito de democracia.
Segundo o ministro, é preciso que se entenda a igualdade não apenas como
um direito, mas efetivamente como possibilidade. Nesta linha, a criação de
programas de cotas se encaixa em perfeita medida, já que tais programas são
efetivos meios de garantia e equalização de possibilidades, as quais, a partir de um
horizonte autenticamente traçado, encontram-se em desconformidade.
Entendidas as cotas, então, como instrumentos que realizam o princípio da
isonomia, no seu aspecto da diversidade, o ministro relator passa a discorrer sobre a
participação equitativa dos indivíduos nos bens sociais, identificando a chamada
“Justiça distributiva”, outrora defendida por John Rawls. A partir do entendimento de
Rawls, o relator afirma que
Só ela (justiça distributiva) permite superar as desigualdades que ocorrem
na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e
consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades
existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo. Nesse
sentido, ensina que como sabem os estudiosos do direito constitucional, o
nosso Texto Magno foi muito além do plano retórico no concernente aos
direitos e garantias fundamentais, estabelecendo diversos instrumentos
461
jurídicos para conferir-lhes plena efetividade.
459
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013
460
Ibidem.
461
Ibidem
175
A observação proposta pelo ministro está, então, em consonância com as
questões expostas no segundo capítulo, referentes à Constituição Dirigente e ao
Brasil enquanto um país de modernidade tardia462. É preciso, pois, que além de
prever, se efetivem os direitos fundamentais e sociais.463
O ministro relator realiza, então, considerações acerca das políticas de ação
afirmativa, apresentando a definição destas, o caráter transitório, a forma de criação,
bem como as modalidades existentes, elementos os quais já foram objeto de
apreciação acima.
Sobre os critérios para ingresso no ensino superior, o ministro destaca que a
Constituição Federal preceitua, em seu art. 206, I, III e IV, que o acesso ao ensino
será ministrado com base nos seguintes princípios: “igualdade de condições para
acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do
ensino público”; bem como em seu artigo 208, V, estabelece que o acesso aos
níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística será efetivado
“segundo a capacidade de cada um”.464
Diante disto, segundo o ministro, “ao mesmo tempo em que estabelece a
igualdade de acesso, o pluralismo de ideias e a gestão democrática como princípios
norteadores do ensino, também acolhe a meritocracia como parâmetro para a
promoção aos seus níveis mais elevados”465. Conciliando tais proposições, tem-se
que a Constituição Federal considera a questão meritória, no entanto, esta não
poderá ser auferida se as condições sociais dos indivíduos não forem equivalentes,
isto, não se admite uma “ótica puramente linear”.
Daí afirma o ministro que
Elas devem, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico
sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro, desconsiderando-se os
466
interesses contingentes e efêmeros que envolvem o debate.
A partir desta perspectiva, o ministro Ricardo Lewandowski argumenta o
necessário afastamento de critérios absolutamente objetivos, isonômicos e
462
Remetemos o leitor à análise do capítulo 2, no qual estas questões foram devidamente tratadas.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
464
Ibidem.
465
Ibidem.
466
Ibidem.
463
176
imparciais, tendo em vista ser a nossa sociedade marcada por profunda
desigualdade interpessoal. Se assim não o fosse, correr-se-ia o risco de alimentar as
distorções já existentes.
Conforme salientado pelo ministro relator, os principais espaços de poder
político e social mantém-se, então, inacessíveis aos grupos marginalizados,
ensejando a reprodução e perpetuação de uma mesma elite dirigente, situação que
se agrava quando esta concentração de privilégios afeta a distribuição de recursos
públicos.
Assim como exposto anteriormente, o ministro relator parece concordar com
a ideia de Dworkin de que qualquer critério utilizado para admissão de alunos no
ensino superior público poderia ser discriminatório e excludente. Neste sentido,
afirma:
Como é evidente, toda a seleção, em qualquer que seja a atividade
humana, baseia-se em algum tipo de discriminação. A legitimidade dos
critérios empregados, todavia, guarda estreita correspondência com os
objetivos sociais que se busca atingir com eles. [...] Deve, ademais, no
particular, levar em conta os postulados constitucionais que norteiam o
ensino público. Nos termos do art. 205 da Carta Magna, a educação será
“promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Já o art. 207 garante às
universidades, entre outras prerrogativas funcionais, a autonomia didáticocientífica e administrativa, fazendo-as repousar, ainda, sobre o tripé ensino,
pesquisa e extensão. Com esses dispositivos pretendeu o legislador
constituinte assentar que o escopo das instituições de ensino vai muito além
da mera transmissão e produção do conhecimento em benefício de alguns
poucos que logram transpor os seus umbrais, por partirem de pontos de
largada social ou economicamente privilegiados.
Assim, visando o papel integrador da Universidade, defende o ministro que
os critérios de admissão devem também levar em conta a capacidade de
intervenção em problemas sociais de cada candidato, de forma que os critérios
étnico-raciais s tornam admissíveis e adequados, para assegurar que a comunidade
acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias467.
Ao afirmar a possibilidade de tais critérios, todavia, o ministro afasta o
caráter biológico de raça, considerando esta como um conceito histórico-cultural,
artificialmente construído, tal como reiterado no presente trabalho. Assim, as cotas
467
Ibidem
177
seriam adequadas para diminuir a dominação exercida por pequena parcela da
sociedade e, quiçá, eliminar a ideia de raça.468
Abordando o horizonte já relatado, o ministro destaca o reduzido número de
negros e pardos que ocupam cargos e funções de relevo na sociedade, o que revela
uma discriminação velada e permanente, adotando, portanto um horizonte autêntico
para construir a sua decisão. Neste sentido, corrobora-se que, caso a discriminação
fosse tão somente social, esta situação não se caracterizaria.
A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela
igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua
convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma
consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva,
lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem
volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação
eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses
grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como
naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua
469
exclusão.
A partir daí salienta-se a necessidade da criação de lideranças destes
grupos discriminados, a fim de garantir o reconhecimento e valorização destes. É
neste ponto que o ministro afirma um adequado modo de se pensar a justiça social,
a qual significa, segundo ele, “distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais
ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles
reputados dominantes”470. Solidifica-se a ideia de transformar a universidade em um
espaço de diversidade e integração entre indivíduos, assim considerado para o
ministro “um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um
espaço que contemple a alteridade.”471
Vislumbra-se, portanto, que o ministro buscou valorizar a intersubjetividade
como forma de criação de uma conscientização coletiva, definindo assim os
princípios morais da comunidade, a partir de um conceito heterogêneo e plural. Essa
468
Sobre a existência da discriminação social: “É certamente verdadeiro que não existe no Brasil a
história de ódio racial que se caracterizou no Estados Unidos. Mas no Brasil, a ausência de ódio
racial não impediu a discriminação racial.” In SKIDMORE, Thomas E. Racial mixture and affirmative
action:
the
cases
of
brazil
and
the
United
states.
Disponível
em
http://
www.historycooperative.org/journals/ahr/108.5/skidmore.html Acesso em 12 de novembro de 2013.
469
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013
470
Ibidem.
471
Ibidem
178
ideia de justiça social, de acordo com o relator, revela a insuficiência do critério
exclusivamente social, pois ele não promoveria a integração de grupos excluídos,
inexistindo uma consideração de ordem ética e racial.
472
Novamente, aproxima-se o
Relator da proposta dworkiana.
Assim ilustra a importância das cotas como elemento de integração da
sociedade:
É certo afirmar, ademais, que o grande beneficiado pelas políticas de ação
afirmativa não é aquele estudante que ingressou na universidade por meio
das políticas de reserva de vagas, mas todo o meio acadêmico que terá a
oportunidade de conviver com o diferente ou, nas palavras de Jürgen
473
Habermas, conviver com o outro.
Quanto à hetero e autoidentificação, isto é, a forma de identificação utilizada
pelas universidades para concessão das cotas, o ministro relator utilizou dos
ensinamentos de Daniela Ikawa, abaixo transcritos:
A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito
de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de
fortalecer o reconhecimento da diferença. Contudo, tendo em vista o grau
mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há
(...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por
terceiros no patamar de 79% -,essa identificação não precisa ser feita
exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na
identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de
delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns
mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de
formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a
coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações
assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a
formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato. A
possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das
apresentadas (...). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as
seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita
posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou
pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros;
(b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c)
o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto
por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto
ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo,
pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em
472
O ministro ressalta ainda o papel simbólico das ações afirmativas, já que “Uma criança negra que
vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o
âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico
multiplicador da inclusão social nessas políticas.” Ibidem
473
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013
179
consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação
474
sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos.
Pois bem. Observa-se que não obstante a dificuldade encontrada ao se
estabelecer critérios para identificação do sujeito beneficiário das cotas, esta não é,
sob nenhuma ótica, fator impeditivo para tais programas, já que é possível a criação
de requisitos objetivos suficientes para solucionar esta situação. Não há que se
respaldar, portanto, a inadequação das cotas no ensino superior público apenas e
tão somente pela possibilidade de fraudes nesta identificação, já que se assim
ocorre, estaria se esvaziando o sentido principiológico do direito em prol de
eventuais e duvidosas questões de ordem prática.
O ministro tece ainda algumas lições sobre a possibilidade de reserva de
vagas, em observância ao aspecto promotor da Constituição de 1988 utilizando para
tanto, inclusive, trechos de outros votos de Ministros do STF. Em suma, consignouse que a Constituição trata como um dever a criação de medidas afirmativas em prol
de grupos excluídos e discriminados, por bem, especialmente, de uma consciência
ético-racial.
Ademais, não se deixou de tratar a necessária transitoriedade dos
programas de cotas, haja vista que os seus efeitos devem ser modulados até que se
atinjam as finalidades propostas, quais sejam, a inserção dos negros e demais
excluídos nas esferas pública e privada e consagração efetiva do princípio da
isonomia. Tal modulação ocorre especialmente, segundo o ministro, pelo fato de que
a desigualdade não está estabelecida por um critério genético, mas “decorre de uma
acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico,
social e político em razão de séculos de dominação dos primeiros pelos
segundos”475.
Segundo o ministro relator,
[...] as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa
apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à
persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem.
Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes,
474
IKAWA, Daniela.Ações Afirmativas em Universidades. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,2008.p. 129130.
475
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF
186).
Relator:
Ministro
RICARDO
LEWANDOWSKI.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de
agosto de 2013.
180
instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da
coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com
476
o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática.
Por fim, ao avaliar a proporcionalidade ente os meios e fins referente à
implantação de programas de cotas, o ministro relator entende que a instituição de
cotas naquele caso em concreto constituiu providência adequada e proporcional
para atingir os objetivos propostos.
Em sendo assim, debruçando-se sobre os principais aspectos dos votos
acima apresentados, é possível identificar que, muitos deles, embora não tenham
realizado referências expressas a Dworkin, com exceção do Ministro Relator,
convergiram no sentido de adotar a fenomenologia política, baseando as suas
decisões em argumentos de princípios e observando o horizonte histórico que
delineado neste aspecto.
Vale lembrar, neste sentido, que a ausência de citação expressa, todavia,
não fragiliza a possível relação dos argumentos expostos nos votos com a teoria
política de Dworkin, na medida em que, após escrito, o texto desgarra-se do autor e
passa a pertencer ao mundo do conhecimento. A sua utilização é, portanto,
indiferente à sua própria citação.
Ademais, embora não exista uma identidade plena de fundamentos, o que
muitas vezes dificulta a extração da ratiodecidendi do julgado, os ministros
apresentaram convergência em vários aspectos da decisão. Esta convergência se
dá, especialmente, nos pontos que definem a motivação pela improcedência da
ADPF e consequente declaração de constitucionalidade das cotas.
Conforme já foi anteriormente exposto, a extração da ratiodecidendi, por
óbvio, não se trata de tarefa fácil, no entanto, parece ser possível quando da
verificação do fundamento central que legitimou a decisão, isto é, fundamento sem o
qual a decisão não teria o mesmo destino. Trata-se do fundamento primordial que
apresenta o motivo mais intrínseco do resultado de determinada decisão.
Analisando os votos da ADPF 186, dispensando maiores discussões
teóricas sobre a ratiodecidendi, haja vista a natureza do presente trabalho, pode-se
aduzir que o fundamento e a razão de decidir do Supremo Tribunal Federal, não
obstante a divergência de argumentos, se fixa na necessária garantir de se equalizar
oportunidades a partir de um horizonte histórico autêntico que originou as
476
Ibidem
181
desigualdades
hoje
percebidas.
Estas
desigualdades
demandam,
consequentemente, a atuação estatal no sentido de observância aos preceitos e
princípios constitucionais, devendo, todavia, ser condicionadas à transitoriedade,
posto que após reduzidas as desigualdades objeto das ações afirmativas, não
haverá mais adequação ou coerência de mantê-las.
O fundamento central do julgamento da ADPF 186-DF encontra respaldo,
portanto, na teoria da interpretação construtiva do direito, carregando consigo
adequação e justificação, a fim de atingir a coerência entre as medidas adotadas
pelo Estado e a situação existente na sociedade.
A partir daí, tem-se que, em que pese todas as divergências práticas
existentes entre as cotas objeto de análise da ADPF nº. 186-DF e as cotas
instituídas pela Lei nº. 12.711/12, especialmente em relação ao seu caráter
obrigatório, bem como à criação de procedimentos, é possível aplicar a razão de
decidir do julgamento da ADPF 186 para legitimar, ao menos, o fundamento das
ações afirmativas legalmente instituídas, posto que, igualmente, estas buscam a
equalização de oportunidades à indivíduos/grupos/segmentos historicamente
excluídos do ensino superior público.
CONCLUSÃO
Conforme exposto, o presente trabalho teve como objetivo analisar a
problemática referente à instituição das cotas no ensino superior público brasileiro,
sedimentado pelo julgamento da ADPF nº. 186 pelo STF e, posteriormente, pela Lei
Federal nº. 12.711/2012. Como se pôde verificar, para escolha do objeto foi
necessário que se procedesse a um corte no amplo gênero cotas, restringindo-nos
às cotas raciais. Isso se deu em virtude de que abranger todas as possibilidades de
políticas afirmativas de inclusão na educação, a partir de uma perspectiva
fenomenológica, não seria adequado em uma dissertação de mestrado, eis que
demanda um espaço sensivelmente mais extenso.
Ainda quanto à amplitude das cotas, é de se afirmar que estas podem ser
trabalhadas a partir de aspectos históricos, políticos, culturais, estatísticos, jurídicos,
182
ideológicos e morais, o que gera um problema especialmente delicado no que diz
respeito à escolha do método.
Como o presente estudo buscou raízes históricas que fundamentam uma
construção social que acaba transitando e se destacando nos poderes legislativo e
judiciário, a opção metodológica que nos referimos acabou deslocando-se, quase
naturalmente, para a busca de um método que trabalhasse simultaneamente com
aspectos históricos, aspectos ligados ao fenômeno das cotas diretamente enquanto
objeto de estudo, aspectos políticos e aspectos da construção legislativa e judiciária
resultante desta conjugação de fatores.
Diante disto, a fenomenologia política de Dworkin, exatamente por trabalhar e
abranger todos esses aspectos, tornou-se a escolha natural acima mencionada. É
de se destacar que para trabalhar a questão referente às cotas, existe uma
multiplicidade de caminhos, os quais desembocam em outra multiplicidade de
métodos. Contudo, diante da escolha do objeto, o caminho mais adequado parece
ser o que passa pelo fenômeno, pela política, pelo desdobramento jurídico e pela
construção histórica, permitindo-nos, assim, a compreensão.
Elucida-se, pois, que a construção histórica é o que nos confere o horizonte
hermenêutico, já que é o elemento apofântico que se materializa no problema da
alta
demanda
frente
ao
baixo
grau
de
efetividade,
em
especial
para
grupos/seguimentos sociais, econômicos, éticos compostos a partir de uma
complexidade. Assim, ganha destaque o referencial da boa circularidade
hermenêutica na política com a participação proativa do judiciário.
Neste esteio, a partir da necessidade da construção de um horizonte que
possa ter sua autenticidade auferida e do modo pelo qual se optou por auferir tal
autenticidade, elegemos especificamente como marcos teóricos Heidegger,
Gadamer, Dworkin e Lênio Streck, ainda que tenha sido necessário transitar por
outras teorias, para a compreensão destes.
Definido o método, o trabalho procurou esclarecer que o problema ligado a
cotas mantém uma sobrecarga de influxos ideológicos que tornam a sua
compreensão mais difícil. Neste sentido, por parecer óbvia a aplicação daquilo que
não se compreende, esta não se dá de maneira satisfatória, mesmo que
eventualmente nos leve a respostas acertadas.
Aliás, esta é uma questão de grande importância, pois a partir dela deve-se
compreender que a busca pelo motivo que nos leva a adotar as políticas afirmativas
183
no ensino superior independe de convicções ou morais pessoais. Deve-se,
acertadamente, ressaltar constantemente a necessária transitoriedade das cotas,
mas levando-se em conta, principalmente, que o processo legislativo e judiciário que
se constrói tão complexamente nestes casos deve ser compreendido em toda a sua
extensão e dinâmica.
Significa, pois, que a análise isolada da legislação não permite a
compreensão deste elemento de forma completa e satisfatória. Em sendo assim,
como na construção deste processo legislativo o julgamento da ADPF nº. 186-DF foi
de extrema valia, buscamos, após analisadas as raízes históricas dos problemas
relativos à discriminação racial que ainda permeia a sociedade, chegar ao atual
capítulo da novela (chain novel), desvelando assim a complexa trama, conhecendo
os papeis dos personagens desde uma perspectiva “histórica”, com o propósito de
que, efetivamente, possamos ver consolidada a coerência e integridade que
preserva as decisões futuras, como adequadas aos horizontes em constante
formação.
Vale dizer que nossa perspectiva é sempre cinética, mas o movimento
proposto deve ser cauteloso e fundamentado, não se caracterizando tão somente
como uma simples resposta a provocações ou a argumentos desprovidos de
coerência e revestidos por um horizonte inautêntico.
Cumpre ainda consignar que apesar de concluído o processo legislativo
referente às cotas, não será possível dar os passos dele decorrentes de maneira
adequada sem entrelaçar o modo de decidir que está por vir com as raízes de sua
construção.
O presente trabalho, em verdade, não buscou revirar o passado com os seus
eventuais créditos ou débitos, mas sim construir os parâmetros para que o julgador
não se perca nos decisionismos criticados nos capítulos três e quatro, por falta de
referências claras que permitam uma fundamentação adequada das questões que,
por certo, resultarão dos problemas da aplicação da lei. O tema escolhido por
projetar-se para o futuro, mostra-se, utilizando expressões de Heidegger, necessário
no presente que é na atualidade, que serve como ponto de partida do por vir nunca
esquecendo do vigor de ter sido.
A partir de tais premissas, o presente trabalho conclui pela necessidade de
políticas afirmativas relativas ao ensino superior público, de ordem social, mas
também de ordem racial, haja vista a insistente discriminação sofrida pelos
184
afrodescendentes e a perpetuação das desigualdades sofridas, especialmente
quando visto o Brasil como um país de modernidade tardia. Isso porque, é
necessário que se compreenda a importância da leitura por meio de horizontes
autênticos o que, em regra, parece ser esquecido quando das críticas a tais
programas.
Ressalta-se ainda que a efetividade e legitimidade das cotas, de acordo com
os parâmetros traçados neste trabalho, apenas se sustentam diante do seu caráter
transitório, pois a política de cotas atende o mando constitucional da redução de
desigualdades, de forma que, quando seu objetivo for enfim atingido, não há que se
falar mais em ações afirmativas.
Necessário ainda destacar que tais programas, lidos enquanto princípios
morais, em uma perspectiva da comunidade de princípios e não moral pessoal,
devem igualmente possuir um grau de coerência sistêmica, a qual, ressalta-se, não
é respondida pelo sistema normativista, por meio das teorias da exegese,
jurisprudência dos interesses e jurisprudência dos valores. A lei, a Constituição, o
judiciário e o legislativo devem compartilhar resultados.
Não basta, ademais, que sejam as cotas entendidas tão somente como
objetivos governamentais. A sua complexidade exige a sua compreensão por meio
de argumentos de princípios, princípios morais advindos da comunidade. A inserção
da ideia de fraternidade e de se compreender a necessidade do outro faz-se
essencial nesta esteira, pois apenas assim será alcançada a melhor virtude do
direito. A equalização de oportunidades não se sustenta apenas como uma política
governamental, mas efetivamente como uma garantia de todos os indivíduos, a
partir da vida em comunidade.
A importância de se garantir a equalização de oportunidades no acesso ao
ensino superior, observando a igualdade constitucionalmente consagrada e,
primordialmente, a imprescindibilidade da efetividade dos preceitos fundamentais e
sociais, cumulada com o paradigma da discriminação e exclusão latentes no interior
da sociedade, em decorrência de um cenário histórico alarmante, são questões cujo
entendimento demanda uma teoria política adequada e sensível à real prática do
direito.
Por fim, verifica-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal não se
embasou, necessariamente, em Ronald Dworkin, de forma que o Ministro Relator
185
cita trechos isolados das suas obras sem, no entanto, constituir a hermenêutica
política expressamente como a sua razão de decidir.
Entretanto, ao se analisar os votos proferidos verificou-se que a maioria deles,
em que pese a ausência de referências expressas a Dworkin, assumem
características da fenomenologia dworkiana, realizando uma construção histórica e
buscando a adequação da decisão. Neste sentido, torna-se possível afirmar que não
se perdeu a perspectiva de Dworkin, sendo a decisão da ADPF 186 passível de ser
analisada sob esta perspectiva.
Esta possibilidade se justifica a partir da perspectiva de Gadamer, já que,
nesta, o texto nasce e se desvincula do seu autor, de forma que a leitura da lei ou da
decisão jurisdicional, independentemente de ter nascido com uma justificação
dworkiana, precisa ser reproduzida a partir da fenomenologia política. Assim, uma
vez que o texto nasce, ele se desprende da vontade daquele que o criou e se
prende a horizontes. A lógica que direciona os votos dos Ministros, em especial o
Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, Ministro Marco Aurélio, Ministro Joaquim
Barbosa, Ministra Carmem Lucia, Ministro Cezar Peluso, Ministro Celso de Melo,
Ministra Rosa Weber e Ministro Ayres Britto, se adequa à perspectiva de Dworkin,
conforme trabalhou-se no capítulo 4.
Não obstante, podemos afirmar ainda que alguns votos carecem de observar
a moralidade da comunidade de princípios, demonstrando um direcionamento
pessoal em grande medida, o que, por todo o exposto, parece ser evidentemente
temerário para a integridade do direito. Isso porque, ainda que o STF acerte em sua
decisão, isto não deve ocorrer por acaso. É preciso que se apresente fundamentos
coerentes.
Além disso, cumpre salientar que a proposta do trabalho é que a coerência a
integridade permitam que os resultados da produção da hermenêutica política
surtam efeitos na interpretação construtiva do direito. A perspectiva de aplicação
sempre vai remontar este eterno reconstruir, o qual, todavia, não se confunde com
decisionismo e, por isso, o apoio em Dworkin.
Pode-se apontar a possibilidade de aplicação do precedente constante no
julgamento da ADPF nº. 186-DF à Lei nº. 12.711/12, não obstante divergências em
aspectos práticos, pois a razão de decidir, isto é, o fundamento principal adotado
naquela decisão, nos remete a um horizonte e a um arcabouço teórico que sustenta,
sejam as cotas raciais, sejam as cotas sociais, já que a nova lei prevê as duas
186
formas, afastando a recorrente crítica e o mito de que a desigualdade é apenas
social e não mais racial.
Finalmente, a par de todo o desenvolvimento do presente trabalho, conclui-se
que, para além de análises superficiais e que ilustram o individualismo típico do
Liberalismo, é preciso que, ao se falar em cotas argumente-se por meio de
princípios morais da comunidade, preenchendo assim um vazio do direito que
nenhuma legislação poderá suprir. É preciso que se compreenda que as ações
afirmativas no ensino superior público, observando todas as considerações acima,
constituem-se em um meio adequado e coerente plenamente justificado pelo
horizonte histórico que carrega consigo e pelo projeto comunitário comum que
vivenciamos, qual seja, garantir a todos os indivíduos a igualdade constitucional e a
efetividade de seus direitos sociais. É preciso, pois, que se leve o direito a sério.
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