0 FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS VANESSA CRISTINA GAVIÃO AS COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO COMO AÇÃO AFIRMATIVA: UMA CONSTRUÇÃO A PARTIR DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE RONALD DWORKIN POUSO ALEGRE - MG 2014 1 VANESSA CRISTINA GAVIÃO AS COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO COMO AÇÃO AFIRMATIVA: UMA CONSTRUÇÃO A PARTIR DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE RONALD DWORKIN Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Orientador: Prof. Dr. Edson Vieira da Silva Filho FDSM - MG 2014 2 VANESSA CRISTINA GAVIÃO AS COTAS NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO COMO AÇÃO AFIRMATIVA: UMA CONSTRUÇÃO A PARTIR DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE RONALD DWORKIN FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS Data da aprovação ____ / ____ / ____ Banca Examinadora ________________________________ Prof. Dr.(a) Edson Vieira da Silva Filho Orientador FDSM Banca Examinadora ________________________________ Prof. Dr. Rafael Lazzarotto Simioni FDSM Banca Examinadora ________________________________ Profa. Dra. Volneida Costa PUC/MG POUSO ALEGRE – MG 2014 3 Aos meus pais, Tânia e Carlos, por serem a maior representação do amor de Deus em minha vida, o meu porto mais seguro e por terem permitido que eu chegasse até aqui. A minha irmã Kelly, por ser o meu grande amor e por representar o exemplo de profissionalismo, dedicação e ética que carrego comigo. Ao meu marido Lucas por ter, com o seu amor incondicional, sido o meu companheiro, apoiado as minhas batalhas e compreendido a minha ausência, quando necessário. 4 AGRADECIMENTOS Ao orientador Professor Doutor Edson Vieira da Silva Filho pelos ensinamentos, dedicação e paciência. Foi, antes de tudo, a cada encontro movido por ricos diálogos, um grande incentivador e companheiro, sempre atento e compreensivo. A todo o corpo docente do mestrado da FDSM e em especial aos Professores Dr. Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Dr. Dierle Nunes, Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo, Dr. Elias Kallas Filho, Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, Dr. Rafael Lazzarotto Simioni, Dr. Walter Guandalini Jr. e Dr. Renato Maia, cujas lições contribuíram não apenas para o presente trabalho, mas para toda a minha formação acadêmica. À Deus que além de me conceder a vida, me proporcionou saúde, força, coragem e fé durante toda a minha caminhada. A toda a minha amada família por ter compreendido os momentos em que não pude estar presente; por comemorar comigo as vitórias e me apoiar nas dificuldades, por acreditar no meu sucesso e por estar ao meu lado me incentivando nos momentos mais difíceis. Aos meus queridos amigos que sempre estiveram torcendo por mim, em especial à minha sócia Mayara, que suportou a minha ausência e contornou todos os obstáculos, às minhas amigas Patrícia Prado, Eliziane Pereira e Daniela Vieira que por todo o tempo me incentivaram. Aos colegas e à direção do DMAE por apoiar a minha caminhada e compreender as minhas ausências. Aos estimados colegas e amigos do mestrado, pelo apoio, companheirismo e amizade. 5 Se soubesse que o mundo se desintegraria amanhã, ainda assim plantaria a minha macieira. O que me assusta não é a violência de poucos, mas a omissão de muitos. Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos. (Martin Luther King) 6 RESUMO GAVIÃO, Vanessa Cristina. As cotas no ensino superior público brasileiro como ação afirmativa: Uma construção a partir da hermenêutica politica de Ronald Dworkin. 2014. 203f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2014. A presente dissertação analisa a política de cotas no ensino superior público brasileiro, conferindo ênfase às cotas criadas para acesso de afrodescendentes, com base, principalmente, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 186-DF, a partir da hermenêutica política de Ronald Dworkin. Para tanto, parte-se de uma averiguação de um horizonte autêntico que culmina na realidade de constante discriminação econômica e racial que ainda vivenciamos. A apreciação dos valores da liberdade e igualdade e a influência destes na formação do Estado demonstrará que, embora sob o manto de um Estado Democrático de Direito, o Brasil ainda é considerado um país de modernidade tardia, no qual muitas das promessas do Estado Social ainda não foram efetivadas. As ações afirmativas seriam, então, uma tentativa de resgate de tais promessas que, em que pese seu caráter transitório, caracterizam-se como mecanismo de equalização de oportunidades para efetivação de direitos fundamentais (a igualdade, enquanto direito à diversidade) e direitos sociais (no caso, a educação). Analisa as cotas a partir de preceitos advindos da Constituição Federal de 1988 em seu caráter promotor. Para encontrar a legitimidade e validade dos programas de cotas, considera-se a distinção estabelecida por Ronald Dworkin entre políticas públicas e princípios morais, a partir de uma compreensão que demande a prevalência dos princípios morais, no interior da chamada comunidade de princípios. Sublinhando o direito como integridade de Dworkin e a precisão de se considerar a adequação e coerência aliadas a um horizonte autêntico, o presente trabalho perpassa pela compreensão do caminhar até este marco teórico, analisando importantes teóricos que contribuíram. Por fim, o presente trabalho analisa o julgamento da ADPF nº. 186-DF pelo Supremo Tribunal Federal (STF), proposta pelo Partido Democratas e que objetivou a declaração de inconstitucionalidade de cotas para afrodescendentes na Universidade de Brasília - UnB. Abordando os votos dos Ministros do STF, o estudo verifica a argumentação principal por eles adotada, buscando a coerência e adequação desta como forma de legitimar a reserva de vagas nas Universidades, averiguando ainda a possível aplicação deste precedente às discussões oriundas da Lei nº. 12.711/2012 que determina a implementação de cotas sociais e raciais nas Universidades Públicas Federais. Conclui-se pela legitimidade das cotas a partir de um horizonte autêntico, com a necessária visualização destas a partir de argumentos de princípios, atendendo, via de consequência, um projeto comunitário comum. Palavras-chave: Ação afirmativa. Discriminação. Educação. Igualdade. Integridade. 7 ABSTRACT GAVIÃO, Vanessa Cristina. The quotes in the brasilian graduation as affirmatives actions: A building from the political hermeneutics of Ronald Dworkin. 2014. 203f. Dissertation (Master of Law) – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Pós-Graduação em Direito, Pouso Alegre, 2014. The present dissertation analyzes the politics of quotes in the Brasilian public graduation, with emphasis to the quotes established for afrodescendants access, based primarily on the judgment of the Accusation of Breach of Fundamental Precept (ADPF) nº. DF-186, from the politic hermeneutic of Ronald Dworkin. To do so, one starts from an investigation of a real horizon that culminates in the reality of constant economic and racial discrimination that we still experienced. The appreciation of the values of freedom and equality and their influence on the formation of the State will show that, although under the cover of a Democratic State, Brasil is still considered a country of late modernity, in which many of the promises of the welfare state have not been effect yet. The affirmatives actions would then be a rescue attempt of these promises, despite its a transitory character, are characterized as a equalization of opportunities for enforcement of fundamental rights (equality as a right to diversity) and social rights ( in this case, education). Analyzes quotes coming from provisions of the Federal Constitution of 1988 in its programmatic character. To find legitimacy and validity of quote programs, considers the distinction made by Ronald Dworkin between public policy and moral principles, from an understanding that demands the prevalence of moral principles within the community called principles. Underlining the law as Dworkin integrity and accuracy of considering the adequacy and consistency allied to a genuine horizon, this dissertation goes through the understanding of walking up to this theoretical framework, analyzing important theorists who contributed to this idea.Finally, this paper analyzes the judgment of ADPF nº 186-DF by the Federal Supreme Court (STF), proposed by the "Partido Democratas" aimed to declare the unconstitutionality of afrodescendants quotes in the University of Brasilia - UNB. By addressing the votes of the Ministers from STF, the study verifies the main arguments adopted by them, seeking coherence and adequacy as a way of legitimizing the reservation of vacancies at Universities, also ascertaining the potential application of this precedent to the discussions arising from the law 12.711/2012, which determines the requirement for implementation of social and racial quotes in the Federal Public Universities. This paper concludes the legitimacy of quotas from an authentic horizon, with the necessary view of these principles given, as a result, a joint community project. Keywords: Affirmative Action. Discrimination. Education. Equality. Integrity 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................9 1. A (RE) CONSTRUÇÃO DE UM CHÃO HISTÓRICO .............................................16 1.1. Raízes da dívida (ou déficit) histórica-social: A construção de um modelo social discriminatório ...........................................................................................................18 1.2. Breves linhas sobre as ações afirmativas...........................................................39 1.3. O julgamento da ADPF 186 pelo Supremo Tribunal Federal e a aprovação da Lei nº. 12.711/2012 ...................................................................................................51 2. A VIRADA CONSTITUCIONAL E A MODERNIDADE TARDIA: BREVES NOÇÕES SOBRE CRISES E CONTRADIÇÕES DA TARDO DEMOCRACIA BRASILEIRA ............................................................................................................60 2.1. O Estado de Direito e suas transformações .......................................................60 2.2. O Estado (Social) Democrático de Direito em seu papel de Estado promotor: Consecução da Constituição Dirigente e as promessas não cumpridas...................75 3. AS COTAS SOB O ENFOQUE DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE RONALD DWORKIN.................................................................................................................82 3.1. Os primeiros fundamentos na construção de um possível modo de se compreender a problemática relacionada às cotas: Um caminho traçado até Ronald Dworkin 82 3.2. Regras, princípios morais e políticas públicas em Ronald Dworkin .................118 3.2.1. Ações afirmativas por meio de cotas em universidades: política pública ou princípio moral?.......................................................................................................128 4. O JULGAMENTO DA ADPF N. 186/DF PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO .................145 4.1. A aprovação de Lei nº. 12711/12 após manifestação do Poder Judiciário: Possível influência de precedentes judicias na esfera legislativa............................146 4.2. O julgamento da ADPF 186: palco para discussões sociais, políticas e econômicas. ............................................................................................................156 CONCLUSÃO .........................................................................................................181 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................187 9 INTRODUÇÃO O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 186-DF que resultou na declaração de constitucionalidade das cotas raciais, aliado à publicação da Lei nº 12.711/2012 que estabelece a obrigatoriedade de reserva de cotas sociais nas universidades públicas brasileiras, desencadeia uma série de questionamentos relacionados à legitimidade das cotas. Não obstante a manifestação do STF e a regulamentação de programa de cotas por legislação federal, as cotas ainda são objeto de uma multiplicidade de argumentos, gerando diversos debates perante a sociedade, sendo que o tema, em grande medida, é analisado de forma superficial, desconsiderando-se um horizonte autêntico. Entende-se que a reserva de cotas no ensino superior público reflete na vida de inúmeros indivíduos que buscam ingressar nas universidades, caracterizando-se como um importante fator de mudança no caminho dos cidadãos, sejam aqueles beneficiados pelas cotas, sejam aqueles que não podem usufruir desta benesse. A problemática se concentra na questão se o mecanismo de inclusão não segrega mais do que equaliza. Não só vislumbrada, portanto, como fenômeno jurídico, mas também como fenômeno social, a discussão sobre a efetividade das cotas no ensino superior público e o seu potencial discriminatório ou igualitário, implica na reconstrução de um horizonte histórico, o que será realizado no primeiro capítulo. Isso porque, desde o século XIX, o Brasil passa por profundas mudanças estruturais e sociais, as quais se intensificaram a partir da virada do século XX, isto é, após os períodos de colonização, abolição e da República. A sociedade brasileira, durante todos estes períodos, se caracterizou como estratificada e hierarquizada, sobretudo se observado o momento de colonização, aliado à escravidão, que apresentava de forma implícita um conjunto de estereótipos negativos, principalmente, em relação ao negro, valorizando uma superioridade branca. Em um primeiro momento, antes mesmo da abolição, não se falava em ideologia racial, discriminação por preconceito ou excluídos, pois tais caracterizações simplesmente inexistiam em seu sentido conceitual. Todavia, a 10 própria condição da escravidão é suficiente para demonstrar a absoluta inferiorização do negro e dos povos nativos do Brasil durante a colonização ibérica, quando a forma hierarquizada da sociedade era tida como natural e aqueles nem sequer eram considerados sujeitos de direito. As primeiras exposições científicas que tratavam do racismo surgiram em meados de 1870, quando o país já estava na iminência da abolição e iniciava o procedimento de modificação da condição do negro no meio social, surgindo, então, uma ideologia racial. Não obstante, com a abolição e a posterior chegada da República (1889), esta trouxe consigo ideais e propostas de igualdade e cidadania, lançando novos supostos valores e, com eles, novas esperanças. No entanto, não parece ter sido a República suficiente para garantir a real igualdade dos indivíduos e a implantação de direitos sociais de forma igualitária, tal qual foi proposta, mormente se analisado que o discurso da ideologia racial em muito contribuiu para manter os negros, principalmente, na base da pirâmide social, inseridos em um ambiente demasiadamente desqualificado e com persistente restrição de oportunidades. O novo regime republicano, portador das promessas democratizantes, foi também palco do que se concebeu como “democracia racial” que ganhou forças aproximadamente em 1940 e representava a busca da convivência pacífica da sociedade, independentemente das raças, fundada na ideia de nação heterogênea. Nesta esteira, ao se falar em desigualdade social, pensava-se, via de consequência, em distribuição de renda, tendo sido aparentemente superado o mito da raça. Não parece, no entanto, que o cenário acima descrito reflete a realidade dos fatos, tendo em vista que, conforme será abordado neste trabalho, a ideia de democracia racial não afastou os estereótipos existentes na sociedade e nem tampouco foi o bastante para equalizar oportunidades no seio da sociedade. A República, embora posterior à abolição, colaborou para o aumento da segmentação social, seja em relação aos negros, seja em relação aos grupos étnicos e sociais excluídos. Assim, por mais que se vislumbre que a abolição da escravatura e a República geraram relativa liberdade e igualdade formal aos indivíduos, é fato que nesta corrida por oportunidades, alguns indivíduos, a exemplo dos brancos da elite colonial, largaram muito antes de outros, a exemplo dos negros e indivíduos 11 pertencentes a grupos étnicos e sociais excluídos. Parece claro, então, que estes últimos necessitam correr de forma muito mais intensa para alcançá-los. No capítulo 2 analisar-se-á que embora a República não tenha atingido os seus supostos ideais, a dualidade entre igualdade e liberdade se modifica conforme a forma que o Estado adota, atingindo o seu ápice com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual traz em seu bojo o objetivo de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, apresentando um rol de direitos sociais que devem ser garantidos a todos os indivíduos. Surge, então, a ideia de se buscar efetivar uma justiça distributiva, a fim de corrigir a desigualdade oriunda de um horizonte histórico de exclusão social, especialmente pelo fato de o Brasil ser um país de modernidade tardia1, isto é, um país onde as promessas feitas no Estado Social não foram efetivadas. Diante desta ideia de tardo democracia, demanda-se do Estado a criação de políticas públicas e sociais, a fim de garantir a eficácia dos direitos então previstos na Constituição da República, sendo que as questões referentes à desigualdade racial e social ganham destaque e passam a ser constantemente suscitadas quando do questionamento sobre a efetividade dos direitos sociais a todos. Daí pode-se levantar a importância das ações afirmativas que se configuram como elementos que proporcionam, respeitada a sua transitoriedade, a correção de distorções sociais. Neste viés, a partir do Capítulo 3, a presente pesquisa abordará, a par do chão histórico esboçado, o direito social à educação e as ações estatais para garanti-lo diante do cenário atualmente existente na sociedade, especialmente no que concerne à validade e efetividade dos programas de cotas para o ensino superior público. Haja vista, no entanto, a amplitude do assunto, embora relate sobre as cotas sociais recentemente criadas, o presente trabalho centrará a sua atenção nas cotas raciais, posto que, embora esta questão esteja eivada de alta carga ideológica, é seguramente possível afirmar que a “discriminação racial” está longe do seu fim e que as desigualdades em decorrência meramente da cor do indivíduo continuam assustadoramente a se manter. Em um país de modernidade tardia, um dos objetivos da criação da política de cotas é proporcionar, principalmente, a grupos com déficit em relação à inclusão 1 A expressão “modernidade tardia” é utilizada por Lenio Streck em suas obras, a fim de caracterizar o Brasil como um país no qual as promessas advindas do Estado Social ainda não foram cumpridas. 12 social, um tratamento diferenciado, a fim de criar oportunidades que estejam ao alcance de todos e no mesmo patamar de indivíduos que tiveram qualidade de vida e ensino superior àqueles. Invoca-se, então, o princípio constitucional da igualdade, consagrado pela Constituição Federal, a fim de considerar a realidade concreta e a efetiva necessidade de se superar obstáculos que proporcionem desigualdades de fato. Deve-se atentar que o princípio da igualdade, sob esta leitura, é entendido enquanto o direito à diversidade2, e não na clássica divisão de dimensões formal e material. A importância de se apreciar os princípios constitucionais na oportunidade de análise das cotas é indiscutível, já que estes, na visão dworkiana, se configuram como padrões de moralidade transpositivos. São padrões políticos e morais a que as decisões recorrem, mormente, para solucionar casos difíceis que não encontram solução ou amparo no direito positivo. Seu cumprimento é questão de adequação e coerência, abordando questões de peso na justificação de uma decisão, a qual, segundo Dworkin, deve ter como característica marcante a abordagem por meio de princípios.3 Neste viés, a reserva de cotas no ensino superior público, muito além da finalidade de efetivar o direito social da educação, objetiva a redução de desigualdades, por meio da equalização de oportunidades, fazendo-o por meio da implementação de critérios baseados em classe social, raça e etnia. Tal questão, todavia, parece se posicionar no interior da tensão existente entre constitucionalismo e democracia4, o que demanda uma análise cautelosa no sentido de verificar se deve a cota ser entendida enquanto política pública ou princípio moral5. Vale reiterar que esta perspectiva das cotas enquanto inserida em uma comunidade de princípios se adapta com a atual figura do Estado em seu aspecto promotor, isto é, com fins e tarefas determinadas, bem como com diretivas devidamente estabelecidas para o um desenvolvimento social, enquanto projetar-se, por meio daquilo que se conhece como Constituição Dirigente. 2 A ideia do direito à igualdade enquanto direito à diversidade pode ser encontrada em SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 462 3 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Tradução: Nelson Boeira. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. P, 132 4 DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e Democracia. Tradução: Emílio Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal oh Philosophy, nº.3:1, p.2-11, em 1995. P. 13 5 Ibidem, Levando os direitos à sério Op. Cit., P. 129 13 Busca-se, então, o meio mais adequado para se proceder à análise das cotas no ensino público, a partir da implementação das cotas raciais, por meio de uma análise de conteúdo hermenêutico político, apreciando-as como um possível instrumento para a efetividade do direito social à educação, bem como respeito ao princípio da igualdade. A busca por esta resposta, todavia, a qual intenta elucidar a validade e efetividade dos programas de cotas, não é tarefa fácil, exigindo um esforço por meio de uma reflexão crítica que atinja os seus níveis mais intrínsecos de compreensão, para a qual a presente pesquisa terá como marco teórico as ideias dworkianas referentes à hermenêutica ou fenomenologia política. No capítulo 4, será ressaltado que durante muitos anos foram travados diversos debates em níveis institucionais variados, acerca da utilização de sistemas de cotas para ingresso de alunos no ensino superior, discussões estas que envolveram em demasia questões ligadas à efetividade de tais projetos e o direito à igualdade constitucionalmente consagrado. Em abril de 2012, o STF julgou a ADPF 186/DF, conforme relatado, a qual questionava a constitucionalidade de programas de reserva de vagas para alunos afrodescendentes implantados em algumas universidades brasileiras, tendo decidido pela constitucionalidade destes. Naquela oportunidade foi destacado o caráter social das políticas implementadas, bem como os graves problemas de desigualdade enfrentados por determinadas classes e raças dentro do território brasileiro, advindos de uma história de rejeição e preconceito. O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPF 186/DF aborda a questão referente à inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas, aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”.6 6 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: 14 Até a decisão tomada pelo STF, embora o tema já causasse discussões e questionamentos variados, o poder legislativo, não obstante a existência de projetos de lei relativos a cotas, se mantinha inerte, não decidindo sobre a (im)possibilidade de implantação destas. Após o julgamento, entretanto, o Poder Legislativo, assumindo o seu papel até então esquecido, apreciou e encaminhou para sanção o projeto de Lei nº. 180/2008, o qual resultou na Lei nº. 12.711/2012, sancionada em 29 de agosto de 2012, cujo objeto é dispor sobre o ingresso de estudantes nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, estabelecendo o dever de observância da reserva de cotas sociais e raciais em tais instituições. Assim, a mencionada lei surgiu aparentemente com o intuito de pacificar e determinar limites à questão que há muito vinha sendo tratada pelo Poder Judiciário, por meio da análise de casos concretos e discussões acaloradas acerca da constitucionalidade de medidas de discriminação positiva ou as denominadas ações afirmativas, as quais se voltavam, até então, para questões raciais. Daí justifica-se a maior importância conferida neste trabalho às cotas raciais, posto que a partir destas é possível averiguar uma construção interpretativa sobre o tema proposto. Considerada a importância do julgamento da ADPF 186-DF para reflexão acerca da legitimidade das cotas, o presente trabalho realizará uma análise sobre os votos proferidos pelos Ministros naquela oportunidade, visando comparar a convergência destes com as propostas teóricas traçadas nos capítulos anteriores. Busca-se, assim, a coerência dos argumentos apresentados com a integridade do direito, para que seja possível adequá-los à legitimidade conferida à reserva de vagas para afrodescendentes nas universidades públicas. Diante de tal escolha metodológica, é de se ressaltar que para que seja possível a compreensão da fenomenologia política de Dworkin e a construção interpretativa do direito, é indispensável que se entenda as suas bases teóricas, a partir de Heidegger e Gadamer, já que apenas a partir de suas propostas será viável analisar a adequação e legitimidade das cotas no ensino superior e a coerência destas, a partir de uma adequada leitura do horizonte autêntico. <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. agosto de 2013. Acesso em: 21 de 15 É de se entender, portanto, que para uma busca da resposta correta para o caso das cotas, em observância à tradição histórica, bem como ao seu objetivo político-social, há de se compatibilizar tais elementos com o direito e com os princípios morais da comunidade política, sem afastar, todavia, a possibilidade de mutação da compreensão e interpretação encontrada de acordo com a realidade prática existente. 16 1. A (RE) CONSTRUÇÃO DE UM CHÃO HISTÓRICO Para a adequada compreensão de algo que se pretenda discutir, é essencial observar o seu delineamento histórico, pois apenas conhecendo a coisa analisada, será possível realizar uma dinâmica de (re) construção, conferindo-lhe um rosto e uma formação autêntica. Não basta, portanto, uma mera análise superficial de como a coisa se encontra atualmente, mas sim dos fatores que contribuiram para o seu estado presente e de todas as peculiaridades existentes em sua essência, ainda que sejam elam veladas por estereótipos artificiais. O traçar do modo de ser histórico deve prezar pela veracidade dos fatos ocorridos, refletindo-os de forma crítica, a fim de afastar uma eventual limitação decorrente do exame pouco sólido do passado que formou e transformou aquele objeto. Não se resume, então, em uma narrativa de acontecimentos, mas na observância de como e por que aqueles fatos culminaram na situação hoje existente e o que ficou mascarado e perdido em meio a este passado. Diante desta necessidade de se (re)construir um horizonte histórico autêntico7 do momento em que os fatos estão circunscritos, antes de adentrarmos no cerne das questões referentes às cotas e efetividade de direitos, buscar-se-á construir um horizonte histórico, a partir de uma perspectiva gadameriana, visando adequar a proposta deste trabalho ao modelo hermenêutico buscado. Isso porque, conforme será aprofundado no Capítulo 3, a partir do século XIX, com a ocorrência das Viragens Linguísticas8, a linguagem ganha uma nova roupagem, estando agora voltada à interpretação, sendo que sob a perspectiva gadameriana, uma melhor compreensão exige a fusão de horizontes, isto é, exige a consideração de um horizonte histórico para que, então, seja possível a confrontação de visões de mundo. 7 Conforme se verá adiante, a (re)construção de um horizonte autêntico trata-se de um processo que implica necessariamente na desconstrução ou, para utilizar a expressão heideggeriana, destruição de preconcepções inadequadas ou inválidas, para que, então, se possa atingir a realidade desvelada. 8 A Viragem Linguística Lógica, bem como a Ontológica serão aprofundadas no capítulo 3 do presente trabalho. 17 É bem verdade que o traçar de um histórico nem sempre nos concede certezas sobre os acontecimentos, fazendo-se imperativa a sua análise de forma crítica e cautelosa. Neste sentido, Eduardo Henrique Lopes Figueiredo: As vicissitudes históricas que podem ilustrar a captura do passado jurídico como informador do presente legal que nos informa, fundamenta ações, infundindo no observador que a compreensão a respeito dos direitos, levada na devida conta a dimensão sócio-histórica, deve ser colocada na quarentena da suspeita, no plano de singular consciência cética, isto relativamente e contrariamente às certezas que infestam e emprestam sentido ao direito de nosso tempo, sejam elas a ideia de evolução, marcada pela positividade histórica, ou, ainda, a correspondência quase que 9 simétrica entre etapas do passado até o presente. Para uma melhor análise das cotas no ensino superior público, todavia, a consideração de um horizonte histórico parece ser imprescindível, posto que os déficits atualmente encontrados na sociedade e que originam estas ações afirmativas advêm de um processo de transformação da sociedade, sendo resultado de um caminho de desigualdades e discriminação. É preciso, então, conhecer este caminho, para que então seja possível a compreensão dos programas de cotas para além de seu aspecto meramente político. Diante da importância de uma (re) construção histórica para a melhor compreensão de um tema, partiremos para uma reflexão crítica sobre a possível origem do modelo social discriminatório que hoje se verifica. Todavia, antes de adentrarmos no histórico propriamente dito, chama-se a atenção para a ideia estampada de que trataremos das “raízes da dívida histórica-social”. Sob esta ótica, é necessária a análise da possibilidade de se considerar o passado enquanto uma dívida social, no sentido de condenar aqueles que em um momento histórico específico, com compreensões delimitadas, agiram da forma que atualmente se entende inadequada. Seria, então, viável sustentar a validade de uma dívida social? Parece imperioso analisar que as perspectivas do homem se modificam de acordo com as novas propostas que surgem, sendo que ele se adapta ao meio ambiente em que vive e conforme as condições que a própria sociedade lhe oferece. A racionalidade existente há séculos atrás não parece ser a mesma que hoje se 9 FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. História, direito e sociedade: a captura histórica do direito – itinerários da metodologia e interpretação. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MONACO, Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHAES, José Luiz Quadros de. (Coord.) Constitucionalismo e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 9. 18 enfrenta, de forma que aquilo que atualmente temos como inconcebível, tal como a escravidão, pode já ter sido indiferente e compreendido como uma mera naturalidade. A cobrança de uma dívida social, neste termo propriamente dito, exigiria a mesma racionalidade àqueles que praticaram os atos agora condenáveis, o que, todavia, é de difícil averiguação e comprovação. A mudança da proposta do Estado gera a mudança da racionalidade e, consequentemente, gera novas perspectivas. Assim, parece demasiadamente temeroso se falar em dívida social, o que, no entanto, não afasta a realidade de um eventual déficit social, cuja compensação se faz agora exigível. A nova forma social plural democrática do Estado pede ações governamentais afirmativas que garantam a sua promoção e efetivação, a fim de que crie e implante esta nova perspectiva. Não necessariamente em virtude de uma dívida social, mas concretamente como forma de efetivação de direitos e correção de distorções. 1.1. Raízes da dívida (ou déficit) histórica-social: A construção de um modelo social discriminatório Dada a importância acima mencionada da construção de um horizonte autêntico, a partir de uma (re)construção histórica, com ênfase no preconceito racial, buscar-se-á uma análise a partir, principalmente, da colonização ibérica seguida pela proclamação de uma suposta República no Brasil, período no qual parece ganhar força a segregação da sociedade. Necessário advertir, todavia, que em verdade a proclamação da República não se caracteriza como um ato isolado10, mas como o resultado de um processo 10 Oportuno aqui mencionar que nada é um ato, uma data, um autor ou um fato isolado. Neste contexto, lembramos a música “Guararapes” de Dorival Caymmi: “Vamos saber se contaram nossa história certo. Vamos rever o que existe de nosso passado. Devemos conhecer nossos heróis de perto. Tentando consertar o que aprendeu-se errado. Quem foi o herói que libertou o homem. Foi quem lutou para não passar mais fome.Quem foi o Herói que libertou o homem. Foi quem lutou para não passar mais fome. Talvez alguém não aceite outra versão dos fatos. Que a fantasia é a mordaça da realidade. Os ídolos de barro para os insensatos. E aos verdadeiros homens, homens de verdade.Quem foi o herói que era fidalgo e nobre. Foi um barão duma rabeira pobre. Ontem foi o herói que era fidalgo e nobre.Foi um barão duma rabeira pobre. O rei, o herói, o santo, o assassino e o mártir. Foram também como nós em decadência ou glória.Da história foram eles que fizeram parte.Feito amanhã seremos nós parte da história.” 19 que há muito já se construía no seio da sociedade11, em vista dos objetivos e finalidades que serão aqui tratados. Utilizar-se-á a proclamação e a sua data instituída, no entanto, como marco simbólico para que se possa abordar as consequências desta nova roupagem do Estado e o modelo social criado a partir de então. Neste viés, inicia-se o contorno histórico a partir das considerações acerca da colonização do Brasil, quando os portugueses ocuparam as terras brasileiras e iniciaram um processo de (re) formulação de cultura, se apoderando e, ao mesmo tempo, ignorando os costumes e valores aqui existentes e, principalmente, os povos que habitavam esta região12. Em verdade, cuidou-se de um extermínio da liberdade e da cultura de povos nativos. Embora muitas vezes esta realidade seja velada, a história da colonização foi marcada por aspectos estruturais e constantes de assenhoreamento e violência em engenhos e quilombos.13 Este velamento se faz presente até mesmo em obras que relatam este período histórico. Sérgio Buarque de Holanda, buscando demonstrar uma suposta pacificação na colonização, solidifica a inferioridade dos indígenas, afirmando que a forma de vida dos índios resultava em incompreensões recíprocas que, de parte dos indígenas, assumiam quase sempre a forma de uma resistência obstinada, ainda quando silenciosa e passiva, às imposições da raça dominante.14 No entanto, desde o primeiro século da colonização, em um encontro deveras conflitivo, a partir do descobrimento da América pelos portugueses que entendiam que aquele território lhes pertencia, foi iniciado um processo de real extermínio da cultura indígena, sendo que muitos nativos, se não dizimados, foram inicialmente mantidos como escravos, juntamente aos negros africanos. A ideia de que os colonizadores se apossaram da cultura dos povos nativos e negros como uma forma democrática e de aproximação não se mostra convincente, parecendo apenas uma forma de esconder a realidade que se instaurou. 11 Cf. CARVALHO, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 12 Sobre o início da colonização, Caio Prado Junior afirma “A idéia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo por estes territórios primitivos e vazios que formam a América; e inversamente, o prestigio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis”. PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 15. 13 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.p. 27. 14 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 48. 20 Neste sentido, desvelando as reais práticas dos portugueses colonizadores, Bosi: O colono incorpora, literalmente, os bens materiais e e culturais do negro e do índio, pois lhe interessa e lhe dá sumo gosto tomar para si a força do seu braço, o corpo de suas mulheres, as suas receitas bem-sucedidas de plantar e cozes e, por extensão, os seus expedientes rústicos, logo indispensáveis, de sobrevivência. Desfrute no nível da pele e apropriação daquelas técnicas do corpo, tão bem descritas por Marcel Mauss, não instauram um regime propriamente recíproco de aculturação. O máximo que se poderia afirmar é que o colonizador tirou para si bom proveito da sua 15 relação com o índio e com o negro. Ainda que não houvesse a efetiva matança de índios, os colonizadores aniquilaram as suas bases culturais, transmudando a sua língua e usurpando a religião, intensificando nos índios o medo e o horror a espíritos malignos, diabolizando toda e qualquer cerimonia alheia à doutrina católica oficial.16 O massacre foi físico e cultural; vital e psicológico.17 A dominação dos índios se deu em grande parte em virtude da religião, haja vista a grande influência e o poder da Igreja naquele tempo. A catequese era considerada como prelúdio da submissão da raça inferior.18 O colono queria o índio convertido em mão de obra barata, em escravo, escravo com os sentimentos humildes do bom cristão19. O colono quer braços e concubinas, o índio, arrancado de seus costumes, reage com ferocidade contra o branco, rebelde na sua cultura bravia.20 Em que pese este cenário, a conquista do trópico pelos portugueses, com a finalidade de implementação de uma cultura notadamente ibérica, foi um grande triunfo para aquele povo. Nas férteis e desbravadas terras tropicais, encontraram 15 Ibidem, p. 28. Ibid., p, 69. 17 No ano de 1563, na Bahia, existiam 40.000 índios aldeados, ao passo que no decorrer de vinte anos, devido aos constantes maus-tratos e o fato de não possuírem imunidade suficiente para se proteger das doenças européias, restaram apenas 3.000 índios. TAUNAY, A. de E. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: Museu Paulista, 1924. v. 1. p. 85. 18 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. Porto Alegre: Editora Globo, 1976. v. 1. p. 199. 19 Inicialmente, como tentativa de solucionar a escassez de mão-de-obra, recorreu-se à força de trabalho dos nativos “relativamente numerosos e pacíficos do litoral”. In. NOVAIS, F.; MOTA, C. G. (Org.). Brasil em perspectiva, São Paulo: Difel, 971, p. 32-33. 20 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Op. Cit. p. 199. 16 21 fonte de farta riqueza, sendo que a produção agrária se tornou o vetor mais forte para o desenvolvimento daquela cultura.21 Assim, impetuosos por esta nova possibilidade de abundância, os portugueses, extirpando a presença dos indígenas nas terras tropicais, retiraram destes seus instrumentos de trabalho, deturparam sua cultura e passaram a buscar a incessante produção agrícola. Neste panorama, toda a organização política nacional tem sua origem na hierarquia, rigidamente aristocrática, de grande propriedade rural.22 Durante aproximadamente três séculos de colonização, os portugueses pareciam estar, de fato, preocupados com as relações econômicas, as quais se intensificavam no aspecto rural. Nos dizeres de Sérgio Buarque de Holanda23, não possuíam o “orgulho da raça”, pouco se importando com uma unidade nacional. Contudo, estereotipando os indígenas e os negros como raças inferiores e detentores de maior força e resistência, empregaram a forçosa mão de obra destes para servir aos interesses dos colonos portugueses. Afinal, o português veio buscar a riqueza, mas aquela riqueza que custa ousadia e não a riqueza que custa trabalho.24 Com o tempo, todavia, foi revelada uma menor produtividade dos índios, em decorrência do modo de vida em que estavam até então inseridos e da sua fragilidade diante de doenças25. Em vista disto, os portugueses recorreram mais enfaticamente à mão de obra escrava, trazendo negros da África, a fim de aumentar a produção. Sobre a preferência pela mão de obra escrava negra e consequente extermínio dos indígenas, Moura afirma 21 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 48. QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Sociologia política de Oliveira Vianna. São Paulo: Convívio, 1975. p. 108. 23 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 53. 24 Ibidem, p. 49. 25 Sobre a não adaptação ao trabalho indígena, Caio Prado aduz que conforme “afluíam mais colonos, e portanto as solicitações de trabalho, ia decrescendo o interesse dos índios pelos insignificantes objetos com que eram dantes pagos pelo serviço. Tornam-se aos poucos mais exigentes, e a margem de lucro do negócio ia diminuindo em proporção (...) aos poucos foi se tornando necessário forçá-lo ao trabalho, manter vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa em que estava ocupado. Daí para a escravidão pura e simples foi apenas um passo. Não eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva do Brasil e do estabelecimento da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e instituíra firmemente em toda parte”. PRADO JÚNIOR, C. Op. cit., p. 34,35. O autor ainda complementa que “além da resistência que ofereceu ao trabalho, o índio se mostrou mau trabalhador, de pouca resistência física e eficiência mínima. Nunca teria sido capaz de dar conta de uma tarefa colonizadora levada em grande escala” PRADO JÚNIOR, C. Op. cit., p. 3. 22 22 O sistema colonial no Brasil atua consequentemente com certas particularidades. Não se interessa pelo aproveitamento do trabalho indígena; na comparação que faz entre as possibilidades das técnicas produtivas nativas e o valor da terra, cultivada por populações ligadas à agricultura, opta pelo extermínio das primeiras, a ocupação da terra, e a 26 importação, em larga escala, do negro africano como trabalhador básico. Além disso, a ideia de escravidão dos negros já era amplamente aceita pelas sociedades como um todo, estando, em verdade, já implantada em Portugal. Na colonização ibérica, a presença do negro representou sempre fator obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais.27 Sem a força escrava, a riqueza buscada pelos portugueses não seria alcançada, mesmo com a terra farta e fértil. As bases da vida Imperial foram, então, além de marcadas pelo extermínio de indígenas, calcadas no trabalho forçado realizado em condições, em regra, cruéis e desumanas, sendo os escravos considerados “objetos de direito” ou coisas28 e nunca como “sujeitos de direito”. É fato que existem relatos históricos de senhores da casa-grande que criaram uma relação protetiva e até mesmo amorosa com seus escravos, no entanto, tais relações afetivas e sexuais não afastavam a condição de servo determinada pelo branco e assumida pelo negro. Neste sentido, Bosi A libido do conquistador teria sido antes falocrática do que democrática na medida em que se exercia quase sempre em uma só dimensão, a do contacto físico: as escravas emprenhadas pelos fazendeiros não foram guindadas, ipso facto¸à categoria de esposas e senhoras de engenho, nem tampouco os filhos dessas uniões furgzes se ombrearam com os herdeiros 29 ditos legítimos do patrimônio dos seus genitores. Naquele momento, pensar em uma melhoria nas condições de vida dos escravos por parte de alguns senhores e/ou famílias brancas, era pensar em tratálos melhor e garantir a ausência de crueldade, mas jamais retirá-los da condição de servos. Estava consagrada e enraizada a ideia do negro servir ao branco, em virtude da sua cor e da sua suposta inferioridade, sem falar na impossibilidade desta população oferecer obstáculos sérios à esta dominação30. Diante deste cenário da colonização, velado em tantos relatos históricos, nota-se a delimitação de diferenças entre conquistados e conquistadores, baseada, 26 MOURA, Clóvis. Brasil: raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983. p. 12. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 48. 28 MOURA, Clóvis. Op. cit., p. 12. 29 BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 28. 30 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 61. 27 23 primordialmente, na questão de raças. A dominação dos brancos sobre os índios e negros se fazia natural, conforme lembra Quijano: Em primeiro lugar, as diferenças entre conquistadores e conquistados codificaram-se na ideia de raça, ou seja, em uma suposta estrutura biológica diferente, que localizava uns em situação natural de inferioridade em relação aos outros (...) na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades (índio, mestiço e negro) foram associadas às hierarquias, lugares e papeis sociais correspondentes a cada um e interpretadas como determinantes destas e, 31 portanto, do padrão de dominação colonial que se impunha. Foi neste cenário de escravidão e quase desaparecimento da cultura indígena que o Brasil caminhou desde a sua descoberta e por todo o período da colonização. A mão de obra escrava era empregada para o desenvolvimento deste território e, via de consequência, do Império, por meio da exploração e investimentos em áreas rurais. Ainda no Século XVI, a Administração da colônia era exercida por uma Monarquia, enquanto que a burguesia não subjugava ou aniquilava a nobreza, se incorporando a ela e aderindo à sua consciência social.32 O maior detentor de poder era o Rei que, desde o Século XIV, havia adquirido o poder supremo de comando. No Século XVII, todavia, algumas transformações começam a ser sentidas com maior vitalidade na Monarquia estabelecida no território brasileiro. A presença do comerciante ocupa o centro do palco, reforçando-se no início deste Século, quando há a venda de cargos públicos, o que permite à burguesia acotovelar a aristocracia.33 Percebe-se naquele contexto notável desenvolvimento de aspectos comerciais e bancários, o que desencadeou reformas e modificações intensas na estrutura da colônia. Assim, embora presentes as raízes rurais do desenvolvimento da colonização ibérica, o cenário inclinava-se também para o aspecto negocial, sendo que entre muitos disseminou-se a crença de que as reformas políticas eram o caminho que abriria portas para o progresso geral da nação34. 31 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LEHER, Roberto; SETÚBAL, Mariana. (Orgs.). Pensamento crítico e movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2005. p. 36-37. 32 FAORO, Raymundo. Op.cit., p. 176. 33 Ibidem, p. 208. 34 MAURO, José Eduardo Marques. Os primórdios do desenvolvimento econômico brasileiro: (1850/1930). In: PELAEZ, Carlos Manoel (Coord.). A moderna história econômica. Rio de Janeiro: Apec, 1976. p. 141. 24 A falência de alguns aspectos do colonialismo é lembrada por Mauro: No caso de um colonialismo eivado de vícios de origens, por exemplo, a colonização portuguesa no Brasil, esses obstáculos opuseram uma resistência considerável à difusão de forças de transformação da sociedade econômica. A colonização portuguesa no Brasil, mercantilista como as demais europeias, caracterizou-se por apresentar peculiaridades dentre as quais: a universalização no emprego do escravo nas mais variadas tarefas existentes no país, poucas oportunidades aos nacionais de exercerem o comércio, entraves continuados ao estabelecimento de manufaturas, a instalação de uma administração rotineira e burocrática, desídia completa com relação à instrução popular, média e superior, implantação de um 35 arcabouço social bastante primitivo. Com suas bases já fragilizadas, os padrões coloniais passaram a ser mais enfaticamente ameaçados após a migração forçada da família real portuguesa para o Brasil, em 1808.36 A fazenda rural, antes constituída como uma monocultura, passa a ter caráter de latifúndio, sendo que esta passagem do empresário exportador para o senhor de rendas coincide com a transmigração da corte.37 A partir destas transformações, inicia-se um movimento liberal, chamado por Bosi de liberalismo oligárquico brasileiro38 que pretendia reforçar a sua economia em face do regime monárquico até então estabelecido, fundamentado em ideais maiores de liberdade. No entanto, não parecia ser este liberalismo congruente, já que o discurso ou silêncio de todos, foi cúmplice do tráfico e da escravidão39. Talvez, porque não poderia este movimento atacar a rentabilidade da classe mais abastada, garantida, até então, pelo trabalho escravo, ainda que houvesse sinais e manifestações contrárias à prática da escravidão. Em que pese esta aparente cumplicidade, as inúmeras modificações pelas quais a sociedade passava culminaram na Lei Eusébio de Queiroz de 4 de setembro de 1850, por meio da qual se definiu a supressão do tráfico negreiro, um importante marco para abolição da escravidão. Contudo, embora o tráfico tivesse sido suspenso, a sua apologia ainda se fazia presente na boca daqueles que tinham sido obrigados a proibi-lo de vez.40 Apenas em meados de 1868 que este cenário começou a ser modificado, pela implantação de um novo liberalismo que pareceu ser o início da decadência do 35 Ibidem, p. 141. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 161. 37 FAORO, Raymundo. Op.cit., p. 246. 38 BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 208. 39 Ibidem, p. 217. 40 Ibid., p. 218. 36 25 Imperialismo.41 A ruína do Império, no entanto, não se deu por um golpe do Estado, mas pela força de uma “maré democrática”.42 Os especuladores, cientes do acúmulo de grandes fortunas pelos colonizadores, pretendiam então ganhar o apoio do povo, no sentido de prometer o desenvolvimento nacional e político, com a participação de todos no governo do país. Assim, o regime monárquico, vivendo à sombra do Poder Moderador, era condenado pelo manifesto republicano de 1870 como incompatível com a soberania nacional, que só poderia ser baseada na vontade popular.43 Os movimentos contrários à Monarquia e, por conseguinte, implicitamente contrários à escravidão em virtude de ser ela o motor propulsor desta última, se dimensionaram44 e a questão referente à ideologia racial acaba sendo agora observada. O Brasil negocial e mais liberal começava a tomar espaço do Brasil eminentemente rural e patriarcal, sendo que a difícil convivência destes dois universos distintos se fazia eloquente. Para os reformistas, o desafio social e ético que a sociedade teria de enfrentar era o de redimir um passado de abjeção, fazer justiça aos negros, dar-lhes liberdade a um curto prazo e integrá-los em uma democracia moderna.45 Deve-se ressaltar que a cultura patriarcal se deu sempre em vista do pátrio poder que os senhores da Monarquia possuíam, o que reforçava, de certa forma, a aceitável submissão de negros escravos. A própria família parecia estar relacionada a uma ideia de escravidão, já que o patriarcal agia, muitas vezes, com demasiada tirania com os membros de sua própria família. A família colonial era, quiçá, a maior representante de poder no Império. Contudo, a exigência da reformulação de parâmetros e pensamentos para acolher as iniciativas progressistas que se aproximavam era cada vez mais latente. Corroborando o enfrentamento destes dois extremos (poder rural oriundo da colonização ibérica e crescimento da vida comercial), Sérgio Buarque de Holanda: 41 Ibid., p. 222. FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 445. 43 CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p.11. 44 BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 225. 45 Ibidem, p. 234. 42 26 A presença de tais conflitos já parece denunciar a imaturidade do Brasil escravocata para transformações que lhe alterassem profundamente a fisionomia. Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o primeiro passo para a abolição de barreiras ao triunfo decisivo dos mercadores e especuladores urbanos, mas a obra começada em 1850 só se completará efetivamente em 1888. Durante esse intervalo de quarenta anos, as resistências hão de partir não só dos elementos mais abertamente retrógradas, representados pelo escravismo impenitente, mas também das forças que tendem à restauração de um equilíbrio ameaçado. Como esperar transformações profundas em um país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar? Enquanto perdurassem intatos e, apesar de tudo, poderosos os padrões econômicos e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida pelo braço escravo, as transformações mais ousadas teriam 46 de ser superficiais e artificiosas. O anseio por esta modificação originou, então, a transição entre o Império e a República, sendo que a abolição da escravatura em 1888 parece ser o grande marco da efetivação deste movimento. Os negros foram libertos e envoltos pela disseminação de ideais de igualdade e cidadania apresentados pelos reformadores. É de se afirmar, a colonização ibérica parece ter sido responsável pela miscigenação racial e étnica e por uma ousada mescla cultural na busca por maiores riquezas. Entretanto, foi concomitantemente responsável pela marginalização de grupos e distinção de sujeitos em decorrência da cor da sua pele ou status social, hoje ainda presentes em terras brasileiras47. Ainda que não tivesse àquele tempo a ideia de preconceito racial propriamente dito, conforme alguns entendimentos existentes48, a ideia de inferiorização do negro já se fazia evidente, pelas próprias condições a que eram submetidos.49 46 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., p. 78. Segundo Petrônio Domingues, o modelo de “transição” ocultava uma campanha ideológica empreendida pela elite agrária paulista do século XIX, que visava legitimar a exclusão social do negro. A suposta escassez de mão-de-obra para a lavoura cafeeira em expansão, sobretudo, após o fim do trafico negreiro e da aprovação das consecutivas leis que acenavam para a abolição, e a suposta necessidade da entrada dos imigrantes brancos europeus para suprir tal escassez, não pode ser dissociada da compreensão do projeto de substituição étnica da força de trabalho. DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e o branqueamento em São Paulo no pósabolição. São Paulo: SENAC São Paulo, 2004. p. 88. 48 Cf. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 7. 49 Nesse particular Octávio Ianni ensina que “mesmo depois da Abolição da Escravatura, ocorrida em 1888, as empresas continuaram a empregar preferencialmente os imigrantes e seus descendentes. Muitas vezes, os empresários ou proprietários de oficinas são co-nacionais dos empregados que selecionam. Os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da prosperidade geral, bem como de seus proventos políticos, porque não tinham condições para entrar nesse jogo e sustentar as suas regras. Em consequência, viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela e através dela. Constituíram uma congérie social, dispersa pelos bairros, e só partilhavam em comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria. Nessa situação, agravou-se, em lugar de corrigir-se, o estado de anomia social transplantado do cativeiro. A experiência social diversa, os horizontes culturais diferentes colocaram os negros e mulatos em desvantagem em face dos 47 27 Em 1889, com a proclamação da República, sensíveis transformações de ordem econômica, social e cultural atingiram o Brasil, causando grandes modificações e exaltação na sociedade. A República surge com uma série de propostas democratizantes50 e sociais. Esta nova roupagem do Estado deu esperanças para parte da população, o que, inclusive, foi decisivo para o apoio de distintas camadas sociais nesta transição de regimes51. Segundo Carvalho, O movimento republicano era constituído de uma frente ampla de interesses, que abrangia escravocratas e abolicionistas, militares e civis, fazendeiros, estudantes, profissionais liberais, pequenos comerciantes. A 52 ideia de povo, de pátria, tinha o mérito de unir a todos, sem embaraços. Em que pese esta diversidade de apoio, há de se registrar que a maior parte da população demonstrava uma apatia política no momento da proclamação da República, já que, embora houvesse o apoio de grupos conforme acima delimitado, não havia participação do povo nos negócios públicos, restando este assunto apenas às classes dominantes.53 Por este fato, há registros da frase de Aristides Lobo no sentido de que “O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significa. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada. Mas o que fazer?”54. Assim, a começar pela sua proclamação meramente assistida e não entendida pelo povo, o que se viu após a Proclamação da República foi diametralmente oposto às ideologias até então disseminadas. Para Queiroz, a República continuou mergulhada no mais inconsequente utopismo político, não evoluindo para nenhuma forma definida de organização.55 A transição monárquico-republicana, com o novo regime a se forjar dos escombros dos antigos, não seguiu um curso eufórico que lhe era predito.56 O sistema republicano era demasiadamente rígido e a ideia de cidadania se fazia imigrantes. Em consequência, a estrutura do operariado incipiente constitui-se permeado pelo preconceito de cor e o etnocentrismo”. Cf. IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 44. 50 CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 46. 51 Ibidem. p. 64. 52 Ibid., p. 48. 53 Ibid., p. 68. 54 FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 487. 55 QUEIRÓZ, Paulo Edmur de Souza. Op. cit., p. 68. 56 FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 515. 28 restrita, o que culminou no esvaziamento do encanto inicial com a República, dando origem à decepção e ao desânimo.57 Sobre as concepções de cidadania no início da República, José Murilo de Carvalho lembra que No inicio da República nasceram ou se desenvolveram várias concepções de cidadania, nem sempre compatíveis entre si. Se a mudança de regime político despertava em vários setores da população a expectativa de expansão dos direitos políticos, de redefiniçao de seu papel na sociedade politica, razões ideológicas e as próprias condições sociais do país, fizeram com que as expectativas se orientassem em direções distintas e afinal se 58 frustrassem. Os republicanos mais enfáticos que buscavam os ideais da liberdade e igualdade social, muitos deles intelectuais negros abolicionistas como José Patrocínio, no Rio de Janeiro, Manoel Querino, em Salvador, Astolfo Marques, em São Luis, Luis Gama, em São Paulo59, frustraram-se com os rumos tomados pela República em seus primeiros anos, já que era ela marcada pelo militarismo e ações positivistas. A trajetória autoritária da República buscava, por meio de seus ideias iluministas, domesticar à força a plebe urbana e rural. Doutro lado, importante destacar ainda que, a passividade do momento da transição monárquica-republicana não perdurou por muito tempo, posto que alguns anos mais tarde a força das irresignação da população diante de tantos obstáculos à democratização se fez valer por meio de inúmeras revoltas, tal como ocorreu com a Revolta da Vacina. Esta revolta, emblemática na época da República Velha, embora tenha tido como pano de fundo a obrigatoriedade da vacina determinada pelo governo em meados de 1903, parece ter sido motivada, em verdade, por conceitos morais da população que não admitia a entrada do governo em suas casas para desrespeitar a virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar.60 Daí já se percebe que os revoltosos demonstravam, em verdade, irritação com a invasão do governo em suas casas; com a invasão do público no privado. Passou-se a perceber, então, que a República, na realidade, contrariava todos os princípios os quais defendiam a princípio, já que não abria espaço para a opinião 57 CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p.56. Ibidem, p. 64. 59 FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 515. 60 CARVALHO, José Murilo. Op. cit., p. 136. 58 29 pública e nem participação legítima do povo e tampouco abria espaço para a liberdade cívica.61 Entretanto, não obstante as manifestações sociais, as novas elites se empenhavam em reduzir a complexa realidade social brasileira, singularizada pelas mazelas herdadas do colonialismo e da escravidão.62 A elite formada por intelectuais advindos, principalmente, da oligarquia cafeeira, utilizou as ideologias republicanas para moldar uma (re) construção nacional da forma que compreendiam correta, com consequente reurbanização e substituição da mão de obra negra e mestiça por meio do incentivo da imigração de camponeses europeus. Isso porque, em que pesem os ideais republicanos inicialmente disseminados, após a abolição da escravidão, o negro foi atirado compulsoriamente às grandes cidades em formação, em busca de trabalho. No entanto, o grupo migratório estrangeiro, já entrava maciçamente para excluí-lo deste sistema que se dinamizava.63 Acerca da insistente inferiorização dos negros na época da República, Moura afirma: E aquele elemento humano que, durante quase quatro séculos foi o único trabalhador da sociedade brasileira, passou a ser considerado preguiçoso, ocioso, de má índole para o trabalho. O migrante estrangeiro, por outro lado, vinha como sendo o povoador ideal, superior, capaz de injetar os 64 valores da poupança e do labor perseverante que o negro não possuía. Neste sentido, a formação da República e, por conseguinte, o início de um capitalismo dominante das elites, fez com que os antigos escravos, agora como negros livres, fossem abandonados à periferia da sociedade, mantendo a sua marginalização e as condições subversivas de vida, obrigando-os ao rebaixamento para trabalhos que ofereciam salários irrisórios e condições degradantes de vida. Diante deste delineamento histórico, percebe-se, então, que a abolição ocorreu sem qualquer garantia de inserção do negro no trabalho livre, o que o manteve próximo à antiga fazenda. Nas cidades, a escassez do trabalho e “incorporação à escória do operariado” passaram a se mostrar como as únicas 61 Ibidem, p. 137. SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. Introdução à História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 7- 48. v. 3. p. 27. 63 MOURA, Clóvis. Op. cit., p. 11. 64 Ibidem, p. 12. 62 30 expectativas para os negros, o que culminou em uma grande parcela de negros na criminalidade. Só o vício e o crime ofereciam saídas realmente brilhantes ou sedutoras de carreiras rápidas, compensadoras e satisfatórias.65 A degradante vida nas senzalas e a exclusão social dos negros naquele momento foi meramente transplantada para as cidades. As dificuldades sociais contribuíram para o maior empobrecimento dos negros que, embora vivessem nas cidades, de forma teoricamente livre, não progrediram com ela. A abolição e a consequente proclamação da República trouxeram desilusão para os ex-escravos, agora negros libertos e ociosos, tornando-se, quiçá, um ônus por eles suportado. Na época da República Velha, que se deu até por volta de 1930, a situação marginalizada dos negros intensifica o chamado branqueamento da sociedade brasileira, sendo as desigualdades raciais reafirmadas em um novo espaço político e a capacidade dos negros enxergada como uma restrição decorrente das próprias diferenças de raças. A tese do branqueamento defendia a superioridade da raça branca e a busca pelo desaparecimento da raça negra, o que ocorreria por meio da miscigenação. Por esta tese, os povos mestiços ou mulatos seriam admissíveis, já que na mistura de raças predominaria a raça branca, tendo em vista ser ela superior, de forma que, com o passar do tempo, em uma trajetória ao ideal da raça branca, eliminar-se-ia a raça negra e garantir-se-ia o pleno desenvolvimento nacional. Inegável o preconceito que ali já imperava. Tadei retoma que o processo de mestiçagem como eliminação da raça negra surgiu já na época da colonização, que tinha como ideia disseminar o sangue e a cultura europeia, de modo a produzir uma nacionalidade brasileira que seria cada vez mais branca. Segundo ele, as pessoas nascidas nesse processo de mestiçagem (mestiços e mulatos) eram consideradas estando em um estágio intermediário entre o bom (europeu) e o mau (negros e indígenas). A mestiçagem teria sido utilizada como uma forma de impor a cultura branca como a ideal, em um processo de construção de uma identidade nacional.66 65 Sobre a marginalização dos negros e o seu caminho para a criminalidade, recomenda-se a leitura de FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965. v. 1. 66 TADEI, Emanuel. A mestiçagem enquanto um dispositivo de poder e a constituição de nossa identidade nacional. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v. 22, n. 4, p. 2-13, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932002000400002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 mai. 2013. 31 A marginalização da população negra durante a República parece, então, evidente, seja politicamente em decorrência das limitações da República (sufrágio e as outras formas de participação política); seja social e psicologicamente, em face das doutrinas do racismo científico e da “teoria do branqueamento”; seja ainda economicamente, devido às preferências em termos de emprego em favor dos imigrantes europeus67. Diante deste cenário, o negro encontrava-se livre fisicamente, entretanto mantinha-se escravo de uma configuração social que lhe mantinha na linha da marginalização e em completo estado de pobreza e carência, sendo comumente caracterizado como pertencente à vadiagem.68 O discurso do embraquecimento perdurou por toda a República Velha, embora muitas vezes velado, sendo que nos anos de 1920 e 1930 discutiam-se, inclusive, projetos de legislação que abordavam este assunto69. Hofbauer esclarece: No Congresso, debatiam-se não apenas formas de incentivo à imigração européia; foram também apresentados projetos que propunham a proibição da imigração de asiáticos e africanos. [...] Ainda no final do Estado Novo, Getúlio Vargas justificaria a assinatura de um Decreto-Lei (1945) que devia estimular a imigração européia com as seguintes palavras: ‘[...] a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características básicas mais desejáveis de sua 70 ascendência’. 67 ANDREWS, George Reid. O protesto político negro em São Paulo (1888-1988). Estudos AfroAsiáticos, n. 21, Rio de Janeiro, 1991. p. 32. 68 Neste sentido, Thomas Skidmore lembra que“(...) tornava-se evidente que quanto mais escura fosse a pele de um brasileiro, mais probabilidades ele teria de estar no limite inferior da escala socioeconômica, e isso de acordo com todos os indicadores – renda, ocupação, educação. Os jornalistas não tardaram em aderir, dando provas circunstanciais de um modelo de discriminação sutil mas indisfarçável nas relações sociais. Já não era possível afirmar que o Brasil escapara da discriminação racial, embora ela nunca tenha sido oficializada, desde o período colonial. O peso cada vez maior das evidências demonstrava justamente o contrário, mesmo sendo um tipo de discriminação muito mais complexo do que o existente na sociedade birracial americana. As novas conclusões levaram alguns cientistas sociais a atacar a 'mitologia' que predominava na elite brasileira a respeito das relações raciais em sua sociedade. Florestan Fernandes acusava seus compatriotas de 'ter o preconceito de não ter preconceito' e de se aferrar ao 'mito da democracia racial'. Ao acreditar que a cor da pele nunca fora barreira para a ascensão social e econômica dos não brancos pudesse ser atribuída a qualquer outra coisa além do relativo subdesenvolvimento da sociedade ou da falta de iniciativaindividual” SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro . (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 296. 69 O ideal do embraquecimento marca toda a história brasileira do século XX, tendo como auge a política nacional de promoção de imigração européia, que pressupunha que a solução para o problema racial do brasileiro ocorreria pelo ‘melhoramento’ da raça negra com a miscigenação e pelo crescimento gradual da população branca, oriundo da alta taxa de mortalidade entre os negros e dos incentivos estatais para a imigração e européia. SANTOS, João Paulo de Faria. Ações afirmativas e igualdade racial: a contribuição do direito na construção de um Brasil diverso. São Paulo: Loyola, 2005. p. 56 70 HOFBAUER, Andréas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Unesp, 2006. p. 213. 32 Esta ideia foi reforçada pela denominada frenologia71, consistente em ciência que apresenta a possibilidade de medição de caráter, características de personalidade e grau de criminalidade pela mensuração da análise do formato do crânio.72 A partir de 1930, no entanto, o discurso da diferença de raças e a inferiorização negra por termos biológicos começa a perder força, sendo que em meados de 1940 ganha espaço uma nova tese, denominada mais tarde como “democracia racial”73. Por meio desta, se elevaria a unidade nacional e valorizar-seia a cultura brasileira, incentivando a tolerância com negros e mulatos, diante de uma visão benevolente da escravidão74. A democracia racial, posteriormente entendida como um mito, oferecia, a priori, elementos que reduziam a importância de um caráter biológico e valorizava a cultura do povo brasileiro, a fim de fundir os grupos raciais existentes na formação de uma única nação, ainda que heterogênea. Entendia-se, então, por meio desta “democracia racial” pela inexistência de preconceitos em relação à raça, igualando, em termos, brancos e negros. Em virtude da predominância deste discurso, a questão racial deixa de ser enfocada nos debates políticos, no sentido de que a desigualdade passa a ser vista como apenas aquela decorrente da distribuição de renda.75 No entanto, esta suposta heterogeneidade escondia os preconceitos raciais que ainda se mantinham na sociedade, impedindo aos negros o acesso aos empregos de maior renda e importância social. Para Moura, 71 “Daí as avaliações das cabeças de negros, brancos e índios para se constatar que as dos africanos possuíam dimensões menores que as dos europeus e por isso eram inferiores intelectualmente.” SANTOS, G. A. dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Pallas, 2002. p. 59. 72 Neste sentido, ver BLACK, E. A guerra dos fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003. 73 Para maiores esclarecimentos ver FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998. 74 A ideia de uma “democracia racial” constituiu fator determinante na consolidação de um sentimento nacional brasileiro, até então inexistente no contexto fragmentado da República Velha, dominado pelas elites agroexportadoras. ZONINSEIN, J.; FERES JÚNIOR, J. Ação afirmativa e desenvolvimento. In: ZONINSEIN, J.; FERES JÚNIOR, J. Ação afirmativa e universidade: experiências nacionais comparadas. Brasília: UnB, 2006. p. 27. 75 JACCOUD, Luciana. Racismo e república: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Brasil. In: THEODORO, Mario. et. al. (Orgs.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008. p. 52. 33 A chamada democracia racial é ua ideologia através da qual se justifica o processo discriminatório contra o negro, jogando-se nos seus próprios ombros a responsabilidade da sua discriminação. O discurso liberal é, portanto, um mecanismo com o qual se justifica a existência do ghetto invisivel que barra a população negra, colocando-a naqueles espaços sociais altamente limitados, inferiorizados, e que um sistema secular de 76 compressão permite que seja por ele ocupado. É fato que a ideia de “democracia racial” por si só poderia ser utilizada enquanto instrumento para que os negros alcançassem a igualdade pretendida e a sua valorização dentro de um contexto social e político. Todavia, a sua utilização enquanto discurso para encobrir os preconceitos ainda efetivos acabou por gerar movimentos contrários a esta ideologia, principalmente a partir de 1980, por meio da resistência criada pelo Movimento Negro. Fernandes brilhantemente aborda a manipulação do mito da democracia racial, Portanto, as circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com que o mito da ‘democracia racial' surgisse e fosse manipulado como conexão dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes, comportamentos e ideais 'aristocráticos' da 'raça dominante'. Para que sucedesse o inverso, seria preciso que ele caisse nas mãos dos negros e dos mulatos; e que estes desfrutassem de autonomia social equivalente para explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins, como 77 um fator de democratização da riqueza, da cultura e do poder. Muitos são os debates e as teorias existentes acerca da “democracia racial”, algumas no sentido de ser ela um mito, outras no sentido de ser a ideologia necessária para a constituição da nação brasileira. No entanto, o que importa agora observar é que sob qualquer um dos pontos de vista, o preconceito racial persistiu, de forma que a mobilidade da população negra não foi, desde então, notada. A partir da década de 1940 e até os dias de hoje, a posição dos negros na sociedade se mantém a mesma, não havendo modificação considerável no aspecto social, político ou econômico. Ainda após a industrialização, as minorias raciais parecem ainda subordinadas à população branca, como um retrato de todo o passado escravocrata e marginalizado acima relatado. Alguns fatores poderiam ser apontados como motivação desta ausência de mobilidade dos negros. Poder-se-ia citar a estagnação econômica de regiões ou atividades onde a população negra está mais representada; o acesso a serviços de 76 77 MOURA, Clóvis. Op. cit., p. 11. FERNANDES, Florestan. Op. cit., p. 205. 34 baixa qualidade (especificamente relacionados à educação) e piores redes sociais e de trabalho devido à concentração dessa população em bairros dotados de menos recursos; as diferenças familiares relacionadas ao acúmulo de capital humano.78 Percebe-se, a partir dos relatos históricos aqui traçados, que houve uma inclusão tardia do negro na sociedade e, quando esta ocorreu, não se deu de forma plena e satisfatória. O racismo ganhou novos traços após a abolição e, passando por discriminações em virtude de supostas diferenças biológicas e inferiorização científica até a ideia de democracia racial, parece estar presente em cada estágio social alcançado pelo negro. É o que Hasenbalg chama de “ciclo cumulativo de desvantagens”79, pois, quando vencida uma etapa de preconceito, novos fatores de discriminação surgem para o negro. Assim, além do histórico que o negro carrega consigo, os preconceitos se multiplicam em cada nível social que atinge, dificultando constantemente a sua inserção na sociedade e a efetivação de seus direitos sociais. A população negra parece, então, estar ainda em um estado de inferioridade, senão absoluto, altamente considerável. O preconceito racial é presente na dinâmica social, mormente se considerada a proximidade histórica dos relatos de preconceito e rejeição desnudada que sofreram.80 Lado outro, em um discurso inautêntico, é propagada a ideia de que este preconceito estaria ligado apenas e tão somente à desigualdade social, isto é, seria dirigido aos pobres e não aos negros81. Revela-se neste sentido o mito da democracia racial. O mito da democracia racial torna visível a necessidade de a sociedade se auto afirmar enquanto não preconceituosa, com a falsa ideia de, assim, afastar qualquer estereótipo ou paradigma existente em relação à raça e à cor. Se desvela como uma tentativa inócua de não enfrentar um problema que perpassa o histórico mais recente da sociedade brasileira e, por conseguinte, a formação do modelo discriminatório velado nos dias de hoje. 78 JACCOUD, Luciana. Op. cit., p. 55. HASENBALG, Carlos Alfredo. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 80 O histórico da escravidão ainda “afeta negativamente a vida, a trajetória e inserção social dos descendentes de africanos em nosso país”. MUNANGA, K.; GOMES, N. L. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006. p. 17. 81 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raça e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 67. 79 35 Batisde e Fernandes assim trabalham a ideia do receio em se assumir o preconceito: Nós brasileiros, dizia-nos um branco, temos preconceito de não ter preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto [o preconceito racial] está arraigado no nosso meio social’. Muitas respostas negativas [que dizem não haver preconceito racial no Brasil] explicam-se por esse preconceito de ausência de preconceito, por esta fidelidade do 82 Brasil ao seu ideal de democracia racial. É difícil, no entanto, negar o fato de que ainda hoje vivenciamos situações rotineiras que demonstram um preconceito velado e uma ideia subentendida sobre a exclusão de grupos da sociedade, tais como negros, pobres, índios, etc. As próprias convenções sociais, decorrentes da tradição considerada, escondem uma discriminação persistente, a qual ainda reflete nas condições sociais dos indivíduos marginalizados. Basta uma rápida análise em relação aos ocupantes de cargos dotados de poder, bem como das universidades brasileiras e do mercado de trabalho no que concerne aos profissionais cuja formação dependa do ensino superior, para se verificar que a predominância em todos eles é de brancos que, em regra, são advindos de uma condição financeira mais estável. Não seria sequer necessário que se fizesse pesquisa estatística para esta constatação, embora esta exista, pois uma observação geral da sociedade e de suas camadas é suficiente para verificar os estereótipos criados diante de grupos excluídos. Ninguém se assusta quando se depara nas ruas com um mendigo negro, que não possui condições de se alimentar ou de se vestir, fazendo valer o que se pode conceber como uma invisibilidade social diante daquele sujeito. Entretanto, se este mendigo é de pele branca, loiro, com os olhos claros e advindo de uma família de classe social média, é motivo para repercussão em toda a mídia nacional e para sua imediata recondução para o meio que, supostamente, lhe é adequado. A dignidade de um seria mais importante que a do outro pela cor de sua pele ou condição social? Esta pergunta parece simplesmente ignorada pela sociedade. Nas novelas, nos filmes e nos teatros, a figura responsável pelo serviço doméstico, muitas vezes designada como "criada", é quase sempre uma pessoa negra e de origem humilde, enquanto doutro lado encontram-se os patrões brancos 82 BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Unesco-Anhembi, 1955. p. 123. 36 e bem sucedidos, e nada há de se estranhar. A sociedade parece já ter absorvido estes estereótipos, sem nem mesmo perceber a imperiosidade de se derrubá-los. Visualiza-se ainda que a questão da negritude está intimamente ligada à pobreza. É fato que a partir da Constituição Federal de 1988, a qual se reveste de um caráter promotor, conforme se verá adiante, instituiu-se como objetivo fundamental da República a erradicação de desigualdades sociais e regionais, bem como a vedação do preconceito e discriminação em virtude de raça, cor, sexo, religião, etc, retomando a discussão referente ao preconceito racial, até então velada e encoberta. Com base em tais premissas e no caráter dirigente da norma constitucional, visando efetivar os direitos sociais de forma equalizada, surgiram ações governamentais com um objetivo aparentemente compensatório do histórico de discriminação sofrido pelos grupos excluídos. A luta pela garantia do exercício da cidadania e da efetividade dos direitos sociais pelo negro ganha agora uma nova aliada, conhecida como “ação afirmativa” por meio da qual se efetivou, como será mais aprofundado adiante, o sistema de cotas para garantir o acesso de negros e pobres ao ensino superior brasileiro. A discussão proposta, focando-se na questão “racial” é sensivelmente relevante, especialmente no Brasil que possui a segunda maior população negra do mundo, existindo cerca de 49,5% de negros na população, os quais encontram-se, invariavelmente, sofrendo por problemas sociais dos mais graves.83 Neste sentido e conforme já adiantado, a (re) construção histórica se faz necessária a fim de se buscar a melhor interpretação das medidas atualmente adotadas para enfrentamento das questões de desigualdade e preconceito racial e/ou social. O cerne do assunto envolve, então, a legitimidade de programas de cotas e o seu potencial para a garantia da efetividade do direito social à educaçao e do direito fundamental à igualdade aos grupos historicamente excluídos. O entendimento sobre programas de cotas carece de uma verificação aprofundada da (in)justiça social cultivada em relação àqueles ora beneficiados. Não se pode abandonar, neste diapasão, a perspectiva moral na apreciação do Direito, a 83 IPEA. Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição. Brasília, 13 de maio de 2008. p. 1 16. Disponível em: < http://www.afrobras.org.br/pesquisas/pesquisa_ipea_desigualdades_raciais.pdf>. Acesso em: 18 de agosto de 2013. 37 qual deve ser fundida enquanto moral coletiva com a vida política dos cidadãos: é basicamente o que Dworkin chama de integridade.84 Assim, com base na perspectiva da hermenêutica filosófica de Gadamer, para que a questão referente às cotas seja melhor compreendida, é necessária a realização de uma reflexão sobre o ser que ocupa o texto da lei, observado-se toda a tradição e a história efeitual que lhe acompanha. Neste sentido, busca-se ir além do texto, compreendendo o “ser” que reside na legislação entificada, e buscando a essência da problemática. Em verdade, conhece-se a tensão existente entre texto e norma, no sentido de que norma é o sentido que se dá ao texto, enquanto que à medida que o texto é ente, a norma é o seu ser. Significa, pois, que a explicação do texto como coisa, é como ele deve ser entendido. Nos ensinamentos de Rafael Lazarotto Simioni: Na dimensão hermenêutica encontramos o ser dos entes objetificados na dimensão apofântica. Para a decisão jurídica ter acesso à dimensão hermenêutica, ela precisa perguntar e refletir sobre o sentido da problemática do caso concreto. Ela precisa deixar florecer a intuitividade hermenêutica do mundo prático sobre o problema concreto, mas ao mesmo tempo estar atenta às ideologias e tradições inautênticas que interferem na 85 compreensão da problemática do caso. Por isso, no anseio de se encontrar o melhor aspecto hermenêutico do assunto em comento, não se pode permitir uma análise sob um panorama unilateral e desprovido de qualquer apreciação do histórico e da tradição da sociedade na qual ele é inserido. A redução hermenêutica à opinião do autor é tão inadequada como nos acontecimentos históricos, a redução à intenção dos que atuam neles.86 A questão referente ao preconceito racial exige uma análise mais zelosa de sua problemática. Deve-se, além disso, conscientizar-se que a interpretação que agora é feita não é impassível de modificação, posto que pode se adequar a outras situações em outros momentos históricos. Conforme Gadamer, a compreensão é sempre passível 84 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 213. 85 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão para além do constitucionalismo e democracia. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MÔNACO, Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (Orgs.). Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 157. 86 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Rio de Janeiro: Vozes, 2004. p. 549. 38 de modificação, de forma que as opiniões prévias e os pré-juízos inerentes à ideia de “ser” não devem se caracterizar como arbitrários, sob pena de impossibilitar o alcance das várias probabilidades de interpretação. É preciso considerar para a construcao de um horizonte autêntico, o fato de que, historicamente, o Brasil é marcado por um modelo de poder que lida muito bem com a dinâmica da opressão e desigualdades existentes em seu âmbito, tais como aquelas enfrentadas pelas classes excluidas, a exemplo de negros, pobres, marginalizados, entre outros87. Como se pode desconhecer a dificuldade daqueles advindos do ensino de base público no ingresso de universidades públicas federais, em vista da divergência entre qualidade de ensino? Como ignorar que outros fatores, tais como a vida no fio da navalha daqueles que estão abaixo da linha da miséria, lutando diariamente contra a fome e saúde precária, influenciam diretamente no desenvolvimento das capacidades do indivíduo? Como esquecer que os negros, pardos e índios, sofrem ainda hoje discriminação e parecem encontrar obstáculos muito maiores em seu caminho para o desenvolvimento profissional?88 Muito além disso, o próprio modelo liberal se encaixa com perfeição nos desígnios dos donos do poder, conforme será falado adiante, transferindo insistentemente a culpa do insucesso do indíviduo a ele próprio, no afã de se absolver o sistema. Na ótica de Gadamer, as perguntas permitem vislumbrar aquilo que ficou suspenso. Deve-se, antes de tudo, compreender os questionamentos e provar as 87 As desigualdades persistentes na sociedade brasileira podem ser exemplificadas pela discussão que circunscreveu a PEC das domésticas. Diante da novação no ordenamento jurídico que passou a abranger mais direitos aos trabalhadores domésticos, inúmeros questionamentos sobre o risco destas medidas aumentar o desemprego e causar prejuízos à sociedade surgiram, como lembra Lenio Streck, no seu artigo “A PEC das domésticas e a saudade dos bons tempos” na Coluna da CONJUR. Em seus dizeres: “A revolta contra o fim da desproteção jurídica do trabalhador doméstico (e a consequente reação à Emenda Constitucional) é o sintoma de uma sociedade que ainda não conseguiu virar uma importante página da história: a que revela a existência de um estrato de pessoas juridicamente inferiorizadas”. STRECK, Lenio Luiz. A PEC das domésticas e a saudade dos “bons tempos”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pecdomesticas-saudade-bons-tempos>. Acesso em: 17 mai. 2013. 88 Cf. Vera Mari Candau, “No momento atual é possível constatar que mudaram as formas, as linguagens e algumas práticas sociais frentes às questões relacionadas à raça, ao gênero e a classe, porém, a situação de desvantagem em que os negros vivem mede-se pelas disparidades multidimensionais de que são vitimas e que se atualizam através do encobrimento de dissimulação”. In: CANDAU, Vera Maria et al. Somos todos iguais? Escola, discriminação e educação em direitos humanos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 23. 39 variadas possibilidades de sentido. Indica que “aquele que quer pensar tem que perguntar”.89 Seria possível, então, encontrar uma única resposta correta para um caso concreto, aqui revelado como o da latente discriminação sofrida pelos negros e da legitimidade de programas governamentais para a redução daquela?90 No nível da dimensão hermenêutica e não da sintaxe, esta busca se dá por um sentido mais autêntico e mais originário, visando a melhor solução jurídica. Hoje, neste momento, existe uma melhor resposta, que, todavia, pode não ser a melhor resposta amanhã. Feitas estas considerações e diante dos questionamentos apresentados como forma de suscitar o debate aqui pretendido, torna-se importante a apreciação do que seja uma ação afirmativa. Apenas assim, será possível, em vista do histórico relatado, encontrar um horizonte autêntico que sustente a (in)aplicação e (in)efetividade deste instrumento, no cenário de um estado social e promotor. 1.2. Breves linhas sobre as ações afirmativas As ações afirmativas, assim entendidas como aquelas medidas que visam minimizar ou erradicar a desigualdade e discriminação sofrida por grupos tradicionalmente excluídos, funcionam como um instrumento hábil a garantir a equalização de oportunidades especialmente em relação à efetividade de direitos sociais. Corroborando o conceito acima, Marcelo Campos Galuppo: As ações afirmativas podem ser definidas como medidas públicas ou privadas, coercitivas ou voluntárias, implementadas com vista a promoção da inclusão social, jurídica e econômica de indivíduos ou grupos 91 sociais/étnicos tradicionalmente discriminados por uma sociedade . 89 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica Op. cit., p. 551. 90 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luis Carlos Borges. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 91 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença. Estado democrático de direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p.17. 40 Assim, a partir do histórico apresentado, denota-se que parece haver o enraizamento de uma cultura, na qual, embora exista uma aparente aceitação da heterogeneidade do povo, vários grupos étnicos e sociais são mantidos em uma área de discriminação e desigualdade, onde há evidente restrição de oportunidades e direitos, fazendo-se mister a atuação, principalmente estatal, para a minimização de seus efeitos. Esta área de discriminação é formada em decorrência de diversos fatores de segregação que se associam, principalmente, à pobreza, das mais distintas formas possíveis, fundindo vários comportamentos excludentes e confundindo uma série de ideologias liberais burguesas. Neste contexo, pode-se também vislumbrar a questão das formas díspares de poder, as quais são heterogêneas e se encontram em constante transformação, isto é, inexiste uma emanação homogênea de poder. Neste viés, o poder exercido, majoritariamente, por indivíduos considerados intelectuais e que contribui para a exclusão e segregação social, não é algo unitário, podendo, ao revés, ser considerado como prática social, construída historicamente. O discurso proferido pelos detentores do poder, a serviço do capitalismo, traduziu-se por muito tempo (e talvez se mantenha até a atualidade), como verdades, as quais persuadiam a sociedade, distorcendo as mencionadas ideologias liberais. Segregase a sociedade entre aqueles que têm o poder, manifestado de várias formas, e aqueles que não o possuem.92 Vale lembrar, neste diapasão, a ideia propagada de que o preconceito existente no Brasil é social e não racial (O “mito” da democracia racial). Em verdade, parece que este se reveste da característica de um discurso de poder para que o foco do problema seja desviado.93 92 Para maior esclarecimento do assunto, oportuno lembrar que Michel Foucault aborda na obra “Microfísica do Poder” a heterogeneidade do poder, mencionando como manifestação deste e consequente segregação, instituições estatais que foram criadas com o objetivo de excluir uma parcela da sociedade, tais como os hospitais e prisões. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2004. 93 O discurso de poder, baseado no sucesso dos excluídos por “mérito próprio” é propagado constantemente como uma forma de transferir a responsabilidade ao indivíduo, independentemente de sua história, sexo, cor, raça ou classe social. Recentemente, a Revista “Veja”, edição de 18 de outubro de 2012, noticiou em sua capa a história de Joaquim Barbosa Gomes com um menino negro e pobre, cuja mãe “também nasceu analfabeta” e que hoje se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal. Estaria ai o retrato do sucesso pessoal e da inexistência de preconceito? Sem aprofundar em todas as críticas que tal publicação merece, deve-se ressaltar apenas que as exceções não podem ser tidas como regras, sob pena de velar a realidade existente e permitir a circularidade de uma compreensão baseada em um horizonte inautêntico. A mídia, em geral, especialmente a mídia voltada para interesses específicos, parece tentar sustentar a inexistência do racismo, do preconceito e das desigualdades, como forma, talvez, de impedir que providências concretas sejam efetivamente 41 Diante deste cenário e buscando evitar a exclusão em virtude de discursos de poder, procura-se minimizar a marginalização de alguns grupos, a qual é decorrente de estereótipos negativos criados durante a composição da sociedade. Para tanto, se aposta na implementação de ações afirmativas, cuja finalidade precípua é buscar a erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as desigualdades socias e regionais, tal qual previsto no texto constitucional. Neste sentido, oportuno salientar o importante papel do Estado Democrático de Direito na consecução destes objetivos. Streck afirma, A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo qe se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que um classificação de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das confições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernindade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentasi. A essa noção de Estado se acopla o conteudo das Constituições, atraves do ideal de vida consubstanciado nos princípios que apontam para uma mudança no status quo da sociedade. Por isso, como já referido anteriormente, no Estado Democrático de Direito a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucionl, entendido no seu todo 94 dirigente-principiológico. Assim, busca-se equalizar oportunidades entre aqueles historicamente desfavorecidos e os grupos que, pela sua composição ou pelo seu lugar determinado pelo chão histórico retro definido, são dominantes. Se constituindo enquanto políticas sociais, as ações afirmativas visam equalizar a igualdade de oportunidades entre os indivíduos, almejando a efetividade da chamada igualdade material, a qual será mais adiante aprofundada. Não são programas que garantem a concessão de direitos de forma privilegiada, mas tão somente igualam a oportunidade de acesso de todos aos direitos sociais. Poder-se-ia, inclusive, afirmar que cuidam as ações afirmativas de um instrumento que efetiva uma justiça compensatória. Esta ideia parte do pressusposto tomadas. É um discurso de poder que fecha os olhos da sociedade aos problemas enfrentados por ela própria. Daí a dificuldade em se fazer compreender programas como o referente às cotas, já que a visão de muitos está embaçada em virtude do véu de falácias e distorções proporcionado por tal compreensão inautêntica. 94 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 53-54. 42 que tal instrumento busca a reparação de uma “dívida social” existente em virtude de um histórico de abusos e desproporcionalidades, os quais culminaram na estratificação da sociedade. Vale ainda mencionar que a sua observância pode resultar também na diversificação de indivíduos em meios que, tradicionalmente, são dominados por elites, cujos formadores, em regra, advém de classe social privilegiada, composta em sua grande maioria por homens brancos. A mais visível segregação no que concerne aos meios sociais, se encontra no meio acadêmico e no meio profissional, mormente no que concerne às profissões intelectuais, bem como aquelas que exigem formação superior específica. Ainda em relação à exclusão nos meios acadêmicos e profissionais, poderse-ia suscitar a ideia norte americana de valorização do self-made man, que retrata um indivíduo que alcança o seu sucesso pessoal e/ou profissinal por meio de seu mérito próprio, isto é, através unicamente de seus esforços. Parece, então, que diante desta questão, aqueles excluídos das universidades ou de bons empregos, assim o estão, pois não tiveram competência, capacidade ou vontade suficiente para alcançar estes níveis, merecendo, via de consequência, a segregação ou exclusão sofrida. Entretanto, percebe-se que se trata de um vestígio do liberalismo que transfere ao indivíduo as responsabilidades por aquilo que poderia ser considerado como suas próprias falhas, eximindo o Estado e a sociedade de qualquer encargo em relação ao insucesso dele. É um discurso que, em sua essência, acaba por neutralizar a desigualdade e, consequentemente, reforça-la, sendo que enquanto um discurso de ordem liberal, este ratifica as falhas do sistema pela existência de casos fortuitos que, todavia, não comprovam a regra na sua plenitude. Está ótica liberal, todavia, parece não ser a mais ajustada, posto que é preciso que se tenha em mente que os indivíduos se inserem em grupos diversificados, de origens diferentes e, portanto, com condições variadas de alcance ao sucesso, não bastando que se garanta apenas e tão somente um caminho livre para o esforço. Mesmo porque, questões de saúde e educação, por exemplo, em um mundo altamente competitivo, influenciam sensivelmente a busca pelo sucesso, sendo que aqueles que estão garantidos nestes aspectos possuem imensa vantagem em relação àqueles que encontram dificuldades nas questões basilares de sobrevivência. 43 As questões relativas à igualdade serão mais aprofundadas no capítulo 3 do presente trabalho, todavia, necessário destacar desde já que o discurso meritório em prol de uma suposta isonomia dos indivíduos é extremamente danoso para a própria sociedade. Ele se reveste de uma veracidade que não existe e vela a discriminação e a desigualdade, tornando ainda mais difícil o combate a elas. A nocividade deste discurso é tamanha que muitas vezes ele é interiorizado pelas próprias classes excluídas que acabam por aceitar, sem assim assumir, uma posição de inferioridade.95 Ao se afastar, todavia, deste panorama para melhor compreendê-lo, é de fácil visualização que estas dificuldades geradas pela diferença na colocação do indivíduo na sociedade impedem que o caminho a ser traçado pelo mérito próprio seja o mesmo para todos. É possível até mesmo realizar um contraponto, abordando a teoria marxista que já mencionava que “os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham”.96 Se assim ocorre, o esforço individual não se configura como o caminho para o êxito. Diante deste cenário, torna-se imprescindível que o Estado garanta iguais oportunidades e condições de acesso a direitos sociais, a fim de equalizar as condições de competitividade dos indivíduos. Apenas desta forma, todos poderão desenvolver suas reais capacidades e então conquistar suas vitórias, em decorrência de seus méritos.97 Eis aqui a formula do nosso self made man, quando bem aplicada. O individualismo valorizado e estimulado pelo capitalismo, decorrente dos fundamentos burgueses, não parece se encaixar no teor do que atualmente se concebe como Estado Democrático de Direito, mormente se observado que a lógica burguesa é a da exploração do homem pelo homem. A proposta do Estado Social, 95 [...] Boa parte da população negra brasileira foi e é doutrinada, a frequentemente, se sentir culpada da violência da qual é, na verdade, vítima. “Se não estudam mais, é porque não querem”, “se precisam trabalhar, então ai é que deveriam estudar mais” e colocados numa posição de inferioridade e de subordinação: as frases são suficientemente eloqüentes e ainda, infelizmente podemos escutálas até mesmo da própria população negra, já que sabemos que uma grande parte das mulheres e dos homens negros (adultos ou crianças) no Brasil ainda incorpora este papel/lugar da inferioridade como sendo um componente quase “natural” e inerente à raça negra, fazendo assim se perpetuar a possibilidade do exercício arbitrário dessa mesma violência e dominação. ALMEIDA, Marilise Miriam de Matos. Ações Afirmativas: dinâmicas e dilemas teóricos entre a redistribuição e o reconhecimento. In: II Seminário Nacional – Movimentos sociais, participação e democracia. Anais. Florianópolis: UFSC, 2007. p. 465-476. 96 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 54. 97 Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de RAWLS, John. Justiça com equidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 44 em decorrência da lógica do Estado Democrático, vem da solidariedade, última das professias da Revolução Francesa.98 É o individualismo considerado como um instrumento que gera competições no seio da sociedade e um comportamento egoísta dos indivíduos, o que poderia sustentar até mesmo a própria necessidade da desigualdade social, já que a vitória de uns, dependeria da derrota de outros. Assim, detentoras de um importante papel no cenário brasileiro pós Constituição de 1988, as ações afirmativas são também adotadas em diversos outros países, tendo sido inicialmente discutidas na Índia, onde muitas desigualdades ainda prevalecem. O ministro Ricardo Lewandowski, relator da ADPF 186-DF, fez em seu voto menção ao surgimento das ações afirmativas naquele país, haja vista tratar-se de um local com rídiga estratificação e desigualdade social.99 O campo de discussão referente às ações afirmativas foi posteriormente ampliado quando estas passaram a fazer parte do direito norte-americano, sendo aplicadas com a finalidade de reduzir algumas discriminações ali predominantes. Empregou-se a expressão “ação afirmativa” pela primeira vez, na Executive Order nº. 10.925, editada pelo Presidente John F. Kennedy, na oportunidade da criação do Presidente’s Comitee on Equal Employment Opportunity.100 Ainda em relação à sociedade norte-americana, em que pese o banimento formal dos atos discriminatórios, decorrente da Civil Rights Act de 02 de julho de 1964 que implementou normas que visavam a coibição de discriminação em setores como educação, emprego, habitação, entre outros, as mudanças sociais pretendidas pelas minorias não foram efetivamente percebidas, sendo seus efeitos discretos e insuficientes. Mais tarde, a Executive Order nº. 11.246, editada pelo Presidente Lyndon B. Johnson (1908-1973), em 25 de setembro de 1965, estabeleceu medidas efetivas de 98 Para mais esclarecimentos, recomenda-se a leitura de STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 99 Referindo-se ao quadro indiano de desigualdade social, Lewandoksi afirma que “Com o intuito de reverter esse quadro, politicamente constrangedor e responsável pela eclosão de tensões sociais desagregadoras e que se notabilizou pela existência de uma casta “párias” ou “intocáveis” proeminentes lideranças políticas indianas do século passado, entre as quais o patrono da independência do país, Mahatma Gandhi, lograram aprovar, em 1935, o conhecido Government of India Act.” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013.) 100 MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.p. 88. 45 combate à discriminação étnica, através do recrutamento, contratação, promoção, treinamento e outras formas.101 Assim, buscando a efetividade do combate à discriminação, outrora não alcançada, em 1972, o Presidente Nixon, por meio do plano Filadélfia, implementou legalmente a possibilidade de criação das denominadas “discriminações positivas”, tolerando a aceitação de fatores como cor, sexo e raça, desde que fossem para beneficiar aqueles que, historicamente, forma prejudicados pelas restrições de oportunidade. Mais adiante, o movimento das ações afirmativas se manteve nos Estados Unidos, Mais recentemente, em 1997, Martin Luther King III, anunciou a criação da "Americans United for Affimative Action" (AUAA), organização sediada em Atlanta visando a manutenção e ampliação das ações afirmativas como medida de proteção as oportunidades iguais para todos, verbis in verbis: "o programa de ações afirmativas permanece como garantia fundamental para proteção das oportunidades iguais. Ressalta que esta foi a razão pela qual meu pai e outros profissionais que trabalhavam com direitos civis defendiam a ação afirmativa tão fortemente em suas vidas, e é por esse 102 motivo que temos que apoiar tais programas contra os ataques atuais". A par desta mudança legislativa, alguns casos concretos surgiram e corroboraram com a discussão sobre a implementação de ações afirmativas como forma legítima de se garantir a efetividade de direitos sociais às minorias prejudicadas. Um dos casos pioneiros foi o caso Norwood Vs. Harrison, o qual objetivou decidir se seria possível o governo federal punir por meio da restrição de concessão de livros, uma entidade inteiramente privada que se julgava completamente livre para adotar uma política de admissão de alunos discriminatória. O julgamento da Corte foi no sentido de que tais escolas não poderiam receber qualquer tipo de auxílio governamental e nem seus alunos poderiam receber qualquer incentivo financeiro, sob pena de estarem contribuindo para a discriminação, a qual justificaria a intervenção judiciária.103 A partir de então, inúmeros outros casos surgiram, sendo que, entre eles, pode-se dizer que o mais notável caso norte-americano foi aquele envolvendo a 101 Ibidem. p. 91. LORENTS, Lutiana Nacur. A luta do direito contra a discriminação no trabalho. São Paulo: Juris Sintese IOB, jan-fev. 2006. Disponível em: <http://www.pgt.mpt.gov.br/publicacoes/pub61.html>. Acesso em: 15 mai. 2013. 103 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 95-98. 102 46 Regents of the University of California e o candidato Allan Bakke. Este será no presente trabalho considerado como o paradigmático caso Bakke, cuja leitura realizar-se-á a partir de Ronald Dworkin. O litígio mencionado se deu em meados de 1978, quando à Corte norteamericana foi apresentada a discussão acerca de um programa de admissão diferenciado adotado na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em Davis, o qual reservava 16% (dezesseis por cento) das vagas para o curso de medicina aos candidatos que fossem assim classificados como minorias, sendo que para as vagas restantes, todos, inclusive indivíduos pertencentes às minorias, poderiam concorrer. Diante deste cenário, Alan Bakke, não se encaixando em nenhum grupo considerado como minoria e irresignado com o aparente privilégio concedido a determinados candidatos e com o seu insucesso no ingresso ao ensino superior, em detrimento de outros candidatos que obtiveram nota inferior a sua e foram beneficiados pelas cotas, propôs uma ação judicial em face da Universidade, aduzindo violação ao direito à igual proteção das leis e afronta ao Título VI da Lei dos Direitos Civis de 1964. No julgamento do caso, embora o relator, Juiz Lewi Powell, tenha reconhecido a compatibilidade de ação afirmativa com a Constituição norteamericana, entendeu que na situação concreta analisada, os requisitos de validade destas ações não estariam presentes, anulando o ato da Universidade e concedendo a Allan Bakke o direito de matrícula na Universidade. A importância do caso Bakke se faz presente, especialmente, por ter sido ele palco de valorosos debates e discussões sobre a questão referente às ações afirmativas, tornando-se referência nesta seara, já que, em que pese a decisão desfavorável à Universidade, naquela oportunidade a corte norte-americana ressaltou e reafirmou a imperiosidade dos programas de discriminação positiva e a validade daqueles que possuem como critério a raça. Com este pano de fundo, Dworkin afirma: Os quatro juízes que votaram para apoiar o programa de Davis não afirmaram que classificações raciais “benignas” deviam atender apenas ao padrão rotineiro – isto é, que é possível que servissem a um objetivo social útil. Contudo, tampouco acharam apropriado usar o mesmo padrão elevado da investigação rigorosa utilizado para julgar classificações raciais que prejudicam as minorias. Sugeriram um padrão intermediário, que é o 47 de que classificações raciais reparadoras “devem servir a objetivos governamentais mais importantes e devem estar substancialmente relacionadas com a obtenção desses objetivos”. Sustentaram que o propósito da escola de medicina de Davis, de “reparar os efeitos da discriminação social passada”, era suficientemente importante, e que a classificação racial usada em Davis estava “substancialmente relacionada” 104 com esse objetivo. Em terras brasileiras, a primeira manifestação de ações afirmativas se deu com a Lei nº. 5.465 de 1968, conhecida como a “Lei do Boi”, que previa a reserva de 50% (cinquenta por cento) das vagas nos estabelecimentos de ensino médio agrícolas e nas escolas superiores de agricultura e veterinária mantidos pela União, a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residissem com suas famílias na zona rural. Previa ainda a reserva de 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residissem em cidades ou vilas que não possuíssem estabelecimentos de ensino médio. Naquele mesmo ano, o Ministério do Trabalho, bem como o Tribunal Superior do Trabalho se manifestaram a favor da criação de uma legislação que obrigasse as empresas privadas a reservar um percentual de vagas para empregados negros, conforme a atividade e a demanda.105 Atualmente, pode-se ainda citar, como programa decorrente de ação afirmativa, a existência de cotas para portadores de deficiência em empresas com mais de cem trabalhadores e a reserva obrigatória de vagas em concursos para portadores de deficiência, estas últimas previstas constitucionalmente no art. 37, inciso VIII, da Constituição da República. Temos ainda a Lei nº. 12.034/2009 passou a obrigar o percentual mínimo de 30% (trinta por cento) de mulheres em partidos políticos, visando o combate à discriminação em decorrência do critério “sexo”. Em relação a este programa, apesar de ter sido um grande avanço na tentativa de resolver a baixa participação feminina na política, o resultado prático não foi o esperado. Isso porque, os partidos políticos reservam as vagas, conforme determinado por legislação, e lançam as candidaturas femininas, todavia, após tais procedimentos, não fornecem o apoio necessário, inclusive financeiro, para que as campanhas das mulheres se desenvolvam e tenham êxito. Assim, é possível arguir 104 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 465. AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 70. 105 48 que, em determinados casos, os partidos registram as candidaturas femininas apenas para cumprir a formalidade legalmente exigida, sem, no entanto, realizar qualquer campanha que possa levar à eleição daquelas, a fim de aumentar efetivamente a participação feminina na política. O Ministério Público Eleitoral investigou no Rio de Janeiro partidos políticos que utilizaram mulheres como “laranjas” para alcançar o percentual de 30% (trinta por cento) das cotas nas eleições, havendo denúncia, inclusive, de mulheres que nem sequer tinham conhecimento de suas candidaturas.106 Embora o trabalho não seja direcionado às cotas de partidos políticos, tais considerações estão sendo aqui abordadas, com o objetivo de demonstrar que, não obstante a imperiosidade das cotas e a relevância destas para a minimização de desigualdades históricas, em qualquer caso de ação afirmativa, é preciso que esteja atento para eventuais desvios de finalidade. Não basta a implantação das cotas; é preciso levá-las a sério. Sob esta perspectiva, as ações afirmativas efetivadas como forma de correção de possíveis distorções no âmbito da sociedade, podem também ser analisadas como resposta ao Estado Social e suas demandas. Isso porque, o modelo social se implantou no Brasil explicitamente, a partir da Constituição de 1988, surgindo com ele os direitos sociais e, em contrapartida, os seus ônus. Nesta esteira, os ônus sociais ganham relevância diante das benesses concedidas por este novo modelo de Estado. A necessidade de se conceder função social à propriedade, ao contrato e à empresa é um típico retrato de ônus social, em decorrência do modelo do Estado após a Constituição de 1988. Diferentemente não ocorre com o trabalho ou com a educação, sendo que para esta última, em especial, igualmente deve se dar uma finalidade social adequada. Entende-se, pois, a imperiosidade de se considerar a finalidade das ações afirmativas concretizadas como finalidade decorrente dos ônus sociais gerados em decorrência dos direitos sociais resguardados. Ao se falar em ações afirmativas, no entanto, deve-se reiterar a premissa de que são elas medidas necessariamente transitórias. Isso porque, a sua permanência é necessária apenas enquanto seus efeitos estiverem atingindo sua finalidade 106 Para cumprir cota, partidos usam candidatas laranjas. O Estado de São Paulo. Noticias Procuradoria Regional Eleitoral no Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.prerj.mpf.gov.br/noticias/o-estado-de-s-paulo-para-cumprir-cota-partidos-usamcandidatas-laranjas/>. Acesso em: 15 mai. 2013. 49 principal, isto é, enquanto houver a redução de desigualdades estabelecidas e da segregação entre os grupos. Não se pode, portanto, permitir que sejam os efeitos das ações afirmativas perenes, pois, a partir do momento em que estas alcançarem uma equalização de oportunidades entre os grupos, erradicando ou, ao menos, minorando os estereótipos deixados por um histórico de discriminação, não fará mais sentido que os seus efeitos sejam mantidos. Se assim ocorresse, estar-se-ia criando novas formas de segregação social e privilégios indevidos para certa parcela da sociedade. Neste esteio, convém ressaltar que o artigo 1º, item 4, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial prevê e admite medidas especiais criadas com o objetivo de assegurar o progresso de grupos raciais ou étnicos e indivíduos que necessitem da proteção para que gozem do exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. No que concerne à possibilidade de consideração da Convenção retromencionada como parte do ordenamento jurídico brasileiro, apenas para que não pairem dúvidas, convem destacar que a eliminação de discriminação, diretamente associada à garantia de igualdade/isonomia, deve ser efetivamente considerada como direito fundamental, uma vez que os direitos sociais assim são considerados no interim da Constituição de 1988.107 Em relação ao caráter fundamental dos preceitos constitucionais, Ingo Sarlet Em síntese, firma-se aqui posição em torno da tese de que – pelo menos no âmbito do sistema de direito constitucional positivo nacional – todos os direitos, tenham sido eles expressa ou implicitamente positivados, estejam eles sediados no Título II da CF (dos direitos e garantias fundamentais), estejam localizados em outras partes do texto constitucional ou nos tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, são direitos 108 fundamentais. 107 Em verdade, deve-se ressaltar a existência de outros dois tratados internacionais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, os quais impingiram vinculação e obrigatoriedade aos direitos constantes da Declaração Universal. Segundo Flávia Piovesan, foi a partir da elaboração desses pactos que se constituiu a Carta Internacional dos Direitos Humanos, International Bill of Rigths, integrada pela Declaração Universal de 1948 e pelos dois pactos internacionais de 1966. Desta maneira, a Carta Internacional, inaugurou o Sistema Global de proteção dos direitos humanos, ao lado do qual, delineava-se o Sistema Regional de proteção, nos âmbitos europeu, interamericano e africano. PIOVESAN, F. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 152. 108 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos sociais como direitos fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/artigo_Ingo_DF_sociais_P ETROPOLIS_final_01_09_08.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013. 50 Nesta seara, então, não se olvida do fato de serem os direitos sociais considerados como direitos fundamentais e de ser o combate à discriminação assim também caracterizado, o que, consequentemente, gera a necessária observância da Convenção Internacional de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial109. Assim, retomando o mote da transitoriedade das ações afirmativas, a Convenção ressalta que tais medidas não devem levar à manutenção de direitos separados e especiais para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem alcançado os seus objetivos. Dworkin também aborda o aspecto temporal das ações afirmativas: (...) categorias constitucionalmente importantes estariam, então, mudando constantemente à medida que mudassem as condições sociais ou econômicas (ou a percepção de tais condições pelos juízes do Supremo Tribunal), de modo que a minoria em desvantagem de ontem se tornaria a maioria poderosa de hoje, ou a ajuda de ontem se tornaria o estigma de 110 hoje. Não parecem ser, portanto, as ações afirmativas os instrumentos mais adequados para que se enfrente a causa e raíz dos problemas de discriminação ou desigualdade social. Isso porque, são elas aplicadas para que as distorções já ocorridas possam ser minimamente remediadas, a fim de garantir uma tempestiva oportunidade para o individuo já prejudicado. Neste viés, as ações afirmativas são necessárias em um momento histórico específico, de acordo com o cenário já moldado no tempo e local, adequando-se às necessidades atuais. Todavia, devem se dissolver e findar, assim que sejam atingidos os seus objetivos, isto é, tão logo seja implementada a equalização das oportunidades almejada. Se considerada a Constituição de 1988 enquanto Constituição Dirigente, o que será abordado mais adiante, a questão da transitoriedade das ações afirmativas pode ser melhor visualizada, no sentido de serem estas necessárias em uma etapa do desenvolvimento da sociedade, tal como a Constituição em seu caráter dirigente. 109 “Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para a promoção de direitos”. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. Op. cit., p. 178,179 110 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Op.cit., p. 466. 51 Assim, se a constituição dirigente é feita para morrer, as ações afirmativas também são.111 Em assim sendo, as ações afirmativas, mormente aquelas que instituem cotas nas universidades brasileiras, parecem se adequar ao cenário histórico já delimitado, fazendo-se necessárias no sentido de minimizar as desigualdades já estabelecidas e atender, via de consequência, os objetivos constitucionais retro referenciados. Não significa, contudo, que são as cotas a melhor e única forma de combate à origem das desigualdades. Nesta esteira, despidos da intenção de tratar da origem e evolução das ações afirmativas nos sistemas jurídicos de forma mais aprofundada, em virtude desta pesquisa partir da premissa de legalidade destes programas, mormente após a Constituição Federal de 1988 e traçadas as linhas gerais sobre o tema, partir-se-á para a análise mais específica dos programas de cotas implementados para acesso ao ensino superior público, especialmente aqueles relativos às cotas raciais. 1.3. O julgamento da ADPF 186 pelo Supremo Tribunal Federal e a aprovação da Lei nº. 12.711/2012 A importância das ações afirmativas enquanto forma de atingir os objetivos constitucionais, erradicando a pobreza e reduzindo as desigualdades sociais parece, então, se fortalecer quando observado o momento e tempo que a sociedade está inserida, diante do chão histórico traçado. Neste contexto, a partir da análise realizada acerca da utilização das ações afirmativas em todos os âmbitos sociais, como instrumento de combate às mais variadas formas de discriminação, passamos a analisar as ações afirmativas direcionadas para a garantia do direito à educação, centradas, especialmente, no ensino público superior. Inicialmente, é necessário observar que atualmente o acesso ao ensino superior parece se fazer deveras restrito, estando ainda distante da realidade de grande parte da população brasileira que, por inúmeros fatores, encontra-se dele afastada. Estes fatores são os mais variados possíveis, podendo ser citada a 111 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a constituição dirigente. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 39-40. 52 necessidade de trabalho dos jovens para ajudar a família economicamente; falta de recursos financeiros para arcar com o pagamento de um ensino privado de boa qualidade; defasagem do ensino público, entre outros. Dentre os indivíduos excluídos historicamente do ensino superior, os negros ocupam um espaço considerável112, lembrando que, conforme já abordado, eles estão constantemente aliados à ideia de pobreza, o que corrobora a restrição no acesso ao direito social da educação, especialmente quando se trata de ensino superior. Daí o foco do presente trabalho estar a eles voltado, em que pese a ciência da importância das cotas sociais criadas pela Lei nº. 12.711/2012. Diante deste cenário de discriminação, o qual é anualmente confirmado por estatísticas oficiais que denunciam a minoria negra no ensino superior, algumas Universidades brasileiras passaram a adotar ações afirmativas, a fim de reduzir as desigualdades decorrentes da discriminação em virtude de raça, criando, voluntariamente, programas de cotas para ingresso de negros, pardos e índios em seus vestibulares.113 A criação de tais programas, todavia, gerou grandes cizânias, em virtude do fato de que aparentemente as cotas, ao mesmo tempo em que pretendem incluir grupos historicamente prejudicados pela discriminação, acaba excluindo indivíduos de grupos dominantes. Embora tenham sido programas criados voluntariamente pelas Universidades Públicas, a reação dos indivíduos foi, inicialmente, de estranhamento, gerando uma série de divergências. Diante deste panorama de contradições e em vista da implementação dos programas de cotas, o partido político DEM provocou o Supremo Tribunal Federal mediante Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), a qual foi proposta em face das cotas instituídas pela Universidade de Brasília – UnB, cujo julgamento se deu aliado ao do Recurso Extraordinário (RE 597285) proposto por um aluno da UFRGS em face de cotas raciais ali adotadas.114 112 De acordo com a pesquisa Síntese de Indicadores Sociais 2012, divulgada em 28 de novembro de 2012 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o percentual de negros no ensino superior foi de 35,8% (trinta e cinco vírgula oito por cento) em 2011, enquanto que o número de brancos entre 18 e 24 anos que estão na universidade atinge 65,7% (sessenta e cinco vírgula sete por cento) do total. A pesquisa aponta ainda que entre as pessoas de cor preta ou parda, 11,8% (onze vírgula oito por cento) não sabem ler nem escrever, enquanto entre as de cor branca, esse percentual cai para menos da metade, a saber, 5,3% (cinco vírgula três por cento). 113 É o caso, por exemplo, da Universidade de Brasília – UnB, cujo programa foi alvo da ADPF 186/DF, além de outras universidades, tais como a UFRG, UFRJ, entre outras. 114 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Op. cit. 53 Naquela oportunidade o DEM questionava a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas da UnB a candidatos negros e aduzia que tal medida criava o que chamava de “tribunal racial”, ferindo, consequentemente, os ditames de igualdade da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, após dois dias de julgamento considerou a validade das cotas raciais adotadas pelas universidades brasileiras, sendo que em passagens de alguns votos foi declarado louvor a tais medidas, que foram consideradas pioneiras e dignas de serem observadas como exemplo.115 Assim, na data de vinte e seis de abril de 2012, após longos debates e discussões acaloradas sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade das ações afirmativas instrumentalizadas por meio da criação de cotas raciais para ingresso em Universidades Públicas, já adotadas. A questão ganhou repercussão nacional e representou o assentamento de um importante posicionamento do Supremo Tribunal Federal no Brasil no que concerne às políticas de cotas.116 Neste cenário, cerca de quatro meses depois, quando o julgamento do Supremo Tribunal Federal ainda sofria fortes questionamentos, o tema de cotas voltou a ser destaque com a aprovação e sanção da Lei nº. 12.711/2012. A mencionada lei decorre do Projeto de lei nº. 180/2008 que tramitou no Senado por cerca de quatro anos, até sua aprovação. Em sua origem, este era o Projeto nº. 73/99, tendo lenta tramitação desde sua apresentação, perfazendo, portanto, 13 (treze) anos de espera. A Lei nº. 12.711 de 29 de agosto de 2012, possui como objeto dispor sobre o ingresso de estudantes nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Fica estabelecido, a partir de então, o dever de observância da reserva de cotas a todas as Universidades Federais de Educação Superior vinculadas ao Ministério da Educação e às Instituições Federais de ensino técnico. Visualiza-se, então, que a aludida legislação surgiu após a atuação do 115 O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPF 186/DF aduz:” Eis, aqui, demonstrada a importância da aplicação das políticas de ação afirmativa nas universidades e no ensino superior de modo geral. Tais espaços não são apenas ambientes de formação profissional, mas constituem também locais privilegiados de criação dos futuros líderes e dirigentes sociais.” Ibidem. 116 Haja vista a importância do julgamento da ADPF 186/DF, o capítulo 4 do presente trabalho será dedicado para analisa-lo minuciosamente, abordando as principais questões levantadas nos votos dos ministros, em busca da fundamentação desta decisão. 54 Poder Judiciário117 por meio da análise de casos concretos que levaram à discussão acerca da constitucionalidade de medidas de discriminação positiva ou as denominadas ações afirmativas.118 Partindo para uma análise com um viés inicialmente dogmático da Lei nº. 12.711/2012, é de se ressaltar que esta, em seu primeiro artigo, mostra para que veio. Logo no seu início, estabelece o dever de observância da reserva de cotas a todas as Universidades Federais de Educação Superior vinculadas ao Ministério da Educação. Trata-se, pois, da estipulação de uma obrigação às universidades federais, saindo os programas referentes às cotas da álea da conveniência e da discricionariedade de cada universidade. Isso porque, até o advento desta nova legislação, algumas Universidades Federais já haviam implantado programas de cotas por meio de projetos sociais ou legislações específicas, conforme acima assinalado. Entretanto, após a inovação legislativa, os programas referentes às cotas sociais não mais se constituem como uma mera preocupação social da Universidade, mas sim como um efetivo dever desta no momento da realização dos processos seletivos para ingresso de estudantes. Assim, a partir de agosto de 2012, esta obrigação passa a abranger qualquer Universidade Federal de Ensino Superior vinculada ao Ministério da Educação, independentemente de políticas locais. Parece, então, consubstanciar-se 117 No julgamento da ADPF 186/DF que versa sobre programas de ações afirmativas que estabelece sistema de reserva de cotas em Universidades com base em critério ético-racial, o ministro Celso de Mello afirmou que o desafio do país seria a efetivação concreta, no plano das realizações materiais, daqueles deveres internacionalmente assumidos. Por outro lado, frisou que, pelo exercício da função contramajoritária — decorrente, muitas vezes, da prática moderada de ativismo judicial —, dar-se-ia consequência à própria noção material de democracia constitucional. Consignou que as políticas públicas poderiam ser pautadas por outros meios que não necessariamente pelo modelo institucional de ações afirmativas, caracterizadas como instrumentos de implementação de mecanismos compensatórios — e temporários — destinados a dar sentido aos próprios objetivos de realização plena da igualdade material. Por fim, o Min. Ayres Britto, Presidente, repisou a preocupação do texto constitucional, em seu preâmbulo, com o bem estar e, assim, com distribuição de riqueza, patrimônio e renda. Reputou que o princípio da igualdade teria sido criado especialmente para os desfavorecidos e que a Constituição proibira o preconceito. Como forma de instrumentalizar essa vedação, fomentara as ações afirmativas, a exigir do Estado o dispêndio de recursos para encurtar distâncias sociais e promover os desfavorecidos. STF julga constitucional política de cotas na UnB. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 26 abr. 2012. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042>. Acesso em: 15 mai. 2013. 118 "Ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros". BRASIL. Ministério da Justiça (MJ). Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH). Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial População Negra. Brasília, 1996. 55 como um reflexo de o Estado relativizando a autonomia das Universidades, a fim de garantir um interesse ora considerado supremo. Ainda em seu primeiro artigo, a nova lei determina a forma da reserva de cotas, a qual se dará por curso e turno em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Destaca-se, então, que a legislação em análise estabelece a reserva de no mínimo 50% (cinquenta por cento) das vagas, por curso e turno, criando uma margem de discricionariedade para as Universidades admitirem, caso seja conveniente, percentual superior ao delimitado. Sem adentrar ao mérito de questões políticas ou de uma análise da validade das políticas públicas de cotas, o que será mais adiante abordado, não se pode olvidar que a inexistência de critérios certos e seguros para a limitação da reserva de cotas, pode surtar efeitos prejudiciais ao amplo acesso às universidades federais, restringindo, nestes casos específicos, o ingresso de alunos advindos de escolas particulares. A discriminação e a segregação outrora condenadas seriam patentes e a preservação da diversidade de forma desmedida abriria espaço para o ferimento à igualdade, haja vista a desproporção da medida adotada. Mais adiante, o parágrafo único do artigo 1º estabelece que do total de vagas reservadas, 50% (cinquenta por cento) deverão ser destinadas a estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (um salário mínimo e meio) per capita. Percebe-se, pois, que mais do que garantir o acesso dos alunos advindos de escolas públicas em virtude da inferior qualidade de ensino recebida por estes, a legislação assegurou parte destas vagas àqueles estudantes considerados de baixa renda, em patente cumprimento ao seu aspecto social. Assim, a partir, inclusive, das discussões realizadas no âmbito do Poder Judiciário, entende-se que a criação da política de cotas visa proporcionar a alunos advindos de classes sociais desfavorecidas um tratamento desigual que possa criar e ofertar oportunidades no mesmo patamar que os demais alunos egressos de escolas particulares e, via de consequência, com a qualidade de ensino superior. Ademais, o artigo 3º da Lei em apreço dispõe que em cada instituição federal de ensino superior, as vagas referenciadas no art. 1º serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas da população da unidade da Federação, informada pelo IBGE. Nota-se, pois que a lei traz a autodeclaração como 56 garantia de reserva de quotas em universidades federais, o que é motivo para que os não adeptos às cotas levantem a possibilidade de fraudes. Vale dizer, todavia, que embora a autodeclaração possa fatidicamente abrir espaço para fraudes de indivíduos que pretendam, indevidamente, se beneficiar dos programas de cotas, este fator não parece suficiente para afastar a legitimidade de tais programas, nem tampouco para retirar a sua finalidade e operacionalidade. Mecanismos de controle devem ser criados e enrijecidos, a fim de garantir, especialmente, a conscientização do real intuito das cotas em universidades públicas, garantindo assim a realização dos objetivos e o alcance dos princípios intrínsecos nesta legislação. Finalmente, o artigo 7º da lei define o prazo de 10 (dez) anos para que o Poder Público realize a revisão do programa instituído pela lei em comento, permitindo uma flexibilidade na análise das cotas que, caso não venham obter êxito ou não atendam as expectativas de redução das desigualdades sociais, poderão ser revistas. Em sendo assim, as ações afirmativas em tela possuem caráter transitório, tendo em vista o objetivo imediato de corrigir distorções sociais. Em razão disso, se verificado, após decurso de lapso de tempo, a eliminação de tais desigualdades, não parece haver motivo para a manutenção das políticas direcionadas, pois a equalização de oportunidades já terá sido alcançada. Não se olvida que a mencionada legislação suscita uma série de questionamentos de ordem prática em relação aos seus critérios dogmáticos e limites não expressos, todavia, optou-se por não abordá-los com maior profundidade no presente trabalho, por se pretender, principalmente, buscar a essência e a adequação das cotas, perante a comunidade. Para tanto, utilizar-se-á da proposta central da nova legislação, bem como do julgamento da ADPF 186/DF, que foi decisivo para as mudanças aqui discutidas. Isso porque, não obstante a posterior abordagem sobre a questão do precedente, pode-se já conceber que a possível relação estabelecida entre o julgamento da ADPF 186 e a Lei nº. 12.711/12 se coaduna com as noções de coerência e integridade advindas da hermenêutica política de Ronald Dworkin119. Na ADPF 186, a discussão primordial se deu em torno das ações afirmativas que garantem cotas raciais em universidades brasileiras e circundou temas relevantes, 119 A integridade em Ronald Dworkin será melhor abordada no capítulo 3 do presente, onde será feita a sua relação com a discussão acerca das cotas. 57 tais como o suposto ferimento ao princípio da igualdade em virtude de uma conjeturada discriminação causada por esta política e a criação de cotas como forma de superar distorções sociais historicamente consolidadas.120 Assim, ao decidir pela constitucionalidade das cotas implementadas pelas universidades brasileiras, fundamentou-se que estas ações afirmativas não possuem o condão de ferir a igualdade constitucionalmente resguardada, sendo aduzido, inclusive, a potencialidade destas de superar o inegável histórico de discriminação racial existente. Ademais, cumpre também observar que o julgamento do STF se deu sobre cotas raciais, enquanto que a Lei nº. 12.711/12 prevê cotas sociais, abordando além da desigualdade em virtude de raças, a desigualdade social decorrente de classes sociais, favorecendo os alunos advindos de escolas públicas. Assim, a promoção da constitucionalidade das cotas sociais e, consequentemente, da nova legislação, em virtude da constitucionalidade declarada pelo STF carece de uma observância mais criteriosa. Isso porque, muitos argumentos utilizados pelos ministros (a superação de uma história de discriminação, tal qual acima relatada, por exemplo) necessitariam de uma revisão e adequação. 120 No julgamento da ADPF 186/DF, o ministro Ricardo Lewandowski assim decidiu: “Isso posto, considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF.” Também defendendo a implementação das cotas, o ministro Marco Aurélio defendeu “É preciso chegar às ações afirmativas. A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso; é necessário fomentar-se o acesso à educação; urge implementar programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar meninos e meninas da rua, dando-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. O Estado tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem liberar verbas para os imprescindíveis financiamentos nesse setor.” Doutro lado, o ministro Marco Aurélio assim fundamentou: “Pode se dizer, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança de óptica, ao denotar “ação”. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar e a Carta da República oferece base para fazê-lo as mesmas oportunidades. Há de ter se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. Que fim almejam esses dois artigos da Carta Federal, senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza, uma das maneiras de discriminação, visando, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas daqueles nascidos em berços de ouro?” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de em: descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Disponível <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf186mma.pdf >. Acesso em: 15 mai. 2013. 58 Não obstante, ainda que, após a extração da ratiodecidendi121 se entenda pela constitucionalidade das ações afirmativas de forma geral, sem adentrar no mérito dos seus destinatários e das suas justificativas, é possível encontrar outra peculiaridade que se mostra essencial na diferenciação entre o caso julgado pelo STF e a nova legislação, qual seja, a obrigatoriedade das cotas. Isso porque, no cenário da nova legislação poderia se questionar a autonomia das Universidades no que concerne à adoção dos critérios para ingresso de alunos, tema que já está gerando dissensos, especialmente, no âmbito das próprias universidades. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) publicaram no início de julho de 2012 manifesto contrário ao projeto de lei nº. 180/2008. Neste documento, pleiteava-se aos senadores que "não aprovem o referido instrumento", haja vista o entendimento de que este feria o princípio da autonomia universitária, aduzindo ainda que "Diferentes propostas de ações afirmativas, adequadas a cada cultura institucional e regional têm sido adotadas e é nosso entender que não se deve ceifar este movimento com uma obrigação uniforme e atentatória à autonomia universitária".122 Ao que parece, as razões deste manifesto consistem não na contrariedade explícita às cotas, mas na oposição à obrigatoriedade delas na forma determinada pela legislação. Questiona-se, então, a autonomia universitária, a qual seria um dos fatores responsáveis pela excelência do ensino superior, cuja importância não pode ser reduzida. Vale dizer, então, que, embora já analisado o tema pelo STF, as questões envolvidas no discurso de cotas, especialmente a partir da obrigatoriedade determinada por legislação específica, se mostram ainda relevantes. As contradições e a pluralidade de entendimentos parecem impedir, a priori, a aplicação mecânica e a análise superficial do precedente da Corte Superior em relação à efetividade das cotas, bem como à validade da nova legislação. Adverte-se que não se pretende aqui aduzir a inconstitucionalidade da nova lei, já que esta apreciação não é objeto do presente trabalho, nem tampouco a impossibilidade de se adotar o precedente do STF. Todavia, intenta-se demonstrar 121 Conforme será esclarecido no Capítulo , a ratiodecidendi é, em termos gerais, o fundamento central de uma decisão. 122 SBPC/ABC. Manifestação conjunta ABC e SBPC sobre o PLC 180 que obriga a adoção de quotas para ingresso em universidades públicas e proíbe a realização de exames vestibulares. Disponível em: <http://www.unesp.br/secgeral/Pautas/CEPE/20120814/para-conhecimento-documento%20pesquisa.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013. 59 que a utilização de um precedente, também em relação ao processo constitucional, sem a sua devida adaptabilidade, pode gerar o empobrecimento do discurso jurídico, fechando a argumentação em torno da temática envolvida, o que será objeto de melhor análise no capítulo 4 do presente trabalho. Ressalva-se desde já que as mazelas do ensino público de base, que supostamente justificam as cotas sociais para egressos deste sistema, não serão aprofundadas nesta oportunidade, por demandar uma análise demasiadamente específica que foge do objetivo desta pesquisa, centrando-se as ideias prioritárias na validade e efetividade do sistema de cotas, sobretudo em relação à reserva para negros, pardos e índios. 60 2. A VIRADA CONSTITUCIONAL E A MODERNIDADE TARDIA: BREVES NOÇÕES SOBRE CRISES E CONTRADIÇÕES DA TARDO DEMOCRACIA BRASILEIRA 2.1. O Estado de Direito e suas transformações A partir das raízes históricas levantadas, é de se destacar que nos constituímos enquanto um país de modernidade tardia123, haja vista o atual cenário de ausência de efetivação de direitos sociais, que hoje se verifica. Nesse sentido, faz-se necessário observar as transformações sofridas pelo Estado para que, enfim, seja possível compreender o modelo do Estado enquanto Estado Social. É de se destacar que variação das formas assumidas pelo Estado se dá por meio das diferentes compreensões sobre as relações deste com os indivíduos, posto que a sociedade oscilou no tempo e no espaço entre modelos liberais, com primazia da liberdade, em detrimento da igualdade e, outrora, entre modelo de socialismo, no qual predominava a igualdade, em detrimento da liberdade.124 Nos séculos XVII e XVIII, o paradigma predominante na Europa Central foi o do Estado Liberal. Quando se fala em Estado Liberal, tem-se a ideia de um Estado centrado no indivíduo, figura esta que começa a ganhar relevância diferenciada desde o final do Medievo, em um constante processo de desobjetificação que acontece até os dias de hoje, especialmente mediante a assunção do paradigma plural. Trata-se, então, de um conceito moderno, decorrente de novas estruturas surgidas ao final da Idade Média.125 Este paradigma se funda em uma racionalidade cientificista, havendo a retirada da religião do âmbito público. 123 Destaca-se que o Brasil é considerado um país de modernidade tardia, pois mesmo fazendo parte do BRICS, é assolado por inúmeras deficiências em relação à efetivação dos direitos sociais dos indivíduos. As promessas advindas do Estado Social não foram ainda hoje concretizadas, mesmo após a promulgação da Constituição da República de 1988. 124 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade.5. ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 07,10. Para maiores esclarecimentos, sugere-se a leitura de DWORKIN, Ronald. A virtude soberana., 2005. 125 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.p. 242 61 Este novo formato do Estado surge a partir da Revolução Francesa no século XVIII, a qual trouxe consigo importantes renovações institucionais.126 Neste momento nasce o que pode se chamar primeiramente de Estado jurídico, já que no medievo esta figura era inexistente. O Estado Liberal possuía a burguesia agora como classe dominante, que se desenvolveu sob a proteção do Rei. Neste viés, as ideias do Estado Liberal se faziam inovadoras e encantavam os indivíduos ao oferecer a tríade da liberdade, igualdade e fraternidade127, o que, até então, praticamente se desconhecia. A nova perspectiva do conceito de individuo, a qual se encontra ainda em gestação, parecia conferir uma possibilidade deste, eventualmente, se inserir na sociedade de forma competitiva, o que tornava demasiadamente atrativos os princípios liberais. Cuidava-se, talvez, de uma novidade que encantava. Uma análise crítica, todavia, revela que tais promessas mascaram a intenção da burguesia de aniquilar os poderes e monopólio da Coroa até então imperantes, ainda que tivesse aquela classe se desenvolvido exatamente sob a proteção do Rei. Pregava-se uma suposta liberdade, para que esta classe em ascensão tivesse condições de auferir maiores poderes políticos, realidade esta encoberta pelo discurso oficial. Assim, os princípios filosóficos do Estado Liberal foram criados pela própria burguesia com o objetivo de se opor à Coroa, tendo sido generalizados como ideais comuns, indicando superficialmente que estariam tais ideais a serviço dos indivíduos. Ocorre que, conforme Bonavides, a universalização destes ideais não foi sustentada quando a burguesia efetivamente se apodera do controle político da sociedade, tornando-se tais princípios apenas existentes em seu aspecto formal, já que, no plano da aplicação política, a burguesia conservava, de fato, princípios construtivos de uma ideologia de classe.128 Isto significa que o Constitucionalismo burguês e liberal era absolutamente incompatível com a ideia de democracia, posto que tinha como função afastar o estado da esfera privada e das decisões individuais dos homens proprietários.129 126 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Ed. Malheiros, 1996. p. 30 Ibidem. 128 Ibidem.p. 42 129 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia e Constituição: tensão histórica no paradigma da democracia representativa e majoritária – a alternativa plurinacional boliviana. In: FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes; MÔNACO, Gustavo Ferraz de Campos; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de (Orgs.). Constitucionalismo e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 92 127 62 Neste sentido, entende-se que o Estado Liberal, a partir da nova perspectiva de indivíduo, constantemente em fase de construção, propiciou a criação de gêneros e padrões, os quais predominavam e balizavam toda e qualquer ação do Estado. Significa, pois, que a racionalidade cartesiana e cientificista demandava a formulação de gêneros, os quais se constituíam como padrões de normalidade de uma sociedade e que, via de consequência, ignoravam as possíveis e eventuais divergências e pluralidades dentro de uma sociedade. Era crucial aos interesses burgueses que a sociedade se estruturasse por gêneros, pois esta padronização facilitaria o controle. Conforme Quadros, no paradigma do Estado Liberal “as constituições garantem direitos individuais de homens brancos, proprietários e ricos, criando uma ordem segura para os proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas expressivas da população”.130 A diversidade inerente ao ser humano foi, portanto, esquecida, de forma que a ideia do “macho adulto branco sempre no comando”131 imperava com aparente legitimidade e natural aceitação. No Estado Liberal, a atuação estatal é mínima em relação aos indivíduos excluídos do liberalismo elitista, inexistindo qualquer intervenção pública para assegurar melhores condições sociais, criando-se uma cultura totalmente individualista e, quiçá, egoísta. Esta mínima (ou inexistente) atuação estatal na esfera econômica e social garantia à burguesia uma estabilidade em suas relações decorrentes do poder econômico, resguardando o contrato e a propriedade privada. A Constituição submetia o próprio Estado aos ditames liberais e o caminho da classe dominante parecia livre para ser traçado de acordo com os seus interesses. Considera-se, então, o estado mínimo. O estado nasceu liberal, tendo um constitucionalismo que objetivou limitar o poder do estado frente aos direitos de homens, brancos proprietários e ricos.132 As demais parcelas da sociedade eram tão somente submetidas à ordem constitucional existente, mas sem quaisquer garantias e possibilidades de participação no Estado. 130 Ibidem. P. 92 Trecho de música de Caetano Veloso – O Estrangeito- É chegada a hora da reeducação de alguém, Do Pai do Filho do espirito Santo amém, O certo é louco tomar eletrochoque, O certo é saber que o certo é certo, O macho adulto branco sempre no comando, E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo, Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita Riscar os índios, nada esperar dos pretos" 132 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia e Constituição: tensão histórica no paradigma da democracia representativa e majoritária. Op. Cit. p. 91 131 63 Vislumbra-se, entretanto, em contraponto à autonomia e exclusividade da burguesia, a proeminência da propagação dos princípios da igualdade, liberdade e propriedade aos indivíduos. Isso porque, a Revolução Francesa, marco principal da força e dominação da burguesia, foi profética133 ao trazer como lema a Liberté, Egalité, Fraternité, posto que foi ela capaz de premonizar condições de possibilidade comuns a toda a humanidade e que são objeto de anseio de todo e qualquer indivíduo. Tratou-se da criação de critérios universais, capazes de perdurar como princípios normativos, haja vista que delimitam formas ideais de sociedades. As novas perspectivas francesas despertavam nos homens a ideia de um comportamento social que preserva o seu próprio bem. Não obstante a prioridade de direitos à elite burguesa, os quais se configuravam basicamente como os direitos de primeira geração de direitos humanos134 é de se destacar que foi no Estado Liberal que os indivíduos passaram a possuir algum grau de consciência quanto à sua liberdade e seus direitos políticos, ainda que estes não fossem realmente efetivados para grande parcela da sociedade. Bonavides afirma que foi neste cenário liberal onde surge a ideia de um contrato social, o qual figura como um recurso racional, uma vez que por meio dele o Estado se manifestaria como forma de representação da vontade consciente dos indivíduos, o que, via de consequência, poderia ser revogável, teoricamente, a qualquer tempo.135 Este processo parece resultar, todavia, de uma precária consciência de pessoalização das pessoas que, não obstante as promessas recebidas, ficavam submetidas aos interesses eminentemente burgueses. Isso porque o Estado deveria garantir liberdade aos indivíduos, interferindo o mínimo possível, no sentido de que a autonomia privada no Estado Liberal se refere basicamente a direitos negativos diante do Estado e de outros cidadãos, isto é, direitos individuais.136 Este era o pacto social existente: a preservação de garantias. 133 Cf. STRECK, Lenio Luiz. O Pan-Principiologismo e a autonomia do Direito: Uma abordagem a luz da hermenêutica filosófica. Aula Inaugural do Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da UNIVALI,. Itajaí-SC, 20.marc.2009 134 O termo “gerações” de direitos deve ser entendido em sua concepção meramente didática para representar a sucessão de períodos históricos. Isso porque, critica-se a sua utilização, haja vista não ser possível admitir uma indivisibilidade e interdependência dos direitos de diversas gerações. 135 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. Op. Cit. p. 41 136 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.p. 235 - 236 64 O problema residia exatamente na abrangência destas garantias. A igualdade tão difundida pode ser lida como a igualdade de gêneros, mas neste gênero estabelecido pela burguesia como modelo padrão de indivíduo, grande parcela da sociedade não se encaixava, ficando às margens de toda e qualquer condição razoável de vida. Em verdade, o Estado liberal tinha como uma de suas maiores premissas o liberalismo econômico, caracterizando, naquele momento, um mundo de mercado racionalmente constituído.137 Esta esfera econômica inseria-se no âmbito da vida privada do indivíduo padrão, sobre a qual o Estado não possuía domínio, já que à burguesia deveria proteger a estabilidade e o direito à propriedade. Segundo Alexandre Mussoi Moreira A sociedade burguesa, instituindo o chamado mercado livre, firmou-se, fazendo da sociedade civil um sinônimo deste, sendo que, para o desenvolvimento de tal tipo de sociedade, era imperativa a separação entre o público e o privado, a fim de que os contornos deste se tornassem mais 138 nítidos. A ideia propagada de igualdade poderia ser assegurada pelo próprio liberalismo econômico, já que neste cenário todos poderiam se inserir no mercado, em que pese a existência de diferenças sociais. A não intervenção estatal permitiria, pois, a manutenção da igualdade e liberdade dos indivíduos, cabendo a ele tão somente assistir de longe tais funcionalidades. Contudo, conforme já se expôs, esta igualdade era tão somente de cunho formal, posto que a igualdade material já havia nascido mitigada pelos interesses burgueses, inexistindo qualquer mecanismo que buscasse reduzir desigualdades sociais. Conformem Quadros, o liberalismo, elitista e não democrático em sua essência, não podia admitir que a vontade do coletivo majoritário prevalecesse sobre a vontade do coletivo minoritário e, logo, sobre a vontade de cada um.139 Para Queiroz: 137 QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Sociologia política de Oliveira Vianna. São Paulo: Convívio, 1975.p. 64 138 MOREIRA, Alexandre Mussoni. A transformação do estado: neoliberalismo, globalização e conceitos jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 52. 139 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia e Constituição:tensão histórica no paradigma d democracia representativa e majoritári. Op. Cit. p. 92. 65 A situação dos proprietários burgueses tornava-se realmente ideal, num mundo em que o poder perderia seus condicionantes não econômicos, para tornar-se um poder economicamente condicionado; mundo em que a “ordem social” tenderia a confundir-se com a “ordem econômica” em favor 140 da qual se colocaria a “ordem legal”. Assim, vislumbrando o desenvolvimento do burguês proprietário e sob o domínio desta classe, o Estado Liberal objetivava o exercício estrito da legalidade como a forma mais adequada de se garantir os interesses dos indivíduos, assumindo uma feição não interventora. A teoria de Montesquieu sobre a separação de poderes, em que pesem as inúmeras objeções atualmente direcionadas a ela, se consagrou como uma das técnicas adotadas para a preservação da liberdade no sistema do liberalismo141, posto que assim seria possível se limitar a soberania, impedindo a ideia de onipotência. Vale mencionar que após a racionalização que baseou o Estado Liberal, criam-se formas sociais que receberão do indivíduo a confiança de um compromisso, de forma que o Estado, em vista de ser autoridade assim reconhecida, passa a determinar regras, as quais vincularão a conduta dos indivíduos e determinarão a atuação do Poder. Esta seria a separação dos poderes, no sentido de que as tais regras seriam determinadas, especialmente na função judiciária. A “Constituição” passa a ser a expressão jurídica do acordo político fundante do Estado. 142 Para Mello a eficácia do Estado na manutenção da segurança social estaria sempre ligada ao cumprimento das leis, as quais deveriam estar orientadas por valores representados pelos referidos direitos inalienáveis. Assim, estar-seia diante de uma sociedade racional, na medida em que a vida social estaria estabelecida pelas leis, simplificando a própria tarefa do Estado, pois estariam reguladas as relações dos indivíduos entre si e desses com o 143 Estado – por isso a noção de um contrato social. A liberdade formal, portanto, pregada no Estado Liberal caracterizava-se como a possibilidade de o indivíduo (padrão–gênero) poder fazer tudo aquilo que a lei não proibia, o que limitaria o poder estatal. Neste cenário, a separação de 140 QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Sociologia política de Oliveira Vianna.Op. Cit. p.52 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 46. 142 STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de.Tribunal do juri: símbolos e rituais. 3.ed. Porto Alegre:Libraria do Advogado, 2006. – Buscar outras obras do Lenio 143 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito internacional da integração. Rio de Janeiro: Imago, 1998. p. 700. 141 66 poderes tem igual importância, já que o judiciário deveria agir estritamente conforme a interpretação literal da legislação. Ao Estado caberia, principalmente e, quiçá tão somente, o poder de polícia, cumprindo as condições de liberdade e igualdade, as quais, a priori, parecem independer de uma atuação estatal prestativa. O Estado seria, até aquele momento, estranho ou até avesso aos direitos sociais, os quais nem sequer eram pensados, emitindo prescrições legislativas com o intuito de regulamentar apenas as relações intersubjetivas. Segundo Marcelo Cattoni Oliveira, competia ao Estado garantir a certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses privados de cada um com o interesse de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo. 144 Neste mesmo sentido, Streck e Morais, Suas tarefas (do Estado) circunscrevem-se à manutenção da ordem e segurança, zelado que as disputas porventura surgidas sejam resolvidas pelo juízo imparcial sem recurso à força privada, além de proteger as liberdades civis e a liberdade pessoal e assegurar a liberdade econômica dos indivíduos exercitadas no âmbito do mercado capitalista. O papel do 145 Estado é negativo, no sentido da proteção dos indivíduos. Os valores máximos da liberdade, igualdade e propriedade deveriam fazer parte da esfera privada, ao passo que na esfera pública encontrava-se a ideia de segurança e igualdade perante a lei. Para Bonavides: Disso não advinha para a burguesia dano algum, senão muita vantagem demagógica, dada a completa ausência de condições materiais que permitissem às massas transpor as restrições do sufrágio e, assim, concorrer ostensivamente, por via democrática, à formação da vontade estatal. (...) (os direitos de liberdade eram) válidos para toda a comunidade humana, embora, na realidade, tivesse um bom número deles vigência tão 146 somente parcial, e em proveito da classe que efetivamente os podia fruir.” Em síntese, no cenário do Estado Liberal a liberdade difundida aos indivíduos se resumia à liberdade da burguesia, que necessitava deste elemento para garantir a sua ordem financeira, a manutenção de seus contratos e a estabilidade de sua propriedade sem a intervenção do Estado, havendo o domínio do poder político por esta classe dominante, ainda que, aparentemente, se 144 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito constitucional. Belo Horizonte:Mandamentos, 2002. p. 55. 145 STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de.Tribunal do juri: símbolos e rituais. p. 61. 146 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. Op. cit., p. 42. 67 estendesse às demais classes sociais.147 Tratava-se, pois, de uma liberdade de cunho político, que se compadecia com os interesses desta classe social predominante.148 A exclusão de indivíduos do convívio social no Estado Liberal surgiu da necessidade de se excluir do poder aqueles que causavam estranheza à classe dominante149. Daí é possível abrir um parêntese para consignar que é a inclusão que faz a democracia, pois, caso contrário, seria constituída uma madecocracia grega, isto é uma democracia de cidadãos para cidadãos, sem a participação do povo. 150 Por isso pode-se afirmar que as cotas representam um convite tardio para uma festa que já começou há muito tempo, servindo como uma gota de refresco em um horizonte de exclusão. Ocorre, no entanto, em que pese o crescimento e desenvolvimento da tecnologia e da produção garantido pelo Estado Liberal, que a democracia, naquele momento, se tornara inviável, haja vista a dificuldade de os indivíduos em alcançar uma disputa igualitária. O princípio liberal triunfara indiscutivelmente sobre o princípio democrático.151 Via de consequência, em virtude da mínima intervenção estatal na sociedade, o que tornava o judiciário adstrito às legislações previamente definidas, as desigualdades econômicas e sociais começam a ganhar força, revelando que os direitos dos indivíduos, envoltos pelo trinômio igualdade, liberdade e propriedade, não eram efetivamente materializados. As complexidades da vida moderna tornam a contenção dos gozos mais difícil.152 A consciência da exclusão, antes abafada pelo receio do próprio poder e pela aceitação da condição de discriminação, abre espaço para um reconhecimento 147 O principal alvo da assertiva de que todos são iguais perante a lei é o Estado de ordens ou estamentos, ou seja, aquele Estado no qual os cidadãos encontram-se divididos em categorias jurídicas distintas, dispostas numa ordem verticalizada de hierarquia, na qual os superiores possuem privilégios, e isentos de ônus, e os inferiores, ao contrário, despossuem privilégios e acumulam ônus. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Trad. Waltensir Dutra. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2002. p. 27. 148 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. Op. cit., p.67. 149 Todos aqueles que não se enquadravam nos moldes e no poder burguês geravam irritação para o Estado Liberal. Tanto a mulher como o negro, o pobre e o alcoólico irritam. Os feios são rejeitados não por serem feios, mas simplesmente por que devem ser alijados do poder. 150 Nesta o povo alijado nem sequer percebe tal exclusão, sentindo-se confortável em não estar incluído, pois tem em seu inconsciente que, mesmo que fizesse parte do poder, não saberia como lá se comportar. 151 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao estado social. Op. cit., p. 68. 152 Pode-se conceber, inclusive, que este cenário se contrapõe ao novo papel do Judiciário, no sentido de ser ele responsável por zelar pela integridade do sistema jurídico, levantando-se atualmente até mesmo questões relativas ao ativismo judicial. 68 deste estado excludente, gerando, via de consequência, sensíveis modificações neste cenário. Diante da crise deste Estado Liberal, surgem ideias socialistas, comunistas e anarquistas, as quais se opõem à realidade de grande exploração do homem pelo homem e que animam os movimentos coletivos de massa cada vez mais significativos e neles reforça com a luta pelos direitos coletivos e sociais.153 A partir de meados do século XIX, em verdade, o Estado Liberal já inicia uma fase diversa das suas bases originais, passando a assumir tarefas positivas, prestações públicas a serem asseguradas ao cidadão como direitos peculiares à cidadania.154 Neste momento, pode-se perceber que o individuo está em permanente ascensão, desobjetificando-se. Sob esta ótica, com receio da força dos novos movimentos e buscando preservar o mercado, principalmente diante do Manifesto Comunista de 1948, o Estado Liberal assume uma nova postura e passa a praticar determinados atos que até então não lhe incumbiam, intervindo no domínio econômico e no próprio aspecto social155. Assim, o Estado assume o papel de garantir condições mínimas de vida a toda a sociedade e regular o mercado e a economia.156 No entanto, não obstante esta nova face do Estado Liberal, a típica separação entre trabalhadores de um lado e capital acumulado nas mãos da classe dominante de outro se mantém, ou seja, os trabalhadores continuavam distantes de um tratamento igualitário ou ao menos digno, tal como a classe dominante. Por tal fato, as demandas sociais aumentavam progressivamente e buscavam alcançar a efetividade dos direitos individuais formalmente difundidos no Estado Liberal, mas jamais praticados perante a sociedade.157 A partir de então, surge com o advento do Século XX, um novo paradigma no constitucionalismo, a saber, o paradigma do Estado Social. Neste, se vislumbra 153 CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, n. 3, mai, 1999. p. 478. 154 STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 63. 155 Este aumento de funções do Estado se remete também “à complexidade da estrutura produtiva social e ao acirramento da concorrência capitalista, e os impasses das crises deste sistema de produção [...]”. COSTA, Lucia Cortes da. Os impasses do estado capitalista: uma análise sobre a reforma do Estado no Brasil. São Paulo: Cortez, 2006. p. 49 156 STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Op. Cit. p. 70. 157 Para Dworkin, a liberdade e a igualdade não necessariamente estão em conflito, sendo possível, por meio da reconciliação das duas virtudes, “ter tudo o que devíamos querer de ambas”. DWORKIN, R. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 162. 69 uma maior aposta no Executivo, expandindo a esfera do público e ganha relevância os chamados direitos sociais, buscando-se, então, a materialização da igualdade e liberdade158. Segundo Menelick, com o Estado Social se pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação.159 Em verdade, não obstante a comum utilização indiscriminada das expressões “Estado Social”, “Welfare State” e “Estado Assistencialista”, estas comportam características específicas, representando diferentes perspectivas de um Estado caracterizado como interventor. Ao se remeter a Estado Social, tem-se, genericamente, um modelo que demanda a intervenção do domínio público em questões eminentemente sociais, a fim de regular a sociedade de acordo com as suas carências e necessidades mais básicas. Não se pode confundir, ainda, o estado assistencialista com o modelo do Welfare State, em que pese os dois serem considerados perspectivas de um Estado Social.No Welfare State160 ou Estado de Bem Estar Social, os âmbitos em que o domínio público interfere são menores do que aqueles atingidos pelo Estado Assistencialista. Este último, propagando as necessidades sociais e regulamentando a vida dos indivíduos, oferecia determinadas condições como forma de caridade aos indivíduos que, teoricamente, não poderiam alcança-las enquanto cidadãos. Cuidava-se o Estado Assistencialista, portanto, de um Estado que apenas e tão somente atendia as necessidades sociais dos indivíduos, sem, no entanto, preocupar-se com a ideia de cidadania e tampouco de direitos políticos. O Estado tinha como intuito prover as questões sociais, evitando, via de consequência, o declínio absoluto da sociedade em decorrência de ausência de condições de vida, mas jamais reconhecer o individuo como um sujeito de direitos. Doutro lado, no chamado Estado de Bem Estar Social ou Welfare State, a proteção aos direitos sociais era realizada pelo Estado em virtude da figura do 158 Conforme Dworkin, nenhum governo é legítimo “a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos. Os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade”. Ibidem, p. 9. 159 Ibid., p. 480. 160 Sobre a dificuldade de se localizar no tempo o surgimento do welfare state, Marcelo Medeiros afirma que esta se justifica pois “formas embrionárias de sistematização de políticas sociais pelo Estado remontam pelo menos ao início do capitalismo”. SOUSA, Marcelo Medeiros Coelho de. A transposição de teorias sobre a institucionalização do Welfare State para o caso de países subdesenvolvidos. Texto para discussão. n. 695, dez. 1999. p. 1. 70 cidadão, independente, inclusive, de sua renda ou poder econômico, objetivando satisfazer os direitos à educação, alimentação, previdência e saúde. Conforme Bobbio161, o bem estar voltou a ser o objetivo mais importante da gestão do poder, embora não mais em função declaradamente fiscal e político-econômica, como nos tempos do Estado Absoluto, e sim em vista de um progressivo e indefinido processo de integração social. Possui o Estado de Bem Estar Social, portanto, uma natureza promotora, no sentido de que visa promover os indivíduos a cidadãos, rompendo, portanto, com as meras políticas assistenciais assistidas, inclusive, na segunda fase do Estado Liberal. Garante-se, então, uma maior proximidade e uma relação mais equalizada entre indivíduo e Estado. Conforme Streck e Bolzan, O que irá diferenciar substancialmente o modelo do Estado interventivo contemporâneo à forma do Bem Estar dos Estados assistenciais anteriores é o fato de a regulação não significar a troca das garantias pela liberdade pessoal, uma vez que o beneficiado, no último caso, era considerado perigoso à ordem pública e na perspectiva da caritas protestante, eram vistos como não iluminados pelas bençãos divinas, enquanto que no modelo de Bem-Estar as prestações públicas são percebidas e construídas 162 como um/uma direito/conquista da cidadania. Diante deste cenário, tem-se que o Estado Social há muito já consolidava as suas matrizes ideológicas, apostando no assistencialismo estatal como forma de conceder e suprir necessidades individuais sociais, tendo já estabelecido raízes em manifestos socialistas e comunistas. O Estado do Bem Estar Social, ao revés, ganhou forças após a Segunda Guerra Mundial, isto no segundo e terceiro quarto do século XX, quando o Estado reconhece um conjunto de direitos sociais e objetiva manter uma estabilidade social, preservando, portanto, a ideia de universalismo, já que a proteção deveria ser conferida a todos indistintamente. As crises econômicas, elementos que intensificaram o desenvolvimento da ideia de um Estado do Bem Estar Social, demonstraram a falibilidade do mercado e a sua insuficiência para cuidar de determinadas esferas que mantinham a sociedade 161 BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Tradução de Carmen C. Varrialle et al. 6. ed. Brasília: UNB,1994.p.430 162 STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Op. Cit. p. 70. p. 78 71 harmônica. O crescimento estável se fez inviável em uma visão unicamente mercadológica, exigindo-se que o Estado assumisse o papel de afiançador da qualidade de vida do indivíduo.163 A universalização dos direitos garante no Estado do Bem Estar Social, para Bobbio, que “independentemente da sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm direito de ser protegidos (...) contra situações de dependência de longa duração (velhice, invalidez, ...) ou de curta (doença, desemprego, maternidade).”164 Importante perceber que no Brasil, esta universalização e, via de consequência, a formalização de um Estado de Bem Estar Social apenas foi alcançada pela Constituição de 1988, posto que antes disso as políticas sociais pareciam ter um cunho eminentemente assistencialista, sem a experiência da incorporação de direitos políticos e da visão da cidadania. Neste viés, vale lembrar que as primeiras políticas de cunho social consideráveis ocorreram de forma mais substancial na chamada Era Vargas, principalmente em função das bandeiras das exigências sindicalista e trabalhistas, em decorrência de movimentos operários. Apenas nas décadas de 70 e 80 que o governo iniciou a construção da ideia do Bem Estar Social, com a criação do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), do FUNRAL e das Ações Integradas da Saúde (AIS).165 Utilizando-se, pois, da expressão genérica “Estado Social”, após o contato com as suas perspectivas, esclarecendo que aqui se trata mais efetivamente do Estado do Bem Estar Social, é de se ressaltar que a maior aposta no executivo manifestada neste novo paradigma ocorre exatamente em decorrência da necessidade de criação de mecanismos que garantam a materialidade da igualdade outrora existente apenas no aspecto formal, bem como que possam efetivar os direitos sociais emergentes166. A Administração passa a ser fornecedora de direitos e garantias, bens e serviços. Trata-se de uma proposta para a construção de uma sociedade mais solidária, onde todos os indivíduos e grupos sociais possam ter acesso aos 163 Ibidem. p. 142 BOBBIO, Norberto. Et al. Dicionário da política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 5. ed. Brasília: UnB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000. p. 417. 165 SANTOS, Leila Borges Dias; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. Reflexões em torno à crise do Estado de Bem-Estar-Social. R. Fac. Dir. UFG. v.32, n. 1, p-61-75; jan/jun. 2008.p. 64 166 Conforme será discutido ao longo de todo este trabalho, se esta foi a aposta realizada, o apostador certamente perdeu todas as suas fichas, pois ainda hoje vivenciamos um Estado que não conseguiu efetivar os direitos sociais prometidos com o advento da “pós modernidade” 164 72 benefícios, direitos e garantias advindos da própria sociedade, já que o liberalismo havia deixado como herança uma postura ultra individualista, assentada em um comportamento egoísta.167 Segundo Buffon, É necessário assegurar, também, os meios necessários para que os indivíduos tenham acesso a educação e à cultura de modo que tal direito possa ser exercido de uma forma plena, visto que nada adiante garantir a liberdade de expressão àquele que está desprovido das condições mínimas 168 de exercê-la. Além desta nova significância do Poder Executivo, a teoria da Separação dos Poderes sofre uma releitura, de modo que se reestruturam as funções do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário e, no aspecto do direito inicia-se a ideia de sua otimização a partir de valores fundamentais. Conforme Menelick: Neste cenário surgem métodos capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direção da contade objetiv da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materialização do direito que mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos 169 programas e tarefas sociais. Resta claro, portanto, que neste novo paradigma do Estado Social, este passa a intervir nas questões sociais, se aproximando da sociedade através da política e do direito. No entanto, em que pese a base pública da proposta do Estado Social, este acabou gerando clientes ao revés de cidadãos, caracterizando um desvio de finalidade econômica em demasia, uma vez que se busca efetivar apenas e tão somente a igualdade material, abdicando de outros valores inerentes ao processo de cidadania. Para Bahia, Ao contrário da promoção de cidadania (que era, afinal, a meta do Estado Social) o que se viu foi o Estado tomando para si toda a dimensão do 167 STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. Op. Cit. p. 70.. P. 69 168 BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 27. 169 CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos paradigmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito. Op. cit., p. 481. 73 público, deixando os indivíduos na posição (cômoda?) de clientes, numa 170 relação paternalista e dependente. Esta assunção total de um dever promocional pelo Estado se mostrou, então, frágil e inviável, deixando os indivíduos alheios à atuação do Estado e plenamente dependentes deste. No entanto, esta abrangência excessiva do Estado Social acabou frustrada pelas próprias crises advindas do modelo capitalista, pois as demandas por direitos trabalhistas e sociais, deflagraram processos inflacionários, gerando a crise das economias de mercado.171 Para manter, então, a sua proposta enquanto Estado Social, fazia-se necessário uma economia enrijecida com um constante crescimento econômico. Não obstante, a queda do comunismo, ascensão do neo-totalitarismo fundamentalista na mesma proporão em que se decantava a globalização, neoliberalismo, terrorismo em escala global, etc., derrubaram por terra as certezas do welfare state.172 A partir desta crise gerada no Estado Social, intensificada na década de 70 do século passado173, surge um novo paradigma, o chamado Estado Democrático de Direito, o qual apresenta a formação racional da vontade coletiva e abre espaço para a discussão pública, trazendo consigo a ideia de maior materialização de todos os direitos fundamentais. Assim, em razão da nova concepção de igualdade e liberdade, novos direitos fundamentais surgiram. Igualdade e liberdade requerem agora materialização tendencial; não mais podemos nelas pensar sem considerar as diferenças, por exemplo, entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário apenas de sua força de trabalho, o que passa a requerer a redução do Direito Civil, com a emancipação do Direito do Trabalho, da previdência social e mesmo a proteção civil do inquilino. Enfim, o lado mais fraco das várias relações deverá ser protegido pelo ordenamento e, claro, 174 por um ordenamento de leis claras e distintas. 170 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.p. 260. 171 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 153. 172 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesse público e privado. p. 259. 173 É na década de 1970 que se inicia o terceiro período do capitalismo, a saber, aquele do capitalismo desorganizado. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Op. cit., p. 153. 174 CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Op. cit., p. 13. 74 Além disso, no Estado Democrático de Direito, a crescente do constitucionalismo reflete diretamente na maior importância oferecida ao Judiciário, que ganha um espaço relevante no cenário dos poderes do Estado. Tal questão foi apontada por Lenio Luiz Streck em trecho de seu livro Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. A democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da democracia no segundo pós-guerra e a redemocratização de países que saíram de regimes autoritários/ditatoriais, trazem à luz Constituições cujos textos positivam os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política, isto porque o Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa de legitimação do nazi-fascismo pela vontade da maioria, confiou à justiça constitucional a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. Tais fatores provocam um redimensionamento na clássica relação entre os Poderes do Estado, surgindo o Judiciário (e suas variantes de justiça constitucional, nos países que adotaram a fórmula dos tribunais ad hoc) como uma alternativa para o resgate das promessas da modernidade, onde o acesso à justiça assume um papel de fundamental importância, através do deslocamento da esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos políticos, para os 175 procedimentos judiciais. Neste interim, a ideia de constitucionalismo adstrita ao Estado Democrático de Direito, regulamenta e apresenta direitos individuais que figuram também em uma dimensão política e que estão limitados no que concerne à possibilidade de alteração pelo legislador, sendo passíveis de apreciação e amparo pelo Poder Judiciário. Neste, há a pretensão de que liberdade e igualdade convivam pacificamente.176 Cumpre salientar que este paralelo entre liberdade e igualdade está em perfeita consonância com a questão das cotas, pois estas, ao buscarem a materialização da igualdade, concedem maior liberdade aos cotistas, ao passo que relativizam esta liberdade aos não cotisas. Lado outro, a igualdade dos cotistas, em virtude de suas peculiaridades e colocação na sociedade, apenas pode ser mantida se supostamente relativizada esta liberdade dos não cotistas. 175 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 147. 176 Para Ronald Dworkin nenhum governo é legítimo “a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos. Os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade”. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Op. cit., p. 9. 75 Daí surge a necessidade de se entender a posição ocupada pelo Estado diante desta suposta “tensão” para que, então, seja possível a busca de um caminho para a legitimidade destes programas. A partir de tais premissas, buscar-se-á visualizar a possível conjugação destes dois elementos para a apresentação de uma resposta mais coerente. No entanto, é necessário consignar que não obstante a nova roupagem do Estado, enquanto Estado Democrático de Direito, é de se destacar, todavia, que no Brasil a Constituição Federal de 1988, enquanto instrumento que efetivou este Estado Democrático de Direito, ainda não teve a sua plenitude atingida, especialmente em virtude das deficiências já deixadas pelo welfare state. Isso significa que embora exista a proposta de garantia de direitos fundamentais e sociais aos indivíduos, a realidade aponta um cenário diverso, no qual muitos ainda são destituídos de condições mínimas de uma vida saudável e digna. Por isso, afirma-se o Brasil enquanto um país de modernidade tardia. 177 2.2. O Estado (Social) Democrático de Direito em seu papel de Estado promotor: Consecução da Constituição Dirigente e as promessas não cumpridas A par do exposto, reconhecendo-nos como um país de modernidade tardia, houve, consequentemente, a necessidade de nos impulsionarmos nos sentido de resgatar as promessas da modernidade, o que nos levou a nos construirmos democraticamente em um modelo de Estado Social. A Constituição Federal, neste modelo de Estado, se coloca enquanto um fundamento de horizonte, no sentido de que é ela que irá determinar o modo de ser do Estado, bem como a sua necessidade de se projetar. 177 Sobre a ideia de ser o Brasil um país de modernidade tardia, Streck: “Às facetas ordenadora (Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o Estado Democrático de Direito agrega um plus (normativo-qualitativo), representado por sua função nitidamente transformadora, uma vez que os textos constitucionais passam a institucionalizar um “ideal de vida boa”, a partir do que se pode denominar de co-orignariedade entre direito e moral (Habermas). Os conteúdos compromissórios e dirigentes das constituições – e a do Brasil é típico exemplo - , apontam para as possibilidades do resgate das promessas incumpridas da modernidade, questão que assume relevância ímpar em países de modernidade tardia, onde o welfare state não passou de um simulacro. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Op. cit., p. 369. 76 Toda discussão do presente trabalho apenas faz sentido pela opção de se considerar a Constituição enquanto um fundamento de horizonte, somada ao fato de não havermos provado grande parte dos frutos da modernidade. Ainda hoje se percebe uma grande amplitude de contradições, as quais frequentemente estão ligadas ao individualismo e egoísmo, típicos de um Estado Liberal.178 Isso porque, é necessário ressaltar que as promessas realizadas no Estado Social ainda não se concretizaram179. Ainda hoje, supostamente sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, vê-se que os direitos fundamentais sociais são, muitas vezes, esquecidos sob argumentos de indisponibilidade orçamentária, prioridades políticas, crise da economia nacional ou programaticidade (em seu sentido pejorativo) das normas constitucionais. Neste interim e pensando na questão relativa às cotas, faz-se necessário destacar o direito à educação, previsto no artigo 6º da Constituição como um direito social. A bem da verdade, o fundamento das cotas não se encontra exatamente no direito social à educação, mas de forma mais enfática no próprio direito à igualdade, conforme será minuciosamente abordado. Entretanto, em que pese esta consideração, se não como fundamento ou objetivo, as cotas atingem o resultado prático de garantir o direito a educação, o que não pode ser descartado no presente estudo. Aliás, cumpre esclarecer que, em regra, o direito social à educação trata-se de um direito cuja efetividade demanda prestação positiva do Estado, o que, a princípio, diferenciaria dos direitos à igualdade e liberdade, envoltos nesta concepção das cotas. Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet, ensina que Os direitos de defesa - precipuamente dirigidos a uma conduta omissiva – podem, em princípio, ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade, liberdades,etc.) pode ser assegurado juridicamente, independentemente 180 das circunstâncias econômicas. 178 Frequentemente, vê-se predominar a máxima de “dar a cada um o que é seu”, representado pelo clássico brocardo latino “suum cuique tribuere”. 179 “Como resultado, temos que em terrae brasilisi, as promessas da modernidade só são aproveitadas por um certo tipo de brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheid social!” STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Op. cit., p. 28. 180 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 263. 77 Assim, esta exigência de prestação positiva do Estado implícita nos direitos sociais poderia ser promovida, em uma primeira leitura, enquanto uma limitação de efetividade do direito resguardado à educação, por questões como, por exemplo, de insuficiência de recursos públicos, tal como já aventado. Surgiria, a partir dai, a ideia de que as cotas são insustentáveis por não ter o Estado condições de garantir o acesso ao ensino superior público a todos os indivíduos. Entretanto, em que pese esta insuficiência do Estado em relação aos direitos sociais, há de se destacar que a limitação da efetividade alhures suscitada, se dá em todo e qualquer direito fundamental e social, o que não justifica a desvinculação do direito à educação e do direito à igualdade. Sobre a necessidade de dispêndio de recursos públicos para todos direitos fundamentais, corroborando que não apenas os direitos sociais estão limitados neste sentido, Stephen Holmes e Cass R. Sunstein afirmam, Os direitos não podem ser protegidos ou exercidos sem o financiamento e o sustento público. Tanto os direitos sociais quanto o direito de propriedade privada geram custos públicos. O direito de liberdade de contratar tem custos públicos não menos que o direito de assistência médica, o direito de 181 liberdade de discurso não menos que o direito à habitação digna. Os mesmos autores ainda prosseguem, O financiamento dos direitos fundamentais por meio de receitas fiscais nos ajuda a ver claramente que os direitos são bens públicos: contribuintesfinanciadores e governo de gestão dos serviços sociais destinados a melhorar o bem-estar coletivo e individual. Todos os direitos são direitos 182 positivos. Em sendo assim, vê-se que não apenas os direitos sociais, mas também os direitos fundamentais estão envoltos em uma atuação positiva do Estado, o que impede que seja dada maior importância ou efetividade a estes últimos. É preciso que se garanta ao indivíduo a concretização também dos seus direitos sociais, sob pena de gerar a ineficácia dos próprios direitos fundamentais. Ainda em relação ao direito da educação, poder-se-ia visualizar o questionamento sobre a possibilidade deste abranger o direito ao ensino superior, 181 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. p. 48. 182 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Op Cit.p.48 78 tornando cogente a sua efetividade perante a sociedade, no sentido do particular poder reclamar perante o Estado o acesso à universidade, caso não o alcançasse pelos métodos tradicionalmente disponibilizados, ou seja, pelos critérios puramente meritórios. É relevante frisar, neste aspecto, que inexiste no texto constitucional qualquer referência específica ao ensino superior, sendo entendido em uma leitura superficial decorrente do senso comum (jurídico), que é obrigação do Poder Público atender a demanda educacional até o ensino médio, considerado ensino de base. Assim, inicialmente poder-se-ia aduzir que não há previsão expressa que possibilite um direito fundamental-social a todo e qualquer individuo de exigir do Estado uma vaga em uma destas universidades, sem que atenda os requisitos (em regra, meritórios) de acesso ao ensino superior. Doutro lado, parece correto lembrar que o Estado oferta possibilidades de ensino público superior por meio da criação e fomento de Universidades Públicas Federais e Estaduais, cumprindo, via de consequência, algum papel nesta seara. Diante disto, a inexistência da previsão explícita no texto constitucional se torna relativa quando verificado que este se limita a dizer “educação”, não restringindo também o seu alcance, pelo o que se pode entender que o direito à educação superior se faz da mesma forma consagrado e é, portanto, digno de observância pelo Estado e de ser efetivado por meio de sua atuação promotora. Promovendo o direito à educação como uma consequência de sua implementação, é fato que as cotas sociais/raciais intentam garantir a equidade de oportunidades de acesso entre grupos excluídos e grupos dominantes do meio acadêmico às universidades federais, efetivando, sob determinado aspecto, o direito à educação, aliado à dignidade da pessoa humana. A imperiosa efetividade de direitos constitucionalmente previstos e que, destaca-se, são primordiais para a concretude do Estado (Social) Democrático de Direito, não deve ser analisada de forma simplista e demasiadamente objetiva. De acordo com o entendimento de Andreas Krell, Os Direitos Fundamentais Sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais. São os Direitos Fundamentais do homem-social dentro de um modelo de Estado que tende cada vez mais a ser social, dando prevalência aos interesses coletivos antes que aos individuais. O Estado, mediante leis parlamentares, atos administrativos e a criação real de instalações de 79 serviços públicos, deve definir, executar e implementar, conforme às circunstâncias, as chamadas ‘políticas sociais’ (de educação, saúde, assistência, previdência, trabalho, habitação) que facultem o gozo efetivo 183 dos direitos constitucionalmente protegidos. Pode-se afirmar, então, que as cotas ao menos se coadunam com o direito fundamental social à educação, corroborando para a sua efetividade plena, ainda que não se admita a sua exigência enquanto direito absoluto. Todavia, ao analisalas sob o prisma do direito à igualdade, a sua fundamentação ganha força, por se consubstanciarem enquanto elementos que equalizam oportunidades e reduzem desigualdades. Significa, pois, que o Estado possui o dever de concretizar efetivamente os direitos fundamentais sociais dos indivíduos, pois apenas assim será possível cumprir as promessas da modernidade, cumpridas apenas para uma parcela da sociedade. Sob este aspecto, convém lembrar a figura da Constituição Dirigente, cuja morte foi supostamente declarada pelo seu próprio precursor. Seria esta possuidora de uma natureza positiva, vinculando o legislador a imposições materiais constitucionais, isto é, criando tarefas a serem seguidas por ele e pela própria Administração Pública. Esclareça-se, todavia, que a anunciação da morte da Constituição Dirigente por J.J. Canotilho se deu em virtude do contexto histórico e territorial em que ela estava inserida (Portugal), onde as suas diretrizes já foram alcançadas, de modo que a sua manutenção de forma isolada não seria mais suficiente, pelo menos enquanto medida isolada, para as transformações pretendidas. Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional dirigente introvertidamente vergado sobre sí próprio e alheio aos processos de abertura do direito constitucional ao direito internacional e aos direitos supranacionais. Numa época de cidadanias múltiplas e de múltiplos de cidadanias seria prejudicial aos próprios cidadãos o fecho da Constituição, erguendo-se à categoria de "linha Maginot" contra invasões agressivas dos direitos fundamentais. Alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional. Contra os que ergueram as normas programáticas a "linha de caminho de ferro“ neutralizadora dos caminhos plurais da implantação da cidadania, acreditamos que os textos constitucionais deve estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa 183 KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 19. 80 sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticas e 184 sociais. No entanto, especialmente em relação ao Brasil, o caráter dirigente da Constituição de 1988 parece se fazer presente e indispensável, pois esta não se caracteriza tão somente como um instrumento governamental, mas efetivamente estabelece diretrizes a serem perseguidas pelo Estado para a melhoria das condições sociais e econômicas da vida dos cidadãos.185 A ideia do Estado promotor ganha forças no panorama brasileiro, pois, insista-se, embora este país esteja passando pela gestação da modernidade, muitas promessas inicialmente realizadas, especialmente quando da Constituição de 1988, não foram ainda cumpridas, estando o país envolto atualmente em um cenário político de modernidade tardia. Assim, a necessidade de se ter um texto constitucional que determine uma intervenção do Estado para a efetivação de direitos fundamentais e sociais, a fim de alcançar um progresso social, se faz ainda mais imperiosa. Daí a consideração da Constituição enquanto um horizonte autêntico. Afirma Lenio Luiz Streck, A noção de Constituição dirigente e compromissária não pode ser relegada a um plano secundário, mormente em um país como o Brasil, onde, repito, as promessas de modernidade, explicitadas generosamente no texto constitucional de 1988, longe estão de ser efetivadas. Para tanto, há que se enfrentar/superar alguns dos problemas e/ou obstáculos que fizeram com que a expressiva parcela dos dispositivos da CF/88 não obtivessem, até 186 hoje, efetivação. Adotando a Constituição Dirigente como pano de fundo, é possível ainda chamar atenção para as novas perspectivas do que é público e do que é privado a 184 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. Prefácio, p. XXIX-XXX. 185 Conforme Eros Grau, “Deveras, a Constituição do Brasil não é um mero "instrumento de governo", enunciador de competências e regulador de processos; mas, além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Não compreende tão-somente um "estatuto jurídico do político", mas sim um "plano global normativo" da sociedade e, por isso mesmo, do Estado Brasileiro. Daí ser ela a Constituição do Brasil, e não apenas a Constituição da República Federativa do Brasil. Os fundamentos e os fins definidos em seus arts. 1º e 3º são os fundamentos e os fins da sociedade brasileira.” GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Malheiros, 2008. p. 359. 186 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e concretização da constituição. Revista Latino- Americana de Estudos Constitucionais, n. 1. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 682. 81 partir, principalmente, da década de noventa, quando se iniciou um movimento de imbricação destas esferas. No Estado (Social) Democrático de Direito, a Constituição da República Federativa do Brasil cria uma base axiológica que passa a ser observada pelos demais setores do Direito, antes dotados de uma autonomia bastante peculiar, a exemplo do Direito Civil, passando o âmbito público a interferir cada vez mais no âmbito privado, a fim de regular, além das relações verticais, entre Estado e sujeito, também as relações horizontais, entre particulares. Os valores não patrimoniais, a justiça social, a solidariedade e as questões sociais ganham um espaço substancial, passando a influir em todo o ordenamento jurídico. Neste esteio, o Estado Promotor que pretende efetivar os direitos que até então se consubstanciavam em promessas não cumpridas, em virtude do processo ainda de gestação da modernidade, passa a criar medidas e ações que influenciam diretamente na vida dos cidadãos, fazendo valer o seu aspecto prestativo. Conforme Bercovici, A Constituição de 1988 é uma constituição dirigente, pois define, por meio das chamadas normas constitucionais programáticas, fins e programas de ação futura, no sentido de melhoria das condições sociais e econômicas da 187 população. É neste cenário que se destacam as ações afirmativas enquanto medidas que objetivam erradicar pobreza e reduzir desigualdades, diretrizes traçadas pelo texto constitucional em seu artigo 3º. Por este aspecto, é preciso que se considere o caráter dirigente da Constituição para que se compreenda a necessidade e importância da efetividade de direitos fundamentais e sociais. Se o nosso país se caracteriza como um país de modernidade tardia, é tempo de buscar as correições das desigualdades oriundas deste panorama, a fim de finalmente atingir os ideais da igualdade e liberdade a todos os indivíduos, afastando, via de consequência, a violência simbólica188 que atualmente vivenciamos. 187 BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, 36, n. 142 abr./jun. 1999. 188 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 36. 82 3. AS COTAS SOB O ENFOQUE DA HERMENÊUTICA POLÍTICA DE RONALD DWORKIN 3.1. Os primeiros fundamentos na construção de um possível modo de se compreender a problemática relacionada às cotas: Um caminho traçado até Ronald Dworkin A questão referente às cotas no ensino superior público suscita, a par do que já foi exposto sobre a reconstrução histórica e atual formato do Estado brasileiro, uma análise cuidadosa, a fim de que se possa compreendê-las ou criticálas, construindo um horizonte nos moldes gadamerianos. Para tanto, optou-se por traçar um caminho até a hermenêutica política de Ronald Dworkin, iniciando esta leitura a partir do positivismo jurídico kelseniano189, cuja teoria possui, ainda que veladamente, um alto grau de discricionariedade. No caminho a ser traçado até Dworkin, Kelsen ganha relevância por se apresentar como uma barreira sólida a ser ultrapassada, já que foi com ele que se inicia a ideia de interpretação enquanto elemento do direito e é em sua teoria que se encontra um grande nível de decisionismo190. A compreensão de sua proposta é crucial para que se possa proceder à análise das cotas pela visão de integridade de Dworkin. É de se destacar que quando se fala em positivismo jurídico, observa-se uma costumeira confusão entre o positivismo normativista e o positivismo 189 Vale lembrar que o positivismo jurídico é um gênero extenso, compreendendo uma série de diferentes concepções, tais como o positivismo exegético, jurisprudência dos conceitos, jurisprudência dos interesses, jurisprudência dos valores, normativismo, etc. O presente trabalho optou por concentrar-se mais detidamente no positivismo sob a perspectiva de Kelsen (normativismo) e Hart (Neopositivismo semântico), não abrangendo as suas demais facetas, a fim de demonstrar a constituição do caminho proposto a partir de Ronald Dworkin. 190 Importante lembrar que Kelsen não afirma ser o decisionismo a solução das problemáticas que apresenta, sendo que este foi, na verdade, o problema levantado e denunciado por ele. 83 exegético191. Este último, no entanto, diferencia-se do primeiro e se caracteriza como extremamente dogmático, em que pese ainda hoje representar, em muitos casos, a imagem de positivismo que é refletida. Tal construção se faz necessária a partir da ideia de que na Escola da Exegese é evidente uma intenção de desconectar-se do passado histórico, isto é, romper com aquilo que é considerado ultrapassado e negativo, exigindo uma concepção jurídica que se desvincule de tradições. A Escola da Exegese questiona a multijurisdicionalidade do direito, no sentido da quebra do direito. Pretendia, em verdade, o absoluto fechamento do direito dogmático, por meio do seu isolamento total, defendendo a ideia de um código único, independentemente da classe social, rechaçando igualmente o direito costumeiro que permitia a existência de diversas regras regionais convivendo de forma fragmentada. Assim, a partir da Escola de Exegese começa-se a perceber a importância da necessidade da codificação, pois apenas um código permitiria resolver, em um único ato, os problemas naquele momento enfrentados. É fato que a novidade não se encontrava no código, mas no fato de que o direito existente na lei escrita passa a ser exclusivo, suficiente e único, não podendo existir nenhum outro elemento normativo, senão aquele expresso na codificação192. Não reconheciam, pois, a existência de lacunas, nem tampouco princípios ou objetivos políticos, vez que a decisão para além da lei escrita, seria a criação de direito por um juiz, o que era inadmissível. Todavia, não obstante a busca de uma racionalidade pela Escola de Exegese, não se pôde conceber a qual tipo de racionalidade ela atendia, uma vez que a aplicação mecânica do direito escrito não parece ser suficiente para atingir a legitimidade desta ciência. Os dogmas do que seria certo ou errado poderiam, diante desta justificativa de racionalidade, serem ditados e estabelecidos sem, no entanto, apresentar-se qualquer justificativa de validade para estes. A crítica à Escola da Exegese, portanto, reside no fato de qualquer estipulação que venha a ser transformada em direito escrito ser legitimada, já que a 191 Conforme Streck, “por isso alguns juristas compreenderam mal o sentido do novo Constitucionalismo. Explicando melhor: por não terem compreendido o problema da diferença entre o velho positivismo exegético (sintático) e o positivismo normativista (semântico), pensaram que o ‘neoconstitucionalismo’ seria a forma de superar o exegetismo.” STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 78. 192 A partir da Escola da Exegese, o Direito passa a ser uma técnica e, a partir de então, pode ser ensinado. 84 questão de fato e de direito são cindidas. A lei é a lei e, sendo assim, pode se impor. A subsunção do direito, como uma mera forma de aplicação da previsão legal ao caso concreto, torna-se, em verdade, um mito promotor da segurança e de uma imparcialidade, as quais, contudo, não se sustentaram a partir desta Escola. Parece ser um grande problema permitir que todas as apostas fiquem no juiz, o que, todavia, ficou caracterizado como consequência negativa da opção realizada pela Escola Exegética, que considerava ele um intérprete plenipotente alocado em um plano racional superior ao plano das leis. A negatividade deste efeito colateral se dá porque parece bem provável que os juízes tenham racionalidades diferentes, o que permitirá, via de consequência, que esta plenipotência seja exercida de acordo com as convicções pessoais de cada julgador, o que permitira a influência da moral pessoal em um direito que deveria ser avesso a este fator. A proposta exegética de criar um Direito hermeticamente fechado vai de encontro à própria natureza do Direito, qual seja, a de se organizar enquanto elemento regulador da sociedade. Criticando e referenciando o positivismo, Ronald Dworkin menciona que, para aquele, o direito é o direito. Não é o que os juízes pensam ser, mas aquilo que realmente é. Sua tarefa é aplicá-lo, não modificá-lo para adequá-lo à sua própria ética ou política193, o que acaba se tornando uma armadilha. Conforme suscitado por Dworkin, ao abordar o positivismo, a leitura do direito enquanto hermeticamente fechado não diz praticamente nada, pois se reveste de uma superficialidade que o direito em si talvez não permita. É de fácil constatação que a norma escrita e positivada não será capaz, por si só, de abranger todos os potenciais casos concretos, mormente aqueles considerados “difíceis”194, quando a aplicação mecânica do direito pode não se adequar ou, quiçá, pode nem sequer ser possível, seja em virtude da inexistência de uma previsão normativa (lacuna), seja pela necessidade de uma digressão para além da mera semântica contida no texto legal. Sob esta ótica, a segurança e a imparcialidade buscadas pela Exegese mostram-se inviáveis e inatingíveis, pois a sua proposta acaba por gerar um juiz solipsista, contrariando suas próprias bases.195 Esta ausência de adequação da proposta exegética pode ser explicada pelo fato de o juiz existir enquanto ser 193 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 141. A possível explanação sobre o que seja “casos difíceis” será abordada ainda neste capítulo 3. 195 A partir de uma leitura exegética, pode-se afirmar que o juiz se fecha nos limites do seu mundo, pois domina a subsunção. 194 85 concreto, isto é, ele não é originado no mundo das ideias, o que impossibilita uma análise puramente semântica do direito pelos julgadores. A questão semântica de subsunção e aplicação das regras se faz, portanto, não apenas como insuficiente, mas também como contrária aos seus propósitos, já que permite uma sensível discricionariedade do julgador, além de não considerar outros elementos alheios ao texto jurídico. É de se ressaltar que não há padrões prévios e determinados de racionalidade para compreensão de um texto normativo. Esta compreensão acabava, então, ocorrendo de forma aleatória. Assim, o modelo de raciocínio lógico-dedutivo por meio do movimento subsuntivo carecia de uma fundamentação das decisões judiciais, apostando em uma racionalidade universal, a qual, todavia, não poderia ser concretizada. Cada ser humano é único e detentor de suas próprias experiências, convicções e compreensões. Não parece possível, portanto, que se tenha, apenas diante da semântica do texto, o mesmo resultado do movimento subsuntivo para vários julgadores. A subsunção como elemento único de racionalidade passa, então, a demonstrar suas falhas. A partir das características do modelo exegético acima apresentadas, podese perceber a existência de alguns problemas, os quais se consubstanciavam como problemas de difícil resposta quando de uma análise mais perfunctória do Direito. Diante disso, outras Escolas e movimentos surgiram, ainda no âmbito do positivismo jurídico, as quais acabaram por propiciar um decisionismo em excesso, tais como a Escola Histórica, o movimento do Direito Livre e ainda a Jurisprudência dos Conceitos, dominantes nos séculos XVIII ao XIX, a partir de quando se passou a admitir a existência de lacunas na lei.196 Percebe-se, pois, que no combate à subjetividade, mais subjetividade foi gerada, já que diante de uma lacuna na lei, alguém ou algo precisa dizer o direito e, consequentemente, abre-se margem aos atos de vontade. Como resposta às insuficiências apontadas anteriormente, importante destacar a Jurisprudência dos Interesses e a Jurisprudência dos Valores surgidas a partir do século XIX, as quais trouxeram sensíveis e importantes modificações na 196 O movimento do Direito Livre e a Escola Histórica se perderam em si mesmas, se considerada a assistematicidade do movimento do Direito Livre, e a busca histórica e subsequente abdicação a esta, levando a Escola Histórica a abandonar o critério histórico e retornar ao positivismo exegético. No entanto, em que pese a importância de tais fases, optou-se por não se aprofundar com detalhes nestas, por não serem elas objeto central do presente capítulo, o qual busca traçar um caminho até o pensamento de Ronald Dworkin, em observância às suas críticas ao positivismo jurídico. 86 interpretação do direito. Estas, por suas particularidades e pelo desenvolvimento que apresentaram, interessam mais diretamente ao presente estudo, por fazerem parte, efetivamente, do caminho aqui percorrido. Isso porque, a partir da Jurisprudência dos Interesses, os interesses assumem um papel fundamental na atividade jurídica, passando a ser a sua referência principal.197 O Direito se reveste, então, com um objetivo prático, pois estaria direcionado a atender os interesses que o fundamentavam, ainda que devesse respeitar a lei escrita. A partir desta perspectiva, é possível identificar uma estrutura lógico-formal do Direito, no sentido de que o elemento prático permite a introdução de novas finalidades ao direito. A Jurisprudência dos Interesses pode ser mencionada assim como uma “teoria que precisaria não só garantir um esquema de interpretação, argumentação e decisão jurídica com respeito à lei, mas ao mesmo tempo estabelecendo referências às finalidades do direito e também à realidade da sociedade.”198 Segundo Heck, defensor da Jurisprudência dos Interesses, O escopo da Jurisprudência e, em particular, da decisão judicial dos casos concretos, é a satisfação de necessidades da vida, de desejos e aspirações, tanto de ordem material como ideal, existentes na sociedade. São esses desejos e aspirações que chamamos interesses e a Jurisprudência dos interesses caracteriza-se pela preocupação de nunca perder e vista esse escopo nas várias operações a que tem de proceder e na elaboração dos 199 conceitos. A busca pela finalidade do Direito culminava, portanto, na análise dos interesses, a qual, por sua vez, era realizada por meio da sociologia da época. A necessidade, todavia, da absorção de valores e princípios pelo Direito, em especial quando da compreensão de casos concretos, exigiu a transição da Jurisprudência dos Interesses para a Jurisprudência dos Valores. Na Jurisprudência dos Valores, as lacunas da lei são tidas como axiológicas, posto que dizem respeito à valoração do Direito. A partir desta, a matéria extraída da lei é que deve ser aplicada, de acordo com sua carga valorativa. Não mais se tem o 197 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica na Jurisprudência dos Interesses. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 4. 198 Ibidem, p. 6. 199 COSTA, Alexandre Araújo. Hermenêutica jurídica. Disponível em: <http://www.arcos.org.br/livros/hermeneutica-juridica/>. Acesso em: 15 out. 2013. p. 162. 87 direito como uma mera regulamentação formal e nem mesmo como um instrumento que contém em si objetivos práticos, mas sim como uma ciência que possui de fato valores a serem resguardados e aplicados. Sobre a preponderância da Jurisprudência dos Valores, a qual pode ser argumentada até mesmo nos dias atuais, Reale se posiciona no sentido de existir um: [...] entendimento amplo e flexível da vida jurídica em sentido de integralidade, para o qual tem contribuído notavelmente a compreensão do Direito em termos axiológicos, a tal ponto que já se pode admitir uma passagem da Jurisprudência de Interesses para a Jurisprudência de 200 Valores. De outro lado, é viável questionar uma suposta ausência de racionalidade em critérios meramente valorativos, bem como a supremacia destes perante a lei. Isso porque, a ideia de valores (subjetivos) se mostra intimamente relacionada a um critério meramente discricionário, pois o que se consubstancia como um valor válido e relevante para determinado sujeito pode ser plenamente inválido diante de outro. É bem verdade que estas insuficiências e armadilhas, não apenas da Jurisprudência dos Valores, mas também de todas as teorias anteriores, denunciaram o solipsismo do qual o direito era escravo. Todas as propostas que identificam uma carga pessoal do juiz e o individualismo extremo apresentam características que as levariam à ruína.201 Assim, a Jurisprudência dos Valores, surgida diante desta aparente necessidade de considerar aspectos valorativos202 para além dos interesses em 200 REALE, Miguel. Nova Fase do Direito Moderno. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, apud HORTA, José Luiz Borges. Horizontes Jusfilosóficos do Estado de Direito: Uma inverstigação Tridimensional do Estado Liberal, do Estado Social e do Estado Democrático de Direito, na perspectiva dos Direitos Fundamentais. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2002 cit., p. 172 201 Importante ressaltar que, muito embora o abandono do solipsismo seja mencionado na crítica à Jurisprudência dos valores, ainda hoje é possível encontrar um solipsismo interpretativo na prática do direito, quando de julgamentos atropelados por critérios exclusivamente pessoais e discricionários. A integridade proposta por Dworkin visa, inclusive, afastar esta carga solipsista, na medida em que torna o juiz responsável por suas decisões de acordo com os princípios de uma comunidade, independentemente de suas convicções pessoais. 202 Em relação aos aspectos valorativos, esclarece-se que são “[...] reconhecimento de valores ou critérios de valoração supralegais ou pré-positivos que subjazem às normas legais e para cuja interpretação e complementação é legítimo lançar mão, pelo menos sob determinadas condições. Pode-se a este propósito invocar os valores positivados nos direitos fundamentais, especialmente nos artigos 1º a 3º da Lei Fundamental, recorrer a uma longa tradição jusfilosófica, a argumentos lingüísticos ou ao entendimento que a maior parte dos juizes tem de que é sua missão chegar a decisões justas. A quase totalidade dos autores envolvidos nas mais recentes discussões 88 casos concretos, apresentou o ilusório intuito de solidificar e justificar a aplicação do direito. Não obstante, ela acabou por carregar consigo uma carga subjetiva deveras grande que, em uma perspectiva mais aprofundada, comprometia a certeza do direito.203 A partir destas distorções e vícios da Jurisprudência dos Interesses e Jurisprudência dos valores que, a bem da verdade, culminavam em uma ótica discricionária do direito, Hans Kelsen, expoente do positivismo normativo, trabalha as suas ideias, refutando estes aspectos anteriores, em virtude de enxergar uma suposta abertura no direito (direito como um ramo da sociologia e não mais como uma ciência) que poderia comprometer a sua racionalidade científica. Naquele momento, o grande diferencial da ideia de Kelsen foi a problematização do fato de que o Direito não é oriundo de uma determinação externa (como seria na Jurisprudência dos Interesses, quando advindo da sociologia) e nem de uma determinação interna (do psíquico, como na Jurisprudência dos Valores), mas sim o resultado de uma interpretação. Neste sentido, a interpretação é, segundo Kelsen, uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior204, ou seja, cuida-se de um ato de conhecimento205. Para entender Kelsen, todavia, é preciso primeiramente se aventurar, ainda que de forma breve, em questões que se remetem aos seus referenciais teóricos. É preciso, pois, salientar que o século XIX, em seu contexto filosófico, sociológico, econômico e político, com diretas influências no cenário jurídico, foi marcado pela ocorrência de duas grandes modificações que o tornaram um divisor de águas para metodológicas partilha a concepção de que o Direito tem algo a ver com a justiça, com a conduta socioeticamente correta”. LARENZ, K. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 167. 203 Segundo Lenio Streck, a jurisprudência dos valores abria caminhos distorcidos de sua aparente proposta: “[...] nos anos que sucederam a consagração da lei fundamental, houve um esforço considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legitimar uma carta que não tinha sido constituída pela ampla participação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da Lex, ou seja, a invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora estrutura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de abertura de uma legalidade extremamente fechada, que possibilitaria, em alguma medida, o totalitarismo nazista.” STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 21. 204 KELSEN, H. Teoria pura do direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984. p. 463. 205 Para Streck, as teorias posteriores a Kelsen não compreenderam com exatidão a sua teoria, pois o ato de interpretar reconhecido por Kelsen era tido como um ato de conhecimento, ao passo que o ato de vontade decorrente da interpretação foi por ele considerado como uma fatalidade. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 77. 89 a compreensão da linguagem e da relação dos sujeitos no mundo contemporâneo, as quais receberam a denominação de “Viragem Linguística”. Esta passagem pelas Viragens Linguísticas se faz importante neste ponto, pois a partir destas origina-se uma grande aposta na quase plenipotência das palavras, as quais adequadamente postas, seriam suficientes para qualquer interpretação do direito e das coisas. Significa, pois, que se constroem conceitos capazes de abraçar todas as coisas e elementos, agora não mais pela razão, mas sim pela sua estrutura linguística. Daí sustenta-se a ideia kelseniana e, a partir dela, pode-se traçar o caminho em direção às propostas de Ronald Dworkin. Neste sentido, com diretas influências do Círculo de Viena206, uma resposta inicial às vicissitudes até então apontadas nas teorias anteriores à Kelsen, surgiu com a primeira viragem linguística, denominada “Viragem Linguística Lógica”, que teve como um de seus principais representantes Ludwig Wittgenstein, em meados de 1922207 e promoveu sensíveis transformações que culminaram na linguagem como o centro de uma reflexão filosófica. Depois dela, o sentido das coisas passou a não estar mais nem nas coisas, nem na consciência, mas na linguagem do ser, entendida esta como relação essencial e ainda como tudo o que torna possível o entendimento entre as pessoas. A partir daquele momento, só poderia se conhecer aquilo que poderia também se expressar. Isso significa que embora possa existir um mundo muito maior do que aquele que se quer ver, se não conseguir expressá-lo, não será possível enxergá-lo. 208 Tem-se, portanto, que a palavra intermedia a tensão entre sujeito e objeto. Assim, com a viragem linguística lógica, o modo de se pensar as coisas estava centrado no sentido dado pela interpretação. Trazendo esta questão para o 206 O Círculo de Viena foi uma associação fundada na década de 20 por um grupo de lógicos e filósofos da ciência, tendo por objetivo fundamental chegar a uma unificação do saber científico pela eliminação dos conceitos vazios de sentido e dos pseudoproblemas da metafísica e pelo emprego do famoso critério da verificabilidade que distingue a ciência (cujas proposições são verificáveis) da metafísica (cujas proposições inverificáveis devem ser supressas). Ao recusar a introdução dos elementos sintéticos a priori no conhecimento, o Círculo, liderado por Rudolf Carnap, visando eliminar definitivamente a metafísica, prega que todos os enunciados científicos devem ser sempre a posteriori, pois não são outra coisa senão simples constatações, ou seja, enunciados protocolares, só tendo significado pelo conjunto lógico, isto é, pelo sistema de transformações analíticas no qual se integram. Para maiores esclarecimentos ver JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 207 O chamado giro linguístico teve origem no Círculo de Viena, com as influências de Wittgenstein em sua obra Tractatus, além de Rudolf Carnap e outros, sustentando o neopositivismo lógico. 208 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1961. 90 caminho aqui traçado, nota-se a sua discrepância com a ideia da Escola da Exegese e seu positivismo clássico, o qual, conforme já abordado, limitava a aplicação do Direito à mera observância da literalidade dos textos, existindo, pois, uma relação íntima com a razão plena. Este positivismo legal que se constituía observando a lei como um monopólio do Direito209, parecia ruir diante da proposta de inserção do novo elemento, qual seja, a interpretação das palavras. O normativismo kelseniano, por outro lado, ganha força diante desta viragem, pois nele a importância das palavras se coloca como um núcleo central, a partir do qual a linguística passa a ser combinada com a lógica formal do direito. Kelsen busca a pureza da teoria do direito, todavia, esta apenas será alcançada mediante o entendimento de que as palavras trazem com elas a necessidade de uma interpretação.210 Isso porque, a partir das influências desta Viragem e do deslocamento do conhecimento ao sujeito, o Direito passa a não estar mais na lei ou no texto da lei, sendo que o seu sentido passa a ser determinado pela interpretação, isto é, o Direito é norma e norma é resultado da interpretação dos textos jurídicos.211 Intensifica-se com Kelsen o processo de rompimento com o positivismo exegético, sem contudo se abrir para o mundo concreto, no qual a razão retiraria a pureza cientificista do saber, já que enquanto moderno busca-se um resultado empírico. A ideia então construída pretendia que tudo que há no mundo tem que caber na nossa língua, de forma que se modificou, oportunamente, a compreensão de mundo.212 Por isso, entendia-se que “os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”213. Houve, assim, um rompimento com a filosofia da consciência (metafísica), colocando o Direito, como uma ciência da linguagem, não apenas no sentido das palavras, mas efetivamente na lógica de suas estruturas de construção. 209 HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Portugal: Publicações Europa-América, 1997. p. 267. 210 Considerar o viés de ato de vontade da interpretação como uma fatalidade mantinha a pureza metodológica de sua teoria, que permanecia a salvo da subjetividade, da axiologia, da ideologia, etc. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 77. 211 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 389-390. 212 Numa palavra: interpretar é compreender. E compreender é aplicar. A hermenêutica não é mais metodológica. Não mais interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 294. 213 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Op. cit., p. 111. 91 Percebe-se, portanto que, partindo destes referenciais teóricos e tendo o seu pensamento inserido na proposta da Viragem Linguística, Hans Kelsen buscava construir uma linguagem nova e própria para o Direito, o que revelava, pois, ser a pureza da teoria do Direito. O objetivo precípuo da Teoria Pura do Direito era, então, garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto.214 Para Kelsen, o elemento responsável por manter um fechamento ou a própria pureza da teoria do direito é a norma fundamental. Esta não possui um fundamento exterior ou um interior, nem tampouco conteúdo, valor ou princípio, cumprindo tão somente um requisito de justificação de comportamento, de forma que, para Kelsen não deveria se admitir influências externas ao direito.215 Seria, portanto, uma norma pressuposta que se configura como uma condição sem a qual o direito não pode ser criado, isto é, passa a norma a ser o objeto principal do direito. Esta proposta de uma nova linguagem para o direito, parece se sustentar na ideia de que se a ciência normativa deve seguir uma lógica do dever-ser, então ela não pode admitir determinações externas ou internas, mas tão somente uma determinação acerca da lógica do dever, que, por sua vez, pressupõe uma linguagem analítica. Ressalta-se, então, a relevância da interpretação. Assim, em relação à norma fundamental, Kelsen propõe a aceitação da “validade das normas jurídicas em normas jurídicas hierarquicamente superiores e temporalmente pré-existentes”.216 A validade do Direito está no próprio Direito.217 A norma como objeto central do direito passa a ser o seu próprio parâmetro de validade. A partir disto, Kelsen afirma duas dimensões o Direito, quais sejam o Direito como 214 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 1. É de significativa importância destacar que a Constituição Federal não é e nunca foi tida como a norma fundamental mencionada por Kelsen. Assim, se a norma constitucional tivesse a sua validade contestada, esta seria comprovada, igualmente, mediante a sua adequação perante uma norma fundamental. 216 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 215. 217 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica no Neopositivismo de Hans Kelsen. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 30 215 92 [...] uma ordem transcendente ideal, que não é estabelecida pelo homem mas lhe está supraordenada, e uma ordem real estabelecida pelo homem, 218 isto é, positiva. Sob esta perspectiva, a novidade e crítica apresentada por Kelsen e que modificou as concepções sobre direito se sustenta na ideia de a norma sempre levantar possibilidades de interpretação, haja vista a parcial indeterminação existente nos textos da lei. Isso porque, tal indeterminação, invariavelmente, culminará na interpretação, que por sua vez será sempre uma escolha, embora esteja esta limitada àquilo que foi por ele chamado de “moldura”. A moldura proposta por Hans Kelsen, contudo, apresenta determinada limitação de um lado, já que as possibilidades de interpretação estão nela inseridas. Entretanto, doutro lado, permite a extrapolação da norma, bem como do texto e de suas possibilidades, configurando por si só como um paradoxo. Em verdade, a moldura é a confissão de que a subsunção por si só não funciona. Assim, Kelsen afirma que, [...] o direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao direito todo o ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que 219 preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Não obstante as críticas sofridas, esta novidade apresentada por Hans Kelsen se fez tão sólida que ainda hoje sentimos os seus reflexos, mormente quando da aplicação do direito em casos concretos e na atuação do Poder Judiciário, tal como se encontra estruturado. A partir da proposta de Hans Kelsen, não seria possível encontrar uma única interpretação correta para uma norma, posto que a linguagem pode ser sempre entendida de várias formas, as quais ficam limitadas (e ao mesmo tempo liberadas, como acima mencionado) apenas à moldura ou ao quadro do Direito, em que pese esta moldura colocar freio a possível arbitrariedade. De acordo com seu entendimento, “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que têm igual valor”.220 218 KELSEN, Hans. O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 68. 219 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Op. cit., p. 467. 220 Ibidem, p. 391. 93 Assim, uma leitura kelseniana do problema relativo às cotas parece indicar que inexistiria uma resposta correta, sendo, no entanto, possível justificar as possibilidades de resposta do direito situadas dentro da moldura, por ser este o espaço fixo dentro do qual se pode falar em indeterminação. A decisão desta análise se caracterizaria, portanto, como a escolha de uma das possibilidades de intepretação. Assim, o ato de julgar esta questão proposta seria, ainda que veladamente, um ato de vontade, onerando notoriamente, a figura do juiz. Os juízos de justiça, hoje muito questionados quando se pensa na “discriminação compensatória” ou “discriminação positiva” estariam em Kelsen afastados desta análise, pois segundo ele tais juízos não podem ser postos à prova objetivamente, portanto, na ciência do Direito, não tem espaço para eles.221 A partir do momento que a decisão passa a ser uma escolha entre alternativas, os juízos de valor estão intrínsecos no julgador e não mais fazendo parte do Direito.222 Assim, a ideia de “ser justo” fará parte do aspecto emocional do julgador. Segundo Kelsen, a ciência jurídica “não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de valor"223. Kelsen propôs um paralelo entre texto e norma, identificando a divergência destes elementos, sendo que o primeiro seria a palavra contida na legislação e o segundo seria o sentido do texto legal. Essa dicotomia permite a percepção de que neste “Neopositivismo jurídico”, a lógica analítica possui maior peso. Neste aspecto, vale aqui recordar a cisão entre questões de fato e questões de direito que prevalecia naquele momento. As questões de fato seriam relacionadas às circunstâncias que ocorreram, isto é, ao caso concreto analisado, enquanto que as questões de direito se caracterizam como o fundamento e embasamento normativo que se encaixa no caso concreto a ser analisado. Essa separação se faz notória no positivismo normativo, a partir do momento em que as questões de direito serão aplicadas por meio do 221 KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Cidade: 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 222-223. 222 Embora estejamos falando em uma concepção kelseniana, ainda hoje é possível encontrar muitos julgadores que efetivam os seus julgamentos a partir de valores totalmente subjetivos. Conforme Strek, “o caso concreto passou a servir de álibi para qualquer decisão, proferida segundo a subjetividade (vontade) do juiz ou do tribunal.” STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 79. 223 KELSEN, Hans. O problema da justiça. Op. cit., p.16. 94 movimento subsuntivo às questões de fato, consubstanciando a diferença de planos destes elementos. É preciso, no entanto, considerar a tensão entre as coisas e os seus possíveis modos, especialmente porque as palavras nem sempre satisfazem o sentido das coisas, o que não fica claro na teoria kelseniana. Significa que a concepção da linguagem como núcleo da aplicação do direito por meio da norma parece limitar o conhecimento, tendo em vista a própria insuficiência das palavras. A presente crítica se justifica, pois, embora seja a palavra uma condição de possibilidade, ela sozinha não é capaz de dar sentido a todas as coisas e em todo o tempo. Esta noção de que inexiste a cisão entre questões de fato e questões de direito e que os objetos e ideias não podem ser separados será entendida apenas muito tempo depois de Kelsen, tendo, para tanto, importantes contribuições de Castanheira Neves. A divisão do mundo em dois planos, tal como pensado por Kelsen, parece perder o sentido para Neves, pois toda questão de fato é também questão de direito e vice-versa.224 Para Castanheira Neves, o caso concreto deve ser entendido como um problema jurídico, um problema de direito, em uma certa situação histórica e real.225Não se pode, a partir desta perspectiva, entender a questão de fato e a questão de direito como fatores existentes em planos distintos, pois um apenas ganha sentido com a influência do outro. A problematização jurídica de um caso concreto é por si só a ilustração desta necessária imbricação. Castanheira Neves assim explica: Ao considerar-se a questão-de-fato; ao considerar-se a questão-de-direito não pode prescindir-se da solidária influência da questão-de-fato. Ou numa formulação bem mais expressiva: "para dizer a verdade o "puro fato" e o "puro direito" não se encontram nunca na vida jurídica: o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de aplicar o facto; pelo que, quando o jurista pensa o facto, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada 226 ao facto. 224 NEVES, Antônio Castanheira. Questão-de-facto, questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade: (ensaio de uma reposição crítica). Coimbra: Almedina, 1967. p. 55-56. 225 NEVES, Antônio Castanheira. A distinção entre a questão-de-fato e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como Tribunal de “Revista”. In: NEVES, Antônio Castanheira. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. v. A, p. 483-539. p. 517. 226 NEVES, Antônio Castanheira. Questão-de-facto, questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade: (ensaio de uma reposição crítica). Op. cit., p. 55-56. 95 Considerando-se, pois, que o fato corresponde ao ser e o direito corresponde ao dever-ser, a segregação estanque destes elementos não sobrevive, já que, em verdade, o direito é a análise normativa de um fato, de forma que um pensamento jurídico apenas se sustentará mediante a análise da problemática advinda dos fatos.227 A fragilidade da divisão kelseniana entre ser e dever-ser; entre fato e direito, portanto, se torna aparente. A proposta de Kelsen, embora deveras importante no caminho de compreensão do direito, apresenta a sua falibilidade, a qual, conforme visto, é oriunda da completa aposta nas palavras e na subsunção, problemas que hoje se tornaram mais notórios e evidentes. Em verdade, Kelsen acaba por se tornar escravo ou, talvez, se enconder dos limites da moldura por ele próprio criada, não podendo limitá-la e nem tampouco expandi-la, sob o risco de perder-se ou perder sua teoria. Estes problemas decorrentes do positivismo normativista permitiram o surgimento de outros pensamentos, os quais, embora sejam também considerados como positivistas, assumem novas feições. Assim sendo, rompido o modo de ver o ser e o vir a ser, novos problemas surgem, nos fazendo deslocar para Herbert Hart, que pode ser compreendido como representante do neopositivismo semântico, em vista das suas peculiaridades. Hart sustenta a necessidade do elemento regra em qualquer explicação sobre o sistema jurídico, aduzindo uma centralidade do conceito “regra”.228 Segundo Hart, as regras não compõem um modelo homogêneo, mas sim um modelo heterogêneo que se subdivide em regras primárias (estipulam um dever) e regras secundárias (estabelecem poderes e identificação).229 227 Castanheira Neves ainda critica: “(...) o direito não é elemento, mas síntese; não é premissa de validade, mas validade cumprida. (...) Pelo que o sem-sentido metodológico do esquema normativista-subsuntivo é agora um evidência. Não é “ o direito” que se distingue de “o fato”, pois o direito é a síntese normativo-material em que o facto é também elemento, aquela síntese que justamente a distinção problemática também fundamenta.” NEVES, Antônio Castanheira. Questãode-facto, questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade: (ensaio de uma reposição crítica). Op. cit., p.58. 228 Na concepção de Dworkin, em que pese inúmeras críticas direcionadas a Hart “A versão do positivismo de H.L.A. Hart é mais complexa que a de Austin. Em primeiro lugar, ele reconhece ao contrário de Austin, que regras podem ser de tipos lógicos diferentes (Hart distingue dois tipos de regras, que chama de ‘primárias’ e ‘secundárias’). Em segundo lugar, ele rejeita a teoria de Austin segundo a qual uma regra é uma espécie de ordem e a substitui por uma análise mais elaborada e geral do que são regras.” DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Levando os direitos a sério. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 31. 229 Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 96 Hart trabalha com a ideia da existência de uma norma de reconhecimento, a qual se faz como um instrumento que identifica a regra como regra dentro de um sistema. Para ele, a norma de reconhecimento é a situação social em que os membros do grupo e autoridades possuem um critério comum para identificar as regras primárias de obediência.230 Segundo Hart, A norma de reconhecimento que estabelece os critérios para avaliar a validade de outras normas do sistema é, num sentido importante, que procuraremos esclarecer, uma norma última (ultimate rule); e, quando, como geralmente ocorre, houver diversos critérios hierarquizados por ordem de subordinação e primazia relativa, um deles será considerado supremo 231 (supreme). A existência da regra de conhecimento, manifestada no seu uso pelos tribunais e funcionários para identificar as regras do sistema, se confirmaria pela sua aceitação por meio do exame dos enunciados das pessoas que a utilizam. Assim, a norma de reconhecimento seria comprovada mediante a maneira como os tribunais identificam o direito, e à aceitação geral dessas identificações ou obediências a elas.232 Isto é, seria possível, conforme Hart, a existência de um ponto de vista interno, o qual representa uma regra, e do ponto de vista externo, que representa o fato da observância de uma regra. Regra válida é, desse modo, aquela identificada como regra do sistema por meio dos critérios de regra de reconhecimento. Assim, segundo Hart, a validade da norma nem mesmo se caracteriza como um atributo da norma de reconhecimento. Para ele, não pode surgir um questionamento sobre a validade da própria norma de reconhecimento que provê critérios, pois esta não pode ser válida, nem inválida.233 Em Hart, é a regra de reconhecimento a resposta para o problema do fundamento último do sistema jurídico, por meio de critérios de aceitação. Percebese, pois, que esta visão positivista não consegue abordar as questões de nível prático, tais como a referente às cotas, por se fechar em um modelo teórico, esquecendo-se das relações humanas. Daí a dificuldade de se ler o problema das cotas sob esta perspectiva e de se tornar essencial a compreensão a partir de Dworkin. 230 Cf. HART,H.L.A. Op. cit., p.129-130. Ibidem, p. 136. 232 Ibid., p. 140. 233 Ibid., p. 140. 231 97 Hart realiza uma notória separação entre o Direito e a Moral, embora vislumbre um conteúdo comum mínimo entre estes, normalmente relacionado ao direito natural e a uma abstenção, geralmente formulada em termos negativos como proibições234. Este filósofo não ignora a existência de questões morais, tampouco a eventual afinidade desta com o Direito, mas argumenta que estes elementos – Direito e Moral – devem se manter em planos separados e distintos. Segundo Hart, não se pode negar que o desenvolvimento do direito tem de fato sido influenciado, tanto pela moral quanto pelos ideais convencionais de grupos, no entanto, isso não significa que necessariamente o sistema jurídico deve mostrar alguma conformidade específica com a moral ou justiça, ou basear-se obrigatoriamente numa convicção amplamente difundida de que existe a obrigação moral de obedecer à lei.235 Inclusive no que concerne ao critério de aceitação da regra de reconhecimento por ele defendido (ponto de vista interno), Hart refuta a influência da moral e a conotação valorativa deste elemento, justificando-o no temor, na inércia da vontade, respeito pela tradição ou no cálculo egoístico dos interesses. Não significa, no entanto, que o Direito não reconheça elementos morais. Para Hart, A lealdade das pessoas ao sistema pode, na verdade, se basear em muitas considerações diferentes: cálculos do interesse a longo prazo; consideração desinteressada por outras pessoas; uma atitude irreflexiva herdada ou tradicional; ou o simples desejo de agir como os demais. Não há realmente nenhuma razão para que os que aceitam a autoridade do sistema não examinarem sua consciência e decidam que, moralmente, não deveria 236 aceita-la; e entretanto, por diversas razões, continuem a fazê-lo. Diante de um caso, então, tal como relativo às cotas, por meio de uma leitura de Hart, poder-se-ia entender que haveria a possibilidade de adoção de um ou mais critérios morais, pois esta escolha nem sempre tem um significado claro a oferecer, não havendo, todavia, uma conexão necessária entre estes elementos. 237 As ideias trabalhadas por Hart ainda parecem aduzir a necessidade de se precisar conceitos debatidos originariamente por juristas, de uma forma descritiva. Seria possível para Hart a identificação de uma essência do Direito. Ronald Dworkin, 234 Ibid., p. 251. Ibid., p. 239. 236 Ibid., p. 262. 237 Ibid., p. 264. 235 98 ao analisar e criticar as propostas de Hart compara esta essência do direito com o DNA, reconhecendo-se o direito e instrumentos jurídicos por meio de um processo científico e não normativo.238 Assim, Hart tem a ideia de justiça assentada no fato de que sempre que o comportamento humano for controlado por normas gerais, publicamente anunciadas e judicialmente aplicadas, um mínimo de justiça é necessariamente concretizado.239 Em observância às ideias de Hart, todavia, é possível notar que, não obstante a discordância do próprio jurista neste aspecto, a regra de aceitação do direito por ele proposta possui, de fato, uma conotação valorativa, já que do ponto de vista interno, a pressão por esta aceitação se daria por serem as regras valorosas e necessárias para a manutenção da vida social. Neste sentido, a própria teoria apresentada por Hart já sucumbe aos seus próprios argumentos. Ademais, em relação à regra de conhecimento enquanto fundamento de validade, é inviável se admitir que esta elencaria todos os critérios de validade possíveis e, sendo assim, pela própria leitura de Hart seria ela insuficiente como instrumento de identificação das normas de um sistema, prejudicando a ideia de sistema jurídico. Além disso, a regra de reconhecimento se faria válida em virtude de sua circularidade, já que se manifesta pela prática dos Tribunais. Contudo, é bem verdade que se os próprios Tribunais são identificados pela regra de conhecimento, esta pressupõe que o sistema já esteja funcionando, tornando, igualmente, esta teoria falha e eivada de vícios. Diante disto, após as leituras acima e a identificação de suas respectivas vicissitudes que inviabilizam a adoção das ideias até agora apresentadas, e a fim de traçar um caminho até Ronald Dworkin como forma de se buscar possibilidades de resposta para o caso relativo às cotas, parece necessário abordar também o cenário criado com a Viragem Linguística Ontológica, com Martin Heidegger, até alcançarmos a perspectiva de Gadamer. O adequado entendimento da Viragem Linguística se mostra importante na medida em que esclarece o último giro linguístico, o qual apresenta um núcleo central em que o presente trabalho se assenta, qual seja, a ideia de intersubjetividade. 238 239 Cf. DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 216. HART, H. L. A. Op. cit., p. 266. 99 Primeiramente, já lançando mão da perspectiva histórica, destaca-se que desde Aristóteles havia sido estabelecida a distinção entre conhecimento teorético (científico) e conhecimento prático (prudencial), o qual pergunta pela correção normativa das nossas práticas no mundo240. Tratava-se, então, de uma relação tensa entre o sujeito e o objeto, com ênfase neste último, posto que o conhecimento estava nas coisas, prevalecendo os ideais de uma razão pura. Cuidava-se, portanto, de um razão cientificista, objetificante e assujeitadora do objeto. Após o século XV, todavia, a ideia de que a ciência fornecia todas as respostas necessárias perdeu forças, cedendo espaço à filosofia da consciência241, a qual possuía um aspecto mais subjetivista. Nesta, a linguagem é tida como um instrumento que relaciona o sujeito e o objeto, dando ênfase ao primeiro. O conhecimento passa a estar no pensamento, isto é, na consciência interior de cada sujeito. O pensar é tido como a forma de se estruturar a percepção de como o mundo realmente é, isto, a reflexão se concentra naquilo que é pensado242. Com diretas influências de Immanuel Kant243 (Crítica da razão pura e Crítica da razão prática), um dos principais precursores da filosofia da consciência, o sentido das coisas passa a não estar mais nas coisas, mas sim na consciência, no sentido de entendimento das coisas. Neste cenário, o direito era fundamentado como diferente da moral, em virtude desta ser da consciência de dever interno e aquele como uma consciência do dever de fora. Ao lado de Kant, Descartes entende o pensamento como o fundamento de tudo, tornando famosa a ideia de que “penso, logo sou”.244 Neste viés, o homem se conheceria como tal, reconhecendo a sua existência, por meio da sua atividade pensante. O empirismo de David Hume, a quem é também atribuída esta virada 240 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão para além do constitucionalismo e democracia. Op. cit., p. 156. 241 A filosofia da consciência pode ser considerada como uma virada paradigmática advinda na modernidade, pela qual o conhecimento se deslocou do objeto para o sujeito, no sentido que a linguagem se colocava como um terceiro instrumento entre eles. O conhecimento deixa de estar na coisa e passa a estar na razão. O caráter subjetivo do conhecimento passa a prevalecer sobre a objetividade e cientificidade até então predominantes. 242 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1995. p.109. 243 Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. 244 Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura de DESCARTES, Rene. Discours de la Méthode. Paris: Larousse, 1972. 100 paradigmática245, contribuiu igualmente para a concepção subjetiva, entendendo que o conhecimento teria origem em ideias e impressões, isto é, na experiência de cada ser humano. A noção de conceitos dependia, então, de fundamentos e conceitos práticos que os definiam, havendo a busca pela certeza e por um fundamento da verdade, de forma lógica e racional. Buscava-se fontes e critérios que pudessem definir os limites da razão. Vale mencionar que tanto na visão aristotélica (objetivista), quanto na filosofia da consciência (subjetivista), a linguagem representa um mero instrumento que liga o conhecimento do objeto ao sujeito, na primeira, e o conhecimento do sujeito ao objeto, na segunda. A linguagem, portanto, se transforma em relação instrumental.246 Por fim, a partir da filosofia de linguagem, nosso ponto principal, a relação passa a ser sujeito-sujeito, pois o conhecimento transfere-se para a linguagem. É neste aspecto que se encontra o início do desenvolvimento da hermenêutica política de Dworkin. A relação entre objeto cognoscível e sujeito cognoscente é de grande importância para o entendimento do caminho proposto por este trabalho. É curial que se entenda que inicialmente o objeto dominava o próprio sujeito, isto é, o objeto o assujeitava. Não interessava a racionalidade do sujeito, pois a correição de entendimento estava objetificada. Já em um seugndo momento, o sujeito passa a dominar o objeto, sendo possível ai o estabelecimento de inúmeros sentidos para uma mesma situação, já que cada sujeito compreendia o objeto, a partir do seu próprio ponto de vista. Finalmente, em um terceiro momento, abre-se espaço para a relação entre sujeitos cognoscentes, sendo a linguagem a forma do conhecimento. A busca da ruptura do esquema sujeito-objeto significa, pois, conceder à liguagem o status de condição de possibilidade de uma hermenêutica, pois permite a inserção do mundo prático no mundo das ideias. Sigifnica, portanto, que a interpretação deixa de se concentrar apenas no âmbito das ideias e passa a existir também no mundo concreto. Tem-se, pois, que a partir viragem linguística ontológica, “estar-ai” no mundo seria estar no mundo construído pela linguagem, sendo que é exatamente o fato de 245 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 175. 246 Ibidem, p. 254. 101 nos comunicarmos por meio de linguagem que nos distingue dos animais. As palavras tornam-se, assim, condição de possibilidade. Foi esta uma viragem linguística mais filosófica ou, quiçá, poética, a qual considerava que a língua é a morada do ser.247 A partir desta nova visão, pretende-se enxergar e buscar a essência do ser. Pode-se afirmar que hoje só enxergamos aquilo que é um ente (materialmente falando). A importância desta segunda Viragem Linguística é notória, uma vez que, rompida a razão pura a partir das ideias de Wittgenstein, é lançada um carga deveras pesada sobre as palavras, conforme já verificado. Em real verdade, no entanto, naquela oportunidade deixou-se de observar a insuficiência do que seja uma palavra e de como ela pode representar tudo aqui que existe. Parece, então, necessária a retomada da construção das coisas por elas mesmas e por intermédio das palavras, preenchendo, concomitantemente, a lacuna deixada. Diante disto, faz-se adequada a busca pelo ser presente no ente. A compreensão ontológica, “é a forma originária de realização do ser-aí humano enquanto ser-no-mundo”.248 Neste sentido, Heidegger observou que a palavra parecia insuficiente. A palavra havia adquirido uma plenipotência que não possui, sendo que para completá-la seria necessário o elemento “tempo”, o qual definirá os limites, sentidos, perspectivas e possibilidades da palavra como caminho para expressão. Martin Heidegger trata ainda da cura, como autocompreensão, no sentido de que é preciso que o ser se compreenda para que possa, então, compreender suas possibilidades, abrindo-se para si no estar-lançado. Para Heidegger, o estarlançado, porém, é o modo de ser de um ente que sempre é suas próprias possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas).249 A autocompreensão, desta forma mencionada como cura, está presente no pensamento de Martin Heidegger como uma forma de preocupação com o sentido do ser, construindo, assim, a hermenêutica como elemento de ligação com o próprio preocupar-se do homem consigo mesmo. Na medida em que se compreende, o 247 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I e II. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 40. 249 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005. p. 244. 248 102 homem compreende o ser e, assim, compreende-se a si mesmo.250 A pre-sença é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.251 A dúvida consiste, todavia, no que seja o ser. Na visão da filosofia da hermenêutica de Heidegger, o ser está naquilo que é óbvio para nós, isto é, aquilo que dispensa qualquer questionamento. É o pressuposto na linguagem; é um sentimento e uma percepção que temos sobre as coisas (é, em verdade, um outro mundo).252 A linguagem funciona como um mecanismo de mediação entre o sujeito que conhece (sujeito cogniscente) e o objeto a ser conhecido (objeto cogniscível). Oportuno destacar que a linguagem pode ser considerada, em verdade, como uma série de acordos linguísticos pré-estabelecidos. A linguagem é acessória e instrumental, todavia não fica relegada a um terceiro plano, já que atua mediando a razão e o ser253. A grande tensão ocorre quando não se consegue modular essa linguagem. Quase toda a filosofia, até Heidegger, trabalhou essencialmente com a distinção entre a razão prática (ética, moral, normas em geral) e razão pura (ciência, metodologia). No entanto, para Heidegger, a razão prática, a razão pura e tudo aquilo que se observa no mundo é uma dimensão apofântica (Não há nenhuma garantia de verdade no que é feito na dimensão da experiência científica e humana). A dimensão verdadeira passa a ser a hermenêutica.254 Significa, pois, que tudo aquilo que organizamos racionalmente são “coisificações” que utilizamos para conseguir lidar com toda a complexidade em que 250 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 108. 251 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Op. cit., p. 256. 252 “Insere-se aqui o Dasein que, segundo Heidegger, é a condição ôntica da possibilidade de descobrir o ente que se encontra no mundo, no modo de ser da prestabilidade. O Dasein é de tal maneira que sempre “soube” (compreendeu) – ou não “soube” (compreendeu)-ser tal ou tal. O Dasein é, pois, pré-ontológico, isto porque o sentido de ser que é buscado já é alcançado préontologicamente na compreensão do Dasein”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 251. 253 Destaca-se que a linguagem possui caráter instrumental, todavia enquanto um instrumento fundamental. Conforme Lenio, “a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. p. 217. 254 Para Rafael Lazzarotto Simioni,” [...] somente com a virada linguística da filosofia hermenêutica de Heidegger tornou-se possível superar [aquela] cisão entre teoria e prática ou entre razão pura e razão prática. Essa é uma longa história que não cabe aqui conta-la. O importante é ter presente que o mundo prático é a dimensão da experiência humana e social na qual são articulados todos aqueles valores éticos e convicções morais que constituem o sentido da integração social e – se assim se quiser – o sentido da humanidade do homem. É precisamente o resgate desse mundo prático que constituiu a tarefa pós-positivista da decisão jurídica. Mas como ter acesso a ele sem se deixar contaminar por todas as ideologias e diferenças culturais nele presente?” SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito. Op. cit., p. 142. 103 vivemos. Mas o verdadeiro sentido das coisas está na dimensão hermenêutica e naquilo que podemos ver e entender sem questionar, tamanha sua obviedade (nem sequer chegamos a percebê-lo).255 A Virada linguística ontológica é, então, sentimento, sensibilidade para entender que a interpretação que o sujeito faz em relação ao mundo não tem relação com a experiência científica que se vive (Heidegger descobriu um novo mundo: o mundo hermenêutico). A compreensão se faz sempre circular, já que na medida em que desvela sentidos, esconde outros. A circularidade da compreensão se caracteriza como um meio de testificação, já que a partir dela, ideias são construídas, difundidas e testadas, muitas vezes, de forma inautêntica. É por meio desta circularidade que fundamentos de horizontes já constituídos serão questionados e averiguados, de forma que, quando houver incompatibilidade daquilo que se propagou e que se tem como précompreensão com uma fundamentação diversa, ocorrerá o estranhamento, gerando, via de consequência, novas (pré)compreensões. A difusão do pensamento heideggeriano ocorreu de forma célere e extensiva, em virtude do espaço por ele conquistado, tendo como um de seus principais discípulos Hans-Georg Gadamer que, continuando as suas ideias, desenvolve uma nova forma de pensamento, a qual foi denominada “hermenêutica filosófica”. Em que pese a existência de semelhanças entre as teorias de Heidegger e Gadamer, decorrentes da própria influência que o primeiro exerceu sobre este último, a hermenêutica filosófica parece carecer do caráter eminentemente filosófico outrora encontrado no pensamento heideggeriano. Vale mencionar que tanto Heidegger quanto Gadamer não refutam a existência de métodos. Os seus pensamentos, no entanto, desconstituem o método como algo que por si só leva à verdade, ou seja, é preciso ir além dele. Está ai a essência da hermenêutica filosófica. Neste sentido, o processo de conhecer as coisas transcende uma simples tarefa ordenadora de passos e etapas construída de maneira ideal, de forma a adequar o conhecer às coisas sem de fato ter contato com elas. Na perspectiva de Gadamer, a linguagem é a condição de todas as coisas e, por isso, entende que ser que pode ser compreendido é linguagem. Para ele, o 255 Para maiores, consultar STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001. 104 sentido não se encontra somente na locução ou no que está escrito, mas em todas as criações humanas, sendo seu descobrimento uma tarefa hermenêutica. É preciso, portanto, deixar que as coisas falem sobre elas antes de se chegar a uma conclusão precipitada. Diante desta nova visão, diferentemente de Heidegger, a compreensão em Gadamer é desenvolvida no contexto de um projeto que procura recuperar a historicidade da cultura e do mundo vivido256, em uma perspectiva crítica e nova. Daí a importância da (re)construção histórica proposta no primeiro capítulo, pois é a partir da análise de uma herança jurídica que será possível preencher as lacunas temporais do direito. 257 Gadamer, baseado na fenomenologia de Edumund Husserl e Heidegger, atuou basicamente em face do extremo positivismo e suas verdades absolutas, indicando maior primazia à compreensão da adequação por meio da linguagem do que à questão de método. A linguagem é elevada na hermenêutica filosófica de Gadamer, sendo esta que determina a compreensão, limitando a capacidade de agir do indivíduo e de observar e/ou analisar o mundo de acordo com sua linguagem. A linguagem afasta o intérprete da subjetividade. 258 Se antes da viragem linguística ontológica, o sentido das coisas estava na compreensão, para Gadamer, a tarefa hermenêutica se converte por si mesma num questionamento pautado na coisa, e já se encontra sempre determinada por este. Significa, pois, que aquele que quer compreender não pode se entregar às suas opiniões prévias e ignorar a opinião do texto; não até que este já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão.259 Diante deste panorama, sob a perspectiva gadameriana, o exercício da compreensão se faz a partir de um horizonte, que pode ser entendido como um âmbito de visão que abarca tudo que é visível de determinado ponto.260 É proposta, então, a existência de horizonte inautêntico e autêntico. 256 STEIN, Ernildo. Gadamer e a consumação da hermenêutica. In: STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz (Coords.). Hermenêutica e Epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 14. 257 FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. História, direito e sociedade: a captura histórica do direito – itinerários da metodologia e interpretação. Op. cit., 6. 258 GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. A virada hermenêutica. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. 259 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Op. cit., p. 405. 260 Ibidem, p.452. 105 O primeiro se refere à forma apriorística de se existir no mundo, bem como de buscar a compreensão de forma superficial, sem ter se apropriado previamente da coisa, revelando-se enquanto um discurso revestido de impropriedade. Este discurso se furta a revolver o chão histórico. Já o horizonte autêntico se revela no modo como o homem passa a compreender a coisa a partir do próprio acontecimento do mundo, ampliando o seu âmbito de visão para além de uma superficialidade. Este horizonte busca desvelar aspectos equivocados, haja vista que o ser possui a tendência de se encobrir, isto é, de se apresentar de maneira falsa, o que ocorre, v.g., se for apresentada uma perspectiva histórica distorcida. Assim, autêntico é aquilo que em dado momento fornece uma somatória correta do passado, não sendo, portanto, uma característica auferível de maneira abstrata, já que as construções históricas levaram a um modo de ser. A autenticidade ou inautenticidade, em verdade, se refere a como o sujeito cognoscente é capaz de perceber a coisa. É a sua capacidade de perceber todas as camadas que se sobrepõem, fazendo um determinado desenho em um determinado momento. A autenticidade é, então, enxergar e compreender a coisa como ela é e não apenas como ela parece. É o ‘é’ fenomenológico, o que significa que “o horizonte é”, enquanto que a autenticidade ou inautenticidade é a capacidade do sujeito ler este horizonte. A mediação linguística entre a coisa e a compreensão, a partir do que nós somos (tempo), constitui-se como o horizonte. A ideia de horizonte permite a compreensão de que o ser é tempo, uma vez que ele se dilui em todas as perspectivas da sua existência. Pontua-se que não é possível falar em horizontes do mundo; é preciso limitá-los, o que gera a necessidade de se afastar para compreender um horizonte, já que a autenticidade e inautenticidade não pertencem ao horizonte, mas são a adequação da leitura daquele que o enxerga. Por isso é válido aduzir que a coerência e e integridade buscadas por Ronald Dworkin podem se estabelecer quando se age de acordo com o horizonte, pois quando se rompe com ele, rompe-se com as coisas como elas realmente são. A tendência do ser encobrir-se (velar-se) acima afirmada leva ao entendimento de que a racionalidade (razão pura) não é suficiente para entender determinada coisa a partir de distinções práticas, pois até mesmo as palavras 106 podem esconder as coisas, de forma que se estabelecem métodos e normas e se esquece da substância. A ideia de horizonte é, portanto, essencial para desvelar o direito, no qual o horizonte é desenhado em um sistema. Daí a nossa escolha metodológica da reconstrução na perspectiva de um horizonte autêntico261, a fim de desvelar fatos e fundamentos eventualmente encobertos por pré-compreensões inadequadas, visando buscar a melhor resposta para o objeto de estudo. Trata-se de uma tentativa de, no interím da circularidade da comprensão, atingir o estranhamento em relação a fatos e conceitos difundidos por horizontes inautênticos, alcançando uma interpretação mais íntegra. No entanto, em uma perspectiva prática, observa-se que os horizontes autênticos e inautênticos parecem, muitas vezes, estar imbricados, no sentido de que estes últimos, embora estejam na seara da impropriedade, se fazem presentes na interpretação cotidiana, velando, muitas vezes, o horizonte autêntico, por meio de um desgaste do discurso público. A importância dos horizontes para Gadamer é assim explicitada: Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam 262 frente à tradição. Os horizontes estão constantemente sendo formados, no sentido de que as pré-compreensões são invariavelmente alcançados pelo passado e pela tradição. O horizonte histórico é, portanto, parte da compreensão, sendo que com o projeto de horizonte histórico, leva a cabo a sua superação. Essa realização é denominada por Gadamer como “consciência histórico-efeitual”.263 Neste interim, a consideração de dados históricos nada mais é que parte da interpretação e produção de um entendimento, levando-se em conta aquilo que 261 Em bem verdade, a leitura do horizonte que é autêntica ou inautêntica. “O horizonte do sentido énos dado pela compreensão que temos de algo. O ser humano é compreender. Ele só se faz pela compreensão. Ele só se dá pela compreensão. Compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se constitui. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 253. 262 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Op. Cit., p. 452. 263 Ibidem, p. 449. 107 outrora já foi lido, interpretado ou decidido, caracterizando um caráter construtivo na história, edificando, assim, o seu horizonte autêntico. Trata-se, então, da reconstrução dos modos de ser possíveis. É nesta sustentação que Gadamer afirma que os pré-juízos de um indivíduo, muito mais do que seus juízos são a realidade histórica do seu ser.264 Assim, a história seria para Gadamer a condição necessária para que um ente exista enquanto ser-no-mundo, sendo ele um ser concreto, real e existente em um determinado tempo. Sob esta perspectiva, a tradição ganha força na experiência hermenêutica, não no sentido de uma análise linear do passado, mas enquanto um fenômeno decorrente da distância temporal que permite uma abertura de possibilidades no compreender, de acordo com a sua historicidade, isto é, uma melhor compreensão das coisas. Segundo Gadamer, Quando procuramos compreender um fenômeno histórico a partir da distância histórica que determina nossa situação hermenêutica como um todo, encontramo-nos sempre sob os efeitos dessa história efeitual. Ela determina de antemão o que se mostra a nós de questionável e como objeto de investigação, e nós esquecemos logo a metade do que realmente é, mais ainda, esquecemos toda a verdade deste fenômeno, a cada vez que 265 tomamos o fenômeno imediato como toda verdade. Sob esta perspectiva, para Streck, Gadamer assim considera a tradição: A experiência hermenêutica, diz o mestre, tem direta relação com a tradição. É esta que deve anuir à experiência. A tradição não é um simples acontecer que se possa conhecer e dominar pela experiência, senão que é linguagem, isto é, a tradição fala por si mesma. O transmitido, continua, mostra novos aspectos significativos em virtude da continuação histórica do acontecer. Através de sua atualização na compreensão, os textos integramse em um autêntico acontecer. Toda atualização na compreensão pode entender a sim mesma como uma possibilidade histórica do compreendido. Na finitude histórica de nossa existência, devemos ter consciência de que, 266 depois de nós outros entenderão cada vez de maneira diferente. 264 Para uma análise crítica do pensamento de Gadamer, recomenda-se a leitura de STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. 265 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Op. cit., p. 448. 266 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 265. 108 Assim, na visão gadameriana, a tradição é essencialmente conservação e como tal sempre será atuante nas mudanças históricas. Ainda nesta perspectiva, na realidade, a tradição é sempre um momento da liberdade e da própria história.267 A compreensão do horizonte autêntico contribui para o desvelamento que nos leva a adequada compreensão do ser. Em análise, então, ao papel dos horizontes históricos enquanto uma forma de melhor e mais autêntica compreensão, a produção de novos sentidos em virtude da consideração de tais horizontes origina o que se concebeu enquanto fusão de horizontes. Na medida em que os horizontes vão se sobrepondo, vão se assentando como camadas de tempo sobre as coisas e se fundem em uma só coisa: o que é agora; o presente. Quando novas perspectivas surgirem, estas irão se fundir a ele, que passará a ser um novo horizonte. Tem-se, então, que a fusão de horizontes é a consolidação do horizonte vigente, formando sempre uma nova coisa, diferente do que foi, que efetivamente é e que inexoravelmente deixará de ser268. Reconstrói-se constantemente, pois é esta reconstruçao que nos cobra o compreender como algo que se solta dos entes.269 Faz-se necessária, nesta esteira, uma confrontação entre visões de mundo e experiências prévias a fim de gerar a melhor compreensão para a produção de novas ideias diante de problemas atuais. Através da fusão de horizontes se procura explicitar ou desvelar as razões mais originárias e fundamentais que podem justificar alguma decisão ou interpretação. A dinâmica da fusão de horizontes não pretende, contudo, que seja o passado engessado enquanto único momento correto e de cogente aplicação. É preciso que se quebre o gesso, possibilitando, assim, o movimento das coisas. Segundo Gadamer, A fusão se dá constantemente na vigência da tradição, pois nela o velho e o novo crescem sempre juntos para uma validez vital, sem que um e outro 270 cheguem a se destacar explicitamente por si mesmos. 267 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Op. Cit., p. 422. 268 Fundem-se os horizontes de sentido da coisa com o intérprete. O sentido somente se dá se for possível ultrapassar as “capas de sentido endurecidas” do nível ôntico. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 576. 269 As coisas só adquirem sentidos em virtude de serem transcendidas. Esse sentido ocorre a partir da força dos efeitos que a história tem sobre a fusão de horizontes. In. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 569. 270 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Op. cit, p. 457. 109 Neste diapasão, a fusão permite o enfrentamento entre o texto e o presente, propiciando uma melhor produção, já que compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos.271 Não são os horizontes, portanto, fechados em si. Valendo-se, então, da fusão horizôntica de Hans-Georg Gadamer, dentre tantas outras perspectivas de seu pensamento, vislumbra-se que a compreensão decorre de uma fusão de horizontes da tradição influenciada pela pré-compreensão do intérprete, sendo o conjunto de preconceitos absorvido pelo indivíduo por meio da tradição linguística.272 Assim, segundo a hermenêutica de Gadamer, composta por três variáveis (tradição linguística, destaque e aplicação), compreender não é se deslocar para o outro e reproduzir suas vivências, mas efetivamente colocar-se de acordo com a coisa, encerrando sempre em um momento de aplicação.273Por isso, na história efeitual de Gadamer, a fusão dos horizontes do texto e do intérprete permite que se torne consciente a pré-compreensão, para que assim se possa afastar os obstáculos advindos da comunicação linguística. Imprescindível ainda levar em conta, para Gadamer, a finitude humana, representada pelo ser-para-morte, sendo considerada verdade aquela que se caracteriza como histórica e temporal, posto que o ser humano é e sempre será incompleto. Em vista desta realidade, deve ele admitir a complementação de todos os preconceitos que se tornaram conscientes após o exercício da hermenêutica. Observa-se, portanto, que a partir da Viragem Linguística, a linguagem é dotada de grande valor, como uma condição de possibilidade a regular a relação intersubjetiva, estando em destaque também a possibilidade e necessidade de se traçar um horizonte histórico autêntico, a fim de possibilitar a tradição e a fusão de horizontes que, por sua vez, podem permitir a compreensão de determinadas situações. Pois bem. Em assim sendo, o aprofundamento nas ideias de Heidegger e Gadamer permitirá um melhor entendimento acerca da proposta dworkiana, a qual se pretende observar para o enfrentamento da questão relativa às cotas. Cumpre 271 Ibidem, p. 457 Ibid., p. 559-560. 273 Ibidem. 272 110 mencionar que Dworkin sustenta questões relativas à integridade do direito, bem como adequação e coerência, elementos estes umbilicalmente ligados às ideias trabalhadas nas viragens linguísticas. Dworkin, marco teórico deste trabalho, busca os seus fundamentos nas teorias de Heidegger e Gadamer, o que denota a importância de se conhecer estas, para compreender o fenômeno das cotas a partir da hermenêutica política. Neste sentido, em uma análise da instituição de cotas no ensino superior público brasileiro, revisitando as teorias do positivismo clássico, percebeu-se que para estes há um viés decisionista. Doutro lado, a partir de uma leitura gadameriana deve-se compreender a questão das cotas com base na tradição histórica que esta carrega consigo, interpretando-a para além do conceito semântico de igualdade e enaltecendo o objetivo político-social nela intrínseco. Entre esses dois polos, encontra-se a proposta de Ronald Dworkin, cujos principais pontos passaremos a abordar. De qualquer sorte, dada a importância e complexidade da discussão sobre cotas no ensino superior público brasileiro, antes de adentrarmos no marco teórico essencialmente, fez-se necessário traçar estas linhas para permitir uma vasta visão sobre a questão tratada e justificar os posicionamentos aqui adotados. Tal necessidade se explica, pois a implantação de cotas para ingresso no ensino superior se mostra paradoxal, já que ao mesmo tempo em que pretende incluir, parece de outro lado privilegiar determinada parcela da sociedade, sendo comumente questionado se o mecanismo de inclusão não segrega mais do que equaliza. A resposta para estas questões exige, então, um resgate teórico, a fim de melhor sustentar a opção metodológica do trabalho e permitir uma clara compreensão do problema enfrentado. A partir destas perspectivas, o substancialismo274 de Ronald Dworkin parece oferecer alternativas que tornam a questão das cotas passível de uma sustentação mais sólida dentro do paradigma do constitucionalismo contemporâneo do Brasil. Dworkin apresenta uma teoria que possui em sua essência uma perspectiva jurídica hermenêutica, caracterizando o Direito como uma prática interpretativa, isto é, como 274 A corrente substancialista dedica uma maior atenção ao conteúdo material de uma Constituição, atribuindo a esta um importante papel, considerando seus vetores axiológicos e atribuindo-lhe um conteúdo valorativo, de forma que consideram ela como o instrumento que define os fins do Estado e da sociedade. Para os substancialista, é necessária a observância de uma leitura moral do Direito (o que não representa a moral individual) e a garantia de sua integridade, por meio da consideração de princípios. 111 uma questão da justificação adequada, a qual está, invariavelmente, comprometida com princípios e convicções morais da comunidade. Para ele, o direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas.275 Em sendo assim, o Direito é muito mais do que uma mera interpretação da semântica da linguagem, a qual Dworkin denomina “armadilha do positivismo”276, isto é, vai muito além da redução dos textos à função empírica de verdade ou falsidade. Esta concepção meramente semântica do positivismo jurídico, isto é, a análise isolada da linguagem, é criticada por Dworkin, que aduz que esta interpretação gera o problema de diversas possibilidades de combinação lógica linguística, mantendo o Direito em um campo duvidoso.277 Doutro lado, para Dworkin, não basta apenas uma argumentação racional, pois esta não seria suficiente para atingir o Direito enquanto prática interpretativa, divergindo, portanto, da teoria de Habermas278. Por isso, na construção de uma teoria política do direito, Dworkin trabalha com dois pilares principais, quais sejam, a integridade e coerência, abordando em sua teoria um ponto de vista prático do Direito. Corroborando o que ora se expõe, oportuno consignar as lições de Menelick Carvalho Neto: O ponto de partida de Dworkin aqui, portanto, é o da crítica ao excesso de racionalidade inconsciente que marcava a visão anterior não só do conceito de ciência mas do próprio conceito de direito, de norma e de ordenamento jurídico, é saber que uma norma geral e abstrata nunca regulará por si só as situações de aplicação individuais e concretas, até mesmo pela incorporação de maior complexidade ao ordenamento de princípios que a sua adoção necessariamente significa, ao dar uma maior densidade aos princípios constitucionais básicos e ao, simultaneamente, abrir novas 279 possibilidades de pretensões abusivas. 275 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. XI. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 1-35. 277 Em inúmeras passagens de sua obra, Dworkin debate a teoria de Herbert Hart, sendo que no livro “O conceito do Direito”, há um pós-escrito elaborado por Hart para responder às críticas de Dworkin, o qual, no entanto, foi publicado apenas após o seu falecimento. 278 A proposta de Habermas é a substituição da razão prática pela razão comunicativa, a qual, por sua vez, se configura como um conceito procedimental de racionalidade, que se expressa numa compreensão descentrada de mundo. HABERMAS, Jurgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. A. Marques et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. p. 275-307. 279 CARVALHO NETO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, Imprensa Universitária da UFMG, n. 88, p. 81-146, dezembro, 2003. p. 66. 276 112 De início, é importante ressaltar que Dworkin se opõe ao procedimentalismo discursivo, pois trabalha com a ideia da existência de métodos diversos utilizados por cada intérprete na prática interpretativa. Para Dworkin, Interpretar uma prática social é apenas uma forma ou ocasião de interpretação. As pessoas interpretam em muitos contextos diferentes e, para começar, devemos procurar entender em que esses contextos diferem. A ocasião mais conhecida de interpretação tão conhecida que mal a reconhecemos como tal é a conversação. Para decidir o que uma outra pessoa disse, interpretamos os sons ou sinais que ela faz. A chamada interpretação científica tem outro contexto: dizemos que um cientista começa por coletar dados, para depois interpretá-los. Ou, ainda, tem a interpretação artística: os críticos interpretam poemas, peças e pinturas a fim de justificar algum ponto de vista acerca de seu significado, tema ou propósito. A forma de interpretação que estamos estudando, a interpretação de uma prática social, é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como no 280 caso da interpretação científica. Dworkin propõe, portanto, uma nova leitura para a interpretação social, a partir do ponto de vista interno dos intérpretes. Segundo ele, a “interpretação construtiva consiste em impor um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero aos quais se imagina que pertençam”.281 Visando exercer a prática interpretativa e entendendo que esta ocorre por meio da reconstrução de práticas sociais, Dworkin apresenta três fases de um processo interpretativo, quais sejam a pré-interpretativa (identificação de regras e padrões); etapa interpretativa (justificação geral para as regras e padrões identificados); e etapa pós-interpretativa (ajusta a prática identificada na etapa préinterpretativa em face da justificação da etapa interpretativa).282 Segundo Dworkin, uma interpretação correta deve abordar tanto a ideia de convencionalismo, pensando na história do Direito, quanto a ideia do pragmatismo que visa dar importância também à prática. Dworkin começa, então, a criar a ideia da hermenêutica política. Um dos importantes elementos da narrativa de Dworkin quando da propositura de uma interpretação construtiva é a ideia do romance em cadeia (chain 280 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 60. Ibidem, p. 57. 282 Ibid., p. 81-82. 281 113 novel) que confirma o direito enquanto uma prática interpretativa283. Para Dworkin, esta tarefa exigiria que os aplicadores do direito conhecessem toda a história deste, já que cada sentença ou ato jurisdicional/legal é um pequeno capítulo do direito. Deve-se observar aquilo que foi decidido no passado e aquilo que se espera para o futuro – as visões do convencionalismo e pragmatismo, portanto, combinadas. Percebe-se o dimensionamento de um conteúdo valorativo do Direito e, principalmente, da Constituição, para além de uma validação apenas pelo procedimento, embora Dworkin reconheça igualmente a importância da prática de interpretação. O substancialista não encontra, todavia, uma teoria da interpretação única que seja suficiente para a resolução de todas as questões teóricas, inexistindo, para ele, critérios comuns para tanto. A partir, então, de uma análise de integridade, a qual será melhor analisada, e refutando a ideia do procedimento como validação do Direito e de um ideal democrático, Dworkin apresenta a convicção da possibilidade empírica e do direito a respostas corretas para os casos práticos, o que pode, efetivamente, contribuir em grande medida com o assunto aqui exposto, haja vista as cotas tratar-se de assunto sensivelmente controverso. Parece claro que Dworkin busca o ideal da decisão jurídica. Não estabelece que encontrar a única resposta correta seja uma tarefa fácil ou lógica, mas busca uma teoria política convincente284. Vale aqui ressaltar que ao se mencionar “teoria política” não significa que a política fundamentará o direito ou a decisão referente à resposta correta, tendo sido por ele realizada uma clara distinção entre política e princípios morais, dando ênfase na importância destes últimos, o que será aprofundando em tópico adiante.285 Neste sentido, Dworkin funda uma teoria política do Direito, abalizada pela interpretação, afirmando que a decisão jurídica única é correta e exigida por questão de coerência e integridade, sendo esta uma escolha política, ou seja, de acordo com o projeto político da comunidade e fundada em princípios morais.286 283 Ibid., p. 275. CF. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 175-215. 285 Em verdade, trata-se de uma interpretação política de acordo com os princípio de uma comunidade. 286 Conforme Simioni, o direito é uma atividade interpretativa com um inevitável caráter político, no sentido de uma atividade interpretativa construtiva do sentido das proposições jurídicas em uma perspectiva mais abrangente. In. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 37 284 114 A coerência e a integridade, por sua vez, são em exata medida a descoberta do horizonte autêntico, isto é, observar tais elementos da proposta de Dworkin significa aplicar o direito a partir de uma leitura autêntica de um horizonte. Neste sentido, se busca-se um horizonte autêntico é necessário um parâmetro para auferilo. Daí chegarmos a Dworkin partindo de Heidegger e Gadamer. Isto é, o horizonte de Gadamer, enquanto horizonte jurídico autêntico, cobra coerência e integridade, o que se fecha na hermenêutica política de Dworkin. Se houver a supressão de Heidegger e Gadamer, volta-se para Kelsen. A tentativa é nos livrar da armadilha do positivismo normativista. Neste viés, sob uma perspectiva substancialista, há uma série de problemas que afastam a ideia de uma interpretação absolutamente neutra, fazendo-se crucial que esta seja direcionada de acordo com as convicções morais políticas comuns. A dificuldade parece residir, todavia, na forma de se encontrar a moralidade política do projeto comunitário comum. Parece existir uma linha muito tênue entre a moral comum e a moral subjetiva, a qual foi base do positivismo normativista e é a causa da discricionariedade. Isso porque, a concepção hermenêutica de Dworkin busca combinar compromisso com a lei e/ou convenções políticas e a realidade social, possibilitando um movimento circular entre o passado e futuro. Trata-se, então, de um círculo hermenêutico que significa a ideia da integridade. Esta, em verdade, é uma terceira virtude criada por Dworkin287, a qual se coloca ao lado da justiça e do devido processo legal e que possui como supedâneo a coerência entre as normas existentes e o julgamento ou aplicação do direito, fazendo-se novamente crucial a figura dos princípios morais. Quando se concebe o direito como integridade deve-se entender os princípios morais de forma cautelosa, uma vez que estes não são instituídos por qualquer moral. Existe, então, a moral privada (particular, pessoal) e a moral política. A moral privada é aquele que se cria na vida própria e particular; que se acredita. Mas além desta, os indivíduos estão também inseridos em uma moralidade política. A maior dificuldade é separar a moralidade privada da moralidade política. A resposta correta é do Direito e não do juiz.288 287 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 215. A opção de Dworkin pela comunidade de princípios e sua correlação com a questão da integridade buscada em sua proposta será mais abordada no presente trabalho, de forma mais minuciosa. 288 115 Para Dworkin, a integridade, mais que qualquer superstição de elegância, é a vida do direito tal qual o conhecemos. É ela um ideal político, no sentido de se exigir do Estado e da comunidade a mesma atitude e no sentido de se exigir que o Estado aja de acordo com um conjunto único e coerente de princípios.289 A comunidade como um todo é vista, via de consequência, como um agente moral, sendo exigido que esta se comporte de forma a também respeitar a integridade e coerência, se esforçando para buscar critérios sobre o que seja justiça, devido processo legal e equidade. A busca pela melhor virtude290 do direito está também intimamente ligada à ideia de integridade de Dworkin, sendo que o fundamento do direito está na comunidade, nas tradições e projetos mais autênticos da comunidade política. Afirmando as virtudes mais originárias do direito com base na liberdade, igualdade, equidade processual e integridade, Dworkin firma as bases do direito em uma convicção jurídica autônoma para resolver os problemas sociais concretos.291 Pode-se afirmar então que esta perspectiva corrobora o que foi outrora alegado, no sentido de se conceber maior força aos princípios morais, posto que apenas com base nestes a prática jurídica mantém o equilíbrio entre constitucionalismo e democracia e entre uma leitura moral do direito e uma leitura pragmatista de eficiência econômica.292 Sobre a integridade do direito, Menelick assim aduz: A integridade do Direito significa, a um só tempo, a densificação vivencial do ideal da comunidade de principio, ou seja, uma comunidade em que seus membros se reconhecem reciprocamente como livres e iguais e como coautores das leis que fizeram para reger efetivamente a sua vida cotidiana em comum, bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua história institucional como um processo de aprendizado em que cada 293 geração busca, da melhor forma que pode, vivenciar esse ideal. 289 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Op. cit., p. 202-203. Em relação às várias possibilidades de resposta e a necessidade, em Dworkin, de se buscar aquela que atenda à melhor virtude do direito, Simioni: “Quer dizer, somente uma, entre as várias interpretações possíveis, será a interpretação que melhor revela a virtude do direito, que melhor explicita o verdadeiro valor do texto jurídico, que mostra o que o direito tem de melhor”. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 29 291 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão para além do constitucionalismo e democracia. Op. cit., p. 152. 292 Ibidem. 293 CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Op. cit., p. 67. 290 116 Sob outra perspectiva, todavia, é cediço que a atual prática jurídica faz com que se esqueçam dos fundamentos, dos motivos, da história, dos argumentos que representam o que é o direito hoje. O juiz se transformou, em sua grande maioria, em um sujeito que participa da lide emitindo decisões automaticamente, apenas conferindo o direito de forma supérflua, sem se preocupar em entender os seus fundamentos e buscar, consequentemente, a resposta correta do Direito, almejada por Dworkin. As decisões assumem um alto grau de previsibilidade. O dinamismo do atual direito é bem representado por Dworkin quando este menciona De repente, o que parecia incontestável é condenado; uma nova interpretação – ou mesmo uma interpretação radical – de uma parte importante da aplicação do direito é desenvolvida por alguém em seu gabinete de trabalho, vendo-se logo aceita por uma minoria “progressista”. 294 Os paradigmas são rompidos e surgem novos paradigmas. No entanto, tal dinamismo não pode induzir ao esquecimento daquilo que se passou, já que todo capítulo da história é crucial para se entender a coerência do direito e, consequentemente, a sua integridade, independentemente de opiniões pessoais e íntimas do legislador, aplicador ou qualquer operador do direito. Neste diapasão, a moralidade pessoal pode apresentar inúmeras divergências entre os indivíduos de uma comunidade, haja vista a perspectiva de vida de cada um, bem como as suas convicções subjetivas. Tais divergências não podem prevalecer, todavia, sobre os princípios da moralidade política, os quais formam um ponto de vista comum, independentemente de consenso, sob o manto da integridade. Assim, ainda que existam opiniões divergentes e particularidades no modo de pensar e agir de cada indivíduo, a elaboração de uma legislação e a aplicação do direito exigem que se observe a chamada integridade, no sentido de existir respeito e coerência aos princípios morais e políticos da comunidade, sem interferência dos anseios privados do legislador e/ou julgador. Para Dworkin, a integridade contribui da mesma forma para a eficiência do Direito. 295 Isso porque, quando as pessoas aceitam que não são governadas apenas por regras explícitas (decisões políticas passadas), mas também por regras que 294 295 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 112. Ibidem, p. 229. 117 decorrem de princípios, o conjunto de normas públicas se expandirá, sem ser necessário detalhar a legislação ou a jurisprudência em cada possível ponto de conflito. Sob esta ótica, O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, 296 expressando uma concepção coerente de justiça e equidade. Vale ainda lembrar que, com o intuito de demonstrar a prática da observância desta integridade, Dworkin cria a figura do juiz Hércules297, paladino do direito, que seguindo alguns elementos, percorre um caminho na busca pela resposta correta do direito. Referindo-se ao Juiz Hércules, Dworkin desenvolve: Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional 298 (rationale) como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo. Erika Juliana Dimitruk traçou, em linhas gerais, o caminho proposto por Dworkin a ser seguido pelo juiz Hércules. 1) encontrar, uma teoria coerente sobre os direitos em conflito, tal que um membro do legislativo ou do executivo, com a mesma teoria, pudesse chegar a maioria dos resultados que as decisões anteriores dos tribunais relatam; 2) Selecionar diversas hipóteses que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das decisões anteriores; caso elas se contradigam é necessário encontrar uma correta; 3) Encontrar a hipótese correta, a partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre justiça e equidade e o devido processo legal adjetivo, e que esses princípios devem ser aplicados de forma a garantir a aplicação justa e eqüitativa do direito. A partir de uma teoria coerente sobre política e direito é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios conflitam (DWORKIN, 2003, p. 253); 4) Eliminar toda hipótese que seja incompatível com a prática jurídica de um ponto de vista geral. 5) Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se 296 Idem, 2003, p. 271-272. Extrai-se da mitologia grega a história de Hércules , um herói (semideus) grego, filho de Zeus, que foi incumbido da realização de doze perigosos trabalhos, em virtude de um crime cometido, lutando contra a natureza e eliminando invencíveis ameaças, saindo de todos eles vencedor. 298 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 165. 297 118 essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comunidade (DWORKIN, 2003, p. 288294). Neste momento Dworkin justifica o nome de Hércules, uma vez que 299 nenhum juiz real poderia aproximar-se da tarefa que a ele foi confiada. Nota-se, então, que o juiz Hércules, ainda que utilize argumentos de política para a interpretação da lei, fundamenta o direito e reforça a sua argumentação por meio de argumentos de princípios. Esta perspectiva, não obstante a característica ideal do juiz Hércules, retoma a ideia outrora estabelecida de que, ainda que se revista determinada conduta da formalidade de uma política pública, sua interpretação para a correta aplicação do direito, far-se-á, invariavelmente, diante de princípios morais comuns, sob pena de ferir de morte a coerência e integridade propostas por Ronald Dworkin. Vale mencionar que, embora o juiz Hercules atue com um viés de buscar a moral da comunidade, ele não se caracteriza enquanto um juiz solipsista, já que deve ser entendido como uma metáfora e não como um sujeito do paradigma representacional, que “assujeita” o objeto. 300 Em verdade, se analisadas todas as etapas e peculiaridades da teoria de Ronald Dworkin, é plenamente visível que o autor, durante toda a sua construção, busca a melhor virtude do Direito, de acordo com um projeto político da sociedade.301 3.2. Regras, princípios morais e políticas públicas em Ronald Dworkin A distinção entre regras, princípios e políticas públicas se caracteriza como um dos principais elementos da teoria de Ronald Dworkin e naturalmente merece especial atenção. 302 A exata noção de cada um destes elementos é crucial para uma adequada apreciação do fenômeno da integridade proposto por Dworkin, pois, a partir disto, será possível um melhor entendimento acerca da importância das 299 DMITRUK, Erika Juliana. O princípio da integridade como modelo de interpretação construtiva do Direito em Ronald Dworkin. Revista Jurídica da UniFil, Cidade, ano IV, 4, p. 144-155, 2007. p. 153. 300 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 18. 301 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Decisão jurídica e autonomia do direito: a legitimidade da decisão para além do constitucionalismo e democracia. Op. cit., p. 152. 302 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p.35-37. 119 cotas, possibilitando, consequentemente, um melhor exame da Lei nº. 12.711/2012 e, principalmente, do julgamento da ADPF 186/DF.303 Em relação às cotas, esta discussão ganha especial relevância, por se configurar as cotas como, aparentemente, uma política do governo, mas que carrega consigo questões históricas, econômicas, sociais, principiológicas e, pode-se dizer, até morais. Percebe-se, então, que ao mesmo tempo em que se formaliza como uma política pública, a cota social e/ou racial parece estar direcionada por princípios, o que torna indispensável a distinção ora proposta. Assim, para uma tentativa de compreensão das cotas e a busca de adequação de seu entendimento sob uma perspectiva dworkiana, é indispensável que, traçadas as primeiras linhas sobre a proposta trabalhada por este filósofo norte americano, se aprofunde na distinção estabelecida entre regras, princípios e políticas públicas. Para tanto, há de se compreender, inicialmente, a concepção dworkiana sobre regras, para a qual regras são normas jurídicas escritas que obrigam, proíbem ou facultam algo e são inflexíveis na sua aplicação. Se aplicam a fatos na forma do “tudo ou nada”304, isto é, são ou não aplicadas, sendo impossível a sua graduação. Trata-se de uma hipótese predeterminada que, quando concretizada, gera a consequência prevista. Em um conflito de normas, uma exclui a outra por critérios de validade.305 A regra se estabelece, portanto, como um critério abrangente e no direito se concretiza na formalidade de uma legislação aprovada e devidamente vigente no ordenamento jurídico, sendo válida mediante a observância de critérios previamente fixados. Contudo, repousa em uma regra questões diversas e variadas, as quais foram construídas de acordo com a necessidade de uma comunidade. Assim, embora seja a lei “tudo ou nada”, o seu conteúdo material apresenta uma carga diversa, consistindo em uma carga principiológica, seja no seu sentido estrito, seja considerada como uma política pública. Persiste, notoriamente, a dicotomia entre estes dois elementos. 303 Simioni destaca que “as políticas afirmativas de cotas raciais é um excelente exemplo da dificuldade que uma decisão jurídica pode sofrer se pretender encontrar uma coerência entre os objetivos das políticas públicas de cotas raciais do governo e as convicções morais da comunidade como um todo. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 15 304 305 Ibidem, p. 39. Ibid., p. 43. 120 Com efeito, a partir de Dworkin, princípios podem ser considerados como fundamentos, isto é, princípio, na perspectiva substancialista, parece significar algo incondicional306. É de se ressaltar que Dworkin não afirma isso expressamente, no entanto, é uma visão que parece estar implícita em sua proposta. Neste sentido, princípio trata-se de um fundamento que não está submetido a nenhuma condição, ou seja, não admite um “se”. Não é passível de ponderação ou condicionamentos a serem feitos307. Dworkin considera, neste ínterim, que princípios revelam os fundamentos das regras.308 Sob esta ótica, os princípios não podem ser violados e em um eventual conflito, prevalece aquele que possuir maior peso e se revestir de maior fundamento normativo diante daquele caso concreto específico, considerando-se, para tanto, a integridade do ordenamento jurídico. Assim, outro diferencial dos princípios é exatamente a sua dimensão de peso e importância,309 tendo força relativa diante de casos concretos310. Em verdade, para Dworkin não há colisão entre princípios, uma vez que diante de um caso concreto, não existe choque entre aqueles, mas sim um princípio adequado e um principio não adequado e, portanto, um princípio que se aplica e um que não se aplica311. A partir de uma leitura de Ronald Dworkin, o desafio consiste, então, em descobrir qual é o principio correto para determinada situação. Assim, os princípios podem ou não estar positivados, já que existem independentemente do texto jurídico. Significa, pois, que o princípio pode eventualmente estar inserido em uma regra, no entanto, esta última não é condição de validade do primeiro.312 Para Dworkin, fundamento é o que está antes da 306 O princípio é o elemento compreensivo que vai além da regra, ou seja, transcende à onticidade da regra. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 568. 307 Princípios são padrões de moralidade política da comunidade. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 17 308 O princípio só se “realiza” a partir de uma regra. Não há princípio sem (alg)uma regra. Por trás de uma regra necessariamente haverá (alg) um princípio. Ibidem, p. 568. 309 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 42. 310 Importante aqui constar que não se está a defender as teorias da argumentação ou ponderação, já que a hermenêutica não considera que os princípios abrem a interpretação e, portanto, não são eles mandados de otimização. Não se trata, portanto, de uma distinção apenas de grau ou intensidade, sendo inviável utilizar os princípios como regras de segundo nível, diante, especialmente, da virtuosidade que possuem. 311 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p.43. 312 Conforme nos lembra Lenio Luiz Streck, “quando afirmo que a regra está subsumida no princípio ou que o mundo prático [...] ingressa no direito a partir dos princípios, significa que, em sendo o direito formado por textos jurídicos, cada texto jurídico tem uma motivação, ou seja, o enunciado 121 positivação e dos princípios, ao contrário de Robert Alexy313, v.g., que entende que fundamento é aquilo que está sendo buscado a partir das regras e dos princípios. Assim, os princípios não devem ser compreendidos como alternativas no caso de lacunas de regras, portanto, nem tampouco serem considerados como “mandados de otimização”, mas sim entendidos no contexto da ruptura paradigmática pela qual se superou o positivismo.314 Entende-se, então, que princípios e regras, embora apresentem diferenças devem ser compreendidos conjuntamente, por fazerem parte de um mesmo círculo hermenêutico.315 Explicando e clareando a diferença entre regras e princípios para Ronald Dworkin, ensina Simioni: Princípios são muito diferentes das regras em vários aspectos. Princípios não estabelecem as condições prévias de sua aplicação, tal como fazem as regras. E por isso os princípios não são questões de tudo ou nada. O seu cumprimento não é uma questão de correção, mas de adequação, de coerência. Os princípios não são válidos ou inválidos, mas, sim, questões de peso, de importância, questões de fundamento, de justificação 316 adequada. Princípios prevalecem ou não prevalecem. Entende-se, pois, que princípios são padrões de moralidade 317 transpositivos . São padrões políticos e morais que as decisões jurídicas recorrem, mormente, para solucionar casos difíceis que não encontram solução ou amparo no direito positivo. Seu cumprimento é questão de adequação e coerência, abordando questões de peso na justificação de uma decisão. Retoma-se, então, a ideia de adequação relacionada ao horizonte autêntico anteriormente apresentada. Cada interpretação possui uma motivação, que não está simplesmente à disposição dos intérpretes do direito. E se o constitucionalismo está assentado em regras e princípios – e isso faz parte da tradição – não se pode ignorar o papel fenomênico dos princípios de cariz constitucional”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 303. 313 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy Editora, 2005. 314 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 297. 315 Para Lenio Luiz Streck, qualquer regra está “subsumida” em um princípio, sendo tarefa do intérprete compreender esse fenômeno a partir da diferença ontológica”. Ibidem, p. 315. 316 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Regras, princípios e políticas públicas em Ronald Dworkin: a questão da legitimidade democrática das decisões jurídicas. Revista Direito Mackenzie. São Paulo, v. 5, n.1. p. 203-218, 2011. p. 207. 317 Elementar ratificar que a moralidade tratada em Dworkin é a moralidade da comunidade, não se confundindo em nenhum aspecto com a moralidade subjetiva e individual que culmina em discricionariedade. 122 necessita de uma reconstrução histórico-institucional318 e a concepção de princípios não se faz de forma diferente. Inexiste, neste cenário, hierarquia entre princípios e regras, pois os primeiros, na concepção de Dworkin, estão em outra dimensão, a saber, a dimensão da prática interpretativa. Curial consignar a nítida preocupação de Dworkin em conciliar a teoria interpretativa do Direito e uma teoria de justificação política, remetendo à ideia da permanente tensão existente ente o Constitucionalismo e a Democracia, que será mais adiante abordada.319 Segundo Lenio, É nesse contexto que deve ser compreendida a diferença entre regra e princípio, e não no contexto em que o princípio seja a norma da regra ou a regra seja um “ente disperso no mundo jurídico, ainda sem sentido”. A diferença é que sempre há uma ligação hermenêutica entre regra e princípio. Não fosse assim, não se poderia afirmar que atrás de cada regra há um principio instituidor. Esse princípio, que denominamos instituidor, na verdade, constitui o sentido da regra na situação hermenêutica gestada no Estado Democrático de Direito. Essa é a especificidade; não é um princípio geral do direito, um princípio bíblico, um principio (meramente) político. No fundo, quando se diz que entre regra e principio há (apenas) uma diferença (ontológica, no sentido da fenomenologia hermenêutica), é porque regra e princípio se dão, isto é, acontecem (na sua norma) no interior do círculo hermenêutico. O sentido de um depende do outro, a partir desse 320 engendramento significativo. Significa, pois, que a perspectiva dworkiana se opõe à discricionariedade positivista, no sentido de que o contraponto e, ao mesmo tempo, a necessária convivência de regras e princípios, faz com que estes, de certa forma, limitem a mera subsunção das primeiras. Por isso a dificuldade de se distinguir casos difíceis e fáceis, no sentido de que casos fáceis se resolveriam tão somente com um mecanismo subsuntivo. Não há como separar a regra do princípio, pois são elementos que necessariamente se completam, sendo que Dworkin compreenderá os princípios jurídicos também como espécie do gênero norma.321 318 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 577. 319 DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e democracia. Trad. Emílio Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal oh Philosophy, n.3:1, p.2 -11, 1995. 320 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica, neoconstitucionalismo e “o problema da discricionariedade dos juízes”, Disponível em: http://www.anima72opet.com.br/primeira_edicao/artigo_Lenio_Luiz_Streck_ hermeneutica.pdf. Acesso em: 15.08.2013. p. 17/19 321 PEDRON, Flávio Quinaud. Comentários sobre as interpretações de Alexy e Dworkin. Revista CEJ, Brasília, n. 30, p. 70-80, 2005. p. 73. 123 Não obstante, analisada a diferença estabelecida entre regras e princípios, deve-se ressaltar que Dworkin apresenta ainda duas categorias abrangidas pelo elemento “princípio”, quais sejam os princípios morais e as policies, traduzida para o português como “políticas públicas”322, distinção esta que se reputa ainda mais importante que a primeira. Isso porque, este é o ponto crucial da proposta dworkiana para o enfrentamento da questão referente às cotas. A partir deste aspecto, pode-se iniciar um desdobramento mais ponderado e adequado sobre a validade dos programas de cotas em um país de modernidade tardia, tal como o Brasil. Esta diferença albergada na perspectiva dworkiana, se revela dimensionada, especialmente quando da análise da distinção entre casos fáceis e casos difíceis (hard cases) sob o ponto de vista de Dworkin323. Convém ressaltar que a justificação desta suposta cizânia assume uma feição mais prática neste momento, conferindo melhor aplicabilidade aos conceitos oriundos da teoria substancialista. Nesta medida, se entendidos como possíveis, casos fáceis seriam aqueles que, para o positivismo jurídico, por exemplo, não haveria dificuldade em sua resolução, pois existe para estes uma resposta pronta no direito. Nos casos fáceis, ainda que sejam eles permeados por questões complexas e importantes, a resposta certa que origina a sua solução não é algo que gera divergências entre os juristas. Bastaria, pois, a subsunção da norma ao caso concreto. Casos difíceis ou hard cases são aqueles cuja interpretação apresenta divergências, isto é, não há um acordo sobre a solução jurídica correta para o caso. Ronald Dworkin explica que os hard cases existirão quando uma ação judicial não puder ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição.324 Nesta perspectiva, portanto, há o abandono da visão 322 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 129. A distinção entre easy cases e hard cases não significa a cisão entre casos difíceis de casos fáceis. Isso porque, ambos estes aspectos trabalham com o elemento compreender, que não pode, por sua vez, ser cindido. Um caso apenas é difícil, pois não teve ainda a sua solução encontrada por meio do processo de compreensão, todavia quando atingi-la tornar-se-á um caso fácil. Da mesma forma, um caso inicialmente considerado fácil pode se tornar um caso difícil, a partir do momento que a compreensão originária encontrar estranheza em um novo plano. Não parece ser, então, uma diferença tão somente pertencente à metafísica. Daí o questionamento acerca da possibilidade de cisão e separação das ideias de casos fáceis e/ou difíceis, em que pese as inúmeras concepções que assim entenderam, tais como Habermas, Günther e Dworkin. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 298. 324 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 127. 323 124 meramente semântica da norma e passa-se a considerar aspectos principiológicos a ela ligados. A valorização dos princípios sob a ótica de Dworkin a partir da análise de casos difíceis foi abordada por Lenio Streck, De fato, para Dworkin, nos casos difíceis, se os princípios não são criados pelas autoridades de aplicação, também não são previamente dados, em um plano contra factual. Dworkin, contrapondo-se ao formalismo legalista e ao mundo de regras positivista, busca nos princípios os recursos racionais para evitar o governo da comunidade por regras que possam ser incoerentes em princípio. É nesse contexto que Dworkin trabalha a questão dos hard cases, que incorporam, na sua leitura, em face das dúvidas sobre o sentido de uma norma, dimensões principiológicas, portanto, não 325 consideradas no quadro semântico da regra. Teresa Arruda Alvim Wambier, ao tratar sobre os hard cases, menciona que são estes casos que devem ser resolvidos à luz de regras e/ou princípios típicos de ambientes decisionais que nomeia de “frouxos” e cuja solução não está claramente na lei, devendo ser criada pelo Judiciário, a partir de elementos do sistema jurídico.326 Aproximando-se da discussão sobre cotas, a jurista exemplifica suas ideias mencionando os problemas referentes às medidas segregatórias ou protetivas em função do critério raça, exemplificando exatamente com tais ações afirmativas. Os problemas que giram em torno das medidas segregatórias ou protetivas em função do critério raça são dos mais interessantes. No passado, diz Dworkin, os liberais entendiam que a classificação racial era um mal, em si mesmo; todos tinham o direito a uma oportunidade educacional, compatível com suas habilidades; as ações afirmativas do Estado eram tidas como o remédio adequado para serias desigualdades da sociedade americana. Mais recentemente (1960-1970) a opinião no sentido de que estas proposições são incompatíveis ganhou expressão, justamente porque os programas mais efetivos do Estado são aqueles em que se dá uma vantagem competitiva a minorias raciais. Há infinitos argumentos a favor da constitucionalidade das quotas raciais e outros tantos contra. Também sob o ponto da produção de efeitos sociais benéficos, as opiniões se dividem 327 dramaticamente. A diferença estabelecida entre casos fáceis e casos difíceis poderia originar a sensação de “suficiência ôntica” dos primeiros em detrimento dos últimos, no qual 325 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 299. 326 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito. Direito jurisprudencial. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 27. 327 Ibidem, p. 28. 125 prevalece uma falta de sentido, reduzindo o elemento essencial da interpretação a uma relação sujeito-objeto328, abandonando-se a intersubjetividade. É bem verdade que se fosse possível estabelecer essa divergência tão somente pela fácil (ou não) adequação das regras aos problemas concretos, estar-se-ia admitindo uma noção muito superficial do Direito, reduzindo-o a uma mera análise semântica, tal como ocorria no positivismo. Onde estaria, então, o pós positivismo? No entanto, não obstante tais críticas, partindo-se da premissa que a institucionalização de casos fáceis e casos difíceis é inviável e impossível, ante a imbricação destes quando do processo de compreensão, não se pode ignorar a existência de fenômenos que permitem a distinção destes, ao menos em questões práticas. Admitir-se-ia, inclusive, que o caso das cotas é um caso difícil, por exigir uma compreensão mais aprofundada, a partir de uma intersubjetividade, haja vista as diversas facetas deste assunto. Admitindo esta diferença, ao menos para estes fins estruturais e, após realizar uma pesquisa empírica na jurisprudência americana, Dworkin constata que, para a solução de casos difíceis na prática, buscam-se fundamentos externos, ou seja, fundamentos que não estão positivados, quais sejam: argumentos de política (políticas públicas) e argumentos de princípio (princípios morais).329 Sob este enfoque, sustenta que enquanto os princípios dizem respeito às convicções morais da comunidade, dependendo da integridade e coerência para prevalecer, as políticas públicas se revestem do caráter de objetivos e/ou preferências do governo, as quais buscam uma melhoria para a comunidade. Segundo Dworkin, de um lado os argumentos de política justificam uma decisão política e mostram que ela fomenta algum objetivo coletivo da comunidade e, de outro, os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou grupo.330 Assis, para ele, um direito político é um objetivo político individuado.331 Com efeito, a par desta distinção, a dúvida consiste na força dos argumentos de política e na força dos argumentos de princípio, bem como na viabilidade e cabimento de cada um destes diante de casos concretos a serem analisados, 328 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 301. 329 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 130. 330 Ibidem, p. 129. 331 Ibid., p.142. 126 mormente se considerados casos difíceis.332 A questão que se impõe, muitas vezes, é se determinada decisão ou conduta se reveste das caraterísticas de uma política pública ou de princípios. Parece existir, a priori, uma linha demasiadamente tênue entre ambos os elementos. Parece-nos, diante da teoria substancialista, que a ideia de se considerar princípios morais e políticas públicas de Ronald Dworkin está intimamente ligada com a concepção de integridade por ele anunciada, posto que de um lado se atende aos objetivos políticos direcionados a uma comunidade e de outro à moralidade política comum, baseada nos direitos já existentes, ainda que não positivados. Em Dworkin, quando se recorre a argumentos de políticas públicas para solucionar casos difíceis, o poder judiciário acaba por infringir o princípio da democracia, uma vez que o juiz passa a ser um segundo legislador ao decidir sobre objetivos políticos.333 Acrescenta-se, inclusive, que uma politica pública pode ferir princípios jurídicos, pois ainda que se revista deste caráter, pode ser equivocada diante dos princípios do Direito. Qual deve prevalecer, então? Nesta perspectiva e analisando a dicotomia estabelecida, politicas públicas parecem mais apropriadas para serem utilizadas como argumentos e possuem peso significativo neste momento, no entanto, este peso não é suficiente para fundamentar uma decisão do direito. Já os princípios morais se fortalecem como um argumento de racionalidade mais adequado para justificar uma decisão, ainda que não estejam de acordo com políticas publicas. Isso porque, quando se utiliza argumentos de princípio, se encontra direitos que são reconhecidos pela decisão jurídica e não criados por ela. Isto é, os direitos já existiam e foram apenas levantados e fundamentados pelo intérprete do direito.334 Quando o juiz compreende o direito regido pela integridade, ele não pratica inovações, mas simplesmente desvela qual o direito do caso apresentado.335 Os princípios respeitam, assim, a sua condição de estarem subsumidos na regra, carregando consigo uma força e rigidez sensivelmente maiores diante da 332 Ibid., p. 131. Ibid., p. 131. 334 Segundo Dworkin, mesmo quando não há regra que regule o caso, o juiz tem o dever, ainda em casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes e não de inventar novos direitos retroativamente, o que não pressupõe, todavia, a existência de um procedimento mecânico. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 127. 335 MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 109. 333 127 necessidade da análise a partir de uma integridade. Tem-se, pois, que os princípios são proposições que efetivamente prescrevem direitos336 e justificam as práticas.337 Percebe-se, pois, que após apresentar as questões referentes aos argumentos de princípio e argumentos de política, Dworkin sustenta a ideia de que as decisões judiciais nos casos civis são e devem ser, de maneira característica, geradas por princípios, e não políticas.338 O direito deve ser visto como algo mais forte do que o exercício de um poder político discricionário de autoridades públicas, mas efetivamente como uma questão de direito e deveres.339 Observando a distinção entre argumentos de política e de princípios e sua adequada utilização, Simioni explica: Essa distinção entre princípios morais e políticas públicas então se torna importante, porque podemos interpretar uma lei e vê-la tanto como expressão de um princípio moral quanto de uma política pública (DWORKIN, 1978, p. 23). Essa decisão depende de uma atitude fundamental do intérprete: considerar o direito de modo instrumentalestratégico, como um instrumento da política do governo para o bem-estar geral, e ajustar a interpretação a essas políticas públicas, ou considerar o direito em sua integridade e coerência com princípios de moralidade política, para ajustar a interpretação do direito àquilo que revela o seu 340 melhor valor, a sua maior virtude. Ainda com base nas lições de Simioni, os princípios em Dworkin são aquelas convicções de moralidade política mais profundas, mais intuitivas, mais originais e autênticas, que justificam uma determinada interpretação do direito como a melhor interpretação possível.341 Apesar de reconhecer, então, a importância dos argumentos de política, para Dworkin somente os princípios morais podem fundamentar uma correta resposta do direito, pois em se tratando de uma decisão jurídica (baseada em princípios) estas devem levar a sério os direitos, quer dizer, devem tratar os direitos como uma questão de princípio, como uma questão de moralidade política da comunidade.342 336 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 141. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Regras, princípios e políticas públicas em Ronald Dworkin: a questão da legitimidade democrática das decisões jurídicas. Op. cit., p. 210. 338 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 132. 339 MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Op. cit., p. 135-136. 340 SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Regras, princípios e políticas públicas em Ronald Dworkin: a questão da legitimidade democrática das decisões jurídicas. Op. cit., p. 208. 341 Ibidem, p. 208. 342 Idem 337 128 Além disso, na perspectiva dworkiana os argumentos de princípios podem ser opostos à maioria, ao revés dos argumentos de política que estão suscetíveis e sujeitos à escolha da maioria.343 Com efeito, os argumentos de política parecem atender com mais especificidade a própria democracia, enquanto que os argumentos de princípio enfocam no constitucionalismo e no seu amparo. Neste diapasão, a partir de Dworkin, entende-se que existe, em verdade, um direito a respostas corretas, não sendo esta discussão apenas uma questão cientifica.344 Existe um direito a esta resposta e isto se configura como um princípio moral, o qual, por sua vez, configura-se como o elemento mais relevante para justificar uma decisão jurídica. A resposta correta para Dworkin é, portanto, um direito dos jurisdicionados e não uma mera questão de objetivos políticos.345 A proposta de Dworkin suscita um questionamento que se mostra razoável e cuja resposta parece ser essencial para uma adequada compreensão da aplicação de uma teoria substancialista quando de um exame crítico acerca das cotas sociais e/ou raciais. Qual seria a resposta correta que validaria a utilização das cotas como forma de garantir a igualdade entre os indivíduos? 3.2.1. Ações afirmativas por meio de cotas em universidades: política pública ou princípio moral? Naturalmente, muitas legislações e decisões jurisdicionais se revestem, ao menos inicialmente, de um caráter de política pública, tal como ocorre com as políticas afirmativas. São estas, em uma primeira leitura, objetivos políticos que visam, de forma temporária e pontual, corrigir distorções e desigualdades aparentes no seio da sociedade. 343 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Op. cit., p. 129. Conforme Lenio Luiz Streck, ao tratar sobre a resposta correta, há uma umbilical relação entre a exigência de fundamentação e o direito fundamental que cada cidadão tem a uma resposta correta (adequada à Constituição). STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Op. cit., p. 396. 345 Para Dworkin, a resposta correta para determinado caso deve adequar-se ao conteúdo jurídico relevante em discussão, de forma que se não houver nenhuma resposta certa para um caso, isso deve acontecerem virtude de algum tipo mais problemático na indeterminação ou incomensurabilidade na teoria moral. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 215. 344 129 Em que pese existir a diferença entre os argumentos de política e os argumentos de princípio, parece crucial notar que estes podem, perfeitamente, conviver de forma harmônica, no sentido de que uma política pública, ainda que seja um objetivo do governo, pode garantir a sua fundamentação por meio de princípios morais de uma comunidade. É possível que existam situações em que políticas públicas não serão compatíveis com princípios morais. No entanto, nestes casos, parece que a política não deve prevalecer, eis que sua manutenção poderia ferir os ditames mais valorosos do direito. Isso porque, na perspectiva de Dworkin é atribuído o status de trunfos aos princípios, que, em uma discussão, devem sobrepor-se a argumentos pautados em diretrizes políticas, excluindo a possibilidade de os juízes tomarem decisões embasadas em diretrizes políticas.346 Pensar na impossibilidade de se analisar uma política pública sob o enfoque de princípios morais é se esquecer da necessidade da prática interpretativa para buscar a melhor virtude do direito, almejada por Dworkin. Apenas a moral da comunidade e a coerência da interpretação, possuem força para garantir a adequada manutenção de qualquer objetivo político que se pretenda. Oportuno destacar as considerações de Dworkin, a respeito da imprescindibilidade da fundamentação em princípios. As questões políticas que o modelo centrado nos direitos recomenda, porém exigem que as respostas políticas dadas a elas sejam explícitas e fundadas e princípios, para que seu apelo e compatibilidade com princípios 347 mais geralmente endossados possam ser testados. Vislumbra-se, então, uma nítida preferência pelos argumentos de princípio em detrimento dos argumentos de política na visão de Dworkin, ao menos em relação à justificação e fundamentação de uma decisão de direito. Daí ser apropriada a compreensão desta dissensão, conquanto se pretenda buscar um melhor caminho para a análise das cotas. 346 PEDRON, Flavio Barbosa Quinaud. A mutação constitucional na crise do positivismo jurídico: histórica e crítica do conceito no marco da teoria do direito como integridade. 2011. 229f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS8QGKX9/tese_fl_vio_pedron___impress_o.pdf?sequence=1>. Acesso em: 3 nov. 2013. 347 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 36. 130 Importante, então, destacar que Dworkin propõe a denominada comunidade de princípios, a qual se constitui quando uma dada sociedade é compreendida como formada por pessoas que concordam que sua prática é governada por princípios comuns e não somente por regras criadas em conformidade a um acordo político.348 Esse modelo de comunidade abandona, assim, a visão solipsista e individualista do mundo, admitindo que em uma sociedade, os seus membros poderão adotar os critérios de justiça, equidade, justo processo legal e moral que sejam comum a todos.349Isto, todavia, apenas seria possível mediante uma interpretação da história das práticas sociais.350 A questão que se faz presente é, contudo, se ainda possuindo um caráter de política pública em sua origem ou em sua formalidade, devem ou não ser observadas também sob o enfoque de princípios morais de uma comunidade. Ou seja: ainda que sejam políticas públicas, devem também passar pelo crivo dos argumentos de princípio ou dispensam esta fundamentação? Os programas de cotas enquanto ações afirmativas surgiram aparentemente com a proposta de proteção de minorias e /ou resgate de uma suposta dívida histórica, o que já foi tratado no primeiro capítulo do presente, para o qual remetemos a leitura, buscando concretizar a ideia do constitucionalismo, enquanto garantia de direitos fundamentais-sociais a todos. Foram então considerados como ações afirmativas, no sentido de propiciar a eventuais desfavorecidos o acesso ao ensino público superior, sendo inicialmente implantados em universidades que assim optaram e, a partir do ano de 2012 tornaram-se obrigatórios, em virtude de nova determinação legal.351 348 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 254. Em sua concepção, neste modelo de sociedade os seus membros admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas depende, em termos mais gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam. 349 “A comunidade de princípios é uma comunidade moralmente plural, ou seja, ela procura uma integridade entre os diversos valores morais, respeitando igualmente a moral de todos os cidadãos. Ela adota um compromisso com os seus princípios e os manifesta na elaboração das políticas por meio da legislação e na sua aplicação pelo judiciário nas decisões judiciais” In: CHUEIRI, Vera Karam de; SAMPAIO, Joanna Maria de Araújo. Como levar o Supremo Tribunal Federal a sério: sobre a suspensão de tutela antecipada n. 91. Revista Direito GV, São Paulo, n.5, v. 1, p. 45-66, jan/jun de 2009. p. 56. 350 Remetemos à leitura do primeiro capítulo para questões relativas à reconstrução histórica crítica. 351 Em síntese, a Lei nº. 12.711/2012 estabelece a reserva de cotas em universidades federais, por curso e turno em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Determinou-se que do total de vagas reservadas, 50% (cinquenta por cento) deverão ser direcionadas para estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo (um salário mínimo e meio) per capita. 131 Estes programas, no entanto, sejam aqueles facultativamente concretizados ou os atualmente estipulados por lei, ainda carecem de uma sólida justificativa que conceda à sociedade e aos indivíduos de forma geral, uma fundamentação válida para a sua implementação diante dos ditames de um Estado Democrático de Direito. As cotas estão em um âmbito de constante cizânia, não havendo um consenso sobre sua adequação, mesmo depois de defendida a sua constitucionalidade e instituída a sua legalidade. Isso porque sendo as cotas implementadas inicialmente por meio de ações afirmativas, constata-se que elas se formalizam enquanto políticas públicas e, por isso, estão sujeitas ao questionamento da maioria352. Todavia, a leitura estrita das cotas enquanto objetivo governamental parece muito rasa, além de desconsiderar por completo todo o horizonte existente antes delas. Vale lembrar que maiores considerações acerca das ações afirmativas poderão ser encontradas no primeiro capítulo do presente trabalho. Nesta esteira, o programa de cotas em universidades públicas e escolas técnicas federais é uma política pública adotada pelo governo ou por instituições, que visa igualar possibilidades quando do ingresso de alunos no ensino superior público. Todavia, em uma análise mais perfunctória, parece que a sua fundamentação isolada enquanto política pública, deixando-se de considerar os seus demais aspectos, não se faz suficiente para justificar a sua manutenção e a sua adequação à moralidade política da comunidade, não se ajustando, via de consequência à integridade proposta por Dworkin.353 Com vistas nos debates acima estipulados, desconsiderar os princípios que permeiam a proposta das cotas é ignorar a necessária interpretação construtiva do direito. Isto é, o direito constitui-se como uma história narrativa, da qual há a possibilidade de extração de várias interpretações, no entanto apenas uma delas é a mais adequada. Uma justificação prática de sua adoção exige a observância dos princípios morais de uma comunidade implícitos ou explícitos na adoção de tal mecanismo. 352 As policies, entendidas por Dworkin como objetivos políticos, correspondem ao aspecto da democracia do Estado Democrático de Direito, uma vez que representam estratégias governamentais que visem asseguram o bem de uma coletividade. 353 Observar as cotas enquanto princípio é necessário, em virtude dos princípios são aquelas convicções de moralidade política mais profundas, mais intuitivas, mais originais e autênticas, que justificam uma determinada interpretação do direito como a melhor interpretação possível. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 18 132 Conforme assinalado por Dworkin, o argumento em favor das leis contra a discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de consideração e respeito é um argumento de princípio.354 Tendo em vista as cotas se formatarem enquanto uma garantia às minorias excluídas, é de se ressaltar que apenas a sua consideração enquanto princípio é válida diante da tensão entre constitucionalismo e democracia. Conforme Simioni destaca: Só assim o constitucionalismo pode fortalecer a democracia. E só assim a jurisdição pode exercer a sua mais autêntica função, que é a de garantir que, mesmo contra a opinião das maiorias, existem princípios de moralidade política que devem ser respeitados por questão de princípios, por uma questão insensível às escolhas políticas da maioria democrática, por uma questão que não depende de argumentos de política ou de 355 eficiência econômica. Neste mesmo sentido, analisando especificamente ações afirmativas, Dworkin confirma que no caso de subsídios, poderia se dizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualificados com princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por uma política. 356 Assim, vislumbra-se que, independentemente da sua origem (como princípio ou como política), o direito pode ser qualificado pelo outro elemento, tendo sempre a presença, todavia, dos princípios morais, razão de sua fundamentação válida.357 A partir deste cenário, é de se lembrar que a nova lei de cotas, bem como a declaração de constitucionalidade destas na ADPF 186/DF, possuem como finalidade precípua a mitigação das desigualdades sociais e raciais ainda existentes em nossa sociedade. Apresenta critérios que, embora se apresentem como prerrogativas em razão de classe social, raça ou ainda etnia, demonstram objetivar a redução de desconformidades sociais e gerar, consequentemente, a consecução do projeto civilizatório da sociedade em todos os seus aspectos. Em que pese esta busca pelo progresso, é de se ressaltar que, após o julgamento da ADPF 186 e aprovação da Lei 12711/12, inúmeros argumentos 354 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. p. 130. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Interpretação, Argumentação e Decisão Jurídica em Ronald Dworkin. Material disponibilizado durante as aulas do Mestrado da FDSM, 2012. p. 23 356 Ibidem. 357 Dada a preponderância dos argumentos de princípios no caso da discriminação, Dworkin afirma que “no caso contra a discriminação, são (direitos) gerados por princípios e qualificados por uma política. Ibid. 355 133 contrários foram apresentados, declarando total repúdio aos programas criados358. Entre eles destaca-se a ideia de que as cotas, embora pretendam incluir acabam gerando discriminação perante os demais pretensos alunos das universidades, culminando, via de consequência, na colaboração destas para maior inferiorização dos grupos que se pretende proteger.359 A análise ora proposta, então, se faz mister tendo em vista que, enquanto os argumentos de princípio procuram justificar que um grupo possui um direito por uma questão de princípio, sendo, portanto, insensível à escolha, o argumento de política se submete à escolha da maioria democrática, baseado na ideia estatística. Neste diapasão, entende-se, pois, que ao passo que as questões de princípios podem ser opostas contra a opinião das maiorias democráticas, já que se encontram em um nível senão superior, alheio àquela, as questões de política estão sujeitas e submetidas à escolha da maioria, sendo realizadas de acordo com esta. Os programas de cotas revestem-se, inicialmente, como políticas públicas, vez que almejam um objetivo político, qual seja garantir uma maior integração na sociedade. Tal análise, entretanto, não parece satisfatória no sentido de garantir a legitimidade destes programas, tornando imprescindível a sua releitura. Doutro lado, ao se pensar na utilização dos argumentos de princípio no caso em comento, denota-se que estes buscariam justificar a igualdade pretendida pela legislação e a necessidade de estabelecimento de critérios para reduzir a desigualdade já existente, bem como a provável eficácia de tais medidas. 358 Em meados de agosto de 2012, tão logo o projeto da nova lei de cotas foi aprovado pelo Senado, antes mesmo da lei ser sancionada pela Presidente da República, incontáveis oposições à política de reserva de cotas foram anunciadas, sendo exteriorizadas por meio de manifestações públicas de estudantes e representantes das Universidades, opiniões da sociedade como um todo e ainda por meio de declarações de contrariedade de vários reitores e diretores de universidades e, inclusive, da Federação Nacional das Escolas Particulares, entre outros. Insta consignar que estas universidades, fundações e federações anunciam até mesmo que ingressarão com medidas judiciais cabíveis para contestar a lei em comento. 359 O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPG 186/DF aborda a questão referente à inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas, aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Op. cit. 134 É preciso, pois, que se adote o pressuposto da comunidade de princípios, pois ela, conforme Dworkin, [...] faz com que essas responsabilidades sejam inteiramente pessoais: exige que ninguém seja excluído; determina que, na política, estamos todos juntos para o melhor ou o pior; que ninguém pode ser sacrificado, como os 360 feridos em um campo de batalha, na cruzada pela justiça total. Embora tenha sido exteriorizado através de ato estatal, o sistema de cotas inicialmente solidificado pelo julgamento da ADPF 186/DF e, posteriormente delimitado pela Lei nº. 12.711, apresenta questões descomedidamente importantes para a sociedade como um todo, não admitindo serem tratadas tão somente como objetivos políticos de um governo.361 A necessidade de observar este ato estatal a partir da ideia da comunidade362 de princípios parece imperativa, pois, apenas assim será possível identificar e discutir as questões suscitadas frequentemente em relação às medidas de cotas, como, por exemplo, a constitucionalidade ou efetividade da lei ou a validade do julgamento da ADPF 186/DF, diante de uma suposta agressão ao princípio da igualdade. A importância da comunidade de princípios estaria, todavia, afastada, caso se entendesse as cotas tão somente com objetivo político. O assunto exige um olhar mais cauteloso e aprofundado, com base na moral comum e necessária para a existência de uma coletividade. O estabelecimento de cotas, para sua plena aceitação e eficácia, não pode se traduzir em uma mera negociação política, mas, mormente, em uma efetiva necessidade de se resguardar direitos e garantir a integridade moral da comunidade. Neste esteio, compreendendo a necessidade de se considerar uma análise principiológica para além do caráter político dos programas de cotas, o princípio 360 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. cit., p. 257. A efetividade de qualquer direito fundamental por meio de políticas de inclusão é assunto que origina uma dificuldade natural, devendo prevalecer, entretanto, uma resposta principiológica. Bolzan sobre a existência de um pacto estruturante da sociedade: “Pôr um prato de comida nas mãos de cada um não parece ser tarefa fácil, embora inevitável e imediata, sem que enfrentemos a tensão permanente e intransponível entre uma estratégia econômica excludente e as tarefas includentes de uma política democrática, alicerçada nos direitos humanos e expressa em um pacto estruturante da sociedade – nacional, regional, local, mundial.” MORAIS, Jorge Luis Bolzan de. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 100. 362 “[...] a comunidade tem papel central para o sucesso da vida de seus membros, pois ela é entendida como um agente moral sem que isso implique uma concepção metafísica da agência”. Cf. FURQUIM, Lilian de Toni. O liberalismo abrangente de Ronald Dworkin. São Paulo, 2010. 235f. Tese (Doutorado em Ciência Política) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 12. 361 135 constitucional da igualdade ganha relevância e notoriedade, por ser ele o principal pilar desta discussão. É ele que sustenta a necessidade da implementação das cotas e que carrega consigo a justificação destas. A igualdade dos indivíduos é, dentro da sociedade o que sustenta a sua integridade. Nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual consideração pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania. 363 Pois bem. No cenário das políticas de cotas, consideradas estas enquanto ações afirmativas, o cerne do debate é a igualdade dos indivíduos, haja vista o objetivo daquelas em garantir a equiparação de oportunidades para determinadas classes de indivíduos historicamente discriminados e cuja posição social se faz ainda prejudicada. Remetemos o leitor aqui ao primeiro capítulo, no qual se apresentou uma análise crítica do histórico de discriminação existente em relação, principalmente, aos negros. A questão que surge seria então, até que ponto o direito à igualdade estaria sendo ferido pela determinação de critérios diferenciados para ingresso no ensino superior. Seria necessária uma igualdade material absoluta?364 Neste viés, não parece razoável a leitura do princípio da igualdade no sentido deste garantir idêntico tratamento a todos de forma indiscriminada, especialmente se observada a tradição existente, na qual há um histórico de discriminação e de desigualdade em relação a oportunidades de crescimento no meio social. Seria como garantir regras idênticas em uma corrida, na qual um de seus competidores já inicia a disputa com um atraso considerável. O ponto de partida daqueles inseridos neste histórico é diferente dos demais indivíduos da sociedade e, portanto, exige um tratamento diferenciado que vise a sua igualação.365 363 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Trad. Jussara Simões. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. IX. 364 Segundo, Dworkin, “o princípio da igual importância não afirma que os seres humanos em nada são iguais: não que sejam igualmente racionais ou bons, ou que as vidas que geram sejam igualmente valiosas. A igualdade em questão não se vincula a nenhuma propriedade da pessoa, mas à importância de que sua vida tenha algum resultado, em vez de ser desperdiçada.” Cf. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. Op. cit., p. XV. 365 O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPG 186/DF aborda a questão referente à inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas, aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de 136 Recentemente, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos – DIEESE366 divulgou uma pesquisa que ilustra com precisão a desigualdade ainda vivenciada em relação aos negros, em virtude da falta de oportunidades oriunda de um histórico de discriminação. Segundo os dados apresentados, nas áreas metropolitanas, os negros correspondem a 48,2% (Quarenta e oito vírgula dois por cento) dos ocupados, mas, em média, recebem por seu trabalho 63,9% (sessenta e três vírgula nove por cento) do que recebem os não negros, não havendo considerável influência da região pesquisada. Além disso, apurou-se que na medida que acrescentam anos de estudo a sua formação, negros e pardos melhoram suas condições de remuneração, mas é nos patamares de maior escolaridade que se constatam as discrepâncias mais acentuadas de rendimentos entre negros e não negros. Segundo esta pesquisa ainda, na indústria metropolitana, o confronto de rendimentos-hora de trabalhadores com ensino superior completo indica que, em média, os ganhos dos negros ficam em R$ 17,39 (dezessete reais e trinta e nove centavos), enquanto os dos não negros ficam na ordem de R$ 29,03 (vinte e nove reais e três centavos). Por fim, constatou-se que os negros ocupam os grupos ocupacionais de menor prestigio e valorização: Na região metropolitana de São Paulo, enquanto 18,1% (dezoito vírgula um por cento) dos ocupados não negros alcançam cargos de Direção e Planejamento, apenas 3,7% (três vírgula sete por cento) dos negros chegam lá.367 Percebe-se, então, que o princípio da igualdade em seu aspecto reformulado não deve ser invocado para saldar uma dívida histórica. Entretanto, deve ele se fazer valer para corrigir distorções atuais e que ainda permeiam toda a sociedade, em decorrência de um horizonte de desigualdades, racismo e discriminações. Não se está a condenar o passado, mas efetivamente a garantir a equalização de oportunidades no presente, em vista do cenário atual existente. E esta apenas será perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Op. cit. 366 O Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos foi fundado em 1955, a partir de uma iniciativa do movimento sindical, sendo atualmente uma entidade de abrangência nacional, reconhecida como instituição de produção científica que realiza estudos sobre os mais diversos temas especialmente nas áreas relacionadas ao trabalho. 367 DIEESE: negro com ensino superior ganha 60% do salário do não negro. São Paulo, 13 nov. 2013. Disponível em: <http://www.viomundo.com.br/denuncias/dieese-negro-com-ensino-superior-ganha60-do-salario-do-nao-negro.html>. Acesso em: 13 nov. 2013. 137 possível a partir da leitura da igualdade como respeito à diferença; a partir da conscientização de que o ponto de partida é desigual e o discurso meritório não permitirá a o sucesso de muitos indivíduos. A dicotomia entre igualdade formal e igualdade material já não mais se faz adequada, por inexistir espaço para estas limitações em uma sociedade plural. A concepção de igualdade deve ser entendida no sentido de se garantir as diferenças entre os indivíduos e, ainda assim, permitir o acesso de todos aos direitos fundamentais e sociais. Defende-se, portanto, a concepção de igualdade como diferença. A possibilidade/necessidade de se estabelecer critérios diferenciados quando há um panorama de inferiorização já foi abordada por Boaventura de Sousa Santos: (...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as 368 desigualdades. Ainda, para ilustrar a possível combinação existente entre o princípio da igualdade e o estabelecimento de tratamentos diferenciados , J. J. Gomes Canotilho: A fórmula “o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente” não contém o critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade (ou desigualdade). A questão pode colocar-se nestes termos: o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade? ... existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitraria. O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação: ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas ... existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) 369 estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável. Grifos não constantes no original. 368 SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 462 369 CANOTILHO, J. J Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1995. p. 401. 138 A isonomia se consagra como o maior dos princípios garantidores dos direitos individuais e a presunção genérica e absoluta é a da igualdade, vez que o texto constitucional a impõe.370 A igualdade é, pois, o signo fundamental da democracia371, o qual anda de mãos dadas com a liberdade. Não há como admitir a liberdade se inexiste igualdade. Assim, falar em liberdade sem a correspondente garantia da igualdade ou ainda, tratar esta última deixando-se de considerá-la como um elemento garantidor das diferenças, é retornar a ideia liberal burguesa de um individualismo exacerbado e das conquistas meritórias, já tratadas anteriormente. Se não há igualdade de oportunidades, respeitando-se as concepções plurais da sociedade, não há também a liberdade. Dworkin, ao tratar de igualdade e liberdade, afirma que o seu argumento: [...]não pretende subordinar a liberdade à igualdade, mas pelo contrário, demonstrar que embora seja comum distinguirmos essas duas virtudes nas discussões e análises políticas, elas expressam mutuamente aspectos de 372 um único ideal humanista. Uma sociedade plural apenas pode ser vista como uma sociedade democrática se houver a garantia da liberdade, e somente com a inclusão de projetos de vida diferenciados em uma sociedade pluralista é que ela se autocompreenderá como uma sociedade democrática, ainda que tais projetos necessitem de uma aplicação desigual do direito.373 Significa, portanto, que se propiciar a inclusão, critérios eventualmente discriminatórios podem ser tidos como produtores da igualdade.374 Sobre discriminação positiva, Álvaro Ricardo de Souza Cruz: Há que se deixar claro que é absurdo afirmar que toda discriminação é odiosa ou incompatível com os preceitos do constitucionalismo contemporâneo. Muitas vezes, estabelecer uma diferença, distinguir ou separar é necessário e indispensável para a garantia do próprio princípio da 370 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 45. 371 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 211. 372 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 178. 373 GALUPPO, Marcelo Campos. Op. cit., p. 210. 374 Ibidem, p. 216. 139 isonomia, ou seja, para que a noção de igualdade atenda às exigências do princípio da dignidade humana e da produção discursiva (com argumentos 375 racionais de convencimento) do direito. Neste sentido, conforme lições de Dworkin376, em algumas circunstâncias, o direito de tratamento como igual não implicará a um só tempo um direito a igual tratamento. O primeiro se refere ao direito a igual distribuição de alguma oportunidade, recurso ou encargo; o segundo ao direito de não receber a mesma distribuição de algum encargo, mas ser tratado com o mesmo respeito e consideração. Vislumbra-se, nesta esteira, a proteção às minorias, que pode redundar na diferenciação entre igualdade como política e igualdade como direito.377 O direito a igualdade admite e, mais do que isso, exige o respeito e a observância das diversidades, sendo apenas oposto às discriminações arbitrárias, conforme aduz Moraes: Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo 378 direito [...]. No caso das cotas, partindo-se principalmente do horizonte traçado no primeiro capítulo e considerando-se a aplicação da proposta do chain novel de Ronald Dworkin, parece existir com clareza uma justificativa para o tratamento diferenciado, o que permite concluir que a declaração de constitucionalidade das cotas convive perfeitamente com a ideia de igualdade.379 Embora insista-se na necessidade de um critério meritório, uma análise do direito exige que se reconheça que determinados grupos ainda se mantêm alheios à efetividade de muitos direitos sociais, a começar pelo direito à educação. 375 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 21-22. 376 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 349-350. 377 Ibidem, p. 349. 378 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 36. 379 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e desequiparações permitidas. In: Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 79-83. 140 Menelick Carvalho realiza um contraponto entre aqueles que detêm os seus direitos reconhecidos contra outros ainda excluídos, o que parece retratar em grande medida a proposta da instituição de cotas no ensino de nível superior: O sujeito e a identidade constitucional são complexos, abertos, nunca podem se fechar, se completar, sob pena de se eliminar o constitucionalismo mesmo, de se instaurar a ditadura daqueles que têm seus direitos reconhecidos contra aqueles excluídos, ou seja, que ainda não gozam do reconhecimento jurídico-constitucional do seu direito à diferença, 380 do direito à igualdade constitucional. O sistema meritório, tão suscitado nos argumentos contrários às cotas no ensino superior no Brasil não parece, doutro lado, se sustentar enquanto um elemento da comunidade de princípios, pois o mérito trata-se apenas de um critério determinado, mas não necessariamente mais adequado. Aliás, a constituição do mérito de um indivíduo depende de inúmeros fatores, os quais se encontram destacados no horizonte autêntico que lhe precede, além da notória influência do ambiente externo em sua construção enquanto ser. É bem verdade que o princípio da igualdade, núcleo forte da análise crítica sobre as cotas, não está contrariando igualmente o aspecto meritório, pois as cotas garantem a igualdade de condições, isto é, a isonomia de oportunidades. Permitem, portanto, que todos os indivíduos estejam colocados em um mesmo plano quando da disputa para o ingresso no ensino superior público, incidindo, a partir do respeito de tais diversidades, o julgamento meritório.381 Acerca deste sistema meritório, Ronald Dworkin: Não há nenhuma combinação de capacidades, méritos e traços que constituam o ‘mérito’ no sentido abstrato; se mãos ágeis contam como mérito no caso de um possível cirurgião, é somente porque mãos ágeis irão capacitá-lo a atender melhor o público. Se uma pele negra, infelizmente, capacita outro médico a fazer melhor outro trabalho médico, a pele negra, em prova do que digo, também é um mérito. Para alguns, esse argumento pode parecer perigoso, mas apenas porque confundem sua conclusão – 380 CARVALHO NETTO, Menelick. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Op. cit., p. 18. 381 Ronald Dworkin apresenta, inclusive, a ideia de que o próprio sistema de mérito pode ser discriminatório em relação aos indivíduos que não consegue o acesso ao ensino superior por não serem considerados preparados, aduzindo que “(...) qualquer critério adotado colocará alguns candidatos em desvantagem diante dos outros, mas uma política de admissão pode, não obstante isso, justificar-se, caso pareça razoável esperar que o ganho geral da comunidade ultrapasse a perda global e caso não exista uma outra política que, não contendo uma desvantagem comparável, produza, ainda que aproximadamente, o mesmo ganho ”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 350-351. 141 que a pele negra pode ser característica socialmente útil em dadas circunstâncias – com a ideia muito diferente e desprezível de que uma raça 382 pode ter inerentemente mais valor que outra. O programa de cotas objeto da ADPF 186/DF e Lei nº. 12.711/2012, não necessariamente possui como finalidade excluir o mérito do indivíduo no ingresso ao ensino superior, especialmente o público. O que em verdade se busca é a combinação do mérito com outros elementos que garantam uma equalização de acesso à universidade, mormente quando pensado que as universidades públicas são subvencionadas por toda a sociedade e, portanto, devem beneficiar a todos indistintamente. Se no quadro fático, concreto e real, percebe-se um monopólio destas universidades por determinada parcela da sociedade, é preciso que se criem mecanismos que corrijam esta distorção e permitam a ampla acessibilidade institucional. A partir desta perspectiva que Dworkin383 sustenta a ideia de que deve existir uma igualdade de recursos coerente com os princípios morais da sociedade democrática, no sentido de que, se há desigualdades em virtude de uma má distribuição destes recursos, é preciso redistribuí-los. Uma simples análise do histórico apresentado no primeiro capítulo deixa evidente que nunca houve uma adequada distribuição de recursos, o que culminou na exclusão de vários grupos em nossa atual sociedade, seja pelo critério da raça, seja pela condição social que, ao final, acabam se imbricando. Parece, então, correto aduzir que a adoção de cotas no ensino superior brasileiro considera a tradição existente e carrega consigo aspectos sociais e meritórios, cuja efetiva compreensão demanda a consideração hermenêutica e a observância, muito além das opiniões prévias, preconceitos existentes e da literalidade do texto, de todos os horizontes que permeiam seu sentido, fazendo-se imprescindível a fusão destes. É nítida a existência de um círculo vicioso de insucesso e exclusão, especialmente dos negros, ilustrado, inclusive, pelas atuais estatísticas de ausência destes nas classes sociais e econômicas em destaque e nos mais importantes postos de trabalho. Este cenário se agrava na medida em que, ainda que consigam sair da margem da pobreza ou de patamares abaixo da linha da pobreza, os negros 382 383 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípios. Op. cit., p.446. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. Op. cit. 142 continuam sofrendo discriminação, independentemente de seu status econômico, a exemplo da pesquisa feita pela DIESEE, acima relatada, que demonstra a diferença salarial entre negros e brancos em um mesmo cargo. A análise das cotas exige, portanto, uma visão da comunidade e a perspectiva dos seus efeitos para a garantia do bem estar de todos os indivíduos. A possibilidade de equalizar oportunidade de ingresso em universidades públicas a negros e sujeitos pertencentes a classes excluídas permitirá que estes, futuramente, venham a ocupar, em igualdade, o mercado de trabalho em seu maior status econômico, desconstituindo, assim, os topois ainda existentes acerca da inferioridade de raças. O sujeito julgador não está, portanto, imbuído de poder que lhe possibilite se valer de um exercício interpretativo a partir de padrões morais e políticos para impor sua concepção de justiça.384 O Direito, enquanto possibilidade inclusive de se constituir como regra contra majoritária, muito além de se portar enquanto instrumento de mera concretização de programas políticos, necessita de uma sensibilidade maior em sua compreensão e aplicação, restando cogente a consideração da sua essência em seus mais variados aspectos.385 Nesta perspectiva, as cotas se constituem como instrumento de garantia do princípio constitucional da igualdade e, via de consequência, dos princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana, adequando-se à comunidade de princípios proposta por Dworkin, independentemente dos anseios e da moral individuais. Flávia Piovesan igualmente defende a política de cotas enquanto medida para combater a discriminação sofrida por determinados grupos: Se o combate à discriminação é medida emergencial à implementação do direito à igualdade, todavia, por si só, é medida insuficiente. Faz-se necessário combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Para assegurar a igualdade, não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva, pois a proibição da exclusão, em si mesma, não 386 resulta automaticamente na inclusão. 384 DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Op. Cit., p. 452. Insta destacar que embora o direito fale expressamente em políticas públicas, o que, a princípio impediria a fuga de padrões políticos, a ideia expressa por Dworkin é que, em que pese serem válidos os argumentos de política, os argumentos de princípio são mais adequados, pois não estão sujeitos à vontade da maioria e representam com maior exatidão o constitucionalismo e a garantia de direitos fundamentais. Pode-se ainda conceber a separação de poderes (que na verdade, sabemos que se trata da separação de funções do Estado), posto que permitir que o julgador se baseie eminentemente em argumentos de política parece ferir tal separação, posto que o Judiciário estaria interferindo em questões, a princípio, reservadas ao Executivo e Judiciário. 386 PIOVESAN, Flávia. A compatibilidade das cotas raciais com a ordem internacional e com a ordem constitucional brasileira. Audiência pública sobre políticas de ação afirmativa de reserva de vagas no 385 143 A autora ainda menciona a constitucionalidade e aceitabilidades das cotas raciais, por ser o Brasil signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, cujo art. 1º, § 4º, prevê a possibilidade de adoção das ações afirmativas, através de medidas especiais de proteção adotadas com a finalidade de garantir o progresso de certos grupos raciais ou étnicos e amenizar as consequências de um passado de discriminação. Cumpre destacar, todavia, que ainda que considere a validade das cotas sob uma perspectiva da hermenêutica política, estas se revestem necessariamente de um caráter transitório, haja vista a sua função primordial de reparar eventuais danos e, neste caso, desigualdades originadas por uma tradição marcada pela discriminação e segregação racial e social. Além disso, embora dotadas de validade imediata, as cotas não parecem suficientes para garantir perenemente a efetividade do direito à educação, já que além delas, deve-se pensar em uma reparação gradual dos danos resultantes do problema de déficit educacional e social identificados, não podendo o Estado se manter inerte quanto à insuficiência do ensino público e manutenção de desigualdades sociais e raciais. Parece ineficiente, em longo prazo, tratar apenas e tão somente os sintomas gerados pelo problema sem, todavia, combater as causas. Temos, então, que as cotas no ensino superior público federal, analisadas para além de sua condição como política pública e lidas a partir de argumentos de princípios não são, possivelmente, a resolução do problema referente à discriminação atualmente existente, entretanto constituem-se como elementos válidos para garantir a igualdade enquanto diversidade, assegurando uma isonomia nas condições de participação e nas oportunidades dos indivíduos. Coadunam com a moral da comunidade, por permitirem a inclusão de cidadãos antes excluídos do ambiente educacional e, via de consequência, contribuir com o desenvolvimento social. Ronald Dworkin se manifesta em relação ao potencial das cotas em reduzir desigualdades nos Estados Unidos: ensino superior. 2010, Brasília. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa>. Acesso em: 16 out. 2012. 144 A discriminação racial sistemática do passado gerou uma nação na qual os cargos de poder e prestígio sempre ficaram reservados para uma só raça. Não foi ato irresponsável os críticos se oporem à ação afirmativa, argumentando que faria mais mal do que bem, quando as consequências da política ainda eram incertas. Mas seria um erro a nação proibir tal política agora, quando estatísticas e análises abrangentes demonstraram de maneira óbvia seu valor. A não ser que, e ate que, o estudo River seja refutado por um estudo maior e mais pormenorizado, não temos motivo para proibir a ação afirmativa universitária, como arma contra nossa estratificação racial, exceto nossa indiferença ao problema, ou nossa ira 387 petulante por ela não ter desaparecido sozinha. Neste esteio, o programa de cotas se faz adequado não só ao ordenamento jurídico, em sua concepção semântica, mas também aos preceitos da sociedade em que se insere, o que apenas pode ser observado a partir do abandono da leitura dogmática jurídica estática e sistêmica, evitando, via de consequência, uma “fetichização do discurso”.388 As cotas devem ser compreendidas com base na tradição histórica que carregam consigo, sendo interpretadas para além do conceito simplório de igualdade e enaltecendo o objetivo político-social nela intrínseco. Há de se compatibilizar tais elementos com o direito e com os princípios morais da comunidade política, sem afastar, todavia, a possibilidade de mutação da compreensão e interpretação encontrada de acordo com a realidade prática existente. Insista-se, não significa dizer que se trata de uma compensação pelo passado, mas efetivamente de um meio de promoção de igualdade em vista das divergências ainda persistentes no presente, de forma que o horizonte traçado tão somente figura para delinear os passos da sociedade até a atual situação.389 387 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Op. cit., p. 579. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Op. cit., p. 340. 389 "Em todo o mundo... Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente pobres, desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente menos escolarizadas que os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas estruturas políticas e super-representadas nas prisões. Têm menos acesso a serviços de saúde de qualidade e, consequentemente, menor expectativa de vida. Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso tempo; mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro". ANNAN, Kofi Annan. Secretário Geral da ONU. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/cc/a_pdf/modulo3-tema3-aula1.pdf>. Acesso em: 17 de julho de 2013. 388 145 4. O JULGAMENTO DA ADPF N. 186/DF PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO Conforme já apresentado no decorrer do presente trabalho, a questão relativa a cotas raciais390 em Universidades Públicas, antes de se transformar em objeto de lei, foi deveras discutida no âmbito do Poder Judiciário, quando da análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 186/DF, decidida pelo Supremo Tribunal Federal em 26 de abril de 2012. A ADPF nº. 186 foi proposta pelo partido político DEM contra as cotas instituídas pela Universidade de Brasília – UnB, tendo sido julgada em conjunto com o recurso extraordinário (RE 597285) proposto por um aluno da UFRGS em face de cotas raciais lá adotadas. 391 A declaração de constitucionalidade das cotas no ensino superior público brasileiro foi, sem dúvidas, uma decisão histórica, sem precedentes e que representou uma grande modificação na sociedade, no que se refere à efetividade do direito social à educação392. Destaca-se, inclusive, que após o julgamento da ADPF 186, houve a aprovação da Lei nº. 12711/2012, denotando imperiosa influência do julgamento da Suprema Corte, o que será objeto de maior digressão abaixo. Nestes termos, diante da importância deste julgamento e a fim de permitir um mais adequado entendimento sobre as razões do STF, passamos a analisar a 390 Lembramos que em que pese a existência de lei que regulamenta a questão relativa às cotas sociais, a qual foi também abordada no presente trabalho, optou-se por destacar as cotas raciais em razão dos insistentes índices que demonstram a mantença do preconceito racial, em que pese se encontrar tais desigualdades veladas por uma suposta exclusiva discriminação de classe, além da riqueza dos debates travados em virtude da ADPF 186. 391 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 392 A defesa da constitucionalidade das cotas na ADPF 186 contou com o apoio da Educafro, associação civil, sem fins lucrativos, sediada na cidade de São Paulo, que figurou como amicus curiae no processo. A missão desta associação é promover a inclusão da população negra (em especial) e pobre (em geral), nas universidades públicas e particulares com bolsa de estudos, através do serviço de seus voluntários/as nos núcleos de pré-vestibular comunitários e setores da sua Sede Nacional, em forma de mutirão. 146 possível influência deste julgamento na nova legislação, bem como os votos dos ministros. 4.1. A aprovação de Lei nº. 12711/12 após manifestação do Poder Judiciário: Possível influência de precedentes judicias na esfera legislativa. Não se olvida que a decisão do STF parece ter motivado e quiçá despertado o funcionamento da engrenagem do Poder Legislativo que, desde 2008, discutia o Projeto de Lei nº. 180 no Congresso, sem, no entanto, dar-lhe cabo, seja com sua aprovação ou não. A delimitação do entendimento do órgão jurisdicional supremo acerca da constitucionalidade das cotas raciais minimizou, de certa forma, debates no Poder Legislativo e facilitou a justificação da aprovação da nova legislação, mormente, perante a sociedade. Vale mencionar que em sua origem, este era o Projeto nº. 73/99, tendo lenta tramitação desde sua apresentação, perfazendo, portanto, 13 (treze) anos de espera. Isso porque, conforme já exposto acima, em 30 de agosto de 2013 foi publicada a Lei nº. 12711/12, ou seja, logo após o STF ter firmado o seu entendimento quanto à constitucionalidade das cotas. Parece, contudo, existir questões específicas que circundam a Lei nº. 12.711/12 e que se confundem com o episódio do julgamento da constitucionalidade de cotas, fazendo-se crucial a análise de uma eventual relação entre as decisões proferidas em relação às cotas, as quais tanto mudaram o panorama da educação superior no Brasil. Coincidência ou não, se observado o trâmite do Projeto de Lei nº. 180/2008 no Congresso Nacional393 constata-se que, na data de 07 de dezembro de 2011, este teve a sua situação definida como “pronta para a pauta na comissão”. Antes deste andamento, a movimentação do projeto ocorria em datas razoavelmente próximas, no entanto, adiou-se por inúmeras vezes a análise do projeto, especialmente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Verifica-se, então, que o projeto apenas foi movimentado efetivamente em 28 de maio de 2012, isto é, cerca de um mês após a declaração de 393 Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=88409 147 constitucionalidade das cotas pelo STF, sendo que naquele momento o PL nº. 180/2008 foi incluído na pauta de reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e, ato contínuo, definitivamente votado. Noutro giro, embora não exista nenhuma declaração oficial nos relatórios das Comissões do Senado que indiquem a espera pelo posicionamento do STF, é possível encontrar manifestações de grupos e organizações que acompanhavam a votação do projeto neste sentido. A exemplo deste fato, encontra-se a manifestação do presidente do MSU - Movimento dos Sem Universidade394, o economista Sérgio Custódio, que menciona que o Senado estava aguardando a verificação da constitucionalidade das cotas pelo Poder Judiciário.395 Acima de todas as suposições e conjecturas realizadas, é fato que após ter sido pauta de três audiências públicas e ter sua votação adiada por diversas vezes, o Projeto de Lei nº. 180/2008, que chegou ao Senado em dezembro de 2008, teve sua conclusão e consequente aprovação aceleradas após a declaração de constitucionalidade das cotas raciais pelo STF. Insta consignar que este posicionamento é reforçado por trecho do voto em separado do Senador Lobão Filho, quando ele menciona expressamente o julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que para complementar a necessidade de criação também de cotas sociais e não meramente raciais. Em primeiro lugar, no que se refere às chamadas ‘cotas raciais’, embora tenhamos consciência de que o Supremo Tribunal Federal as considerou em acordo com a Constituição, somos da convicção de que preferencialmente devemos adotar sistema de ‘cotas sociais’, que permite e favorece o acesso à educação superior e técnica a todos os brasileiros que tenham cursado o ensino médio e fundamental nas escolas públicas, em especial àqueles oriundos de famílias com baixa renda. Cabe salientar, a propósito, que as ‘cotas sociais’ não são de modo algum antagônicas às ‘cotas raciais’, pois os seus beneficiários são os brasileiros de menor renda, que estudam nas escolas públicas e, como todos bem sabemos, os dados estatísticos comprovam que a maioria dos brasileiros negros e pardos compõe exatamente a parcela de menor renda da nossa população. Desse modo, as ‘cotas sociais’ permitem alcançar os mesmos objetivos das ‘cotas raciais’, sem os riscos de uma perigosa divisão da sociedade brasileira 396 contidos nessas últimas. (Voto do Senador Lobão Filho) 394 Apenas para que “não passe em brancas nuvens”, o MSU é um movimento que surgiu na década de 90 em São Paulo e que desde então luta, primordialmente, pela democratização do ensino superior brasileiro, tendo garantido grande representação no Senado quando da votação da Lei 12.711/2012. 395 Entrevista disponível em http://www.campanhaeducacao.org.br/?pg=Entrevistas&id=8 396 Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=88409 148 De certa forma, sendo a aprovação da legislação posterior à declaração de constitucionalidade das cotas raciais pelo Supremo Tribunal Federal, o seu recebimento pela própria sociedade tornou-se mais pacífico, uma vez que sabia-se de antemão que o guardião da Constituição Federal, a priori, estaria favorável às ações afirmativas, gerando maior segurança e confiabilidade ao próprio Poder Legislativo. Doutro lado, a par da discussão da força do precedente judicial exercida sobre o Poder Legislativo, a qual será mais adiante retomada, parece indispensável que se reflita sobre a real possibilidade de se utilizar o precedente do STF como parâmetro no momento da análise da nova lei de cotas, em que pese toda a notória influência acima relatada. Esta preocupação se justifica em virtude do fato de já ser possível identificar entendimentos, mormente no interior da própria sociedade e dos grupos informais de discussão sobre a implementação do programa de cotas, no sentido de que a legislação ora analisada estaria de antemão declarada constitucional e, via de consequência, se faria inquestionável, tendo em vista o posicionamento já definido pelo STF.397 A despeito da discussão sobre a aplicabilidade e cabimento da teoria da transcendência dos motivos determinantes398 ou da observância da lei nº. 9869/99 que imprime força vinculante das decisões do STF quando do controle de constitucionalidade concentrado, há de se verificar, todavia, que o precedente criado pelo julgamento da ADPF 186 tem nome, sobrenome e individualidade399, posto que decidido nos exatos termos de um caso concreto apresentado ao Supremo Tribunal Federal e por ele analisado. Por tal fato, a sua mera repetição quando da análise de casos posteriores pode se mostrar temerária, especialmente levando-se em consideração que se trata 397 PEREIRA, Gustavo Leonardo Maia. Lei de cotas nas universidades: constitucionalidade e necessidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3365, 17set.2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22632>. Acesso em: 15 jan. 2013 398 Em breves linhas, por esta teoria, os fundamentos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal teriam efeito vinculante. Luis Roberto Barroso, afirma que “por essa linha de entendimento, tem sido reconhecida eficácia vinculante não apenas à parte dispositiva do julgado, mas também aos próprios fundamentos que embasaram a decisão. Em outras palavras: juízes e tribunais devem acatamento não apenas à conclusão do acórdão, mas igualmente às razões de decidir" (BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 184) 399 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Súmulas, vaguezas e ambiguidades: necessitamos de um “Teoria Geral dos Precedentes”?. Direitos Fundamentais e Justiça. Nº. 5. Out/Dez. 2008, p. 164 149 da interpretação, inclusive, de uma nova legislação e não de um caso concreto semelhante ao outrora discutido. Dierle Nunes adverte que, nem mesmo em países onde é tradicional a utilização de precedentes, estes são aplicados de forma mecânica, sem a reconstrução histórica de aplicação decisória e sem discutir a sua adaptabilidade.400 É preciso que se retire do precedente a sua ratiodecidendi, assim considerada a regra central retirada da justificação do precedente401 ou como conjunto de fundamentos jurídicos que sustentam a decisão e a opção hermenêutica adotada na sentença.402 A extração da ratiodecidendi, todavia, não é tarefa simples, exigindo uma cautelosa análise e interpretação do julgamento do órgão jurisdicional, a fim de que se determinem os fundamentos por ele escolhidos e a tese jurídica por ele adotada. Dierle Nunes traz importantes lições sobre a violação à igualdade quando ocorre a aplicação mecânica de precedentes, as quais, não obstante terem sido direcionadas oportunamente à análise do processo civil e suas peculiaridades, podem também ser aproveitadas para o exame ora realizado. Costuma-se dizer, como já pontuado, que se preserva a igualdade quando, diante de situações idênticas há decisões idênticas. Entretanto, viola-se o mesmo princípio da igualdade quando em hipóteses de situações “semelhantes”, aplica-se, sem mais, uma “tese” anteriormente definida (quanto às questões próprias do caso a ser decidido e o paradigma): ai há também violação à igualdade, nesse segundo sentido, como direito 403 constitucional à diferença e à singularidade. Considerando este atual cenário em relação aos precedentes, necessário analisar a força da difusão da ideia de mantença e vinculação destes em um caminho oposto ao que comumente é traçado: o caminho do Poder Judiciário ao Poder Legislativo. Se já existem dúvidas no que concerne à aplicação de técnicas de padronização de decisões e, dentre elas, dos precedentes judiciais em julgamentos 400 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de padronização decisória. Revista dos Processos 2011 – RePro 19/29. Teresa Arruda Alvim Wembier, coordenação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.p. 64 401 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. P. 283 402 DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm. 2010, v.2. p. 381 403 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático. Op. Cit. p. 70 150 realizados pelo Poder Judiciário a partir da interpretação de legislações existentes, maior se faz o questionamento de como se deve enfrentar um precedente que é anterior até mesmo à legislação que trata do tema por ele abordado e, eventualmente, pacificado. O fato consiste, então, em uma eventual decisão do Poder Judiciário que agindo, seja provocado para cumprir seu estrito papel, seja guiado pelo protagonismo judicial404, decide determinada questão ainda não amparada expressamente pelo ordenamento jurídico e que futuramente será objeto de nova legislação. Depara-se com a circunstância de um precedente sendo anterior à própria legislação. Seria possível, então, aplicar-lhe seus efeitos aos entendimentos decorrentes da nova lei? Em regra, os precedentes surgem diante de determinados fatos onde há ausência de legislação positivada expressa ou quando o texto da lei não é suficiente para apresentar as respostas necessárias para determinada problemática, fazendose crucial uma interpretação mais minuciosa pelo órgão julgador. A falta de legislação expressa e específica é, portanto, causa natural da criação de precedentes. A questão que se pretende enfrentar, todavia, consiste na elaboração de legislações posteriores a um julgamento de um caso concreto e a influência ou (in)aplicabilidade do precedente já delimitado nos casos futuros, ainda que abrangidos por legislação outrora inexistente. Isso porque a questão das cotas ganhou repercussão nacional em decorrência do julgamento da ADPF 186 que, indubitavelmente, representou o assentamento de um importante posicionamento do STF no Brasil no que concerne às políticas de cotas, o que parece ter força para influenciar casos futuros que abordem as problemáticas ali analisadas. 404 Estamos atualmente vivenciando um movimento de protagonismo judicial, por vezes denominado judicialização. Costumeiramente atribuindo-se um aspecto negativo sobre este protagonismo, fala-se também em ativismo judicial. Sobre a judicialização, Barroso, “judicialização significa que algumas questões de larga repercussão político ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; 404 outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro”. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Miranda; FRAGALE, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição e ativismo judicial: limites e responsabilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 276. 151 Entretanto, na tradição do civil law o Judiciário possui o papel de interpretar e julgar os casos concretos de acordo com a legislação e com o ordenamento jurídico advindos, em regra, do Poder Legislativo, e não este último agir em função das decisões daquele.405 É neste aspecto que se percebe a possibilidade de argumentar uma inversão de papeis, tendo em vista que é exatamente no processo legislativo que se demanda uma abertura argumentativa sensivelmente maior àquela plausível no Poder Judiciário, já que envolve outras áreas que, a princípio, escapam da análise do Judiciário, ao menos em sua função técnica. Observa-se que na criação do precedente, parece ter ocorrido uma abertura argumentativa tal que o Tribunal, usando um discurso de justificação, proporcionou maior amplitude argumentativa, assim como deveria se dar no processo legislativo. Ao decidir sobre a constitucionalidade das cotas, diante da inércia do Legislativo em tratar sobre o tema, o STF apresentou argumentos políticos, sociais, econômicos, culturais e diversos outros que fogem à estrutura técnica que originariamente traçava o seu perfil406. No caso em análise, encontra-se atribuída ao Poder Judiciário uma lógica bastante similar à função legislativa em relação à abertura e formação de argumentos. É certo, por outro lado, que o STF apresenta há muito a tendência de modificar sua própria significância e função perante a sociedade, haja vista o 405 Segundo o presidente do MSU, o projeto de lei estava parado no Senado desde o final de 2008, sendo que em 2009, o senador Demóstenes Torres, havia solicitado e convencido seus colegas sobre a necessidade de aguardar as decisões sobre a constitucionalidade das cotas no STF. Em outra oportunidade menciona ainda que após o julgamento, estaria sendo retomada a análise do Projeto de Lei. Entrevista disponível em http://www.campanhaeducacao.org.br/?pg=Entrevistas&id=8. Além dele, o professor Hernán Chaimovich Guralnik afirmou que “O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a constitucionalidade do assunto entendendo que a reserva de cotas não fere a autonomia das universidades que, aparentemente, teria sido consagrada no Art. 207 da Constituição de 1988. Quiçá a partir desta decisão do STF a ação do congresso estende o conceito da constitucionalidade das cotas e impõe uma reserva de vagas que se aplica a todas as Universidades Federais. Entrevista disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010040422012000900001&script=sci_arttext 406 O ministro Ricardo Lewandowski em seu voto na ADPG 186/DF aborda a questão referente à inferiorização dos negros e pardos como um obstáculo a ser vencido pela instituição de cotas, aduzindo que “A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua exclusão”. Voto Ministro Lewandowski. ADPF 186. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf> Acesso em 21-08-2013. 152 crescimento exponencial de sua importância no meio social. No entanto, não obstante esta modificação em sua atuação, o Poder Judiciário possui uma função contra majoritária em sua essência e, por tal fato, não se reveste das características de uma arena pública para discussão de argumentos variados, tal qual ocorre com o Legislativo representando a democracia majoritária. Esta função é também lembrada por Dierle Nunes que afirma ser no campo processual que se suscitam as digressões em face do fenômeno da judicialização de diversas temáticas, tendo o processo a função de viabilizar uma Jurisdição com função contra majoritária e como espaço institucional para as demandas que não foram ouvidas nas arenas institucionais majoritárias.407 Todavia, percebe-se que o Poder Legislativo, arena institucional majoritária, parece, em determinados momentos, aguardar propositadamente o posicionamento do Poder Judiciário, mantendo-se inerte em relação a questões de imensurável importância no seio da sociedade, a fim de que assim possa ter maior garantia e segurança em sua decisão. Figura-se, então, a crise da democracia representativa e a imagem do Parlamento sem agenda.408 Destaca-se que não se pretende criticar o posicionamento do STF que agiu mediante provocação específica e concedendo a resposta necessária aos jurisdicionados. Mas, em outra percepção, a abertura da formação de argumentos no Poder Judiciário, abrindo-o para a lógica política, econômica, entre outras, parece retornar à matriz de aplicação do Direito de acordo com um senso solipsista. A formação de opinião e da vontade pública se dá em espaços públicos de deliberação (institucionalizados ou não) que se consubstanciam em discursos de justificação. Esta não é a lógica própria dos Tribunais, mas sim de aplicação do Direito.409 Além disso, se não bastasse a necessidade de se garantir o adequado espaço de argumentação, no sistema do Civil Law o ponto de partida de qualquer 407 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de padronização decisória. Revista dos Processos 2011 – RePro 19/29. Teresa Arruda Alvim Wembier, coordenação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 45 408 THEODORO JÙNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da Politização do Judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro – Análise da convergência entre o ‘civil law’ e o ‘common law’ e dos problemas de padronização provisória. RePro. Teresa Arruda Alvim Wambier/coordenadora. São Paulo: Ed. RT, nov. 2010. P. 16. 409 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Recursos Extraordinários no STF e no STJ: conflito entre interesse público e privado. Curitiba: Juruá, 2009.P. 302 153 discussão é a legislação e não os precedentes criados no Judiciário, tal qual ocorre no sistema do Commom Law.410 Novamente denota-se a confusão na tentativa de aplicação deste último sistema, quando a história e o costume do nosso Direito insistem naquele. Pois bem. Esta nítida confusão entre o Civil Law e o Commom Law, decorrente da nova significância do Estado pode ser também considerada como consequência do que se concebe como crise do Estado, já que este último não parece mais ser o centro único e autônomo de poder e sujeito exclusivo da política.411 Isso porque, diante da consolidação de novas relações sociais, o modelo do welfare state transfere ao próprio Estado um novo elemento, qual seja, a solidariedade. Assim, agora é dever também do Poder Público produzir a incorporação de grupos sociais aos benefícios da sociedade contemporânea412, quadro este que parece ter levado o Poder Judiciário a assumir dimensões até então pertencentes apenas aos Poderes Legislativo e Executivo. É a partir destas observações que se reafirma a inversão de papeis dos Poderes e a grande influência exercida pelo Poder Judiciário na elaboração de legislação. Diante disto, oportuno destacar as lições de Luis Roberto Barroso. O ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. (...) A expansão do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos de reforma 413 política. E essa não pode ser feita por juízes. Daí justifica-se que a concretização de políticas públicas na área da educação por meio do Poder Judiciário parece ter dado azo a uma aceleração ou indução da atuação legislativa, no que concerne às cotas. O caminho foi reverso: a pretensão de se efetivar direitos fundamentais por meio de uma decisão que analisa 410 ABBOUD, Georges. Precedente judicial ‘versus’ jurisprudência dotada de efeito vinculante : A ineficácia e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de precedentes. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.p. 521 411 STRECK, Lenio Luiz. MORAIS. José Luiz Bolzan.Ciência Política e Teoria do Estado. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. P. 139 412 Ibidem. P. 142 413 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: COUTINHO, Jacinto Miranda; FRAGALE, Roberto; LOBÃO, Ronaldo (Orgs.). Constituição e ativismo judicial: limites e responsabilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P. 290 154 para além do texto da lei e de sua literalidade se deu anteriormente à escolha democrática da política pública mais adequada à sociedade pelos seus representantes. Esta inversão de passos, todavia, não obstante todas as merecidas críticas direcionadas ao Legislativo, haja vista a sua inércia e passividade, se coaduna com o novo papel que o Tribunal Constitucional ganhou nas últimas décadas, o qual é oriundo da necessidade de adequar as suas premissas e as suas próprias bases às exigências de solidariedade e de democracia participativa (re) inauguradas pela Constituição de 1988. Isto é, o Tribunal Constitucional parece assumir um posicionamento diferenciado, a fim de, senão garantir, ao menos colaborar com o alcance da concretização dos fundamentos e objetivos apresentados pela nova ordem constitucional. Dworkin, ao defender a comunidade de princípios justifica um papel ativo do Tribunal Constitucional para a concretização de direitos fundamentais, pois a sociedade democrática exige decisões contra majoritárias, com força nos princípios exigidos por uma moralidade política sem, evidentemente, caracterizar um aspecto autoritário dos juízes.414 Tem-se, portanto, que embora a decisão do STF pareça ter despertado o Poder Legislativo a agir, inexistem razões para que se argumente a extrapolação do Poder Judiciário que, assumindo a postura como Tribunal Constitucional, cuidou de proteger a Constituição, tal como lhe é dever. Se o Poder Legislativo falhou, sendo demasiadamente moroso, é ele quem merece as críticas. Sedimentado o acerto do STF em relação aos limites de sua decisão, importante analisar a relação entre o seu julgamento e a nova lei aprovada. Neste esteio, reitera-se que o STF promoveu o seu julgamento diante de um caso concreto onde universidades brasileiras, por mera liberalidade, adotaram sistemas de cotas raciais, implementando-os nos termos por elas próprias determinados. A Lei nº. 12.711/12, no entanto, parece fugir sensivelmente deste parâmetro. Isto porque, a nova legislação determina e obriga que universidades e escolas técnicas federais pratiquem programas de cotas sociais, de acordo com a regulamentação da legislação e nos termos por ela previstos. 414 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério, Op. Cit. p. 31 155 As diferenças existentes entre a matéria julgada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal e a determinada pela legislação se fazem presentes já em uma primeira leitura. Inicialmente, visualiza-se que o julgamento do STF se deu sobre cotas raciais, enquanto que a Lei nº. 12.711/12 prevê cotas sociais, priorizando os alunos advindos de escolas públicas, de acordo com os critérios por ela estabelecidos, não obstante defina também um percentual negros, pardos e índios. Outrossim, o julgamento do STF versou sobre programas de cotas criados pelas próprias Universidades e de acordo com os critérios por elas escolhidos, ao passo que a nova lei estabelece a obrigatoriedade de implantação destas ações afirmativas. Logo, questiona-se de imediato a autonomia das Universidades no que concerne à adoção dos critérios para ingresso de alunos, tema que já está gerando dissensos, especialmente, no âmbito das próprias universidades. Vale dizer, então, que as questões envolvidas na nova lei de cotas se mostram diversas daquelas observadas e analisadas pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF 186, motivo que, a priori, parece impedir ao menos a aplicação mecânica daquele precedente em relação à constitucionalidade da nova legislação. Adverte-se que não se pretende aqui aduzir a inconstitucionalidade da nova lei, já que esta apreciação não é objeto do presente trabalho, nem tampouco a impossibilidade de se adotar o precedente do STF. Todavia, faz-se necessário considerar que a utilização de um precedente, também em relação ao processo constitucional, sem a sua devida adaptabilidade, pode gerar o empobrecimento do discurso jurídico, não correspondendo à integridade do direito em torno da temática envolvida. É preciso que se proceda à extração da ratiodecidendi do precedente e, posteriormente, analisar a sua adequação perante o que dispõe a lei 12.711/12, não deixando, ao mesmo tempo, de se considerar os demais elementos existentes nesta norma que influenciam, diretamente, a sua aplicação e os seus efeitos na sociedade e nos casos concretos a serem apreciados. Embora o presente trabalho não aborde a aplicação de precedentes em casos processuais, mas sim na interpretação de legislação nova posterior a uma decisão correlata do Judiciário, a precisão da demonstração discursiva da identidade 156 dos casos ou das questões tratadas, tal qual ocorre na tradição do Commom Law, se faz igualmente presente. 415 Não se pode, neste esteio, trabalhar com generalidade do ordenamento, é preciso que se reconstrua a ratiodecidendi e que se possibilite, consequentemente, a aplicação das técnicas de superação e distinção do precedente, premissas indicadas por Dierle Nunes416, evitando, pois, o fechamento argumentativo e a aplicação mecânica de um padrão decisório. Neste sentido, passamos à análise dos votos dos ministros na ADPF 186. 4.2. O julgamento da ADPF 186: palco para discussões sociais, políticas e econômicas. Durante o desenvolvimento do presente trabalho, alguns importantes trechos dos votos dos ministros na ADPF 186 foram transcritos, objetivando embasar ou corroborar ideias expostas, especialmente aqueles referentes ao voto do ministro relator, Ricardo Lewandowski. Entretanto, o julgamento em apreço foi palco para importantes discussões, as quais merecem destaque, especialmente no sentido de colaborar para a possível confirmação das cotas enquanto instrumento efetivo e legítimo de equalização de oportunidades para acesso ao ensino superior público. Inicialmente, antes de aprofundar nos votos, importante mencionar que a ADPF 186 foi julgada improcedente pela unanimidade dos ministros do STF, sendo, via de consequência, declarada a constitucionalidade das cotas. O ministro Dias Toffoli foi o único a não participar do julgamento por ter se declarado impedido.417 A análise dos votos se faz importante especialmente para que se possa discutir acerca dos principais pontos levantados na inicial da ADPF 186, os quais representam a síntese das objeções opostas aos programas de cotas em toda sociedade. Conforme Barroso, 415 NUNES, Dierle. Precedentes, padronização decisória preventiva e coletivização – Paradoxos do sistema jurídico brasileiro: uma abordagem Constitucional Democrática. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Direito Jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.P. 266 416 NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de padronização decisória. Ps. 81/82. 417 O ministro Dias Toffoli posicionou-se como impedido para o julgamento da ADPF nº. 186-DF, pois quando atuou como Advogado Geral da união se posicionou favorável às cotas, tendo, portanto, um entendimento já previamente conhecido pelas partes. 157 É possível identificar, no debate público e nas ações propostas perante o Supremo Tribunal Federal, três argumentos principais contra a validade da reserva de vagas em universidades: (i) inexistência de racismo no Brasil, onde as desigualdades teriam fundamento socioeconômico; (ii) impossibilidade de se identificar negros e pardos por meio de critérios objetivos, dada a miscigenação predominante na sociedade brasileira; (iii) 418 violação ao princípio da proporcionalidade. A partir destes pontos, cada qual a sua maneira, os ministros apresentaram suas razões e fundamentos, com base em dados e argumentos, para decidir pela constitucionalidade das cotas raciais. Conhecer estas razões e analisar os votos é essencial para que se possa buscar a construção de um agumento forte e consistente em favor das cotas. Em sendo assim, iniciando-se pelo voto do ministro Marco Aurélio, vislumbra-se que este, posicionando-se favorável às cotas, confirma o que foi aqui discutido, no sentido de que as cotas caracterizam-se como instrumento válido para a correção de desigualdades, devendo apenas ser devidamente observada a sua transitoriedade419. Corroborou ainda o que foi exposto neste trabalho sobre o aspecto meritório, afirmando que “A meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”. Assim, tem-se que o voto do ministro Marco Aurélio parece estar em perfeita consonância com a proposta de que são as cotas uma forma de equalizar oportunidades para que, após tal equânime distribuição, seja o aspecto meritório devidamente avaliado. Não há que se falar em mérito próprio, sem que os indivíduos possuam as mesmas perspectivas, especialmente porque, a partir das lições de Dworkin já aqui tratadas, o mérito é apenas um elemento de averiguação da potencialidade dos indivíduos, não sendo o único plausível e válido. Em relação ao princípio da igualdade, o ministro aborda com bastante propriedade o necessário afastamento de uma igualização estática, afirmando a necessidade de o Estado atuar positivamente, além de apenas proibir a discriminação. Segundo ele, “Não basta não discriminar. É preciso viabilizar as 418 BARROSO, Luis Roberto Barroso. Ações afirmativas, cotas raciais e escolhas legítimas. Resposta à consulta formulada pelo Instituto EDUCAFRO, em razão do julgamento da ADPF 186. 419 Ao afirmar sobre a transitoriedade das ações afirmativas em análise, o ministro deixou claro que “estamos bem longe disso”, ou seja, há um árduo caminho a ser percorrido até que estejamos aptos a excluir as medidas decorrentes desta ação afirmativa. 158 mesmas oportunidades”420, complementando ainda que “ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica”. Em sua exposição, o ministro Marco Aurélio cita ainda a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação: A Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil, em 26 de março de 1968, dispôs: "Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais" – e adentrou-se o campo das ações afirmativas, da efetividade maior da não discriminação – “tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades” – no sentido amplo – “fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência" – e, hoje, ainda estamos muito longe disso –, "à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais 421 e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos." Por fim, conclui o ministro que “Só existe a supremacia da Carta quando, à luz desse diploma, vingar a igualdade. A ação afirmativa evidencia o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica”422. Assim, identifica o princípio da igualdade como aquele que sustenta a aplicação da Constituição merecendo, consequentemente, a adoção de medidas que permitam a sua efetividade. Vê-se, portanto, que em que pese não referenciar expressamente o marco teórico adotado por este trabalho, pode-se apontar no voto do Ministro Marco Aurélio algumas especificidades que convergem com a proposta dworkiana, especialmente a acima relatada, concernente ao mérito enquanto apenas uma das possibilidades de avaliação. Já a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, também votando pela improcedência da ADPF 186, defende que não se pode fechar os olhos à situação real e concreta dos negros no país. Segundo ela, “tantas vezes decantada, a igualdade é o princípio mais citado na Constituição Federal. Quem sofre preconceito 420 Segundo o ministro Marco Aurélio, pode-se dizer, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ”construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança de óptica, ao denotar “ação”. In. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013 421 Ibidem 422 Ibidem 159 percebe que os princípios constitucionais viram retórica”423, corroborando a ideia de que, embora velada, a discriminação faz parte de nossos dias atuais, deixando, todavia, de utilizar igualmente, ao menos de forma expressa, a fenomenologia política. Ressaltando o caráter temporário das cotas e argumentando uma responsabilidade social do estado em relação às ações afirmativas, entende estas como uma etapa necessária para o alcance da igualdade, a qual deve ser efetivada em conjunto com outras medidas que impeçam o aumento do preconceito. Doutro lado, o ministro Joaquim Barbosa, seguindo o voto do relator da ADPF 186, destacou os possíveis motivos da rejeição de parcela da sociedade diante dos programas de cotas, afirmando tratar-se da tentativa de manutenção de um status quo. Segundo o ministro, Acho que a discriminação, como componente indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste-se de uma roupagem competitiva. O que está em jogo aqui é, em certa medida, competição: é o espectro competitivo que germina em todas as sociedades. Quanto mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre o discriminador e o discriminado (...) É natural, portanto, que as ações afirmativas – mecanismo jurídico concebido com vistas a quebrar essa dinâmica perversa –, sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação de que 424 são vítimas os grupos minoritários. Denota-se, então, que o ministro denuncia um possível aproveitamento daqueles que não sofrem a discriminação racial, já que a exclusão de parcela da sociedade, a priori, torna o mundo de oportunidades menos competitivo, explicando, assim, a rejeição dos programas de cotas. Caracteriza, então, as ações afirmativas como um meio de concretizar o princípio da igualdade e neutralizar os efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. 423 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto da Ministra Carmen Lucia. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013: 424 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 160 Em verdade, o ministro Joaquim Barbosa há muito já havia defendido a instituição de cotas raciais em outras produções científicas de sua autoria, sendo um árduo defensor das ações afirmativas no ensino superior público. Em uma destas produções, o ministro defende que Além do ideal de concretização da igualdade de oportunidades, figuraria entre os objetivos almejados com as políticas afirmativas o de induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrair do imaginário coletivo a idéia de supremacia e de subordinação de uma raça em relação à outra, (...). As ações afirmativas têm como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas, sobretudo, eliminar os ‘efeitos persistentes’ da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada ‘discriminação estrutural’, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre grupos dominantes e 425 grupos dominados. Mantendo, então, o seu posicionamento favorável às cotas afirma que “A igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade”426. Assim, parece que o voto do ministro atende à ideia da igualdade como diversidade, posto que é exatamente neste princípio que fundamenta as suas razões, além de abranger a proposta da interpretação construtiva do direito, valendo-se do horizonte histórico que lhe pertence. Vale destacar, todavia, em que pese tal convergência com o marco teórico do presente trabalho, nota-se no voto do Ministro Joaquim Barbosa alta carga de subjetividade, vê-se que este, ao argumentar sobre a competição, apresenta argumentos que lhe são pessoais, deixando de justificar adequadamente a origem destes. Não se falou, portanto, em moralidade política, mas apenas apresentou-se convicções pessoais. Não obstante, o cerne de seu voto, identificando as cotas como forma de reduzir desigualdades, atende as ideias aqui expostas. Seguindo também o voto do ministro relator, o ministro Cezar Peluso se manifestou, principalmente, no sentido de afastar a ideia de que as cotas, enquanto ação afirmativa,ofendem o princípio constitucional da igualdade. Entretanto, em sentido oposto ao já tratado neste trabalho, o ministro menciona a igualdade em seu 425 GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto. Ações Afirmativas e o combate ao racismo nas Américas. Brasília: ONU, BID e MEC, 2007. pp. 55-56 426 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 161 aspecto formal e material, no sentido de que ela possui um sentido próprio de acordo com o caso concreto em que se insere. Neste esteio, convém lembrar que atualmente o direito à igualdade teve incorporado em seu discurso constitucional a sua caracterização enquanto diversidade ou reconhecimento, de forma que estes três conceitos (material, formal e reconhecimento) operam em sinergia para realizar a ideia de igual respeito e consideração.427 Não obstante, o ministro também defende a existência de um histórico que propiciou a atual exclusão dos negros, estabelecendo que “é fato histórico incontroverso o déficit educacional e cultural dos negros, desde os primórdios da vida brasileira, em virtude das graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso dos negros às fontes da educação e da cultura”428. Demonstra-se, então, novamente a interpretação do direito como uma narrativa histórica, em seu aspecto construtivo, revelando entendimentos dworkianos. A partir dai, entende-se pela necessidade de aprimoramento do acesso da educação: “o raciocínio de que o acesso à educação tem que ser visto como meio indispensável de acesso ou, pelo menos, da possibilidade de acesso mais efetivo aos frutos de desenvolvimento socioeconômico e, portanto, de uma condição sociocultural que corresponda ao grande ideal da dignidade da 429 pessoa humana e do projeto de vida de cada um”. Diante deste histórico, o ministro afirma um dever da sociedade em diminuir estas desigualdades. Este dever, para o ministro, está respaldado no artigo 3º da Constituição Federal que prevê a sociedade solidária, erradicação da marginalidade e desigualdade e promoção do bem de todos, sem preconceito de cor. Assim, para ele, a própria Constituição prevê a possibilidade de instituição de ações promocionais, na medida em que protege determinados grupos hipossuficientes, tal como empregados, crianças e adolescentes, o que por si só afastaria os argumentos contrários referentes à inconstitucionalidade das cotas. A partir da conclusão pela legitimidade das cotas e reconhecimento das desigualdades atualmente existentes, o ministro utiliza um argumento também 427 BARROSO, Luis Roberto Barroso. Ações afirmativas, cotas raciais e escolhas legítimas. Op. Cit. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Cezar Peluso. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 429 Ibidem. 428 162 defendido por este trabalho, eis que menciona a inexistência de uma ideia de uma dívida histórica, no sentido de serem as ações afirmativas elementos que permitem uma compensação histórica. Vejamos. A meu ver, a política pública afirmativa volta-se para o futuro, independe de intuitos compensatórios, reparatórios, de cunho indenizatório, simplesmente pela impossibilidade, não apenas jurídica, de responsabilizar os atuais por atos dos antepassados. [...] essas políticas públicas são voltadas para o futuro. Não compensam. Estão atuando sobre a realidade de uma injustiça 430 hic et nunc (aqui e agora). Em verdade, o ministro argumenta sobre uma injustiça histórica, ao estabelecer que há a responsabilidade ético-jurídica da sociedade e do Estado para responder ao déficit histórico, a fim de superar as desigualdades materiais existentes, desfazendo esta injustiça histórica. Mas, adverte-se, a menção à injustiça histórica não é a justificativa das ações afirmativas, que se sustentam efetivamente nas desigualdades hoje visualizadas. Isso porque, conforme já aqui defendido, não há que se falar em compensação histórica, posto que este argumento fragiliza a ideia de cotas. O histórico construído a partir de um horizonte autêntico é certamente essencial para que se compreenda a situação atualmente existente. Entretanto, a sociedade é uma só e não há como saldar divida do passado se naquele momento as condutas praticadas eram consideradas naturais. O fato é que este histórico culminou em uma desigualdade que hoje é efetivamente caracterizada, sendo ela o foco central das ações afirmativas. A solução das cotas é para uma situação presente e não para compensar um passado. O ministro ainda aborda um importante argumento utilizado para rechaçar a instituição das cotas, qual seja, a ideia de que são elas um incentivo ao racismo. Segundo ele, “não há elemento empírico para sustentar essa tese. A experiência é que não tem ocorrido e, se tem, foi em escala irrelevante que não merece consideração”.431 Neste sentido, muito se vê argumentar que seriam as cotas a “institucionalização do racismo” por aqueles que rechaçam esta proposta, tendo este 430 Ibidem. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Cezar Peluso. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 431 163 argumento sido elevado, inclusive, na inicial da ADPF 186. No entanto, esta fundamentação parece não se sustentar, a partir do momento que se percebe que esta “institucionalização” se faz presente na própria sociedade, na medida em que os negros são a maioria nas classes sociais menos favorecidas.432 O preconceito e o racismo, a bem da verdade, estão interiorizados nos indivíduos e apenas poderão ser superados a partir do momento em que se desmistificar a ideia de exclusão dos negros, mediante a inserção massiva destes em todos os meios da sociedade. Já o ministro Gilmar Mendes, também votou pela improcedência da ADPF 186, entretanto apontou algumas falibilidades da política de reserva de cotas para negros, especialmente pela seleção poder ficar a critério de um “tribunal racial”433. Isso porque indicou que as distorções no momento de caracterizar uma raça são conhecidas, no sentido de que as jovens políticas contestadas pela ADPF 186 ainda devem ser aprimoradas. Para ele, as dificuldades de acesso ao ensino superior público se dão por inúmeros fatores que não apenas a raça, de forma que a exclusividade deste critério poderia gerar situações inadequadas, como um negro com boas condições sócio-econômicas se aproveitando do programa de cotas.434 Neste esteio, deve-se admitir que existe fatidicamente uma grande dificuldade em se determinar raças, já que o próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 82424 RS435 definiu a inexistência de raças, no 432 Vale aqui destacar que na própria petição inicial da ADPF 186, subscrita pela Dra. Roberta Fragoso Menezes Kaufmann, foi feita menção à situação de pobreza dos negros que são ainda a maioria da classe social menos favorecida. Embora sustente-se esta ideia para afirmar que o preconceito é de classe e não de raça, não se pode negar que se trata de um dado real e que necessita de especial antenção. Vejamos.“Defende-se nesta ADPF que, no Brasil, ninguém é excluído pelo simples fato de ser negro, diferentemente do que aconteceu em outros países, como nos Estados Unidos e na Árica do Sul. Aqui, a dificuldade de acesso à educação e a posições sociais elevadas decorre, sobretudo, da precária situação econômica, que termina por influir em uma qualificação profissional deficiente, independentemente da cor da pele. Infelizmente, no Brasil, os negros são as maiores vítimas do fenômeno da desigualdade social: dados do PNAD/IBGE (2001) demonstram que aproximadamente 70% dos indigentes no Brasil são negros, e, dentre os pobres, a proporção de negros é de 64%”. 433 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 434 Ibidem 435 HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência 164 da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as consequências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (Processo:-HC 82424 RS. Relator(a):- 165 sentido biológico do termo, tornando penoso o estabelecimento deste critério, mormente quando pensado no requisito da autodeclaração para a participação nas cotas. Entretanto, há de se reconhecer que o racismo, em seu sentido político social existe concretamente na sociedade brasileira, em que pese o mito da democracia racial, já amplamente discutido no presente trabalho. Sendo constatado o racismo como situação real que origina desigualdade e exclusão social, não parece legítimo invocar a sua impossibilidade (se pensado nos termos da definição pelo genoma humano) para afastar possíveis medidas que objetivam a minimização de seus efeitos, pois tal conduta não reduziria a desigualdade existente e permitiria a perpetuação das desigualdades. Neste sentido, Flávia Piovesan ressalta que a complexa realidade brasileira vê-se marcada por um alarmante quadro de exclusão social e discriminação como termos interligados a compor um ciclo vicioso, em que a exclusão implica discriminação e a discriminação implica exclusão. 436 Não obstante, o ministro Gilmar Mendes destacou a legitimidade das ações afirmativas como forma de aplicação do princípio da igualdade, pois “a própria Constituição preconiza 437 compensação” medidas de assistência social como política de e, diante do caráter então experimental das cotas raciais instituídas pelo UnB, reconheceu a sua importância e legitimidade. Afastou-se, neste voto, qualquer ligação com a construção de Dworkin, não havendo convergência com as propostas deste trabalho e, novamente, demonstrou sinais de um decisionismo, já que o julgamento se deu assentado em convicções pessoais. Parece evidente que ao argumentar a possível existência de um tribunal racial, o Ministro ignorou todos os possíveis argumentos de princípios envoltos neste tema, analisando-o apenas em seu aspecto prático e superficial, expressando uma opinião que lhe é própria. É certo que no caso em comento, o subjetivismo MOREIRA ALVES . Julgamento:-16/09/2003 .Órgão Julgador:-Tribunal Pleno. Publicação:-DJ 19-032004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524.Parte(s):-SIEGFRIED ELLWANGER WERNER CANTALÍCIO JOÃO BECKER. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA) grifos nossos 436 PIOVESAN, Flávia . Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. In. CAMARGO, Marcelo Novelino. Leituras complementares de constitucional – direitos fundamentais. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2007, p. 226. 437 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Gilmar Mendes. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 166 apresentado foi benéfico, pois a decisão se deu, de qualquer forma, em favor das cotas, mas o contrário poderia ter ocorrido. O voto proferido pelo ministro Celso de Mello igualmente reconheceu a constitucionalidade das cotas raciais, afirmando inclusive que estas se encontram de acordo com os tratados internacionais de direitos humanos. Adverte, todavia, que deverão ser acompanhadas do critério temporário, a fim de evitar a manutenção de direitos desiguais após o alcance dos objetivos da ação afirmativa. Importante aspecto do voto do ministro Celso de Mello é a sua menção à dimensão moral do assunto relativo às cotas: O racismo representa grave questão de índole moral que se defronta qualquer sociedade, refletindo uma distorcida visão do mundo de quem busca construir hierarquias artificialmente fundadas em suposta hegemonia 438 de um certo grupo étnico-racial sobre os demais. Talvez aqui se possa compreender o porquê de insistirmos na inexistência da tão relatada democracia racial. Atualmente o que se vê é um grupo dominante que inseriu esta ideia no seio da sociedade, a fim de garantir a sua contínua supremacia. Como se pode afirmar a democracia racial se os negros continuam vivendo à margem da miséria e, ainda quando superado o obstáculo econômico, se mantém em uma posição inferior à classe branca?439 A moral da comunidade exige que se preserve a fraternidade entre os indivíduos, de forma que qualquer destas divergências e formas de exclusão, ainda quando veladas, sejam definitivamente extirpadas. É fato que os negros são a maioria na classe pobre440, entretanto, isto não significa, por si só, que o preconceito 438 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso dle Melo. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 439 Além da recente pesquisa da DIESEE já apresentada, válido também ressaltar os números constantes no relatório de síntese de indicadores sociais de 2012 do IBGE: “A desigualdade por cor ou raça também é visível, posto que o rendimento médio das pessoas ocupadas pretas ou pardas com 16 anos ou mais de idade equivale a 60,0% do rendimento médio da população branca nessa faixa etária (Tabela 4.8 e Gráfico 4.8), situação que já foi mais grave, uma vez que, em 2001, o rendimento de pretos ou pardos era 50,5% do auferido pelos brancos.” Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf 440 Em análise à distribuição de riquezas no país em 2012, o IBGE concluiu que “No 1% mais rico, em 2001, 9,3% eram pretos ou pardos, proporção que passou a 16,3% em 2011 (Gráfico 5.6). Trata-se, em todo caso, de uma participação ainda muito distante do total de pretos ou pardos na população, cuja proporção é 51,4%.” Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf 167 é de classe. Aliás, o próprio fato da classe menos favorecida economicamente ser predominantemente negra ilustra com perfeita nitidez que o preconceito ainda é também racial.441 Além disso, o ministro Celso de Mello destaca a relação direta existente entre a garantia dos preceitos constitucionais, no sentido que [...] ao frustrar e aniquilar a condição de cidadão da pessoa que sofre exclusão estigmatizante propiciada pela discriminação e ao ofender valores essenciais da pessoa humana e da igualdade, representa a própria antítese dos objetivos fundamentais da República, dentre os quais figuram aqueles que visam a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, 442 inteiramente comprometida com a redução das desigualdades sociais. Baseando-se em conceitos mundiais apresentados na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2001, na cidade de Durban (África do Sul), o ministro reafirma a real violação dos direitos humanos pelo racismo, aduzindo a necessidade de que os atos formalizados na Constituição e em Tratados Internacionais saiam do papel, e passem a ter a sua efetivação concreta. Segundo o ministro Celso de Mello, “O desafio não é apenas a mera proclamação formal de reconhecer o compromisso em matéria dos direitos básicos da pessoa humana, mas a efetivação concreta no plano das realizações materiais dos encargos assumidos”.443 Tratando, pois, do preceito constitucional de redução de desigualdades sociais e considerando a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária, além de expressamente tratar da moral de uma sociedade, embora não haja a referência expressa, parece correto aduzir que seguiu-se, em certa medida, uma hermenêutica política, afinal a moral política exige coerência e justificação, o que foi respeitado no Voto em comento. 441 Conforme Norberto Bobbio, “não existe preconceito pior do que o acreditar não ter preconceito”. In. BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais.São Paulo. Unesp, 2002. P. 122 442 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 443 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013.. 168 O ministro Ayres Britto, por sua vez, se posicionou pela constitucionalidade das cotas enquanto políticas públicas de justiça compensatória, realizando uma distinção entre cotas sociais e cotas raciais, no sentido de que o “bem estar” tem caráter material e se refere à distribuição de riquezas, enquanto a fraternidade, a pluralidade e a ausência de preconceitos vão além da questão material.444 Esta diferenciação se deu com fundamento no preâmbulo da Constituição, o qual prevê a proteção ao bem estar e a promoção de uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos”, sendo que tais expressões tão somente constaram no texto constitucional em virtude da existência de “um estado genérico e persistente de desigualdades sociais e raciais”445. Assim, na visão do ministro o preconceito racial hoje existente é histórico e decorre desde a época da colonização. Sobre a fraternidade e a suposta democracia racial, Boaventura de Souza Santos expõe: Falar em fraternidade no Brasil significa, essencialmente, enfrentar o peso desse legado, o que representa um grande desfio para um país em que muitos tomam a ideia de democracia racial como dado, não como projecto. Mas se o desafio for enfrentado em sua inteireza pelas instituições sem que se busque diluir a gravidade do problema em categorias fluidas como a dos “pobres”, o país caminhará não apenas para a consolidação de uma nova ordem constitucional, no plano jurídico, como também para a construção de 446 uma nova ordem verdadeiramente pós colonial, no plano sócio-político. Sob este aspecto, o voto do ministro Ayres Britto trata com bastante propriedade sobre questão que se insiste no presente trabalho: A nação não está pagando uma dívida histórica, mas corrigindo distorções atuais. Segundo ele, “a nação é uma só, multigeracional. [...] O que fez uma geração pode ser revisto pelas gerações seguintes”. O ministro ainda completa sobre a possibilidade e necessidade de implementação dos programas de cotas: Não basta proteger, é preciso promover as vítimas de perseguições e humilhações ignominiosas”, destacou. Por isso o artigo 3º, inciso III, afirma que são objetivos fundamentais da República erradicar a pobreza e a marginalização, e o inciso IV fala na promoção do bem de todos, sem 444 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Ayres Britto. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 445 Ibidem 169 preconceito de origem, raça, sexo, etc. O artigo 23, inciso X, por outro lado, impõe a todos os entes da Federação “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores 447 desfavorecidos. A internalização da desigualdade por aqueles que não estão bem posicionados na escala social também foi suscitada pelo ministro, que conclui que o preconceito passa a definir o caráter e o perfil da sociedade448. Para ele, as cotas raciais são válidas, pois abrangem situações nas quais há “desigualdades dentro das desigualdades”449, isto é, o preconceito em relação à cor potencializa a desigualdade econômica, sendo imprescindível a criação de políticas públicas que retirem a notória segregação existente na sociedade.450 Finalmente, enaltecendo as cotas, o ministro conclui que “São políticas afirmativas do direito de todos os seres humanos a um tratamento igualitário e respeitoso. Assim é que se constrói uma nação”. Percebe-se, pois, a clara preocupação do Ministro com os princípios da comunidade e com o respeito às divergências, utilizando com veemência argumentos de princípios e, perante Dworkin, legitimando sua decisão. 447 Ibidem. Cf. Daniel Sarmento: “Ora, também no Brasil, a internalização da naturalidade da subordinação do afrodescendente compromete a capacidade de visualização da opressão racial. E este fenômeno não ocorre apenas no âmbito das consciências individuais, mas também no espaço das interações sociais, sendo agravado em nós pela persistência do mito nacional da democracia racial. Assim, a discriminação torna-se opaca, e a prova da intenção discriminatória dificílima de ser produzida”. In. Daniel Sarmento, Direito constitucional e igualdade étnico-racial. In: PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas Martins de (coord.), Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-racial. Brasília, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2006, p. 80. 449 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Celso de Mello. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 450 Em relação aos dados referentes ao ensino obtidos pelo IBGE em 2012, visualiza-se que a ausência de negros nas universidades ainda é evidente, sendo que, embora esteja sendo gradativamente modificada esta realidade, ela ainda não atingiu o seu ideal. Cf. “A frequência desses estudantes no ensino superior também evoluiu positivamente, aumentando de 27% para 51% no período. Esses resultados evidenciam os efeitos da expansão educacional, mas importantes disparidades podem ainda ser observadas. A proporção de jovens estudantes brancos de 18 a 24 anos de idade que frequentavam o ensino médio diminuiu em função da elevação da frequência líquida descrita anteriormente. Em contrapartida, os jovens estudantes pretos ou pardos na mesma faixa etária mantêm a frequência nesse nível. Isso é uma evidência de que o crescimento substancial na frequência líquida dos estudantes de cor ou raça preta ou parda no ensino médio não foi suficiente para reverter os efeitos do atraso escolar desse grupo ao longo dos últimos dez anos. O aumento da frequência observada para os jovens pretos ou pardos no ensino superior, nível educacional adequado para essa faixa etária, não foi suficiente para alcançar a mesma proporção apresentada pelos jovens brancos dez anos antes.” Grifos nossos. Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf 448 170 Também seguindo o voto do relator, a ministra Rosa Weber destacou a instrumentalização das cotas para garantir as mesmas chances de acesso dos indivíduos às oportunidades sociais, sendo que “A desigualdade material que justifica a presença do Estado nas relações sociais só se legitima quando identificada concretamente”. A ministra propõe, então, uma análise da igualdade em seu aspecto formal e material. Muito já se tratou no presente trabalho acerca da impossibilidade de consideração da igualdade apenas sob estas duas perspectivas, haja vista a ideia mais coerente de igualdade também enquanto respeito à diversidade. Em que pese esta divergência de nosso entendimento com o da ministra, cumpre destacar trecho do seu voto em que relata as questões referentes à igualdade: A igualdade se apresenta na construção do constitucionalismo moderno de duas formas: viés formal e material. A igualdade formal é a igualdade perante a lei, que permite que todos sejam tratados em abstrato da mesma forma. Se todos têm os mesmo direitos e obrigações, todos são igualmente livres para realizar suas próprias perspectivas de vida. [...] a igualdade formal é também presumida, já que desconsidera processos sociais 451 concretos de formação de desigualdades. Seguindo esta concepção, a ministra afirma que quando identificadas desigualdades concretas, a presunção de igualdade deixaria de ser benéfica, pois “passa a ser um fardo, porque impede que se percebam as necessidades concretas de grupos que, por não terem as mesmas oportunidades, ficam impossibilitados de galgar os mesmos espaços daqueles que estão em condições sociais mais favoráveis”452. É bem verdade que o objetivo da ministra é a defesa das cotas raciais, entendendo pela impossibilidade de simplesmente se aplicar a mesma regra do jogo a todos os participantes, independentemente da posição que ocupam, ideia compartilhada pelo presente trabalho. Entretanto, é de se reiterar que o princípio da igualdade não deve ser esquecido ou inaplicado por isso, já que a sua faceta enquanto respeito à diversidade é plenamente adequada e coerente ao assunto em 451 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto da Ministra Rosa Weber. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 452 Ibidem 171 comento, de forma que ele se mantém como um princípio imperioso para o alcance de uma melhor resposta em relação às cotas. Interessante, doutro lado, a afirmação da ministra de que “liberdade e igualdade andam de mãos dadas”, ao mencionar a igualdade racial como uma questão de construção social. Segundo ela, Sem igualdade mínima de oportunidade, não há igualdade de liberdade. As possibilidades de ação, de escolhas de vida, de visões de mundo, de chances econômicas, de manifestações individuais ou coletivas específicas são muito mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade, 453 não têm consideradas as suas condições particulares. Esta concepção está em consonância com a proposta deste trabalho de que é impossível que se pleiteie a liberdade de todos se a igualdade inexiste. O indivíduo apenas poderá ser livre na sociedade se possuir oportunidades para alcançar a efetividade de direitos sociais, posto que o critério simplesmente meritório é superficial e não consegue atingir a complexidade de uma sociedade plural e democrática, revelando um caráter egoístico e individualista do ser humano. É preciso que se pense, pois, na sociedade como uma comunidade de princípios, mormente quando da aplicação do direito. No que concerne à constante alegação de que a desigualdade existente no Brasil é social e não racial, a ministra sustenta a ideia de que os negros ainda são maioria, afirmando que “se a quantidade de brancos e negros pobres fosse aproximada, seria plausível dizer que o fator cor é desimportante. [...] Enquanto as chances dos mais diversos grupos sociais brasileiros, evidenciadas pelas estatísticas, não forem minimamente equilibradas, a mim não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico”.454 Evidencia-se, portanto, a ideia de que, em que pese a existência de indivíduos não negros também marginalizados na sociedade, a proporção de negros na linha da pobreza ainda é esmagadora, o que é confirmado não apenas pelas estatísticas oficiais, mas por uma simples análise da sociedade atual. Assim, segundo a ministra o Estado deve “adentrar no mundo das relações sociais e corrigir 453 454 Ibidem Ibidem 172 a desigualdade concreta para que a igualdade formal volte a ter o seu papel benéfico”.455 Com as cotas, a segregação hoje evidente será minimizada, já que a inclusão de negros nas universidades e a necessária convivência destes em locais hoje predominados por brancos, permitirá um ambiente mais plural e democrático.Com as cotas, o estigma da segregação entre brancos e negros que a sociedade insiste em velar, poderá ser desfeito. Daí a ministra ressalta também a temporalidade das cotas, pois “quando o negro se tornar visível nas esferas mais almejadas das sociedades, política compensatória alguma será necessária.” Acompanhando o voto do relator, o ministro Luiz Fux destaca que entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil está a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, lembrando ainda que o artigo 208, inciso V, da Constituição atribui ao Estado o dever com a educação, no sentido de garantir “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.456 Ressalta-se, todavia, que o ministro arguiu a necessidade de reparação e danos pretéritos do país no que concerne aos negros. Muito já se discutiu no presente acerca da não aceitação desta ideia, pois seria impossível que a sociedade pagasse uma dívida histórica em relação a uma situação já passada e pretérita, o que foi reforçado no voto do ministro Cezar Peluso. Sobre o princípio da igualdade, o ministro Luiz Fux trata a ideia de que é preciso que se faça algo além da abolição da escravatura, devendo ser concedida ao negro a igualdade material em relação ao branco, proclamando a proposta de tratar desigual os desiguais. Reitera-se aqui a atual dimensão da igualdade enquanto direito à diversidade, no sentido de que não se trata de aplicar uma desigualdade, mas sim a igualdade e equalização como forma de consideração das diferenças. Justificando ainda a legalidade e legitimidade da criação de ações afirmativas, o ministro citou uma série de legislações que já criaram políticas públicas neste sentido, tais como a Lei 9.394/1996 (Lei das Diretrizes e Base da 455 Ibidem BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Luiz Fux. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 456 173 Educação Nacional), que preconiza o dever do Estado com a educação, inspirada nos princípios da liberdade e na solidariedade humana; a Lei 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação); a Lei 10.558/2002, que criou o Programa Diversidade na Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, que também trata da promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, tais quais os afrodescendentes e os indígenas; a Lei 10.678/2003, que criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, e o Decreto-Lei 65.810/69, que promulgou a Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial.457 O ministro ao defender a constitucionalidade das cotas, utilizou de argumentos quase que poéticos, afirmando que “Justiça não é algo que se aprende, é algo que se sente”, afirmando ainda que “Prefiro a leitura pela alma humana”.458 Trata-se, claramente, de um julgamento calcado em critérios de ordem subjetiva e, quiçá pessoal, já que o próprio ministro equiparou a discriminação sofrida por negros e judeus, para afirmar que, enquanto judeu, entende o sofrimento da classe negra. É bem verdade que no caso em comento, o julgamento a partir de critérios pessoais foi bem sucedido, na perspectiva do presente trabalho, pois revelou a concretude de um preconceito existente e reconheceu a validade das cotas raciais. No entanto, pode-se pensar que o oposto poderia ter ocorrido, ou seja, um ministro poderia, calcado em razões subjetivas, expor o seu próprio preconceito no julgamento, afastando assim a proteção constitucional às classes marginalizadas. Insiste-se, pois, que a resposta correta não deve partir de uma visão individual e pessoal, mas efetivamente da análise do que melhor se adequa à comunidade de princípios, já que apenas assim se atingirá a integridade do direito. Por fim, crucial analisar o voto do Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, que, embora possua uma importância destacada no processo, optou-se deixar para o final, pois ele fecha as principais ideias trazidas pelos demais ministros e indica, com maior precisão, a fundamentação da decisão pela improcedência da ADPF 186. Primeiramente, abrindo o seu voto, o ministro relator aborda a questão referente à igualdade, identificando, todavia, tal princípio nos planos formal e 457 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Voto do Ministro Luiz Fux. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=206042> >. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 458 Ibidem 174 material, o que, reitera-se, parece não mais fazer sentido se entendida a igualdade enquanto direito à diversidade. Para o ministro, as cotas se caracterizam como instrumento efetivo que assegura não apenas a isonomia no plano formal, mas que empresta a máxima concreção a esse postulado, assegurando a igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no País.459 Entretanto, não obstante a menção a estes dois aspectos do princípio da isonomia (formal e material), o ministro acertadamente menciona que a concretude deste princípio deve levar em consideração “a diferença que os distingue por razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos sociais”460, corroborando ainda que esta concepção da igualdade integra o próprio conceito de democracia. Segundo o ministro, é preciso que se entenda a igualdade não apenas como um direito, mas efetivamente como possibilidade. Nesta linha, a criação de programas de cotas se encaixa em perfeita medida, já que tais programas são efetivos meios de garantia e equalização de possibilidades, as quais, a partir de um horizonte autenticamente traçado, encontram-se em desconformidade. Entendidas as cotas, então, como instrumentos que realizam o princípio da isonomia, no seu aspecto da diversidade, o ministro relator passa a discorrer sobre a participação equitativa dos indivíduos nos bens sociais, identificando a chamada “Justiça distributiva”, outrora defendida por John Rawls. A partir do entendimento de Rawls, o relator afirma que Só ela (justiça distributiva) permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade fática, mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo. Nesse sentido, ensina que como sabem os estudiosos do direito constitucional, o nosso Texto Magno foi muito além do plano retórico no concernente aos direitos e garantias fundamentais, estabelecendo diversos instrumentos 461 jurídicos para conferir-lhes plena efetividade. 459 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013 460 Ibidem. 461 Ibidem 175 A observação proposta pelo ministro está, então, em consonância com as questões expostas no segundo capítulo, referentes à Constituição Dirigente e ao Brasil enquanto um país de modernidade tardia462. É preciso, pois, que além de prever, se efetivem os direitos fundamentais e sociais.463 O ministro relator realiza, então, considerações acerca das políticas de ação afirmativa, apresentando a definição destas, o caráter transitório, a forma de criação, bem como as modalidades existentes, elementos os quais já foram objeto de apreciação acima. Sobre os critérios para ingresso no ensino superior, o ministro destaca que a Constituição Federal preceitua, em seu art. 206, I, III e IV, que o acesso ao ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”; “pluralismo de ideias”; e “gestão democrática do ensino público”; bem como em seu artigo 208, V, estabelece que o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística será efetivado “segundo a capacidade de cada um”.464 Diante disto, segundo o ministro, “ao mesmo tempo em que estabelece a igualdade de acesso, o pluralismo de ideias e a gestão democrática como princípios norteadores do ensino, também acolhe a meritocracia como parâmetro para a promoção aos seus níveis mais elevados”465. Conciliando tais proposições, tem-se que a Constituição Federal considera a questão meritória, no entanto, esta não poderá ser auferida se as condições sociais dos indivíduos não forem equivalentes, isto, não se admite uma “ótica puramente linear”. Daí afirma o ministro que Elas devem, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro, desconsiderando-se os 466 interesses contingentes e efêmeros que envolvem o debate. A partir desta perspectiva, o ministro Ricardo Lewandowski argumenta o necessário afastamento de critérios absolutamente objetivos, isonômicos e 462 Remetemos o leitor à análise do capítulo 2, no qual estas questões foram devidamente tratadas. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 464 Ibidem. 465 Ibidem. 466 Ibidem. 463 176 imparciais, tendo em vista ser a nossa sociedade marcada por profunda desigualdade interpessoal. Se assim não o fosse, correr-se-ia o risco de alimentar as distorções já existentes. Conforme salientado pelo ministro relator, os principais espaços de poder político e social mantém-se, então, inacessíveis aos grupos marginalizados, ensejando a reprodução e perpetuação de uma mesma elite dirigente, situação que se agrava quando esta concentração de privilégios afeta a distribuição de recursos públicos. Assim como exposto anteriormente, o ministro relator parece concordar com a ideia de Dworkin de que qualquer critério utilizado para admissão de alunos no ensino superior público poderia ser discriminatório e excludente. Neste sentido, afirma: Como é evidente, toda a seleção, em qualquer que seja a atividade humana, baseia-se em algum tipo de discriminação. A legitimidade dos critérios empregados, todavia, guarda estreita correspondência com os objetivos sociais que se busca atingir com eles. [...] Deve, ademais, no particular, levar em conta os postulados constitucionais que norteiam o ensino público. Nos termos do art. 205 da Carta Magna, a educação será “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Já o art. 207 garante às universidades, entre outras prerrogativas funcionais, a autonomia didáticocientífica e administrativa, fazendo-as repousar, ainda, sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão. Com esses dispositivos pretendeu o legislador constituinte assentar que o escopo das instituições de ensino vai muito além da mera transmissão e produção do conhecimento em benefício de alguns poucos que logram transpor os seus umbrais, por partirem de pontos de largada social ou economicamente privilegiados. Assim, visando o papel integrador da Universidade, defende o ministro que os critérios de admissão devem também levar em conta a capacidade de intervenção em problemas sociais de cada candidato, de forma que os critérios étnico-raciais s tornam admissíveis e adequados, para assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias467. Ao afirmar a possibilidade de tais critérios, todavia, o ministro afasta o caráter biológico de raça, considerando esta como um conceito histórico-cultural, artificialmente construído, tal como reiterado no presente trabalho. Assim, as cotas 467 Ibidem 177 seriam adequadas para diminuir a dominação exercida por pequena parcela da sociedade e, quiçá, eliminar a ideia de raça.468 Abordando o horizonte já relatado, o ministro destaca o reduzido número de negros e pardos que ocupam cargos e funções de relevo na sociedade, o que revela uma discriminação velada e permanente, adotando, portanto um horizonte autêntico para construir a sua decisão. Neste sentido, corrobora-se que, caso a discriminação fosse tão somente social, esta situação não se caracterizaria. A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multisecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para a sua 469 exclusão. A partir daí salienta-se a necessidade da criação de lideranças destes grupos discriminados, a fim de garantir o reconhecimento e valorização destes. É neste ponto que o ministro afirma um adequado modo de se pensar a justiça social, a qual significa, segundo ele, “distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes”470. Solidifica-se a ideia de transformar a universidade em um espaço de diversidade e integração entre indivíduos, assim considerado para o ministro “um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade.”471 Vislumbra-se, portanto, que o ministro buscou valorizar a intersubjetividade como forma de criação de uma conscientização coletiva, definindo assim os princípios morais da comunidade, a partir de um conceito heterogêneo e plural. Essa 468 Sobre a existência da discriminação social: “É certamente verdadeiro que não existe no Brasil a história de ódio racial que se caracterizou no Estados Unidos. Mas no Brasil, a ausência de ódio racial não impediu a discriminação racial.” In SKIDMORE, Thomas E. Racial mixture and affirmative action: the cases of brazil and the United states. Disponível em http:// www.historycooperative.org/journals/ahr/108.5/skidmore.html Acesso em 12 de novembro de 2013. 469 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013 470 Ibidem. 471 Ibidem 178 ideia de justiça social, de acordo com o relator, revela a insuficiência do critério exclusivamente social, pois ele não promoveria a integração de grupos excluídos, inexistindo uma consideração de ordem ética e racial. 472 Novamente, aproxima-se o Relator da proposta dworkiana. Assim ilustra a importância das cotas como elemento de integração da sociedade: É certo afirmar, ademais, que o grande beneficiado pelas políticas de ação afirmativa não é aquele estudante que ingressou na universidade por meio das políticas de reserva de vagas, mas todo o meio acadêmico que terá a oportunidade de conviver com o diferente ou, nas palavras de Jürgen 473 Habermas, conviver com o outro. Quanto à hetero e autoidentificação, isto é, a forma de identificação utilizada pelas universidades para concessão das cotas, o ministro relator utilizou dos ensinamentos de Daniela Ikawa, abaixo transcritos: A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença. Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -,essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo. Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato. A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (...). Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em 472 O ministro ressalta ainda o papel simbólico das ações afirmativas, já que “Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.” Ibidem 473 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013 179 consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação 474 sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos. Pois bem. Observa-se que não obstante a dificuldade encontrada ao se estabelecer critérios para identificação do sujeito beneficiário das cotas, esta não é, sob nenhuma ótica, fator impeditivo para tais programas, já que é possível a criação de requisitos objetivos suficientes para solucionar esta situação. Não há que se respaldar, portanto, a inadequação das cotas no ensino superior público apenas e tão somente pela possibilidade de fraudes nesta identificação, já que se assim ocorre, estaria se esvaziando o sentido principiológico do direito em prol de eventuais e duvidosas questões de ordem prática. O ministro tece ainda algumas lições sobre a possibilidade de reserva de vagas, em observância ao aspecto promotor da Constituição de 1988 utilizando para tanto, inclusive, trechos de outros votos de Ministros do STF. Em suma, consignouse que a Constituição trata como um dever a criação de medidas afirmativas em prol de grupos excluídos e discriminados, por bem, especialmente, de uma consciência ético-racial. Ademais, não se deixou de tratar a necessária transitoriedade dos programas de cotas, haja vista que os seus efeitos devem ser modulados até que se atinjam as finalidades propostas, quais sejam, a inserção dos negros e demais excluídos nas esferas pública e privada e consagração efetiva do princípio da isonomia. Tal modulação ocorre especialmente, segundo o ministro, pelo fato de que a desigualdade não está estabelecida por um critério genético, mas “decorre de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação dos primeiros pelos segundos”475. Segundo o ministro relator, [...] as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, 474 IKAWA, Daniela.Ações Afirmativas em Universidades. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,2008.p. 129130. 475 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186). Relator: Ministro RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 21 de agosto de 2013. 180 instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com 476 o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática. Por fim, ao avaliar a proporcionalidade ente os meios e fins referente à implantação de programas de cotas, o ministro relator entende que a instituição de cotas naquele caso em concreto constituiu providência adequada e proporcional para atingir os objetivos propostos. Em sendo assim, debruçando-se sobre os principais aspectos dos votos acima apresentados, é possível identificar que, muitos deles, embora não tenham realizado referências expressas a Dworkin, com exceção do Ministro Relator, convergiram no sentido de adotar a fenomenologia política, baseando as suas decisões em argumentos de princípios e observando o horizonte histórico que delineado neste aspecto. Vale lembrar, neste sentido, que a ausência de citação expressa, todavia, não fragiliza a possível relação dos argumentos expostos nos votos com a teoria política de Dworkin, na medida em que, após escrito, o texto desgarra-se do autor e passa a pertencer ao mundo do conhecimento. A sua utilização é, portanto, indiferente à sua própria citação. Ademais, embora não exista uma identidade plena de fundamentos, o que muitas vezes dificulta a extração da ratiodecidendi do julgado, os ministros apresentaram convergência em vários aspectos da decisão. Esta convergência se dá, especialmente, nos pontos que definem a motivação pela improcedência da ADPF e consequente declaração de constitucionalidade das cotas. Conforme já foi anteriormente exposto, a extração da ratiodecidendi, por óbvio, não se trata de tarefa fácil, no entanto, parece ser possível quando da verificação do fundamento central que legitimou a decisão, isto é, fundamento sem o qual a decisão não teria o mesmo destino. Trata-se do fundamento primordial que apresenta o motivo mais intrínseco do resultado de determinada decisão. Analisando os votos da ADPF 186, dispensando maiores discussões teóricas sobre a ratiodecidendi, haja vista a natureza do presente trabalho, pode-se aduzir que o fundamento e a razão de decidir do Supremo Tribunal Federal, não obstante a divergência de argumentos, se fixa na necessária garantir de se equalizar oportunidades a partir de um horizonte histórico autêntico que originou as 476 Ibidem 181 desigualdades hoje percebidas. Estas desigualdades demandam, consequentemente, a atuação estatal no sentido de observância aos preceitos e princípios constitucionais, devendo, todavia, ser condicionadas à transitoriedade, posto que após reduzidas as desigualdades objeto das ações afirmativas, não haverá mais adequação ou coerência de mantê-las. O fundamento central do julgamento da ADPF 186-DF encontra respaldo, portanto, na teoria da interpretação construtiva do direito, carregando consigo adequação e justificação, a fim de atingir a coerência entre as medidas adotadas pelo Estado e a situação existente na sociedade. A partir daí, tem-se que, em que pese todas as divergências práticas existentes entre as cotas objeto de análise da ADPF nº. 186-DF e as cotas instituídas pela Lei nº. 12.711/12, especialmente em relação ao seu caráter obrigatório, bem como à criação de procedimentos, é possível aplicar a razão de decidir do julgamento da ADPF 186 para legitimar, ao menos, o fundamento das ações afirmativas legalmente instituídas, posto que, igualmente, estas buscam a equalização de oportunidades à indivíduos/grupos/segmentos historicamente excluídos do ensino superior público. CONCLUSÃO Conforme exposto, o presente trabalho teve como objetivo analisar a problemática referente à instituição das cotas no ensino superior público brasileiro, sedimentado pelo julgamento da ADPF nº. 186 pelo STF e, posteriormente, pela Lei Federal nº. 12.711/2012. Como se pôde verificar, para escolha do objeto foi necessário que se procedesse a um corte no amplo gênero cotas, restringindo-nos às cotas raciais. Isso se deu em virtude de que abranger todas as possibilidades de políticas afirmativas de inclusão na educação, a partir de uma perspectiva fenomenológica, não seria adequado em uma dissertação de mestrado, eis que demanda um espaço sensivelmente mais extenso. Ainda quanto à amplitude das cotas, é de se afirmar que estas podem ser trabalhadas a partir de aspectos históricos, políticos, culturais, estatísticos, jurídicos, 182 ideológicos e morais, o que gera um problema especialmente delicado no que diz respeito à escolha do método. Como o presente estudo buscou raízes históricas que fundamentam uma construção social que acaba transitando e se destacando nos poderes legislativo e judiciário, a opção metodológica que nos referimos acabou deslocando-se, quase naturalmente, para a busca de um método que trabalhasse simultaneamente com aspectos históricos, aspectos ligados ao fenômeno das cotas diretamente enquanto objeto de estudo, aspectos políticos e aspectos da construção legislativa e judiciária resultante desta conjugação de fatores. Diante disto, a fenomenologia política de Dworkin, exatamente por trabalhar e abranger todos esses aspectos, tornou-se a escolha natural acima mencionada. É de se destacar que para trabalhar a questão referente às cotas, existe uma multiplicidade de caminhos, os quais desembocam em outra multiplicidade de métodos. Contudo, diante da escolha do objeto, o caminho mais adequado parece ser o que passa pelo fenômeno, pela política, pelo desdobramento jurídico e pela construção histórica, permitindo-nos, assim, a compreensão. Elucida-se, pois, que a construção histórica é o que nos confere o horizonte hermenêutico, já que é o elemento apofântico que se materializa no problema da alta demanda frente ao baixo grau de efetividade, em especial para grupos/seguimentos sociais, econômicos, éticos compostos a partir de uma complexidade. Assim, ganha destaque o referencial da boa circularidade hermenêutica na política com a participação proativa do judiciário. Neste esteio, a partir da necessidade da construção de um horizonte que possa ter sua autenticidade auferida e do modo pelo qual se optou por auferir tal autenticidade, elegemos especificamente como marcos teóricos Heidegger, Gadamer, Dworkin e Lênio Streck, ainda que tenha sido necessário transitar por outras teorias, para a compreensão destes. Definido o método, o trabalho procurou esclarecer que o problema ligado a cotas mantém uma sobrecarga de influxos ideológicos que tornam a sua compreensão mais difícil. Neste sentido, por parecer óbvia a aplicação daquilo que não se compreende, esta não se dá de maneira satisfatória, mesmo que eventualmente nos leve a respostas acertadas. Aliás, esta é uma questão de grande importância, pois a partir dela deve-se compreender que a busca pelo motivo que nos leva a adotar as políticas afirmativas 183 no ensino superior independe de convicções ou morais pessoais. Deve-se, acertadamente, ressaltar constantemente a necessária transitoriedade das cotas, mas levando-se em conta, principalmente, que o processo legislativo e judiciário que se constrói tão complexamente nestes casos deve ser compreendido em toda a sua extensão e dinâmica. Significa, pois, que a análise isolada da legislação não permite a compreensão deste elemento de forma completa e satisfatória. Em sendo assim, como na construção deste processo legislativo o julgamento da ADPF nº. 186-DF foi de extrema valia, buscamos, após analisadas as raízes históricas dos problemas relativos à discriminação racial que ainda permeia a sociedade, chegar ao atual capítulo da novela (chain novel), desvelando assim a complexa trama, conhecendo os papeis dos personagens desde uma perspectiva “histórica”, com o propósito de que, efetivamente, possamos ver consolidada a coerência e integridade que preserva as decisões futuras, como adequadas aos horizontes em constante formação. Vale dizer que nossa perspectiva é sempre cinética, mas o movimento proposto deve ser cauteloso e fundamentado, não se caracterizando tão somente como uma simples resposta a provocações ou a argumentos desprovidos de coerência e revestidos por um horizonte inautêntico. Cumpre ainda consignar que apesar de concluído o processo legislativo referente às cotas, não será possível dar os passos dele decorrentes de maneira adequada sem entrelaçar o modo de decidir que está por vir com as raízes de sua construção. O presente trabalho, em verdade, não buscou revirar o passado com os seus eventuais créditos ou débitos, mas sim construir os parâmetros para que o julgador não se perca nos decisionismos criticados nos capítulos três e quatro, por falta de referências claras que permitam uma fundamentação adequada das questões que, por certo, resultarão dos problemas da aplicação da lei. O tema escolhido por projetar-se para o futuro, mostra-se, utilizando expressões de Heidegger, necessário no presente que é na atualidade, que serve como ponto de partida do por vir nunca esquecendo do vigor de ter sido. A partir de tais premissas, o presente trabalho conclui pela necessidade de políticas afirmativas relativas ao ensino superior público, de ordem social, mas também de ordem racial, haja vista a insistente discriminação sofrida pelos 184 afrodescendentes e a perpetuação das desigualdades sofridas, especialmente quando visto o Brasil como um país de modernidade tardia. Isso porque, é necessário que se compreenda a importância da leitura por meio de horizontes autênticos o que, em regra, parece ser esquecido quando das críticas a tais programas. Ressalta-se ainda que a efetividade e legitimidade das cotas, de acordo com os parâmetros traçados neste trabalho, apenas se sustentam diante do seu caráter transitório, pois a política de cotas atende o mando constitucional da redução de desigualdades, de forma que, quando seu objetivo for enfim atingido, não há que se falar mais em ações afirmativas. Necessário ainda destacar que tais programas, lidos enquanto princípios morais, em uma perspectiva da comunidade de princípios e não moral pessoal, devem igualmente possuir um grau de coerência sistêmica, a qual, ressalta-se, não é respondida pelo sistema normativista, por meio das teorias da exegese, jurisprudência dos interesses e jurisprudência dos valores. A lei, a Constituição, o judiciário e o legislativo devem compartilhar resultados. Não basta, ademais, que sejam as cotas entendidas tão somente como objetivos governamentais. A sua complexidade exige a sua compreensão por meio de argumentos de princípios, princípios morais advindos da comunidade. A inserção da ideia de fraternidade e de se compreender a necessidade do outro faz-se essencial nesta esteira, pois apenas assim será alcançada a melhor virtude do direito. A equalização de oportunidades não se sustenta apenas como uma política governamental, mas efetivamente como uma garantia de todos os indivíduos, a partir da vida em comunidade. A importância de se garantir a equalização de oportunidades no acesso ao ensino superior, observando a igualdade constitucionalmente consagrada e, primordialmente, a imprescindibilidade da efetividade dos preceitos fundamentais e sociais, cumulada com o paradigma da discriminação e exclusão latentes no interior da sociedade, em decorrência de um cenário histórico alarmante, são questões cujo entendimento demanda uma teoria política adequada e sensível à real prática do direito. Por fim, verifica-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal não se embasou, necessariamente, em Ronald Dworkin, de forma que o Ministro Relator 185 cita trechos isolados das suas obras sem, no entanto, constituir a hermenêutica política expressamente como a sua razão de decidir. Entretanto, ao se analisar os votos proferidos verificou-se que a maioria deles, em que pese a ausência de referências expressas a Dworkin, assumem características da fenomenologia dworkiana, realizando uma construção histórica e buscando a adequação da decisão. Neste sentido, torna-se possível afirmar que não se perdeu a perspectiva de Dworkin, sendo a decisão da ADPF 186 passível de ser analisada sob esta perspectiva. Esta possibilidade se justifica a partir da perspectiva de Gadamer, já que, nesta, o texto nasce e se desvincula do seu autor, de forma que a leitura da lei ou da decisão jurisdicional, independentemente de ter nascido com uma justificação dworkiana, precisa ser reproduzida a partir da fenomenologia política. Assim, uma vez que o texto nasce, ele se desprende da vontade daquele que o criou e se prende a horizontes. A lógica que direciona os votos dos Ministros, em especial o Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, Ministro Marco Aurélio, Ministro Joaquim Barbosa, Ministra Carmem Lucia, Ministro Cezar Peluso, Ministro Celso de Melo, Ministra Rosa Weber e Ministro Ayres Britto, se adequa à perspectiva de Dworkin, conforme trabalhou-se no capítulo 4. Não obstante, podemos afirmar ainda que alguns votos carecem de observar a moralidade da comunidade de princípios, demonstrando um direcionamento pessoal em grande medida, o que, por todo o exposto, parece ser evidentemente temerário para a integridade do direito. Isso porque, ainda que o STF acerte em sua decisão, isto não deve ocorrer por acaso. É preciso que se apresente fundamentos coerentes. Além disso, cumpre salientar que a proposta do trabalho é que a coerência a integridade permitam que os resultados da produção da hermenêutica política surtam efeitos na interpretação construtiva do direito. A perspectiva de aplicação sempre vai remontar este eterno reconstruir, o qual, todavia, não se confunde com decisionismo e, por isso, o apoio em Dworkin. Pode-se apontar a possibilidade de aplicação do precedente constante no julgamento da ADPF nº. 186-DF à Lei nº. 12.711/12, não obstante divergências em aspectos práticos, pois a razão de decidir, isto é, o fundamento principal adotado naquela decisão, nos remete a um horizonte e a um arcabouço teórico que sustenta, sejam as cotas raciais, sejam as cotas sociais, já que a nova lei prevê as duas 186 formas, afastando a recorrente crítica e o mito de que a desigualdade é apenas social e não mais racial. Finalmente, a par de todo o desenvolvimento do presente trabalho, conclui-se que, para além de análises superficiais e que ilustram o individualismo típico do Liberalismo, é preciso que, ao se falar em cotas argumente-se por meio de princípios morais da comunidade, preenchendo assim um vazio do direito que nenhuma legislação poderá suprir. É preciso que se compreenda que as ações afirmativas no ensino superior público, observando todas as considerações acima, constituem-se em um meio adequado e coerente plenamente justificado pelo horizonte histórico que carrega consigo e pelo projeto comunitário comum que vivenciamos, qual seja, garantir a todos os indivíduos a igualdade constitucional e a efetividade de seus direitos sociais. É preciso, pois, que se leve o direito a sério. 187 BIBLIOGRAFIA ABBOUD, Georges. Precedente judicial ‘versus’ jurisprudência dotada de efeito vinculante : A ineficácia e os equívocos das reformas legislativas na busca de uma cultura de precedentes. 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