Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Departamento de Ciências Humanas – DCH I
NÚMERO 03 – dezembro de 2011
ISSN: 2176-5782
As cotas raciais sob o signo da igualdade (des)racializada: trajetórias do discurso liberal
no Brasil.1
Larissa Santos Pereira2
RESUMO: Este artigo apresenta uma reflexão sobre o papel central que o legado liberal de um discurso “de
todos e para todos” enunciado por um sujeito-de-direito ocupa na história de constituição dos discursos públicos
brasileiros. A investigação das filiações históricas constitutivas deste sujeito deu-se sob a perspectiva teórica da
Análise de Discurso, em sua linha peuchetiana. A fim de verificar as relações discursivas entre textos
contemporâneos e outros, produzidos no século XIX, o corpus se constituiu por meio do cotejo entre o discurso
jurídico-liberal presente em textos atuais sobre as cotas raciais escritos por professores universitários e em
trechos de um parecer sobre a emancipação dos escravos escrito por Rui Barbosa. A análise feita evidencia que a
construção do discurso republicano acerca da identidade nacional se deu, por um lado, em torno da afirmação do
discurso jurídico liberal e, por outro lado, da recusa do discurso do racismo científico. Assim, o posicionamento
dos intelectuais brasileiros de adesão ao discurso jurídico indicou, sobremaneira, o comprometimento desse
grupo social com a consolidação do projeto republicano e, em consequência, a opção pela igualdade
desracializada, cuja regulamentação deveria caber exclusivamente ao Estado. Hoje, quando o sujeito professor
universitário se alicerça no silenciamento deste racialismo pseudocientífico para posicionar-se contrário às cotas
raciais, ele está fomentando, discursivamente, a continuidade dessa tradição liberalista do discurso acadêmico
brasileiro. A (re)afirmação do juridismo e do liberalismo estatal empreendida por esse sujeito indica quão atual e
desafiador é o debate sobre a (des)racialização da identidade nacional e suas devidas implicações, afinal, o
discurso do racismo científico foi suprimido apenas do espaço acadêmico brasileiro, continuando a fazer efeitos
no cotidiano das relações sociais, inclusive no que diz respeito às hierarquias raciais, visto que raça, no âmbito
sociológico, é tomada como categoria analítica fundamental para a compreensão da desigualdade social
brasileira.
Palavras-chave: Cotas raciais; Discurso jurídico-liberal; Discurso racialista.
ABSTRACT: This article presents a reflection on the central role that the legacy of a liberal discourse "of all and
for all" statement by a subject-of-law occupies in the history of the constitution of the Brazilian public discourse.
The historical investigation of the constituent membership of this subject took place from the theoretical
perspective of Discourse Analysis, in its line peuchetiana. In order to assess the relationships between discursive
and other contemporary texts, produced in the nineteenth century, the corpus is formed by the cross-referencing
between the liberal legal discourse present in current texts written about the racial quotas for university
professors and excerpts from an opinion on the emancipation of slaves written by Rui Barbosa. The analysis
shows that the construction of Republican discourse about national identity took around the affirmation of liberal
legal discourse and the refusal of the discourse of scientific racism. Thus, the positioning of Brazilian
1
Este artigo integra a dissertação de Mestrado intitulada “Afinal, raças existem ou não? Uma análise do discurso
sobre as cotas raciais enunciado por professores universitários”, defendida no Programa de Pós-Graduação em
Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia, em dezembro de 2010, sob a orientação da Prof.ª
Dra. Rosa Helena Blanco Machado.
2
Professora da rede municipal e estadual de ensino na área de Língua Portuguesa. Mestre em Estudo de
Linguagens. (PPGEL/UNEB). E-mail: [email protected]
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intellectuals to join the legal discourse indicated, above all, the commitment of this social group with the
consolidation of the republican project and, consequently, the choice of equal desracialized, whose rules should
be left exclusively to the State. Today, a university professor when the subject is grounded in the silencing of
this pseudo-scientific racialism to stand out against racial quotas, it is encouraging, discursively, the continuity
of the liberal tradition of the Brazilian academic discourse. The (re) affirmation of legalism and liberalism
undertaken by state indicates how this guy is challenging the current debate on the (de) racialization of national
identity and its implications due, after all, the discourse of scientific racism was deleted only from the academic
brazilian space, continuing to the impact on everyday social relations, including with regard to racial hierarchies,
as race, sociological context, is taken as fundamental analytic category for understanding social inequality in
Brazil.
Key words: Racial quotas, Legal-liberal discourse, Racial discourse.
1.
Considerações iniciais
As experiências de política de cotas raciais no ensino superior brasileiro têm
fomentado a intensa aparição do discurso sobre as cotas raciais. Apesar do caráter revestido
de uma suposta novidade, a filiação ideológica deste discurso pouco traz de inédito, sendo que
são muitos os sentidos já mobilizados que significam quando (re)visitados e postos em
confronto na rede de relações fixadas através da prática social. Exatamente por mobilizar
conceitos complexos, como o de identidade negra e identidade não-negra, a implantação das
ações afirmativas para a população negra em todo o Brasil tem se dado em um espaço
discursivo fortemente marcado pela ambiguidade, em que emergem conceitos fundamentais
ao estudo sobre as relações raciais, como igualdade e racismo.
As reflexões feitas nesse artigo abordam esse tema sob o prisma discursivo,
compreendendo a prática discursiva como a forma material em que os aspectos históricos
aparecem, atuando não como adereços dos processos de significação de um enunciado ou
outro, mas sim, como instâncias constituintes dos seus efeitos de sentido (ORLANDI, 1999
[2003]). Desse modo, o cotejo entre textos a respeito das cotas raciais escritos por professores
universitários3, e um parecer a respeito da emancipação dos escravos escrito por Rui Barbosa
3
Os professores entrevistados – que compõem o corpo docente da Universidade Estadual de Santa Cruz
(Ilhéus/Ba) – responderam à pergunta “A UESC adotou a política de cotas com recorte racial em seu processo
seletivo. O que você pensa a este respeito?”
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(BARBOSA, 1985) evidenciou algumas nuances da tradição liberal no discurso acadêmico
brasileiro, as quais serão discutidas nas duas seções seguintes.
2. O discurso liberal enunciado por Rui Barbosa
No limiar do século XX, a adesão dos intelectuais brasileiros ao discurso jurídico
liberal indicou, sobremaneira, o comprometimento desse grupo social com a consolidação do
projeto de modernidade simbolizado pelo regime republicano e, em consequência, a opção
pela igualdade desracializada, cuja regulamentação deveria caber exclusivamente ao aparato
jurídico a ser elaborado pelo Estado. É desse lugar enunciativo que fala o sujeito Rui Barbosa.
Passados cinquenta anos da Independência do Brasil, ele fazia parte de uma geração de
intelectuais que avaliava a luta pela extinção do tráfico e do regime de escravidão como uma
tentativa concreta de se desvincular da condição colonial, a qual, embora superada
legalmente, ainda servia de obstáculo real ao desenvolvimento de atividades científicas
genuinamente nacionais. (VERGARA, 2003, p.38).
O Parecer nº48-A, escolhido como objeto de análise, foi proferido por Rui Barbosa no
exercício de sua atuação na Câmera dos Deputados e refere-se ao projeto de emancipação
gradual do elemento servil, cujo primeiro passo foi dado na libertação dos escravos
sexagenários. Datado de 04 de agosto de 1884, é um extenso e erudito documento de quase
150 páginas, em que ele destaca algumas falácias que sustentavam esse sistema, contrapondo
a teoria do direito natural de propriedade alegado pelos senhores de engenho à base jurídica
do direito romano.
A leitura deste Parecer reafirma a sua contundente posição liberal, cuja base
argumentativa tem raízes em um projeto maior que é a implantação do Estado Republicano no
Brasil. Para melhor entender o discurso de Rui Barbosa (daqui em diante DRB), inscrito na
Formação Discursiva Liberal, se faz necessário conhecer suas condições de produção. No que
se refere ao contexto imediato, é fundamental que se compreenda a tradição científica
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brasileira no século XIX, em especial como as ideias liberais – cujo projeto de modernidade
passava pela conquista da autonomia plena 4como requisito para a implantação da efetiva
democracia – aqui vicejaram.
Entretanto, ainda que fosse significativa a presença do discurso liberal no Brasil,
Holanda (1995[1936]) destaca que o pensamento político da época não estava restrito ao
Liberalismo. Considerando esta corrente teórica como uma prática discursiva, fica fácil
entender que sua constituição não se dá de maneira homogênea. Desse modo, o DRB dialoga
com outras posições-sujeito, tanto no interior da FD Liberal, quanto com posições-sujeito de
demais FD’s, demonstrando que não somente o seu exterior é heterogêneo.
Como as fissuras discursivas caracterizam o funcionamento das FD’s, a posição do
sujeito Rui Barbosa não se constitui no vazio, produzindo efeitos de sentidos que afirmam a
importância da liberdade, mas a cercam de restrições, o que, evidentemente, se opõe aos
sentidos de liberdade irrestrita que seriam próprios da forma-sujeito liberal. O confronto entre
essas duas ideias de liberdade dentro da FD Liberal reside na dupla condição do negro
naquele contexto: enquanto mercadoria e enquanto homem. Esse contraste é assumido pela
posição-sujeito abolicionista do DRB, que já no início do fragmento selecionado, efetua um
esclarecimento a respeito das restrições de tempo e espaço para o homem recém-emancipado:
Versa toda a questão em saber se essa restrição prática não importa um
elemento de contradição na essência da liberdade, reconhecida aos
emancipados. (BARBOSA, 1985 [1884], p.636)
Recordando o que diz Pêcheux (1997c), a respeito das formações imaginárias, é
possível observar, a partir dessa referência à “essência da liberdade”, a formulação de um
4
Faoro (2008 [1975]) ilustra essa concepção ampla de liberdade, no âmbito individual e no âmbito coletivo,
citando um trecho de um jornal liberal da época, o Correio Nacional : “Emancipamos o indivíduo, garantindolhe a liberdade de culto, de associação, de voto, de ensino e de indústria; o município – reconhecendo-lhe o
direito de eleger a sua polícia, de prover as suas necessidades peculiares, de fazer aplicação de suas rendas, e de
criá-las nos limites de sua autonomia. A província – libertando-a da ação esterilizadora e tardia do centro,
respeitando-lhe a vida própria, garantindo-lhe o pleno uso e gozo de todas as franquezas de sorte que eles
administrem por si sem outras restrições além das estritamente reclamadas pela união e interesse geral”
(FAORO, 2008 [1975], p.509).
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conceito específico para a ideia de liberdade, extraído do enunciado “Os homens nascem e são
livres e iguais em direitos”, do artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
votada pela Assembleia Nacional Constituinte da França em 1789. A forma-sujeito histórica
da FD Liberal mobiliza sentidos que retomam esse enunciado do plano interdiscursivo,
atualizando-o no plano intradiscursivo.
Esses são os sentidos de liberdade que o sujeito do DRB quer preservar, mas o faz de
maneira ambígua, visto que no projeto de lei nº48 é imposta uma restrição de tempo e de
lugar a esse homem de sessenta anos, recém-saído do regime de espoliação experenciado na
escravidão. A apreensão dessa contradição revela o trabalho ideológico na produção dos
sentidos: o sujeito do DRB tanto identifica e mobiliza sentidos da memória da FD Liberal –
ligados à ideia de liberdade como um direito humano, ao lado dos demais princípios franceses
de igualdade e fraternidade — quanto identifica e mobiliza sentidos da memória de uma FD
que não é Liberal, mas também não é Escravagista — um conceito de escravização
naturalizada do sexagenário recém-liberto. A esse respeito, o enunciado abaixo, referente à
restituição da liberdade, é ilustrativo:
Se, para imprimir a essa restituição o caráter de uma realidade viva, a
condição moral da raça escravizada impuser ao legislador certas e
determinadas providências disciplinares, que não esbulhem o liberto da
mínima parcela da sua atividade em benefício alheio, desleal será indigitar
como disposição avessa à liberdade o que, pelo contrário, não é senão um
meio de educar, nela e por ela e para ela, uma classe de indivíduos
absolutamente despreparada para a sua [da liberdade] fruição racional
e profícua. (BARBOSA, 1985 [1884], p.636) (grifos nossos)
Note-se que o fragmento destacado traz a definição do escravo sexagenário como um
ser dependente, que, diante da liberdade concedida, ainda não sabe como agir, ou seja, como
uma criança a quem têm que ser ensinadas as normas de conduta social. Essa infantilização do
homem escravo, corrente na literatura brasileira ainda no pré-abolição (BROOKSHAW apud
PROENÇA FILHO, 2004) é contínua a concepção de escravo subserviente e servil.
Entretanto, por serem enunciadas pela forma-sujeito da FD Liberal, essas ideias não podem
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ser concebidas como características inerentes ao escravo, mas sim, como características que,
momentaneamente, lhes são atribuídas, devido a sua condição de homem escravizado. A
observância do enunciado seguinte traz mais dados sobre essa questão:
Em presença da liberdade, que instantaneamente se lhe franqueia, com a
imensidade do nosso território ante os olhos o liberto, nos primeiros anos da
sua aclimação na terra prometida de suas esperanças, carece de mão
amparadora, que o guie e precate contra os traços do desconhecido, o gosto
da indolência e o instinto inconsciente de aventuras. (BARBOSA, 1985
[1884], p.636) (grifos nossos)
As expressões em destaque são significativas, por estabelecerem uma oposição entre a
ideia do homem escravo e a ideia do homem escravizado. Considerando que as noções de
igualdade e liberdade são centrais para os sentidos mobilizados na FD Liberal, o sujeito da
DRB organiza os sentidos em um espaço discursivo em que a igualdade entre os indivíduos
está condicionada ao reconhecimento dos impactos da experiência no cativeiro para o homem
escravizado como obstáculos à sua adaptação às regras da sociedade pós-colonial que então se
firmava. Assim, a responsabilidade pelo papel inferiorizado nas relações sociais no Brasil do
século XIX é atribuída não ao indivíduo escravizado, mas ao regime que o escravizou, como
se verifica no trecho abaixo:
Fixado, por um período restrito, a uma região dada, o manumitido
experimentará, naturalmente, mais ou menos, a necessidade do trabalho
e tenderá a ele pela ação múltipla das influências que o circundam.
(BARBOSA, 1985 [1884], p.636) (grifos nossos)
Em que pese essa distinção efetuada pelo sujeito do DRB, o jogo metafórico próprio
da prática discursiva perpassa o deslizamento dos sentidos envolvendo as questões raciais no
Brasil, fato constatado nesse movimento de transferência de sentidos entre o homem escravo,
o escravo liberto (o alforriado) e o homem negro livre ontem e hoje. Para melhor
compreender como se dá esse jogo de significações é preciso atentar que, para a Análise de
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Discurso, a relação fundamental entre língua e história é marcada pelo equívoco – o sentido é
sempre o mesmo e o sentido é sempre outro.
A análise do texto de Rui Barbosa em sua materialidade discursiva fornece elementos
que possibilitam enxergar de que maneira a construção dessa ideia de incapacidade de
adaptação do homem
negro escravizado ao trabalho livre, característico da sociedade
moderna, foi, paulatinamente sendo (re)significada como uma ideia de inferioridade do
homem negro livre. Entretanto, o deslizamento de sentidos, caracterizado pela substituição de
uma ideia por outra não implica no apagamento dos sentidos anteriores – essa relação entre o
mesmo e o outro é o que garante a presença constitutiva da historicidade no discurso.
Assim, o fato de haver uma propagação de sentidos que inferiorizam o homem negro
brasileiro não quer dizer que apenas essa interpretação seja possível, mas sim, que uma gama
expressiva de discursos sobre as relações raciais brasileiras vem se constituindo sob essa
ótica: “[...] o mesmo já é produção da história, já é parte do efeito metafórico. A historicidade
está aí representada justamente pelos deslizes (paráfrases) que instalam o dizer no jogo das
diferentes formações discursivas.” (ORLANDI, 2007 [1996], p.81). Dado o lugar ideológico
da forma-sujeito do DRB e dos demais sujeitos enunciadores de atuais discursos sobre as
relações raciais brasileiras, verifica-se, então, esse primado do mesmo sobre o outro,
materializado no efeito metafórico que conjuga uma identidade inferiorizada, tanto para o
homem escravizado, como para o homem negro.
No processo de circulação desses discursos são significativas as reflexões feitas pelos
diversos autores que, ao longo do século XIX e do século XX, dissertaram sobre o escravismo
e/ou sobre o homem negro escravizado no Brasil. Inicialmente, põe-se em destaque o próprio
Rui Barbosa, que define bem esse cenário deveras polissêmico:
Ninguém, neste país, divinizou jamais a escravidão. Ninguém abertamente a
defendeu, qual nos estados separatistas da União Americana, como a pedra
angular do edifício social. Ninguém, como ali, anatematizou na emancipação
um atentado perturbador dos desígnios providenciais. Todos são, e têm sido
emancipadores, ainda os que embaraçavam a repressão do tráfico, e
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divisavam nele uma conveniência econômica, ou um mal mais tolerável do
que a extinção do comércio negreiro (BARBOSA, 1985 [1884], p.547).
O escravismo, enquanto acontecimento sujeito à interpretação, não se encaixa em uma
única ordem discursiva, significando de variadas maneiras. Em sua obra clássica, datada do
século XIX5, Joaquim Nabuco escreveu, por exemplo, que “o mau elemento da população não
foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro” mas, logo adiante, também afirmou que
“Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu
desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições
grosseiras.” (NABUCO, 2000 [1883], p. 62-63). Essa oscilação entre a imagem de um homem
escravo inferiorizado e a imagem de um homem negro inferior é peça fundamental no
processo metafórico de deslizamento de sentidos acerca das questões raciais brasileiras, como
se pode perceber pelos escritos de alguns dos autores que se debruçaram sobre essa questão.
Já no século XX, Caio Prado Jr., comentando sobre as dificuldades de mobilização e
engajamento dos escravos na luta antiescravidão, diz que o tráfico trouxe ao país “africanos
de baixo nível cultural” (PRADO JR., 2010 [1945], p.103). Celso Furtado, dissertando sobre a
participação da população negra na economia brasileira, dá continuidade à constituição dessa
imagem: “Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população
submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição, retardando sua
assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país.” (FURTADO (2007
[1959], p.204). Por outro lado, nessa mesma obra a imagem do escravo inapto é atenuada pela
influência do escravismo na sua condição moral:
[...] O homem forçado dentro desse sistema social está totalmente
desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não
possuindo hábitos de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é
praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental
limita extremamente suas “necessidades”. Sendo o trabalho para o escravo
uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de seu salário acima
de suas necessidades — que estão definidas pelo nível de subsistência de um
5
O Abolicionismo, publicado em Londres no ano de 1883.
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escravo — determina de imediato uma forte preferência pelo ócio
(FURTADO, 2007 [1959], p.203-204).
Essa divisão de sentidos sobre a temática racial materializada na heterogeneidade de
posições de sujeito dentro das FDs tem correspondência, certamente, na diversidade de
posicionamentos ideológicos a respeito da questão escravista no Brasil, a qual envolve, além
dos óbvios aspectos econômicos e políticos, o aspecto identitário. Nesse contexto, são
importantes as contribuições de Sérgio Buarque de Holanda, que define o Brasil do século
XIX como um país “preso à economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande
democracia burguesa.” (HOLANDA, 1995 [1936], p.79), e de Florestan Fernandes
(2008[1964]), que, ponderando sobre a abolição legal da escravidão, indica que ela não
significou a imediata desvinculação do liberto de sua imagem de escravo 6. Para esse autor,
essa relação ambígua se manteve para o “homem de cor” que passou a ser vinculado ao status
de liberto, mesmo após o limiar do século XX:
Em plena fase de consolidação da ordem social competitiva e do regime de
classes, a “população de cor” subsiste numa posição ambígua, representada,
confusamente, como se constituísse um estamento equivalente aos ocupados
pelos “libertos” na velha estrutura social. Ora, essa situação esdrúxula é
altamente esclarecedora. Pois identifica quais são as raízes históricas da
degradação social do “homem de cor” no seio do novo sistema econômico: a
perpetuação indefinida de padrões de ajustamento racial que pressupunham a
vigência de critérios anacrônicos de atribuição de status e papéis sociais ao
negro e ao mulato (FERNANDES, 2008 [1964], p.303).
Essas variadas referências ao escravismo e ao homem negro escravizado expõem a
complexidade da conjuntura sócio-histórica do pré e pós-abolição: se por um lado, no DRB
não havia sinonímia entre essas categorias supracitadas; por outro lado, nas práticas sociais
efetivas já havia uma relação de transferência de sentidos. O imbróglio em torno da questão
6
É importante destacar que Fernandes (2008), ao fazer referência à complexidade em torno da identificação e
dos padrões de hierarquização racial no século XX, dirige sua crítica à permanência de efeitos do escravismo
enquanto sistema, não sendo feita menção a processos de discriminação racial prévios ao escravismo, conforme
apontado por outros autores como Hasenbalg (2005 [1979]). A alusão a Fernandes não se configura como uma
opção por este olhar teórico, apenas como uma tentativa de demonstrar um dos muitos olhares sobre essa questão
em uma determinada época.
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racial brasileira está ligado a essa imprecisão de termos e definições: a sociedade do pósabolição conviveu, simultaneamente, com a ideia do escravo-propriedade e com a ideia do
negro-cidadão.
Não obstante, do ponto de vista teórico, a associação entre o homem escravo e o
homem negro não era, ainda, objeto de reflexão para os intelectuais da época. Com a extinção
do regime escravocrata, ocorrem mudanças definitivas no modelo de sociedade, que de
estamental, passa a organizar-se em classes, fazendo com que se iniciem os questionamentos
sobre como proceder na nova ordem social, mas também sobre como se davam as relações na
velha ordem social: “A sociedade, ao se desmitificar, sofre a convulsiva pressão de elementos
que, nunca postos em debate e em dúvida, pareciam inexistentes.” (FAORO, 2008 [1975],
p.515).
Com essas alusões deseja-se mostrar como, ao longo do século XX e início do século
XXI, vem havendo um processo de transferência de sentidos, caracterizado pela associação
entre os discursos sobre o homem negro africano, escravizado no Brasil, e os discursos sobre
o homem negro brasileiro, mais especificadamente no que tange à responsabilidade pelo
status social. A construção dessa equivalência entre “classe” e “raça” implica na constituição
de uma imagem de desvio psicológico desse indivíduo, que vem sendo signo da ideia de
alguém que produz e mantém os seus próprios problemas, como acentua Hasenbalg (2005
[1979], p.63):
[...] a posição subordinada dos negros é explicada como função de traços
“patológicos” auto-sustentados do grupo – anomia e desorganização social,
desagregação da família e cultura da pobreza. Nesse tipo de análise, os
negros são apresentados como vítimas de seus supostos defeitos, o racismo
branco é subestimado e a pobreza torna-se uma condição que se
autoperpetua.
Nesse processo de desigualdade legitimada – em que a ênfase ao escravismo como
causa natural da imbecilização ou desvario do escravo escamoteia da cena discursiva as
questões raciais – o que deve ser notado é que a sua atualização em diferentes textualizações
possibilita que em dois momentos históricos tão distintos — período pré-abolição da
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escravatura e contemporaneidade — “ser escravo” e “ser negro” signifiquem de forma
recorrente, pressupondo a inferioridade negra. Esse movimento parafrástico somente é
possível porque esses enunciados estão inscritos em uma FD específica, a FD Liberal, cuja
matriz argumentativa está associada, dentre outros, ao princípio da igualdade sem distinções,
inclusive raciais — a expressão “igualdade para todos” funciona, assim, como “não há
desigualdades”.
Se, em termos discursivos, o ineditismo é mesmo uma falácia, essa equivalência entre
o escravo e o negro indica um aspecto importante da historicidade constitutiva das formas de
textualização dos discursos sobre as relações raciais brasileiras: ao longo do século XX e
século XXI, o discurso liberal da “igualdade para todos” tem sido utilizado para atribuir ao
indivíduo a responsabilidade por sua inadequação social, seja na condição do homem escravo
inadaptável ao modelo republicano de sociedade, seja na condição do homem negro
inadaptável a determinados padrões sociais atuais.
Dessa forma, a observância desses deslizamentos de sentidos aponta para práticas
parafrásticas como “Os negros são preguiçosos”; “Eu não teria coragem de ser atendida por
um médico negro”; “Você confiaria em eleger um negro para presidente da República?”;
“Negros são pobres porque não se esforçam, só querem saber de festa, não gostam de
trabalhar”,7 as quais atualizam o interdiscurso sobre a questão escrava no Brasil,
demonstrando que, em muitos momentos da história brasileira, o sentido sobre o que é ser
escravo e o sentido sobre o que é ser negro se tocam, fazendo estremecer e se entrecruzarem
as barreiras das FDs em que eles são produzidos.
No que tange ao desdobramento dos sentidos, Orlandi (2001a) salienta que uma
mudança da base argumentativa não implica em necessária mudança de formação discursiva,
muitas vezes sendo uma “renovação” de argumentos ainda ligados à mesma formação
ideológica. Entende-se, portanto, que essa imagem corrente do negro como um eterno
subordinado, carente dos elementos necessários para que seja um efetivo cidadão, cônscio de
7
Tais enunciados circulam em diversas esferas da sociedade, prioritariamente no plano das relações informais,
sendo especialmente motivados pelas experiências de ascensão social de setores da população negra brasileira.
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seus direitos e deveres, traz, em seu bojo, as ideias acerca do escravo no século XIX, próprio
de uma FD racialista. Dessa maneira, ainda que o DRB seja enunciado em uma FD Liberal –
cujo cunho jurídico legitima a igualdade entre todas as pessoas – percebe-se, portanto, que ele
desencadeia sentidos que atualizam essa natural oposição entre o ser escravo e o ser cidadão.
3. O discurso liberal enunciado pelos professores universitários
Nos dias atuais, o sujeito professor universitário, quando questionado sobre as cotas
raciais, se posiciona em relação a uma memória discursiva que preconiza uma cidadania
igualitária. Tendo em vista que o discurso da igualdade jurídica é voltado para as primazias do
direito individual em detrimento do direito coletivo, esse sujeito identifica medidas
particularistas a exemplo das cotas raciais como um atentado à liberdade individual que,
desde os fundamentos republicanos, vem sendo assegurada pela norma jurídica, como
sintetizam os enunciados seguintes:
De igual modo, penso que o sistema de cotas fere o princípio da igualdade
patente na Constituição Federal de 1988, uma vez que trata desigualmente
os egressos, priorizando os afro-descendentes. (Questionário 04)
Em outras palavras, a Lei (se a do recorte racial existir ou qualquer regra
oficial) reconhece e sustenta a desigualdade racial. (Questionário 42)
Além do mais, por tratar diferenciadamente as pessoas, é inconstitucional.
A constituição diz que não se deve tratar diferentemente as pessoas por
questão de religião, raça, cor etc. (Questionário 33)
Se todos nós nascemos com os mesmos deveres e direitos não há para
que sustentar o recorte racial. (Questionário 42) (grifos nossos)
A referência à Constituição Federal marca a retomada do discurso da “lei para todos”,
que ainda vem funcionando na cena discursiva brasileira como uma condição para o ingresso
na modernidade, especialmente no século XIX, quando os primeiros debates sobre a
constituição de uma nação brasileira e sobre a afirmação dos direitos civis se desenrolavam
em meio a um conflito teórico-prático, cujos protagonistas eram, por um lado, as concepções
liberais europeias e, por outro lado, o próprio sistema escravista.
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Comentando esse desejo inconcluso de importar as feições transcontinentais,
Schwarcz (2009 [1973]) aponta o deslocamento e desterritorialização que caracterizaram as
ideias liberais europeias em solo brasileiro. Para tanto, ele cita o teor contraditório de
documentos históricos como a Constituição Brasileira de 1824, a qual, por trazer trechos da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 8, só tornava ainda mais escandalosa a
continuidade do escravismo no Brasil. No enunciado a seguir, tem-se uma clara expressão
desse movimento de paráfrase em que são retomados os princípios libertários da Revolução
Francesa:
Sou contra. O principio de recorte racial fere meus princípios baseados de
sociedade igualitária e de democracia que, talvez, adquiri porque nasci
numa sociedade européia baseada em princípios sacramentados
(“Liberté, Egalité, Fraternité”) além de um anti-racismo fortemente
estabelecido (apesar de existirem diversas falhas). (Questionário 42)
(grifos nossos)
Cientes de que o sentido não existe por si só, mas somente em referência às condições
de produção do discurso, atente-se para o fato de que a associação entre democracia e antiracismo só é possível mediante a intervenção dos princípios burgueses de liberdade, igualdade
e fraternidade. Nesse contexto, a ideia da identificação racial do ser humano como um ato
racista, retomada pelo sujeito do discurso da igualdade jurídica, está relacionada à rede
discursiva produzida em função das políticas raciais e racistas ocorridas ao longo do século
XX, como práticas de eugenia racial fomentadas pelo regime nazista europeu e pelo regime
segregacionista (apartheid) na África do Sul e nos EUA. Assim se explica a evidência da
relação de sentidos mobilizada por esse sujeito — só é democrática a sociedade que
reconhece no recorte racial uma forma de racismo.
Esses aspectos sócio-históricos afluem na constituição do discurso acadêmico sobre a
não racialização das relações raciais no Brasil, integrando a memória de uma Formação
Discursiva Culturalista, em que a não racialização surge, portanto, como uma forma de
8
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujas bases são iluministas, foi aprovada em 26 de agosto
de 1789 pela Assembléia Nacional Constituinte da França revolucionária.
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combate ao racismo. Dessa maneira, esse cenário, em que a alusão ao princípio igualitário no
plano teórico já implica na dissolução das diferenças e das desigualdades sociais no plano
prático, é retomado pelo sujeito do discurso da igualdade jurídica, conforme se percebe nos
enunciados abaixo:
Portanto, creio q este processo seletivo fere o princípio de igualdade entre
os cidadãos, independentemente, de qualquer circunstância.
(Questionário 20)
Tal política viola o principio da igualdade por dispensar tratamento
diferenciado a pessoas consideradas integrantes de uma ‘raça’ que estaria
em situação de desigualdade em relação às demais ‘raças. (Questionário
17)
Tal política viola o principio da igualdade. (Questionário 17)
De igual modo, penso que o sistema de cotas fere o princípio da igualdade
patente na Constituição Federal de 1988, uma vez que trata desigualmente os
egressos, priorizando os afro-descendentes. (Questionário 04) (grifos nossos)
Tal posicionamento ideológico remonta ao final do século XIX, quando a
modernidade republicana almejada pela intelligentsia brasileira implicava em abrir mão das
tradições imperiais, em que a burocracia e a justiça eram regidas pelo clientelismo.
Entretanto, o sistema econômico e político brasileiro não conseguiu se libertar totalmente
dessas raízes, senso mais fácil, portanto, a criação de um espaço quimérico de democracia,
que de tão repetível, torna-se factual, como salienta (Schwarcz (2009[1973], p.155): “Assim,
com método, atribuiu-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade
às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc.”
No que se refere à formulação e circulação dos sentidos discursivos, o que se deve
enfatizar aqui é que, ao calcar-se unicamente na alusão ao princípio da igualdade formal, essa
ênfase enunciativa dada à equidade não só torna injustificável um sistema racialista como a
política de cotas raciais, como também põe sob o signo da dúvida a ausência de igualdade
material entre todos os cidadãos brasileiros. Tal desconfiança pode ser verificada no trecho
em que se destaca o uso do verbo estar no futuro do pretérito. O emprego de estaria assinala
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a movência neste discurso, que trata a situação de desigualdade como uma suposição, algo
que é possível, mas que ainda não foi comprovado.
Outro traço pertinente à constituição de sentidos é a flexão no tempo presente dos
verbos violar e ferir, conforme foi destacado. Essa flexão verbal confere ao enunciado um
valor de verdade compreensível e aceitável, a partir da definição de Jespersen (1954, apud
CORÔA, 2005, p.41), para quem o tempo presente pode ser percebido como um ponto sem
duração definida que aponta sempre para frente e cuja extensão é variável. Ou seja: a
legitimação da carga semântica desses verbos – fortemente ligados a um cenário de violência
e agressão – se dá exatamente porque o emprego no tempo presente cria um mundo em que
são incontestavelmente frequentes estes atos (ilícitos) de violação e ferimento.
Esses três exemplos – o uso convicto de violar e ferir bem como a situação hipotética
instaurada pelo estaria expressam a impossibilidade de um Brasil dividido racialmente e,
sobremaneira, de um Brasil sem a proteção da lei. Estabelecendo uma comparação, pode-se
considerar que tanto a discrepância entre teoria e prática apreendida por Schwarcz (2009
[1973]) em documentos históricos e textos literários brasileiros, como a alusão à Constituição
Federal feita pelo sujeito do discurso da igualdade jurídica, cumprem o papel de instituir um
fundo falso de igualdade para todos, que é extremamente eficaz na construção e manutenção
de uma ideia democrática de realidade.
Para uma melhor observância deste aspecto é proveitoso notar que a premissa “todos
os homens são iguais perante a lei”, peculiar à FD Liberal, apaga os traços distintivos dos
lugares sociais, estratégia que reduz o interlocutor a um estado de silêncio (ORLANDI, 2007
[1996]), ou seja, é como se todos os sentidos e posições de sujeito possíveis já estivessem
(pré)determinadas em um campo reconhecidamente igualitário, onde não há diferenças e
tampouco desigualdades sociais, sendo inusitado qualquer discurso que contrarie esta ordem
estabelecida.
4. Considerações finais
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Pensando na perspectiva não racialista, põe-se em destaque o discurso liberal aqui
analisado, o qual se ancora nas práticas jurídicas, ou, mais precisamente, nessa “forma
plenamente visível da autonomia” (PÊCHEUX, 1997c, p.182) – a que corresponde o sujeitode-direito em nossa sociedade. O efeito de onipresença do discurso jurídico atua produzindo
um sujeito mensurável cujo critério de medida é exatamente a submissão à lei.
A este respeito, Miaille (apud LAGAZZI, 1988) explica como, nas sociedades
capitalistas, opera um “imaginário jurídico”, responsável por deslocar as normas jurídicas do
modo de produção para o cotidiano das relações sociais. Em outras palavras: tudo se passa
como se o próprio homem fosse a “fonte do direito”, capaz de regular e implantar a justiça.
Dessa maneira, amparado pelo princípio da isonomia jurídica, este sujeito-de-direito tanto
pode ser todos como pode ser qualquer um.
Ao dirimir as especificidades individuais, o tom generalizante da premissa jurídicoliberal não dá espaço à interpretação ou dúvida, compondo o que a sociedade – e não só a
universidade, frisa-se – avalia como um discurso legítimo. Esse contorno jurídico confere-lhe,
por conseguinte, um efeito de verdade cuja origem ninguém sabe assinalar, mas todos
reconhecem como verossímil, corroborando o que diz Foucault (2004[1996], p.22, grifos do
autor): “discursos que indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem
ditos e estão ainda por dizer.”
Dessa maneira, a saturada literalidade que termos como Constituição, Lei ou
princípio de igualdade apresentam na sociedade brasileira e, singularmente, no discurso
contrário às cotas raciais enunciado por professores universitários inscrito na FD Liberal, está
relacionado ao movimento ideológico de atribuir ao componente jurídico uma dimensão
similar a de um deus ex-machina, preexistente e necessária para a organização social
brasileira, como demonstra Pêcheux (1990, p.11-12, grifos do autor):
Espaço da artimanha e da linguagem dupla, linguagem de classe secreta
onde o “bom entendedor” encontra sempre sua salvação, a língua da
ideologia jurídica permite conduzir a luta de classes sob a aparência da paz
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social [...] os objetos ideológicos são sempre fornecidos concomitantemente
com a maneira de se servir deles, com a pressuposição de seu “sentido”, quer
dizer, também com a sua orientação.
O ato de fazer intervir essa memória jurídico-liberal demonstra como esses discursos
contrários às cotas raciais produzem um efeito de unidade nacional condicionado à
concordância desses princípios jurídicos. Nesse contexto, a perspectiva de racialização da
população brasileira – defendida nos discursos favoráveis às cotas raciais – funciona como
uma fragmentação dessa unidade garantida pela “Lei”. É por esse motivo que o discurso de
Rui Barbosa ancora-se na defesa da liberdade para os escravos sem que seja feita a referência
explícita à condição racial desses homens escravizados: a sua inscrição na FD Liberal lhe
garante a possibilidade de pensar um Brasil isonômico cujo alicerce é uma cidadania não
racializada.
No início do século XX a construção do discurso republicano acerca da identidade
nacional se dava em torno do embate entre o discurso jurídico liberal – defendido pelos
“homens da lei” ligados às escolas de Direito – e o discurso do racismo científico – defendido
pelos “homens da sciencia” ligados às escolas de Medicina, conforme lembra Schwarcz
( 2008 [1993]). Assim, o posicionamento dos intelectuais brasileiros de adesão ao discurso
jurídico indicou, sobremaneira, o comprometimento desse grupo social com a consolidação
do projeto republicano e, em consequência, a opção pela igualdade desracializada cuja
regulamentação caberia exclusivamente ao aparato jurídico estatal.
É também em relação a essa memória que, nos dias atuais, o sujeito professor
universitário se posiciona, fomentando, assim, a continuidade da tradição liberalista do
discurso acadêmico brasileiro a respeito da ideia de nação. A (re)afirmação discursiva do
liberalismo na esfera estatal empreendida por esse sujeito indica quão atual e desafiador é o
debate sobre a (des)racialização da identidade nacional e suas devidas implicações, visto que
a imbricação entre a FD Liberal e a FD Culturalista, além de demonstrar o caráter
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heterogêneo de toda formação discursiva, indica a importância dessas FD’s na constituição
dos discursos sobre raças no Brasil.
No século XIX, tomou forma em todo o mundo, o discurso do racismo autorizado
pela ciência. Na atualidade, o discurso contrário às cotas raciais enunciado pelos professores
universitário, calca-se no necessário silenciamento deste racialismo pseudocientífico.
Todavia, este discurso foi suprimido apenas do espaço acadêmico brasileiro, continuando a
fazer efeitos no cotidiano das relações sociais9, inclusive no que diz respeito às hierarquias
raciais, visto que raça, no âmbito sociológico, é tomada como a categoria analítica
fundamental para a compreensão da desigualdade social brasileira. Por esse motivo, o sujeito
do discurso favorável às cotas raciais interpreta o projeto republicano de modernidade
pautado na supressão discursiva do escravismo como uma tentativa de apagamento não só da
desigualdade jurídica, como também da história de discriminação racial que sustentou esse
regime.
Na perspectiva da Análise de Discurso, essa divisão dos sentidos – em que a
racialização ora é uma forma de racismo, ora é uma forma de combater o racismo – é um
traço da historicidade que é próprio da constituição do discurso. Para que o discurso sobre as
cotas raciais faça sentido, ele precisa refratar os sentidos (pré) existentes sobre a questão
racial no Brasil, materializando, assim, os processos ideológicos de significação. Dessa
maneira, o real da língua é um objeto apenas idealizado, inapreensível exatamente porque sua
definição excede o sistema linguístico: o desaparecimento do “problema racial” do espaço
discursivo acadêmico sob o manto da igualdade não implicou em seu desaparecimento da
memória discursiva acerca das relações raciais brasileiras. E, é esta memória, permeada por
contradições históricas, que hoje irrompe no discurso sobre as cotas raciais.
9
Schwarcz (2008 [1993], p.247) sintetiza bem essa dicotomia: “A raça se discute entre ‘pessoas’ – nos conflitos
diários, nas clínicas médicas, na personalidade das personagens dos romances científicos da época; a lei, entre
‘indivíduos’, ou melhor, entre os reduzidos cidadãos dessa grande nação que participam das esferas políticas
decisórias dos debates externos e diplomáticos”.
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