8º Encontro da ABCP
AT01 - Comunicação Política e Opinião Pública
O GLOBO E AS COTAS RACIAIS
UM PANORAMA DO DEBATE NA ÚLTIMA DÉCADA
Luiz Augusto Campos
Doutorando em Sociologia no IESP-UERJ
João Feres Júnior
Professor adjunto do IESP-UERJ
Professor adjunto da UNIRIO
Verônica Toste Daflon
Doutoranda em Sociologia do IESP-UERJ
Gramado, agosto de 2012
O Globo e as cotas raciais: um panorama do debate na última década
Luiz Augusto Campos (IESP-UERJ) - Autor
João Feres Júnior (IESP-UERJ) - Co-Autor
Veronica Toste Daflon (IESP- UERJ) - Co-Autor
O presente trabalho tem por objetivo analisar os resultados de uma pesquisa sobre o
tratamento dispensado às políticas de ação afirmativa raciais pela grande mídia impressa
brasileira. A pesquisa cobre todos os textos publicados sobre o tema desde 2001, mesmo
antes de tais políticas começarem a ser implantadas no Brasil. Enfocaremos aqui
somente o jornal O Globo, segundo jornal standard em circulação no país e principal
jornal do Rio de Janeiro. Diferentes metodologias serão usadas na análise, entre elas,
análise descritiva de valência, análise de correspondências, análise quantitativa de
conteúdo dos argumentos favoráveis e contrários presentes nos textos. Pretendemos
responder questões relativas ao enquadramento dado pelo jornal ao tema, às vozes
autorizadas e ao perfil dos argumentos mais utilizados no debate.
INTRODUÇÃO
O tema das ações afirmativas raciais frequentou as páginas dos principais órgãos
de imprensa brasileiros nos últimos anos. Desde 2001, ano em que o governo federal
declarou oficialmente seu apoio a tais políticas (Pereira, 2003), a ação afirmativa tem
sido de debates e controvérsias aparentemente intermináveis. O grande espaço dedicado
ao tema nos jornais de maior circulação nacional sugere que eles tiveram e uma
participação considerável na construção de um cenário de controvérsia.
Contudo, como pretendemos mostrar nesse trabalho, não é tarefa simples
estabelecer as características centrais do enquadramento da questão produzido pela
imprensa. É complicado estabelecer até que ponto a imagem da ação afirmativa
veiculada reflete os ditames editoriais do jornal ou se, ao contrário, este se mostra
poroso aos discursos externos que não se coadunam às suas perspectivas. E nesse seara,
abundam simplificações. De um lado, alguns atores parecem não ter dúvidas que os
principais jornais nacionais agem sistematicamente como porta-vozes das opiniões
“anti-cotas” (Sodré, 2009). Do outro, algumas pesquisas têm pintado um quadro mais
matizado sem, contudo, oferecer uma explicação para ele (Botelho, Maia e Mundim,
2011).
Não é possível entender a forma como a imprensa enquadra as ações afirmativas
raciais sem levar em conta que tal processo é multifacetado. Ele abrange não somente as
opiniões e notícias publicadas, mas também a forma como elas aparecem organizadas
no jornal, atreladas a determinados grupos e a determinados tipos de textos jornalísticos.
Além disso, a terminologia e os conceitos mobilizados por jornalistas, editores,
missivistas e articulistas tem um grande peso na formação de uma imagem das ações
afirmativas raciais.
O objetivo do presente trabalho é duplo. Por um lado analisamos dimensões
importantes do enquadramento das ações afirmativas raciais produzido pelo jornal O
Globo. Mas complementarmente, propomos uma reelaboração da noção de
enquadramento capaz de captar os diferentes níveis em que ele se dá. Embora este
conceito seja amplo o suficiente para incluir diversas dimensões da imagem do tema
que o jornal produz, acreditamos que o uso que é feito dele pela literatura especializada
carece de precisão. Por isso, propomos limites analíticos para categoria, bem como uma
1
tipologia dos diferentes níveis em que ela opera. Assim, nossa contribuição pretende ser
ao mesmo tempo substantiva e teórica.
O Globo foi escolhido como foco de análise sobretudo por ser o segundo jornal
standard com maior circulação nacional1 e o que mais matérias publicou sobre o
assunto – ao todo foram 943 textos em nove anos. Os dados que serão discutidos a
seguir fazem parte de uma pesquisa mais ampla sobre o enquadramento das ações
afirmativas raciais na grande imprensa brasileira. A pesquisa se baseia em um
levantamento de todos2 os textos publicados sobre o tema entre 2001 e 2009 nos
principais veículos de comunicação impressa nacionais3. A leitura dos textos publicados
buscou estabelecer, dentre outras variáveis, o perfil de quem escreve sobre o tema, os
argumentos citados, a terminologia adotada dentre outros fatores. Esse trabalho de
interpretação contou com uma equipe de cinco codificadores diferentes que trabalharam
com duas ferramentas de codificação: o programa de análises estatísticas Sphinx e o
programa de análise hermenêutica Atlas Ti.
Posto que o objetivo é realizar uma discussão teórica a partir de problemas
empíricos, reduziremos nosso escopo de análise à discussão do conceito de
enquadramento como uma ferramenta para analisar os textos da imprensa. Logo,
deixaremos de considerar não somente algumas peculiaridades dos enquadramentos
presentes em outras mídias (TV, rádio, internet etc.), como também pesquisas mais
preocupadas com seus efeitos numa dada audiência (estudos de recepção) ou com os
processos envolvidos na sua produção (estudos da produção da notícia).
O que se segue está divido em três partes. Na primeira, expomos a estratégia
conceitual adotada para forjar uma definição mais operacional de enquadramento. Na
segunda, demonstraremos como tal definição possibilitou dar sentido à pesquisa com o
1
Em comparação com os “tabloides”, os periódicos classificados pela Associação Nacional de Jornais
(ANJ) como “standard” são fisicamente maiores, publicados numa freqüência igual ou maior, além de
costumarem veicular mais conteúdo e menos publicidade (cf www.anj.org.br/a-industriajornalistica/definicao-de-jornais-diarios). Grosso modo, a nomenclatura “standard” é utilizada para
designar aquilo que parte da literatura especializada chama de quality paper (Hallin e Mancini,
2004:148).
2
Por problemas operacionais, não foi possível incluir no recorte as cartas de leitores publicadas no ano de
2009. Tal ausência, porém, não prejudica nossas análises, posto que esse tipo de texto foi considerado
apenas ocasionalmente. Isso porque as cartas são muito numerosas do que outros formatos, embora sejam
menores e menos lidas.
3
Além de O Globo, fazem parte do recorte de pesquisa os seguintes periódicos: Folha de S. Paulo,
Estado de S. Paulo, Correio Braziliense e Estado de Minas, e as revistas semanais Veja e IstoÉ.
2
jornal de forma mais produtiva. Na terceira e última seção, resumimos algumas
conclusões parciais.
UMA MOLDURA PARA OS ENQUADRAMENTOS
Desde a década de 1980, o conceito de “enquadramento” (framing) tem sido
uma das principais balizas teóricas dos estudos da mídia. Os trabalhos de Gaye
Tuchman, Todd Gitlin, William Gamson, Murray Edelman, Robert Entman, entre
outros, já se converteram em clássicos, não somente pelo uso pioneiro do conceito, mas
sobretudo pela difusão da categoria no campo de estudos como um todo. Porém, se a
noção deu novo fôlego às pesquisas interessadas nos efeitos da mídia, seu emprego está
perpassado por antinomias.
Mesmo dentre os defensores do conceito, é quase unânime a sensação de que as
definições cunhadas para ele são fluidas e imprecisas demais para fundarem um
paradigma teórico (Entman, 1993:51; Gamson, 2001:x; Sheufele, 1999:103). Há quem
defenda que parte de seu sucesso acadêmico se deve justamente ao seu caráter genérico
e nebuloso: “a crescente popularidade do conceito de enquadramento nas análises da
mídia caminha de mãos dadas com a considerável inconsistência da sua aplicação”
(Vreese, 2005:51).
De fato, se uma lista com as definições cunhadas por cada autor fosse submetida
a um leitor leigo, provavelmente ele concluiria que se trata de um recorte de um
dicionário de sinônimos, no qual se lê uma coleção de definições semelhantes para um
mesmo termo. De modo geral, “enquadrar” tem a ver com processos de ênfase e seleção
intrínsecos à representação da realidade pelos seres humanos (Entman, 1993:52). Mas
obviamente, cada autor propõe uma definição conceitual mais elaborada do que a
supracitada. Enquanto uns autores definem os enquadramentos como “princípios
organizadores” (Reese, 2001:11), outros utilizam a expressão “ideia organizadora”
(Gamson, 1995[1992]:3) ou ainda “padrões de cognição” (Gitlin, 2003[1980]:7). Se
para uns enquadrar é basicamente “enfatizar” ou “salientar” determinadas partes da
realidade (Entman, 1993:52; Gitlin, 2003[1980]:7), para outros é um meio de “constituir
simbolicamente a estrutura do mundo” (Reese, 2001:11).
Essas diferenças terminológicas aparentemente ínfimas engendram resultados
sociológicos bem díspares. Ao que parece, definições quase sinônimas escondem
divergências heurísticas relevantes, escamoteadas por uma fluidez vocabular. Na
3
tentativa de domar tais divergências, teóricos mais ciosos da precisão conceitual
optaram por multiplicar tipologias para lidar com a pluralidade de usos da noção. Como
resultado,
fala-se
em
enquadramentos
“temáticos”,
“polêmicos”,
“técnicos”,
“estratégicos”, “culturais”, “midiáticos” etc. Porém, poucos avanços têm sido feitos no
sentido de delimitar, ainda que de forma ampla, as fronteiras do que pode ser chamado
de “enquadramento”.
Mais do que adicionar à bibliografia especializada mais uma tipologia,
pretendemos aqui (1) delimitar um conceito operacional para o termo que (2) possibilite
estabelecer os principais níveis em que os enquadramentos operam num determinado
jornal. Uma estratégia para demarcar uma definição mais clara para enquadramento é
tentar determinar o que não é um enquadramento. Noutros termos, pode ser útil inquirir
quais processos de construção da notícia não podem ser abarcados pela semântica do
termo.
Historicamente, as teorias dos enquadramentos nasceram como reações as
correntes investigativas que tinham uma visão estreita tanto dos processos de recepção
das notícias quanto da complexidade dos significados que elas sugerem. Dentre essas
correntes, merecem destaque a assim chamadas teoria hipodérmica dos efeitos da mídia
(Lasswell, 2011[1936]) e a teoria dos efeitos limitados (Lazarsfeld e Merton, 1957).
Grosso modo, a primeira corrente, encabeçada por Harold Lasswell, tentava entender a
relação entre o público e a mídia a partir de um modelo de estímulo e resposta, no qual
o receptor é visto como um ser autômato que simplesmente reage aos conteúdos
midiáticos. A teoria dos efeitos limitados, por seu turno, acredita que a mídia não possui
um potencial manipulador tão grande sobre o público, e que seus efeitos na formação
das preferências das pessoas são muito mais restritos.
Se amplos surveys são a metodologia predileta pelos partidários da teoria dos
efeitos limitados, a análise de conteúdo é a técnica predileta dos defensores da teoria
hipodérmica. Este método buscava contabilizar a recorrência de determinados termos na
imprensa com o intuito de estabelecer, por exemplo, quais mensagens estariam sendo
“injetadas” nas mentes dos leitores (Lasswell, 2011[1936]). Tal visão do receptor da
notícia como um ser apático foi fortemente criticada a partir da década de 1960 e o
desenvolvimento das teorias dos enquadramentos na década de 1980 é reflexo disso. No
lugar
desse
receptor-zumbi,
os
teóricos
4
do
enquadramento
colocam
um
leitor/expectador dotado de grande capacidade crítica. Embora este ainda seja
dependente da mídia para construir simbolicamente o mundo a sua volta, a forma como
ele articula os conteúdos midiáticos é plural, impossível de ser reduzida a mera injeção
mental de conteúdos.
Consequentemente, as pesquisas de enquadramento costumam tratar com
ressalvas as contabilizações de termos empregadas até a década de 1940 pelos
partidários da teoria hipodérmica (Reese, 2001:8). Elas entendem que importa menos
saber o que é dito e mais o modo como é dito. Não se está afirmando que os conteúdos
têm menor peso nos processos comunicacionais, mas sim que eles só podem ser
captados levando em conta as relações que estabelecem entre si, isto é, o modo como
são enquadrados.
Os experimentos de Tversky e Kahneman (1981), dois precursores no emprego
da ideia de enquadramento, ajudam a elucidar esse ponto. Os autores submeteram uma
série de dilemas econômicos, políticos e morais a um grupo de pessoas e pediam para
que elas escolhessem uma solução para eles num rol determinado de alternativas. Em
vez de alternativas distintas, o rol oferecia soluções muito semelhantes (às vezes
idênticas), porém traduzidas em termos ou estruturas narrativas diferentes. Os resultados
mostraram que a formatação narrativa do problema e do rol de soluções ofertadas – ou
seja, a forma como eles são enquadrados – têm uma grande influência na tomada de
decisão. Conclusão: mais importante do que o conteúdo do que é dito, seria a forma
como ele é estruturado (Tversky e Kahneman, 1981).
Embora também faça parte do movimento de crítica à teoria hipodérmica e à
teoria dos efeitos limitados, as teorias do agendamento também servem de contraponto
às teorias do enquadramento. As teorias do agendamento chamam atenção para o fato de
que uma importante função da mídia é determinar quais são as temáticas públicas mais
importantes num dado momento (McCombs e Shaw, 1972). Assim, mais relevante do
que incutir determinadas interpretações e viéses na audiência seria o fato de a mídia
colocar em pauta determinados temas e silenciar a respeito de outros. Dessa ótica, a
mídia pode até não ser capaz de nos dizer o que pensar sobre algo, mas é eficiente ao
nos dizer sobre o que pensar (McCombs e Shaw, 1972:177).
Existe um grande debate sobre a relação entre enquadramento e agendamento.
Defensores deste último conceito insistem que a noção de enquadramento nada mais é
5
do que uma consequência da ideia de agendamento (McCombs e Ghanem, 2001).
Todavia, tal perspectiva nos parece exagerada, pois as teorias do agendamento
trabalham num alto nível de generalidade, pouco sensível às minúcias retóricas
presentes na composição de um texto jornalístico, foco de interesse das análises de
enquadramentos.
Por outro lado, dependendo do nível de generalidade com que se trabalha com o
conceito de enquadramento, este de fato se aproxima da ideia de agendamento. O
enquadramento “corrida de cavalos”, comumente empregado na cobertura de eleições,
faz referência ao modo como um veículo de comunicação opera de forma padronizada
com determinados temas da agenda da mídia. A rigor, a própria articulação numa
temática de acontecimentos aparentemente desconexos é efeito de enquadramentos
específicos. Assim, a composição de uma agenda midiática caminha de mãos dadas com
os enquadramentos produzidos para cada assunto.
Em resumo, a ideia de enquadramento se distingue e, ao mesmo tempo,
complementa os dois métodos supracitados de análise da mídia. De um lado, enquadrar
se distingue da mera contabilização de termos ao afirmar não ser a recorrência de
determinados termos que permite mensurar a difusão de um dado conteúdo, mas sim os
modos como eles são articulados numa teia semântica, isto é, num enquadramento. Do
outro lado, as teorias do enquadramento se diferenciam daquelas do agendamento por
evidenciarem que os efeitos da mídia sobre uma audiência dependem não somente da
centralidade de uma dada pauta, mas também do modo como os temas que a compõem
são formatados.
Isso nos leva a crer que as diferentes modalidades de análise de conteúdo e os
diferentes mecanismos de agendamento oferecem bons limites ao conceito de
enquadramento. Desse ponto de vista, o conceito de enquadramento não somente chama
atenção para o fato de a mídia nos dizer sobre o que devemos pensar (agendamento) ou
sobre o que pensar de fato (teoria hipodérmica), mas, sobretudo, sobre como pensar
determinados temas. Os enquadramentos da imprensa são, portanto, formas de organizar
conteúdos para compor uma ou várias imagens de um tema.
Estabelecer esses limites é importante para entender que o conceito de
enquadramento faz referência a um processo simbólico que está entre a organização
6
meramente formal de conteúdos, de um lado, e a produção substantiva de conteúdos, de
outro. Trata-se de uma formatação específica que pretende ter efeitos simbólicos.
Uma maneira de delimitar os níveis de enquadramentos é conectando-os ao grau
de generalidade em que operam em relação ao texto jornalístico. Alguns
enquadramentos operam num nível extratextual ou subliminar, isto é, eles funcionam
mais como princípios de organização dos textos e da cobertura como um todo e menos
como pacotes interpretativos, para usar a expressão de Gamson e Modigliani (1987). O
enquadramento “corrida de cavalos” novamente é um bom exemplo. Quando aplicado à
cobertura de eleições, tal enquadramento abarca uma miríade de estruturas textuais,
como a retórica de quem está “vencendo” ou “perdendo”, ou o recurso a gráficos com
intenções de voto etc. Por outro lado, ele inclui também uma série de princípios de
organização editorial como a publicação proporcional de textos dos “dois lados
principais” da disputa por exemplo. Ou seja, ele perpassa todo o processo de produção
da notícia.
Usando a expressão de Stephen Reese, seria mais rigoroso chamar esses
enquadramentos midiáticos gerais de meta-enquadramentos, posto que eles servem
como modelos para “enquadrar enquadramentos” (Reese, 2001:19). Quase sempre, os
meta-enquadramentos são mais implícitos e dificilmente captáveis sem levar em conta
variáveis contextuais como o perfil de quem publica opiniões ou é consultado para
opinar, a proporção de reportagens em relação aos textos opinativos publicados sobre
um assunto, a ênfase maior em episódios ou o tratamento da questão como um tema etc.
Pode-se objetar que esses critérios midiáticos não são totalmente “extratextuais”
Porém, há que se entender que os efeitos desses recursos são muito mais subliminares
do que os efeitos produzidos por uma mensagem textual explícita. Para usar a tipologia
de John Austin, esses critérios de organização editorial produzem efeitos
“ilocucionarios” que ajudam um leitor a interpretar as intenções subjacentes a um
conteúdo verbalmente explícito (locucionário) (Austin, 1962:106).
Outra particularidade dos meta-enquadramentos é que eles costumam expressar
mais rotinas de produção da notícia do que as características específicas de uma
temática. O enquadramento “corrida de cavalos” pode ser aplicado a uma série de
temáticas diversas, mas expressa, em alguma medida, o mandamento jornalístico de
“sempre se ouvir os dois lados de toda questão” (Tuchman, 1972).
7
Porém, existe toda uma gama de enquadramentos que produzem efeitos por
carregarem significados explícitos mais presos ao conteúdo locucionário de um texto.
Nesses casos, o conceito de enquadramento faz referência à forma como determinados
atores externos à mídia (movimentos sociais, agências públicas, grupos de pressão etc.)
enquadram uma dada questão. Embora a maior publicidade dada a esse tipo de
enquadramento seja manejada pelos operadores da mídia, sua produção é em geral
exterior às redações. Esse é o caso quando a questão do aborto, por exemplo, é
enquadrada como uma problemática que só a ciência poderia resolver ao determinar
onde começa a vida (Ferree et al., 2004:107). Ainda que uma dada cobertura possa
privilegiar tal enquadramento, ele não diz respeito estritamente a princípios de cobertura
jornalística ou editorial.
É aqui que a noção de enquadramento encontra a ideia de seletividade da notícia,
isto é, quais opiniões, argumentos, atores ou fatos serão potencializadas pela mídia. Por
isso, se trabalhamos com uma noção de enquadramento centrada na mídia, eles devem
ser chamados de sub-enquadramentos midiáticos, para usar a expressão de Ferree
(2004:53). A noção de sub-enquadramento diz respeito ao conjunto de metáforas, frases
padronizadas e jargões utilizados para reduzir a complexidade de uma questão. Nos
termos de Gamson e Modigliani, trata-se dos “elementos de assinatura” de um
enquadramento interpretativo (Gamson e Modigliani, 1987:143).
É verdade que na maioria das vezes, um meta-enquadramento tende a privilegiar
determinados conteúdos (sub-enquadramentos). Porém, a distinção mantem sua
validade analítica justamente por detectar em que medida há esse tipo de reflexo. E é
aqui, nesse nível intermediário, que a noção de enquadramento midiático pode se tornar
mais precisa.
Na maior parte das vezes, a diversidade e a complexidade dos subenquadramentos midiáticos de um tema costuma ser um obstáculo à atuação da
imprensa. As rígidas dimensões da maior parte dos textos jornalísticos, os prazos curtos
impostos ao trabalho nas redações, a visão estereotipada que jornalistas e editores têm
de seus leitores etc. faz com que a diversidade de sub-enquadramentos existentes para
um tema passe necessariamente por um outro processo de redução. Quanto mais
polêmico e sem precedentes um tema é, maior é a quantidade e fluidez de frases,
argumentos, jargões e metáforas para traduzi-lo. Para que esses sub-enquadramentos se
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tornem noticiáveis, isto é, se adequem aos meta-enquadramentos midiáticos, é preciso
reduzir essa complexidade semântica a um número limitado de quadros interpretativos.
Assim, pode-se dizer que um enquadramento, nesse sentido restrito, se refere às ideais
centrais que organizam uma perspectiva sobre um tema, ou um quadro interpretativo
mais ou menos coerente para lidar com ele.
A despeito da polifonia que eles eventualmente suscitem, tais quadros
interpretativos costumam se referir a um rol comum de conceitos e recursos
argumentativos. Ademais, costumam ser apresentados como as “opiniões” de grupos
característicos. Isto é, eles não somente “enfatizam” ou “selecionam” elementos da
realidade, mas o fazem para “contar histórias mais ou menos coerentes que definem
problemas, diagnosticam causas, fazem julgamentos morais e sugerem remédios”
(Entman, 2000:49).
Em resumo, a noção de quadro interpretativo tenta jogar luz para o fato de que
um conceito preciso de enquadramento midiático deve atentar para os condicionamentos
formais e semânticos que meta-enquadramentos midiáticos impõem aos subenquadramentos midiáticos. Sem tais distinções, corre-se o risco de hipostasiar o
conceito de enquadramento, conflacionando numa mesma categoria tanto os processos
de seleção e ênfase originados nas rotinas jornalísticas quanto aqueles intrínsecos ao
modo como os seres humanos constroem o mundo a sua volta.
O GLOBO E AS AÇÕES AFIRMATIVAS
Os debates acerca de medidas para a diminuição das desigualdades raciais
começam a se intensificar em 2001 por ocasião dos preparativos para a III Conferência
Internacional contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. Embora o
governo federal tenha declarado apoio às ações afirmativas raciais nesse período
(Pereira, 2003), a primeira iniciativa com tal tipo de política a entrar em vigor no país
ocorreu no estado do Rio de Janeiro. A Lei Estadual 3.708, de 09 de novembro de 2001,
obrigava a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade do Norte
Fluminense (UENF) a reservarem 40% de suas vagas à “população negra e parda”. A
seguir, apresentamos a quantidade de textos sobre o tema publicados no jornal ano a
ano:
9
Gráfico 1: Quantidade de textos publicados sobre ações
afirmativas de acordo com o ano
200
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
188
169
155
67
2001
90
77
2002
72
2003
2004
2005
66
59
2006
2007
2008
2009
N=943
Fonte: os autores.
Os dois picos de textos publicados acompanham dois eventos importantes na
história das ações afirmativas no Brasil. O ano de 2004 ficou marcado pela adoção por
parte da Universidade de Brasília (UnB) de uma política de ação afirmativa étnico-racial
que contava com um sistema de “verificação” da pertença racial dos candidatos. Além
disso, a UnB foi a primeira universidade federal a adotar essa modalidade de política de
admissão. Já o ano de 2006 foi marcado pela rápida tramitação no Congresso Nacional
de dois projetos de lei que buscavam tornar ações afirmativas raciais obrigatórias em
todas instituições de ensino superior federais. Porém, o evento que mais chamou a
atenção da mídia foi a entrega aos presidentes do Senado e da Câmara Federal de dois
manifestos, um contra e outro favorável às ações afirmativas raciais. Já o vale que
aparece no gráfico, referente ao ano de 2005, resulta de uma concorrência na agenda da
mídia. Foi esse o ano em que o alcunhado “escândalo do mensalão” dominou os jornais
de âmbito nacional, marginalizando não somente o tema das cotas, como muitos outros.
META-ENQUADRAMENTOS4
Um dos elementos fundamentais para começar a identificar as características dos
meta-enquadramentos midiáticos aplicados por O Globo é levantar o formato dos textos
que são publicados sobre as ações afirmativas. A divisão entre “textos informativos” e
“textos opinativos”, oriunda de um determinado ideal de neutralidade jornalística
(Biroli, 2007), ajuda a entender em que medida o jornal enquadra uma dada
4
Grande parte dos resultados comentados nesta subseção foram discutidos em detalhe alhures (cf.
Campos, Feres Júnior e Daflon, 2010).
10
problemática como uma questão a reportar ou, ao contrário, como uma questão
opinativa, em que divergências axiológicas têm maior peso. Partindo disso, o Gráfico 2
mostra a evolução no tempo da quantidade de reportagens e textos opinativos
(editoriais, colunas, artigos, entrevistas etc.) publicados:
Gráfico 2: Quantidade de textos publicados sobre ações
afirmativas de acordo com o ano
100
80
60
40
20
0
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
reportagem
textos opinativos
N=744 (excluídas as cartas de leitores)
Fonte: os autores.
Como é possível notar, até 2004 não há um meta-enquadramento claro que
permita estabelecer se O Globo considerava as ações afirmativas raciais como um tema
a ser reportado ou avaliado. A partir de 2004, porém, surge um equilíbrio e, mais
importante, a quantidade de textos opinativos excederá em todos os anos posteriores a
quantidade de reportagens. Note-se que é em 2004, o auge da polêmica, que a proporção
de opinativos excede em maior grau o montante de reportagens. Em resumo, o jornal
trata o assunto menos como algo a reportar e mais como um tema a ser avaliado,
debatido. Evidentemente, não endossamos aqui a visão estreita da neutralidade
jornalística que acredita que reportagens são isentas de juízos de valor. Estamos
somente apontando para o fato de que esse princípio moral do jornalismo funcionou
como um critério de seleção e organização das matérias mais ou menos estável no
tempo.
Porém, não foi apenas a proporção entre textos opinativos e reportagens que
marcou o meta-enquadramento da ação afirmativa racial n’O Globo, mas também a
proporção entre textos opinativos explicitamente contrários e textos opinativos
explicitamente favoráveis à medida. No Gráfico 3 encontram-se os percentuais de textos
11
opinativos publicados de acordo com a posição manifestada em relação às cotas. Dois
elementos chamam a atenção. Primeiro, na transição de 2003 para 2004 há uma virada
na proporção entre contrários e favoráveis publicados no jornal. Antes desse período, o
jornal privilegiava textos opinativos favoráveis e depois disso, passou a privilegiar
textos contrários. Em segundo lugar, os anos mais “quentes” da controvérsia (2004 e
2006) são aqueles em que encontramos uma proporção mais equânime entre as “duas
posições do debate”.
Gráfico 3: Quantidade relativa de textos opinativos publicados de acordo
com a valência explicitada em relação às ações afirmativas raciais
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009
favorável
contrário
ambivalente
N: 350 (excluídas as cartas de leitores)
Fonte: os autores.
Para terminar de compor as características gerais do meta-enquadramento das
cotas raciais, é importante observar o modo como as valências explícitas são
distribuídas levando em conta o perfil dos autores dos textos. Ou seja, quem se coloca
no jornal (ou é colocado por ele) contra ou a favor das ações afirmativas raciais. O
gráfico abaixo apresenta uma análise das correspondências existentes entre o perfil dos
autores que publicaram sobre o tema (azul) e a valência explicitada em seus textos
(roxo). Baseando-se na métrica do qui-quadrado, isto é, nas distâncias entre frequências
observadas e teóricas, a análise de correspondências coloca num plano espacial o grau
de associação entre as categorias de duas variáveis. Quanto maior a associação, mais
12
próximas as categorias aparecerão e vice-versa, já as dimensões dos quadrados
apresentados são proporcionais à frequência de cada categoria5.
Gráfico 4: Análise das correspondências entre o perfil dos
autores (azul) e a valência explicitada (roxo)
Eixo 2 (46.34%)
editor
contrário
leitor
ausente
repórter
Eixo 1 (51.03%)
especialista ou intelectual
ambivalente
outros
favorável
colunista jornalista
homem de Estado ou político
sociedade civil
N: 943
Fonte: os autores.
A análise de correspondências mostra que a maior parte dos textos favoráveis às
cotas são publicados por autores pertencentes à sociedade civil (movimentos sociais,
ONGs, organismos internacionais etc.), de homens de Estado e políticos, e de jornalistas
que assinam colunas fixas no jornal6. Por outro lado, a gigantesca maioria dos editoriais
e carta e leitores é contrária às cotas. A meio caminho, estão os textos de especialistas e
intelectuais (acadêmicos em sua maioria) e as reportagens aparecem com valência
implícita ou ausente.
Aparentemente, os critérios de organização editorial dos textos sobre as ações
afirmativas raciais sugerem que O Globo opta, a partir de 2004, por representar o tema
como uma controvérsia opinativa, constituída por dois lados, os quais são convocados a
debater nas páginas do jornal sempre que um episódio reanima a polêmica. Nesse meta5
Embora a análise de correspondências costume facilitar a leitura de um cruzamento entre variáveis
categóricas, ela tem suas limitações. Por se tratar de uma análise comparativa, o fato de uma categoria
aparecer próxima de outra não indica necessariamente uma associação em termos absolutos, mas somente
em termos relativos. Para mais detalhes tal tipo de análise, cf. Benzécri (1992) e Greenacre (1993).
6
Pesa aqui a defesa constante feita em seus artigos de colunistas fixos d’O Globo como Miriam Leitão,
Élio Gáspari e Ancelmo Góis.
13
enquadramento, a função pública do jornal, representada em suas páginas, é fornecer
um espaço para posições diferentes daquelas manifestadas nos editoriais. Paralelamente,
o jornal se esforça em reportar os eventos relacionados ao tema como forma de
“informar a opinião pública”. Essa última, por sua vez, é representada pelos leitores
selecionados a opinar, em sua extensa maioria contrários às cotas. Em resumo, O Globo
se apresenta em seus editoriais como uma entidade anti-cotas. Mas, simultaneamente,
ele opta por abrir um espaço à posição contrária a sua como modo de expressar seu
compromisso com determinados valores jornalísticos.
Evidentemente, tal meta-enquadramento suscita inúmeras antinomias. Em
primeiro lugar, ele reduz o debate a dois lados, como se a complexidade da questão se
limitasse a unicamente duas posições. Em segundo lugar, as opiniões favoráveis são
quase sempre apresentadas por setores da sociedade cujo capital simbólico provem de
interesses parciais. Esse é o caso de instituições da sociedade civil, de políticos, ou
colunistas específicos. Os “especialistas”, ao contrário, aparecem divididos de uma
forma quase perfeita. Se analisarmos a valência dos textos desse segmento, veremos que
o jornal publicou 38 textos declaradamente contrários às cotas contra 36 favoráveis, o
que indica um forte controle das posições representadas. Finalmente, ao colocar editores
e leitores – os moderadores e a plateia do debate respectivamente – como contrários às
cotas, o jornal tenta representar uma cumplicidade entre sua própria opinião e a opinião
de seus leitores, que supostamente expressam a "opinião pública" relevante.
SUB-ENQUADRAMENTOS
As investigações em torno dos enquadramentos quase sempre focam em
questões que envolvem divergências morais consideráveis. Esse é o caso do aborto
(Ferree et al., 2004), da atuação de muitos movimentos sociais (Gitlin, 2003[1980]), da
ocorrência de guerras (Hallin, 1987) etc. Por isso, é sempre uma questão delicada
determinar como enquadramentos serão detectados. A depender da posição do analista
em relação ao tema em estudo, corre-se o risco de desconsiderar nuances opinativas,
simplificando a posição inimiga.
Por esse motivo, Gamson e Modigliani acertam quando afirmam que para
contornar esse problema é recomendado etiquetar os enquadramentos respeitando ao
máximo os termos utilizados pelos seus portadores (Gamson e Modigliani, 1987:144).
Contudo, nem sempre eles levam a bom termo sua indicação. Prova disso é o reduzido
14
número de enquadramentos que detectados por esses autores ao analisar o tema das
ações afirmativas raciais, por exemplo (Gamson e Modigliani, 1987). De fato, pacotes
interpretativos costumam não ser muito numerosos, mas o mesmo não pode ser dito
sobre o léxico por meio do qual eles são expressos.
Ao invés de buscar estabelecer um número limitado de enquadramentos, a
pesquisa pretendeu num primeiro momento inventariar uma extensa lista de subenquadramentos capaz de respeitar as minúcias argumentativas de cada texto. Por isso,
discutiremos primeiramente nessa subseção os resultados desse levantamento e,
posteriormente, o processo que levou à junção desses sub-enquadramentos a um número
menor de quadros interpretativos mais amplos. A partir da leitura dos textos incluídos
no recorte, identificamos cerca de 80 sub-enquadramentos cujos rótulos quase sempre
reproduzem a estrutura e os termos das sentenças utilizadas para expressá-los. A seguir,
a lista dos sub-enquadramentos mais recorrentes no jornal:
Tabela 1: Sub-enquadramentos mais recorrentes agrupados de acordo com a valência*
Sub‐enquadramentos mais recorrentes O caminho é investir no ensino básico AAR não leva em conta o mérito Classe importa mais que raça AAR é discriminação às avessas AAR diminui a qualidade do ensino AAR cria/acirra conflito racial AAR racializa a sociedade AAR se opõe à nossa tradição de mestiçagem O caminho é investir nas políticas universais AAR é inconstitucional/ilegal ... AAR diminui as desigualdades (genérico) AAR instaura a igualdade de oportunidades. AAR repara erros cometidos na passado (genérico) AAR é medida emergencial diante de uma situação crítica AAR inclui os excluídos (genérico) AAR introduz pluralidade nas instituições (empresas, universidades etc.). AAR inclui os beneficiários nos níveis mais altos da sociedade AAR tem estimulado o debate sobre as desigualdades raciais AAR é uma forma de dirimir os efeitos da escravidão no presente AAR teve êxito em outros lugares ... *AAR: sigla para “Ação Afirmativa Racial”
Fonte: os autores.
15
Freq. 125 106 82 65 60 59 55 50 48 47 ... 41 31 31 31 25 23 21 20 20 20 ... Como era de se esperar, há uma maior frequência de argumentos contrários do
que favoráveis, posto que é maior a frequência de textos contrários, como visto no
Gráfico 3. Na subseção seguinte, ofereceremos uma proposta de articulação desses
argumentos, mas por hora, vale notar algumas coisas. Primeiro, os argumentos
contrários e favoráveis parecem, cada um ao seu modo, articular alguns conceitos
básicos: mérito, raça, desigualdades, escravidão e legalidade. Outro elemento
fundamental da forma como o tema é sub-enquadrado é a própria escolha dos termos
para definir o objeto da polêmica. A Tabela 2 traz a combinação entre os termos mais
utilizados para se referir à política e as categorias mais recorrentes para se referir aos
beneficiários. A três primeiras células mostram que a maior parte dos textos se referiu a
política como “cotas para negros”, “cotas raciais”, “cotas para pardos”, ou simplesmente
“cotas”. Em seguida, vêm aqueles textos que preferiram a expressão “ação afirmativa
para negros”.
Tabela 2: Quantidade de textos distribuídos de acordo com a terminologia
utilizada para se referir às ações afirmativas raciais
para negros não especificada raciais para pardos para indígenas para afrodescendentes para pretos para outros grupos cotas 443 135 151 110 81 35 30 27 ações afirmativas 96 34 22 16 7 16 9 7 implícita 11 33 2 2 3 2 3 2 bolsa ou bônus 22 5 3 5 9 5 ‐ 2 Fonte: os autores.
Essa terminologia importa por alguns motivos. Em primeiro lugar, por mostrar a
concentração do debate na modalidade “cotas raciais”. Como tivemos a oportunidade de
discutir em outro lugar, por mais discutida que seja, essa não é a modalidade mais
recorrente de ação afirmativa no Brasil (Feres Júnior, Campos e Daflon, 2011), o que
insinua uma concentração do debate num exemplo específico de ação afirmativa. Em
segundo lugar, como já foi notado, a escolha dos termos para se referir às ações
afirmativas costuma se refletir no apoio dado à política (Gamliel, 2007). Finalmente, há
que se destacar a marginalização das políticas alternativas de ação afirmativa racial que
se baseiam na distribuição de bônus e bolsas, pois o termo preferencialmente usado é
“cotas”, o que é somente uma modalidade de política de ação afirmativa.
16
Além disso, essa terminologia evidencia a dinâmica particular que as categorias
de classificação racial antes e depois do advento das ações afirmativas raciais. Como é
notório, as denominações raciais no Brasil são alvo dos mais instigantes debates no
campo da sociologia das relações raciais (Munanga, 2004; Petruccelli, 2000; Sansone,
1997; Silva, 1999). Como um de nós discutiu em outra oportunidade (Campos, 2011), é
possível relacionar as categorias da Tabela 2 a dois “modelos” de classificação da cor
ou raça dos não-brancos no Brasil. O primeiro diz respeito ao uso feito por instituições
de pesquisa, mormente o IBGE, que preferem as categorias preto e pardo. O segundo
se refere ao modelo proposto pelos movimentos negros organizados que defendem a
utilização de categorias com maior apelo identitário, a saber, negro ou
afrodescendente. Dessa segunda perspectiva, os pardos deveriam ser incluídos nos
negros ou afrodescendentes.
Porém, a convivência desses dois modelos não é totalmente pacífica. Se o
primeiro modelo se mostrou profícuo na mensuração das desigualdades raciais
brasileiras, o segundo parece mais adequado à politização das demandas raciais no país.
Como resultado, as políticas de ação afirmativa se baseiam num diagnóstico feito nos
termos do censo (preto e pardo), mas não raro, elas surgem a partir das pressões de
movimentos que preferem outros termos (negro ou afrodescendente). Não é gratuito,
por exemplo, que as políticas adotadas pioneiramente no Rio de Janeiro tenham
misturado, num primeiro momento, os dois modelos, denominando os beneficiários de
“negros e pardos” (Lei 3.708 de 2001). A partir de reações tanto de pesquisadores
quanto de estatísticos, foi aprovada a lei 4.151 de 2003, que suprimiu o termo “pardo”
do edital. Quando utiliza alguma denominação racial, os textos publicados em O Globo
dão preferência ao termo à expressão “negros e pardos”, a mesma utilizada na primeira
lei estadual do Rio de Janeiro. Note-se, porém, que tal expressão mistura dois modelos
com intenções políticas diferentes.
QUADROS INTERPRETATIVOS
Agrupando os sub-enquadramentos das ações afirmativas por semelhança,
chegamos a uma lista de doze enquadramentos interpretativos utilizados para avaliar as
cotas raciais (cf. Tabela 3). O argumento mais citado em O Globo é aquele que defende
que o problema das desigualdades no Brasil é eminentemente socioeconômico e,
portanto, não seria necessário utilizar o critério racial para redistribuir recursos e
17
oportunidades (c2). Em seguida, estão os textos que defendem que as ações afirmativas
são ineficientes, não bastam sozinhas ou simplesmente não alcançam os objetivos
desejados (c3). Em terceiro lugar está o enquadramento legalista que defende que elas
são ilegais ou inconstitucionais (c5). Em seguida vem a ideia de que tais medidas
racializarão o Brasil, isto é, oficializarão a divisão da população em raça e, no limite,
fomentarão conflitos étnicos em nossa sociedade (c1). Em quinto lugar o argumento
segundo o qual a meritocracia e a qualidade de ensino estaria ameaçada com as ações
afirmativas (c4) e, por último, o enquadramento que afirma que tais medidas expressam
uma concepção equivocada de Estado, seja ela “neoliberal” demais ou interventora
demais (c6).
O enquadramento favorável às ações afirmativas mais citado é aquele que afirma
que elas promovem a igualdade, incluindo aqui igualdade de oportunidades ou
socioeconômicas (f2). Em segundo lugar aparece a ideia de que elas funcionam como
uma reparação a erros do passado, mormente a escravidão (f6). Em seguida, as defesas
de que as ações afirmativas são sim medidas eficientes (f3). Em quarto lugar, o
enquadramento de que as ações afirmativas não são uma ameaça à meritocracia, mais ao
contrário: elas realizam o mérito real na medida em que põem para competir estudantes
em pé de igualdade (f4). Em quinto lugar vem a ideia de que essas medidas combatem o
racismo e, por isso, integram as nação de forma mais coesa (f1). Finalmente, o último
enquadramento mais citado é aquele que defende a legalidade e constitucionalidade das
ações afirmativas raciais (f5).
18
Tabela 3: Quantidade de textos distribuídos de acordo com o
enquadramento das ações afirmativas raciais
Quadros interpretativos sem quadro interpretativo* c2) Prioridade das desigualdades socioeconômicas c3) AAR é ineficiente, incompleta ou paliativo c5) AAR viola Estado de direito c1) AAR racializa e divide a sociedade c4) AAR põe em perigo o mérito e qualidade do ensino c6) AAR expressa concepção de Estado equivocada outro contrário** f2) AAR promove a igualdade f6) AAR repara erros do passado f3) Eficiência e necessidade da AAR f4) AAR realiza o mérito e capacita beneficiários f1) AAR combate o racismo e integra a sociedade f5) AAR efetiva o Estado de Direito outro favorável** Total Freq. 258 246 204 192 182 173 25 82 159 73 71 71 60 42 54 943 % 27,4% 26,1% 21,6% 20,4% 19,3% 18,3% 2,7% 8,7% 16,9% 7,7% 7,5% 7,5% 6,4% 4,5% 5,7% 100% * Essa rubrica compreende os textos em que os temas das ações afirmativas são apenas
mencionados ou aqueles que possuem um enquadramento meramente informativo (como notas
que noticiam que uma universidade adotou ações afirmativas).
** Alguns poucos textos contêm enquadramentos marginais e particulares.
Fonte: os autores.
Vale destacar que uma propriedade desses quadros interpretativos é a forma
como eles se relacionam. Há uma certa estrutura espelhada dos argumentos em relação
as ações afirmativas raciais. Assim, o argumento de que essas medidas racializam e
dividem a sociedade (c1) é de certo modo análogo àquele que afirma que elas combatem
o racismo e integram a nação (f1). O mesmo vale para o argumento que acusa a
ineficiência das ações afirmativas (c3) e aquele defende a eficiência da medida (f3). As
exceções são os argumentos f5, f6 e c6.
Parece haver aqui um efeito do meta-enquadramento construído por O Globo.
Ao dividir a questão em dois lados conflitantes, muitas vezes publicando um texto
favorável ao lado de um contrário (quase sempre, um editorial), o jornal termina por
fomentar uma lógica de afirmação e resposta. Embora essa lógica pareça homóloga
àquela exigida por determinado ideal de espaço deliberativo dialógico (Habermas,
1997), deve-se destacar que não há um diálogo propriamente dito. Primeiro porque a
oposição dos argumentos parece ser pinçada a dedo de modo a fazer como que sempre
19
que um enquadramento é veiculado, outro oposto seja veiculado. Segundo porque não
há uma cadeia mínima de afirmação, resposta e contra resposta. Ao contrário, o debate
numa determinada edição cessa apenas com uma réplica.
Porém, mais importante do que os elementos supracitados é o modo como esses
enquadramentos são dispostos no interior do meta-enquadramento adotado pelo jornal.
Isto é, além de saber quais enquadramentos são veiculados, é preciso considerar quais
grupos são apresentados como porta-vozes de cada quadro interpretativo. O Gráfico 5.1
apresenta uma análise das correspondências existentes entre os quadros interpretativos
contrários às cotas (azul) e o grupo ao qual o autor pertence (roxo). Em seguida, o
gráfico 5.2 apresenta o mesmo cruzamento, mas para o “lado” favorável às cotas do
debate.
No Gráfico 5.1 notamos que os especialistas, intelectuais e colunistas costumam
recorrer ao argumento de que as cotas racializarão a sociedade (c1), enquanto os
editores estão mais próximos da crítica que diz que as ações afirmativas põem em
perigo o mérito e a qualidade do ensino (c4). Já os leitores pendem mais para a ideia de
que o problema da desigualdade brasileira não é racial, mas sim de caráter
socioeconômico (c2) e de que a ação afirmativa viola o Estado de direito (c5). O
argumento de que tais medidas são ineficientes (c3) é dividido entre colunistas e
leitores.
20
Gráfico 5.1: Análise de correspondências entre os enquadramentos
contrários às cotas e grupo ao qual pertence o autor que o suporta
Eixo 2 (20.15%)
c6) AAR expressa concepção de Estado equivocada
mera expressão de opinião*
especialista ou intelectual
outros
c1) AAR racializa e divide a sociedade
colunista jornalista
editor
Eixo 1 (61.51%)
c5) AAR viola Estado de direito
c3) AAR é ineficiente, incompleta ou paliativo
c4) AAR põe em perigo o mérito e qualidade do ensino
leitor
c2) Prioridade das desigualdades socioeconômicas
homem de Estado ou político
outra contrária
sociedade civil
N=302
* os casos assinalados com “mera expressão da opinião” indicam os textos em que
apenas se faz um defesa das ações afirmativas se qualquer justificação ou
referência a elementos que permitam caracterizar um quadro interpretativo.
Fonte: os autores
No Gráfico 5.2 as associações são menos fortes, indicando que os grupos
recorrem a pacotes interpretativos similares. Ainda assim, especialistas e políticos se
encontram mais próximos da ideia de que as ações afirmativas promovem a igualdade
(f2) e os colunistas tendem a destacar a eficiência e a necessidade de tais medidas (f3).
Proporcionalmente, os membros da sociedade civil costumam utilizar mais o argumento
de que as cotas reparam os efeitos e os crimes cometidos no período escravocrata (f6) e
a ideia de elas efetivam os princípios constitucionais (f5). A ideia de que ação
afirmativa combate o racismo e, assim, integra a sociedade (f1) costuma ser defendida
mais por colunistas e políticos, sendo que estes últimos também são relativamente os
que mais defende a ideia de que as cotas realizam o mérito (f2).
21
Gráfico 5.2: Análise de correspondências entre os enquadramentos
favoráveis às cotas e grupo ao qual pertence o autor que o suporta
Eixo 2 (29.06%)
f5) AAR efetiva o Estado de Direito
f6) AAR repara erros do passado
sociedade civil
especialista ou intelectual
homem de Estado ou político
f2) AAR Promove a igualdade
Eixo 1 (50.31%)
f4) AAR realiza o mérito e capacita beneficiários
f1) AAR combate o racismo e integra a sociedade
outros
leitor
mera expressão de opinião*
f3) Eficiência e necessidade da AAR
outra favorável
colunista jornalista
N=182
* os casos assinalados com “mera expressão da opinião” indicam os textos em que
apenas se faz um defesa das ações afirmativas se qualquer justificação ou
referência a elementos que permitam caracterizar um quadro interpretativo.
Fonte: os autores
Ainda que as correspondências variem em intensidade, é digno de nota que os
intelectuais e colunistas sejam o principais defensores do argumento da racialização
(c1). Há aqui uma expressão estatística da associação entre um grupo de cientistas
sociais (liderado por acadêmicos como Peter Fry, Yvonne Maggie, José Roberto Pinto
de Góes, Marcos Chor Maio, dentre outros) e colunistas que se tornaram muito
produtivos após o advento das ações afirmativas raciais: Ali Kamel e Demétrio
Magnoli. Evidência disso é que quase a metade dos colunistas declaradamente
contrários às cotas citou acadêmicos ou pesquisas acadêmicas como suporte
argumentativo, enquanto nos favoráveis, este foi um recurso presente em apenas um
quarto dos textos. Tais colunistas/especialistas contrários às cotas foram os principais
difusores do enquadramento da racialização. Presente em apenas 11,9% dos textos
publicados em 2001, esse quadro interpretativo foi se popularizando com o tempo,
passando a frequentar 25,8% dos textos publicados em 2009.
Por outro lado, não há uma associação semelhante no “lado” favorável do
debate, posto que os quadros interpretativos de que os colunistas dispõem são bem
diferentes daqueles mobilizados pelos especialistas. Chama atenção o fato de o segundo
quadro favorável mais citado, o argumento da reparação (f6), ser suportado quase que
completamente por autores ligados à sociedade civil organizada (ONGs, movimentos
22
sociais, organismos internacionais etc.). Como um de nós notou em outra oportunidade
(Feres Júnior, 2007:11), esse argumento tem um apelo emocional que o torna
estratégico no debate público e, por isso, foi tomado como a principal tática
argumentativa do movimento negro nacional. Por outro lado, ao privilegiar uma defesa
das cotas feitas nesses termos, o jornal difunde a ideia de que a ação afirmativa é uma
bandeira de um movimento social específico, que persegue seus interesses particulares,
e não uma política justificável de acordo com princípios morais mais gerais.
Como já foi dito, o conceito de enquadramento enfatiza os esquemas utilizados
para articular diferentes conteúdos e, por isso, os defensores desse paradigma costumam
ser reativos à análise de conteúdo clássica. Parte-se da premissa de que uma mera
contabilização de termos é incapaz de captar o significado que eles apresentam numa
estrutura narrativa. De fato, a recorrência do termo “nação” no nosso corpus diz muito
pouco sobre nossa base, afinal, não sabemos em que contexto tal termo foi mencionado.
Porém, tomando como foco de análise os quadros interpretativos já categorizados e os
sub-enquadramentos mencionados, é possível perceber como variou a terminologia
utilizada para enquadrar as cotas.
Apesar de não ser no todo o argumento mais utilizado, o enquadramento da
racialização (c1) foi o que mais se difundiu no decorrer da polêmica, como vimos antes.
Porém, as suas expressões terminológicas variaram consideravelmente no decorrer do
tempo. Esse quadro articulava basicamente três sub-enquadramentos: (c1.1) a ideia de
que a ação afirmativa criaria um conflito racial no Brasil, (c1.2) a ideia de que ela
racializaria a sociedade por dividi-la em raças e a (c1.3) ideia de que ela se opõe a nossa
tradição de mestiçagem. Embora muitos semelhantes, esses três enquadramentos
contêm ênfases diferentes que variaram no decorrer do tempo. Conforme o Gráfico 6
mostra, o primeiro sub-enquadramento (c1.1) foi muito mencionado entre 2003 e 2006,
mas depois disso ele caiu em desuso. Já o segundo (c1.2) era praticamente inexistente
no início da polêmica e se tornou a principal expressão do quadro interpretativo.
Embora tenha uma trajetória mais errante, o sub-enquadramento que apela para nossa
tradição de mestiçagem (c1.3) também perdeu bastante espaço.
23
Gráfico 6: Comparação entre a presença relativa dos três subenquadramentos que compõem o quadro interpretativo c1
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
c1.1) AAR cria/acirra conflito racial
c1.2) AAR racializa a sociedade
c1.3) AAR se opõe à nossa tradição de mestiçagem
Fonte: os autores.
Os defensores da ideia de que as ações afirmativas teriam um potencial
racializador mudaram de enquadramento no decorrer do tempo. Se no auge da polêmica
eles preferiam apelar para nossa tradição de mestiçagem e para a iminência de conflitos
raciais, nos anos mais recentes eles optaram por enfatizar o caráter racializante da ação
afirmativa. Ou seja, mesmo que a ação afirmativa não tenha gerado grandes conflitos e
que o caráter mestiço da nossa sociedade não tenha sido colocado em cheque, ainda
assim caberia temer o avanço dessa “política racializadora”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Levar em conta os diferentes níveis de enquadramento em que a mídia opera
possibilita um melhor entendimento do modo como ela produz a imagem de um
determinado tema. No caso específico do nosso objeto de estudo, a cobertura que O
Globo dispensou às cotas raciais, algumas conclusões gerais podem ser deduzidas. Em
primeiro lugar, há uma tendência de o jornal utilizar critérios dicotômicos para lidar
com o tema. A partir desses critérios, o jornal matiza sua posição crítica da medida com
a publicação proporciona e controlada de opiniões alternativas. De um lado, a sociedade
civil organizada e os políticos defendem as cotas, de outro a opinião pública,
representada pelos missivistas do periódico, e os seus editores defendem uma posição
contrária. No meio estão os jornalistas responsáveis por produzir informações sobre a
política e, sobretudo, os especialistas e intelectuais. Note-se, aliás, que essa homologia
24
entre colunistas e especialistas não gratuita, posto que a maioria daqueles reivindicam o
estatuto de jornalistas eruditos, especialistas em política (Élio Gaspari), economia
(Mírian Leitão) ou sociologia (Demétrio Magnoli e Ali Kamel).
Uma vez desenhado esse meta-enquadramento, cada ator nesse debate representa
uma voz específica. A sociedade civil enfatiza argumentos com apelo moral, porém com
toques sectários, e os políticos se associam a um discurso mais próximo da promoção
genérica da igualdade. Os leitores, por seu turno, prenunciam a ineficiências das ações
afirmativas, advinda de um erro diagnóstico: nosso problema é socioeconômico e não
racial. Comparados aos outros grupos, os representantes da opinião do jornal assumem
o posto de defensores da meritocracia. Além de contrárias às cotas, note-se que a maior
parte das cartas contem apenas a “mera expressão de posição” sem qualquer
argumentação, sinalizando um suporte irrestrito à opinião do jornal. Nas zonas divididas
do “front”, os especialistas e colunistas contrários às cotas anunciam o perigo da
racialização, enquanto os especialistas e colunistas favoráveis defendem perspectivas
bem diversas.
Diante dessa divisão do trabalho, é simplificador caracterizar o jornal como um
partido anti-cotas. A diversidade de quadros interpretativos veiculados e os diferentes
atores que tiveram acesso ao jornal mostram um cenário bem mais plural do que a
metáfora eleitoral sugere. Por outro lado, essa pluralidade não é ilimitada, muito menos
suficiente. É possível reduzi-la a apenas duas posições e um punhado de
enquadramentos. Parece haver uma dramatização da controvérsia, com papéis e scripts
mais ou menos definidos pelos editores. Assim, embora não aja como um partido anticotas, pode-se sim afirmar que a organização da cobertura jornalística da ação
afirmativa racial em O Globo favorece uma postura crítica dessas políticas.
25
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o globo e as cotas raciais um panorama do debate na última década