Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém Joselle MariaFaculty de Alencar Araripe Bastos CaioJulho/Dezembro Rogério da Costa Brandão Ensinagem: of Belém Journal V. 3,- n.2, 2014, p. 64-86 ISSN 2238-4871 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL THE UNCONSTITUTIONALITY ADMINISTRATIVE ATTACHMENT IN THE TAX ENFORCEMENT LA INCONSTITUCIONALIDAD DE LA GARANTÍA ADMINISTRATIVA EN LA EJECUCIÓN FISCAL Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos 1 Caio Rogério da Costa Brandão2 RESUMO Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5080/2009, que sugere a criação da penhora administrativa na execução fiscal, com a constrição de bens do contribuinte feita livremente pela Fazenda Pública. Seu objetivo é alcançar a satisfação rápida do crédito público e a diminuição de demandas fiscais no Judiciário, garantindo-se o pagamento da dívida com bens do contribuinte. Para tanto, propõe mudanças substanciais na Lei de Execução Fiscal – 6.830/80, a norma legal em vigor autorizada para a cobrança judicial da dívida em questão. O aspecto mais polêmico do projeto é exatamente o que trata da restrição a bens e direitos dos contribuintes, efetivada indiscriminada e amplamente pela Fazenda 1 Manuscript first received /Recebido em: 01/03/2014 12/07/2014 Manuscript accepted/Aprovado em: Técnica Judiciária da Justiça Federal do Pará. Licenciada Plena em Filosofia (Universidade Estadual do Ceará). Bacharel em Direito (FABEL-Belém/PA). Especialização em Direito Processual Civil (em andamento - Damásio de Jesus, em Belém/PA). E-mail: <joselleararipe@ hotmail.com>.. 2 Advogado militante no Estado de São Paulo e do Pará. Especialista em Direito Tributário e Direito Processual Civil (CEU-SP) e, em Direito do Consumidor (UNIFMU-SP). Doutorando em Direito Civil (UBA-Argentina). Vice-Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PA. E-mail: <[email protected]>. 64 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL Pública, sem interferência, a priori, do Judiciário. Com esse poder em mãos, a Fazenda Pública nomeiase dona de direitos fundamentais, causando prejuízos de ordem moral, atingindo bens de valor inestimável importantes para manter a dignidade da pessoa humana. Como versa sobre os direitos fundamentais, previstos nos artigos 1º, III e 5º da Constituição Federal, a alegação de inconstitucionalidade se torna pertinente e urgente haja vista o abalo que pode causar aos alicerces do Estado Democrático de Direito erigidos na Carta Maior. Palavras chave: Penhora Administrativa. Direitos Fundamentais. Estado Democrático de Direito. Inconstitucionalidade. ABSTRACT It has been pending in Brazilian court the bill n. 5080/2009, which suggests the creation of administrative attachment seizure in the tax enforcement, with the constriction of the taxpayer’s property, it made by the Treasury voluntarily. Its goal is due to achieve prompt satisfaction of public credit, and the reduction of fiscal demands on judiciary field, guaranteeing payment of the debt with the assets of the taxpayer. Therefore, it is proposed substantial changes in the Law of Tax Enforcement - 6.830/80, the legal rule in force authorized the judicial recovery of debt in question. The most controversial aspect of the project is exactly what is the restriction of goods and taxpayers rights and largely indiscriminate effected by the Public Treasury, without interference, primarily, the judiciary. With this power in hands, the Treasury points itself as “the owner of rights”, causing moral damage, reaching invaluable assets that maintains human dignity. As concerns fundamental rights provided in arts. 1, 5 and III of the Brazilian Federal Constitution, the claim of unconstitutionality is pertinent and urgent under the view of the concussion it may cause to democratic foundations State erected in Greater Charter. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 65 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão Keywords: Administrative Attachment. Fundamental Rights. Democratic State of Law. Unconstitutionality. RESUMEN Tramita en el Congreso Nacional el Proyecto de Ley n. 5080/2009, que sugiere la creación de la garantía administrativa en la ejecución fiscal, con la compresión de bienes del contribuyente hecha libremente por la Hacienda Pública. Su objetivo es alcanzar la satisfacción rápida del crédito público y la diminución de demandas fiscales en el Judiciario, garantiéndose el pagamento de la divida con bienes del contribuyente. Para tanto, propone cambios substanciales en la Ley de Ejecución Fiscal – 6.830/80, la norma legal en vigor autorizada para la cobranza judicial de la divida en cuestión. El aspecto más polémico del proyecto es exactamente lo que trata de la restricción a bienes y derechos de los contribuyentes efectiva indiscriminada y ampliamente por la Hacienda Pública, sin interferencia, la priori, del Judiciario. Con ese poder en manos, la Hacienda Pública se nombra dueña de derechos fundamentales, causando perjuicios de orden moral, atingiendo bienes de valor inestimable y 5º de la Constitución Federal, la alegación inconstitucionalidad se vuelve pertinente y urgente, es decir, el abalo que puede causar a los cimientos del Estado Democrático de Derecho erigidos en la Carta Mayor. Palabras-clave: Garantía Administrativa. Derechos Fundamentales. Estado Democrático de Derecho. Inconstitucionalidad. 1 INTRODUÇÃO O tema investigado neste trabalho originou-se em um ambiente onde começa a se desenhar um estado de conflito entre o Poder Judiciário e a Administração Pública, a saber, a demora na prestação jurisdicional frente aos incontáveis processos de execução fiscal que estão em curso há anos nas Varas e Tribunais de todo o país, sem so66 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL lução, e os que estão em via de ser formalizados. Por ação de execução fiscal entende-se a que tem por escopo a cobrança judicial da dívida pública. Com relação à cobrança judicial dos créditos da Fazenda Pública oriundos da dívida ativa, que é o objeto da ação executiva, e esta o motivo do conflito Judiciário-Estado, a solução dos problemas estaria na chamada “penhora administrativa”, e é, a constrição de bens do contribuinte realizada livremente pela Administração Pública, objetivando a celeridade processual e, por conseguinte, o desfecho do litígio com a satisfação do crédito. Assim argumentam os representantes da Fazenda Pública. O projeto de lei em curso no Congresso Nacional sob o nº 5080/2009, de autoria da Fazenda Nacional propõe a alteração da Lei de Execução Fiscal nº 6.830/80, instituída para a cobrança judicial de dívida ativa da Fazenda Pública. Para a cobrança mais célere e eficaz da dívida pública, o projeto de lei pretende conceder poderes amplos às Fazendas Públicas federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal para bloquear valores em contas bancárias e investimentos financeiros, restringir direitos, penhorar bens móveis e imóveis de pessoas físicas e jurídicas e, também, o faturamento de empresas cujos débitos estejam inscritos em dívida ativa. É a expropriação administrativa de bens! 2 O DIREITO E O ESTADO EM UMA ABORDAGEM HISTÓRICA O direito vem se transformando ao longo das gerações e em cada momento histórico, se consagrando como uma ciência capaz de modificar o mundo e percebê-lo sob um novo prisma: o do respeito ao homem, à sua dignidade e à sua cidadania dentro de uma perspectiva de proteção a seus direitos fundamentais (estes firmados em um momento mais avançado da História), sistematizado por regras Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 67 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão positivadas de garantia desses direitos. Portanto, importante abordar a evolução do direito e do Estado, para que se alcance o ápice de sua evolução: o Estado Democrático de Direito. Voltar ao túnel do tempo e passear pelas civilizações antigas até atingir as contemporâneas é importante para a compreensão de seu desenvolvimento, crescimento e aperfeiçoamento no tempo e no espaço. Antes da existência do direito positivado por normas, o direito era apenas um conceito que provinha de uma ideia naturalista, na qual as pessoas justificavam sua existência como inerente à própria natureza humana, era uma consequência lógica, oriundo da condição de “ser humano”. Com a evolução da humanidade, do Direito e do Estado, o Direito Positivo se consagrou como a base de todo ordenamento jurídico para obrigar o respeito ao Estado, suas normas e aos direitos fundamentais. “Direito positivo [...] é o direito escrito, consubstanciado em leis, decretos, regulamentos, decisões judiciárias, tratados internacionais, etc., variando no espaço e no tempo” (MALUF, 2010, p.7). Passando pela História antiga com as polis no Estado Grego e a República no Estado Romano, já se constatava a participação do povo (cidadãos livres), nas decisões políticas do Estado. A democracia já era presente na ordem jurídica estatal. Infelizmente, após a longínqua democracia estreada pelos Estados Grego e Romano, fases negras da História, como o Estado Medieval e o Absolutismo, se apresentam como carrascos da democracia, tendo em vista que o direito emanava apenas do Estado. “A lei sou eu”, preconizava Luís XIV, então rei da França. Contudo, novas ideias foram pregadas por filósofos da época, entre eles o inglês John Locke, fazendo nascer o sentimento de revolta dando início à Revolução Francesa (Sec. XVIII), a batalha de maior significado, que se firma como o marco da queda do absolutismo. Esse momento histórico marca o início da Idade Contemporânea. Do liberalismo onde foi instituído o Estado de Direito, que 68 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL preleciona a intervenção mínima do Estado na vida privada, e o contrato social como fundamento para uma ordem social de paz e harmonia, ao socialismo e comunismo no século XIX, desencadeou-se neste, uma total interferência do Estado na vida do cidadão. Foi eliminada a propriedade privada e a burguesia. Com o Fascismo italiano e o Nazismo alemão dá-se o auge da supressão das ideias liberais, e institui-se a ditadura do poder estatal, ou totalitarismo, com uma nova organização político-social que desrespeita todos os direitos e garantias do povo. No Brasil, sua expressão acontece com o Getulismo, e a institucionalização do Estado Novo, submetendo o Legislativo, o Judiciário e seus cidadãos à sua autoridade. Com o fim do Nazismo e suas atrocidades após o fim da Segunda Guerra Mundial, resgata-se a democracia longinquamente estreada pelas antigas repúblicas grega e romana. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França-1789) se assenta como o primeiro documento a prever os direitos fundamentais do homem após a Revolução Francesa. Serviu como modelo e fonte de inspiração para a elaboração de outros documentos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, produzida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, em total oposição aos aterrorizantes atos de violência cometidos pelo Nazismo de Hitler. Uma nova consciência política emerge fundada nos direitos da pessoa humana como princípio a ser seguido pelos regimentos políticos dos países cuja democracia está consolidada. Ergue-se, sob essa nova ótica, o Estado Democrático de Direito, cujas bases têm como alicerce o respeito aos direitos fundamentais do homem, à justiça social e à igualdade. Veja-se o que estabelece a Constituição Federal do Estado Brasileiro de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. É a constatação da democracia e cidadania plenas! Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 69 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão 3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS 3.1 CONCEITO Princípios, segundo o Dicionário Aurélio são: “Conjunto dos preceitos morais e éticos que regem ou deveriam reger a conduta e o comportamento do ser humano em relação ao seu semelhante, ou em relação à sociedade, ou em relação ao mundo e aos outros seres da natureza” (BRASIL, 2010, p. 1710). Para Silva (2009, p. 92), “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”. Nesse mesmo sentido, a lição de Carraza (2009, p. 46): “Os princípios constitucionais têm caráter normativo”. No campo jurídico, os princípios constitucionais são normas hierarquicamente superiores, dotadas de valores éticos que servem como base para direcionar as demais normas que compõem o ordenamento jurídico. Os princípios constitucionais têm caráter fundamental e de supremacia, tendo em vista seu grau de abstração ser maior que o das demais normas, não se direcionando especificamente a um caso, fato ou pessoa determinada, mas a todos; na prática, são alicerces onde se funda todo o sistema jurídico. 3.2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Princípio fundamental consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 1º, III) e direito fundamental (art. 5º) a que todos fazem jus; sua acepção é ampla e transcende à ideia de mera condição física e espiritual do homem, estendendo-se para uma complexa estrutura de valores morais e éticos que são inatos a todos. Buscando uma definição mais abrangente, Sarletse (2010, p. 70) arrisca a formular: 70 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto quanto todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. Nesse âmbito, como norma jurídico-positiva, constata-se que o Estado assume o status de garantidor da dignidade da pessoa humana. Na área tributária, a Constituição Federal também impõe limites à ação do Estado, que se submete às prescrições da lei (art. 146/II) devendo instituir tributo na medida em que o contribuinte possa suportá-lo (princípio da capacidade contributiva). Vê-se que esse princípio tem guarida em outro princípio: o da igualdade (art. 5º/CF), que é um dos princípios fundamentais explícitos na Carta Magna. Nessa sintonia, Carraza (2009, p. 435) ensina os direitos fundamentais, evidentemente, também amparam o contribuinte contra os poderes do Estado, inclusive o Legislativo, nos termos: Deveras, todo o Capítulo I do Título II da Constituição Brasileira delimita o exercício das competências tributárias das pessoas políticas, impedindo-as de ingressarem nas áreas reservadas aos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Daí serem inconstitucionais as normas jurídicas que, a pretexto de exercitarem competências tributárias, impedirem ou tolherem o pleno desfrute dos direitos Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 71 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão públicos subjetivos dos contribuintes. A linha de pensamento de Carraza se coaduna com os ditames da Constituição, que estabelece que os direitos fundamentais são normas cogentes, de grau superior no ordenamento jurídico, que não podem ser violadas, e que suas garantias traduzem a preocupação do legislador em efetivar esses direitos. São normas tão importantes, que têm aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1 º) e são irrevogáveis (art. 60, § 4º, IV). 4 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (BRASIL, 2012, s/p). Assim preleciona a Constituição Federal, em seu artigo 5º, com o fim de garantir a toda pessoa o direito de se defender de qualquer ofensa ou arbitrariedade que possa privá-lo de sua liberdade e de seus bens, ou de acusação de delito praticado: “[...] todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenha sido assegurado todas as garantias necessárias à sua defesa” (MORAES, 2010, p. 107). Esse princípio tem como fundamento a ampla defesa e o contraditório. A ampla defesa é o direito que tem o acusado de usar de todas as provas legais para a sua defesa, trazendo-as ao processo, de 72 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL modo que possam esclarecer os fatos alegados. O contraditório é o meio de defesa que implica na oposição aos fatos narrados pela parte acusadora. Necessária à abordagem em razão de que sua previsão legal enseja a aplicação de outro princípio constitucional: o de igualdade de condição para as partes durante todo o curso do processo. Em sendo atendido o “devido processo legal”, inexiste a possibilidade de anulação de qualquer ato jurídico-processual; eis, aí, sua importância. 5 O PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A Administração Publica como gestora de bens coletivos pertencentes à sociedade, baseia suas atividades no princípio da Supremacia do Interesse Público, tendo em vista o bem comum. Seu alcance é de caráter geral, porém, não absoluto, como se manifestam Alexandrino e Vicente (2009, p.190): “existindo conflito entre o interesse público e o interesse particular, deverá prevalecer o primeiro, tutelado pelo Estado, respeitados, entretanto, os direitos e garantias individuais expressos na Constituição, ou dela decorrentes”. Convém ressaltar que o Projeto de Lei n. 5.080/2009 está pautado nesse princípio o qual exerce função de essencialidade para a execução dos atos administrativos. Outros princípios regulam a atividade administrativa, entre os quais o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Importante lembrar o princípio da legalidade. Mello (2009, p. 99), instrui: “fruto da submissão do Estado à lei”, pois o projeto de lei nada mais é do que a tentativa de legalização da penhora administrativa, sem a qual a Administração Pública não poderá executá-la. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 73 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão 6 A TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL E O PRINCÍPIO DA RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL A teoria geral da responsabilidade civil, de onde se origina a teoria da responsabilidade patrimonial, conclui que toda pessoa deve ser responsabilizada por ato lesivo, cometido a outrem, por culpa, erro ou dolo, que lhe cause dano moral ou patrimonial, tendo o autor do fato a obrigação de reparar o dano causado (art . 927/CC). Segundo Diniz (2007, p. 34), responsabilidade civil “é a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado”. Assim, a execução da dívida recai exclusivamente sobre o patrimônio do devedor, ficando caracterizada a teoria da responsabilidade patrimonial. Previsto no artigo 591 do Código de Processo Civil, o princípio da responsabilidade patrimonial assim dispõe: “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei” (BRASIL, 2012, s/p). Isso quer dizer que nem todos os bens respondem pela dívida, como se percebe pela clara determinação do art. 649 do CPC. O próprio Estado protege alguns bens, sendo taxativo no seu rol dos absolutamente impenhoráveis, não se impondo, portanto, ao devedor, o dever de cumprir a obrigação com esses bens, sendo expressamente proibida sua expropriação judicial. Ainda assim, os §§ 1º e 2º guardam duas exceções, conforme se verifica da transcrição do referido artigo: Art. 649 - São absolutamente impenhoráveis: I - os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução; II - os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida; 74 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL III - os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor; IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3º deste artigo; V - os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão; VI - o seguro de vida; VII - os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas; VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família; IX - os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social; X - até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança. XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos, nos termos da lei, por partido político. § 1º A impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedido para a aquisição do próprio bem. § 2º O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia (BRASIL, 2012, s/p). Esses artigos resguardam, em suas essências, a proteção à dignidade da pessoa humana, para que se garanta o mínimo para a sua sobrevivência. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 75 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão Com relação à responsabilidade patrimonial, Câmara (apud DINAMARCO, 2010, p. 201): “situação meramente potencial, caracterizada pela sujeitabilidade do patrimônio de alguém às medidas executivas destinadas à atuação concreta do direito material”. Isso quer dizer que o patrimônio do devedor responde pelas suas dívidas com todos os seus bens presentes e futuros (art.591/ CPC), até onde suportar. Portanto, não cumprindo o devedor espontaneamente uma obrigação, seu patrimônio poderá sofrer medidas de expropriação, aplicadas pelo Estado, para a satisfação do crédito. Trata-se da execução forçada. 7 PENHORA 7.1 CONCEITO Segundo Assis (2010, p. 695) penhora configura em ser o “ato executivo que afeta determinado bem à execução, permitindo sua ulterior expropriação e torna os atos de disposição do seu proprietário ineficazes em face do processo”. Dispõe, ainda: “A penhora não outorga ao credor um poder direto imediato sobre o bem, como acontece no penhor” (p. 692). A penhora é instituto do Direito Processual, no que diz respeito à execução, cuja efetivação só se verifica por ordem judicial, tendo em vista que o devedor, no prazo estabelecido por lei, não pagou a dívida e tampouco ofereceu bens que a garantissem. Não há, nesse caso, a manifestação da vontade do devedor, que fica impotente quanto à constrição de seu bem. Para Câmara (2012, p. 277): “A penhora é procedimento de segregação dos bens que efetivamente se sujeitarão à execução, respondendo pela dívida inadimplida”. Desse modo, a penhora é ato processual que assegura que bens do patrimônio do devedor garantam o crédito exequendo. A penhora 76 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL é ato autorizado que se processa em favor da Fazenda Pública para garantir o pagamento da dívida, só ocorrendo quando o devedor, convocado a pagar o débito, não o faz nem oferece bens, móveis, imóveis, ou semoventes, entre outros previstos no artigo 11/LEF, que sejam suficientes para pagar sua dívida. 7.2 PENHORA JUDICIAL X PENHORA ADMINISTRATIVA Assim, a penhora Judicial é atribuição do Oficial de Justiça que a efetiva por ordem do Juiz, atendendo ao pedido do exequente. O Juiz determina a penhora de bens do executado, tantos quantos sejam suficientes para garantia da dívida tributária/fiscal contraída pelo contribuinte em razão de descumprimento de obrigação perante o fisco. Primeiramente, chama-se o executado a tomar conhecimento do feito (citação) para pagar a dívida ou garantir a execução, no prazo de 5 cinco dias (arts. 7º, 8º, 9º e 10/LEF). Se o executado não pagar a dívida ou não oferecer bens para sua garantia, aí sim, a penhora judicial será efetivada. De acordo com o art. 11, in verbis, poderá a penhora recair: Art. 11: A penhora ou arresto de bens obedecerá à seguinte ordem: I - dinheiro; II - título da Dívida Pública, bem como título de crédito, que tenham cotação em Bolsa; III - pedras e metais preciosos; IV - imóveis; V - navios e aeronaves; VI - veículos; VII - móveis ou semoventes, e VIII - direitos e ações. §1º Excepcionalmente, a penhora poderá recair sobre Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 77 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão estabelecimento comercial industrial ou agrícola, bem como em plantações ou edifícios em construção. § 2º A penhora efetuada em dinheiro será convertida no depósito de que trata o inciso I do artigo 9º. § 3º O Juiz ordenará a remoção do bem penhorado para depósito judicial, particular ou da Fazenda Pública exequente, sempre que esta o requerer, em qualquer fase do processo (BRASIL,2012, s/p). Por sua vez, implica a penhora administrativa em tirar do Judiciário a atribuição de penhorar bens e entregar esse encargo à Administração Pública que com a averiguação da vida patrimonial do contribuinte, encontrando bens que possam adimplir a dívida, executa a constrição, e só após ajuíza a ação. Nesse instante, será garantido o contraditório e a ampla defesa ao contribuinte. A ideia da penhora administrativa surgiu com os números: correm na Justiça milhares de ações, como um todo, as quais o Judiciário tem que apreciar, tornando-se impotente para tal, considerando o volume de ações acumulado nas Varas. Essas incontáveis ações acabam por gerar um desconforto entre a Administração Pública e o Poder Judiciário, que, por intermédio de seus Juízes, reclama do excesso de processos executivos e da falta de condições de mantê-los em andamento, pelo menos dentro de um prazo razoável. A Administração pública, de outro lado, se queixa da lentidão dos Juízes e da ineficácia na cobrança da dívida pela via judicial. Nasce aí um impasse: quem tem razão? Os administradores ou os Juízes? Existiria aí um conflito que, em sua essência, gira em torno do mesmo tema, a celeridade processual? Esse quadro só revela o que já é de conhecimento comum: impossível a quantidade de juízes suprir a demanda de processos, pois o desequilíbrio é notório, tornando a cobrança da dívida lenta e ineficaz. Assim indicam os dados: Consoante o relatório “Justiça em Números”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, no 78 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL ano de 2005, a taxa média de encerramento de controvérsias em relação com novas execuções fiscais ajuizadas é inferior a 50% e aponta um crescimento de 15% do estoque de ações em tramitação na 1ª instância da Justiça Federal. O valor final aponta para uma taxa de congestionamento médio de 80% nos julgamentos em 1ª instância (PL, 2009, s/p). Note-se, que os dados apontados revelam um índice altíssimo de ações em curso no Judiciário, constatando-se o desequilíbrio alegado pelos Juízes. 7.3 OS PONTOS NEVRÁLGICOS DA PENHORA ADMINISTRATIVA As inovações pretendidas pela Fazenda Pública, com a criação da penhora Administrativa, suscitam discussões de grande valia para o ordenamento jurídico, haja vista a implantação de medidas, por certo, contrárias ao ordenamento jurídico vigente, por atingirem direitos fundamentais consagrados e agasalhados pela Carta Magna. Entre esses direitos estão os previstos no art. 5º, X, e XXII que versam sobre a intimidade, a vida privada e o direito à propriedade. Apesar de serem cláusulas pétreas, esses direitos não são absolutos, encontrando limitações na própria Constituição Federal de 1988, nos incisos XXIII e XXV, do mesmo artigo, quanto ao direito de propriedade. Sob a ótica da proteção dos direitos fundamentais, a OAB de São Paulo tendo como signatários juristas de renome como Ives Gandra da Silva Martins, os professores da PUC André Ramos Tavares, Luís Eduardo Schoueri e Roque Antônio Carraza, expediu parecer, protocolizado na Câmara dos Deputados Federais, que repudia o PL 5080/2009. A seguir a transcrição de parte do documento: Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 79 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão A constatação de que o PL 5080/2009, ao afastar da jurisdição e do processo legal a transferência forçada de patrimônio dos contribuintes/administrados, colide com disposições constitucionais, em especial as contidas nos artigos 1º, 2º e 5º, incisos XXII, XXXV, LIV e LV, é indiscutível. Disposições essas tão robustas que sequer podem ter sua eficácia mitigada por constituírem cláusulas pétreas indisponíveis ao legislador e à Administração Pública. [...] As proposições destacadas, por serem ofensivas ao que, historicamente, se conhece como Estado Democrático de Direito, no qual tanto a Administração Pública quanto os Administrados se submetem, igualmente, a um imparcial Poder Judiciário, e por colidirem com a presunção constitucional de boa-fé dos atos praticados pelos cidadãos/administrados/contribuintes, devem ser imediatamente excluídas de seus pertinentes procedimentos legislativos (BRASIL, s/d, s/p). Seguem alguns pontos polêmicos do Projeto de Lei, quanto aos aspectos constitucionais: O artigo 4º, §§ 1º, 2º e 4º, constitui absoluta invasão de privacidade da vida patrimonial do contribuinte, configurando-se o abuso de poder e ilegalidade do Estado, que será privilegiado com o acesso a informações por meio de um sistema nacional de informações patrimoniais dos contribuintes - SNIPC que devassa a vida íntima do executado. O art. 5º, §§ 4º e 5º, obriga o executado a prestar informações acerca de seu patrimônio. Nesse caso, há exagerada imposição de dever ao contribuinte/executado no texto dos parágrafos em comento, no caso de não adimplemento da dívida. A Fazenda Pública obriga o executado a informar, sem exceção, todos os bens que constituem seu patrimônio, devendo apontar, “fundamentadamente”, aqueles 80 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL que considera impenhoráveis. Já que a Administração Pública tem tanto poder para conseguir informações, a qualquer tempo, acerca da existência de bens do executado, incabível a imposição desse ônus ao devedor. Dispensável, portanto, esse artigo. O art. 7º corresponde à exceção de préexecutividade arguida na ação judicial, preservando a essência de sua estrutura. Contudo, as arguições são cabíveis apenas no processo administrativo. O art. 9º trata da penhora administrativa propriamente dita. É a constrição de bens do executado em sede administrativa. Traduz o poder do Estado de expropriar bens do executado, sem que antes este seja ouvido na via judicial acerca da legalidade ou não do título executivo antes da efetivação da penhora. Acrescentando-se a isso, mais um encargo para o devedor está previsto no artigo: o pagamento das custas com relação ao registro da penhora no Órgão competente, caso a execução seja julgada procedente para o credor. Ora, já que a Administração Pública é detentora de uma sorte de privilégios capazes de captar as informações que pretende acerca da vida do executado, nada mais justo que ela mesma arque com as despesas decorrentes de registro de constrição, deferido ou não seu pleito na esfera judicial. O executado já é onerado com a custa de lei. Nesse contexto, esqueceu-se a Fazenda Pública de prever cláusula de ressarcimento ou compensação financeira ao executado pela inconveniência de ter tido seus bens constritos, e, em seguida, por ausência de confirmação do Judiciário, liberados. Não caberia, no caso, algum tipo de indenização administrativa ao devedor? O art. 10 traz mais uma sanção para o devedor: em caso de sua recusa para o encargo de fiel depositário do bem será obrigado a pagar antecipadamente as despesas pela sua guarda. Mas o maior interesse é da Fazenda Pública, então, por que ela mesma não o guarda? Talvez se assim fizer, colocando o bem em depósito a sua administração, com certeza estaria mais resguardado de danos. Absurdo esse artigo. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 81 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão O art. 11 deixa a critério da Administração Pública a avaliação dos bens agravados, cabendo impugnação administrativa pelo devedor, no prazo estabelecido. Indeferida a impugnação, esta poderá ser oposta na via judicial. Dispensável essa previsão eis que a CF, em seu art. 5º, XXXV, estabelece: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O artigo 13, um dos mais importantes do projeto, prevê o ajuizamento da ação de execução fiscal. Contudo, somente poderá ser proposta se acompanhada da documentação de investigação patrimonial do devedor. Essa fase representa maior segurança ao contribuinte-devedor porque ele estará legalmente abraçado pelo direito de arrazoar sua defesa por quem realmente tem a legitimidade para resolver o conflito, declarando o direito. Trata-se do princípio da segurança jurídica, importantíssimo para a mantença do equilíbrio entre as partes litigantes. O parágrafo único do art. 16 prevê sanção para quem dolosamente omitir, retardar ou prestar falsas informações ficando responsável, subsidiariamente, pela dívida ativa em cobrança. É ilegal a responsabilização dos agentes infratores na mesma proporção da dívida, visto que alheios a ela. O fato gerador é outro. A aplicação de multa, após a apuração da culpa, em processo administrativo, seria a medida mais adequada. Cuida o art. 17 da penhora “online”, atualmente praticada indiscriminadamente por ordem judicial. Essa talvez seja a mais grave das modalidades de penhora, pois incide sobre todo e qualquer valor depositado em conta bancária, não distinguindo as parcelas impenhoráveis determinadas pelo CPC, das demais. O prejuízo causado ao devedor é irreparável, visto entrar na esfera íntima do executado, por se tratar de impedimento do uso de um bem de natureza alimentar, imprescindível ao sustento do devedor e de sua família. Embora posteriormente o devedor possa comprovar a impenhorabilidade desses valores, resultando em sua liberação, o dano já foi causado. Some-se 82 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL a isso o abalo emocional que a constrição acarreta. Além disso, maior risco corre o contribuinte caso não seja ajuizada a ação no prazo de 3 dias previsto no §1º, ficando o dinheiro indisponível a vontade da Fazenda Pública. 8 CONCLUSÃO A invasão à privacidade, com a devassa da vida íntima patrimonial do executado através de sistema integrado de informações cujo acesso da Administração Pública é irrestrito, constitui em violação irreparável ao princípio da dignidade humana e abuso de poder. O Estado se legitima para praticar o cerceamento de direitos básicos, fundamentais, característicos de um Estado Democrático de Direito, ofendendo, ferindo, violando diretamente a Constituição Federal. Em um Estado Democrático de Direito até mesmo o Estado se submete a limitações ao direito de intervenção na vida privada de seu cidadão; trata-se da defesa a bens e direitos, tanto materiais quanto imateriais, capazes de proteger o mínimo da dignidade humana. Como exemplo, o artigo 649 do CPC. A intenção do legislador foi resguardar bens capazes de garantir direitos fundamentais da pessoa, como o de moradia e alimentos. De todo esse enredo, importante, mesmo, seria restringir a atuação da administração quanto à penhora “online”, efetivada judicialmente a pedido da Fazenda Pública. Apesar de a lei autorizar a invasão na conta corrente dos usuários, essa medida constitui, sob o manto do exercício nas próprias mãos, grave lesão ao patrimônio pessoal do devedor, tendo em vista o gravame de bloqueio não poder selecionar os depósitos gerais dos depósitos de natureza alimentar, tais como os salários, vencimentos, proventos de aposentadoria, que são impenhoráveis por determinação expressa do art. 649 do CPC. Sabe-se, é certo, que após o bloqueio o executado poderá apresentar comprovantes (contra cheques e extratos bancários) que indiquem os depósitos de natureza alimentar, para que também, por ordem judiEnsinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 83 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão cial, seja liberado o dinheiro anteriormente impedido de uso. Mas, até lá, os danos causados e os estragos já foram feitos. Como solução, o Juiz poderia salvar esses valores da constrição “online” mediante a estipulação de cláusula que proíba seu bloqueio. Dessa maneira, o banco só poderia restringir os valores que excetuassem essa situação. É claro que a instituição bancária tem condições de apontar os depósitos porquanto sua origem é identificável. Nessa situação, a penhora “online” é, irremediavelmente, a pior forma de expropriação de bens atualmente praticada pelo Estado. Nessa conjuntura de turbulência, em meio a críticas e teorias antagônicas, percebe-se que, ao selecionar os créditos possíveis de ações de cobrança, com intuito de trazer maior efetividade à satisfação do crédito exequendo, a ação de execução fiscal poderia ser mais célere, menos cara e mais eficiente. Mas, quem pode assegurar que a Fazenda Pública está preparada estruturalmente para implantar e executar os atos inerentes à penhora? A Fazenda Pública, em especial a Fazenda Nacional já está apta para proceder à penhora? Ou trata-se apenas de uma hipótese cuja possibilidade de efetivação é remota? Esses questionamentos são de respostas incertas, pois talvez nem mesmo a Fazenda Pública tenha elementos suficientes que sejam capazes de dirimir as dúvidas apontadas, visto não se ter conhecimento de estudo de levantamento de dados elaborados pela Fazenda Nacional, autora do projeto. E, segundo o relatório “Números da PGFN – SINPROFAZ” citado no texto de José Roberto Marques Couto, a Procuradoria da Fazenda Nacional encontra-se com número excessivo de processo pra cada Procurador. De tudo isso, infelizmente o modo como a Fazenda Pública elaborou o projeto de lei, com o desrespeito a princípios constitucionais basilares, constata-se, é totalmente contrário aos preceitos legais. A abolição de direitos e garantias fundamentais, com certeza, será o maior empecilho para a aprovação do projeto; talvez se este receber 84 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO FISCAL alterações substanciais que encontrem outras soluções para aliviar a carga demasiada de processos no Judiciário- constatado no relatório “Justiça em números” citado na exposição de motivos do projeto de lei-, ou apresente estudo que comprove sua capacidade para diminuir o prazo de tramitação dos processos, sem que implique em ferir a Carta Maior, seja possível seu julgamento favorável. Finalmente, tecnicamente, o projeto de lei é inviável. Percebe-se que a penhora administrativa já nasce inconstitucional, em virtude de estar diretamente atrelada as cláusulas pétreas (direito à intimidade, à igualdade, à propriedade, de defesa, do devido processo legal), aquelas cláusulas que não podem ser abolidas, e alteradas ou modificadas (por um procedimento legislativo simples) levando-se em conta sua rigidez. Logo, o projeto deveria ser rejeitado de plano, sem que fosse necessário passar por todo o desgastante e trabalhoso processo legislativo, justamente por referir-se, em sua essência, a cláusulas pétreas. De qualquer forma, essa teoria tecnicista ao que parece, está subentendida (ou é um entendimento pessoal), embora pouco se tenha encontrado alusão na doutrina pesquisada, salvo unicamente sugerida pela OAB em seu parecer. Então, afirma-se: as possibilidades de aprovação do projeto são mínimas, visto em seu bojo observar-se o desrespeito a garantias e princípios constitucionais que são intangíveis, por versarem sobre bens inalienáveis, indispensáveis e indisponíveis da pessoa humana. A Comissão de Constituição e Justiça das Casas Legislativas do Congresso Nacional espera-se, estará alerta quanto aos dispositivos que violam nossa Constituição. E, se assim for, o projeto de lei está fadado ao insucesso. Vitória da democracia! Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v. 3, n. 2, jul./dez. 2014, p. 64-86 www.fabelnet.com.br/ensinagem 85 Joselle Maria de Alencar Araripe Bastos - Caio Rogério da Costa Brandão REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. São Paulo: Método, 2009. ASSIS, Araken de. Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <hƩp://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 14 fev. 2014. ________. 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