A ANÁLISE LINGUÍSTICA E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: EM BUSCA DO DESENVOLVIMENTO DA COMPETÊNCIA DISCURSIVA Giovana Rabite Callian1 Laura Silveira Botelho2 RESUMO: Na presente pesquisa, desenvolvemos reflexões sobre a análise linguística como proposta para o ensino da gramática na escola, já que as duas últimas décadas do século XX constituíram um período de crítica sistemática à gramática tradicional e ao seu ensino. Esse artigo tem como objetivo apontar a diferença que há entre um ensino voltado para a prática de análise linguística e o ensino gramatical. Além disso, pretendemos apresentar propostas concretas para um trabalho profícuo da análise linguística na escola. Do ponto de vista metodológico, desenvolvemos uma revisão bibliográfica de cunho exploratório com base em autores como Travaglia (2002), Mendonça(2006), Possenti (1996), Bagno (1994), entre outros. Desenvolvemos, também, uma pesquisa documental para apresentarmos algumas propostas para a prática de análise linguística nas aulas de língua portuguesa, mostrando que é possível propor uma forma de ensino de gramática produtiva e pertinente para o aluno, que vise ao desenvolvimento de sua competência comunicativa. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de língua materna. Ensino de Gramática. Variedades linguísticas. Análise Metalinguística e análise epilinguística. INTRODUÇÃO O ensino de gramática nas aulas de Português como língua materna tem gerado acirrados debates e questões desafiadoras para os professores de Língua Portuguesa e para todos aqueles que estão envolvidos no processo educacional. Encontramos aqueles que defendem o seu ensino, pois trata-se de manter a tradição da sua língua, e ainda acreditam que o ensino da gramática preserva a identidade linguística do seu país e os que não veem o porquê do seu ensino, alegando inconsistências teóricas e inadequação da teoria gramatical à realidade linguística dos alunos. Uma grande polêmica relacionada a um livro didático 3 (Por uma vida melhor, da coleção Viver, Aprender), destinado aos alunos da Educação de Jovens e Adultos, fez a 1 Graduada em Pedagogia na Faculdade Metodista Granbery e professora da Rede Estadual de Minas Gerais. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Letras e mestra em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pesquisadora do grupo FALE da Faced/UFJF . E-mail: [email protected] 3 O livro foi acusado, no ano de 2011, de defender o ensino do “português errado”, por considerar como objeto de estudo as variantes linguísticas menos prestigiadas socialmente. Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN – vir a público manifestar-se em defesa dos linguistas. Várias críticas foram feitas a respeito do livro que, diga-se, foi aprovado pelo Programa Nacional do Livro Didático – PNLD – e acata as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, doravante PCN’s-LP, em relação à concepção de língua/linguagem que vigoram há muito tempo. Portanto, as críticas feitas ao livro mostram a ignorância e alienação da mídia quanto aos fatos da língua e acabaram colocando em evidência o que mais os linguistas se preocupam em combater: o preconceito linguístico. Em tal episódio ficou evidente que as pessoas que fizeram as críticas não leram o livro. Fazendo uma análise da página tão criticada pela mídia em geral, podemos perceber que o livro defende o ensino da norma culta e das outras variedades, desde que esteja de acordo com o contexto específico. O que se tentou ressaltar na obra é que cada padrão exigido numa situação comunicativa tem formas adequadas e inadequadas de expressão do idioma e não de certo e errado. Muitos estudos apontam que, se o aluno toma consciência do modo como ele fala, tem melhores condições de se apropriar da regra e usá-la quando for necessário, porém a tentativa de aproximar a variedade popular da forma padrão tem sido considerada uma audácia. É fato que a língua está sempre sofrendo modificações, formas linguísticas podem perder ou ganhar prestígio e até mesmo desaparecer, além disso, todas as línguas apresentam variedades. A linguística demonstra que nenhuma língua fica ameaçada, ou será desvalorizada, por aceitar como corretas determinadas formas de falar que não estão presentes nos compêndios gramaticais. Defender uma coisa não significa combater outra, como já disse o professor Marcos Bagno (1994), pois o papel da escola é dar acesso a todas as variedades existentes, ficando a cargo da linguística descrever esses fenômenos, ajudando a entender melhor o funcionamento das línguas dando respaldo ao processo de ensino. Entende-se que o que os professores de Língua Portuguesa vêm fazendo em sala de aula acaba afastando a língua da realidade social do indivíduo, tornando-se algo artificial e sem significado. Em virtude disso, a gramática tornou-se um problema na vida dos professores. Com as reiteradas críticas feitas a ela, os professores acabam ficando sem saber o que fazer, muitos ao tentar inovar acabam não fazendo nada que seja significante para a vida dos alunos. O 2 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 professor deverá ampliar sua concepção sobre o que é língua e fazer uma real integração na estrutura do seu ensino. Diante de tantos resultados insatisfatórios da ênfase nas aulas de gramática, somos convidados a refletir sobre essa prática e a adotar uma nova metodologia que privilegie as habilidades de leitura e escrita, assim a proposta da prática de análise linguística em contraposição ao ensino da gramática tradicional vem ganhando cada vez mais espaço nas aulas de Língua Portuguesa. Este artigo busca, pois, refletir sobre as práticas de análise linguística e, dessa forma, apresentar propostas didáticas para torná-las concretas na escola. 2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE LINGUAGEM E GRAMÁTICA Antes de iniciarmos nossas discussões é necessário fazer uma distinção muito importante entre norma padrão e língua culta. De acordo com os esclarecimentos de Bagno (2003) e Faraco (2008), na designação do termo língua culta há muitos pressupostos. O termo “culta” tomou sentido absoluto e acabou sugerindo uma oposição a normas “incultas”, que seriam aquelas faladas por grupos considerados sem cultura, dizendo que esses não sabem falar ou falam errado. Todavia, como acreditam os autores, não existe grupo sem cultura, em virtude disso, o sentido do adjetivo “culta” está estritamente relacionado à cultura escrita. Assim, Faraco (2008, p. 56) define a expressão língua culta como: [...] a norma linguística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau maior de monitoramento), por aqueles grupos sociais que têm estado mais diretamente relacionados com a cultura escrita. Nessa perspectiva, Bagno (2003) afirma que a língua classificada como materna é muito diferente da norma padrão tradicional. Segundo o autor, ela é um português vivo, dinâmico, que está presente na nossa sociedade multifacetada. A discussão que gira em torno desses termos é tão acirrada que até mesmo os próprios linguistas acabam cometendo alguns deslizes e se deixam levar por certas ambiguidades contidas nesses termos. Assim, norma padrão é aquela idealizada, um exemplo são os registros de algumas gramáticas normativas. Norma culta é aquela usada por uma determinada comunidade linguística, um exemplo são os registros do projeto NURC (Projeto da Norma Urbana Oral Culta) 4. 4 O Projeto NURC, como passou a ser chamado, no Brasil, teve, desde o seu início, em 1970, o objetivo de caracterizar a modalidade culta da língua falada nesses centros urbanos, adotando-se, para isso, critérios 3 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 De acordo com Antunes (2007), um dos desafios do ensino da língua portuguesa tem sido a dificuldade de saber qual linguagem usar em determinadas situações, além disso, saber identificar os diferentes níveis de formalidade. Muitos saem das escolas sem saber interpretar textos e sem saber expressar-se fora das situações a que estão acostumados. Segundo a autora, as escolas consolidaram o uso de uma gramática equivocada, que reduz a língua, não oferecendo uma compreensão mais ampla, mais relevante, do que sejam os usos da linguagem na vida das pessoas. Para os estudiosos da língua, isso acontece porque o padrão é ensinado como se fosse uma verdade inabalável, e, a partir disso, a noção de erro passa a ser social, ou seja, só falam errado aquelas pessoas de classes desprestigiadas. No dizer de Travaglia (2002), toda essa discussão nos leva a ressaltar uma questão muito importante para o ensino de língua materna: o modo como os professores concebem a língua e a linguagem irá refletir na estrutura do seu trabalho com a linguagem. Autores como Koch (1996) e Travaglia (2002) adotam como concepção de linguagem aquela que se baseia no processo de interação, ou seja, a linguagem é vista pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores que interagem como sujeitos e ocupam lugares sociais. Citando Bakhtin (1997, p. 124) para essa concepção: A verdadeira substância da linguagem não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação ou pelas enunciações. A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da linguagem. Mas afinal, o que é gramática? E o que seria saber gramática? Travaglia (2002) define três concepções sobre o conceito de gramática. A primeira concebe a gramática como um manual de regras do bom uso da língua para aqueles que querem falar e escrever bem. Organizada por especialistas que se baseiam no uso da língua consagrado pelos bons escritores, essa concepção acaba ignorando características próprias da língua oral gerando vários tipos de preconceitos linguísticos. rigorosos que assegurassem o controle de variáveis e permitissem o confronto de dados. Esse Projeto visa ao estudo da fala culta, média, habitual, através de uma documentação sonora capaz de fornecer dados precisos sobre a nossa língua, respeitadas as diferenças culturais de cada região. Procurou-se, desde o início, deixar claro que não se tratava de estudar uma norma imposta segundo critérios externos de correção e de valoração subjetiva, mas sim de estudar a pluralidade de linguística objetivamente comprovadas no uso oral. Fonte: http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj 4 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Nesse sentido, conforme sustenta Antunes (2007), essa gramática não trata a realidade da língua, ela representa o falar social mais aceito, criando usos linguisticamente considerados melhores que outros, advindo de razões puramente sociais, definindo como fala errada, exatamente a fala da classe social que não tem prestígio. A segunda concepção de gramática apresentada por Travaglia (2002) é aquela que faz uma descrição da estrutura e do funcionamento da língua, de sua forma e função, é conhecida como gramática descritiva. As regras a serem seguidas são aquelas que os falantes utilizam na construção real da comunicação, privilegiando a descrição da língua oral, propondo uma homogeneidade do sistema linguístico, abstraindo a língua de seu contexto. A terceira concepção de gramática, ainda de acordo com Travaglia (2002), é aquela que considera as variedades da língua que estão de acordo com a situação de interação comunicativa. A gramática é vista como um conjunto de regras que o falante se apropriou naturalmente. Esses conceitos sobre gramática deixam claro a existência de pelo menos três tipos de gramática entre tantos outros que poderíamos citar. Entretanto, vamos nos deter nos quatro tipos mais conhecidos e utilizados. O primeiro é a gramática normativa que, para Travaglia (2002), é aquela que estuda os fatos da norma padrão. Tem como foco a modalidade escrita da língua dando pouca importância, ou quase nenhuma, à variedade oral. A gramática normativa apresenta e dita as normas do falar e escrever bem e o que deve ou não ser utilizado na língua. Ela regula o uso da língua na sociedade e consolidou apenas uma variedade como válida e verdadeira. Essa visão de gramática tem raiz no importante papel da escrita que, segundo Miranda (2006), foi um dos fatores necessários ao surgimento das ciências da linguagem. Em outras palavras, a escrita acabou por transformar a fala do indivíduo em objeto estável e algo a ser resolvido, pois grande era o número de variedades linguísticas. Ainda contemplando Travaglia (2002), os critérios de qualidade utilizados pela gramática normativa, na maioria das vezes, são problemáticos e não dão importância a realidade linguística. No entanto, o autor afirma que a gramática normativa tem sua importância e que, às vezes, é necessário utilizá-la para que o aluno desenvolva sua competência comunicativa de forma que ele saiba utilizar adequadamente também a variedade de prestígio da língua. Porém, deve-se estar atento ao seu ensino, a fim de evitar a formação de preconceitos e criar uma resistência ao ensino do português, inculcando nos alunos a ideia de que o português é uma língua muito difícil. 5 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Assim, baseando-se nesse tipo de gramática, o ensino da língua ganha o foco prescritivo, que segundo Travaglia (2002), leva o aluno a substituir suas convicções sobre a língua, consideradas erradas e inaceitáveis, por outras consideradas aceitáveis e corretas. Esse tipo de ensino só visa ao trabalho com a variedade escrita culta, interferindo com as habilidades linguísticas existentes e tem como objetivo a correção formal da linguagem. Tanto essa gramática, quanto esse tipo de ensino tornaram-se alvo de questionamentos e reiteradas críticas devido as suas inconsistências teóricas. As ciências linguísticas passaram a afirmar que tal modelo centrado na variedade padrão era insuficiente para desenvolver as competências discursivas dos alunos e propuseram outros modelos de gramática, além da construção de novos referenciais teóricos para o trabalho pedagógico com a língua materna. O segundo tipo de gramática é a teórica. Conforme define Travaglia (2002), a gramática teórica é uma sistematização da língua que busca explicitar sua estrutura, constituição e funcionamento. É construída a partir das teorias e modelos da ciência linguística. Essa gramática se apropria dos elementos das gramáticas descritivas e da parte da descrição que aparece nas gramáticas normativas. Podem ser entendidas como “uma explicitação do mecanismo dominado pelo falante que lhe possibilita usar a língua.” (TRAVAGLIA, 2002, p.33). Nessa perspectiva, o autor faz uma consideração muito pertinente, chamando a atenção para o fato de não confundirmos a gramática teórica com a normativa, como frequentemente é observado. Segundo o autor, a gramática normativa tem caráter “legislativo” designando o que é certo e o que é errado, enquanto a teórica é mais um recurso a ser utilizado nas aulas para ajudar a desenvolver a competência comunicativa, auxiliando o aluno a pensar cientificamente a realidade linguística. A gramática teórica não é a metalinguagem pura, sem objetivo, ao contrário, trabalha essa perspectiva auxiliando no desenvolvimento da competência comunicativa do aluno. O terceiro tipo é a gramática reflexiva. De acordo com Soares (1979), essa gramática surge da “reflexão com base no conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua e será usada para o domínio consciente de uma língua que o aluno já domina inconscientemente”. Entretanto, Travaglia (2002) vai mais além e afirma que a reflexão deve atuar também para o domínio de uma variante linguística que o aluno ainda não conhece. Essa gramática tem como objetivo levar o aluno a conhecer a estrutura, o funcionamento, a forma e a função da língua e ainda possibilitar ao aluno a pensar, 6 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 desenvolver o raciocínio científico, para que possa fazer uma análise sistemática dos fatos e fenômenos que vai encontrar na sociedade. O quarto tipo é a gramática de uso. Especialistas como Travaglia (2002, p.111) e Possenti (1996) definem a gramática de uso como “implícita” e está diretamente ligada à gramática internalizada do falante. É, segundo os autores, um conjunto de regras dominado pelo falante que lhe permite o uso normal da língua, habilitando-o a falar e ser compreendido. Tem como finalidade a internalização de regras e princípios de uso da língua, sem descrever seus elementos, para que o falante possa utilizar esses recursos em situações concretas e específicas de interação comunicativa. O trabalho com essa gramática pode ser feito de diversas maneiras. Dentre elas, Travaglia (2002) aponta o trabalho voltado para a produção oral e escrita dos alunos, que permite a análise dos diferentes tipos de registros, das diferentes variedades linguísticas, familiarizando o falante com esses aspectos, para que esse saiba quando é adequado ou não utilizar uma forma ou outra de falar. Um fato relevante apontado por Travaglia (2002) é a suposição de que para o aluno, já possuindo a variedade coloquial, o ensino deve ser direcionado à variedade culta. Porém, deve-se estar atento ao fato de que o aluno não domina elementos de outras variedades e que precisam ser trabalhadas, pois assim ele terá a sua disposição um maior número de recursos da língua. O autor faz uma crítica, embora breve, mas muito pertinente, aos livros didáticos, que, de acordo com ele, trazem exercícios isolados sobre um fato da língua, mas não propõem uma automatização dos seus usos e recursos. Além disso, os livros didáticos apresentam a língua de forma fragmentada, cabendo ao professor orientar seu trabalho para os fatos linguísticos de uma forma sistemática que vá ao encontro às necessidades dos seus alunos. Travaglia (2002) sustenta que a gramática de uso proporciona um ensino produtivo que busca ampliar o uso da língua de maneira mais eficiente. Segundo o autor, o objetivo é valorizar os recursos que o indivíduo possui, sem interferir nas habilidades já adquiridas, para que o falante possa, sempre que necessário, saber adequar-se às diversas situações comunicativas. Para o estudioso, essa gramática é a mais adequada para desenvolver a competência comunicativa do falante. Entretanto, o autor acredita que essas gramáticas – uso, reflexiva, teórica e normativa – não são excludentes, pelo contrário, elas podem ser trabalhadas em conjunto, desde que estejam de acordo com os objetivos didáticos propostos. O que não deve 7 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 ser feito é hipervalorizar a gramática normativa em detrimento das outras, como vem acontecendo, causando prejuízos na formação do aluno em termos de conhecimento linguístico. Assim, na próxima seção, para entendermos esse processo que estigmatiza determinados falares e nos aproximar mais da realidade linguística do português brasileiro, achamos pertinente apresentar algumas ideias sobre as variedades linguísticas, mostrando como elas constituem-se. 3 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Na presente seção, fundamentadas nas ideias de Bortoni-Ricardo (2004), Possenti (1996) e Bagno (1994), discutiremos questões referentes às variedades linguísticas e como elas afetam diretamente o ensino da língua portuguesa e, por consequência, a reflexão linguística. Segundo Bortoni-Ricardo (2004), ao entrar para a escola a criança está transitando de uma cultura predominantemente oral, para outra permeada pela escrita e, consequentemente, irá encontrar na sala de aula uma grande variação no uso da língua. Como ainda não dominam muitos recursos comunicativos devido à falta do contato com a língua escrita, não conseguem monitorar tanto a fala, principalmente em estâncias públicas formais. Possenti (1996) defende a ideia de que esse monitoramento está estritamente relacionado com o domínio da leitura e escrita. Mas, as escolas preocupadas com o ensino da gramática acabam deixando de lado essas atividades importantíssimas. Observa-se que muitos alunos saem da escola sem saber produzir um bom texto e com muita dificuldade em ler os variados gêneros textuais presentes em nossa língua. O objetivo das escolas deveria ser a formação de leitores proficientes e bons escritores, para que possam executar essas atividades com naturalidade e facilidade. Logo, se esse objetivo não está sendo alcançado é sinal de que existe alguma coisa errada com o ensino da Língua Portuguesa. Caso a pretensão da escola seja atingir um grau de utilização efetiva da língua, a leitura e a escrita devem ser trabalhadas constantemente, para que ocorra um verdadeiro aprendizado da Língua Portuguesa. É necessário também uma conscientização dos professores, para que não vejam essas atividades apenas como tarefas a serem realizadas em casa, pelo contrário, devem ser trabalhadas em sala de aula junto com os alunos, para que criem, recriem e vejam o quanto há de possibilidades sobre a língua. 8 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Como existem vários grupos em nossa sociedade, a variedade dialetal também é muito grande e ela é decorrente de diversos fatores como, por exemplo, os grupos etários, o gênero, o status socioeconômico, grau de escolaridade, entre outros. Diante desse fato, BortoniRicardo (2004) e Possenti (1996) afirmam que cada grupo acaba julgando a fala dos outros a partir da sua e, assim, veem essa diferença como um erro, um defeito. A partir disso, surge a concepção de que um uso linguístico é superior ao outro. Nessa perspectiva, Perini (1996) faz uma consideração muito relevante. O autor acredita que ninguém comete erros ao falar de sua própria língua e que: [...] qualquer falante de português possui um conhecimento implícito altamente elaborado da língua, muito embora não seja capaz de explicitar esse conhecimento [...]. Mesmo pessoas que nunca estudaram gramática chegam a um conhecimento implícito perfeitamente adequado da língua. (PERINI, 1996 p. 124). Assim, devemos acabar com essa ideia de caracterizar uma fala ou dialeto como certo ou errado e substituir por critérios de adequabilidade e aceitabilidade. Essa questão da variedade linguística esbarra no ensino da gramática, pois muitos estudiosos acreditam que para saber falar uma língua é preciso saber a gramática com todas as suas regras de cor. No entanto, todos nós, mesmo sem nunca ter ido à escola, temos noção de muitas regras que são internalizadas conforme nosso desenvolvimento no meio em que vivemos. Os falantes da língua materna possuem um saber bastante abrangente sobre ela, pois são capazes de formular frases complexas e fazer interpretações coerentes de textos. Mais importante que o conhecimento gramatical é o conhecimento necessário para falar efetivamente a língua. O que se observa, segundo Bortoni-Ricardo (2006), é que os professores estão cada vez mais perdidos e não sabem como agir diante dessas variedades, nem como livrar-se do tradicional ensino gramatical. Na mesma perspectiva, Bagno (1994) afirma que não há utilidade alguma nesse tradicionalismo, se o objetivo for formar um usuário competente da língua culta. Diante desse impasse, os docentes acabam tomando determinadas atitudes que não contribuem para ampliar a competência comunicativa do aluno. Para auxiliar essa insegurança do professor, Bortoni-Ricardo (2004) sugere como estratégia didática duas posições que o docente pode vir a adotar: identificar e conscientizarse dessa diferença. Para isso, é necessário que o professor esteja atento à fala do aluno e que 9 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 conheça as regras que regem a variante padrão da língua. Assim, poderá intervir no momento mais adequado conscientizando-o para que ele possa monitorar-se. Bagno (1994) também sugere que os professores redirecionem sua metodologia para descobrir novas maneiras de tornar os alunos usuários competentes da língua, elevando o que ele chama de “auto-estima linguística” (1994 p. 115). Dessa forma, eles se sentem mais seguros com relação ao uso da língua e não meros reprodutores de teorias gramaticais. Conforme sustenta o autor, a língua é viva e dinâmica, não está pronta e acabada, como nos é apresentada pela gramática tradicional. Bagno (1994) e Possenti (1996) apontam uma questão muito relevante para que se rompa com essa visão preconceituosa de que um dialeto é melhor que o outro. Segundo os autores, é necessário uma reavaliação da noção que temos de erro para uma melhor orientação do trabalho. Possenti (1996) argumenta que temos tendência a considerar como erro as formas que distinguem os falantes, pois elas destoam. De fato, há “erros” que chocam e outros que não chocam mais porque são usados por um grupo de mais prestígio. O importante é saber que a diferença entre o que o indivíduo sabe sobre a sua língua e o que lhe falta para aprender o padrão é bem pequena. As semelhanças são muito maiores que as diferenças. Análises feitas a respeito disso revelam que: os alunos acertam mais do que erram; os erros em geral são hipóteses significativas (se não é reconhecido pela comunidade dos falantes são abandonados); os erros são sempre os mesmos; e o número de erros é maior que os tipos de erros. Essa proposta é muito importante, pois muda o modo como os professores devem tratar os erros dos alunos. Sabemos que a marcação de erros traz um valor simbólico aos alunos e talvez essa nova perspectiva oriente o modo de o professor lidar com isso, modificando, dessa maneira, positivamente o desempenho do aluno. Como ressalta Bagno (1994), “ensinar bem é ensinar para o bem”, respeitando e valorizando o conhecimento do aluno (BAGNO, 1994, p.145). Para esse autor, muito do que é considerado erro de português não passa de um desvio ortográfico, o que não tem nada haver com a língua, pois são conhecimentos diferentes. Além disso, “todo falante nativo de uma língua é um falante plenamente competente dessa língua... capaz de discernir intuitivamente se um enunciado obedece ou não às regras de funcionamento da língua.” (BAGNO, 1994, p.24). 10 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Portanto, segundo o estudioso, os professores tendem a chamar de erro qualquer manifestação linguística que esteja em desacordo com a gramática normativa. O que não procede, pois, como observamos, ninguém comete erros de português ao falar sua própria língua. Para Bagno (1994), o combate ao preconceito linguístico deve começar na conscientização e aceitação de que não existem erros de português e sim diferenças de uso que foge à gramática normativa, isso devido ao fato de que a língua, dinâmica como é, está sempre seguindo seu processo evolutivo. Assim, o domínio efetivo de uma língua nada tem haver com o domínio de uma metalinguagem técnica, o tradicionalismo criado em torno do ensino da gramática é um grande obstáculo a ser superado. Diante de tantas dúvidas sobre o que deve ser tratado no ensino da língua portuguesa, do despreparo dos professores e para que esse ensino não continue apresentando-se cheio de lacunas, criou-se um documento que orienta a prática docente trazendo diversas contribuições para o ensino da língua portuguesa, os PCN’s, ponto de discussão da próxima subseção. 3.1 Contribuições dos PCN’s – LP para o ensino Segundo Antunes (2003), os Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa PCN’s - LP elaborados para dar subsídios a uma reorientação das práticas pedagógicas privilegiam a dimensão interacional e discursiva da língua defendendo-a como uma das condições para a plena participação do indivíduo em seu meio social. Além disso, estabelecem que os conteúdos de língua portuguesa devam se articular em torno do eixo uso – reflexão – uso, portanto nenhuma atenção é concedida aos conteúdos gramaticais, tal como exigem os programas de ensino. Segundo os PCN’s-LP, o índice de fracasso escolar está intimamente relacionado com a dificuldade que a escola tem para ensinar a ler e escrever. A escola não consegue garantir um uso produtivo da linguagem que tenha significado para o aluno. Em virtude de tantos fracassos, os PCN’s-LP apontam a necessidade de rever o ensino da Língua Portuguesa e abandonar as práticas tradicionais. A nova proposta sugere uma leitura profunda e contextualizada, prazerosa, que faça sentido e se adeque às normas e aos objetivos comunicativos, abordando os conteúdos gramaticais. A gramática deve ser entendida e não decorada, a reflexão gramatical deve estar unida à leitura e à produção escrita, 11 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 garantindo aos alunos os saberes linguísticos necessários para que eles, além de terem acesso à informação, possam exercer uma efetiva participação social, ampliando, assim, sua capacidade de uso da língua. De acordo com esse documento, o ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa se dá a partir da relação de três elementos fundamentais: o aluno, a língua e o ensino. O aluno aparece como sujeito da ação de aprender; já a língua é o objeto de conhecimento, tanto em sua forma culta, quanto popular e, por fim, o ensino que deve ser o caminho pelo qual o aluno adquire o conhecimento sobre a língua. É importante ressaltar a presença do professor, que deverá perpassar por todos os elementos dessa tríade, ele é quem deve pensar no que é relevante para o aluno aprender e qual a melhor maneira de levá-lo até o conhecimento. Nessa perspectiva, podemos observar que a aprendizagem da língua portuguesa se dá a partir de uma reflexão que se faz sobre ela. As atividades de reflexão são muito importantes na prática de análise linguística. Os PCN’s-LP classificam essas atividades em epilinguísticas e metalinguísticas. Entende-se por atividades epilinguísticas, de acordo com os estudos de Franchi (2006), aquelas voltadas para a reflexão que todo falante de uma língua realiza ao fazer uso dela. Não há preocupação com classificação ou regularidades, por exemplo, em relação ao estudo de um determinado texto, o que importa é a sua compreensão, interpretação, vocabulário, relação entre título e conteúdo. Assim, vale a reflexão sobre o uso da língua e não a correção de irregularidades. Já as metalinguísticas, ainda contemplando as ideias de Franchi (2006), é uma análise mais sistemática, que se apoia em conceitos e nomenclaturas que descrevem os fenômenos linguísticos, está mais ligada a uma reflexão gramatical. Permite, assim, que os alunos percebam certas regularidades de aspectos da língua e classifiquem suas características específicas. Essas atividades não devem, entretanto, ser o foco de ensino, mas são importantes, pois permitem um uso mais adequado e consciente da língua. Segundo os PCN’s-LP, para os professores trabalharem de forma reflexiva sobre a língua, é muito importante que desenvolvam estas atividades de acordo com o eixo metodológico: USO – REFLEXÃO – USO. Ou seja, primeiramente faz-se um uso ingênuo, superficial, descomprometido da língua, para posteriormente refletir sobre esse uso e assim chegar a um uso comprometido, mais consciente, seguro e politizado. Essa prática proporciona ao aluno o uso efetivo da língua e cria condições reais de interação provocando debates sobre o funcionamento da linguagem, incitando dúvidas e 12 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 buscando hipóteses. Se bem orientado, tudo isso pode se transformar numa intensa reflexão sobre a linguagem. Somente realizando atividades desse tipo é que faz sentido trabalhar a metalinguagem, pois assim o aluno será capaz de gradualmente descrever sua própria língua. Assim, os PCN’s apontam para uma perspectiva de ensino diferente da tradicional, mais voltada para a reflexão sobre a língua caracterizando uma nova proposta de ensino denominada Análise Linguística. Mas, muitas dúvidas surgem em relação a esse trabalho. Afinal, o que é análise linguística e como trabalhá-la sem cair na gramática tradicional? Esse ensino substitui as nomenclaturas gramaticais por nomenclaturas linguísticas? Dessa forma, em função das questões apresentadas acima, apresentaremos, a seguir, propostas de trabalho a partir da perspectiva da análise linguística na sala de aula. 4 POSSIBILIDADES DE TRABALHO COM ANÁLISE LINGUÍSTICA Diante de tudo o que já foi discutido, podemos afirmar que a prática convencional de ensino da gramática não faz mais sentido quando o objetivo é formar alunos linguisticamente competentes. Em virtude disso, iremos apresentar propostas para uma prática de reflexão linguística desejável, a análise linguística, baseada nos estudos de Mendonça (2006). De acordo com seus esclarecimentos, o termo análise linguística foi criado por Geraldi, em 1984, para denominar uma nova perspectiva de reflexão sobre a língua em oposição ao ensino tradicional. A análise linguística aparece como uma alternativa didática para dar suporte às práticas de leitura e produção de textos, possibilitando uma reflexão ativa e consciente dos fenômenos gramaticais, textuais e discursivos. Mendonça (2006, p. 205) nos esclarece que: [...] O termo análise linguística [...] surgiu para denominar uma nova perspectiva de reflexão sobre o sistema linguístico e sobre os usos da língua, com vistas ao tratamento escolar dos fenômenos gramaticais, textuais e discursivos para se contrapor ao ensino tradicional de gramática, para firmar um novo espaço, relativo a uma nova prática pedagógica [...] Nessa perspectiva, Mendonça (2006) propõe exemplos de atividades que utilizam análise linguística como ferramenta e auxílio para um ensino eficaz. Todas as atividades partem da leitura e produção textual para detectar quais as dificuldades e problemas que serão objeto de estudo de análise linguística na sala de aula. Essas atividades irão culminar com a 13 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 reescrita dos textos em que as dúvidas, provavelmente, estarão sanadas (USO-REFLEXÃOUSO). O texto produzido pelo aluno é uma fonte diagnóstica em que o professor investiga avanços e dificuldades tanto na escrita quanto nas estratégias discursivas. Miranda (2006, p.48) também define uma estratégia que denominou de “hipótese da via-de-mão-dupla”. Segundo ela, a produção de textos feita pelos alunos deve ser articulada com a leitura de diversos gêneros textuais. Além disso, essas atividades devem explorar os conhecimentos que o aluno já possui com os que ele irá adquirir, levando-o ao desenvolvimento da reflexão metalinguística. Isso irá contribuir para a autonomia gradual do leitor e formará estratégias para se obter escritores proficientes. Para essa autora, a condição sine qua non para se formar bons escritores e leitores é a convivência com textos modelares que abarquem diversos gêneros. A autora sustenta que a apropriação dos diversos gêneros textuais (notícia, carta, relato, etc.) irá ampliar a capacidade discursiva do aluno para o uso da língua em qualquer situação. Assim como Miranda (2006), Dolz e Schneuwly (2004) acreditam que o trabalho dos gêneros, por meio da sequência didática, também contribui para a prática de análise linguística. Os autores definem sequência didática como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p.82). Dessa forma, o professor deve selecionar o gênero a ser trabalhado e explorar todos os seus aspectos discursivos e sociais. A primeira produção, conforme sustentam os autores, não pode ser avaliativa, deve-se observar quais aspectos serão considerados nos módulos a partir de uma categorização das dificuldades apresentadas pelos alunos, para serem trabalhadas nos módulos seguintes. Por exemplo, se no trabalho com o gênero propaganda houver dificuldade por parte dos discentes em relação ao uso do imperativo, é importante que o professor elabore atividades reflexivas sobre tal assunto. Com isso, na reescrita, os alunos poderiam refletir sobre a construção do imperativo em seus textos sanando suas dúvidas e dificuldades. Retomando aos esclarecimentos de Mendonça (2006), ela afirma que certos aspectos da língua necessitam de uma orientação mais sistemática e normativa, para que os alunos possam dominá-los e ampliar cada vez mais sua capacidade de compreensão. Assim, ela cita Geraldi: [...] A análise linguística inclui tanto o trabalho sobre as questões tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do texto [...] a 14 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 prática de análise linguística não poderá limitar-se a higienização do texto do aluno [...] limitando-se a correções. Trata de trabalhar com o aluno o seu texto para que ele atinja seus objetivos junto aos leitores a que se destina [...]. (GERALDI, 1997 apud MENDONÇA 2006, p.206). Muitos professores ainda estão arraigados às aulas de gramática convencionais, mesmo sabendo das falhas que esse modelo apresenta, pois possuem dificuldade para trabalhar a prática de análise linguística, ou seja, não sabem articular o sentido do ensino às necessidades apresentadas pelos alunos. Outra questão que chama muita atenção é o ensino das nomenclaturas. Ainda de acordo com Mendonça (2006), o conhecimento delas é fundamental, pois não basta apenas saber, é preciso saber verbalizar o seu saber. A nomenclatura é mais uma ferramenta no processo de aprendizagem, o que não deve acontecer é ela tornar-se objetivo das aulas. O aluno deve sempre buscar desenvolver suas habilidades de leitura e escrita, mas também deve ter acesso às nomenclaturas técnicas, pois são saberes socialmente valorizados. Para exemplificar, a autora propõe uma comparação das diferenças no tratamento de um mesmo fenômeno linguístico, segundo a tradição das aulas de gramática e a proposta de análise linguística. Tomemos como objeto de ensino a concordância verbal. A estratégia mais utilizada é a resolução de exercícios estruturais com frases e períodos para escrita da forma verbal correta. Assim, espera-se que o aluno desenvolva a competência de utilizar as formas verbais corretas e justifique a concordância, explicando a regra prescrita pela gramática normativa. Entretanto, na proposta de análise linguística, tendo o mesmo objeto de ensino, a estratégia seria analisar e comparar textos, principalmente as produções dos próprios alunos, com uma posterior reescrita. Mendonça (2006) sugere até mesmo uma consulta à gramática para compreender por que determinada concordância se faz de certa forma, provando assim, que essa proposta não é excludente. Com isso, espera-se que o aluno perceba a que termo o verbo se refere (qual é o sujeito), para que a concordância esteja em conformidade com a variante mais utilizada. Além disso, espera-se que o discente do ensino médio habitue-se a consultar a gramática com mais autonomia em momentos de dúvida. A mudança na prática pedagógica do ensino da língua é gradual e complexa, e deve ir sendo incorporada, complementando as práticas de leitura e produção de textos. Autores como Possenti (2006), Neves (2002) e os PCN’s-LP também sugerem mais algumas propostas que podem auxiliar os professores em sala de aula. 15 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Conforme visto, os PCN’s-LP adotam uma perspectiva sociointeracionista da linguagem, colocando-se contrário ao ensino tradicional da língua, que se baseia nos compêndios gramaticais. A metodologia proposta por esse documento é que se leve em consideração o saber linguístico do aluno e, assim, verificar o que deve ser desenvolvido, levando sempre em consideração o caráter interativo da língua. O trabalho do professor deve estar centrado em ampliar a linguagem que o aluno já possui e auxiliá-lo a dominar as outras utilizadas em diferentes esferas sociais. Um exemplo de atividade dado é a comparação de diferentes variedades linguísticas. O professor deve mostrar ao aluno o quanto a língua é rica e dinâmica. Antunes (2007) sugere como atividade o trabalho com histórias do Chico Bento, personagem criado por Maurício de Souza. É importante que o aluno tenha consciência de que outras variedades coexistem no país e que nenhuma possui mais valor do que a outra. O professor pode, inicialmente, trabalhar o gênero história em quadrinhos, verificar o conhecimento prévio do aluno, explorar as características do personagem, solicitar aos alunos que reescrevam a história preservando suas características originais, mas que deem outro final, entre outras questões que podem ser abordadas. A autora chama atenção para um fato que, segundo ela, tem sido muito comum, propor exercícios a partir de textos fora da norma culta. Muitos professores pedem aos alunos que passem a fala do personagem para a norma culta. Isso traz a ideia de que uma fala é melhor que a outra, quando, na verdade, como já observamos, a fala de cada um é a marca da identidade cultural do seu grupo. Portanto, essa não seria uma boa prática de análise linguística. Trabalhar com outras variedades seria uma forma de cultivar noções de respeito ao direito que cada um tem de se expressar. Possenti (1996), como já discutido, afirma que não é papel da escola ensinar uma variedade em detrimento da outra, mas sim de criar condições para que os alunos possam aprender as variedades que desconhecem. O autor sustenta a ideia de que se deve estabelecer prioridades de ensino. Um exemplo de atividade sugerida por ele é a comparação de algumas variedades da mesma construção e das alterações em uma oração para analisar os resultados que serão obtidos. Assim, suponha-se que o aluno escreva em um de seus textos uma frase simples como “nós foi pescar”. O autor sugere que o professor deve, a partir disso, escrever essa sequência no quadro e discutir com os alunos: quem as usa tipicamente, em que condições pode ser usada, se pode ser utilizada na escrita e quais as maneiras que há de se dizer a mesma 16 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 coisa. Construções como “nóis foi pescar”, “a gente foi pescar”, “a gente fomos pescar”, “nós fomos pescar” surgiriam no decorrer do diálogo. Ao professor cabe destacar que nenhuma dessas formas deve ser condenada, mas sim, ordenadas de acordo com o critério de aceitabilidade, que deverá estar relacionado com a situação social que o discente se encontrar. Essa seria uma aula de gramática em que o docente não estaria usando uma terminologia técnica, mas ensinando a variedade mais adequada sem estigmatizar e humilhar o usuário das formas mais populares. Neves (2002) defende que a língua deve ser tratada na situação de produção e no contexto comunicativo. Ela acredita que as escolas devem oferecer experiências e vivências para o aluno a fim de que ele saiba produzir seus textos conforme a situação comunicativa desejada. A autora defende a ideia, assim como outros autores, de que os elementos gramaticais devem ser discutidos dentro de um texto, para que os alunos possam saber seu valor e fazer bom uso deles em suas produções. Essas são as principais ideias que oferecemos para que as mudanças no ensino da gramática sejam possíveis e visualizarmos esse novo ideal de ensino, afinal, refletir sobre a linguagem é algo que fazemos o tempo todo, mesmo que assistematicamente. Em meio à necessidade de mudanças, às dificuldades encontradas em implementá-las, à dificuldade do professor em encontrar uma metodologia de ensino da língua que seja realmente significativa para o seu aluno, a prática de análise linguística pouco pode avançar. Há uma necessidade de tornar os objetivos mais claros, mostrar aos professores que é possível desmistificar a ideia de que o português é difícil e adotar uma nova postura de ensino. É imprescindível, também, saber que a prática de análise linguística não se trata de gramática contextualizada versus ensino a partir de textos e sim uma consonância entre os dois. Nesse percurso é de suma importância que a competência comunicativa do aluno seja desenvolvida por meio de um trabalho eficaz e significativo com a leitura, escrita, escuta e produção de textos. Não separadamente, mas em um conjunto de conhecimentos úteis em nossas interações diárias. Por fim, citando Mendonça (2006, p. 225) “que a língua seja, para os alunos, cada vez menos misteriosa, no dizer de Drummond, sem deixar de ser fascinante. Novos olhares, outros objetos, práticas diferentes, enfim”. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 17 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Neste trabalho, buscamos, inicialmente, apresentar algumas considerações sobre a linguagem e a gramática. Assumimos uma postura contrária daqueles que acreditam que a língua é fixa e estática, pois isso não corresponde à realidade de nossas práticas sociais. Definimos as concepções de linguagem que permeiam o trabalho do professor e as concepções que se tem sobre gramática. Assim, observamos que nenhuma gramática é neutra, todas apontam para uma visão de língua e que não basta sabê-la para falar e escrever bem, tudo irá depender do contexto social em que nos encontramos. Procuramos demonstrar como a gramática pode ser mais ampla do que vem sendo tratada nas aulas de língua materna. Não defendemos sua exclusão, pois como já observamos, não existe língua sem gramática, tampouco é possível produzir ou entender qualquer texto sem que se saiba um pouco de gramática. Assim, apoiamo-nos principalmente nos conceitos de Travaglia (2002), procuramos definir os tipos de gramática mais encontrados, pois acreditamos que é fundamental que o docente conheça-os para se posicionar e até mesmo se orientar da forma mais adequada. Assim, defendemos a valorização de um trabalho articulado de ensino-aprendizagem da língua diferente do tradicional. Assumimos uma postura da língua como algo que corresponde à realidade da sua diversidade. Sabemos que muitos professores não sabem, ainda, o que fazer diante dessas novas mudanças e acabam não produzindo aulas que sejam, de fato, significativas na vida dos alunos. Não queremos com isso deixar a impressão de que é proibido ensinar gramática. A crítica que esse trabalho traz é a insistência que se tem em reproduzir regras, nomenclaturas e conceitos sem nenhum fundamento, ou seja, sem considerar o uso efetivo da língua em diversas situações sociais, vetando uma reflexão inteligente sobre a própria língua. Discutimos também a questão da variedade linguística na escola. Muitos professores não sabem que postura adotar frente a essas variedades e muitas vezes acabam ridicularizando o aluno que possui um falar considerado “desprestigiado” taxando sua fala de errada. Como observamos, essa questão do erro só é válida quando o falante se vale de uma fala ou escrita impróprias para a situação de uso em questão. Assim, deve-se respeitar a fala do outro e oferecer-lhe outra variedade, para que ele possa se adequar melhor frente a novas situações, sem impô-la. Afinal, como nos esclarece Possenti (1996), cabe à escola proporcionar condições para que o aluno tome conhecimento da norma dita culta. 18 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 Constatamos que diante de tantos resultados insatisfatórios que vêm sendo apresentados pelos alunos nas diversas avaliações propostas pelo governo, e nos altos índices de dificuldade em leitura e escrita, algo tem que ser modificado no que diz respeito ao ensino da língua materna. Assim, surgem dúvidas sobre o seu ensino, principalmente por parte dos professores que não sabem ao certo o que fazer das suas aulas de língua portuguesa, que postura adotar e para aonde direcionar sua metodologia. Portanto, respondendo a problemática apresentada, entendemos que a análise linguística reenquadra o ensino da gramática, priorizando uma reflexão linguística, levando em consideração os diversos usos da língua e as estratégias discursivas que devemos dominar para uma efetiva participação social. A proposta dessa nova perspectiva de ensino é um uso mais consciente, uma abordagem mais reflexiva de se trabalhar com a língua e a linguagem de forma que abarque a grande diversidade desses fenômenos. Atividades como leitura, produção de textos e reescrita não podem ser deixadas de lado em detrimento das questões gramaticais. O objetivo dessa prática é que os alunos desenvolvam sua competência comunicativa para saberem se portar em qualquer situação. Oferecemos aos professores, baseando-nos em alguns autores, uma pequena mostra do que pode vir a ser o trabalho com a língua e a linguagem na sala de aula. No entanto, acreditamos que a superação dessa problemática pressupõe ações conjuntas do governo em oferecer cursos de capacitação que orientem melhor o trabalho do docente, mostrando-lhes como trabalhare, melhor ainda, que essa nova metodologia seja possível e viável. Portanto, este trabalho tem a pretensão de mostrar que existe outra forma de trabalhar a língua mais significativamente. Entretanto, como esse assunto ainda é bastante polêmico e poucos acreditam na sua eficácia, espera-se que muitos outros estudos possam vir a contribuir para novas discussões e traduzir-se em pressupostos teóricos mais claros nos currículos oficiais. 19 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 LINGUISTIC ANALYSIS AND PORTUGUESE LANGUAGE TEACHING: IN SEARCH OF DISCURSIVE COMPETENCE ABSTRACT: The present work develops some reflections on linguistic analysis as a proposal for grammar teaching in the schools, since the last two decades of the twentieth century were a period of continued criticism towards mainstream grammar and its teaching. This paper is aimed at pointing out the differences between linguistics-oriented and grammaroriented teaching. Besides, concrete proposals are aimed to be presented for effective work based on linguistic analysis in the schools. Regarding methodology, exploratory documental research was carried out, based on authors such as Travaglia (2002), Mendonça (2006), Possenti (1996 ) and Bagno (1994), among others. Documental research was also developed so as to allow for some proposals for the practice of linguistic analysis in the Portuguese language classes, showing that it is possible to propose a productive and convenient approach to grammar teaching aimed at developing communicative competence. KEY-WORDS: Portuguese Language Teaching. Grammar Teaching. Linguistic Varieties. Linguistic Analysis. REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. ______. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BAGNO, Marcos. A Norma Oculta: Língua & Poder na sociedade Brasileira. 2 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. ______. Preconceito linguístico o que é, como se faz. 27 ed. São Paulo: Loyola, 1994. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto/Secretaria de Educação do Ensino Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa, v2. Brasília, 1997. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: ROJO, Roxane Helena Rodrigues; CORDEIRO, Glaís Sales (orgs). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. FRANCHI, C. Mas o que é mesmo gramática? São Paulo: Parábola, 2006. 20 Revista Educação em Destaque (ISSN 1983-6686), 2014, Vol 5, N 1: 1-21 KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. MENDONÇA, Márcia. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia. Português no ensino Médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 109-226. MIRANDA, Neusa Salim. Reflexão metalinguística do ensino fundamental. Belo Horizonte: Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita. Faculdade de Educação. UFMG, 2006. NEVES, Maria Helena Moura. A gramática na escola. São Paulo: Contexto, 2002. PERINI, Mário Alberto. Gramática descritiva do português. 2 ed. São Paulo: Ática, 1996. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 8 ed. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 1996. SOARES, Magda Becker. Ensinando comunicação em língua portuguesa no 1º grau – Sugestões metodológicas 5ª a 8ª séries. Rio de Janeiro, MEC/Departamento de Ensino Fundamental/FENAME TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2002. VAL, Maria da Graça Costa; VIEIRA, Martha Lourenço. Língua, texto e interação. Belo Horizonte: Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita. Faculdade de Educação. UFMG, 2005. 21