Muito antes do SPHAN: a política de patrimônio histórico no Brasil
(1838-1937).
José Ricardo Oriá Fernandes1
Resumo: Pretendemos com este breve ensaio mostrar que a gênese da construção da
memória no País se deu a partir da formação do estado nacional, mais precisamente com a
criação de duas instituições culturais- o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
e o Arquivo Nacional, ambas de 1838. Costuma-se atribuir ao Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado em 1937 durante a Era Vargas na gestão
do Ministro Capanema, o papel pioneiro na implementação da política patrimonial.
Esquece-se, entretanto, a atuação do Poder Público dos estados e do Poder Legislativo
federal na elaboração de leis tendentes à preservação de nosso acervo cultural nas primeiras
décadas da República.
Palavras-Chave: Política Cultural- Patrimônio Histórico- Memória e Identidade Nacional.
Á guisa de introdução
Francisco Foot Hardman, em artigo intitulado “Antigos Modernistas”, faz um
questionamento preciso acerca da produção historiográfica
que consagrou a idéia de
Modernismo no Brasil, a partir do marco- “Semana de Arte Moderna”, em 1922,
esquecendo-se, portanto, de outros aspectos socioculturais da vida nacional que já se
delineavam desde a segunda metade do século XIX.
Diz ele: “...os sentidos do modernismo, como tendência geral, foram também
homogeneizados a partir de valores, temas e linguagens que fizeram a Semana de Arte
Moderna, em São Paulo, no ano de 1922. Boa parte da crítica e das histórias culturais e
literárias produzidas, desde então, constituíram modelos de interpretação, periodizaram,
releram o passado cultural do país, enfim, com as lentes do movimento de 1922 (...), tais
1
Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (1992-1994). Mestre em Direito
Público pela Faculdade de Direito da UFC. Doutor em História da Educação pela Universidade de São Paulo
(USP). Atualmente, é Consultor Legislativo da área de educação e cultura da Câmara dos Deputados, onde
tem se especializado no assessoramento técnico às questões de política cultural. E-mail: [email protected]
2
esquemas, em flagrante anacronismo, ocultaram processos culturais relevantes que se
gestavam na sociedade brasileira, a rigor, desde a primeira metade do século XIX.” 2
A presente comunicação pretende, no contexto desta perspectiva, fazer o mesmo em
relação à idéia, também consagrada, de que a construção da memória nacional, se deu a
partir da atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN),
herdeiro da tradição modernista, a partir dos anos 30 do século passado, e que elegeu o
barroco colonial como ícone da identidade nacional.
A gênese da construção da memória em nosso País está ligada à própria formação
do estado nacional no século XIX. Após a independência política do Brasil, a intelligentsia
nacional, assentada sobretudo no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sob a
proteção do imperador D. Pedro II, irá promover a tarefa de construção de nossa história.
O IHGB, “lugar de memória” por excelência, realizará concurso para a escrita da
história nacional 3 e incentivará em seus sócios a realização de viagens e estudos no sentido
de arregimentar a documentação dispersa em arquivos europeus. É também deste período a
criação e o efetivo funcionamento do Arquivo Nacional (1838), já previsto na primeira
Constituição do Império, que tinha como tarefa básica a sistematização da documentação
indispensável à construção do passado (art. 70 da Constituição de 1824).
Como se vê, já há, desde meados do século XIX uma preocupação com a construção
da memória nacional que se intensifica nos anos 20 com iniciativas de projetos de lei de
parlamentares e criação de órgãos estaduais de proteção ao patrimônio histórico. Exemplo
emblemático desse processo é a criação da “Inspetoria dos Monumentos Históricos
Nacionais” (1934), ligada à estrutura do Museu Histórico Nacional, sob a direção do
historiador cearense Gustavo Barroso.
Memória, História e Identidade Nacional
A questão da identidade nacional- o que somos e o que singulariza o Brasil em meio
2
HARDMAN, Francisco F. “Antigos Modernistas”. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 290.
3
O primeiro concurso proposto pelo IHGB consistia em apresentar um projeto de História do Brasil – “Como
se deve escrever a História do Brasil”. O vencedor foi o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp Von
Martius. A partir deste trabalho, o tema da miscigenação racial passa a ser bastante recorrente no pensamento
social brasileiro.
3
a outras nações do mundo - é algo que permeia o pensamento social brasileiro, desde do
século XIX até os dias de hoje, e tem sido objeto de análises e debates, sobretudo de
antropólogos, historiadores e demais cientistas sociais.
Há momentos de nossa História em que esta discussão acerca da nacionalidade foi
bastante acentuada e ocupou a atenção de intelectuais e do próprio governo numa tentativa
de se forjar uma determinada visão do País para os brasileiros e o restante do mundo. Aliás,
o tema da identidade nacional tem sido bastante recorrente na produção das Ciências
Sociais em nosso país, mudando-se apenas as categorias analíticas em que essa temática é
abordada.
Assim, na segunda metade do século XIX, em meio às teorias raciais que grassavam
na Europa, o Brasil era visto como um grande laboratório, despertando, sobretudo, o
interesse de naturalistas estrangeiros que viam na miscigenação racial e na riqueza de nossa
fauna e flora, elementos para a confirmação ou negação de suas teses científicas 4.
Essa discussão será também realizada pela inteligência nacional. “Toda a geração
de intelectuais, jornalistas e pensadores brasileiros que viu nascer a República esforçouse por forjar um conhecimento sobre o Brasil em todas as suas peculiaridades, pois
aquele momento, que se seguiu ao advento da República, parecia uma rara, e talvez
única, oportunidade histórica de o país se pôr no nível do século, integrando-se de uma
forma definida no mundo ocidental.” 5
Em pleno século XIX, logo após nossa emancipação política, vão ser criadas
instituições educacionais e científicas no país, cujo objetivo primordial era formar os
quadros da burocracia estatal, mas que, ao abrigar parte influente da inteligência nacional,
serviu para definir o que era o “nacional”. Assim, tivemos os Institutos Históricos, os
Museus Etnográficos, as Faculdades
de Medicina, as Escolas Politécnicas e,
principalmente, as Faculdades de Direito, que irão fornecer os quadros da elite burocrática
do Império e dos primeiros anos da República 6.
4
Ver NAXARA, Márcia Regina Capelari. “O Brasil no inventário do mundo: literatura de viagens” In:
Cientificismo e Sensibilidade Romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século
XIX. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004.
5
SALIBA, Elias Thomé. “A Dimensão Cômica da Vida Privada na República” In: SEVCENKO, Nicolau
(org.). História da Vida Privada no Brasil. República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Cia.
das Letras, 1998, p. 296.
6
SCHWARCZ, Lília M. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (18701930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
4
Nessas instituições, a grande discussão norteadora a ocupar o centro das atenções
dos intelectuais e da própria elite política deu-se a partir do seguinte questionamento: “É
possível tornar uma Nação Mestiça em uma Civilização nos Trópicos?” Tratava-se, pois,
de forjar uma identidade nacional para o recém-formado estado brasileiro e, ao mesmo
tempo, discutir a viabilidade ou não da nação. Esse debate teve como um de seus fóruns
privilegiados o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e que, por sua atuação na
construção de um modelo historiográfico, será um dos órgãos precursores da política de
preservação do patrimônio histórico nacional.
O IHGB: lugar de memória nacional
A gênese da construção da memória nacional está ligada à própria formação do
estado-nação brasileiro, como forma de garantir a unidade territorial, após o processo de
nossa independência política. Essa tarefa inicial coube ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) e seus congêneres nas províncias do Império.
Após a Independência, coube à História a criação de um corpo de representações
simbólicas que estabelecesse o perfil da Nação brasileira e servisse à constituição de sua
identidade nacional. Assim, neste contexto histórico-social, surgem importantes instituições
culturais no País e o governo monárquico, em busca de sua legitimação, trataria de criar
uma estrutura que favorecesse o desenvolvimento da produção historiográfica.
Desde seu início, o estado imperial brasileiro colocou para si a tarefa de construção
de uma memória nacional, através da guarda dos registros escritos e iconográficos que
documentassem a nossa história. Assim, já na Constituição do Império, de 1824, havia a
previsão legal para a criação do Arquivo Nacional (art. 70). No entanto, sua instalação só se
deu no ano de 1838, na mesma época em que surge, por iniciativa da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na
então capital do Império.
A criação do IHGB se dá num momento particular da História do País. Logo após a
independência do Brasil (1822) e ao Reinado de D. Pedro I (1822-1831), o País viu sua
unidade territorial ser ameaçada em meio à eclosão de uma série de movimentos e
5
rebeliões, alguns de cunho separatista, que colocavam em cheque a própria integridade
física da nação. Havia, pois, a necessidade premente de se formular uma explicação do País
que mantivesse sua extensa unidade territorial e que, ao mesmo tempo, fortalecesse o
processo de centralização político-administrativa do Estado monárquico.
Pensado nos moldes de uma academia, semelhante às do Iluminismo europeu, tendo
como projeto traçar a gênese da nacionalidade brasileira, o IHGB tinha por finalidade
"coligir, metodizar e guardar"
7
documentos, bem como escrever a "história nacional
como forma de unir" 8. Assim, a função até então reservada ao Arquivo Nacional acaba
por ser desenvolvida pelo Instituto, que passa a empreender e incentivar visitas em arquivos
estrangeiros, com a finalidade precípua de coletar documentos para se escrever a História
do País:"O Instituto nomeava membros honorários estrangeiros, que prometiam
procurar nos arquivos e bibliotecas europeus documentos relativos ao Brasil. É o caso de
Teodoro Monticelli, que de Nápoles se oferecia a pesquisar para o Instituto. Era o caso,
também, de Caetano Lopes de Moura, que, pensionista de D. Pedro II, examina as
bibliotecas de Paris e depois foi à Bélgica e à Holanda, enviando para o Instituto
Histórico os resultados de suas pesquisas." 9
Na verdade, o grande objetivo dessa instituição de memória era construir a História
da nação, recriar um passado homogêneo, solidificar mitos de fundação, ordenar fatos
históricos, constituir a galeria dos "heróis nacionais", através do estudo, pesquisa e
elaboração de biografias, capazes de fornecer às gerações futuras exemplos de civismo,
patriotismo e devoção à Pátria: "Reunindo biografias capazes de fornecer exemplos às
gerações vindouras, sistematizava uma galeria de heróis nacionais. Os heróis
representavam pessoas exemplares ou paradigmáticas da nacionalidade, cuja função
precípua consistia em, pela repetição de suas histórias, transmitir ensinamentos à
população em geral. Com isso, buscava-se garantir a homogeneidade de pensamento no
interior da nação, no sentido de congregar em torno de um referencial comum grupos
7
SCHWARCZ, Lília M. Os guardiões de nossa história oficial. São Paulo: IDESP, 1989, p. 04.
GUIMARÃES, Manoel L. S. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro” In: Estudos Históricos, v. 1, nº 1, 1988, p. 17.
9
RODRIGUES, José Honório. “A Evolução da pesquisa Pública Histórica Brasileira” In: A pesquisa
Histórica no Brasil. 4ª ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982, p. 51.
8
6
sociais altamente diversificados culturalmente." 10
Nascia dessa forma a História do Brasil que, como pretendiam seus construtores, era
única e objetivava legitimar o estado monárquico em seu processo de centralização política.
Isso porque a produção historiográfica do IHGB refletia a posição de seus membros, grupo
formado pela aristocracia rural, portadora de títulos nobiliárquicos, vinculada ao poder, e
por intelectuais, parte deles plenos de idéias patrióticas inspiradas no Romantismo. Voltada
ao estudo do passado colonial, em especial dos momentos fundadores da nação, como o
Descobrimento (1500), e instituidores da identidade nacional, como a Independência
Política (1822), a História ali produzida se conformaria enquanto "tradição" 11 .
As relações do Instituto com o Imperador D. Pedro II reforçaram uma produção
historiográfica que deu ênfase sobretudo aos aspectos político-institucionais, priorizou a
figura do Estado-nação como sujeito privilegiado do fazer histórico, através da exaltação
das ações heróicas, narradas em discursos laudatórios da Pátria e legitimadores das práticas
políticas do Império.
Por formularem uma História para a nação e desenvolverem uma nomenclatura
própria na Historiografia brasileira, consideramos os Institutos Históricos como "lugares de
memória"
12
e precursores da política patrimonial. Assim, a História que orientou grande
parte do Patrimônio nasceu nos Institutos Históricos, a partir de meados do século XIX, e
serviu de auxiliar na tarefa de construir a Nação ou para ressaltar a importância de uma
determinada região no contexto geral do País.
Divulgada através do ensino, a História Oficial celebrativa foi aprendida por
gerações sucessivas ao mesmo tempo que inspirou, posteriormente, a composição do
universo do que viria a ser chamado "Patrimônio Histórico e Artístico Nacional".
Essa idéia é compartilhada por poucos
10
historiadores. O brazilianista Daryle
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 180.
11
Conforme HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984.
12
Conforme NORA, Pierre. "Entre Memória e História: a problemática dos lugares" In: Projeto História:
Revista do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP. São Paulo, nº 10, dez. 1993, p. 13. Para este
historiador francês, “Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações,
pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, por que essas operações não são naturais.(...) Os lugares de
memória são, antes de tudo, restos."
7
Williams, ao analisar a política cultural do Governo Vargas:, afirma que: "Since its
foundation, the IHGB has been an enlightened academic institution which tried to
represent the history of white, European civilization living in a tropical setting. Nationbuilding through the creation and shaping of a national historical memory was at the
core of the IHGB's mission."13
A concepção tradicional, já consolidada no meio acadêmico, é a de que a política de
preservação do patrimônio histórico em nosso país nasce com a criação do antigo SPHAN
(hoje IPHAN), herdeiro da tradição modernista dos anos 20. Veremos, pois, que além do
pioneiro IHGB, outras instâncias da sociedade e do Poder Público em alguns estados já se
preocupavam com a preservação dos bens culturais no País.
A Idéia de Patrimônio Histórico no Brasill
Respaldados no sentimento nacionalista, em meados da década de 10 do século XX,
alguns setores da sociedade começaram a se preocupar em preservar bens artísticos e
arquitetônicos representativos da cultura brasileira. Na prática, essas manifestações
visavam conter a destruição e evasão de obras de arte para o exterior, sobretudo as de estilo
barroco, como conseqüência da expansão do mercado internacional de antigüidades.
Por outro lado, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX,
presenciou-se a remodelação de algumas cidades como Salvador, Recife, São Paulo e Rio
de Janeiro , que provocou o desaparecimento de antigas edificações coloniais.
A discussão acerca da preservação da memória nacional chega ao Parlamento. Entre
os anos de 1917 e 1925, foram apresentadas proposições legislativas, no âmbito da Câmara
dos Deputados, com o objetivo de se criar órgãos de proteção ao Patrimônio Histórico
nacional.
A proposta pioneira de defesa de bens culturais partiu do Instituto Histórico e
Geográfico da Bahia, através de seu sócio, Wanderley Pinho, em 1917, o que bem revela o
papel que os Institutos Históricos tiveram em todo o país como guardiões pioneiros da
memória nacional. Essa proposta não previa a proteção legal do Estado. A tarefa de
13
WILLIAMS, Daryle. “Ad perpetuam rei memoriam: The Vargas Regime and Brazil’s National Historical
Patrimony, 1930-1945” In: Luso-Brazilian Rewiew, volume 31, number 2, winter 1994, p. 47.
8
preservação ficava a cargo de uma comissão de 11 membros do próprio Instituto. Essa
Comissão deveria apresentar relatório anual de seu trabalho e a organizar o programa de
sua ação bem como, no prazo de um ano, elaborar um minucioso catálogo de tudo o que
constitui o patrimônio histórico-artístico da Bahia. Essa proposta, infelizmente, não
produziu os resultados almejados.
Outra iniciativa partiu do Professor Alberto Childe, conservador de Antiguidades
Clássicas do Museu Nacional, que, em 1920, a pedido de Bruno Lobo, então presidente da
Sociedade Brasileira de Belas Artes, elaborou um anteprojeto de lei de proteção ao
Patrimônio Histórico do País. Por sua formação em arqueologia, Childe deu ênfase à
proteção dos bens
arqueológicos em detrimento dos históricos, além de propor a
desapropriação de todos eles. A exemplo da proposta anterior, o anteprojeto não logrou
êxito.
Em 1923, a questão da preservação do Patrimônio Histórico entrou novamente em
pauta, porém, vinculada diretamente ao Poder Federal. Luís Cedro, representante de
Pernambuco, apresentou à Câmara dos Deputados um projeto para a criação da
"Inspetoria dos Monumentos Históricos dos Estados Unidos do Brasil". Dois outros
projetos foram encaminhados à Câmara dos Deputados em 1924 e 1925 por parlamentares
mineiros, Augusto de Lima e Jair Lins, respectivamente, ambos sem sucesso. A partir de
então, as iniciativas em prol da preservação do Patrimônio Histórico passaram da órbita
federal para a esfera estadual.
Na verdade, a possibilidade de aprovação desses projetos de lei no âmbito do Poder
Legislativo Federal era mínima, uma vez que os mesmos conflitavam, no âmbito da
constitucionalidade, com os princípios liberais presentes na Constituição de 1891, que
garantiam ao cidadão o pleno direito de propriedade, não podendo haver interferência
estatal neste domínio.
Por possuírem notável acervo de bens culturais coloniais, Bahia e Pernambuco são
os estados pioneiros na criação de órgãos regionais de proteção ao Patrimônio Histórico
local. Em 1927, é criada na Bahia a "Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais", o
mesmo ocorrendo em Pernambuco, no ano seguinte.
No entanto, as restrições impostas pela Constituição de 1891 e pelo Código Civil
então vigente, que asseguravam o princípio do direito de propriedade, aliadas à ausência de
9
dispositivos de sanção aos que cometiam atentado à integridade do patrimônio, fariam
dessas Inspetorias órgãos de ação limitada na proteção de bens locais. Sua criação, porém,
revelava o desenvolvimento de uma disposição preservacionista do Poder Público em dois
dos estados em que os bens culturais sofriam mais diretamente os efeitos da evasão e da
ação destruidora do tempo.
Em agosto de 1930, um novo projeto de lei federal foi apresentado à Câmara por
Wanderley Pinho, agora Deputado Federal pela Bahia. Entretanto, sua discussão e votação
foram impedidas pelos acontecimentos políticos de outubro, que desaguaram na Revolução
de 30 e na instalação do governo provisório de Getúlio Vargas.
A partir dos anos 30, inicia-se um processo de centralização política que levará a
formação de um Estado de viés nitidamente autoritário. A construção da nacionalidade
adquire novos contornos, com a comemoração de efemérides nacionais e a edificação de
monumentos cívicos- prática esta já iniciada desde os anos 20, cujo ponto alto foram as
festas alusivas ao Centenário da Independência do Brasil. 14
As iniciativas oficiais do Governo Vargas começariam a dar destaque ainda a
determinados "lugares de memória", em que ocorreram grandes feitos "heróicos" de nosso
passado. Assim é que o Decreto nº 22.928, promulgado a 12 de julho de 1933, por Getúlio
Vargas, eleva a cidade de Ouro Preto à categoria de Monumento Nacional.
A nosso ver, com essa medida legal, o governo não só reconhecia o valor simbólico
do barroco mineiro na formação da cultura nacional mas, sobretudo, reforçava o imaginário
republicano, uma vez que a antiga cidade de Vila Rica, hoje Ouro Preto, fora palco do
primeiro movimento de libertação colonial que propunha a implantação de uma República.
Além do que a imagem do seu principal líder, Tiradentes, já consagrado pelos republicanos,
era legitimado como mártir e herói nacional 15.
Em 1934, um novo decreto governamental- o de nº 24.375- iniciou a organização de
um serviço de proteção aos monumentos históricos e às obras de arte tradicionais do País.
14
Sobre a construção de monumentos cívicos e comemorativos, consultar nosso trabalho ORIÁ, Ricardo. “O
Ceará de pedra e bronze: os monumentos históricos em praça pública” In: CHAVES, Gilmar (org.). Ceará
de Corpo e Alma: um olhar contemporâneo de 53 autores sobre a Terra da Luz. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2002. Já as comemorações do Centenário da Independência foram analisadas por SANDES, Noé
Freire. A Invenção da Nação: entre a Monarquia e a República. Goiânia: Editora UFG, 2000.
15
A construção de Tiradentes como “herói nacional” é analisada por CARVALHO, José Murilo de.
“Tiradentes: um herói para a República” In: Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
10
A “Inspetoria de Monumentos Nacionais”, chefiada pelo então Diretor do Museu
Histórico Nacional, Gustavo Barroso, contava apenas com um arquiteto, Epaminondas
Vieira de Macedo, e realizou poucas obras de conservação na cidade de Ouro Preto. Teve
curta trajetória, pois suas funções foram posteriormente assumidas pelo SPHAN 16.
Pioneiramente, a nova Constituição republicana de 1934, vai trazer em seu bojo a
proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico nacional, consagrado como princípio
constitucional, em seu art. 148: "Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e
animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral,
proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país, bem como
prestar assistência ao trabalhador intelectual."(grifos do autor)
O interesse de segmentos da sociedade pela defesa do Patrimônio Histórico e
Artístico, manifesto durante a década de 20, com o apoio da vanguarda modernista, só
logrou sensibilizar o Poder Público quando esta medida passou a ser considerada um
elemento importante no amplo quadro de manipulação dos recursos simbólicos necessários
à legitimação de uma nova ordem política- o Estado Novo.
A Invenção do Passado Nacional: o SPHAN e o Barroco Colonial
É na década de 30 do século passado, que se iniciam ações mais consistentes e
menos pontuais no tocante à preservação de nossa memória histórica em nível nacional.
Assim, a proteção ao patrimônio começaria a se efetivar a partir de uma iniciativa direta do
Poder Executivo, na pessoa de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde do
Governo Vargas,.
Em 1936, Capanema delegou ao escritor e intelectual modernista, Mário de
Andrade, a tarefa de elaborar um anteprojeto de lei visando à preservação de nosso
patrimônio. É o próprio Capanema que assim se refere: "Logo me ocorreu o caminho.
Telefonei a Mário de Andrade, então Diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura
de São Paulo. Expus-lhe o problema e lhe pedi que me organizasse o projeto. Mário de
Andrade, com aquela sua alegria adorável, aquele seu fervor pelas grandes coisas,
16
MAGALHÃES, Aline Montenegro. “A curta trajetória de uma política de preservação: a Inspetoria dos
Monumentos Nacionais” In: Anais do Museu Histórico Nacional. vol. 36, 2004.
11
aquela sua disposição de servir, queria apenas duas semanas para o trabalho. Decorrido
o prazo, eis Mário de Andrade no Rio de Janeiro, trazendo o projeto." 17
Ao tomar essa iniciativa, o Ministro Gustavo Capanema
18
afirmava a posição do
Estado enquanto agente promotor da cultura e legitimava a competência da "intelligentsia"
nacional, oriunda sobretudo do movimento modernista, junto ao Estado, para a criação de
novos campos simbólicos para a construção da identidade da nação.
O texto por Mário sugerido, bastante avançado para a época, pois incorporava ao
conceito de patrimônio artístico as manifestações populares e os bens culturais imateriais,
sofreu injunções políticas no Ministério da Educação e somente parte dele é aproveitado
posteriormente na edição do Decreto-Lei nº 25/37, já no contexto ditatorial do Estado
Novo (1937-1945).
O Decreto-Lei nº 25, assinado por Getúlio Vargas em 30 de novembro de 1937,
viria organizar o trabalho do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), que, integrando a estrutura burocrática do Ministério da Educação e Saúde,
funcionava a título experimental desde janeiro daquele ano. Esse diploma legal criava,
também, a figura jurídica do tombamento como instrumento tutelar de preservação aos bens
culturais. Estava, portanto, institucionalizada a política federal de proteção ao Patrimônio
Histórico nacional.
Com o SPHAN, estava criado um novo campo de representações simbólicas na
construção da identidade do estado-nação representado pelo "Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional".
Considerações finais
No decorrer deste ensaio, tentamos evidenciar que os marcos de periodização da
política de Patrimônio Histórico no Brasil tentam construir uma determinada memória, em
que sobressai a atuação do SPHAN, esquecendo-se outras ações preservacionistas
17
CAPANEMA, Gustavo. “Rodrigo, espelho de critério” In: A Lição de Rodrigo. Recife: Amigos do
DPHAN, 1969, p. 41.
18
Sobre a atuação de Capanema à frente do Ministério da Educação e Saúde, e sua influência na
implementação de uma política educacional e cultural durante o Regime Vargas, consultar os trabalhos
SCHWARTZMAN, Simon et al. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra: São Paulo: EDUSP,
12
anteriores ao trabalho desta instituição federal.
Na verdade, o SPHAN, ao privilegiar o instrumento jurídico do tombamento em sua
política preservacionista, consagrou uma memória nacional vinculada apenas a
determinados segmentos da sociedade e a um estilo arquitetônico predominante, no caso, o
barroco.
Por força da legislação ainda vigente (Decreto-Lei nº 25/37), o conceito de
Patrimônio Histórico está restrito ao "conjunto de bens móveis e imóveis existentes no
país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico". (grifos do autor)
Os conceitos de monumentalidade do bem e de excepcionalidade de seu valor
nortearam, na prática, a política de preservação do Patrimônio Histórico no País e em
diversos Estados e Municípios da federação brasileira, por força da estrutura de poder
centralizador, imposto pelo Estado Novo (1937-1945). Priorizou-se, assim, o patrimônio
edificado e arquitetônico, a chamada "pedra e cal", em detrimento de outros bens culturais
significativos, mas que, por não serem representativos de uma determinada época ou
ligados a algum fato histórico notável ou pertencentes a um estilo arquitetônico relevante,
deixaram de ser preservados e foram relegados ao esquecimento e até destruídos por não
terem, no contexto dessa concepção histórica, valor que justificasse a sua preservação.
O mais sério é que essa política de Patrimônio Histórico levada a cabo pelo então
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), desde a sua criação em
1937 até o final dos anos 60 , deixou um saldo de bens tombados, sobretudo imóveis,
referentes aos setores dominantes da sociedade brasileira. Preservaram-se as Igrejas
Barrocas, os Fortes Militares, as Casas-Grande e os Sobrados Coloniais. Esqueceram-se, no
entanto, de se preservar, também, as Senzalas, os Quilombos, as Vilas Operárias e os
Cortiços.
Essa política de preservação que norteou a prática do SPHAN objetivava passar a
idéia de uma memória mítica, de um passado homogêneo e uma História sem conflitos e
contradições sociais. A concepção predominante era a de se construir um passado unívoco,
1984 e GOMES, Ângela de Castro (org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2000.
13
forjar uma memória nacional única para o País, excluindo as diferenças e a riqueza de nossa
pluralidade cultural, evidenciada através de outras matrizes étnicas que contribuíram na
formação do “nacional”.
Em síntese, podemos afirmar que, no Brasil, a preservação do Patrimônio Histórico
nasceu sob a égide estatal, ou seja, em última instância, foi quase sempre o Poder Público
quem determinou o que deveria ou não ser preservado, o que deveria ser lembrado ou
esquecido. Construiu-se uma memória nacional oficial, excludente e celebrativa dos feitos
dos “heróis nacionais”. Privilegiou-se o barroco como ícone da identidade nacional e
excluiram-se outros estilos estéticos, como o neo-clássico, o art-nouveau, e o ecletismo.
Elegeram-se determinados bens como representativos da memória nacional em detrimento
de outros, que pudessem mostrar a diversidade cultural do País.
Referências Bibliográficas:
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de
consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
CAPANEMA, Gustavo. “Rodrigo, espelho de critério” In: A Lição de Rodrigo.
Recife: Amigos do DPHAN, 1969.
CARVALHO, José Murilo de. “Tiradentes: um herói para a República” In: Formação
das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
GOMES, Ângela de Castro (org.). Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2000.
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a política de patrimônio histórico no Brasil