UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL: CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS FRANCIELE CASAGRANDA METZ Frederico Westphalen, fevereiro de 2013. FRANCIELE CASAGRANDA METZ PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL: CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS Dissertação apresentada ao curso de PósGraduação em Letras – área de Literatura Comparada, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras – Literatura Comparada. Orientadora: Profª Drª Maria Thereza Veloso Frederico Westphalen, fevereiro de 2013. RESUMO Este trabalho apresenta algumas reflexões analítico-discursivas sobre o poder. A análise teórica tem como pressuposto a Análise do Discurso (AD), de linha francesa, a(s) PosiçõesSujeito (PS) ocupadas pelo sujeito discursivo nos recortes discursivos representativos sobre a polícia, a milícia e a política, enfim o sistema que engloba essas esferas do poder. A atenção se volta para o discurso e não mais para o sujeito como dono de sua fala, pois os processos discursivos não têm sua origem no sujeito, por mais que se realizem fundamentalmente nesse sujeito.O corpus é composto por recortes discursivos fílmico-imagéticos (RDF-I), tomados do filme Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro (2010), de José Padilha. A proposta é relevante pela possibilidade de desnudar, pela análise de elementos imagéticos presentes no discurso fílmico, algumas das diversas formas de autoritarismo que perpassam o tecido social, oriundas de formações discursivas específicas. Palavras-chave: Formação Discursiva. Posição-sujeito. Polícia. Milícia. Política. ABSTRACT This paper presents some analytical and discursive reflections about power. Theoretical analysis presupposes Discourse Analysis (DA), French line, the Subject Positions (SP) occupied by the discursive subject in representative discursive excerpts of the police, militia and politics, in short, the system that comprises these spheres of power. Attention turns to the speech and no longer to the subject as the owner of his speech, because the discursive processes do not have their origin in the subject, although it takes place fundamentally in that subject. The corpus consists of discursive excerpts – filmic and imagistic (RDF-I), taken from the film Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro (2010), by José Padilha. The proposal is relevant due to the possibility of stripping by analyzing imagistic elements present in the filmic discourse, some of the various forms of authoritarianism that pervade the social context, originating from specific discursive formations. Keywords: Discursive Formation. Position-subject. Police. Militia. Policy. UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado PODER INSTITUÍDO VERSUS PODER MARGINAL: CONFRONTAÇÕES DISCURSIVAS Elaborada por FRANCIELE CASAGRANDA METZ como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Letras BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Profª. Drª. Maria Thereza Veloso – URI (Presidente/Orientadora) _____________________________________________ Membro Profª. Drª. Aracy Ernst - UCPEL ______________________________________________ Membro Profª. Drª. Denise Almeida Silva – URI Frederico Westphalen, 07 de fevereiro de 2013 Para meus pais, Valdir e Terezinha. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, aos meus pais, Valdir e Terezinha, pelo amor, estímulo e o apoio incondicional nos momentos difíceis. Você, meu querido pai, que me orgulha pela pessoa que é pessoa de sábias palavras e atitudes. A você, minha inestimável mãe, você que em qualquer momento, mesmo distante, sempre está presente. Muito disso é fruto seu, pois você foi minha primeira professora, mergulhou na minha essência, despertou um precioso talento. Vocês moldaram o meu destino. Esse trabalho só foi possível graças à compreensão e à generosidade de vocês. À minha irmã, Daiele, pelo carinho, paciência e preocupação comigo. À minha querida orientadora, Maria Thereza Veloso, por acreditar neste projeto e pela interlocução imprescindível na condução desta dissertação. Obrigada pela paciência, pelo estímulo, pela inteligência e pela amizade compartilhada nesta caminhada. E, finalmente, agradeço a você, Marcelo, pela paciência, perseverança e pelas palavras de estímulo quando me deixei entristecer, com você tudo ficou melhor, mais fácil e mais leve. Amo vocês! Não é da língua que está se tratando, mas de discurso, quer dizer, de uma ordem própria, distinta da materialidade da língua, no sentido que os linguístas dão a esse termo, mas que se realiza na língua: não na ordem do que constitui o sujeito falante em sujeito de seu discurso e ao qual ele se assujeita em contrapartida. (COURTINE, 1999) Missão dada, parceiro, é missão cumprida. (Tropa de elite 2) Quem quer rir tem que fazer rir. (Tropa de elite 1) LISTA DE ABREVIATURAS AAD – Análise Automática do Discurso AC – Análise do Conteúdo AD – Análise do Discurso ADP – Análise do Discurso Político BOPE – Batalhão de Operações Policiais Especiais CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CPMF – Comissão de Policiais Militares Filhos da Puta CTI – Centro de Tratamento Intensivo DRACO – Delegacia de Repressão ao Crime Organizado FLASHES – Imagens rápidas FD – Formação Discursiva FI – Formação Ideológica Off – (fala em) – Que não pode ser dito e/ou ouvido em público, ou por terceiros PA – Plano americano PF – Plano Fixo PG – Plano Geral PLONGÉE – câmera alta, enquadrando o objeto de cima para baixo PM – Polícia Militar PP – Primeiro Plano PPGLC – Programa de Pós-graduação em Letras - Literatura Comparada PS – Posição-sujeito RD – Recorte Discursivo RDF-I – Recorte Discursivo Fílmico – Imagético RJ – Rio de Janeiro SD – Sequência Discursiva SDR – Sequência Discursiva de Referência SS – Secretaria de Segurança SSP – Secretaria de Segurança Pública TC – Tenente Coronel UTI – Unidade de Tratamento Intensivo TRAVELLING – Movimento da câmera pelo cenário ZOOM – Movimento de aproximação e/ou distanciamento da cena, mediante ajuste no olho da câmera ÍNDICE DOS RECORTES DISCURSIVOS FÍLMICO–IMAGÉTICOS (RDF-I) RDF-I 1 RDF-I 2 RDF-I 3 RDF-I 4 RDF-I 5 RDF-I 6 RDF-I 7 RDF-I 8 RDF-I 9 RDF-I 10 RDF-I 11 RDF-I 12 RDF-I 13 Matias pressiona o bandido sobre o roubo das armas.........................................44 Matias disfarça-se de miliciano para se infiltrar na favela..................................48 O discurso político em campanhas eleitorais......................................................56 Depoimento de Nascimento à CPI dos deputados..............................................61 Rocha pegando dinheiro de bandidos.................................................................66 O sistema de corrupção organizado por Rocha...................................................70 Câmera sobre alguém montando uma arma na UTI...........................................74 Diogo Fraga e seu discurso no 3º Congresso de direitos humanos.....................77 Nascimento pressionando o filho para ganhar a luta..........................................82 Nascimento descobre seus verdadeiros inimigos e percebe que sua família está ameaçada............................................................................................................85 Nascimento procura os responsáveis pela Segurança Pública para conversar............................................................................................................,90 Nascimento é transferido para a Subsecretaria de Inteligência..........................94 A reestruturação do sistema...............................................................................98 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1 IDENTIFICANDO A BASE TEÓRICA ........................................................................... 14 1.1 Michel Pêcheux e os caminhos da Análise do Discurso ................................................. 16 1.1.1 Discurso, Interdiscurso, Intradiscurso ............................................................................. 18 1.1.2 Ideologia e Formação Discursiva .................................................................................... 21 1.1.3 Sujeito Discursivo e Posição-Sujeito............................................................................... 25 1.2 Efeitos de sentido e tramas discursivas........................................................................... 27 1.2.1 Heterogeneidade discursiva – marcas visíveis versus marcas invisíveis ........................ 28 1.2.2 Elite da Tropa 2 e Tropa de Elite 2- O inimigo agora é outro: o Eu e o Outro na Literatura e no Cinema ............................................................................................................. 31 1.2.2.1 Narrativa literária e narrativa fílmica – (des)aproximações ....................................... 33 1.2.3 Polícia e Milícia: definições suspeitas ............................................................................. 35 2 O DISCURSO DITO E O DISCURSO DO NÃO-DITO ................................................. 39 2.1 Política, Polícia, Poder, Sistema: pelo interior das tramas discursivas ....................... 41 2.1.1 O discurso da polícia ....................................................................................................... 43 2.1.2 O discurso da milícia ....................................................................................................... 48 2.1.3 O discurso da política ...................................................................................................... 53 2.1.4 O discurso do sistema ...................................................................................................... 59 2.2 Tramas discursivas ........................................................................................................... 65 2.2.1 Corrupção versus Cooptação: o discurso das conveniências na base do crime............... 66 2.2.2 Relações duvidosas: crime e poder nas tramas do sistema.............................................. 69 3 PELOS NÓS DO SISTEMA ............................................................................................... 73 3.1 Revisando os fios do tecido .............................................................................................. 75 3.1.1 Do discurso dos direitos humanos ................................................................................... 77 3.1.2 Do discurso do afeto ........................................................................................................ 81 3.1.3 Do discurso da consciência.............................................................................................. 83 3.2 Discurso da Resistência versus Discurso da Reincidência ............................................ 88 3.2.1 Desistir ou resistir: um problema à espera da melhor solução ........................................ 90 3.2.2 Decisão na banca: o recuo como estratégia ..................................................................... 95 3.2.3 Troca de pele: a serpente renasce .................................................................................... 98 CONCLUSÃO....................................................................................................................... 102 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 107 FILMOGRAFIA ................................................................................................................... 115 ANEXOS ............................................................................................................................... 116 ANEXO A – Cópia do CD do filme.......................................................................................117 ANEXO B – RDF-I: Recorte Discursivo Fílmico – Imagético..............................................118 INTRODUÇÃO Todo discurso sempre remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa. ENI ORLANDI Tendo como fundamento teórico a Análise do Discurso (AD) de linha francesa, a presente pesquisa se justifica como uma possível contribuição aos estudos que vêm sendo feitos para analisar a presença do discurso histórico em expressões ficcionais, tanto pertencentes ao universo literário, quanto ao universo fílmico. É indispensável enfatizar, nos estudos e discussões literárias, a importância da História como um dos componentes do discurso. Neste estudo, particularmente, interessa vê-la como um testemunho discursivo do caráter autoritário a que sociedade brasileira está submetida desde sua formação inicial. Sob este enfoque, e com o intuito de compreender a violência como um dos fios constitutivos do tecido social, a análise permeia o discurso policial em uma perspectiva histórica e sob dois ângulos distintos, o dos policiais atentos à disciplina e à honestidade no desempenho de suas obrigações funcionais, e o dos milicianos, assim entendidos como aqueles que ignoram as normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos que observam os princípios estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condizentes com a Formação Discursiva policial. Para tanto, tomei como corpus o filme Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro, entendendo que aponta para a existência de um estado permanente de execução da violência, tanto no meio social em seu sentido amplo, como naquele partilhado pelos policiais no exercício profissional. Acrescento que a opção pelo corpus foi determinada por três fatores. Primeiro, por permitir abordar a temática da violência brasileira nascida – possivelmente e em alguns casos – do desconforto e da pobreza, analisando a realidade, em toda sua crueza, através da visão policial, tanto das milícias, quanto do grupo de policiais que lutam contra a criminalidade (o Batalhão de Operações Policiais Especiais – BOPE). Um segundo fator foi a possibilidade de analisar os discursos dos sujeitos mediante o referencial teórico da Análise do Discurso, de linha francesa, considerando a importância de seus três elementos constitutivos – a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise –, ou seja, pela contribuição possível dessas três áreas 12 para a compreensão das condições de produção discursiva nos ambientes e situações sob análise; e um terceiro fator, a possibilidade de avaliar o discurso da violência. Parece-me oportuno considerar que minha hipótese era a de que a violência entre as milícias e as polícias constituía um fator preocupante e capaz de desestabilizar a sociedade, além de transformar-se em eficiente instrumento de persuasão social em seu próprio favor, levando esses grupos ao reconhecimento, pelas comunidades, como talvez os únicos em eficiência para o controle e diminuição de uma outra espécie de violência, originada em comportamentos antissociais, nascidos das camadas marginais da sociedade. Ao chegar à conclusão do trabalho, percebi que minhas conjeturas estavam corretas. Assim, se esse embate entre policiais e milicianos não é o responsável absoluto pela violência, ocupa isoladamente grandes proporções desta mesma violência, proporções essas possíveis de excluir, refrear, coibir ou reprimir por meio de ação punitiva. Para efeitos da análise, considero, ainda, que o problema a ser discutido diz respeito à possibilidade de compreender a violência como uma forma de ação política, capaz de afetar o meio social em sentido amplo. Visando a atender aos objetivos desta pesquisa, um primeiro olhar sobre o corpus sugere a existência de uma tensão, mediada pela violência e pela política partidária, entre sociedade, milícias e polícia. Entende-se pertinente o tema da presente pesquisa na medida em que visou a associar a ficção com a realidade cotidiana. Assim, procurei evidenciar pistas discursivas que justifiquem a crítica social presente em obras como as que constituem o corpus deste trabalho. Por meio de expressões artísticas como o cinema, ainda que muitas vezes a alusão a fatos, personagens e circunstâncias ali esteja de forma subentendida ou implícita, foi possível resgatar ou evidenciar, sob diferentes pontos de vista, a importância de determinados momentos históricos vividos pela sociedade. Por outro lado, o tema foi relevante pela possibilidade de desnudar, pela análise de elementos linguísticos e imagéticos presentes respectivamente no discurso fílmico, algumas das diversas formas de autoritarismo que perpassam o tecido social, oriundas de formações discursivas específicas, como, no caso do corpus sob a análise, a Formação Discursiva Policial (FDP). Para viabilizar a pesquisa, o pressuposto inicial foi a necessidade de compreender e, ao mesmo tempo, qualificar, ou seja, categorizar e contextualizar a violência urbana. Com este objetivo, escolhi as obras já mencionadas, uma literária e outra cinematográfica, por retratarem e, ao mesmo tempo, terem sido ambientadas em um espaço de violência e de carência, um ambiente abandonado pelo Estado e dominado pelo tráfico, bandidos e milícias. 13 Por outro viés, vale ressaltar que inicialmente o discurso fílmico me pareceu extremamente interessante e cativante. Foi essa percepção, portanto, o ponto de partida para este trabalho, considerando também que o tema relaciona-se com a minha vida particular, razão pela qual por ele tomei gosto, e que me interessam, profissionalmente, o cinema, o discurso policial e a Análise do Discurso. Em um primeiro momento, imaginei que o tema pelo qual havia me interessado não se adequaria a ser analisado sob a perspectiva teórica da Análise do Discurso. No entanto, ao submetê-lo a minha orientadora, percebi que existia essa possibilidade e assim me dispus a aceitar correr o risco. Sua aceitação foi de extrema importância. No entanto, inicialmente encontrei dificuldade, pois jamais havia estudado sobre a AD e sobre obras cinematográficas como discursos. Ao iniciar o trabalho, de imediato percebi que a pesquisa não seria conclusiva, e nem deveria sê-lo, pois o estudo aprofundado da teoria não é um ciclo fechado. Assim, conforme a análise se concretizava nos capítulos escritos, a fundamentação teórica contribuía para uma nova percepção sobre o corpus, na perspectiva de fundamentar e significar a pesquisa. Assim desenvolvi a pesquisa, procurando subsídios para obter significados em fragmentos fílmicos, considerando que, apesar de possíveis coincidências com a realidade, o filme sob análise é uma obra de ficção, recriada cinematograficamente, possibilitando sentidos múltiplos, capazes de responder às expectativas e perguntas surgidas inicialmente. O presente trabalho está dividido em três capítulos. Primeiramente apresenta uma reflexão teórica sobre os conceitos da Análise do Discurso de linha francesa, de Michel Pêcheux. Nos segundo e terceiro capítulos consta a descrição interpretativa dos recortes discursivos fílmico-imagéticos (RDF-I), sempre fundamentada na AD em diálogo com conceitos tomados à cinematografia. 1 IDENTIFICANDO A BASE TEÓRICA A Análise do Discurso é a disciplina que vem ocupar o lugar dessa necessidade teórica, trabalhando a opacidade do texto e vendo nesta opacidade a presença do político, do simbólico, do ideológico, o próprio fato do funcionamento da linguagem: a inscrição da língua na história para que ela signifique. ENI ORLANDI O ingresso de Michel Pêcheux na construção de seus estudos investigativos dá-se a conhecer pelo título provocador de Análise Automática do Discurso, lançado em 1969. Segundo Denise Maldidier, a “Análise Automática do Discurso é um livro original que chocou lançando, a sua maneira, questões fundamentais sobre os textos, a leitura, o sentido” (2003, p. 19)1. Essa “máquina”, nascida da inquietude indagadora de Michel Pêcheux, teve como base o questionamento sobre a epistemologia da Linguística, propondo uma análise sobre as diversas possibilidades interpretativas de discurso. Pêcheux propõe um estudo que coloca o linguístico em articulação com a História. Sob essa ótica, suas análises consideram as condições de produção, a partir da hipótese de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui. Três marcos foram fundamentais a Michel Pêcheux para embasar seus estudos: a linguística, com Ferdinand de Saussure2, “centrando a análise na semântica, com a ideia de não-transparência do sentido, da não-reflexividade entre signo/mundo/homem” (GREGOLIN, 2001, p. 03); o materialismo histórico, com Karl Heinrich Marx, por meio de uma releitura althusseriana. Althusser é, para Pêcheux, “aquele que faz brotar a fagulha teórica, o que faz nascer os projetos de longo curso (...) ele oferecia a possibilidade de ‘pensar o marxismo fora de uma vulgata mecanicista’” (MALDIDIER, 2003, p. 18) com o pensamento voltado à “ideia 1 Grifos da autora. A respeito de algumas diferenças significativas, que derivam de suas distintas condições de produção, Benveniste e Pêcheux atribuem a Saussure a instalação dos “fundamentos” da Linguística e do “corte epistemológico” efetivado em seu interior, apresentando uma versão endógena da história das ciências da linguagem e usufruindo as prerrogativas dessa versão. Ambos reivindicam o legado de Saussure e situam-se mais ou menos na ascendência de seu pensamento, mas advogam também a necessidade e a capacidade de ultrapassá-lo. Por um lado, conferem a Saussure a emergência da autonomia de um objeto e o advento da positividade científica de uma teoria e de um método; por outro, reclamam a necessidade de se focalizar aquilo que supostamente teria sido excluído das considerações saussureanas, como a “subjetividade na linguagem” e a “ordem do discurso” (PIOVEZANI, 2008 p. 02) . 2 15 de que há um real da história que não é transparente para o sujeito, pois ele é assujeitado pela ideologia” (GREGOLIN, 2001, p. 03) e, por fim, a psicanálise de Sigmund Freud, “por meio da releitura lacaniana (...), com a ideia de sujeito na relação com o simbólico, pensando o inconsciente estruturado como linguagem” (2001, p. 03). A mesma autora afirma que Esse triplo assentamento traz consequências teóricas: a forma material do discurso é, ao mesmo tempo, linguístico-histórica, enraizada na História para produzir sentido; a forma sujeito do discurso é ideológica, assujeitada, não psicológica, não empírica; na ordem do discurso há o sujeito na língua e na História; o sujeito é descentrado, tem a ilusão de ser fonte, mas o sentido é um já-lá, um dito antes em outro lugar. Do mesmo modo, o enraizamento nesses três campos do conhecimento traz consequências metodológicas: a busca de um dispositivo de análise do processo discursivo; a busca dos vestígios – da história e da memória – no discurso, e a consequente inter-relação entre a ordem da língua, a ordem da história e a ordem do discurso. (2001, p. 03-04)3. Segundo a precursora brasileira nos estudos da teoria de Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi (1996), a Análise do Discurso (AD) é uma disciplina de entremeio, interessada em desvelar não o que o texto4 quer dizer, mas sim como ele funciona. Assim, a AD se “apresenta como uma teoria da interpretação” (ORLANDI, 2008, p. 21). Em outras palavras, a Análise do Discurso se coloca a questão da interpretação, ou melhor, a interpretação é posta em questão pela Análise do Discurso. Em recente análise, Orlandi salienta que a AD trabalha “a opacidade do texto e vendo nesta opacidade a presença do político, do simbólico, do ideológico, o próprio fato do funcionamento da linguagem: a inscrição da língua na história para que ela signifique” (2008, p. 21). Por sua vez, Gregolin (2001, p. 13) argumenta que [...] empreender a análise do discurso significa tentar entender e explicar como se constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula com a história e a sociedade que o produziu. O discurso é um objeto, ao mesmo tempo, linguístico e histórico; entendê-lo requer a análise desses dois elementos simultaneamente. A AD permite trabalhar em busca dos processos de produção do sentido e de suas determinações histórico-sociais. Isso implica o reconhecimento de que há uma historicidade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência de um sentido literal, já posto, 3 Grifos da autora. O texto é, em um sentido, a reescrita de todos os textos precedentes; ele traz marcas de retornos reflexivos, de remanejamentos e de retificações, de atualizações ou de apreensões, os estigmas da inquietação (MALDIDIER, 2003, p. 38). 4 16 e nem mesmo que o sentido possa ser qualquer um, já que toda interpretação é regida por condições de produção. Na perspectiva da Análise do Discurso o sujeito discursivo não é um sujeito clivado. É determinante na sua constituição a posição que este sujeito ocupa no meio social, isto é, a posição ideológica, bem como o instante histórico da enunciação, entendendo-se esta como “a relação sempre necessária presente no sujeito enunciador com o seu enunciado (...) uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por característica colocar o ‘dito’ e em consequência rejeitar o não-dito” (PÊCHEUX, 1975, p. 174-176). 1.1 Michel Pêcheux e os caminhos da Análise do Discurso A análise do discurso não pretende se instituir em especialista da interpretação, dominando ‘o’ sentido dos textos, mas somente construir procedimentos expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito... a questão crucial é construir interpretações sem jamais internalizá-las nem no ‘nãoimporta-o-quê’ de um discurso sobre o discurso, nem em um espaço lógico estabilizado com pretensão universal. MICHEL PÊCHEUX Sem ignorar a contribuição de Saussure aos estudos linguísticos, Michel Pêcheux inverte a linha de raciocínio a respeito do processo de produção; a atenção se volta para o discurso enquanto efeito de sentido entre interlocutores, considerando-se que o sujeito não é a origem de sua fala, embora seja nele que os processos discursivos se realizem, tal como salienta Orlandi: “os processos discursivos não têm sua origem no sujeito, embora eles se realizem necessariamente nesse sujeito” (1996b, p. 218). A AD criada por Pêcheux passou por três fases durante seu percurso de consolidação teórica. Cada uma dessas fases caracterizou-se por mudanças significativas. Esses processos de evolução, segundo Grigoletto, passam pelo abandono de uma posição ‘estruturalista’ que se traduzia, de um lado, numa rigidez na seqüência das etapas da análise – que partia da análise sintática de enunciados elementares para chegar à fase interpretativa de seqüências do corpus e, assim, remontar à análise dos processos discursivos (...) e, de outro, numa concepção de sujeito concebido apenas como efeito de assujeitamento à máquina estrutural. (1998, p.17). 17 A primeira fase das citadas acima diz respeito à exploração metodológica da noção de maquinaria discursiva estrutural. Concebe o processo da produção discursivo como “uma máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos” (PÊCHEUX, 1997a, p. 311). Neste estágio, acreditava-se que o sujeito era produtor de seu discurso. Já no segundo momento, com a incorporação dos conceitos de Formação Discursiva e Interdiscurso 5, há um deslocamento teórico em relação ao primeiro momento, passando a serem focos de estudos as relações entre os diferentes tipos de discursos. Definida por Foucault6 como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram uma época dada, e para uma área social, econômica e geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (1987, p. 43-4). A Formação Discursiva (FD), segundo Pêcheux (2009), é a matriz de sentido que constitui o que o sujeito pode ou não pode dizer. Sob este viés, a linguagem para a AD é opaca e “permanece como relação de sentido que informa o dizer de ‘x’” (ORLANDI, 2003, p. 82). Por sua vez, a língua7 não é abstrata. Ela existe e é concreta, manifestando-se no discurso do sujeito, discurso esse atravessado pela ideologia, pois “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (Op.Cit., p. 17). Essa nova teoria iniciada por Pêcheux não ignorava a pesquisa saussureana sobre a linguagem. Ao contrário, foi a partir da reformulação dos estudos de Saussure que Michel Pêcheux reestruturou o discurso, uma comprovação de que a dicotomia língua/fala da teoria de Saussure era ilusória, pois, para ele, “tudo se passa como se a língua científica (tendo por objeto a língua) liberasse um resíduo que é o conceito filosófico de sujeito livre, pensado como o avesso indispensável, o correlato necessário do sistema” (MALDIDIER, 2003, p. 22). 5 A caracterização do interdiscurso de uma FD é, então, um ponto crucial da perspectiva desenvolvida por Pêcheux: a partir do interdiscurso as modalidades do assujeitamento poderão ser analisadas. Com efeito, o interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que o sujeito enunciador se apropria para deles fazer objetos de seu discurso, assim como as articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma coerência à sua declaração (COURTINE, 2009, p. 74). 6 De Michel Foucault vem a problematização sobre a ciência histórica, suas descontinuidades, sua dispersão, que resultará na abertura do conceito de formação discursiva, na discussão das relações entre os saberes e os (micro) poderes, na preocupação com a questão da leitura, da interpretação, da memória discursiva. (GREGOLIN, 2001, p. 04) 7 A língua não é histórica precisamente na medida em que ela é um sistema (pode-se também dizer uma “estrutura”); é na medida em que a língua é um sistema, uma estrutura, que ela constitui o objetivo teórico da Linguística.[...] A “língua” como sistema se encontra contraditoriamente ligada, ao mesmo tempo, à “história” e aos “sujeitos falantes” e essa contradição molda atualmente as pesquisas linguísticas sob diferentes formas, que constituem precisamente o objeto do que se chama a “semântica” (PÊCHEUX, 2009, p. 20-21). 18 Pêcheux indaga-se a respeito do conceito de sujeito filosófico livre. Influenciado por Althusser, descreve que o sujeito é preso às condições ideológicas que o compõem e que o fazem ser reconhecido como sujeito; não é, pois, um sujeito livre. O sujeito se constitui através da linguagem8, na interação com os aspectos sócio-históricos e com a ideologia a que se filia. Portanto, seu discurso é portador de vários outros, presentes em um já-lá, que o constitui e sustenta sua identidade discursiva. Já sob a perspectiva da psicanálise, a AD estuda o sujeito desejante, o sujeito assujeitado que é construído pela linguagem9 e interpelado pela ideologia, pois, como afirma P. Henry, “o sujeito é sempre e ao mesmo tempo sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação” (1992, p. 188). 1.1.1 Discurso, Interdiscurso, Intradiscurso Toda fala resulta assim de um efeito de sustentação no já dito que, por sua vez, só funciona quando vozes que se poderiam identificar em cada formulação particular se apagam e trazem o sentido para o regime do anonimato e da universalidade. ENI ORLANDI Conforme Pêcheux (1997a), o discurso é efeito de sentido entre locutores, o que proporciona a percepção de que a linguagem não é somente um mecanismo de comunicação, ou seja, é muito mais que estímulo e resposta para o envio de uma mensagem. É fundamental salientar que a linguagem é constitutiva do sujeito, pois o discurso proporciona o sentido entre os locutores e desta forma se concretiza na história da humanidade. Enfatiza Orlandi, que não se trata “de trabalhar a historicidade do texto, isto é, trata-se de compreender como a matéria textual produz sentido” (2006, p. 23). 8 A linguagem é “[...] um sistema de signos verbais que serve para formular pensamentos no processo de reflexão da realidade objetiva pela cognição subjetiva e para comunicar socialmente esses pensamentos sobre a realidade, bem como as experiências emocionais, estéticas, volitivas, etc., a esta relacionadas. (PÊCHEUX, 2009, p. 17) 9 É amplamente reconhecido: o caráter social da linguagem. Esta surge para possibilitar a comunicação humana. A comunicação é uma necessidade dos seres humanos. O processo de humanização do mundo e a constituição da sociedade só se tornam possíveis existindo esta comunicação através da linguagem. A origem da linguagem, portanto, está ligada a necessidade dos seres humanos de realizarem uma associação. Esta necessidade de associação é tanto afetiva, como coloca Rousseau, quanto “material”, negada por ele. Neste sentido, a linguagem possui uma origem e um caráter sociais. Assim, a linguagem é um dos elementos constitutivos do processo discursivo o qual se dá sob determinadas condições histórico-sociais e ideológicas. 19 É relevante salientar que as Formações Ideológicas (FI)10 são as que determinam o discurso, pois este sempre está direcionado ao âmbito social; como afirma Pêcheux (1975), as palavras e as expressões mudam de sentido conforme o contexto em que são empregadas. Esses sentidos são, portanto, determinados pelas Formações Ideológicas (FI). Por outro lado, é importante frisar que o discurso, na perspectiva da AD, intervém entre o homem e a realidade, pois é “o lugar em que se pode observar a relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a Língua produz sentido por/para os sujeitos” (ORLANDI, 2003, p. 15 e 17). É neste sentido que o sujeito do discurso interage em várias formações discursivas que contribuem para sua formação enquanto sujeito social e assim se reproduzem no seu discurso. Desta forma, as FD11 são ideológicas e se utilizam da língua para materializar-se semanticamente. Pêcheux percebe que a oposição entre fala/língua não tem relação com a problemática do discurso, mas reflete sobre a língua estudada por Saussure. Diz que a língua “deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma ciência pode descrever o funcionamento” (1997b, p.62). Pêcheux coloca o discurso “entre a linguagem (vista a partir da linguística, do conceito saussureano de langue) e a ideologia” (HENRY, 1997, p. 35). Portanto, o discurso assume uma leitura de mundo, porém de maneira diferente, conforme o momento histórico. Por outro lado, a formulação do conceito de Formação Discursiva, em Michel Foucault, está desenvolvida principalmente em A arqueologia do saber, obra de caráter teórico-metodológico publicada em 1969. Nela o autor reflete sobre as condições de possibilidade do discurso. Escreve ele que uma Formação Discursiva apresenta-se como um sistema de relações entre objeto, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. Simplificando, explicita o autor que a FD é vista como um conjunto de enunciados que não se resumem simplesmente a objetos linguísticos, mas sim, são submetidos a uma mesma regularidade e dispersão na forma de uma ideologia, ciência, teoria, etc. Assim, Foucault define o discurso 10 Uma Formação Ideológica (FI), definem Pêcheux e Fuchs em Gadet; Hak (1997b, p. 166), é um conjunto complexo de representações que não são nem ‘individuais’ nem universais mas se relacionam mais ou menos diretamente a posição de classes em conflito umas com as outras. 11 A noção de Formação Discursiva (FD), introduzida inicialmente por Foucault, foi reformulada depois, no fim dos anos 70, no quadro da AD por Michel Pêcheux, para quem uma FD “é aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pela luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.). Por sua vez, Pêcheux a entende, pois, como “espaço de reformulaçãoparáfrase onde se constitui a ilusão necessária de uma ‘intersubjetividade falante’ pela qual cada um sabe de antemão o que o ‘outro’ vai pensar, vai dizer...” (2009, p. 172). 20 como “[...] um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva” (1987, p. 250). Para Pêcheux, todo discurso se constitui a partir de uma memória e do esquecimento de outro discurso. Os sentidos vão se construindo no embate com outros sentidos. Assim, quando não conseguimos recuperar a memória que sustenta aquele sentido, temos o nonsense. Ainda que o falante não tome consciência desse movimento discursivo, ele flui naturalmente. A memória discursiva, também enfatizada por Pêcheux como interdiscurso, de outro modo, é um saber que possibilita que nossas palavras façam sentido. Esse saber corresponde a algo falado anteriormente, em outro lugar, a algo “já dito” que, entretanto, continua alinhavando os nossos discursos. Nesta mesma perspectiva, Courtine (2009, p. 74), destaca que o Interdiscurso se constitui no processo de reconfiguração constante, no qual a Formação Discursiva é provocada a incorporar elementos pré-construídos, produzidos no exterior dela própria. Dessa forma, a FD se apresenta a partir do Interdiscurso como um domínio aberto12. Por sua vez, Pêcheux denomina o Interdiscurso como o “todo complexo com dominante13 das formações discursivas” (1975, p. 163). Neste sentido, o Interdiscurso está entrelaçado no complexo das Formações Ideológicas (FI), que toda a Formação Discursiva (FD) mascara na ilusão de proporcionar a transparência de sentido que nela se forma. O Interdiscurso é o lugar onde se constituem os objetos do saber (os enunciados). Acompanhando as ideias propostas por Pêcheux (2009, p. 153), pode-se dizer que o Intradiscurso é o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois; portanto, o conjunto dos fenômenos de “co-referência” que garantem aquilo que se pode chamar o “fio do discurso”, enquanto discurso de um sujeito14-15. 12 A caracterização do interdiscurso de uma FD é, então, um ponto crucial da perspectiva desenvolvida por Pêcheux: a partir do interdiscurso as modalidades do assujeitamento poderão ser analisadas. Com efeito, o interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se apropria para deles fazer objetos de seu discurso, assim como as condições entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai dar uma coerência à sua declaração (COURTINE, 2009, p. 74). 13 Conceito desenvolvido por Althusser através da leitura dos livros de Marx. Em seu texto da Defesa da tese de Amiens: “(...) defendi que Marx tinha uma ideia distinta de Hegel sobre a natureza duma formação social; e pensei poder manifestar essa diferença dizendo: Hegel pensa uma sociedade como uma totalidade, enquanto Marx a pensa como um todo complexo, estruturado e com uma dominante (...) para marcar que na concepção marxista duma formação social tudo se relaciona, a independência de um elemento não é mais do que a forma da sua dependência, e o jogo das diferenças é regulado pela unidade de uma determinação em última instância: o todo marxista é complexo e desigual” (PÊCHEUX, 2009, p. 146-148). 14 Grifos do autor. 15 Observamos a esse respeito que, se essa articulação funciona no nível consciente sob as diferentes formas da coerência lógica (relação de “causa”, de “concessão”, de “ligação temporal” etc.), não se reduz a isso: a 21 A noção de intradiscurso é considerada por Pêcheux (1975, p. 163) como “o fio do discurso” do sujeito falante, ou seja, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo. “Nesse sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto ‘fio do discurso’ do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’” (PÊCHEUX, 2009, p. 154); assim, o intradiscurso se caracteriza por possuir dois traços distintos: o (pré)construído, traço identificado em qualquer formação discursiva e semelhante a, ou funcionando como, um (pré)conceito histórico que é do conhecimento geral, e a articulação, aquilo que permite a um sujeito constituir-se como tal em relação àquilo com que o próprio discurso se constrói. Denise Maldidier, em A inquietação do discurso, (Re)ler Michel Pêcheux hoje (2003), ressalta que o intradiscurso é definido como o funcionamento do discurso em relação a ele mesmo (ao que eu digo agora, em relação ao que disse antes e ao que direi depois), (...). O intradiscurso só pode ser compreendido na relação com o interdiscurso. Ele não designa a realidade empírica do encadeamento discursivo. Ele lhe fornece o conceito. O intradiscurso só pode ser pensado como o lugar em que a forma-sujeito tende a “absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso”. (MALDIDIER, 2003, p. 54). Maldidier assevera, ainda, que o interdiscurso não se simplifica apenas na designação trivial dos discursos. Dessa forma, tomando como base os estudos de Althusser, define o discurso como “‘o todo complexo a dominante’ das formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas, e ‘submetido à lei de desigualdade-contradiçãosubordinação’” (2003, p. 51). Acompanhando a ideia de interdiscurso, ainda, advoga que “o interdiscurso, em sua intrincação com o complexo das formações ideológicas, ‘fornece a ‘cada sujeito’ sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidencias e de significações ‘percebidasaceitas-sofridas’” (2003, p. 53). É em conformidade com essas ideias que analisarei, na obra literária Elite da tropa 2 (2010) e no filme Tropa de elite 2 - O inimigo agora é outro (2010), o discurso do protagonista, Tenente Coronel Nascimento, em sua condição de sujeito discursivo. 1.1.2 Ideologia e Formação Discursiva incidência de certas aposições ou incisas pode representar a irrupção, no fio discursivo, de um processo inconsciente, como Freud o havia percebido a propósito da Verneinung. (PÊCHEUX, 2009, p. 153). 22 Ideologia não se define como conjunto de representações, nem muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática significativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente – ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique. ENI ORLANDI O termo ideologia, segundo afirma Chauí, foi criado pelo filósofo Destutt de Tracy, em 1810, na obra Elements de Idéologie, nasceu como sinônimo da atividade científica que procurava analisar a faculdade de pensar, tratando as ideias como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. (1984, p. 19). Na AD, o conceito de ideologia deriva do trabalho de Althusser, em Aparelhos Ideológicos do Estado (1983). Nessa obra, o autor afirma que, para perpetuar sua dominação, a classe dominante cria meios de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração. Em seu texto O mecanismo do (des)conhecimento ideológico (1996, p. 143-152), Michel Pêcheux procura esclarecer alguns conceitos sobre a ideologia que, se não bem interpretados, poderiam obscurecer o entendimento total de sua obra e, também, para auxiliar a leitura de Althusser em Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Ele afirma que a ideologia não é um Zeitgeist16, como pode parecer de primeiro momento, e tampouco existe uma ideologia para cada classe social, formando mundos diferentes que lutam entre si. Para Althusser, “o objeto da ideologia não é o ‘mundo’, mas a relação do ‘sujeito’ com o mundo ou, mais precisamente, com suas condições reais de existência” (1983, p. 39)17. Uma das questões mais relevantes da Análise do Discurso de linha francesa, intimamente relacionada com a ideologia na forma como a entende Althusser, é a Formação Discursiva (FD), pois tem a ver diretamente com o sujeito e a forma como esse mesmo sujeito se relaciona e interage com o mundo. Para Michel Foucault “[a] unidade de uma formação discursiva não é a manifestação majestosamente desenvolta de um sujeito que pensa, que conhece o que diz: é, ao contrário, um conjunto onde se pode determinar a dispersão do 16 Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa espírito de época, espírito do tempo ou sinal dos tempos, conforme explica o mesmo Pêcheux. (1996, p. 144). 17 Em suma, a teoria de Althusser sobre ideologia não comporta a existência de uma ideologia una e que seja dominante no sentido de determinar a unificação dos aparelhos ideológicos. A unidade da ideologia seria a unidade de um processo de unificação, constantemente retomado nos aparelhos ideológicos e fora deles (já que os aparelhos não ideológicos funcionam também “à base da ideologia”) e, por conseguinte, a dominância de uma ideologia só poderia ser um momento de equilíbrio. (...) do sujeito. (ALTHUSSER, 1918, p. 37). 23 sujeito e sua descontinuidade consigo” (FOUCAULT, 1996, p. 74). Assim Foucault concebe a Formação Discursiva não em termos de ideologia, que ele não discute, preferindo abordar a constituição do saber/poder, que, segundo diz, não passariam pela questão das classes sociais. Michel Pêcheux afirma que muitos de seus conceitos sobre formação discursiva estão relacionados com os estudos propostos por Michel Foucault. No entanto, os conceitos formados por ambos bifurcam-se de forma harmoniosa, visto que Foucault estabelecia as relações entre dizer e o fazer, sempre evidenciando a não autonomia das práticas discursivas. Assim, calcado nos conceitos marxistas, e a partir da leitura de Althusser, Pêcheux fundamenta seus estudos sobre discurso e ideologia. Ele prioriza seus estudos na ideologia afirmando que esta é provinda das lutas de classes, as quais possibilitam o surgimento da história, cujos embates contínuos podem promover uma revolução, o que geraria uma ruptura na estrutura social, desaparecendo, assim, a classe dominante. Ao fundamentar as formações discursivas na AD, Pêcheux possibilita uma reestruturação dos conceitos de ideologia e de luta de classes, extraindo das pesquisas de Foucault o que tinha de materialismo e revolucionário. Pêcheux publica Semântica e Discurso - Uma crítica à afirmação do óbvio, na qual se contata que é retomada a definição inicial, de que uma Formação Discursiva é “o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc)” em uma formação ideológica definida, isto é, a partir de uma posição de classe no seio de uma conjuntura dada (MALDIDIER, 2003, p. 52). Pêcheux ressalta, portanto, que a ideologia proporciona o espaço para questões das fronteiras flexíveis da formação discursiva: Naquilo que concerne à ideologia, corresponde o fato de que os aparelhos ideológicos do Estado são por sua própria natureza plurais: eles não formam um bloco ou uma lista homogênea, mas existem dentro de relações de contradiçãodesigualdade-subordinação tais que suas propriedades regionais (sua especialização, nos domínios da religião, do conhecimento, da moral, do direito, da política, etc) contribuem desigualmente para o desenvolvimento da luta ideológica entre as duas classes antagonistas, intervindo desigualmente na reprodução ou na transformação das condições de produção. (PÊCHEUX, 1990, p. 54). Os discursos ideológicos não são homogêneos, o que significa que as regras que o determinam apresentam-se como um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. É neste sentido que as Formações Discursivas não são idênticas, considerando-se que cada uma “só existe sob a modalidade da divisão, e não se realiza a não 24 ser na contradição que com ela organiza a unidade e a luta dos contrários” (PÊCHEUX, 2009, p. 57). A propósito, Orlandi salienta que a ideologia “é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer” (2003, p. 46). Embasada nos estudos de Michel Pêcheux, a autora afirma que a característica primordial da ideologia é dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento. Orlandi (2003) declara, ainda, que pela presença da ideologia, mesmo diante de qualquer objeto simbólico, o homem é instado a desenvolver seu dizer. Dessa forma, a ideologia produz evidências permitindo ao sujeito defrontar-se e relacionar-se com o imaginário e com suas condições materiais de existência. Para Althusser “a ideologia existe para sujeitos concretos, e esta destinação da ideologia só é possível pelo sujeito: isto é, pela categoria de sujeito e de seu funcionamento” (1983, p. 93). Assim, a base do discurso é o sujeito, uma vez que este se constitui ideologicamente, além de estar entrelaçado diretamente com a língua. Orlandi também explicita que a ideologia “é a interpretação do sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história em seus mecanismos imaginários. A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação necessária entre a linguagem e o mundo” (1996b, p. 31). Lembre-se que todo sujeito está diretamente ligado à ideologia pela história. Com isso, seu dizer assume uma forma subjetiva. Assim, ao relembrar Foucault (1987), Orlandi pondera que o sujeito discursivo sustenta uma “posição, não como uma forma de subjetividade18, mas um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz” (2003, p. 49). Isso significa que esse sujeito estará adquirindo uma identidade discursiva conforme o posicionamento que ocupe em sua Formação Discursiva. Ainda de acordo com Orlandi, é importante ressaltar que “todo texto é heterogêneo do ponto de vista de sua construção discursiva: ele é atravessado por diferentes formações discursivas, ele é afetado por diferentes posições do sujeito, em sua relação desigual e contraditória com os sentidos, com o político, com a ideologia” (2003, p. 115). Com base neste ponto de vista é que busco neste trabalho, a partir da análise do corpus, identificar a relação entre língua e ideologia dos sujeitos envolvidos na construção do discurso. A 18 Enquanto na Teoria da Enunciação (TE) o Eu é considerado sujeito e centro de toda enunciação, na AD a subjetividade se desloca do eu e passa a ser vista como inerente a toda linguagem, constituindo-se, portanto, mesmo quando este eu não é enunciado. Para a teoria discursiva, o sujeito não é a fonte do sentido, nem o senhor da língua. Despossuído de seu papel central, o sujeito é integrado ao funcionamento do discurso, determinando e sendo determinado tanto pela língua quanto pela história (FERREIRA, 2001, p. 21). 25 compreensão do funcionamento da ideologia é importante nesta pesquisa, uma vez que possibilita o entendimento sobre a não transparência da língua, ou seja, mostra como a língua produz sentidos por/para os envolvidos no processo discursivo de Tropa de Elite 2 – O inimigo agora é outro, a narrativa fílmica. 1.1.3 Sujeito Discursivo e Posição-Sujeito A Análise do Discurso iniciada por Michel Pêcheux (1969) compreende o sujeito como uma posição do discurso. Isso possibilita deixar de lado a noção de indivíduo e considerar o sujeito discursivo determinado no/pelo dizer, usufruindo palavras já ditas, internalizadas e plenas de significados. Segundo Ferreira (2004), trata-se então de um sujeito desejante, sujeito do inconsciente, materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia. Para Orlandi, “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (1999, p. 17). Não se trata, entretanto, de um sujeito falante. Ao contrário, trata-se de um sujeito inserido numa conjuntura social, histórica e ideologicamente marcada, um sujeito que não é homogêneo e sim heterogêneo, constituído por um conjunto de diferentes vozes. As diferentes vozes constituintes do sujeito e que se manifestam no discurso são objeto de dois tipos de esquecimento, segundo a teoria pecheutiana, isto é, o Esquecimento 1 e o Esquecimento 2. No primeiro esquecimento, o sujeito acredita ser criador absoluto do seu discurso. Desta forma, este sujeito procura apagar, eliminar tudo o que faz acreditar que o discurso não seja seu exclusivamente. Esse tipo de esquecimento tem natureza ideológica e inconsciente; tem relação, portanto, com o Outro lacaniano (A), sendo ele o responsável pelo apagamento, para o sujeito, do processo da constituição dos sentidos. Por outro lado, o segundo esquecimento é pré-consciente ou semiconsciente, tem relação com o pequeno outro lacaniano (a), e é por ele que o sujeito acredita que tudo que diz é claro, idêntico ao que ele pensa, que é livre de ambiguidades porque tem apenas um significado, aquele que seu autor pensa ter sido entendido por seu interlocutor. É pela ação desses dois esquecimentos que o sujeito não percebe a influencia de outros discursos em sua fala, da mesma forma que não consegue saber, muito menos controlar, os efeitos de sentido de seu dizer. Segundo Orlandi, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam sentidos, e 26 também por sua memória discursiva, por um saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentidos por se inscreverem em formações discursivas que representam no discurso as injunções ideológicas. Sujeito à falha, ao jogo, ao acaso, e também à regra, ao saber, à necessidade. Assim o homem (se) significa. Se o sentido e o sujeito poderiam ser os mesmos, no entanto escorregam, derivam para outros sentidos, para outras posições. A deriva, o deslize é o efeito metafórico, a transferência, a palavra que fala com outras (ORLANDI, 2003, p. 53). Portanto, na AD de Michel Pêcheux o sujeito é ideológico e histórico, pois sempre está inserido em um ambiente social, bem como no tempo histórico. Lembre-se que os estudos abordados por Pêcheux na AD tiveram uma trajetória acidentada, com ratificações e retificações, ajustes, desvios e retomadas. Através dos estudos entre linguística e as ciências das formações sociais, Michel Pêcheux reflete sobre as relações de incoerência entre essas disciplinas “caracterizando-se, não pelo aproveitamento de seus conceitos, mas por repensálos, questionando, na linguística, a negação da historicidade inscrita na linguagem e, nas ciências das formações sociais, a noção de transparência da linguagem sobre a qual se assentam as teorias produzidas nestas áreas” (PÊCHEUX, 2009, p. 11). Assim Pêcheux propõe “um descolamento das noções de linguagem e sujeito que se dá a partir de um trabalho com a da ideologia” (PÊCHEUX, 2009, p. 11). Em seus estudos, ele demonstra como as ideologias se manifestam no funcionamento da linguagem. Neste sentido, a linguagem não deve ser compreendida como um sistema fechado, mas sim, deve ser entendida conforme o contexto histórico e ideológico de que o sujeito-discursivo faz parte. Tomo outro texto de Pêcheux para ressaltar que, “as palavras, as expressões, as proposições, etc. mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que empregam” (1997a, p. 160). Neste aspecto, é possível compreender que o sentido19 também está relacionado à posição que o sujeito ocupa no discurso, na sua relação constitutiva com as formações discursivas que o constituem. Assim, a posição-sujeito “determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1997a, p. 190). Por outro lado, a posição-sujeito pode também afetar o mecanismo de interpelação ou o sentido de outras formações discursivas, provocando a mudança na posição-sujeito, de Formação Ideológica. Assim, devido às “condições ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção” (PÊCHEUX, 1997a, p. 143) e das “relações de contradição-desigualdade-subordinação” (Idem, p. 145) a posiçãosujeito possui um caráter heterogêneo. 19 O sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, só pode ser constituído em referência às condições de produção de um determinado enunciado, uma vez que muda de acordo com a formação ideológica de quem o (re)produz, bem como de quem o interpreta. O sentido nunca é dado, ele não existe como produto acabado, resultado de uma possível transparência da língua, mas está sempre em curso, é movente e se produz dentro de uma determinação histórico-social, daí a necessidade de se falar em efeitos de sentido (FERREIRA, 2001, p. 21). 27 Por outro lado, Orlandi ressalta que, “o sujeito é um lugar de significação historicamente constituído, ou seja, uma posição” (1998b, p. 75), ou ainda, “o sujeito do discurso é pensado como ‘posição’ entre outras” (ORLANDI, 2003, p. 49). Na perspectiva da AD, é importante salientar que a posição-sujeito não corresponde à presença física, muito menos aos lugares objetivos da estrutura social, mas sim à posição-sujeito, que “é um lugar social representado no discurso” (ORLANDI, 1998b, p. 75). Por fim, “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente para derivar para um outro” (Pêcheux, 1975, p. 53), Essa noção de enunciado é significativa para a AD, pois o sentido não é compreendido como uma unidade fixa, já que é histórico e, por isso, pode deslizar para outro. Nesta perspectiva, é possível destacar que, no corpus analisado, o discurso dos personagens não é transparente, resulta da interpretação do dizer de outros sujeitos, que falam de suas respectivas posiçõessujeito, determinadas na maioria das vezes em dissonância com a prática socialmente aceita. Isso comprova o dizer de Orlandi (2003), de que a constituição do sujeito se dá na dinâmica social na qual ele está inserido, influenciado pelas instituições de sua sociedade e pela língua que utiliza. 1.2 Efeitos de sentido e tramas discursivas Há um funcionamento das línguas em relação a elas mesmas. MICHEL PÊCHEUX Conforme Pêcheux (1997a), o discurso é o efeito de sentido20 entre locutores, o que proporciona a percepção de que a linguagem não é somente um mecanismo de comunicação. Por outro lado, é importante frisar que o discurso21, na perspectiva da AD, intervém entre o homem e a realidade, pois é “o lugar em que se pode observar a relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentido por/para os sujeitos” (ORLANDI, 2003, p. 15-16). É neste sentido que as formações discursivas enriquecem a formação do sujeito enquanto sujeito social e assim se reproduzem no seu discurso. Desta forma, as FD são ideológicas e se utilizam da língua para materializar-se semanticamente. 20 Para melhor compreensão, entende-se por efeitos de sentido, que ao invés de se prender a uma interpretação legítima, entende-se o discurso como “efeito de sentido entre interlocutores” (PÊCHEUX, 2009, p. 40), ou seja, há outros efeitos possíveis e muitas vozes ecoam no mesmo discurso, apesar do sujeito não se dar conta disso. 21 O discurso é implicitamente assimilado a uma prática específica, requerida pela relação de forças sociais e sempre realizado através de aparelhos (MALDIDIER, 2003, p. 33). 28 Segundo Cardoso (1999), Pêcheux percebe que a oposição entre fala/língua não tem relação com a problemática do discurso, porém ele reflete sobre o conceito saussureano de língua. Assim, segundo Pêcheux, a língua “deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma ciência pode descrever o funcionamento” (PÊCHEUX, 1997b, p. 62). Pêcheux coloca o discurso “entre a linguagem 22 (vista a partir da linguística, do conceito saussureano de langue) e a ideologia” (HENRY, 1997, p. 35). Por tanto, o discurso assume uma leitura de mundo, porém de maneira diferente, conforme o momento histórico, ou seja, o discurso é ideológico. Contudo, interpretar um texto é procurar compreender os efeitos de sentido que este mesmo texto produz. Significa dizer que, para encontrar o movimento do sentido, é preciso partir do funcionamento do discurso para assim considerá-lo como espaço em que se pode compreender a relação entre a língua e o sujeito, bem como o sentido por e para o sujeito. O processo constitutivo do discurso está no domínio do saber, no já-dito, isto é, na memória23. Dessa forma, a Análise do Discurso contribui para a relação significativa entre o dizer e o não-dizer, constituindo-se, assim, uma relação estabelecida com a memória, com o que se chama de saber discursivo, indo à procura da significação do dito no não-dito, daquilo que é silenciado e que constitui sentido. A Análise do Discurso sustenta que o sentido não está atrelado ao significante, que um texto pode ter muitos sentidos, e que o sentido é um produto, resultado de um processo. Na Análise do Discurso, não se trata do sentido enquanto entendimento, enquanto tradução, enquanto racionalização, e sim de sentido como efeito/produção de uma enunciação24. 1.2.1 Heterogeneidade discursiva – marcas visíveis versus marcas invisíveis 22 Não são unicamente as diferentes condições de produção que determinam efeitos de sentido diferentes, portanto, mudanças de sentido; são também as condições de circulação dos discursos, seus encontros (EBEL & FIALA, 1997, p. 10). 23 Courtine aprofunda os estudos sobre a memória, concebida como uma categoria de memória que opera no interior de uma FD; em outras palavras, a noção de memória discursiva concerne à existência histórica do enunciado no âmago de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos. A memória discursiva pode ser compreendida como uma forma de repetição e, considerando-se que o discurso se articula a partir dos dois eixos, o horizontal e o vertical, também a memória se manifesta nestes dois níveis: no interdiscurso e no intradiscurso. 24 Processo de reformulação de um enunciado através do qual ele é posto em funcionamento, surgindo como uma de suas possíveis formas de atualização. Os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas, pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm como característica colocar o "dito" e, em consequência, rejeitar o não-dito (FERREIRA, 2001, p. 14). 29 Esse modo de “jogo com o outro” no discurso opera no espaço do não-explícito, do “semidesvelado”, do “sugerido”, mais do que do mostrado e do dito: é desse jogo que tiram sua eficácia retórica muitos discursos irônicos, antífrases, discursos indiretos livres, colocando a presença do outro em evidencia tanto mais que é sem o auxilio do “dito” que ela se manifesta: é desse jogo, “no limite”, que vêm o prazer – e os fracassos – da decodificação dessas formas. AUTHIER-REVUZ. Destaco inicialmente Semântica e Discurso – Uma crítica à afirmação do óbvio (2009), de Michel Pêcheux, em que o autor revisa algumas informações sobre a AD. Nesta edição, ele apresenta alguns esboços da noção de heterogeneidade discursiva, embasados no estudo de formações discursivas. Pêcheux analisa a FD não mais como “um lugar estrutural fechado, pois é constitutivamente ‘invadida’ por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-lhes suas evidências discursivas fundamentais” (1975, p. 314). Quanto a Análise do Discurso, mais especificamente na terceira época, como ficou conhecida, aprofundaram-se os estudos sobre o sujeito heterogêneo25, um sujeito que é marcado pela interferência de vários outros discursos. A propósito da expressão “heterogeneidade”, esteve ela sempre latente no trabalho teórico de Pêcheux, cuja preocupação central, independente das fases da AD, é o que definiu o estudo da disciplina, o discurso. No entanto, foi somente a partir de década de 80, ou a partir da terceira época ou AD3, assim como a definiu Michel Pêcheux, que o discurso é colocado sob o signo da heterogeneidade, quando “o primado teórico do outro sobre o mesmo se acentua” (PÊCHEUX, 1975, p. 315). Em um de seus últimos textos, A análise do discurso: três épocas (1997b), Pêcheux faz uma revisão das fases por que passou a AD e afirma que, na terceira fase, são tematizadas as formas linguístico-discursivas do “discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, ou discurso do sujeito se colocando em cena como um outro (...) mas também e sobretudo a insistência de um ‘além’ interdiscursivo que vem (...) estruturar esta encenação ao mesmo tempo em que a desestabiliza” (PÊCHEUX, 1997b, p. 316-317). 25 Termo utilizado pela AD para destacar que todo discurso é atravessado pelo discurso do outro ou por outros discursos. Estes diferentes discursos mantêm entre si relações de contradição, de dominação, de confronto, de aliança e/ou de complementação. 30 Em suas observações, Pêcheux percebe que o discurso não é homogêneo, e sim, heterogêneo. Essa heterogeneidade passa a caracterizar a FD. No entanto, algumas indicações começam a pairar sobre esse novo conceito, da então AD3. Se a análise de discurso se quer uma (nova) maneira de “ler” as materialidades escritas e orais, que relação nova ela deve construir entre a leitura, a interlocução, a memória e o pensamento? O que faz com que textos e sequências orais venham, em tal momento preciso, entrecruzar-se, reunir-se ou dissociar-se? Como reconstruir, através desses entrecruzamentos, conjunções e dissociações, o espaço de memória de um corpo sócio-histórico de traços discursivos, atravessado de divisões heterogêneas, de ruptura e de contradições? Como tal corpo interdiscursivo de traços se inscreve através de uma língua, isto é, não somente por ela, mas também nela? (PÊCHEUX, 1997b, p. 317)26. Jacqueline Authier-Revuz, uma das inspiradoras da reformulação feita por Pêcheux com relação à maneira de analisar a materialidade discursiva, que se detém nas questões de confrontamento entre Lingüística, História e Psicanálise, em suas análises, destaca dois tipos de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada. A heterogeneidade mostrada corresponde à presença localizável de um discurso outro no fio do discurso. Distingue-se as formas não-marcadas (constitutiva) dessa heterogeneidade e suas marcas (mostrada). O co-enunciado identifica as formas nãomarcadas combinando em proporções variáveis à seleção de índices textuais ou para-textuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal. As formas marcadas, ao contrário, são assinaladas de maneira unívoca: pode tratar-se de discurso direto ou indireto, de aspas, etc. (COURTINE, 1981, p. 54). A heterogeneidade constitutiva acontece quando o discurso é dominado pelo interdiscurso, ou seja, uma articulação de formações discursivas que se referem a formações ideológicas antagônicas. Assim, na heterogeneidade constitutiva há um atravessamento de discursos, ou seja, um discurso cruza outros discursos, e, consequentemente, o próprio discurso se bifurca e interage com outros discursos. Por sua vez, a heterogeneidade mostrada refere-se aos “processos de representação, num discurso, de sua constituição” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 32). Assim, os casos de heterogeneidade mostrada são como “formas linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso” (Idem, p. 26). Nesta perspectiva, divide-se a heterogeneidade em duas formas, a marcada e a não-marcada. Como já foi dito, a primeira se estabelece por marcas claras de outros sujeitos na fala do eu, ou seja, é possível detectar marcas de outras vozes discursivas no texto, como, por exemplo, no discurso direto, citações, aspas, parênteses, 26 Grifos do autor. 31 itálico. Já na heterogeneidade mostrada não-marcada não é visível a presença de outros discursos, isto é, a presença de outros sujeitos no discurso é implícita. Pode-se tomar como exemplo a imitação, a ironia, estereótipo, o clichê. Conforme Authier-Revuz, o discurso nunca é homogêneo, pois “sempre sob as palavras, ‘outras palavras’ são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia (discurso), se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso” (1990, p. 28). Denise Maldidier, em A inquietação do Discurso, (Re)ler Michel Pêcheux hoje, (2003, p. 73), conclui que “o procedimento de Jacqueline Authier colocava em evidência as rupturas enunciativas no ‘fio do discurso’, o surgimento de um discurso outro no próprio discurso. Jacqueline Authier-Revuz traz elementos decisivos à problemática da heterogeneidade do discurso”. Em suma, Authier-Revuz analisa a presença do Outro/outro27 na enunciação, utilizando-se do reconhecimento da língua como sistema de diferenças e como espaço de equívocos. Associada à temática da heterogeneidade, cujo pressuposto atribui ao sujeito seu descentramento e ao Outro um papel primordial no discurso do Mesmo, a autora toma a heterogeneidade como fundante – a linguagem é heterogênea em sua constituição –, buscando colocar em evidência as rupturas enunciativas no “fio do discurso”, e apresenta os elementos decisivos para o surgimento de um discurso outro no discurso do mesmo. 1.2.2 Tropa de Elite 2- O inimigo agora é outro: o Eu e o Outro Há dois outros por distinguir, pelo menos dois – um outro com maiúscula e um outro com minúscula, que é o eu. JACQUES LACAN O diálogo entre Literatura e Cinema é possível porque ambos compartilham de uma mesma vocação: contar histórias. Ambos possuem estruturas narrativas, umas delas identificada como narrativa fílmica, a outra por narrativa literária. É a partir dessa identificação que se torna possível a apreciação das analogias e das diferenças. Uma das questões mais discutidas a respeito da relação entre Literatura e Cinema é a adaptação de textos literários. Assim, esta pesquisa, valendo-se de narrativa fílmica, 27 Na perspectiva teórica assumida por Authier-Revuz, o Outro refere-se ao inconsciente da teoria lacaniana, enquanto o outro corresponde ao interlocutor. 32 concentra-se nos efeitos de sentido da violência no discurso que permeia as relações entre o poder instituído e o poder marginal. Como referência para o presente estudo, a obra que constitui o corpus - Tropa de elite 2 – O inimigo agora é outro (2010), proposta do diretor José Padilha. A aproximação dessas duas obras possibilita ao leitor/espectador (receptor) observar recursos linguísticos e imagéticos utilizados para viabilizar a adaptação da narrativa literária à narrativa fílmica. Um filme, um livro, duas linguagens diferentes. É importante ressaltar que o filme Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro é baseado em uma obra literária, Elite da tropa 2. No entanto, quando o filme é baseado em um corpus literário, realiza-se a passagem de uma linguagem a outra. Esse espaço entre as duas obras é o que chamamos de tradução. Assim, a tradução é o trabalho de interpretação da obra original, a ânsia de recriar algo novo, na outra linguagem. Partindo da constatação de que Elite da Tropa 2 (2010) e Tropa de Elite 2 – O inimigo agora é outro (2010) são duas estruturas narrativas distintas uma da outra, a possibilidade de uma leitura intertextual, por um viés metalinguístico, concretiza-se mediante a adaptação de uma linguagem para outra. Sobre a passagem de conteúdos, Balogh comenta que: As estruturas narrativas fazem parte da forma do conteúdo do texto e constituem o que Metz chamou de “códigos não-específicos” ao falar do cinema. Ora, é precisamente por constituírem o “código” comum, tanto do texto literário quanto do texto fílmico e televisual, que propiciam a passagem de conteúdos do literário ao sincrético, e constituem o ponto incoativo ideal para o percurso metalinguístico. (1996, p. 44)28. É a identificação conteudística de uma estrutura narrativa com diálogos e imagens vistos na tela que possibilita ao espectador reconhecer um filme como adaptação e, automaticamente, resgatar o texto-fonte. Por este viés, Balogh (1996, p. 43) assegura que “[o] filme adaptado deve preservar a sua autonomia fílmica, ou seja, sustentar-se como obra fílmica, antes mesmo de ser objeto de análise como adaptação. Caso contrário, a adaptação corresponderá ao que se costuma chamar significativamente de ‘tradução servil’”. É plausível destacar que, sob o pressuposto da relação entre literatura e cinema e com base nos fundamentos teóricos da Análise do Discurso, torna-se condizente que se tome como subsídio os conceitos de Outro/outro, ou ainda do Eu e o Outro no cinema e na literatura. Neste sentido, quando tratamos da relação existente entre o Eu e o Outro se faz necessário 28 Grifos do autor. 33 compreender que essa é de caráter binário, ou seja, para que um exista se faz necessária a existência de outro, como afirma Stam, “o eu necessita da colaboração de outros para poder definir-se ‘autor’ de si mesmo” (1992, p. 17). Assim, cada eu e cada outro só se constituem juntos. É tratar o outro como algo integrante de si mesmo, pensar que sem esse contato não existiria nenhum outro. Partindo do pressuposto de que o sujeito se caracteriza pela linguagem, a psicanálise procura formas de constituição do sujeito não como homogêneo, mas na diversidade de uma fala heterogênea, consequência de um sujeito dividido entre o consciente e o inconsciente, ou seja, entre o Eu e o Outro. Deste modo, a pesquisa concentra-se em analisar o discurso da policia, da milícia e da política, calcados nas bases teóricas da AD e da psicanálise. Neste aspecto, a análise sob perspectiva literária e cinematográfica fundamenta-se na psicanálise, pois o sujeito analisado convive entre conflitos, os quais o dividem entre o Eu e o Outro. Por esse motivo, os conceitos lacanianos agregam maior consistência à pesquisa, em sua condição de um dos três suportes da proposta teórico-analítica de Michel Pêcheux. É com base nesse confronto entre o Eu e o Outro que, nesta pesquisa, tomarei a personagem TC Nascimento como sujeito discursivo objeto desta análise, pois, além de se tratar de personagem protagonista, é um sujeito que vive atormentado entre o poder e o não poder, entre o aceitar e não aceitar. Isso ocorre por conviver discursivamente ligado à FD militar, meio este hierárquico29, baseado nas relações de subordinação. 1.2.2.1 Narrativa literária e narrativa fílmica – (des)aproximações Segundo Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985, p. 45), a narrativa literária está sendo influenciada pela narrativa cinematográfica. Essa tendência é fruto do crescimento das obras cinematográficas. Porém, mesmo possuindo características próprias, a narrativa literária e a narrativa fílmica podem e devem ser estudadas possibilitando uma relação dialógica entre ambas. É sabido que, antes de revelado, em um filme há aquilo que Avellar (1994, p. 106) diz ser a “fronteira entre o cinema e a literatura”: o roteiro. É a partir do roteiro que é feita a transmutação da narrativa literária para a narrativa fílmica. 29 Do latim hierarchia. Para fim de compreensão hierarquia militar, significa ordem, graduação existente numa corporação qualquer, estabelecendo relações de subordinação entre os seus membros e diferentes graus de poderes e responsabilidades. A divisão de hierarquia da policia militar brasileira consiste em coronel, tenentecoronel, major, capitão, primeiro-tenente, segundo-tenente, aspirante, subtenente, primeiro-sargento, segundosargento, terceiro-sargento, cabo e soldado. 34 O corpus é classificado como “best-seller”. O roteiro de Tropa de Elite 2- o inimigo agora é outro foi escrito com base no best-seller Elite da Tropa, escrito em parceria por Cláudio Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE, André Batista, major da Polícia, Cláudio Ferraz, delegado, e pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares. Juntos, os quatro criaram uma história baseada em fatos e acontecimentos – a CPI das Milícias na Assembleia do Rio de Janeiro, os inquéritos, as ações criminosas, além de histórias colhidas ao longo das pesquisas – e personagens reais – cujos nomes foram mudados a fim de evitar processos judiciais. É importante destacar que no livro Elite da tropa 2 estão descritos várias casos que envolvem a milícia. É somente a partir do capítulo XIX da obra que o diretor José Padilha passa a basear-se para produzir as cenas do filme. Partindo desse capítulo, é possível perceber as relações intertextuais e observar os pontos de contato do texto fílmico com o texto-fonte e as diferenças ocorridas na transposição cinematográfica. Assim, é possível destacar que várias passagens foram adaptadas ou até (re)criadas no texto fílmico, pois se sabe que essas peculiaridades referem-se às características próprias da linguagem do cinema. Em conformidade, Metz destaca que o cinema moderno é a ampliação das possibilidades narrativas, ou seja, longe de ser a destruição da narratividade, ao contrário, o cinema é o enriquecimento da narrativa, pois “o cinema é uma espécie de ‘terceiro estado da criação’ e existe um estilo autêntico, exclusivo, na captação da vivência humana em sua essencial abertura no tempo” (XAVIER, 2003, p. 47). Como já frisei, o corpus tem relação com a linguística. É por esse motivo que, ao tratar sobre cinema, Metz se reporta a Saussure, pois este contribuiu para o estudo da língua, e principalmente contribuiu para os estudos da semiologia, “de que a linguística faria parte, em tese, porque na verdade é da linguística que se constrói a semiologia” (2004, p. 78). Segundo Genette (1971, p. 25), a narrativa é o ato produtor de histórias que expressam o discurso do imaginário do enunciador com começo e fim – fim, aqui, como algo absoluto. Nesta mesma perspectiva, Christian Metz (1972, p. 42) conceitua narrativa como “discurso fechado que irrealiza uma sequência temporal de acontecimentos”. No entanto, vale enfatizar que esse fechamento é referente ao ponto de vista do objeto em sua totalidade, não das ressonâncias imaginárias que se proliferam no nosso consciente infinitamente. Resumidamente esse fechamento significa a materialidade do objeto e não à leitura que é apresentado. É por isso que no cinema, uma sequência de imagens tem como fim a última imagem, que, no entanto, as projeções imagéticas repercutem. Assim, na narrativa tem-se um fim, porém, na história, há uma contínua e infinita sequência. 35 O cinema contém imagens que repercutem na percepção dos atos cotidianos. É sob a perspectiva desse fator que o cinema tem grande repercussão em meio à sociedade de massa. Por outro lado, o cinema permite em poucas horas o conhecimento resumido sobre uma obra clássica de forma agradável através de um jogo de imagens e sons, pois, através da câmera e seus recursos, a montagem pode provocar imersões, emersões, interrupções, isolamentos, extensões, acelerações, ampliações, miniaturizações, abrindo, pela primeira vez, para o espectador, a “experiência do inconsciente ótico” (BENJAMIN, 1996, p. 84). Muitos trabalhos cinematográficos são baseados em obras literárias. É através dessa adaptação que a Literatura permite estudar e estabelecer comparações entre os polissistemas30 literários, as traduções, a intertextualidade, entre outros aspectos presentes na área literária. Assim, como garante Leyla Perrone-Moysés, estudando relações entre diferentes literaturas nacionais, autores e obras, a literatura comparada não só admite, mas comprova que a literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da literatura; cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea (1990, p. 94). Tanto a literatura como o cinema são verdadeiras peças de mosaico, uma complementa a outra. Desta forma, quando relacionada uma obra narrativa fílmica e outra narrativa literária, mesmo que sejam adaptadas, cada qual possui linguagem que lhe é própria. Porém, quando uma obra fílmica é baseada em uma literária, ocorre a passagem de uma linguagem a outra. Surge assim a tradução, e isso é possível entre o dueto, pois provoca a recriação. Desta forma, a aproximação dessas duas obras possibilita ao leitor/espectador (receptor) observar os níveis de intertextualidade entre as duas obras, porque há a transferência de conteúdos, sendo possível estabelecer inúmeras relações de significado. 1.2.3 Polícia e Milícia: definições suspeitas 30 Teórico que se destaca na teoria dos Polissistemas é Itamar Even Zohar, da Universidade de TelAviv. Em sua introdução à “PolysystemsTheory”, lembra que, ”dentro do Formalismo Russo, a concepção de literatura sofreu uma série de modificações, passando a integrar-se num arcabouço mais amplo de cultura. Como consequência, a teoria do polissistema trabalha com complexos mais amplos que literatura, sem, no entanto, desconsiderá-la. Assim, ela é concebida não como uma atividade isolada da sociedade, regulada por leis inteiramente diferentes daquelas que regem o resto das atividades humanas, mas como um fator integrante, muitas vezes exercendo a função dominante entre os outros” (NITRINI, 2010, p. 104-105). 36 Desde os primórdios das relações de trabalho, a história registra a exploração do homem pelo seu semelhante, em estruturas sociais de dominação que marcaram a rotina ocupacional do ser humano. Em sucessivos momentos históricos, encontra-se o registro de atividades profissionais que visavam a alcançar objetivos de otimizar lucros e gerar rentabilidade, em detrimento do bem-estar do trabalhador. À medida que as condições de trabalho se desdobraram em sociedades democráticas, as formas de dominação evoluíram para mecanismos de exploração, mantendo-se a velha rotina de explorador e explorado, característica das sociedades desiguais. Vinculada a esta dominação, encontra-se a violência31, que assoma indiscriminadamente, como um fenômeno mundial contemporâneo. Essa violência não pode ser dissociada das agressões cometidas pelo Estado contra populações civis, sobretudo aquelas situadas em regiões de baixa renda ou dentro dos presídios. Trata-se de uma violência que pode assumir diversas formas, desde a falta de assistência médica (a morte de qualquer cidadão por demora no atendimento em hospital público é uma forma de violência do Estado, por exemplo), passando pelos serviços precários no campo da educação, até a carência de saneamento básico, entre outras. Entre as diversas ramificações da violência, encontra-se a militar, mais especificamente a violência praticada por policiais e milicianos contra a população civil. É sob este enfoque, e com o intuito de compreender o discurso da e sobre a violência como um dos fios constitutivos do tecido social, que o tema se torna motivo de análise neste trabalho. A proposta deste trabalho, reitero, é também a de uma possível contribuição ao entendimento dos mecanismos pelos quais essa violência se constitui no discurso policial e no discurso das milícias. Com esse objetivo, a análise parte de uma perspectiva histórica e se desenvolve sob dois ângulos distintos, o dos policiais atentos às suas obrigações e diretrizes funcionais, e o dos policiais integrantes da milícia, entendidos como aqueles que ignoram as normas disciplinares, procedendo de forma oposta àquela dos que observam os princípios estabelecidos pelas normas social e legalmente aceitas como condizentes com a Formação Discursiva Policial (FDP). Evidências dessas diferenças comportamental-funcionais entre policiais e milicianos, tanto quanto indícios de que a corrupção policial se manifesta geralmente em lugares menos favorecidos, exemplificada pelo chamado "arrego" – propina paga pelos bandidos aos policiais milicianos que, em concordância com alguns políticos, apoderam-se de algumas 31 Do latim violentia. Significa “constrangimento físico ou moral” (FERREIRA, 1998). 37 favelas para roubar – são, por exemplo, possíveis de observar no seguinte trecho do livro Elite da tropa 2: Quem não se lembra da frase de efeito do célebre ministro da Fazenda da ditadura, que vários secretários de Segurança do período democrático, curiosamente, adoram citar? “não se faz um omelete sem quebrar os ovos”. Tudo bem. Desde que não sejam os deles. Desde que seus filhos estejam são e salvos em casa. Nós, policiais honestos, e a população pobre que mora nas áreas de confronto, nós que nos danemos. Fodam-se, eles pensam ao apagarem a luz da cabeceira e adormecer no colchão macio. Desde que as manchetes destaquem o heroísmo governamental no combate ao tráfico e desprezem os ovos quebrados, tudo bem. Eles saem no lucro, tanto as autoridades políticas quanto os policiais vigaristas. Uns acumulam votos; outros ficam com a grana, o espólio da guerra e o poder para elevar o valor do acordo – que eles chamam “arrego” – no mercado da corrupção. Claro, porque inimigos dos traficantes eles são à noite, nas incursões policiais. E há os milicianos, que são muitos. O tráfico já era. Está em franco declínio. As milícias, as nossas máfias, não param de crescer. São um sucesso. A tendência é que as máfias substituam o tráfico ou se unam a ele. (SOARES, 2010, p. 103). Esse desdobramento do suborno, da corrupção policial — termo aqui aplicado no sentido da corrupção policial juntamente com a corrupção no âmbito da política administrativa realizada por instâncias do poder público — resulta no surgimento das chamadas milícias, termo que não contempla a verdadeira dimensão desse fenômeno. Um dos grandes motivos da existência das milícias – assim afirmam os milicianos – é o péssimo salário. Por esse motivo, muitas pessoas que fazem parte da segurança pública acabam se envolvendo com a criminalidade para obter um ganho extra. No entanto, esses sujeitos possuem poder público legalmente instituído, especialmente a fé pública, motivo pelo qual muitas pessoas que vivem nas comunidades desfavorecidas acabam aceitando certas regras. Na realidade, os milicianos não permitem que bandidos entrem nessas favelas para extorquir os moradores, pois não querem dividir o lucro. Dessa forma, os milicianos afastam os bandidos das comunidades. Por esse motivo, os moradores preferem pagar taxas aos policiais que, em troca, forneceram segurança, do que pagar taxas – impostos – a bandidos que, ao contrário, geram ainda mais violência, ou ainda sujeitam-se a essas condutas policiais por falta de conhecimento para saber impor-se e reivindicar seus direitos. Na realidade, essa segurança oferecida pelos milicianos não deveria ser cobrada, pois são pagos pelo Estado para proteger a comunidade. No entanto, apoderam-se do poder e do armamento do Estado para ditar regras. Assim, o interdiscurso se inscreve em lugares sociais e neles alcança suas identidades. Dessa forma, relacionado à memória, o interdiscurso permite dizeres que já foram ditos, o que contribui para que o discurso da repressão ganhe sentido quando faz circular, portanto, formulações já enunciadas, o que contribui para que a 38 população não enfrente os milicianos, pois sabem as consequências. Ou seja, aqueles que discordam, ou não pagam seus impostos, são executados diante dos moradores, para que todos saibam quem matou e por que matou. 2 O DISCURSO DITO E O DISCURSO DO NÃO-DITO Os dizeres não são (...) apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz. ENI ORLANDI Eni Puccinelli Orlandi afirma que “as formações discursivas já apresentam recortes do interdiscurso. São regiões de sentidos já dimensionados, situados no conjunto do dizível e que representam as diferentes determinações do social, do político e do histórico” (2002, p. 165). A propósito, a mesma autora complementa explicando que “o dizer – domínio do interdiscurso – é o da globalidade do dizer que só adquire especificidade na determinação histórica das diferentes formações discursivas” (2002, 164), isto é, a não-formulação expressa com clareza, entretanto, está muito distante de indicar a falta da percepção ideológica. Tratando-se de discurso, Pêcheux (1975, p. 77) menciona a ideia de que “[ele] é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”, fato que contribui para a compreensão de que o discurso tanto policial quanto político aponta para outros discursos, pois não provém unicamente de um discurso, mas de vários. Assim, [o] sentido não nasce da vontade repentina de um sujeito enunciador. O discurso tem uma memória, ou seja, ele nasce de um trabalho sobre outros discursos que ele repete, ou modifica. Essa repetição ou modificação não é necessariamente intencional, consciente, nem imediata (...). Ao contrário, pode ser oculta ao sujeito enunciador. (MITTMANN, 1999, p. 271). Em um discurso é possível considerar tanto o que está dito e o que não foi dito, ou seja, está implícito, não é dito, mas é significado. Segundo Pêcheux, o imaginário linguístico é, então, “tirar as consequências do fato de que o não dito precede e domina o dizer” (2009, p. 260). De acordo com o pesquisador francês, na palavra se inscreve o não-dito, o que não é falado, no entanto, está ali entre meio o dito, e ganha sentido da forma que como a palavra é empregada, ou seja, pelas Formações Discursivas nas quais as palavras são produzidas. Em suma, Pêcheux afirma que por FD entende-se o lugar da construção do dito e do não-dito, isto corresponde a que o interdiscurso encontra-se nas entrelinhas, codificado. Assim, não é pertinente encontrar a verdade, mas compreender e explorar as diferentes formas 40 do dizer e a relação com o simbólico, para, desta maneira, entender como o texto, objeto linguístico-histórico, produz sentido. O discurso pode ser inicialmente definido como uma bem sucedida, mas provisória, fixação de sentidos. Daí que o conceito de discurso e a teoria do discurso partam do princípio de que as verdades anteriores ao discurso não existem. Isso é observado de outra forma, e coloca-se em oposição em relação a posturas essencialistas, que pensam em uma realidade pré-datada, que deve ser descoberta através da mediação da teoria. Neste intuito, é pertinente salientar que na teoria do discurso, a verdade é uma construção discursiva, afirmação que não pode ser confundida com a simplista ideia de que a verdade não existe. Assim, surge uma rachadura entre o conceito de discurso com o conceito de ideologia entendido como falsa consciência, presente na teoria marxista. O discurso existe porque ele é uma tentativa de dar sentido ao real, uma tentativa de fixar sentidos, que pode ser duvidosa, mas também pode ser verdadeira. Desta forma, é possível dizer que é duvidosa enquanto não essencial e, por isso, constantemente ameaçada de ser desconstruída. Já por sua vez, tem muito êxito porque contém uma continuidade histórica. Nesta perspectiva, quando o discurso é político, esta dinâmica torna-se simples de ser observada, pois o que é um discurso político, se não uma repetida tentativa de fixar sentidos em um cenário de disputas? Atualmente há uma disputa sobre os significados de noções como “esquerda” e “direita”, os quais já tiveram sentidos muito mais fixos do que têm hoje. Desta forma, a Análise do Discurso toma como estudo a política como uma tentativa de fixar sentidos, que têm a urgência como condição. Durante as campanhas eleitorais, esta urgência é ainda mais fácil de ser verificada. É importante observar a interpelação do sujeito por múltiplos discursos, entre eles os que considero pertinentes para este estudo, o discurso da milícia, o discurso do político e o discurso da policial. É oportuno afirmar que, como o discurso político, o discurso policial também tem locais da enunciação específicos. Porém, deve-se considerar que atualmente na contemporaneidade existem outros espaços na construção desses discursos e muitos estão agregados de violência, está não somente física32, mas também psicológica33 ou até mesmo através do discurso coercitivo34. Assim, especificarei no decorrer da pesquisa como os 32 Para efeitos deste trabalho, violência física é o uso da força com o objetivo de ferir, deixando ou não marcas evidentes. 33 Aqui, violência psicológica é a agressão emocional, tão ou mais grave que a física, comportamento típico de quem ameaça, rejeita, humilha, discrimina, configurando muitas vezes crime de ameaça. Há também a violência moral, que é caracterizada, muitas vezes, pela calúnia, difamação, injúria. 34 O discurso coercitivo é aquele capaz de exercer coerção, ou seja, que coage e reprime, “faz isso ou me vingo”, impõe pena. 41 discursos se bifurcam e intercalam no corpus constituído por Elite da tropa 2 e Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro. 2.1 Política, Polícia, Poder, Sistema: pelo interior das tramas discursivas A AD está restrita à interpretação. Assim, indaga limites e mecanismos da ideologia do sujeito, como parte do processo de significação (Orlandi, 2003). Através da AD, é possível perceber que de certa forma não existe uma única verdade, uma única interpretação. Há sim inúmeras possibilidades de compreender e interpretar um discurso. De acordo com essa premissa, pretendo identificar, através do corpus formado por Elite da tropa 2 e Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro, pistas dos diversos discursos35 pertencentes ao meio policial, e se estes estão ou não agregados ao poder36 e à violência. Para uma melhor compreensão sobre este trabalho, é necessário que se recuperem informações sobre as origens da polícia. Na antiguidade, o termo polícia significava constituição do estado ou da cidade, isto é, o ordenamento político do estado ou cidade. Com o passar do tempo, o termo polícia passou por modificações quanto as suas funções. No século XI, retira-se da noção de polícia o aspecto referente às relações internacionais. Nessa época, já desenhava o exercício de poder de polícia, tal como atualmente é considerado, no âmbito das comunas37 europeias, por seus administradores. Acompanhando as ideias propostas por Medauar, pode-se dizer que [...] Nessas comunas a atuação prática da polícia se caracterizava e se ajustava à manutenção da ordem e tranquilidade públicas; por isso, aí estão os antecedentes da concepção hodierna de poder de polícia e não nos sempre invocados regulamentos policiais do código geral prussiano, de 1794. [...] nos séculos XII a XV, [...] em muitas comunas francesas, existiu licença edificando, alinhamentos nas construções, polícia das profissões como proteção dos consumidores e a polícia sanitária, saindo, aos poucos, do âmbito da polícia, as matérias relativas à justiça e às finanças. (1995, p. 53). 35 Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder (FOUCAULT, 1996, p. 10). 36 O poder se exerce, nas sociedades modernas, através, a partir do e no próprio jogo dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma mecânica poliforma da disciplina (FOUCAULT, 1999, p. 45). 37 Cidade medieval emancipada e capaz de governar-se por suas próprias leis. 42 Nos primórdios do século XVIII, polícia designava o total da atividade pública interna, sem a justiça e as finanças, consistente em regular tudo o que se encontrava no âmbito do estado, sem exceção. Com o fim do período absolutista, surge o período conhecido como o “Estado de Polícia” que opressivamente vigiava a vida da população. A noção de polícia em sentido amplo, a partir desse momento, começa a dar lugar à noção de Administração Pública. Restringe-se o sentido de polícia sob a influência das ideias da Revolução Francesa, da valorização dos direitos individuais e da concepção do Estado de Direito, liberal-democrático, cujo substrato era dirigido ao princípio da legalidade, em seus dois aspectos: submissão do próprio Estado à lei por ele posta e ação de acordo com o que esta determina. A partir de então, a polícia passou a ser administrada e organizada da mesma forma como hoje é conhecida. Porém, algumas pessoas que fazem parte desta corporação passaram a ter discursos promíscuos, que envolvem comportamentos reprováveis, desonestos, imorais diante do juramento que fizeram ao ingressarem na atividade policial. A corrupção por parte das milícias é preocupante, pois estes têm poder de polícia, possuem a fé-pública e conhecem a organização dos Estados e do Sistema38. As ações contra a corrupção policial normalmente são reativas, sobretudo, em face de divulgação pela mídia de casos pontuais, demonstrando que a polícia aparenta como um apêndice da sociedade, e os policias envolvidos, como exceção à regra de honestidade. O que se verifica, entretanto, é que todo aquele envolvido na corrupção e apanhado pelo sistema, contribuiria para ajudar outros da sociedade e das organizações a se livrarem de qualquer responsabilidade, vale dizer, os corruptores. Esses policiais corruptos acabam por geral violência, a qual contribui para que se agrave cada vez mais a problemática situação em que se encontra a segurança pública no país. Essa corrupção dos milicianos afeta todos os extremos da sociedade, desde a educação, a saúde, o saneamento básico, enfim, toda a segurança pública. 38 A noção de “sistema” usada aqui é a qualificada por Guattari como “maquínica”, ou seja, trata-se de um “sistema maquínico”, produtor de subjetividades. Entretanto, cabe explicitar o ponto de vista de Rodrigues (2006), em artigo incluído numa coletânea que retoma Ernesto Laclau e Niklas Luhmann, publicada no mesmo ano. Nesse artigo, Rodrigues recupera alguns conceitos relativos a sistema, tanto de Laclau e Luhmann, quanto de Maturana e Varela. Estes agregam ao conceito ideias trazidas da biologia e que, por isso, permitem entender sistema de maneira similar a um organismo vivo: possui uma forma de circularidade, auto-organiza-se semanticamente a partir de suas próprias estruturas e nisto se aproxima do conceito de autopoiésis, “que requer produção, transformação, adaptação do sistema em relação às transformações do seu meio (entorno)”. Entretanto, Rodrigues lembra que por si mesmos o meio ambiente ou o entorno não podem reproduzir o sistema. Essa é a razão da proximidade com o sistema autopoiético, porque “mesmo sendo este um sistema operacionalmente fechado, responde às transformações do meio ambiente em que está acoplado, a partir de seus próprios componentes operacionais, com vistas a sua permanência como sistema” (RODRIGUES, 2006, p. 60). 43 2.1.1 O discurso da polícia Direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados, ou apenas reconhecidos, porém efetivamente protegidos, até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. NORBERTO BOBBIO A linguagem contribui para determinação de significados. Diferentemente da sequência estabelecida pela comunicação entre emissor, mensagem, referente, código e receptor, o discurso é concebido de outra forma, caracterizando-se diferentemente da simples transmissão de informação. Segundo Eni Puccinelli Orlandi (1999), não há separação entre emissor e receptor. Eles realizam simultaneamente a significação. Ainda de acordo com a autora, o discurso é considerado um efeito de sentido entre os locutores, assim o funcionamento no discurso é um conjunto de lugares que são determinados por uma topografia social nas quais os sujeitos se inscrevem e que funcionam imaginariamente no discurso (em relação com a posição-sujeito). A cenografia discursiva – constituída pelo eu/tu-agora-aqui do discurso em termos de locutor, destinatário, cronografia e topografia – é compreendida pelo fato de que o que funciona do discurso são relações que se produzem em um mecanismo de substituição. (ORLANDI, 2008, p. 154). A AD analisa o discurso do sujeito. Por esse viés, é que a AD contribui nesta pesquisa. Assim, o objetivo deste trabalho é compreender o discurso policial, que está agregado de poder. Como salienta Foucault (2006, p. 231), “o poder é um lugar estratégico onde se encontra todas as relações de forças poder/saber”. É desta forma que o discurso policial – aquele do profissional que procura ser honesto, e acima de tudo verdadeiro diante de sua corporação e seu trabalho – está relacionado com o poder e o saber. O discurso do policial, considerado em meio à corporação como correto, está vinculado com o poder do Estado, isto é, com o governo e a administração, é instrumento do poder executivo, além do legislativo, que contribui para que o discurso policial tenha fundamento legal. O sistema que engloba a polícia e o Estado é, antes de qualquer coisa, o que os clássicos do marxismo chamaram de aparelhos repressivos de Estado. Atente-se, quanto a estes, que 44 Este termo compreende: não somente o aparelho especializado (no sentido estrito), cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da prática jurídica, a saber: a política – os tribunais – e as prisões; mas também o exército, que intervém diretamente como força repressiva de apoio em último instância (o proletariado pagou com seu sangue esta experiência) quando a polícia e seus órgãos auxiliares são “ultrapassados pelos acontecimentos”; e, acima deste conjunto, o Chefe de Estado, o Governo e a Administração. Apresentada desta forma, a “teoria marxista-leninista” do Estado toca o essencial, e não se trata por nenhum momento de duvidar que está aí o essencial. O aparelho de Estado que define o Estado como força de execução e de intervenção repressiva “a serviço das classes dominantes”, na luta de classes da burguesia e seus aliados contra o proletariado é o Estado, e define perfeitamente a sua “função” fundamental. (ALTHUSSER, 1983, p. 62-63) Em muitos momentos o discurso policial é julgado pelos discursos moralistas. É o caso apresentado no corpus, especialmente quando o diretor põe em cena uma rebelião no presídio Bangu 1, quando um professor, defensor dos direitos humanos, é chamado para auxiliar na negociação entre policiais e amotinados. Após o término da confusão no presídio, relata a imprensa: “polícia foi massificadora, promovendo um massacre”. Vinculado com o Estado o discurso policial, está alicerçada a fé pública. Essa ideologia que compreende o discurso policial em torno da honra e dos deveres morais, está sustentada em uma ideologia, que é “um sistema de ideias, de representação que domina o espírito do homem ou de um grupo social” (ALTHUSSER, 1983, p. 81). Esse discurso policial é perceptível no corpus quando neste é mencionado o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE). É o caso do RDF-I 139, em que se vê o policial André Matias procurando cumprir seus deveres profissionais. Capitão Matias: – Olha para mim, filho da puta, você vai me falá aonde é que tão as armas da delegacia, agora, entendeu? Bandido Fita: – Não tão comigo. Capitão Matias: – Não tá contigo, não?! Tá contigo sim, me fala onde está essa porra agora, me fala seu filho da puta. Bandido Fita: – Não tá comigo porra, não tão. Capitão Matias: – Você não qué cooperá, não vai cooperá não. Bota ele no saco de novo, Bocão. 39 Capitão Matias pressiona o bandido Fita, dono do morro, para revelar com quem estão as armas e chega o coronel Fábio e o Major Rocha. 45 Neste instante chega o Major Rocha e mata com dois tiros o bandido líder do morro Tanque. Capitão Matias40 fica indignado, pois “não largava o osso até descobrir a verdade”. Capitão Matias: – Que porra é essa Rocha? Tá maluco, porra? O cara é dono do morro e ia me dar a porra das armas, rapaz. Major Rocha: – Parabéns, excelente trabalho do BOPE, capitão, era em cima dele que a gente tava atrás, não é não, Fábio? Capitão Matias: – O que tá acontecendo Fabio? Coronel Fabio: – Tá com pena de vagabundo, Matias? Capitão Matias: – Bocão, Tatuí, desce com o dono que eu vou ter uma conversinha com o coronel Fabio. O Capitão Matias percebe que há algo errado. Manda então seus dois colegas levar o corpo do bandido e fica sozinho com os policiais corruptos. André Matias começa a desconfiar de seus dois superiores. Então resolveu saber quem era a pessoa que, segundo Coronel Fabio e o Major Rocha, era de confiança e lhes passava informações sobre os bandidos do morro. Logo que os dois policiais levaram o corpo de Fita, Capitão Matias se vira para o Coronel Fabio e pergunta: Capitão Matias: – Que porra é essa, Coronel? O que, que tá acontecendo? Tô sentindo cheiro de merda. Quem é o informante? Coronel Fabio: – Vou procurar saber. Então, Matias se vira para o Major Rocha e pergunta: Capitão Matias: – Quem é o X-9? Você vai fazer o seguinte: você vai me ligar até mais tarde pra me passá o nome e o número do X-9. E eu quero isso pra hoje. Entendido, Major? Capitão Matias resolve sair do local. Major Rocha faz sinal com a cabeça para outro policial e este mata André Matias. A realidade é que Matias é Capitão do BOPE, assumiu o 40 É importante destacar que no primeiro filme o Capitão era o Nascimento, que procurava alguém para ser seu substituto. Já no segundo filme, tanto Nascimento quanto Matias sobem de posto hierárquico. Nascimento tornase Tenente Coronel Nascimento, e André Matias, que no primeiro filme era Aspirante Matias, recebe a promoção a Capitão Matias (este fica no posto que era de Nascimento, Capitão do BOPE). 46 lugar do Nascimento, que passou a Tenente Coronel Nascimento. Matias era um policial honesto, que trabalhava dignamente, ao contrário do Coronel Fabio e do Major Rocha, policiais corruptos que tinham sido responsáveis pelo roubo das armas da delegacia do morro Tanque. A câmera, que, enquanto o diálogo acontecia entre o Capitão e o bandido Fita, não se movimenta entre um personagem e outro, mantém plano americano, mostrando a imagem dos dois personagens em ângulo lateral, permitindo ao espectador observar a posição-sujeitopolicial autoritária de Matias sobre a posição-sujeito-bandido, o qual está na posição discursiva de entrevistado. Capitão Matias: – Olha para mim, filho da puta, você vai me falá aonde é que tão as armas da delegacia, agora, entendeu? Antes de iniciar a fala, Capitão Matias desfere um tapa no rosto do bandido, gesto com que a violência corporal é introduzida na cena. Na sequência, pressiona-o para revelar com quem estava, as armas da delegacia e o desmoraliza chamando-o de “filho da puta”. Assim é possível destacar duas formas de agressão, a física e a moral. Nessa perspectiva, quando o policial diz: “olha pra mim, filho da puta”, encara o tempo todo o bandido, enquanto este olha para o chão, não consegue fixar-se no olho do policial. Neste mesmo fragmento, é indispensável mencionar que Matias está dando uma ordem, o que é próprio do discurso policial. Dessa maneira, seu discurso contém um sentido, uma estrutura que o identifica como em posição sujeito superior, personalizando-o no contexto discursivo dos demais. O fato de bater no bandido é uma estratégia policial, usada como forma de pressão, para fazer o sujeito falar a verdade. Entretanto o bandido continuava a afirmar: Bandido Fita: – Não tão comigo. Fita nega o tempo todo ser o responsável pelo roubo das armas da delegacia. Tratandose de discurso, o uso de “tão” por “estão” remete estritamente à informalidade no português, não mantendo o distanciamento entre os personagens. Esse discurso informal é mantido por Matias, que ao continuar interrogando destaca: Capitão Matias: – Não tá contigo, não? Tá contigo, sim. Me fala onde está essa porra agora, me fala, seu filho da puta. 47 Percebendo que o bandido não estava cooperando e não iria revelar quem havia roubado as armas da delegacia, dá a seguinte ordem a seu companheiro de trabalho: Capitão Matias: – Você não qué cooperá, não vai cooperá, não. Bota ele no saco de novo, Bocão. Quando Matias diz: “bota ele no saco de novo”, está subentendido que anteriormente já haviam colocado o saco no bandido. Esse saco é colocado na cabeça para deixar a pessoa sem respirar, uma forma bruta de violência, embora colocar o saco na cabeça do bandido e trancar sua respiração, para o policial não significa violência; ao contrário, é um meio para fazer o bandido falar aonde se encontravam as armas. Para o policial, violência é o que os bandidos fazem com a sociedade, os quais roubam, matam, apoderam-se de armas que, em muitos casos, são maiores e mais poderosas que a dos próprios policiais, simplesmente para ver o caos se propagar. Neste sentido, para o policial, violência é quando o sujeito se apodera do poder para amedrontar e roubar outros sujeitos, e não quando a força é utilizada para conter a violência criminosa. Nesse mesmo recorte discursivo fílmico-imagético, Matias dá ordem ao seu colega, afasta-se do bandido e a câmera faz um travelling à esquerda. Assim é possível ao espectador ver outros três policiais chegando. Entre eles, vem Rocha, que, com uma pistola, atira no bandido e o mata com dois tiros. Matias surpreende-se com a atitude de seus colegas de profissão e o seu discurso passa a ser exaltado. Nesse instante, a câmera, em plano americano, é direcionada de modo a enquadrar Matias, Coronel Fabio e Major Rocha. Capitão Matias: – Que porra é essa, Rocha? Tá maluco, porra? O cara é dono do morro e ia me dar a porra das armas, rapaz. É conveniente destacar que Matias menciona muito a palavra “porra”, uso que se justifica pelo fato de o discurso policial ser pontuado por várias gírias, formas de tratamento específicas da corporação policial. O mesmo exemplo encontra-se na seguinte frase, quando o mesmo Matias fala: Capitão Matias: – Que porra é essa, Coronel? Qué que tá acontecendo? Tô sentindo cheiro de merda. Quem é o informante? 48 Neste instante, Matias, que é integrante do BOPE, policial que trabalha sempre procurando cumprir seu dever, percebe que algo errado está acontecendo, e pressiona o Coronel Fabio e o Major Rocha para que digam quem é a pessoa que os informa sobre os bandidos da favela, pessoa essa chamada de X-9. Capitão Matias: – Quem é o X-9? Você vai fazer o seguinte, você vai me ligar até mais tarde pra me passá o nome e o número do X-9. E eu quero isso pra hoje. Entendido, Major? Enquanto Matias discursa, Rocha fica parado somente olhando, sem nenhuma expressão facial. Rocha, assim, está “exercitando” o discurso do silêncio que, segundo Orlandi (2007, p. 47), “é assimétrico em relação ao dizer e a elipse é do domínio do silêncio”. Por isso, o silêncio preenche o sentido e tem sua materialidade definida na relação com o dizível e com o indizível. É nesse meio que o sujeito se insere no sentido, pois o silêncio, como a linguagem, tem um caráter de incompletude. Por outro lado, ele também é o lugar do equívoco e do deslocamento de sentidos. O silêncio é o lugar da polissemia, como afirma Orlandi: “o silêncio, media as relações entre linguagem, mundo e pensamento, resiste à pressão de controle exercida pela urgência da linguagem e significa de outras e muitas maneiras” (2008, p. 37). 2.1.2 O discurso da milícia É perceptível, pela análise do corpus, que o diretor do filme apresenta as situações discursivas entre milicianos e policiais sob um aspecto moralista, como um desvio de conduta que, por isso, deveria ser solucionado mediante punição, penal e administrativa, ao policial corrupto. No entanto, a corrupção das milícias engloba toda uma sociedade ou organização, tornando-se sistemática, envolvendo cidadãos dos diferentes setores da sociedade, das áreas públicas e privadas. O desvio de caráter dos milicianos está relacionado com a política e a estabilidade que o cargo proporciona. Assim sendo, há maior dificuldade para se desvendarem esquemas de corrupção, realidade que só será modificada se houver envolvimento entre a burocracia e a sociedade com esse objetivo. Por sua vez, há os incentivos positivos para o desempenho íntegro do encarregado da aplicação da lei, que são os benefícios materiais, a estabilidade, a estima social e a expectativa de promoção. A opção pela aceitação do suborno pode ser avaliada como decisão racional, na 49 qual o ator público compara estes benefícios morais e materiais do comportamento considerado socialmente como honesto com os benefícios e os custos do comportamento corrupto. A preocupação dos encarregados da aplicação da lei passa a ser sua avaliação, interpretando a probabilidade de um ato ser descoberto e provado. É por meio desse raciocínio que se pode controlar a corrupção de qualquer policial, ou seja, ele deverá estar comprometido com a sua missão institucional, isto é, possuir o senso de profissionalismo, tendo oportunidade de ver aumentar os incentivos positivos, tanto materiais como os imateriais, a exemplo da remuneração e estabilidade (material), e a sua auto-estima e reputação (imaterial). Por outro lado, no discurso da milícia, existe uma falta de conduta, uma falta de seriedade moral para com sua corporação. A propósito do termo conduta, Orlandi (2008) enfatiza que a “conduta” mostra que, sejam para Pessoas, Instituições ou Estados, esses elementos só podem estar reunidos, porque não se trata de Lei, não se trata de Regras sequer, trata-se de “Código” de conduta. É uma proposta “moral”. Pouco importa o aparato que se desenvolva à sua volta, que não serão senão comentários. Às vezes até bem substanciais, importantes, interessantes, mas apenas comentários em torno de uma proposta moralizante. Seu uso não sendo inocente, em um “mundo” em que dominam as relações de força, são essas que definirão sua tomada como argumento do Poder. Ou, na melhor das hipóteses, funcionará como os Direitos Humanos: tanto mais os reivindicamos porque uma vez declarados têm sido desrespeitados sistematicamente. Em uma sociedade, uma cultura como a capitalista, falar de algo não garante esse algo, ao contrário, muitas vezes o discurso sobre “x”, ao dar visibilidade, coloca esse “x” na berlinda. Tanto mais falamos de “x” tanto mais “x” é apagado. (ORLANDI, 2008, p. 171) Talvez essa seja uma leitura impiedosa, mas é certamente uma leitura possível. Tão possível que basta acompanhar os noticiários para sentir-se tomado pelo sentimento de impotência diante da real situação brasileira. Para uma punição efetiva, no entanto, faz-se necessário avaliar a forma como acontecem os casos de corrupção protagonizados pela milícia. Podemos tomar como exemplo o RDF-I 241, mostrando que na polícia há muita corrupção e cooptação. Nesse recorte discursivo fílmico-imagético42 é possível observar a polícia passando pelas ruas em meio a muitos bandidos, todos muito bem armados. Armas de 41 Capitão Matias se disfarça de policial corrupto para se infiltrar na favela e conhecer os bandidos, ver quais eram seus armamentos e identificar os policiais corruptos. 42 Segundo Metz, “o cinema é a linguagem artística mais do que veículo específico. Nascido da união de várias formas de expressões que não perdem inteiramente suas leis próprias (imagem, a palavra, a música, os ruídos até, o cinema, de chofre está na obrigação do compor, em todos os sentidos da palavra. É de imediato uma arte, sob pena de não ser nada. Sua força ou fraqueza consiste em englobar expressividades anteriores: algumas são plenamente linguagens (o elemento verbal), outras apenas num sentido mais ou menos figurado (a música, a imagem, os ruídos). No entanto, estas “linguagens” todas não estão no mesmo nível em relação ao cinema: o filme se apoderou posteriormente da palavra, do ruído, da música; ao nascer, trouxe consigo o discurso imagético. Assim é que uma verdadeira definição do ‘específico cinematográfico’ só pode se situar em dois níveis: discurso fílmico e discurso imagético” (2004, p. 75). 50 cano curto e cano longo, fuzis e pistolas. Enquanto a viatura passa pela rua, o discurso policial do protagonista Tenente Coronel Nascimento é ouvido em off: Narrador TC Nascimento: – A polícia do bairro tanque era tão corrupta que nem eu tinha conseguido tirar os vagabundos de lá. Pra toma o tanque só fazendo uma mega operação, mas isso o governador não queria. Em ano de eleição não pode morrer inocente. Foi ai que o Matias teve uma ideia genial, mas perigosa pra caralho. Não escapa ao espectador perceber as provas, nas mãos dos bandidos, da corrupção dos policias milicianos. Já na primeira imagem é visível o cenário de uma favela, com uma aglomeração de pessoas. Enquanto a câmera faz um travelling horizontal à direita, mostra nas mãos dos bandidos as armas que carregavam, com a maior tranquilidade, enquanto bebiam cerveja, vendiam e fumavam drogas. Ainda sobre o RDF-I 2, na sequência, surge a imagem de duas viaturas, o que não causa nenhum constrangimento aos vagabundos43. Enquanto a viatura passa, os policiais cumprimentam os bandidos com sinal de V44 com as mãos. Capitão Matias: – E aí, rapaziada. Imediatamente surge o discurso policial de Nascimento novamente em off: Narrador TC Nascimento: – Ele entrou no tanque em plena luz do dia e passou de vagarzinho na frente dos vagabundos. Policial motorista da viatura: – Ô 01, olha o cara, aí. É importante destacar que uma das evidências de que o policial Matias está disfarçado é quando o chamam de 01. Esse fato ocorre porque somente grupos de operações especiais têm um código de comunicação. Cada pessoa é chamada por um número, para dificultar ao bandido descobrir o nome do policial. Isso evidencia que todos os policiais que estão na viatura pertencem a um grupo de operações, no caso o BOPE, que estão disfarçados de policial praça45, no caso, representando os policiais corruptos. 43 Termo utilizado pelos policiais para homens corruptos, descumpridores dos seus deveres morais, bandidos. O sinal feito com as mãos em forma de V significa vitória, se as mãos estiverem viradas para fora. Entretanto, se for feito o sinal com as mãos em forma de V e a mão estiver virada para dentro, significa o equivalente – em palavras sutis – ao “dane-se”. 45 São conhecidos como policiais praça aqueles que não são policiais oficiais. 44 51 Por outro lado, é de suma importância esclarecer quanto ao significado da cor do fardamento dos policiais. A cor da farda administrativa46 da polícia do Rio de Janeiro (RJ) é camiseta branca, calça preta e gandola azul. Já nas imagens do recorte os policiais estão vestidos de cinza, farda do policiamento convencional extensivo operacional47 da PM do RJ. É por esse motivo que Matias e seu grupo estão vestindo cinza, pois estão disfarçados de policiais convencionais, que por pertencerem a um grupo de Operações Especiais,48 o BOPE, é diferente, seu fardamento é conhecido pela cor preta. Outra evidência de seu disfarce é a divisa49 em sua gandola. Na imagem, a divisa é o símbolo de 1º Sargento. O que comprova seu disfarce, pois na realidade Matias é Capitão, cujo símbolo é três estrelas prata na lapela da gandola. Capitão Matias: – E aí, Fita? Capitão Matias cumprimenta o líder do bairro Tanque com as mãos fazendo sinal de positivo50. Narrador TC Nascimento: – Era arma pra caralho. Se alguém desconfiasse de alguma coisa, Matias estava fudido. Só que o Matias foi disfarçado de corrupto, e os vagabundos acharam que tava tudo entre amigo. 46 São os policiais que trabalham internamente, somente no setor administrativo. O policiamento ostensivo, como o próprio nome já designa, deve ser o mais visível possível. Ele se realiza através da polícia ostensiva, por um conjunto de processos, de tipos e de modalidades. Policiamento ostensivo, de competência da Polícia Militar, são todos os meios e formas de emprego da Polícia Militar, onde o policial é facilmente identificado pela farda que ostenta, como principal aspecto, e de equipamentos, aprestos [petrechos de trabalho], armamento e meio de locomoção, para a preservação da ordem pública, observando critérios técnicos, táticos, variáveis e princípios próprios da atividade, visando a tranquilidade e bem estar da população. Disponível em: <http://capnight.vilabol.uol.com.br/po.htm> Acesso em: 16 de set. 2012, às 17h49m. 48 São denominadas Forças de Operações Especiais as unidades militares que têm treinamento diferenciado das tropas regulares que tem o dever de agir através da repreção após os delitos terem ocorrido. 49 Primeiramente em todos os postos da PM há duas garruchas cruzadas que representam a PM de todos os estados brasileiros. Em cima das garruchas encontram-se as divisas, que são conhecidas da seguinte forma: uma divisa, Soldado; duas divisas, Cabo; três divisas, 3º Sargento; quatro divisas, 2º Sargento e, cinco divisas, 1º Sargento. É importante destacar que as divisas desses postos encontram-se na manga da gandola e que sempre devem ser contadas de cima para baixo. Já as divisas dos oficiais encontram-se na lapela da gandola, enquanto o BOPE usa as divisas dos oficiais na gola da gandola. As divisas dos oficiais são conhecidas da seguinte forma: uma estrela prata, 2º Tenente; duas estrelas prata, 1º Tenente; três estrelas prata, Capitão; uma estrela dourada e duas estrelas prata, Major; duas estrelas douradas e uma estrela prata, Tenente Coronel; três estrelas douradas, Coronel. 50 Esse gesto que, para nós, é sinal de aprovação ou concordância, é um claro exemplo do quanto as barreiras linguísticas podem nos confundir. Tente evitá-lo na Tailândia, visto que, lá, o sinal é sinônimo de desaprovação. É um gesto típico das crianças tailandesas, mais ou menos equivalente ao mostrar a língua. Se você cometer o deslize, os tailandeses ficarão mais confusos do que ofendidos; em todo caso, é bom evitar. Já em Bangladesh e no Irã, o gesto é altamente ofensivo e tem o mesmo significado de “mostrar o dedo do meio” para nós. No Japão, esse gesto informal significa “namorado”, e o seu uso não é recomendado para homens. Disponível em: http://www.loucoporviagens.com.br/2011/10/26/10-gestos-comumente-mal-interpretados-no-exterior/. Acesso em: 13 de setembro de 2012 às 11:55. 47 52 Assim que a viatura chega à delegacia, muito próxima do local em que se encontravam os bandidos, os policiais desembarcam da viatura e seguem em direção à porta onde outros dois policiais estavam parados. Nota-se que Matias chega próximo, cumprimenta-os, mas não os toca, mantém distância física enquanto que logo atrás outro policial corrupto cumprimentaos dando-lhes a mão. O fato de Matias não tocar nos policiais milicianos comprova o que Freud constatou, isto é, na medida que o eu se desenvolve o corpo o acompanha. Segundo Courtine, o corpo é associado à consciência e ao inconsciente e desta forma se torna uma dimensão fundamental do sujeito sobre outro sujeito. Assim, o sujeito expõe-se através da linguagem corporal, seus gestos não são meramente superficiais e inúteis, isto é, o componente corporal está integrado ao processo pulsional, a seu inconsciente. O ponto crucial deste recorte é o depoimento do narrador protagonista, Tenente Coronel Nascimento, que relata a barbárie que os políticos são capazes de fazer em ano eleitoral com a ajuda da milícia. É justamente por esse motivo que a criminalidade se agrava, tomando conta da sociedade, tornando-se praticamente impossível algum controle sobre essa mesma criminalidade após as eleições. Isso permite compreender que as milícias se apoderam de seu fardamento e de seu poder para interesses próprios. Acompanhando-se as ideias propostas por Speck para combater a corrupção, conclui-se que são necessários mais incentivos positivos para os encarregados da aplicação da lei, mais probabilidade de desvendar comportamentos corruptos e punições mais severas têm um peso reduzido se comparado com o volume de recursos que o outro lado, por exemplo, o crime organizado, pode jogar na balança dos custos e benefícios do comportamento do corrupto (1998, p. 57) . Assim, parece nada adiantar combater a corrupção sob o ponto de vista individualmoralista, como é o discurso dos polícias considerados em meio à corporação corretos, mas, sobretudo, sob o ponto de vista organizacional ou sistêmico. Um dos componentes do discurso da milícia é o discurso da violência, em grande parte concentrado na criminalidade materializada em danos materiais e físicos, estes visíveis. Porém, há aqueles discursos que acarretam outros problemas, são os que danificam as crenças e os costumes morais e psicológicos. A noção de violência que se perpetua no discurso policial e da milícia. Em especial a violência verbal, acha-se intensificada quando vista em relação à representação que é feita desse discurso na mídia. Portanto, a violência muda de fisionomia e de escala de acordo com a maneira pela qual os mesmos fatos são apreendidos, julgados e divulgados. 53 Este paradoxo existente entre a consolidação de uma relação entre a milícia e a polícia considerada honesta por sua corporação, e entre a sociedade e o Estado, tem uma longa tradição de desigualdade excludente, que caracteriza as relações entre os grupos sociais e deve ser considerado, se o que está em causa é entender o fenômeno da violência da milícia. Segundo o ponto de vista de Simmel (1983, p. 132), pensar a violência como algo que, associado a outros elementos, contribui para a compreensão do desenvolvimento das relações sociais, sobretudo se a violência é abordada através da noção de conflito. Neste caso, o conflito vai aos poucos se dissociando do aspecto que cerca o conceito de violência como ato extremo, como forma de aniquilamento do outro. Os elementos unificadores nas relações de conflito entre os grupos e indivíduos que podem impor limites à violência, isso até em situações de guerra, em que as partes beligerantes, com o intuito de estabelecer um certo grau de confiança, assumem acordos para um possível tratado de paz no pósguerra, o que demonstraria ainda haver algum tipo de fator socializante. Já a ausência desse fator pode ter como exemplo o assassinato cometido por alguém. Neste caso, os elementos unificadores do conflito são quase zero. Outra situação problemática em meio à corporação policial é o desvio de conduta, o desvio de finalidade, que “vai desde o uso indevido de meios materiais postos à disposição da polícia, passa pelos efeitos retirados da atividade policial para atender interesses menores e chega ao exercício deliberado de funções policiais que não são exatamente de competência do respectivo órgão” (LAZZARINI, 1995, p. 63). Estabeleceu-se, ainda, a concepção de ordem pública, que transcende o referencial legal, legítimo e moral do grupo social. A partir daí, havendo interações individuais no espaço público, ou seja, viabilizando a convivência pública, tem-se a segurança pública, que deve ser entendida como atividade-meio para a garantia da ordem pública. Por sua vez, em relação aos responsáveis pela segurança pública, soluções devem ser procuradas para vencer os problemas de violência, de corrupção policial e o desvio de finalidade, um verdadeiro desperdício de recursos que não resultam em melhoria para a busca de excelência na prestação de seus serviços. E, por isso mesmo, há em parcelas da sociedade certa dose de preconceito e até mesmo discriminação contra detentores de funções públicas na área de segurança, justamente pelas condutas que praticam, condutas que violam, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, notadamente, do mais fraco e menos favorecido pelas políticas públicas. 2.1.3 O discurso da política 54 O que o movimento dos discursos políticos reflete antes de tudo são as contradições das lutas políticas e sociais, e não diretamente os grupos em si. J.-B. MARCELLESI A AD francesa surge em meio ao movimento estruturalista, sob a forma de uma síntese entre a linguística e a psicanálise. Assim, desde seu surgimento privilegia o estudo do Discurso Político (DP). Desde então mudanças constantes são visíveis na contemporaneidade com relação à Análise do Discurso Político51 (ADP), o qual é por excelência o lugar de um jogo de máscaras, onde os conceitos construídos completam-se, ou se omitem, ou se excluem, porque são marcados pela historicidade que se agrega a sua existência categorial. Por sua vez, Chauí (1995, p. 367-377), questiona a política, indagando (...) ela é uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós, por que vivemos em sociedade? (...) a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado? (...) Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada? Parece-nos que a sociedade moderna está configurada de tal modo que a política é uma conduta que o sujeito tem para com o Estado, corresponde a ser um elemento determinante das relações da convivência entre os sujeitos em sociedade. Outrossim, é pertinente questionar o que se entende por discurso político. Ou então, talvez mais importante ainda é indagar quais são os discursos produzidos pela política. Ou ainda, se devemos analisar a política enquanto discurso. Mas, então, cabe perguntar se a política seria apenas discurso. Outra pergunta cabível: a ação política seria secundária em relação ao discurso ou constituiria, ao contrário, a base política na qual o discurso seria implantado? Obviamente as respostas não se apresentam de forma clara, muito menos devem ser tomadas através de um ponto de vista particular. O discurso político, não diferentemente de outros discursos, modifica-se conforme a época, o local em que acontece. A partir do pensamento de Pêcheux, Jean-Jacques Courtine passa a observar as mudanças do Discurso Político. Assim, em Análise do Discurso Político: o discurso 51 A Análise do discurso (político) mostra-se assim como veiculadora de uma política (da Análise do discurso), mantendo uma relação fundamente ambígua com o que tomo a liberdade de chamar aqui de imbecilidade (ALTHUSSER, 2009, p. 22) 55 comunista endereçado aos cristãos (2009), Courtine postula a necessidade de alargar o estudo sobre a AD. Courtine destaca que a constituição, a formulação e a circulação da discursividade política contemporânea implicavam a rápida obsolescência de sua filiações históricas e o reflexo de princípios ideológicos, sua manifestação sincrética, rápida e fragmentada, na qual o verbo não poderia mais ser dissociado do corpo, do rosto, dos gestos e das imagens e sua transmissão em novas e mais velozes mídias (2009, p. 09). Desta forma, Courtine destaca que o foco dos corpora na Análise do Discurso é destacado a partir de textos predominantemente escritos sob uma visão ampla, englobando pistas que auxiliem a compreender as mutações que ocorrem nos discursos políticos, fato que impôs a ideia de se examinar a ligação entre o corpo e o discurso nas falas da política. Courtine passa a estudar as transformações do atual discurso político, que a seu ver é fruto do desenvolvimento do médium audiovisual, isto é, a relação entre o corpo e o discurso. Desta forma, Courtine desenvolve uma pesquisa minuciosa sobre as práticas e representações do rosto e passa então a compreender que “o rosto é capital nas percepções de si, nas sensibilidades do outro, seja nos rituais da sociedade civil, seja nos protocolos políticos” (COURTINE, 2009, p. 10). É indispensável enfatizar que, em nosso país, há alguns escritos sobre discurso político que não podem deixar de ser destacados. É preciso mencionar, entre esses estudos, as análises de Haquira Osakabe, com Argumentação e Discurso Político (1979)52; Eni Puccinelli Orlandi, com A linguagem e seu funcionamento (1987)53; José Luiz Fiorin, com O regime de 1964: discurso e ideologia (1988); Freda Indursky, com A fala dos quartéis e outras vozes (1997)54 e de Mónica Zoppi-Fontana, em Cidadãos Modernos: Discurso e representação política (1997)55. Segundo Garcia, 52 O autor alia noções de análise do discurso, de linguística e de retórica e analisa questões ligadas ao campo da subjetividade, inscrevendo-a, quer no âmbito das categorias linguísticas, quer no das operações de progressão discursiva. 53 Incorporando as noções de social e histórico, a autora busca distinguir o estabelecido do não-estabelecido e questionar a consciência desta distinção no homem quando este produz linguagem. 54 Estabelece o referencial teórico sobre a constituição do sujeito político (nós), a representação desse sujeito em suas diferentes configurações, bem como a construção do Outro e a representação de interlocutores e destinatários. No universo destas representações, fortemente marcadas pelo trabalho discursivo que conduz da determinação à indeterminação, simbólico e imaginário encontram-se estreitamente entrelaçados. 55 Explora os caminhos teóricos e analíticos abertos por questões como racionalidade política, modernização do Estado, morte das ideologias, falsas esquerdas e direitas anacrônicas, estudando o caso do discurso alfonsinista na Argentina. 56 O discurso político foi profundamente repaginado sob os holofotes, com novas formas de discursividade, novas práticas de leitura, com cores, sons, luzes, câmeras. Não se pode mais separar discurso político da imagem, assim como não se separa mais o homem político de sua imagem (2010, p.29). O discurso político faz parte da interação humana. Não necessariamente precisa ser um político ou um cientista político para compreender que há diferentes ambientes nos quais o Discurso Político ocorre, como, por exemplo, no legislativo federal, estadual e municipal, no executivo, nos governos, tanto federal, estaduais, municipais, além, é claro, na própria polícia, tema deste corpus. É o lugar da governança56. Tratando-se de política, pode-se citar o Recorte Discursivo Fílmico-Imagético 3 (RDF-I 3), o qual revela o quanto o discurso da política é calcado no jogo do poder. Primeiramente os políticos que estão sentados à mesa, almoçando, conversam e articulam a campanha eleitoral prometendo benefícios à comunidade, se esta os apoiar a eleição. O recorte discursivo fílmico imagético inicia apresentando ao espectador uma festa na comunidade das Vilas das Rochas – nome dado ao local pelo próprio miliciano Rocha. Surge o discurso do policial Tenente Coronel Nascimento em off. Nascimento: – O sistema estava mudando, evoluindo, antes os políticos usavam o sistema pra ganhar dinheiro, agora eles dependiam do sistema pra se eleger. Enquanto Nascimento fala, a câmera em zoom aproxima o espectador até as personagens que estão sentadas à mesa. Logo atrás das pessoas há uma faixa pendurada, onde se lê: “Ano de justiça e paz”. É uma frase própria do discurso político, pois nessas épocas as promessas sempre giram em torno da igualdade, da justiça, da paz. Enquanto a câmera se desloca, proporciona imagens de sujeitos festejando, sambando, bebendo cerveja e fumando droga. Os homens, moradores da favela, vestem calção, camiseta e chinelo, enquanto que as mulheres estão vestidas com calções curtos e blusas com decotes ligeiramente ousados, o que sugere o desnível da mulher, a sua não valorização social. Já, por sua vez, os políticos que estão sentados à mesa juntamente com alguns milicianos, diferentemente dos demais personagens, estão vestindo camisa social. Assim, inicia o discurso político: Deputado Fortunato: 56 “Governança” é aqui definida em um sentido amplo: é tudo o que participa da gestão do poder em um grupo social, qualquer que seja sua dimensão. Essa noção engloba, pois, aquela mais restrita de governo, que se refere ao aparelho institucional de Estado. 57 – Entenderam? A quadra de esporte já tá funcionando, as crianças praticando na quadra. Secretário de Segurança Iguaraçi: – A praça pública, a reforma da praça pública já tá em andamento, a coleta do lixo tem todo nosso apoio, o governador tá aqui pra não deixar mentir. Governador: – Tenha a certeza que faz parte de nossas prioridades o apoio à comunidade. Rocha: – Governador, sem palavras, sinceramente. Só um minutinho. Rocha dirige-se até o microfone, dispara dois tiros para o alto, como forma de pedir silêncio, e fala: Rocha: – Calma, gente! Hoje é numa boa, hoje é numa boa. Hoje é numa boa. Queria agradecer a presença de todos aqui em nossa comunidade. Rocha inicia seu discurso de agradecimento e apoio aos políticos. A posição-sujeito de Rocha promove as relações de poder, pois ao atirar para cima estabelece uma relação de autoritarismo entre policial e sociedade civil. Assim, o discurso é feito na posição-sujeito-civil mas não se faz dissociado da posição-sujeito-policial. É o discurso daquele que deve ser obedecido e que tem o poder de fé pública. Portanto, naquele momento e especialmente no meio da favela, é ele o sujeito discursivo investido no poder de afirmar o que está certo ou errado. Entretanto, o sentido do discurso feito desde uma posição-sujeito-policial é opacificado pelo lugar discursivo de onde Rocha fala – a mesa de um bar e na presença de um superior hierárquico, o governador, e de autoridades civis, os deputados –, identificando-se com uma posição-sujeito-civil, de quem não tem poder de mandar e deve acatar as normas estabelecidas. É um jogo imaginário que sustenta o autoritarismo. Rocha agradece aos deputados. A câmera em plano americano desloca-se entre um sujeito e outro. Rocha: – Ao nosso eterno padrinho do coração, Deputado Fortunato. Muito obrigado, Deputado Assim que o Deputado Fortunato é cumprimentado, levanta-se. A população começa aplaudir. O discurso produzido pela imagem da posição-sujeito-político em contraponto com o discurso da imagem da posição-sujeito-eleitores permite, de certa forma, um deslocamento: a população é constituída somente por eleitores, necessários apenas durante as eleições. Já o 58 discurso vazado da posição-sujeito-político exercida sobre o sujeito posição-sujeito-policial é de interesse, pois o sujeito-discursivo-policial tem domínio sobre a favela e é através desse sujeito-discursivo que o sujeito-discursivo-político conseguirá o apoio da comunidade para conseguir votos. Por isso Fortunato diz: Deputado Fortunato: – Sou teu fã. Rocha abre os braços em sinal de um abraço. Em seguida, com a mão direita, bate no peito mostrando que Fortunato está no seu coração. Porém, ao mesmo tempo em que bate no peito com a mão direita, com esta mesma mão segura uma pistola, gesto que possibilita entender que Fortunato é e será seu amigo enquanto lhe convenha; caso contrário, a arma o eliminará facilmente. Rocha: – Estamos juntos. Neste momento o Deputado Fortunato puxa uma criança para perto de si e a beija na cabeça, atitude própria do discurso político, que é cumprimentar amistosamente pessoas idosas e crianças. Rocha: – Hoje é um dia de festa. Esse recorte contribui para a compreensão de que a política é um jogo de interesses, fato que se tornou mais visível após a expansão do acesso aos meios de comunicação, que contribuem para ampliar o conhecimento da população sobre o universo da política, através dos noticiários, especialmente quando esses geram polêmica. Nas últimas décadas, a política passou a ocupar vários espaços nos meios de comunicação, desde a mídia falada, escrita, televisão à internet. Assim, a mídia deixou de ser um espaço pelo qual o discurso político se expressa e passou a ser um espaço de construção de discurso. A propósito das contradições evidenciadas no discurso político, J.-B. Marcellesi (1975, p. 122) afirma que “o movimento dos discursos políticos antes de tudo são as contradições das lutas políticas e sociais, e não diretamente os grupos em si”, ou ainda, apesar de sua restrição 59 está bem entendido que os contrastes na utilização da língua por grupos de diversas ordens são os resultantes das contradições da sociedade, mas a determinação pode ser complexa e passar por diversas mudanças e interações de modo que a consciência social pode muito bem não ser idêntica à existência social. (MARCELLESI, 1975, p. 4) Em suma, todo discurso está relacionado ao discurso de poder, assim pretendem impor verdades tanto morais, quanto éticas e comportamentais: Isso alimenta o jogo desleal, a falta de ética, a corrupção, a mentira, a desonestidade como meio, a prática da criminalidade, com seu sentido diluído. O discurso é o neoliberal. A sociedade é uma sociedade individualista ao extremo e esta não é uma questão moral, mas política. Deve-se aos modos de individualização dos sujeitos no capitalismo mundialista e ao funcionamento das instituições que não são regidas por um Estado de direito, mas apenas legalista. (INDURSKY, 2011, p. 40). Entretanto, o discurso político se destaca entre todos os demais discursos neste particular. Enquanto os demais tendem a descolar seus desejos de poder, tornando-se opacos, o discurso político explicita sua luta pelo poder. Desta forma, é próprio do discurso político utilizar o discurso como forma de poder. 2.1.4 O discurso do sistema O Sistema – funcionamento do conjunto de elementos interligados e que funciona como um todo estruturalmente constituído – entre a política, a milícia e a polícia no corpus Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro é gerado em torno da violência que legitima o discurso da paz. Para compreender o sistema que engloba o discurso da política, da milícia e da polícia é necessário compreender que em meio a esse emaranhado de discursos existam ainda o discurso jurídico57 e o discurso judicial58. Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2004) a base do discurso jurídico é a retribuição e/ou a ressocialização, enquanto o discurso policial seria marcado pelo teor de suas normas e regras, as doutrinas morais. O discurso judicial desenvolve sua própria cultura: pragmática, legalista, regulamentadora, de mera análise da letra da lei, com clara tendência à 57 São as regras, os órgãos, as doutrinas, as leis, as normas, os costumes que descrevem, organizam, e modificam nosso ordenamento jurídico. É um conjunto de normas que regem toda a organização de uma nação. 58 É o conjunto dos órgãos públicos, ao qual a Constituição Federal (1988) atribui o poder e as funções. 60 burocratização. As expressões moralizantes policiais [...] não ocultam tampouco sua tendência burocratizante. Em geral há uma manifesta separação de funções com contradição de discursos e atitudes, o que dá por resultado uma compartimentalização do sistema penal: a polícia atua ignorando o discurso judicial e a atividade que o justifica [...] (ZAFFARONI & PIERANGELI, 2004, p. 71). Conforme as palavras dos autores antes mencionados, é visível que a incongruência de discurso acaba gerando fraturas no Sistema Penal, cujos segmentos terminam sendo desestabilizados. Obviamente, ambos os poderes, Jurídico e Penal, deveriam, pela lógica do sistema, ter uma interação não contraditória. Por mais que se acredite em uma utopia, a realidade brasileira “é nua e crua” (SOARES, 2010, p. 17), quanto ao Sistema Penal, surgindo dos sistemas já mencionados vários tipos de discursos: o judicial, cuja morte foi declarada há muito, mas que insiste em ser utilizado, que reafirma o caráter ressocializador da intervenção penal. A esse se agregam o retributivo – este, sustentado pela ideologia da defesa social –, e o policial, especificamente falando, o BOPE, que insiste no teor moralizante da atividade policial. Devido ao crescimento das milícias e das denúncias, através da mídia, de corrupção gerada pelos policiais, acabou surgindo uma descrença da população em relação à polícia. Desta forma, o discurso moralista acabou por ser desacreditado, pois “casos sucessivos de corrupção e brutalidade feriram de morte [...] a confiança da sociedade em suas polícias.” (SOARES, 2006, p.10). Devido a essa descrença popular para com a polícia, surge o filme Tropa de Elite e Tropa de Elite 2 – o inimigo agora é outro, no qual o BOPE recupera o discurso moralista da polícia, em razão da antítese entre policiais corruptos – milícias – e os policiais honestos, os “caveira”59 – BOPE – sendo que estes “recebiam o mesmo salário de seus colegas da polícia convencional, mas eram incorruptíveis. Foram acusados de brutalidade desmedida, mas sua honestidade foi amplamente reconhecida.” (SOARES, 2006, p. 7). O discurso que o BOPE assume, discurso esse moralista, acabou fazendo com que a rachadura provocada pela contradição dos discursos adotados pelos segmentos do Sistema Penal se transformasse em efetiva ruptura. Com isso, os segmentos policiais e judiciais não só atuam de maneira desarmonizada, como passam também a surgir constantemente problemas de embate entre eles. A situação que engloba o Sistema Penal e o Sistema Judicial com relação à polícia não é diferente com a política. Desta forma, o BOPE entra em confronto com o Estado, isto é, em 59 Policiais que realizaram cursos de operações especiais, cujo símbolo de todos os cursos de operações especiais é uma caveira. 61 confronto com o Sistema Judicial, político e das milícias, desmascarando esses grupos, os quais deveriam estar atuando de maneira concertada para a realização do controle social – desestabilizando por completo o Sistema Penal brasileiro. Segundo Althusser em Aparelhos Ideológicos do Estado (1983), o Estado não é público muito menos privado, mas sim é “a condição de toda distinção entre o público e o privado” (1983, p. 69), pois o que interessa de fato é o seu funcionamento, não são as instituições que o constituem individualizadamente. Significa dizer que o que de fato interessa é como esse Estado funciona como um todo estruturado com relação a determinado fim. Diante dessa concepção dominante, qual o efeito da crítica de Althusser à teoria descritiva do Estado e de sua contribuição com a noção de aparelho ideológico de Estado? Em primeiro lugar, Althusser desloca a questão de seu funcionamento. O caráter do aparelho de Estado e sua posição na luta de classes não estaria no lugar jurídico que ele ocupa na estrutura da sociedade, mas no seu funcionamento, repressivo ou ideológico. A burocracia, as Forças Armadas, o Judiciário, o governo, não seriam repressivos porque se encontram em mãos de uma classe dominante ou de seus representantes, mas porque seu funcionamento é coercitivo, porque é uma máquina de guerra, cujo produto é uma relação de subordinação entre classes. A mudança de mãos do aparelho repressivo de Estado não muda em nada o seu caráter. Fica claro, com isso, que o funcionamento, tanto coercitivo quanto ideológico, do aparelho de Estado não é o neutro ou instrumental – não é unidirecional – mas sim, contraditório. (ALTHUSSER, 1983, p. 16) Segundo Althusser (1983), o que diferencia o Aparelho Ideológico do Estado do Aparelho (repressivo) do Estado é a violência e a ideologia. Neste tocante, Althusser destaca que o “Aparelho repressivo de Estado ‘funciona através da violência’ ao passo que os Aparelhos Ideológicos do Estado ‘funcionam através da ideología’” (1983, p. 69). Todo Aparelho do Estado funciona através da ideologia e da violência, seja ele repressivo ou ideológico. Porém, cabe argumentar que existe uma diferença importante que os diferencia. Assim, o aparelho repressivo do Estado está vinculado à repressão (tanto física como moral) e “secundariamente através da ideologia (não existe aparelho unicamente repressivo). Exemplos: o Exército e a Polícia funcionam também através de ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os ‘valores’ por eles propostos” (ALTHUSSER, 1983, p. 70). Tratando-se do poder do Estado, é preocupante a corrupção que engloba a polícia, a milícia e a política, é um sistema intolerável, pois os políticos deveriam pensar a sociedade 62 como um todo, criando leis para o bem estar social, assim os policiais deveriam ser os primeiros guardiões da Lei e da ordem social60. Essa corrupção é possível ser vista no Recorte Discursivo Fílmico-Imagético 4 (RDFI 4)61. Neste, Tenente Coronel Nascimento depõe sobre o sistema que engloba políticos e milícias. Tenente Coronel Nascimento: - É que policial não puxa esse gatilho sozinho. Deputado Fraga, metade dos seus colegas aqui dessa casa deveriam estar na cadeia. O Recorte inicia em plano americano, com a imagem de Nascimento. Na sequência, Nascimento olha para o deputado Fraga e com isso a câmera faz um corte mostrando, em ângulo lateral traseiro, Nascimento, o qual olha para Fraga. Em seguida, a câmera faz um travelling para a esquerda mostrando os deputados exaltados, uns em pé, outros sentados. Deputado Fraga: - Por favor, senhores! Eu peço silêncio para garantir a palavra do depoente, por favor. Imediatamente Fraga pede silêncio para o TC Nascimento prosseguir com seu depoimento. Enquanto o deputado pede silêncio Nascimento diz: Tenente Coronel Nascimento: - Metade é pouco, senhor deputado. Deputado Fraga: - Vamos manter o silencio, por favor, por favor. Fraga continua pedindo colaboração e silêncio. Assim, que diminui o barulho, TC continua seu depoimento, enfatizando novamente a mesma frase: Tenente Coronel Nascimento: - Metade é pouco deputado. Aqui tem uns seis ou sete de ficha limpa. 60 Conceito tomado à Sociologia. Segundo Ogburn e Nimkoff, citados por Lakatos e Marconi, “a ordem social é fundamentalmente baseada em grupos de pessoas e na disposição de seus comportamentos e teria dois aspectos fundamentais – a estrutura e as funções por esta realizadas. A estrutura constitui-se na organização de grupo de pessoas, através de organizações sociais, cada qual com identidade própria, como a família, a empresa e o partido político, entre outras; já as funções, o que cada um desses grupos faz, com respeito ao respectivo funcionamento, para alcançar os objetivos que lhes determinou se constituírem como tais (2009). 61 Depoimento de Nascimento em uma CPI organizada pelo Deputado Fraga. 63 A câmera, enquanto o diálogo acontece, alterna seu olhar entre um personagem e outro, deslocando sua imagem do TC para o Deputado Fraga e para os alterados políticos que estavam presentes à sessão da CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito. O olhar do espectador acompanha a câmera que ora mostra a imagem de Nascimento e o Deputado Fraga e ora mostra os políticos através do olhar do TC. A cena discursiva contribui para o espectador compreender o simbólico do silêncio, a palavra não-dita. Isto é, através do olhar é possível visualizar os personagens presentes e seus gestos, além de permitir compreender o cenário, os objetos contidos no espaço discursivo, para dessa forma compreender e interpretar a materialidade linguística constitutiva do discurso do Tenente Coronel Nascimento. O discurso e a interpretação existem em qualquer manifestação de linguagem. Em conformidade com Orlandi, “os sentidos não se fecham, não são evidentes, embora apareçam ser. Além disso, eles jogam com a ausência, com os sentidos do não-sentido” (1996a, p. 9). Esse ponto de vista, aplicado ao sentido do discurso fílmico, possibilita compreender o conteúdo simbólico com que o cineasta José Padilha trabalha, possibilitando ao espectador imagens que interpretam o cotidiano e que possibilitam novas possíveis interpretações. Assim prossegue o depoimento de Nascimento: Tenente Coronel Nascimento: - Deputado Fortunato, o senhor é chefe de uma das maiores organizações criminosas dessa cidade. Todos os políticos novamente se alteram, ficam em pé e começam a discutir juntos. O Deputado Fraga novamente precisa interromper para pedir silêncio. Deputado Fraga: - Por favor, vamos manter silêncio, por favor. Imediatamente, em tom calmo, a personagem Tenente Coronel Nascimento retoma seu discurso. Tenente Coronel Nascimento: - O senhor age em parceria com o comandante, ex-comandante da polícia militar do estado Rio, ex-secretário de segurança, seu Guaraci Novais, um dos piores bandidos que eu tive o desprazer de conhecer na minha vida como policial. E eu posso afirmar aqui, deputado, que o governador do estado do Rio de Janeiro está diretamente envolvido nos crimes investigados aqui, por esta casa. Deputado Fortunato, o senhor é mandante de mais de 20 assassinatos na zona oeste da cidade, entre eles, o senhor é mandante do assassinato do meu amigo, Capitão da Polícia Militar, André Matias. 64 O discurso do TC Nascimento deixa claro o envolvimento da milícia com a política, o que faz com que as pessoas presentes demonstrem estupefação diante de tamanhas barbáries praticadas por poder e dinheiro. Enquanto Nascimento faz seu depoimento, o Deputado Fortunato fica sentado, com olhar fixo em Nascimento. Somente no final levanta-se e sai devagar da sala. Em contrapartida, os demais políticos agitam-se. Enquanto TC Nascimento depõe na CPI, o discurso do Deputado Fortunato é o do silêncio. Esse discurso de silenciamento do Deputado não tem apenas “um” sentido, mas sim múltiplos sentidos, e que não estão ligados apenas a um lugar pré-definido. Isto é, o sentido é construído nas relações entre locutores, já que sentidos e sujeitos se constroem mutuamente, no jogo das Formações Discursivas. Essas FDs “recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do dizer) e refletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constitui sentidos diferentes” (ORLANDI, 2007, p. 20). A câmera, em plano-americano lateral, mostra o Tenente Coronel e nos fundos da sala o Deputado Fraga. Logo em seguida, enquanto o policial continua falando, a câmera faz um plongée lateral para mostrar os deputados. Na sequência, a câmera, em plano médio, fixa-se no rosto do Deputado Fortunato, que está paralisado, olhando fixamente para Nascimento. Instantaneamente a câmera, em plano médio, como se fosse os olhos do espectador, mostra a imagem do rosto do TC, e, em seguida, movimenta-se em zoom, lentamente aumentando a lente até mostrar todo o ambiente. Quanto ao silêncio do Deputado Fortunato, não é o da convicção e da certeza, mas o da concordância de seus atos perante o depoimento do policial. O discurso de Nascimento permite identificar uma das propostas da AD, isto é, a noção de que tanto o sentido quanto o sujeito constituem-se no espaço discursivo. Assim, ao Deputado Fortunato pelas regras socioideológicas que correspondem à posição-sujeito do TC Nascimento como depoente, corresponde a posição-sujeito de ouvinte, a quem cabe apenas escutar, tomando conhecimento do que está sendo dito. Enfim, o depoimento de Nascimento comprova que ele possui uma concepção ética. A população sempre espera um comportamento íntegro da polícia, e, naturalmente, de seus policiais, não diferente da política, quando elege seu candidato. Porém, o que a população vivencia é o alto nível de corrupção e cooptação de ambas as partes, possíveis de serem vistas/ouvidas nos noticiários, pois, mudam-se as fotos dos políticos, mas o destino manifesto 65 da corrupção dos governantes e seus mandatários da divisão do poder em escala decrescente continua o mesmo. 2.2 Tramas discursivas O sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. ENI ORLANDI São inquestionáveis os fluxos e refluxos da corrupção e da violência, que se ramificam em meio às tramas do sistema que engloba política, polícia e milícia. Assim, é pertinente destacar que, para compreender os andaimes desse sistema, é necessário um olhar preciso e conciso sobre os conflitos sociais que envolvem as esferas do poder. É importante destacar que a imagem de que o Direito Penal é capaz de solucionar todas as questões e conflitos sociais não passa de um equívoco, como também o é querer justificar o crescimento da criminalidade – diverso do tema violência – à falta de um sistema penal mais rígido62. Toda proposta que pretenda alongar a ação punitiva estatal, sabidamente, ou não, parte de uma análise ilógica e contrária às diversas constatações empíricas que apontam outros motivos, sobretudo de ordem social e econômica, como grandes fomentadores diários da violência e da criminalidade. Ao fazer isso, os desavisados acabam por incorporar a crença em tais soluções, enquanto seus mentores (ou mal intencionados), em regra, continuam a vender o pavor e ilusões com interesses nitidamente particulares, quer econômicos ou políticos, cujo propósito é a preservação de um sistema social que seleciona indivíduos, conforme critérios definidos por aqueles que sempre tiveram o poder de mando. De fato, vive-se em uma sociedade que tudo manipula como num tablado maniqueísta, entre o bem e o mal. Neste sentido, descrever estes sentimentos ou valores, especialmente por 62 As leis de natureza penal, hoje em dia, parecem veicular uma perigosa assertiva que tomou conta dos ensandecidos que, equivocadamente, vêm no Direito Penal a solução para todas as mazelas, ou quase todas: é preciso passar por cima das garantias constitucionais, ignorar a ética e os ditames da consciência jurídica democrática no combate sem trégua ao crime, que atormenta a sociedade. Captando equivocada legitimidade através da dramatização da violência – cujo conceito é conduzido ideologicamente a não parecer mais que a criminalidade comum -, os grupos interessados em mais repressão se organizam em torno da ideia de que a paz e a segurança do cidadão dependem de desprezar os direitos fundamentais garantidos, como se eles não fossem de todos os homens, mas apenas, dos “bandidos” (AGUIAR, 1996, p. 52). 66 serem antagônicos por natureza, bastaria a descrição de um para se ter a compreensão do outro, com a correspondente inversão conceitual. Na tentativa de melhor explicar, Bauman faz exatamente a indagação do que é o mal, para, em seguida tentar construir uma resposta. Essa é uma pergunta irremediavelmente viciada, embora teimosa e apresentada a todo o momento, e estamos fadados a buscar em vão uma resposta a partir do momento em que é feita. A pergunta “o que é o mal?” precisamente o tipo de iniquidade que não podemos entender nem articular claramente, muito menos explicar sua presença de modo totalmente satisfatório. Chamamos esse tipo de iniquidade de “mal”, pelo próprio fato de ser ininteligível, inefável e inexplicável. O “mal” é aquilo que desafia e explode essa inteligibilidade que torna o mundo suportável... Podemos dizer o que é o “crime” porque temos um código jurídico que o ato criminoso infringe. Sabemos o que é “pecado” porque temos uma lista de mandamentos cuja violação torna os praticantes pecadores. Recorremos a ideia de “mal” quando não podemos apontar que regra foi quebrada ou contornada pela ocorrência do ato para o qual procuramos um nome adequado. Todos os arcabouços que possuímos e usamos para registrar e mapear histórias horripilantes a fim de torná-las compreensíveis (e, portanto neutralizadas e desintoxicadas, domesticadas e domadas – “tolerável”) se esfarelam e se desintegram quando tentamos esticá-los o suficiente para acomodar o tipo de maldade que chamamos de “mal”, em razão de nossa incapacidade de decifrar o conjunto de regras que essa maldade violou (BAUMAN, 2008, p. 74-75) Quanto a distinção entre o “bem” e o “mal”, é simplesmente impossível uma definição única e concreta, isso porque, varia de acordo com a perspectiva do sujeito que a interpretar. Vale ressaltar que sempre ao citarmos uma necessariamente comparamos com a outra, não conseguimos nos desligar dessa dualidade, e isso, percorre toda a história da humanidade, e não simplesmente agora na modernidade. Com relação a organização social em muitos momentos torna-se uma trama discursiva entre o poder policial e político, pois em muitos momentos o fator crime está relacionado ao pecado, ao que é “bom” o que é “ruim”. Neste intuito, Bauman destaca que tanto o crime quanto o pecado é o que o sujeito descreve ou realiza diariamente. Por outro lado (FOUCAULT, 2004), destaca que o poder de julgar associa-se à ideia de juízo final. A penitência à sanção penal. Por esse viés, é que a punição criminal é um castigo, que normalmente corresponde a prisão. É indispensável destacar que muitas das aturais repressões, isto é, tanto os castigos físicos, quanto os corporais, e até mesmo a condenação a morte são oriundas dos nossos antepassados, 2.2.1 Corrupção versus Cooptação: o discurso das conveniências na base do crime 67 A corrupção está ligada com a cultura ética da sociedade, pela qual as instituições políticas estão formadas. Em nosso país, a corrupção se perpetua no meio social e tem poderes de cooptar muitos indivíduos, especialmente quando está alicerçada ao poder e ao ter (dinheiro). O tema corrupção sempre está relacionado aos valores morais. Por outro lado, a corrupção não deixa de ser um crime. Essa criminalidade torna-se muito mais grave quando há a cooptação de outros indivíduos, que se apropriam do poder público para obter ganhos. Quanto à corrupção e a cooptação da política e da polícia, é pertinente citar como exemplo o RDF-I-5, que apresenta o miliciano Rocha comandando a corrupção e a cooptação na favela, isto é, o bandido paga uma taxa aos milicianos para poderem continuar vendendo droga na favela: assim “ambos lucram”. O recorte discursivo fílmico imagético inicia com a câmera posicionada em plongée, filmando as personagens de cima. Esse enquadramento produz um efeito de diminuir a estatura das personagens, de inferiorizá-las, pois as situa em um plano inferior em relação a algo maior do que elas, que as vê desde cima e relativiza sua dimensão com relação ao conjunto da cena. Bandido: – Só tem quinhentos reais pra mim te dá. Na sequência, a câmera filma o bandido, em plano americano, desde o ângulo traseiro. O discurso do bandido deixa clara a corrupção dos milicianos – ele precisa “dar” dinheiro aos milicianos para poder continuar vendendo droga. Rocha: – Da onde tá vindo esse dinheiro se tu não tá vendendo nada? Tá dando o cú agora? Imediatamente a câmera muda de posição, filmando os milicianos de um ângulo traseiro e o bandido de um ângulo frontal. E assim a câmera mostra em close ora o rosto do bandido, ora o rosto do miliciano. O discurso do policial corrupto contém um tom de superioridade, ao mesmo tempo quando afirma “tu não ta vendendo nada” é possível perceber que os milicianos controlam a venda das drogas na favela. Instantaneamente pede se estava se prostituindo para conseguir dinheiro. A linguagem utilizada pelo miliciano o coloca no mesmo nível que o bandido, o próprio acaba se rebaixando. 68 Bandido: – Que dando o cú, porra! Essa grana é do gato net, esse bagulho vem da boa. Fica evidente, nessa cena, que o bandido deixa vazar um não-dito, isto é, a explicação de como conseguiu dinheiro pelo gato net. Foi então que Rocha disse: Rocha: – Me dá um papo aí? Rocha utiliza gírias para falar com o bandido, isto é, usa o discurso próprio dos moradores das comunidades, isto é, das favelas. Quando ele diz: “dá um papo aí?”, está ordenando que o bandido explique melhor como conseguiu o dinheiro. Seu tom de voz e sua expressão corporal deixam claro o seu autoritarismo frente ao bandido, demonstrando que possui poder e dominação. Bandido: – Esse bagulho aí, Rocha, morador tem que dá R$12,00 pra nóis, tá ligado, é bagulho, mereça, é só para um morador ter uma televisão em casa, mésmo. Neste discurso é perceptível um dos princípios da AD – a noção de que tanto o sentido quanto o sujeito se constituem no espaço discursivo em que o sujeito está inserido; é o que comprova a forma da linguagem do bandido, um sujeito provindo de um meio cultural sem estudo, e com ideologias partidas da apropriação do poder e da corrupção, usando de violência para cooptar os moradores das favelas. Sobre esse discurso podemos citar Pêcheux, quando afirma que o sentido de uma palavra, expressão, proposição, etc., “não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a realidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão no jogo do processo sóciohistórico no qual as palavras, expressões, e preposições são produzidas” (1997b, p. 160) Neste instante ouve-se o discurso policial de Nascimento, em off. Nascimento: – É nada como uma crise econômica pra aguçar a criatividade. Foi só cortar o arrego do tráfico que os corruptos perceberam o óbvio. Qualquer comunidade pobre do Rio de Janeiro é muito mais que um ponto de venda de droga. Enquanto se ouve em off o discurso policial do TC Nascimento, as imagens, em plano americano, entrecruzam-se entre policial e bandido. O discurso de Nascimento permite ao espectador perceber a cena com melhor clareza, pois após a comunidade ter sido dominada 69 pelo BOPE, que bloqueou a entrada de drogas na favela, os bandidos precisaram arrumar outra forma para extorquir a população. Foi então que o miliciano percebeu que eliminando o bandido dono da favela poderia ficar em seu lugar e cobrar taxas – roubar – da população utilizando o discurso da proteção. Bandido: - Qual é, Rocha, bagulho é o que tu come, essa é uma adiantada, dá uma aliviada na minha comunidade, pô, sem neurose. Rocha: - Quem foi que disse que a comunidade é tua? A cena se desloca na tomada seguinte, em que em primeiro plano é direcionado às mãos do Rocha, o qual aponta uma arma e atira no bandido. As regras socioideológicas que ditam a posição-sujeito de Rocha, isto é, corresponde a posição-sujeito de policial responsável pela organização social. Com a morte do bandido, o cineasta oferece a possibilidade de duas perspectivas, “ou o morto é igual a nada (...) ou trata-se de uma mudança” (PLATÃO, 1964, p. 37). Neste caso, essa posição-sujeito é de corrupto e bandido, o qual mata para assumir o lugar do outro. 2.2.2 Relações duvidosas: crime e poder nas tramas do sistema O Brasil é um país democrático. Esse fato proporcionou aos brasileiros inúmeras novidades para a operação do sistema político no país. A democracia contribuiu para o aumento dos direitos da população, em especial aqueles relacionados à participação política, tanto no que se refere à composição do eleitorado, quanto no que se refere à participação dos cidadãos na democracia, isso graças à Constituição de 1988. Tratando-se de poder, constata-se que a polícia – um aparelho institucional do Estado – também está ligada com a corrupção. Alguns policiais utilizam-se do poder para agir criminalmente. Assim, o político desonesto e a polícia miliciana fazem parte de um sistema corrupto. Entretanto, não é errado afirmar que, o que resta para os dias atuais, como se pode observar, é essa usurpação do poder, característica das sociedades pós-modernas, que acabou abrindo precedentes para outras práticas de poder, por parte dos governantes. Tratando-se de poder versus crime, é plausível questionar: todo poder gera o crime? O crime existe somente porque existe o\poder? Todo político e todo policial fazem uso correto do poder? Todo político e todo policial é corrupto? 70 Em muitos momentos o poder e o crime não estão interligados, já em outros momentos um apodera-se do outro. O poder político e policial, isto é, o poder do sistema, está diretamente ligado à dominação e à violência. O Estado por si só impõe sua autoridade sob a aparência da legalidade, impondo saberes ao sujeito dominado, portanto, a submissão. O estado é uma relação de dominação exercida por homens sobre outros homens e apoiada a violência legítima (...). para que ele exista é preciso, portanto, que os homens dominados submetam-se à autoridade reivindicada por aqueles que se encontram em posição de dominação em cada caso considerado (WEBER, 2003, p. 119) Quanto ao poder de dominação que se apoderou do Estado, ele contribuiu para uma devastadora aglomeração de crimes, tanto políticos como policiais. Os sujeitos que participam desse sistema perceberam que se unindo poderiam tirar vantagens próprias. No entanto, não é possível afirmar que todos os envolvidos nesse sistema concordam com a corrupção e a criminalidade. Há uma relação duvidosa, porque nem sempre o poder gerará crime, ao mesmo tempo em que nem sempre o crime está ligado com o poder. Tal processo, pode estar representado no Recorte Discursivo Fílmico Imagético 6 (RDF-I 6), em que milicianos sob comando de Rocha percebem que, além de tirar dinheiro dos traficantes, podem extorquir dinheiro dos moradores. Desta forma, começam a cobrar taxas as mais variadas possíveis dos moradores. Nascimento: – O Rocha descobriu que eliminando ex-presidiário o sistema faturava muito mais. Tava na cara, era só fazer as contas. Nesse pequeno recorte as cenas alteram-se rapidamente. Inicia a filmagem em plano americano (PA) com o miliciano Rocha, o qual mata o bandido líder da favela. A câmara registra o fato, faz um close-up63 na arma e na claridade que ela provoca com o tiro. Instantaneamente Nascimento narra em off a história, mencionando alguns dos meios de corrupção com que Rocha e seu grupo passam a se envolver na favela. As cenas são acompanhadas por uma trilha musical64 de acentuado valor estético e simbólico, despertando 63 Primeiro Plano (close-up): a câmera, próxima da figura humana, apresenta apenas um rosto ou outro detalhe qualquer que ocupa a quase totalidade da tela (há uma variante chamada primeiríssima plano, que se refere a um maior detalhamento – um olho ou uma boca ocupando toda a tela) (XAVIER, 1984, p. 19). 64 Marcel Martin (2003) afirma ser “a música a contribuição mais interessante do cinema falado, sendo o diretor musical, juntamente com o diretor da fotografia, o principal criador da plástica cinematográfica”. Lembra, também, “compositores como Maurice, Jaubert, Georges Auric, Joseph Kosma, Georges Delerue (franceses) e Hanns Eisler, Kurt Weill, Nino Rota e Giovanni Fusco, entre outros, como responsáveis por fazer da música de filme um gênero autônomo e perfeitamente válido no plano artístico. Martin cita, inclusive, o diretor russo 71 o espectador para os movimentos das imagens. No início, em contra-plongée a câmara filma um homem instalando gato net. Na sequência, a câmera desloca-se para cima e filma em plongée o miliciano Rocha e seu grupo chegando para verificar se tudo estava certo. Rocha: – E aí, Irineu! Venderam muita assinatura aí? Eletricista: – Sim, patrão! Daqui a pouco vai ter que botá poste. Rocha: – Ah! Poste a gente arruma, segue aí. Na sequência, as imagens acompanham o discurso em off do TC Nascimento mostrando os corruptos cobrando uma porcentagem sobre a venda da água, do uso da Internet, do gás, etc. Nascimento: – Favelado gosta de assistir TV a cabo. Sacho: – E aí, seu Valdir! Enquanto é audível o discurso em off de Nascimento, ligeiramente a câmera mostra os moradores da favela, donos dos estabelecimentos comerciais, pagando taxas aos milicianos para poderem continuar comercializando. Nascimento: – Favelado bebe água. Favelado acesa a Internet. Rocha: – O pessoal tá conectando? Porra, tá todo mundo plugado, olha aí, Sacho! Nascimento: – Favelado usa gás para cozinhar. Sacho, dirigindo-se a um morador e tirando-lhe das mãos um botijão de gás: – Tio, isso aqui está confiscado. Pode deixar aí. O senhor vai descer a ladeira. Vai pegar a primeira à esquerda. Lá no canil do Baiano, é lá que o senhor vai comprar o gás. A cena põe diante do olhar do espectador a favela situada em morros ou espalhada por grandes ladeiras. Por outro lado, mostra a pobreza das pessoas, tanto na vestimenta quanto nas Vsevolod Pudovkin: “assim como a imagem é uma percepção objetiva dos acontecimentos, a música exprime a apreciação subjetiva dessa objetividade” (2003, p. 123). 72 casas, pobreza até de conhecimento, além de aglomerações de pessoas, a sujeira e o comércio em barracos. Nascimento: – O Rocha descobriu que era melhor arrecadar a favela inteira do que apenas de um bando de traficantes fudidos. Era só o dinheiro trocar de mãos que o Rocha cobrava a taxa CPMF de bandidos – Comissão de Policiais Militares Filhos da Puta. Pretexto para defender a comunidade do tráfico, a realidade era bem diferente. As milícias aliadas com a política aproveitam-se do poder para extorquir a população. Fazem falsas promessas, como defender a comunidade do tráfico. Porém, a realidade é muito diferente. Valem-se da corrupção e da cooptação para enriquecer, como é possível observar na imagem: o miliciano tira das mãos do morador o botijão de gás, que fora comprado fora da favela, e o manda comprar no ponto de venda existente na própria favela. Desta forma, tudo que a população comprar fora da sua comunidade acaba sendo confiscado. Como ninguém quer correr o risco de perder dinheiro, acabam todos se sujeitando a fazer as compras dentro da favela e pagando mais caro por elas. O discurso do poder gerador de crimes é visível no corpus. É discurso oriundo tanto da polícia, quanto da política. A constituição do corpus discursivo permite levantar, por meio da coleta dos recortes discursivos e fílmico-imagéticos, hipóteses relevantes para avaliar que o poder está diretamente ligado à polícia e à política, ao mesmo tempo em que, em alguns casos, está diretamente ligado à criminalidade e especialmente à violência. 3 PELOS NÓS DO SISTEMA O sistema de língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento. Entretanto não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso. MICHEL PÊCHEUX Muito embora o filme tenha sido produzido com base no livro Elite da tropa 2, a história fílmica de José Padilha não reproduz fielmente a narrativa escrita, até porque esta contém várias histórias paralelas, enquanto aquele se enreda em torno da história do Tenente Coronel Nascimento, em sua saga para compreender o sistema. No entanto, é importante mencionar que Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro traz diversos elementos e informações contidas em Elite da tropa 2, em especial o que interessa ao trabalho aqui proposto quanto às características de atuação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) e da policia militar. Por mais que se tente fazer um texto transposto parecer uma reprodução fiel da sequência narrativa literária, instauram-se similaridades e diferenças por conta das peculiaridades de cada narrativa. Geralmente, em um processo de transmutação fílmica de um romance, o material linguístico-textual é rearranjado (há supressões, acréscimos, substituições, deslocamentos, etc.), para que o texto passe de verbal a sincrético e obedeça às características do meio de expressão, por exemplo, a duração. Sob tal perspectiva, um resgate fiel do original torna-se quase impossível. Cada produtor de cinema faz sua própria leitura do texto literário, o que favorece uma série de adaptações, com focalizações diversificadas e, desse modo, no final da produção de um filme, pode-se notar o grau de proximidade e fidelidade ao original. 74 Tanto a obra cinematográfica, quanto a obra literária expõem as ações polêmicas do BOPE e da Polícia Militar (PM) convencional, suscitando debates em torno do papel de atuação da polícia e do Estado como um todo no combate ao crime organizado, às milícias. O filme inicia com um fundo escuro (RDF-I 7). A música de suspense imediatamente atrai a atenção do telespectador. Em meio ao fundo escuro ouve-se o som de alguém montando uma arma. Surge a frase escrita em branco: “Apesar de possível coincidência com a realidade, este filme é um obra de ficção”. Na sequência, em plano detalhe, surge a imagem das mãos de alguém montando um fuzil 762. Logo em seguida, a personagem é vista por trás; só então é possível reconhecê-lo, é o Tenente Coronel Nascimento. Essa cena acontece no hospital, conclusão possível devido à ambientação da cena, no interior de uma UTI: em primeiro plano, gotas de soro que se transmudam do interior de uma embalagem plástica, além do aparelho que marca os batimentos cardíacos, mas em nenhum momento o espectador consegue perceber quem está hospitalizado. Logo em seguida, surge a imagem de Nascimento saindo do hospital. Compõe a cena a trilha sonora de Pedro Bromfman, “Tropa de elite 2 - Nascimento sem saída”. Enquanto Nascimento se desloca, homens disfarçados o seguem e se comunicam através de rádio HT. TC Nascimento dirige-se até seu carro, um Honda Fit. A cena ocorre à noite. Nas imagens há pouca claridade, as personagens vestem preto, o que acentua ainda mais o mistério. Antes de entrar no carro, Nascimento olha ao seu redor, tira a arma da cintura, depois entra no carro e coloca a arma sobre o banco do caroneiro. Sai do estacionamento do hospital. As ruas estão escuras. Enquanto isso, dois carros o seguem. Em uma esquina, outros dois carros o fazem parar bruscamente. Do interior desses carros começam a atirar contra o de Tenente Coronel, deixando o Honda Fit totalmente destruído. A história inicia pelo seu desfecho. Se o espectador não assiste a essa sequência inicial, o efeito é diferente quando chega ao término do filme. Tal efeito está associado ao sentido preciso das imagens, proporcionado pela técnica da montagem. Em meio ao contexto fílmico, é a memória discursiva que se recupera, isto é, o filme inicia com uma das cenas finais. Porém, mesmo o filme iniciando com o desfecho da história, as sequências discursivas não são homogêneas, completas, muito menos temporais e ideologicamente lineares; ao contrário, são calcadas, pois, na memória. As marcas históricotemporais estão diretamente ligadas às interlocuções. Assim, essas marcas se distinguem pelos componentes tensionais e conflitantes que as constituem. Por outro lado, essas marcas se alteram em significação e em alguns determinados momentos uma prepondera sobre a outra e acaba predominando, concretizando-se na condição de “história da língua: a história dos 75 sentidos cristalizados é a história do jogo de poder da/na linguagem” (ORLANDI, 1996, p. 162). Cada sujeito possui sua história e esta fica marcada em sua memória. Essa história é, pois, o jogo de poder que esse sujeito pratica, pelo uso da linguagem, a favor de fins em determinados momentos específicos, conforme salienta Pêcheux (AAD-69, p. 82), desde um determinado lugar por ele ocupado na estrutura da formação social. Como o sentido sempre ocorre na interlocução, esse jogo de poder da/na linguagem é permanentemente (re)construído, constituindo-se em processo dinâmico de construção de sentidos e de linguagem, de alternância de jogos de dominância de uns sentidos sobre outros sentidos possíveis. Esse processo dinâmico de construção dos sentidos necessita ser entendido como um estado de “tensão entre o texto e o contexto social (social, histórico-social). Há tensão entre interlocutores: tomar a palavra é um ato social com todas suas implicações. E se há sentido em se falar em dois “eus” é no sentido de que há conflito na constituição dos sujeitos” (ORLANDI, 1996, p. 151). Ainda em conformidade com Orlandi, [o]s dizeres (...) não são apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz (...). Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali mas também em outros lugares, assim como o que não é dito, e como o que poderia ser dito e não dito. Desse modo, as margens do dizer, do texto, também fazem parte dele (1999, p. 30). Desta forma, o discurso de um sujeito pode ser interferido de vários discursos, que podem ser percebidos através da memória presente na interlocução e podem se fragmentar em significações variadas, quer seja no nível do intradiscurso, ou seja, no fio do discurso, ou no nível do interdiscurso, isto é, as diversas formações discursivas, e assim uma se entrelaça com a outra. 3.1 Revisando os fios do tecido O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” [...] mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sóciohistórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas. MICHEL PÊCHEUX 76 Reitero que este trabalho consiste em analisar os fios discursivos que constituem o “tecido do dizer” dos sujeitos-policiais e dos sujeitos-políticos a partir dos efeitos de sentidos produzidos pela regularização no e do discurso da formação desses sujeitos, por acreditar que nos permite revisar o papel do policial e do político, papel de (trans)formação desses sujeitos. Assim, cabe salientar que “o sujeito é constituído pela ideologia, uma vez que toda ideologia tem por função (é o que a define) “constituir” indivíduos concretos em sujeitos” (ALTHUSSER, 1983, p. 93). Diante dessa problematização, surge a necessidade de, em primeira instância, discutir os valores semânticos na perspectiva da AD. É conveniente salientar que o texto “A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso” escrito por em coautoria por Haroche e Henry, em 1971, provoca reflexões teóricas acerca do pensamento de Saussure e de vários estudiosos sobre fonologia, sintaxe, morfologia e semântica. Vale ressaltar que é na semântica que Pêcheux passa a centrar sua atenção para assim propor os estudos dos sentidos, pois “para os gramáticos e neo-gramáticos, a semântica estava reduzida ao estudo da mudança de sentido das palavras” (PÊCHEUX, 2008, p. 02). Tratando-se de semântica, Pêcheux afirma que uma palavra pode ter vários sentidos: Ora, se considerarmos, por exemplo, o domínio da política e da produção cientifica, constataremos que as palavras podem mudar de sentido segundo as posições determinadas por aqueles que as empregam. [...] com efeito, é um indício que mostra que as coisas não são assim tão simples quanto faria supor a ideia de uma diferenciação em subsistemas. Tudo se passa como se a correspondência entre teoria geral e estudo particular de uma dada língua desaparecesse no nível semântico (PÊCHEUX, 2008, p. 05) Com essa afirmação podemos perceber que a semântica possibilita uma vasta abordagem teórica na AD. Pêcheux assim descreveu que os sentidos, “objeto da semântica, excede o âmbito da linguística, ciência da língua. A semântica não deriva de uma abordagem linguística, ciência da língua. Era o que já pressupunha o livro em 1969” (ORLANDI, 2003, p. 31). No texto Curso de Linguística Geral (2004), Saussure não percebeu as contradições que formulou, quando destacou que “tudo é gramática na analogia” (p. 193) afirmando que a analogia é completamente gramatical e sincrônica, como se as particularidades das palavras na linguagem desaparecessem no nível semântico. Certamente, “Semânticas gerais” foram propostas, mas elas não fornecem quase nada de princípio que permitam depreender as particularidades das línguas, etc, como é o caso da fonologia, da morfologia ou da sintaxe. Existem, por outro lado, 77 descrições semânticas de diversas línguas, mas de descrições que permanecem sem ligação com as teorias. Se elas permanecem em grande parte desligadas de descrições concretas das línguas, as semânticas gerais nem por isso se libertam de todos “dados concretos”. (PÊCHEUX, 2008, p. 05-06). Michel Pêcheux percebeu que “há um funcionamento das línguas em relação a elas mesmas” (ORLANDI, 2008, p. 31). Portanto, é pela produção que é possível compreender o contexto da enunciação, desde os aspectos históricos e ideológicos. Baseado nesses elementos, Pêcheux afirmou que há a existência do sujeito discursivo. Assim, rachou de alto a baixo, com suas elaborações sobre o discurso, tudo o que fazia voltar ao sujeito, às práticas e as teorias que tomam o sujeito individual como moeda sonante. Ele propôs, em seu dispositivo de análise automática do discurso, um método de leitura que faz explodir a unidade de um sujeito escritor/leitor (ORLANDI, 2003, p. 33) Nesse processo, Pêcheux deteve o mérito de afirmar a existência própria de um nível discursivo, diante daqueles que simplesmente só compreendiam que conhecer a língua bastaria. Foi assim que possibilitou o reconhecimento de que as formações sociais estão diretamente interligadas com as condições de produção, o que representa o contexto sóciohistórico das FD que estão entrelaçadas constitutivamente com a linguagem. Nas palavras do fundador da AD, vale destacar a importância dos estudos linguísticos sobre a relação enunciado/enunciação, pela qual “o sujeito falante” toma posição em relação às representações de que ele é o suporte, desde que essas representações se encontrem realizadas por um “pré-construído” linguisticamente analisável. É sem dúvida por essa questão, ligada à da sintagmatização das substituições características de uma formação discursiva, que a contribuição da teoria do discurso ao estudo das formações ideológicas (e à teoria das ideologias) pode atualmente se desenvolver mais proveitosamente (PÊCHEUX, 2008, p.15) A linguística tem uma relação de aproximação e complementação com a AD, tanto quanto a psicologia e o materialismo histórico. Com base nesses três contribuintes que devese pensar a AD na sua relação com a história, a ideologia e o inconsciente, fatores esses que constituem a linguagem em funcionamento. 3.1.1 Do discurso dos direitos humanos ... atesta indubitavelmente a existência daquilo que se mostra. 78 JEAN DUBOIS Ouve-se muito falar sobre os direitos humanos. Em suas observações, Orlandi (2002) percebe que o Estado capitalista individualiza o sujeito, responsabilizando-o quanto a seus direitos e deveres. Surge assim o sistema ou regime que se baseia na ideia da soberania popular e na distribuição equilibrada do poder, caracterizada pelo direito ao voto, pela divisão dos poderes e pelo controle dos meios de decisão e execução, surge a democracia e a submissão do sujeito ao preceito de que todos devem ser iguais perante a lei. Nessa estrutura baseada no discurso dos direitos humanos é essencial que o sujeito seja responsável e ético. Desta forma, há possibilidade do sujeito agir conforme a própria vontade, mas dentro dos limites da lei e das normas racionais socialmente aceitas. Da mesma forma ocorre a relação do sujeito com a língua: para dizer o que “quer”, ele precisa se submeter a ela. Assim, Pêcheux advoga a ideia de que “em face das interpretações sem margens nas quais o intérprete se coloca como um ponto absoluto, sem outro, nem real, tratase aí de uma questão ética e política: uma questão de responsabilidade” (1990, p. 57). O espaço do sentido e do sujeito tem relação com a ética. Não é somente a respeito do modo de alguém agir, proceder ou se portar, isto é a conduta do indivíduo. É, antes, a forma como produz significado, ou seja, como sucede sobre a relação da língua – que pode ser sujeita a equívocos – com a história na constituição dos sentidos do sujeito. Neste aspecto, a concepção ética na política e na polícia pode tanto ser visível, como pode também ser pouco percebida com facilidade na conduta do indivíduo. Qual é a verdade que se impõe a respeito dos direitos humanos? Todo discurso é um discurso do poder, na medida em que todos os discursos pretendem impor verdades a respeito de um tema específico ou de uma área da ciência, da moral, da ética, do comportamento do sujeito. A propósito da linguagem dos direitos humanos, Pêcheux (1990) explicita que a questão da ética e política são questões de responsabilidade. É por esse viés que o autor compreende o sujeito capitalista, sujeito dividido, que trabalha no registro jurídico, que possui direito e dever. Porém, mesmo que esse sujeito tenha voz, sua opinião é determinada pela sociedade e pela história. Assim sendo, é um sujeito da significação, é um sujeito ética e politicamente correto. Tratando-se de discurso dos direitos humanos, pode-se tomar como exemplo o discurso do professor Fraga (RDF-I 8). O diretor do filme, José Padilha, situa cinematograficamente o discurso em um lugar estratégico, uma sala de aula, no 3º Congresso 79 de Recursos Humanos – informação esta extraída do banner existente em uma parede da sala onde se passa a cena. Primeiramente surge professor, de frente para a câmera. Ele está no meio do corredor e é filmado em plano médio. Observa-se que veste uma camiseta branca, contendo no peito a inscrição “Direitos humanos”, em inglês. Logo em seguida, a câmera mostra o professor de costas, possibilitando ao espectador a imagem dos alunos, todos interessados e atraídos pelo assunto. Enquanto a câmera possibilita ao espectador observar essas informações, em off se ouve o discurso do TC Nascimento: TC Nascimento: – Só que tem muito intelectualzinho de esquerda que ganha a vida defendendo vagabundo. E o pior é que esses caras fazem a cabeça de muita gente. Observando mais atentamente o discurso mencionado, vê-se que Tenente Coronel Nascimento se utiliza da memória de outros discursos para afirmar o quanto os intelectuais de esquerda conseguem fazer com que outros sujeitos acreditem em suas afirmações. Nesse instante, a memória discursiva apresenta-se como um elemento crucial que proporciona o deslocamento da posição-sujeito, no funcionamento do discurso, na produção do sentido, pois as condições de produção são movimentadas através da memória discursiva. Conforme Pêcheux, é através da formação discursiva que, influenciada através da ideologia e da historicidade, regula-se e organiza-se o dizer das diferentes posições-sujeito. Desta forma, o autor destaca que a ideologia trabalha como interpelação dos indivíduos em sujeitos de seu discurso “através do interdiscurso e fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidência e significações percebidas – aceitas – experimentadas” (PÊCHEUX, 1998, p. 163). Assim, para definir a posição-sujeito, importa, neste trabalho, destacar que é a partir do instante em que o sujeito-fílmico assume a posição-sujeito que é própria da formação discursiva que tal acontece. Considere-se que a constituição do discurso tanto dos de Nascimento quanto de Diogo Fraga, está em total dependência do lugar social que este ocupa, da sua posição-sujeito, pois é a partir dela que movimenta o interdiscurso. Tratando-se de cinema, é próprio do sujeito-fílmico assumir a condição de objeto significante que surge através da invenção de um diretor/autor. No entanto, esse sujeito passa de objeto significante para a condição de sujeito com um discurso próprio, o que acontece toda vez que assumir a posição-sujeito em uma nova situação discursiva. Após o discurso de Nascimento, o professor de História começa o seu discurso: 80 Professor Diogo Fraga: – Mais insano que isso que a gente vem discutindo é que prisão hoje é um lugar extremamente caro pra tornar as pessoas piores. O professor, defensor dos direitos humanos, tem um discurso convincente, utiliza o discurso de persuasão para convencer os alunos. Ao mesmo tempo, é pertinente observar a linguagem corporal que utiliza, pois quando menciona a palavra “caro”, com a mão esquerda faz o sinal de esfregar o dedo polegar com o dedo indicador, sinal este que se refere a dinheiro, já quando fala “pra tornar as pessoas piores” faz sinal de positivo, mas virado para baixo com a mão esquerda, simbolizando desaprovação. Novamente em off surge a voz de Nascimento. TC Nascimento: – O Fraga vivia me chamando de fascista, só que não tinha coragem de dizer isso na minha cara. Quando a gente batia de frente, ele fazia que me respeitava. E a merda é que eu tinha que fazer a mesma coisa. Enquanto Nascimento fala em off, o diretor expõe ao espectador todo o cenário da sala em que se encontram as personagens. Em ambos os lados da sala, tanto à direita, quanto à esquerda, são visíveis duas pinturas mostrando aglomerações de pessoas, símbolos, neste ambiente, da busca pelo conhecimento. Ou então poderiam significar um discurso sobre a união de todos, que estão juntos, caminhando na mesma direção. Por outro lado, a sala é bem iluminada. Tanto à direita, quanto à esquerda, as paredes são de vidro. A luz do dia entra pela janela, clareando o ambiente. Esse excesso de claridade pode ser interpretado como o discurso da transparência. Assim, é possível fazer uma análise do discurso de Fraga, isto é, seu discurso sobre direitos humanos contribui para um desvelamento da realidade. Por sua vez, as vidraças, sem cortinas e todas escancaradas, representam a transparência do discurso: Professor Diogo Fraga: – Só pra vocês terem uma ideia, em 1996, a população carcerária brasileira era de 148 mil presos, hoje dez anos depois a população carcerária é de mais de 400 mil presos, é mais que o dobro, é quase o triplo. Enquanto o professor fala, a câmera o acompanha, filmando de ângulo lateral direito: Professor Diogo Fraga: - Eu fiz uma conta perversa, que evidentemente não serve, imagina professor de História fazendo conta é um desastre, mas essa aqui eu faço questão de compartilhar com vocês pelo seguinte: eu percebi que a população carcerária brasileira ela dobra em média a cada 8 anos, enquanto que a população brasileira dobra a cada 50 anos. Se continuarmos com isso aqui, em 2081 a população brasileira será de 570 milhões. 81 Vão ser seus filhos, seus netos, seus bisnetos, enquanto que a população carcerária brasileira será de 510 milhões, seus filhos, seus netos, seus bisnetos, ou seja, 90% dos brasileiros vão estar na cadeia. Já imaginaram, em julho era essa aposentadoria que você imaginava? Oh, mas não se preocupem! Não se preocupem que essa situação aqui ainda melhora. Em 2083 todos os brasileiros vão está morando aqui, num condomínio fechado como esse aqui, Bangu 1. Fraga utiliza o discurso dos direitos humanos através da mediação entre sujeito e a realidade natural e social, ação transformadora enquanto mediação entre o sujeito e a realidade. Ainda, tratando-se de Fraga, este usa uma camiseta que não passa despercebida aos olhos humanos, isto é, a frase human rights air escrita em inglês. A expressão “direitos humanos” assume diferentes sentidos cada vez que é usada, pois os discursos são produzidos de acordo com certa formação discursiva que, por sua vez, está relacionada com sua respectiva formação ideológica. Fraga realiza seu discurso como professor. A posição-sujeito de Fraga promove efeitos de persuasão, pois ao realizar a conta no quadro estabelece uma relação de convencimento entre os alunos. Assim, o discurso é feito na posição-sujeito-professor, mas não se faz dissociado da posição-sujeito-político. É o discurso daquele que tem voz sobre a sociedade. Assim sendo, no instante em que Fraga está em sala de aula, é ele o sujeito discursivo que tem autonomia de afirmar o que considera certo ou errado, quanto aos direitos humanos. Portanto, o sentido do discurso realizado por Fraga desde sua posição-sujeitoprofessor, é aclamada pelo lugar discursivo de onde se encontra, identificando-se como aquele que é justo e defensor dos direitos humanos. É neste intuito que a expressão direitos humanos pode tomar diversos sentidos – desde os direitos a liberdade, assim sendo, também pode ser compreendida com a ideia de liberdade de pensamento, de expressão, e a da igualdade perante a Lei – a cada vez que a frase na camiseta de Fraga é pronunciada. Diferentes posições são tomadas, contra ou a favor. Assim, professor Fraga, defensor dos direitos humanos, compreende que o aumento da criminalidade e da sensação de insegurança na população é uma questão política, associando a criminalidade às práticas democráticas, pois acredita ter aumentado o apoio dos órgãos responsáveis ao combate e prevenção ao crime. 3.1.2 Do discurso do afeto Michel Pêcheux defende a ideia de que não há sujeito indivíduo no discurso. Sobre a não existência na AD da noção de sujeito individual, recupere-se o pensamento de Gregolin: 82 O sujeito não é considerado como um ser individual, que produz discursos com liberdade: ele tem a ilusão de ser o dono de seu discurso, mas é apenas um efeito do ajustamento ideológico. O discurso é construído sobre um inasserido, um préconstruído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos conteúdos já colocados para o sujeito universal, aos conteúdos estabelecidos para a memória discursiva (GREGOLIN, 2003, p. 27). Ao produzir o discurso, o sujeito expressa aquilo que pensa em relação as suas paixões, desejos e seus anseios, noções essas presentes em seu discurso. Contudo, a AD permite estudar o discurso do afeto como manifestação do sujeito discursivo. Tratando-se de afeto, pode-se tomar o exemplo contido no RDF-I 9, mostrando que a relação entre pai e filho passa por um estágio que desperta angústia, aflição tanto no adulto quanto para a criança. O Tenente Coronel Nascimento torce por seu filho enquanto este luta durante uma aula de artes marciais. Porém, Rafael, o filho, não luta com ânimo e acaba perdendo. Em seguida, dirige-se ao pai, Roberto Nascimento. Enquanto Nascimento arruma a faixa do filho, diz: Pai Nascimento: – Só não gostei sabe do quê? Do que que eu não gostei foi dessa sua mão solta. Pega com ela aqui, com as duas mãos, assim. Não quero essa sua mão solta. Instantaneamente, perturbado pelo fato de ter de lutar, Rafael responde: Filho Rafael: – Eu não queria lutar Nascimento olha nos olhos do filho e revoltado pelo fato de durante o mês todo o filho pedir para o pai ir junto com ele para lutar, responde: Pai Nascimento: – Se você não queria lutar, por que você encheu o saco o mês inteiro para vir lutar, se não queria lutar, rapaz? Tamo aqui para ganhá, agora não vamo perde, não. Vamo lutá pra ganhá. Rafael, sem mostrar aprovação pelo que o pai fala, retruca: Filho Rafael: – Eu não sou igual a você, de bater nas pessoas, não. Nascimento fica sem ação, paralisado com a resposta do filho. Encara-o e, sem dizer uma palavra, volta-se para trás e escora-se na cadeira. Nesse momento, Nascimento entristece. 83 Percebe que seu filho não o vê com orgulho, não o vê como um sujeito justo, defensor da sociedade, mas sim como uma pessoa que se apodera de sua profissão para bater nas demais. Aqui o discurso é o do silêncio, que preenche a ausência de diálogos, pois o simples fato de encarar o filho, sem dizer palavra e comovido com a resposta que ouve, já se constitui em um discurso. Assim, o discurso se altera do verbal para o não-verbal, o que sugere uma análise das simbologias presentes nas produções de sentidos, na identificação discursiva das personagens. Nascimento angustia-se pela imagem que o representa para o filho. Nascimento vê-se dividido entre o Eu e o Outro, isto é, o inconsciente. De fato, a frase pronunciada por Rafael o deixa perplexo. Enfim, qual realmente era a imagem que passava de si para os outros? Se sua missão era tirar das ruas as máfias, por que seu filho não o respeitava e não sentia orgulho dele? Seria de fato correto o que estava fazendo? O sujeito na psicanálise não é compreendido individualmente, ou como antônimo do outro, muito menos o sujeito que indica a consciência. Para Lacan o Eu é construído a partir da imagem do outro, o sujeito decorre do Outro que é referência à linguagem enquanto efeito da ordem simbólica. Por isso o sujeito é consequência do significante, e está calcado pelas leis do simbólico. Para Lacan, portanto, a causa do sujeito é a estrutura do significante. A propósito da noção de sujeito na psicanálise, o processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é alterado em uma experiência de consciência, não é uma categoria normativa, ele é uma categoria clínica, e não remete a uma totalidade. Portanto, compreender o afeto é difícil pelo fato de não haver um sujeito dos afetos. Por esse motivo, o que é necessário compreender são os sentimentos, como, por exemplo, a angústia, pela qual Lacan65 se interessa sobremodo. Em todo o seu desenvolvimento sobre a angústia, a prática psicanalítica aparece como uma referência importante, o que não significa dizer que o pesquisador deixe de pensar a angústia no nível teórico, no sentido metapsicológico, articulando-a aos registros do real, do simbólico e do imaginário, para assim formular um objeto até então impensável, isto é, a relação essencial entre a angústia e o desejo do Outro, mas que, não obstante, é essencial para todo o prosseguimento da sua teoria do desejo e do afeto. 3.1.3 Do discurso da consciência 65 LACAN, J. Seminário VIII. A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. 84 As condições materiais de existência dos homens determinam as formas de sua consciência, sem que as duas jamais coincidam. MICHEL PÊCHEUX Em qualquer enunciado o discurso da consciência faz uso da ideologia, do interior da qual o sujeito se apropria do discurso para assim se constituir de indivíduo concreto em sujeito do discurso. Inspirado em Foucault, Brandão explicita que o discurso é como um conjunto de anunciados que se remetem a uma mesma formação discursiva (“um discurso é um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma formação discursiva”), para Foucault, a análise de uma formação discursiva constituirá, então, na descrição dos enunciados que a compõem. E a noção de enunciado em Foucault é contraposta à noção de proposição e de frase (...), concebendo-o como a unidade elementar, básica que forma o discurso. O discurso seria concebido, dessa forma, como uma família de enunciados pertencentes a uma mesma formação discursiva (BRANDÃO, 1986, p. 33). Cabe, no entanto, considerar que a formação dos enunciados é baseada na ideologia. É neste aspecto que se diferenciam os sujeitos discursivos. Reforçando essas argumentações pode-se considerar que “um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica” (BAKHTIN, 1990, p. 32). Tratando-se de sujeito e seus enunciados, Mussalim (2003, p. 107) toma a ideia de que “a partir da descoberta do inconsciente por Freud, o conceito de sujeito sofre uma alteração substancial, pois seu estatuto de entidade homogênea passa a ser questionado diante da concepção freudiana de sujeito clivado dividido entre o consciente e o inconsciente”. Tais dados deixam entrever e, como consequência, compreender que o sujeito é heterogêneo. Baseado nas ideias de Freud, Lacan reinterpretou e abordou com maior exatidão a questão do inconsciente, recorrendo para isso ao estruturalismo de Saussure e Jakobson. Nesta vertente, Lacan pontuou que o inconsciente se concretiza como a linguagem. Exemplificando, seria como se sob a palavra existissem outras palavras que agem uma sobre a outra, ou então, como se o discurso fosse atravessado pelo discurso do Outro, no inconsciente. Sob esta ótica, Lacan compreende que o sujeito é representado pela linguagem, e que esta é a condição do inconsciente. Sob esse prisma, 85 o sujeito Lacaniano, clivado, dividido, mas estruturado a partir da linguagem, fornecia para a AD uma teoria do sujeito condizente com um de seus interesses contrais, o de conceber os textos como produtos de um trabalho ideológico nãoconsciente. Calcada no materialismo histórico, a AD concebe o discurso como uma manifestação, uma materialização da ideologia decorrente do modo de organização dos modos de produção social. Sendo assim, o sujeito do discurso não poderia ser considerado como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras. Em outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso (...), a ocupar seu lugar em determinada formação social e enunciar o que lhe é possível a partir do lugar que ocupa (MUSSALIM, 2003, p.11). Em leitura semelhante quanto ao discurso da consciência, é possível ressaltar que há a presença do Outro no discurso do sujeito. Esse sujeito é atravessado pelos elementos da consciência, que é a inscrição do sujeito do discurso, também cindido e suscetível de tornar-se outro. Tratando-se do discurso da consciência, pode-se tomar como exemplo o RDF-I 10, que é dividido em três sequências. Na primeira sequência, após fazer uma intercepção telefônica do celular de Fraga, para ouvir a conversa que ele teve com a jornalista Clara e, ao mesmo tempo, à procura de provas para descobrir quem a havia matado, Nascimento toma consciência sobre a corrupção que envolve a milícia e a política. Na gravação telefônica percebe que a repórter Clara descobrira o comitê de campanha do governador, o qual ficava sobre os cuidados da milícia. Clara: – E agora eu tenho certeza que foi a milícia. Fraga: – Clara me escuta, sai daí agora, Clara. Clara: – Não! Fraga: – Essas pessoas são muito perigosas. Clara: – Você não vai acreditar! Eu achei o comitê de campanha do governador. Tem cartaz, tem banner, tem tudo. Não tá cheia de fotos do governador com o Fortunato e com o Guaraci?... Clara inicia seu discurso afirmando que a milícia está envolvida com a política. A posição-sujeito de Clara é investigativa, de jornalista, que procura provas autênticas sobre a criminalidade. Desta forma, o discurso é feito na posição-sujeito-jornalista que, ao mesmo tempo, não é dissociada da posição-sujeito-eleitora. Em contrapartida, Fraga assume o 86 discurso daquele que se preocupa não mais em descobrir e desvendar a criminalidade provocada pelos políticos juntamente com a milícia, mas sim assume a posição-sujeitoprotetor, aquele que teme pelas consequências. Durante a escuta telefônica, a câmera em travelling permite ao espectador observar a indignação de Nascimento ao descobrir que suas teorias estavam erradas e que Fraga tinha razão sobre o envolvimento das milícias com a política. Durante essa sequência, Nascimento fica imóvel, respira fundo, perplexo. Por outro lado, a janela aberta, a claridade, refletindo-se por trás de Nascimento, permite que se faça feito um contraponto discursivo, em que Nascimento finalmente compreende o que estava acontecendo a sua volta, e assim, toma consciência do quanto estava enganado. Nascimento descobre que o mesmo grupo que matou Clara decide matar Fraga, pois este sabia quem havia matado a jornalista. Nascimento grava a conversa e decide procurar Fraga em seu apartamento para entregar-lhe a gravação. Porém, ao chegar não encontra ninguém. Após algumas horas de espera e tentativas frustrantes de entrar em contato com a ex-esposa, para comunicar-lhe que alguns milicianos e políticos pretendiam matar seu atual marido, Fraga, Nascimento decide esperar em frente ao prédio em que morava. No entanto, quando Fraga, Rosana e Rafael estavam chegando à casa, dois sujeitos perseguiam o carro em uma moto e atiraram. Nascimento que estava sentado na escada em frente ao prédio percebeu a movimentação e também atira contra os bandidos, acertando em um deles. Em meio ao tumulto, o bandido não acertou o tiro no alvo que desejava, mas sim acertou o tiro em Rafael, filho do TC. Desesperada Rosana, mãe do garoto, começa a chorar e a chamar pelo filho. Fraga desembarca do carro, abre a porta de trás para verificar se o menino estava vivo e pede à esposa que não desembarque do carro. Nascimento, que estava alguns metros do veículo, corre e desesperadamente entra no carro gritando para Fraga: TC Nascimento: – Dirige, dirige, vai, vai, vai! Chegando ao hospital Nascimento, conversa com os médicos enquanto Rosana e Fraga esperam na recepção. Em seguida se dirige até Rosana. Ela pergunta: Rosana: – E aí? E aí, o que foi que o médico falou? Nascimento olha nos olhos dela, respira fundo e abaixa a cabeça. Só então responde: 87 Nascimento: – A cirurgia vai demorar de sete a oito horas, porque o tiro pegou o rim dele. A mãe desesperada, chorando, começa a falar: Rosana: – O médico acha que ele vai... O pai, muito triste e ao mesmo tempo nervoso, não deixou a mãe completar a frase e começou a dizer: Nascimento: – Falou que ele vai, que, que... O Tenente Coronel, emocionado, não consegue completar a frase. Rosana exclama: Rosana: – Ai, Senhor! E os dois se abraçam. Neste momento a câmera afasta a imagem permitindo ao espectador ver Fraga logo atrás de Rosana. Emocionado, Fraga fica a olhar para os dois. Após alguns segundos e ainda com a cabeça abaixada, Nascimento faz sinal para Fraga se aproximar e abraça Rosana que chora. Nascimento, continuando com a cabeça abaixada, põe a mão no bolso, pega um gravador e o entrega a Fraga, sem dizer uma palavra, e sai, deixando os dois sozinhos. Neste instante a posição-sujeito-policial de Nascimento é deixada de lado, e assume a posição-sujeito-pai, portanto Lima Neto. Assim, a posição-sujeito de Nascimento promove as relações de afetividade, pois ao chorar e abraçar Rosana faz com que as diferenças sejam esquecidas, e assim, o que passa a importar é um único valor, a vida humana. Por outro lado, a posição-sujeito-policial de Nascimento, é opacificada pelo lugar em que se encontra. O mesmo ocorre com Fraga, que passa à posição-sujeito daquele que deveria ser a vítima. Assim, quando Nascimento entrega o gravador a Fraga, assume a sua posiçãosujeito como aquele que percebe seus erros e se redime. A partir de então, tanto Fraga, quanto Nascimento tomam consciência de que não deveriam tratar-se como inimigos. Assim, os impasses tinham deixado de existir e os dois passam a lutar juntos contra a desonestidade dos políticos e da milícia. 88 3.2 Discurso da Resistência versus Discurso da Reincidência O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica) bem que poderiam ter algumas coisas de muito preciso a ver com esse ponto sempre-já aí, essa origem não-detectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidias de alguma coisa “de outra ordem”, vitórias ínfimas que, no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido de seu desequilíbrio. MICHEL PÊCHEUX Neste item, sob a perspectiva da personagem Tenente Coronel Nascimento, pretendo analisar o discurso da resistência. No corpus, o discurso da resistência pode ser compreendido como decorrente de estado de ânimo intermediário entre denunciar ou não denunciar as barbaridades que envolvem o sistema, em especial o discurso político. Pretendo também ver o discurso da reincidência, assim entendido como um delito ou crime praticado pela mesma pessoa que já cometeu qualquer outro ato que se tenha constituído em uma transgressão da moral vigente. Diante do corpus formado Elite da tropa 2 – o inimigo agora é outro (2010) e Elite da tropa 2 (2010), o que delimita a edificação o campo referencial da análise é o pensamento do TC Nascimento, seguindo que assevera Courtine: “construir um corpus discursivo é fazer entrar a multiplicação infinita e a dispersão fragmentada dos discursos no campo do olhar por um conjunto de procedimentos escópicos” (2009, p. 21). Conforme Michel Pêcheux, o discurso da resistência tem como fundamento o fato de que “não há dominação sem resistência” (2009, p. 281). Isto significa que é preciso “ousar se revoltar” (Idem, p. 281). Para que haja a dominação é necessário a existência de um povo ou um sujeito que reivindique seus direitos, mesmo que em muitos momentos se saiba “que o aparelho de Estado pode permanecer de pé (...) sob acontecimentos que afetem a posse do poder de Estado” (ALTHUSSER, 1983, p. 65). Por sua vez, Foucault salienta que não há relação de poder “sem recusa ou revolta em potencial” (2003, p. 384). Foucault compreende que não há poder ser resistência, ao mesmo tempo em que não é possível compreender poder sem pensar em liberdade. Ainda segundo Michel Foucault, a relação de poder e resistência é uma combinação, pois o poder será maior a cada momento que houver resistência. Essa resistência é vivida pelo Tenente Coronel Nascimento quando chega à Secretaria de Segurança Pública (SSP), pois percebe que o governo monitora a sociedade e divulga somente o que lhe convém. Por isso decide resistir ao 89 sistema, porém o governo discursivamente endurece. Por sua vez, o sujeito contrário à corrupção resiste discursivamente e, nesta relação de força discursiva, o poder se instaura, tanto o poder exercido pelo governo e as milícias, quanto ao poder exercido pela resistência. Nesta linha de pensamento encontra-se Althusser, que reflete sobre a relação de dominação, o reconhecimento da soberania, que em muitos momentos tem-se com o Estado. A compreensão dos mecanismos internos de dominação coercitiva e de sujeição ideológica é colocada como questão fundamental para a luta política, inclusive no que concerne às instituições da sociedade civil e, portanto, também aos sindicatos e partidos políticos, soi-disant revolucionários ou não (ALTHUSSER, 1918, p. 17). A compreensão dos discursos de resistência implica a compreensão sobre ideologia. Assim o sujeito é ideológico, e a ideologia é o ponto crucial nas relações do discurso da resistência e do discurso da reincidência, ou seja, “na percepção de uma multiplicidade de resistência e revoltas heterogêneas que se estocam na ideologia dominante, ameaçando-a constantemente” (ORLANDI, 2011, p. 96). Nos inúmeros estudos de Pêcheux incluem-se também aqueles sobre a resistência. Porém, a resistência sobre a qual escreve é a resistência frente à constituição da língua na linguística. Essa resistência, por sua vez, contribuiu para o surgimento do “desafio”, pois este, conforme Michel Pêcheux, compreende a existência do discurso no qual a “ambiguidade e o equívoco constituem um fato estrutural inconfortável” (PÊCHEUX, 1975, p. 50). É de grande relevância questionar os enunciados que constituem o discurso da resistência, pois estes são também constitutivos do sujeito. Assim, é pertinente indagar sobre o discurso do sujeito político, sujeito este que diz governar pensando no povo, e que, conforme se depreende da análise do corpus, são sujeitos que praticam o discurso da resistência ao cumprimento do que prometem ao eleitor. O discurso da resistência possibilita ao sujeito uma contradição constitutiva, contribuindo para que suceda o “não sentido”. Assim, como pondera Orlandi (2008), este tem a ver com a falha porque aponta para o sentido que poderá vir a ser, isto é, o irrealizado. Esse ainda não realizado pode ser compreendido quando Pêcheux (2009, p. 278), refere-se ao “‘irrealizado do movimento popular’, permitindo pensar que a resistência se inscreve no interior do movimento, e não fora dele. Tal resistência funcionando no interior mesmo da dominação, por um sujeito dividido, inscrito no simbólico, e não como uma oposição consciente direta, de um exterior para um interior”. 90 Em Semântica e discurso, Pêcheux faz um parêntese ao pensamento de Foucault com relação à resistência à individualização do sujeito pelo Estado: Foucault traz uma contribuição importante para as lutas revolucionárias de nosso tempo, mas, simultaneamente, ele a torna obscura, ficando inapreensíveis os pontos de resistência e as bases da revolta de classe. Farei a hipótese de que esse obscurecimento se dá pela impossibilidade, do ponto de vista estritamente foucaultiano, de operar uma distinção coerente e conseqüente entre os processos de assujeitamento material dos indivíduos humanos e os procedimentos de domesticação animal. Esse biologismo larvado, que ele partilha, em todo o desconhecimento de causa, com diversas correntes do funcionalismo tecnocrático, torna, conseqüentemente, a revolta totalmente impensável, pois, assim como não poderia haver "revolução dos bichos", também não poderia haver extorsão de sobretrabalho ou de linguagem no que se convencionou chamar reino animal (2009, p. 279). Conforma Pêcheux, a individualização não existe fora da interpelação ideológica do indivíduo em sujeito. Assim, deve-se compreender a resistência como constitutiva e não simplesmente como confronto-oposição entre posições que se querem divergentes. Para isso, Lagazzi (1998, p. 76) explica que "a resistência é normalmente tomada como luta por mudanças, o que indica uma resistência para chegar a algo. E, na sociedade moderna, como possibilidade de mudança nas relações marcadas pela individualização, apontando uma resistência a algo”. Contudo, esclarece a autora, na prática discursiva os sentidos da resistência imbricam-se: "na determinação material das forças a luta de resistência é por mudança e contra a mudança". Entende ela que a resistência deve ser considerada na contradição entre "a sujeição ao poder e a luta contra o poder". É nessa contradição que se torna possível resistir, nesse movimento de estranhamento e mudança. 3.2.1 Desistir ou resistir: um problema à espera da melhor solução Neste item, o foco persiste na reflexão sob a perspectiva de uma panorâmica entre desistir e resistir. Em tal contexto, decidi fazê-lo sob o ponto de vista de um problema enfrentado pelo Tenente Coronel Nascimento, questão de difícil solução, ao mesmo tempo em que se espera por melhor solução. Na primeira cena da sequência 166 (RDF-I 11), é emblemática a importância da posição-sujeito do Tenente Coronel Nascimento, que, no papel de comandante, assume as 66 O Recorte Discursivo Fílmico Imagético 11 inclui cinco sequências. Na primeira sequência, o TC Nascimento está conversando com Capitão Matias e decide procurar sair do batalhão para encontrar o secretário da Segurança Pública; na segunda sequência, ambientada em um restaurante, o secretário da Segurança Pública está discutindo sobre quem será o substituto de Nascimento; por sua vez, na terceira sequência, Nascimento entra no 91 responsabilidades por todo pelotão. Neste momento, a câmera está posicionada no lado direito de Nascimento o que proporciona ao espectador ver as bandeiras do Brasil, do estado do Rio de Janeiro e do Batalhão de Operações Policiais Especiais, imagem que complementa o seu discurso, pois a bandeira manifesta a honra – ser defensor da sociedade e trabalhar dignamente pelo seu país, estado e no seu batalhão. A sequência é filmada em plano americano e em ângulo horizontal lateral, sendo que Matias conversa com Nascimento enquanto que a câmera movimenta-se de um lado para outro, filmando as personagens enquanto falam. Capitão Matias: – Comandante, a decisão de entrar foi minha. Eu que matei o vagabundo, deixa eu assumir a responsabilidade sozinho. TC Nascimento: – A responsabilidade é minha. A responsabilidade é minha. O comando é meu. Analisar a naturalidade com que o ator Wagner Moura interpreta a personagem Tenente Coronel Nascimento nesta sequência permite fazer uma ponte com a análise de Constantin Stanislavski67, quando este diz que “não há ações dissociadas de algum desejo, de algum esforço voltado para alguma coisa, de algum objeto, sem que sinta, interiormente, algo que as justifique” (Apud NUNES, 2003, p. 123). Nascimento se abaixa até o rádio e pergunta para seu secretário se ele conseguiu encontrar o comandante geral.] TC Nascimento: – Nupso, você achô o comandante geral? Nupso: – Não, ele foi almoçar. Seu secretário não consegue encontrá-lo. Nascimento fica revoltado pelo fato de não estar conseguindo falar com o comandante, pois este estava fazendo de tudo para não restaurante e é surpreendido com uma salva de palmas; já na quarta sequência, surge a imagem de um jornalista pedindo ao governador que não exonere o TC Nascimento; e, por fim, na quinta sequência, no palácio do governador, está reunido o governador com alguns secretários, os quais estão assistindo ao noticiário e discutindo sobre o que fazer com TC Nascimento. 67 Diretor russo, um dos mais renomados diretores do século XX, autor do método das ações físicas, em que o corpo do ator se dirige para a realização de algum objeto. Conforme explica Nunes (2003), para Stanislavski, o movimento e a atividade são funcionais e somente se tornam ação quando se justificam cenicamente. 92 encontrá-lo. Foi então que decidiu ir até o restaurante em que o comandante geral estaria almoçando, para conversar. TC Nascimento: – Então descobre aonde ele foi almoçar e me avisa. Os caras tão com medo de falar comigo, eu não tenho medo de falar com eles. A posição-sujeito assumida por Nascimento sobre Nupso e o Capitão Matias é o daquele que manda, tem poder hierárquico sobre os demais policiais. Assim, a posiçãosujeito-policial que assume é a de quem não se deixa influenciar pela política, muito menos se deixa intimidar de falar com seu superior. Na segunda sequência a câmera faz um close na televisão instalada no restaurante. Naquele instante, estava no ar o Jornal do Almoço, em que a jornalista-apresentadora afirmava que Nascimento seria afastado do BOPE, conforme a decisão do governador. Jornalista da TV: – Disse que vai afastar dos cargos os oficiais do BOPE envolvidos na ocupação do presídio Bangu 1. Enquanto na televisão os jornalistas comentavam sobre a exoneração de Nascimento, no restaurante, o comandante Iguaraci e seus aliados discutiam quem ficaria no lugar de Nascimento no BOPE. Formoso, Secretário de Segurança Pública: – É verdade! Mas se não colocar vai colocar quem, afinal. Subsecretário: – Quem vai ser, quem não vai ser, pouco importa o governador quer o filho da puta do Nascimento exonerado amanhã. Enquanto os políticos debatiam quem ficaria no lugar de Nascimento, este entra no restaurante, o qual está repleto. Assim, inicia a terceira sequência. No instante em que as pessoas o reconhecem, levantam em pé e começam a aplaudi-lo. Nessa sequência, a primeira pessoa que aparece aplaudindo é o verdadeiro TC Nascimento, o que permite associar a imagem do outro. Esse duplo está presente como uma decorrência da condição da narrativa fílmica. Embora assimétrica, essa condição implica reciprocidade, isto é “aquele que diz ‘eu’ só o diz em função de um outro que, na sua alocução, um ‘tu’ (...), o ‘eu’ se torna ‘tu’ e o ‘tu’ 93 se torna ‘eu’ , o que não significa simetria”, conforme a acepção benvenisteana (1996) lembrada por Ernst, em Corpo, Discurso e subjetividade (2005)68. Ao perceber que as pessoas começam a bater palmas, Nascimento inibe-se e começa a agradecer com a cabeça. No entanto, os políticos que ali estavam discutindo a sua exoneração percebem a aprovação dos eleitores e resolvem mudar de estratégia. Foi então que Iguaraci, impulsionado por seus colegas, levanta-se, abre os braços e o abraça, cumprimentando-o: Iguaraci: – Coronel! Bem-vindo! Surpresa boa! No instante que os políticos observam que a posição-sujeito-eleitor aplaude Nascimento, mudam sua forma de agir, isto é, posição-sujeito-político passa a não mais evitar o discurso de Nascimento, mas sim assumem uma nova posição-sujeito, a daqueles interessados nos votos a fim de benefício próprio. Assim, neste momento a posição-sujeitopolicial que Nascimento exerce, passa a ser um benefício para a posição-sujeito-polítco perante os eleitores ali presentes. No momento em que Iguaraci abraça o TC, este fica imóvel permitindo que visualize o discurso de desaprovação através do discurso corporal do sujeito. A sua atenção está toda posta nas pessoas a sua volta. Assim, quando é cumprimentado, sua expressão facial não muda, o que corresponde à análise de Courtine (2009, p. 10), quando afirma que a “face é no corpo a ‘janela da alma’”. Courtine e Haroche, na obra História do rosto, destacam as continuidades e as descontinuidades presentes na história da expressividade do corpo, mais detalhadamente do rosto. Desta forma, salientam que entre o sujeito, a linguagem e o rosto há uma ligação crucial quanto à elucidação da personalidade, ao mesmo tempo em que “o indivíduo é, desde então, indissociável da expressão singular de seu rosto, [que se torna a] tradução corporal de seu ‘eu’ mais íntimo” (COURTINE; HAROCHE, 1999, p. 10). Neste sentido é possível ressaltar que através dos signos faciais, isto é, expressões e gestos, é que se pode perceber exatamente quem o sujeito é realmente. Assim, a expressividade se concretiza na exposição excessiva de um corpo que diz de si a partir de seus movimentos. Neste sentido, “o paradigma da expressão designa esse processo pelo qual a linguagem vai se tornar pouco a pouco a medida de todas as coisas, vai dar sentido às condutas, vai penetrar profundamente a interioridade subjetiva e vai fazer do 68 Artigo completo disponível em: <http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/2SEAD/SIMPOSIOS/AracyErnst.pdf>. Acesso em: 27 de outubro de 2012, às 15h06min. 94 corpo o lugar expressivo de uma voz interior” (COURTINE; HAROCHE, 1999, p. 32). É nesse sentido que o corpo aparece como uma linguagem discursiva que não mente, pois pelos lapsos de seus movimentos, a linguagem pode ser duvidosa, podendo ser ambígua a interpretação, isto é, levando a interpretações equivocadas quanto à legibilidade da linguagem verbal e da linguagem corporal. Seguindo o recorte discursivo fílmico, na quarta sequência surge um jornalista que, representando a voz dos eleitores, pede ao governador não exonerar o TC Nascimento. Fortunato69: – Governador não exonere o Coronel Nascimento. Por que se o senhor fizer isso a coisa vai feder. Assim que o jornalista Fortunato, em seu jornal “Mira Geral”, inicia seu discurso, a câmera em plano ¾ permite ao espectador observar o jornalista e o cenário onde é gravado o jornal. Atrás de Fortunato é possível observar imagens da cidade do Rio de Janeiro, como o Cristo Rei, o Pão-de-Açúcar e o estádio do Maracanã. Na sequência, a câmera faz um corte e instantaneamente surge a imagem de três políticos assistindo ao jornal “Mira Geral”. Eles estão na sala do governador, pedindo-lhe para que mude de ideia e não exonere o Capitão Nascimento. Deputado: – O programa do cara tá marcando quase 30 pontos. Cheio de cartas do leitor. A maré vai virar, governador. Neste instante a câmera faz um travelling horizontal para a esquerda, permitindo ao espectador visualizar o governador sentado à sua mesa. Ele diz: Governador: – Eu sei o que eu tô fazendo. Nascimento tá fora do BOPE. O governador inicia seu discurso afirmando que Nascimento será desligado do BOPE. A posição-sujeito de Governador promove as relações de poder, pois ao ordenar opõe uma relação de autoridade, de autoritarismo. Por esse viés, o discurso é feito com base na posiçãosujeito-governador, e ao mesmo tempo na posição-sujeito-político. É o discurso daquele que tem poder maior sobre o Estado. Por tanto, naquele momento assume o sujeito discursivo 69 Este mesmo jornalista, que tanto falava mal do governo e dos milicianos, mais tarde veio a ser deputado, e o principal: um político corrupto envolvido com a milícia e o tráfico. 95 investido no poder, esse como autoridade maior do Estado delegando os cargos de seus subordinados. Desta forma, o governador sustenta um jogo de poder de autoritarismo sobre os deputados e policiais, os quais assumem a posição-sujeito de obediência. Essa heterogeneidade discursiva, feita de trechos e fragmentos, interessa na medida em que nela podem ser determinadas as condições concretas da existência das contradições pelas quais a história se produz. Por outro lado, tratando-se da convicção do discurso do governador, este demonstra seu poder sobre os deputados presentes em sua sala, e, acima de tudo, o poder que exerce sobre a sociedade, isto é, o exercício do poder em termos de controle social. Neste sentido, não deve ser entendido como o poder de uma pessoa, mas sim o poder atribuído por uma posição social, organizado como parte constituinte do poder de uma organização. Neste aspecto, o abuso do poder como manipulação significa a violação de normas e valores éticos fundamentais no interesse daqueles que têm o poder e contra os interesses dos outros. Contudo, a violação do poder contribui para surgimento do poder abusivo contra direitos sociais e civis das pessoas. Como ressalta Althusser (1983, p. 19), o “Estado só tem sentido em função do poder de Estado”. Portanto, este poder de Estado deve se articular sem ser abusivo. 3.2.2 Decisão na banca: o recuo como estratégia Missão dada parceiro, é missão cumprida. EDUARDO LUIZ SOARES Nos itens anteriores tornou-se visível que o Tenente Coronel Nascimento foi destacado como o sujeito-fio do filme. Seguindo essa premissa, escolhi analisar o RDF-I 12, que demonstra um problema enfrentado pelo Tenente, situação esta que, por estar diretamente ligada ao sistema, imediatamente parece ser convidativa e ao mesmo tempo repulsiva e instigadora. Após a morte de alguns bandidos em uma rebelião no presídio Bangu 1, o governador do Rio de Janeiro resolve exonerar o Tenente Coronel Nascimento do comando do BOPE. Essa iniciativa do governador do RJ se completa ao nomear o exonerado como subsecretário da Secretaria de Inteligência. 96 O recorte discursivo é dividido em duas sequências. A primeira inicia com a imagem de Nascimento entrando pela porta prédio onde fica localizada a Secretaria de Inteligência. Enquanto Nascimento abre a porta e dirige-se até a secretária, seu discurso, em off , ressalta: Nascimento: – Só que eu não caí pra baixo, parceiro! Eu caí pra cima. Por sua vez, na segunda sequência, a câmera em plano americano,70 apresenta aos olhos do espectador a personagem Nascimento vista em ângulo traseiro, entrando em uma sala. Ao chegar próximo a uma mesa de escritório, vira-se de frente para a câmera. A sala é extremamente pequena. A parede onde se encontra a porta é de madeira, enquanto que as outras divisórias são de vidro, e todas tem uma cortina de persianas que se abrem no sentido horizontal. Essas paredes de vidro representam o discurso da transparência. Durante esse percurso, em off , Nascimento reflete consigo mesmo: Nascimento: – Como é que eu podia ser subsecretário de Inteligência, como é que eu podia ser responsável por todos os grampos do Rio de Janeiro... Nascimento percebe que sua posição-sujeito muda. Deixa da posição-sujeito-policial para exercer a posição-sujeito-subsecretário. No entanto, uma não está dissociada da outra. Nascimento percebe que a sua nova posição-sujeito em meio aos departamentos governamentais auxiliará na sua batalha constante em desvendar e desmascarar a milícia e o sistema. Nascimento vira-se para Volmir Magalhães – responsável por apresentar a Secretaria de Inteligência a Nascimento. Este se apresenta apreensivo, sendo isso visível através da linguagem corporal. Uma das mãos ele a coloca no bolso da calça, o que indica estar em contato com o próprio corpo. Isso permite compreender que ter as mãos escondidas, no caso, no bolso da calça, é reconfortador. Possibilita ao espectador compreender que é a busca de equilíbrio frente a uma possível insegurança. Imediatamente nesta segunda sequência Nascimento pergunta: Nascimento: – Isso aqui tudo é grampo? 70 Corresponde ao ponto de vista em que as figuras humanas são mostradas até a cintura aproximadamente, em função da maior aproximação da câmera em relação a elas (XAVIER, 1984, p. 19). 97 Assim que Nascimento faz a pergunta a Volmir, também coloca as mãos no bolso e vira-se para a esquerda, apontando para a sala ao lado. A câmera acompanha os olhos de Volmir, que diz: Subsecretário: – Aí é o monitoramento. É que a gente tem as câmeras aí, é que a gente tem acesso a todas essas câmeras da cidade. Assim que Volmir explica a Nascimento, a câmera, antes parada, gira para a direita, novamente permitindo ao espectador ver a imagem de Volmir. Na sequência, a mesma personagem se vira para a sala à sua direita. Neste momento a câmera acompanha novamente o corpo de Volmir. Assim que se vira, ele cruza os braços – o que pode ser entendido como o discurso corporal mostrando estar o sujeito na defensiva, como forma de se resguardar, de se proteger ou até mesmo de mostrar medo, timidez, força ou poder. E então fala: Subsecretário: – Aqui é guardião. Aqui a gente faz intercepções, todas as telefônicas. Imediatamente Volmir vira-se para Nascimento. A câmera em plano americano faz um zoom em Nascimento. Este, em off, diz: Nascimento: – Ia ser difícil, mas eu tinha chegado aonde cavera nenhum chegou. Na Secretaria de Segurança eu não iria lutar só contra o tráfico, eu ia poder enfrentar o sistema. Conforme a câmera faz um zoom no protagonista, seu discurso em off acompanha seu discurso corporal, isto é, o discurso imagético e o discurso linguístico se complementam na constituição da cena fílmica, criando uma realidade que se materializa visualmente para o espectador. É possível perceber que Nascimento começa a fazer sinal positivo com o rosto. Essa afirmação, reafirmada pelo eu71, expressa um desejo latente e fervoroso, assumindo agora o outro Eu, o que ali está, como sempre, à frente dos outros, até mesmo das críticas. O discurso em off próprio da personagem funde-se ao discurso imagético. A janela de vidro proporciona o discurso da transparência, ao mesmo tempo em que a claridade do dia, ao 71 Ao referir este eu, faço-o em oposição ao Eu, que é diferente um do outro, como Lacan explicitou: “O Eu é o pronome pessoal que indica a singularidade de um sujeito junto aos humanos; o sujeito se pensa único e afirma isso com toda a naturalidade ao dizer: ‘Eu’. O eu é bem diferente; o eu é sentir-se a si mesmo instalado num corpo, obedecendo a necessidades, atravessando por desejos e produto de uma história. (...) o primeiro é a afirmação simbólica e social de nossa singularidade, enquanto o segundo é a afirmação imaginária e afetiva de nosso ser” (1998b, p. 84-85) 98 entrar pela sala, passando pelo vidro existente atrás da personagem, evidencia a luz da resistência. Essa claridade serve para dar visibilidade ao novo serviço que foi ordenado a Nascimento. Ele compreende que trabalhando como Subsecretário da Inteligência poderia finalmente lutar insistentemente contra o sistema que repetidas vezes verbalizou, sistema que costuma culpar inocentes para justificar falhas políticas e até mesmo policiais. 3.2.3 Troca de pele: a serpente renasce Observou-se no item anterior que Nascimento perde o comando do BOPE e que o governador o nomeia como Secretário de Inteligência. É em virtude dessa situação que transita toda a história fílmica. Por outro lado, é esse acontecimento o determinante deste item e o desfecho da narrativa fílmica. Escolhi, como foco para esta análise, o renascimento do sistema, pela reiteração das práticas delituosas por novos sujeitos. Neste recorte discursivo fílmico imagético (RDF-I 13), escolhi analisar o ponto de vista do discurso policial da personagem Nascimento, sob a perspectiva pela qual que o cineasta José Padilha apresenta a narrativa fílmica. No recorte mencionado, a câmera do cineasta acompanha visualmente o discurso em off de Nascimento. Desta forma, o discurso estrutural do “filme é como seguimento de planos e de sequências, tal como o espectador atento pode perceber” (XAVIER, 2003, p. 71). Assim surge o renascimento do sistema. Discurso da personagem-fio permite ao espectador compreender o sistema em que estão envolvidos poder, política, milícia e polícia: Nascimento: – Botei muito político corrupto na cadeia. Por causa do meu discurso, teve filho da puta que foi pra vala muito antes que eu esperava. Foi a maior queima de arquivo da história do Rio de Janeiro. Mesmo assim o sistema continuava de pé. O recorte discursivo inicia com Nascimento pronunciando seu discurso em off. Enquanto isso, o cineasta possibilita ao espectador imagens correspondentes ao discurso de Nascimento. Primeiramente, o diretor leva ao espectador, em uma única imagem, duas visões: à esquerda, a imagem de um político entrando na cadeia e o carcereiro fechando a grade. Já à direita vê-se a imagem desse mesmo político, mas de frente, entrando na cela e o carcereiro atrás dele, fechando a grade. É importante destacar que o espectador não visualiza a imagem através da câmera principal, a do cineasta, mas sim, através das imagens das câmeras de segurança do presídio, que são reprojetadas nas televisões existentes na sala de 99 monitoramento. Isso é possível detectar devido ao código numérico e alfabético que aparece em baixo do vídeo, ao lado direito, código este que possibilita identificar qual é a câmera que está filmando, como é próprio das salas de monitoramento. Imediatamente a câmera faz um corte da imagem do político na penitenciaria – espaço fechado, e escuro – para a imagem de duas pessoas jogando um sujeito morto em uma “vala”. Na sequência, a câmera faz outro corte e em zoom mostra um carro, com as portas e o portamalas abertos, e dois policiais olhando o cadáver de uma pessoa dentro do porta-malas. Logo em seguida, quando Nascimento diz “foi à maior queima de arquivo da história do Rio de Janeiro”, a câmera, em travelling lateral para a esquerda, novamente possibilita ao espectador visualizar várias pessoas mortas pelo chão, até que a câmera focar em uma pessoa que está carbonizada. Ao fundo, é possível ver uma viatura com dois policiais. A esse respeito, pode-se primeiramente dizer que matar alguém por interesse é totalmente contrário aos direitos humanos. Por outro lado, é possível salientar que é a manifestação do discurso das conveniências, que considera somente os interesses particulares de cada sujeito, no caso do recorte, matar para eliminar provas, eliminar lideranças, e, desta forma, como ressalta Ismael Xavier (2003, p. 24), “é um ato de manipulação”. Tomando como base essas imagens, é possível perceber que não se pode prever o futuro, muito menos as pessoas que conviverão próximo, o que impossibilita saber qual será o destino de cada um. A morte dessas pessoas é bastante significativa no contexto discursivo da história. A morte dessas pessoas é sintoma de barbárie, como salienta Žižek, quando faz um contraposto com o Holocausto. Em resumo, o sempre citado provérbio judeu sobre o Holocausto (“quando alguém salva um homem da morte, está salvando toda a humanidade”) deve ser completado por: “Quando alguém mata um único inimigo verdadeiro da humanidade, está salvando toda a humanidade”. A verdadeira prova ética é não somente a disposição de salvar vidas, mas também – talvez até mais – a dedicação implacável à aniquilação dos que fizeram as vítimas. (ZIZEK, 2003, p. 87). Tomado o simbolismo da morte de um inimigo como um exemplificador de um discurso focado na morte de pessoas que prejudicam a sociedade é que se pode considerar, como exemplo do que foi dito, a morte das várias personagens retratadas recorte discursivo fílmico-imagético 13. No entanto, a morte aqui é um discurso do silenciamento, matar para silenciar e, ao mesmo tempo, matar para poder se beneficiar. É o que acontece com Fábio em relação a Rocha. 100 Fabio: – Tira o ouro e põe na âncora essa merda aí. Nesta sequência, a câmera faz um corte e apresenta, aos olhos do espectador, Rocha, um dos maiores milicianos do Rio de Janeiro, morto com três tiros, um na cabeça e dois no peito. Posteriormente, a câmera em Plano Fixo (PF) gira 180 graus à direita permitindo ao espectador saber quem é o culpado pela morte de Rocha. A cena em questão possibilita ao espectador compreender que Fabio muda de posição discursiva. Até então, a posição sujeito que exercia mesmo em escala hierárquica sendo superior a Rocha era a de obediência e acatar as ideias, isso porque, Rocha é que possuía contatos políticos. Assim que Fabio mata Rocha, sua posição-sujeito muda e passa então a ser o novo comandante aliado a novas lideranças políticas. Assim sendo, a posição-sujeitocoronel que exerce passa a estabelecer uma relação de autoritarismo não dissociada agora a posição-sujeito-político. Na sequência, Nascimento continua: Nascimento: – O sistema entrega a mão para pegar o braço. O sistema se reorganiza. Articula novos interesses. Cria novas lideranças. Novamente o diretor faz um corte na imagem e possibilita ao espectador ver os políticos, no caso, alguns deputados e o governador comemorando com champanhe, na sala deste, sua reeleição. Governador: – Senhores! Mais quatro anos, parabéns. O que chama a atenção neste recorte é que sempre renascem novas lideranças. Essas podem ser entendidas como lideranças negativas ou positivas. O que irá diferenciá-las é o meio em que surgem e como são direcionadas. É nessa perspectiva que Vanoye e Goliot-Lété chamam a atenção para a análise do filme que pode sim ser tomado como interpretação socialhistórica. Em um filme, qualquer que seja seu projeto (descrever, distrair, criticar, denunciar, militar), a sociedade não é propriamente mostrada, mas encenada. Em outras palavras, o filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginário, constrói um mundo possível que mantém relação complexa com o mundo real. (...) o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que lhe é contemporâneo. Estrutura a representação da sociedade em 101 espetáculo, em drama (no sentido geral do termo) e é essa estrutura que é objeto dos cuidados do analista (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 2005, p. 56). Em conformidade com Vanoye e Goliot-Lété, é possível compreender que o discurso construído pelo filme é biopolítico por estar aliado ao discurso da milícia, da polícia e da política inscrito “como uma evocação sobre a qual se apoia a tomada de posição do sujeito” (PÊCHEUX, 1997b, p. 125). Neste sentido, pode-se destacar que as ações estão legitimandose discursivamente e reescrevendo-se como uma nova FD, a do político que se reelege e a do miliciano que assume o poder sem se deixar submeter a novos ditames, inspirados na honestidade pessoal e no cumprimento do que determina a Lei, atuando pelo benefício da sociedade. CONCLUSÃO A análise precedente, tratando do poder instituído versus poder marginal, com base em recortes discursivos e fílmico-imagéticos tomados ao corpus constituído por uma narrativa fílmica, Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro, fundamentou-se teoricamente na perspectiva discursiva da Análise do Discurso. Essa teoria reconhece o discurso como objeto da imbricação da língua, em sua autonomia relativa, e da história, compreendida a partir das contradições das forças materiais. Esta dissertação buscou compreender o sistema que envolve as esferas do poder, isto é, a polícia, a milícia e a política, como um sintoma de problemas que permeiam a conjuntura social do país. A pesquisa tomou como base reflexões de Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi, Maria Cristina Leandro Ferreira, Jean-Jacques Courtine, Jacques-Marie Émile Lacan, Michel Foucault, Christian Metz, Louis Althusser, Jaqueline Authier-Revuz, entre tantos outros teóricos renomados. Como na Introdução já frisei, esta pesquisa surgiu do pressuposto de analisar o sistema governamental que atua sobre a sociedade. Concentrei a atenção especialmente no poder dos políticos, das polícias e das milícias. Para efeitos de análise, concentrei maior atenção no corpus cinematográfico, com o objetivo de observar e analisar uma obra autoral, que, embora baseada na obra literária, possui características próprias. A reflexão teórica, como já foi destacado na Introdução, fundamenta-se na Análise do Discurso em seus três marcos fundamentais, a linguística, a psicanálise e o materialismo histórico. Esse tripé teórico permitiu sustentar a pesquisa, que se dividiu em três partes. As primeiras considerações constituíram o Capítulo inicial, Identificando o arsenal teórico. Neste, salientei aspectos da AD que estavam diretamente ligados ao que havia me determinado a analisar no corpus. Assim, realizei uma pequena reflexão sobre os caminhos percorridos por Michel Pêcheux na Análise do Discurso, destacando o discurso como um enunciado originado em certas condições de produção, e desta forma, possibilitando uma significação, na perspectiva de que “o discurso não é apenas transmissão de informação, mas efeito de sentido entre interlocutores e a análise de discurso é a análise desses efeitos de sentido” (ORLANDI, 2003, p. 115). 103 Por outro lado, enfatizei as formações discursivas, que podem ser entendidas como integrantes do interdiscurso, ou então configurações específicas dos discursos em suas relações. Assim, “o interdiscurso disponibiliza dizeres [...], pelo já-dito, aquilo que constitui uma formação discursiva em relação à outra” (ORLANDI, 2003, p. 43-44), enquanto o intradiscurso que é o espaço da formulação do que se está dizendo, ao contrário do interdiscurso, que em algum dado momento já foi dito, porém fica silenciado na nossa memória. Dessa forma, o intradiscurso é o eixo horizontal, é aquilo que estamos falando naquele dado momento, mas ao mesmo tempo, é aliado ao interdiscurso para assim representar o dizível do sujeito. Tratando-se de sujeito, este é uma posição no discurso, o que implica deixar de lado a noção de indivíduo e considerar o sujeito discursivo determinado no/pelo dizer, ancorando-se em palavras já ditas e plenas de significados. Como explica Maria Cristina Leandro Ferreira (2004), Pêcheux vai definir esse sujeito como descentrado, cindido, atravessado por palavras que não são suas e distante do sujeito consciente que se pensa livre e dono de si. Segundo a autora, “trata-se então de um sujeito desejante, sujeito do inconsciente, materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia”. Pela ideologia, o sujeito constituise como efeito de linguagem, como disse Pêcheux: A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto “pré-construído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito (2009, p.163) A Análise do Discurso compreende o sujeito como um mecanismo de antecipação que organiza as posições-sujeito no discurso. Dessa forma, o sujeito antecipa a imagem de seu interlocutor, assim presume o efeito que possivelmente poderá despertar em seu interlocutor, e acaba dizendo o que diz de uma determinada forma e não de outra. Neste intuito de antecipação, o sujeito permite a construção da imagem do outro, do objeto discursivo e principalmente de si mesmo. Assim, ocorre um jogo de imagens dos sujeitos entre si, dos sujeitos com os lugares que ocupam na formação discursiva e dos discursos já-ditos com os possíveis e imaginados. O sujeito discursivo possui muitas vozes. Assim sendo, é heterogêneo, como salienta Authier-Revuz, destacando duas ordens de heterogeneidade, a constitutiva e a mostrada: 104 [n]o discurso indireto o locutor se dá como tradutor: fazendo uso de suas próprias palavras ele envia a um outro como fonte do “sentido” das intenções que ele relata. No discurso direto são as próprias palavras do outro que ocupam o tempo, ou o espaço, claramente recortado na frase, na citação na qual o locutor se apresenta como simples “porta-voz”. Sob essas duas modalidades diferentes, o locutor, explicitamente, dá lugar no seu discurso ao discurso do outro (FERREIRA, 2000, p. 02). Como destaquei, o sujeito é heterogêneo, porém o que isso de fato tem a ver com esta pesquisa? De que maneira se apresenta no corpus? Esse sujeito é o objeto de estudo da minha pesquisa, mais especificamente a personagem Tenente Coronel Nascimento, que luta para defender sua corporação, e a sociedade, dos bandidos, dos políticos corruptos e da milícia, policiais descumpridores de seus deveres. Tomando os conceitos da Análise do Discurso, além de conceitos vindos da literatura e do cinema, organizei a segunda consideração: O discurso dito e o discurso do não-dito. Essa sequência corresponde ao segundo capítulo da pesquisa. Nela analisei primeiramente o interior das tramas presentes no discurso da polícia, da política, do poder e o sistema. Neste capítulo iniciei a análise teórica a partir de seis recortes discursivos fílmico-imagéticos, e algumas conclusões importantes a esse respeito foram se definindo no decorrer da pesquisa. Inicialmente, constatei que o discurso é ideológico. Isso se dá devido os fios ideológicos que constituem a realidade do sujeito, tanto político, quanto policial, pois o discurso a que adere está fortemente calcado no inconsciente originado da historicidade linguística. Dessa forma, o interdiscurso do sujeito se manifesta pela ideologia e pelos efeitos de sentido que provoca em meio ao grupo identificado com a mesma, ou com outras formações discursivas. É como o interdiscurso se entrelaça com o intradiscurso e a forma como o sujeito assume a sua posição-sujeito. Além do mais, sobre os fundamentos do discurso a propósito do tema em questão, são eles amparados nos andaimes do crime, da corrupção, da cooptação e do poder, existindo relações incestuosas entre eles. Como, a propósito, considera Fernandes (2007, p. 24), ao enfatizar que o “discurso não é a língua e nem a fala, mas, como exterioridade, implica-as para a sua existência material; realiza-se, então, por meio de uma materialidade linguística, cuja possibilidade firma-se em um ou vários sistemas (linguísticos e/ou semióticos) estruturalmente elaborados”. Em conformidade com Fernandes, Gregolin afirma que O sujeito não é considerado como um ser individual, que produz discursos com liberdade: ele tem a ilusão de ser o dono de seu discurso, mas é apenas um efeito do ajustamento ideológico. O discurso é construído sobre um inasserido, um préconstruído (um já-lá), que remete ao que todos sabem, aos conteúdos já colocados 105 para o sujeito universal, aos conteúdos estabelecidos para a memória discursiva (GREGOLIN, 2003, p. 27) Ao produzir o discurso, o sujeito não expressa a sua consciência livre de inferências. Assim, o discurso que emerge da polícia e da política em muitos momentos pode ser tomado de forma ambígua. Por isso, é necessário que seja analisado conforme o dado momento histórico a que é remetido, bem como as circunstâncias em que se presume tenha sido constituído. Nesta mesma linha, desenvolvi a terceira consideração, esta delimitada pelos nós do sistema. Assim, procurei revisar os fios do tecido discursivo para melhor compreensão acerca dos itens a pesquisar, levando em consideração a opinião de Authier-Revuz (1990, p. 97), de que "[...] o texto oral, em que não se podem suprimir as reformulações, deixa, mecanicamente, no fio do discurso, os traços do processo de produção". Sendo assim, no fio do discurso, o intradiscurso, permite-nos buscar discursos outros pela memória discursiva (interdiscurso). Amparada em Pêcheux (1975, 1990, 1996, 1997a, 1997b, 1999, 2009), considero que tanto o intradiscurso quanto o interdiscurso são interligados e agem discursivamente juntos. Nesse último capítulo, procurei me deter na análise do corpus narrativocinematográfico, formado por sete recortes discursivos fílmico-imagéticos. Nesses recortes procurei destacar sequências discursivas marcadas especialmente pela presença de inúmeras significações e de relações que interagem determinando o sujeito-discursivo. Desse modo, destaquei recortes com relação à afetividade, à voz do sujeito-discursivo Nascimento, que por ser conservador, raramente aceita mudanças, principalmente quando essas são relacionadas aos direitos humanos. Esse sujeito é duplamente interpelado: pela ideologia e pelo inconsciente; ele é sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e do inconsciente, sendo que isso "[...] tem a ver com o fato de os nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitação" (HENRY, 1992, p. 188). Parti, pois, de um aparato teórico sustentado pela noção de um sujeito cindido, atravessado pelo inconsciente, cujo discurso mantém sempre relação com outros dizeres. O sujeito discursivo, neste capítulo, é um sujeito fragmentado entre o desejo de acabar com o sistema de corrupção entre a política e a polícia e a dificuldade de aceitar as opiniões convergentes. É por esse dilema que se justificam os itens arrolados no Sumário, com o intuito de caracterizar o sujeito discursivo pelas relações estabelecidas no seu espaço discursivo. 106 A título de observação conclusiva sobre este trabalho, primeiramente é necessário enfatizar que José Padilha, diretor do filme, não seguiu uma ordem linear tendo por base a obra literária, mas sim, baseou-se em apenas alguns fragmentos isolados para a construção do discurso fílmico-imagético. Considerando que, tratando-se de um assunto nunca estudado anteriormente, encontrei dificuldades para relacionar a Análise do Discurso com a análise fílmica. Por tanto, procurei perceber neste trabalho que discurso é produzido pelas imagens e a que este filme está dando visibilidade. Percebi, ao término do trabalho analítico, que o cinema político brasileiro, voltado para as questões de nossa realidade social, não poderia ser diferente do que apontei nesta Dissertação, pois reflete a própria incapacidade contemporânea de se pensar a política em sua dimensão normativa, reflete a absoluta impotência, a completa falta de saída para nossos problemas mais crônicos. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AGUIAR, Dyrceu. O Judiciário brasileiro em face dos direitos humanos. In Justiça e Democracia (Publicação oficial da Associação Juízes para a Democracia), n. 2, jul./dez. 1996. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Lisboa: Presença, 1983. AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidades enunciativas. Cadernos de estudos linguísticos, n. 19. 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