na
Pan-Amazônia
Ellen Sílvia Amaral Figueiredo
Organizadora
Biologia, conservação e
manejo participativo de
pirarucus
na Pan-Amazônia
GOVERNO DO BRASIL
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Dilma Vana Rousseff
MINISTRO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO – MCTI
Marco Antonio Raupp
INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL MAMIRAUÁ IDSM/OS/MCTI
DIRETORIA GERAL
Helder Queiroz
DIRETORIA ADMINISTRATIVA
Selma Santos de Freitas
DIRETORIA TÉCNICO-CIENTÍFICA
João Valsecchi do Amaral
DIRETORIA DE MANEJO E DESENVOLVIMENTO
Isabel Soares de Sousa
COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE MANEJO DE PESCA
Ana Cláudia Torres Gonçalves
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
Biologia, conservação e
manejo participativo de
pirarucus
na Pan-Amazônia
Ellen Sílvia Amaral Figueiredo
Organizadora
Tefé
2013
© Direito de cópia/ copyright por/by IDSM 2013
Foto capa (frente)
Marilene Ribeiro
Foto capa (costa)
Eduardo Coelho
Projeto editorial, Capa, Editoração Eletrônica, Normalização e Catalogação
Eliete Amador Alves Silva
Revisão
Sauer Teles
Figueiredo, Ellen Sílvia Amaral (Org.)
Biologia, conservação e manejo participativo de pirarucus na PanAmazônia. Organizado por Ellen Amaral. Tefé: IDSM, 2013.
278 p. , il.
ISBN: 978-85-88758-29-2
1. Pesca - Pan-Amazônia 3. Arapaima gigas. 3. Pirarucu. I. Título.
CDD: 639.2
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................
09
PREFÁCIO ...........................................................................................................
13
PARTE I
BASES CIENTÍFICAS PARA O MANEJO DE PIRARUCU: UMA DÉCADA DE
CONHECIMENTOS GERADOS
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu
(Arapaima spp.) na Amazônia .............................................................................
Leandro Castello, Donald J. Stewart, Caroline C. Arantes
17
Implicações da biologia, ecologia e contagens para o manejo do pirarucu .......
Caroline Arantes, Leandro Castello
33
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822.....
Kelven Lopes, Rossineide Rocha, Maria Auxiliadora, Helder L. Queiroz
43
Influência da cobertura de macrófitas sobre a abundância de pirarucus em
lagos da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá ..........................
Adriana Gomes Affonso, Helder L. Queiroz, Evlyn Márcia Leão de Moraes Novo
59
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva
Mamirauá ...........................................................................................................
Juliana Araripe
69
Fauna Macrobentônica de Lagos de Várzea como Indicador de Impacto da
Pesca Manejada de pirarucus ............................................................................
Lorena Almeida, José Souto Rosa-Filho, Daiane Aviz; Helder L. Queiroz
87
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do
pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822) ................................................
Guido Miranda-Chumacero, Kelven Lopes, Yuba Sánchez, Helder L. Queiroz, Jaime
Sarmiento
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana: impactos nas pescarias,
cadeias de valor emergentes e perspectivas para a gestão comunitária ...................
Fernando M. Carvajal - Vallejos, Alison Macnaughton, Claudia Coca, Selín Trujillo, Joachim
Carolsfeld, Paul A Van Damme
103
131
Produtividade e eficiência econômica da pesca de pirarucu (Arapaima gigas) nas
áreas de manejo das Reservas Amanã e Mamirauá ...................................................
Ellen Amaral, Oriana Almeida
151
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã,
no Amazonas .............................................................................................................
Rafael Castanheira
163
PARTE II
APOIO TÉCNICO E GOVERNAMENTAL PARA O MANEJO DE PIRARUCUS
Visão do Ministério da pesca e aquicultura sobre a regulamentação da pesca do
pirarucu (Arapaima gigas) na Amazônia Brasileira .....................................................
Jeanne Gomes da Silva
O papel da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável
do Amazonas (SDS) no apoio ao Manejo Participativo de pirarucu (Arapaima gigas)
nas unidades de conservação estaduais ....................................................................
João Bosco Ferreira da Silva, Flávio Ruben P. de Oliveira Júnior, Gelson da Silva Batista
Recuperando a pesca do pirarucu no baixo Amazonas, Brasil ..................................
Leandro Castello, Caroline C. Arantes, Fabio Sarmento, David G. McGrath
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos
de manejo de pirarucu (Arapaima gigas) .......................................................................
Ellen Amaral; Ana Cláudia Torres e Nelissa Peralta
6
191
196
207
213
PARTE III
EXPERIÊNCIAS DE MANEJO PARTICIPATIVO DE PIRARUCUS NA PAN-AMAZÔNIA
A governança no manejo de pirarucu na Reserva Extrativista do Baixo Juruá,
Amazonas ..................................................................................................................
Paula Soares Pinheiro, Raimundo Ferreira Lima, João da Silva Ferreira, Jusecleide Gomes
Ferreira, Marcelo Costa Ferreira, Tatiana Maria Machado de Souza, Isaura de Oliveira
Bredariol, Ana Luiza Castelo Branco Figueiredo
Manejo do pirarucu na RDS Piagaçu Purus: estratégias para conservação ...............
José Gurgel Rabello Neto
239
245
Programa de manejo de pesca de pirarucu como ferramenta de gestão participativa
dos recursos hidrobiológicos na Reserva Nacional Pacaya Samiria ...........................
Jorge Luis Gómez Noriega
249
A experiência da Associação Agroextrativista de Auatí-Paraná no Manejo Comunitário
de pirarucu na Resex Auatí-Paraná, Amazonas, Brasil ...............................................
Edvaldo Tavares de Lira, Enrique Araújo de Salazar, Miguel Arantes
257
O manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá e Amanã .................................................................................
Ana Cláudia Torres Gonçalves
267
7
APRESENTAÇÃO
É com enorme satisfação que atendo ao convite da organizadora para apresentar o
livro que agora se encontra em suas mãos.
Posso constatar que, enfim, podemos contar com um volume de informações mais
consistentes sobre a biologia dos pirarucus, bem como sobre as iniciativas de
manejo desta espécie desenvolvidas na Amazônia.
Estas informações aparecem reunidas pelos principais estudiosos de pirarucus,
por representantes das principais experiências de seu manejo na Amazônia, e por
representantes das principais organizações de governo envolvidas no fomento
desta atividade.
Sem dúvida esta é uma grande conquista, que alegra a todos nós.
A organização deste volume vem sendo planejada desde quando o sistema de
manejo da pesca de pirarucus, sustentável e de base comunitária, desenvolvido na
Reserva Mamirauá finalmente completou seu décimo aniversário.
Desde aquele momento, ficou clara a necessidade de revisarmos e atualizarmos
todo o conhecimento científico disponível sobre a espécie, particularmente, aquele
conhecimento gerado nos últimos anos, a partir das experiências de manejo.
Também era clara a necessidade de trocarmos as experiências adquiridas nestes
distintos locais de manejo, de modo a adequarmos aquele conhecimento com esta
prática, que já completa agora aproximadamente 15 anos.
E, em última instância, também consideramos que há grande necessidade de
provermos os técnicos e os tomadores de decisão na Amazônia de uma literatura
especializada e de maior profundidade técnico-científica, mas em língua portuguesa.
Todas estas compõem etapas da preparação do terreno para um processo mais
acentuado e acelerado de multiplicação destas boas práticas, facilitando assim a
construção de planos de manejo realistas e de qualidade. Planos que possam servir
de base para novas e positivas experiências locais na Amazônia Brasileira, e também
nos países vizinhos da Pan-Amazônia.
Após quase 15 anos de vida do manejo participativo do pirarucu na Reserva
Mamirauá, todos os indicadores disponíveis até o momento sugerem que este
sistema tem se mostrado um sucesso. Já premiado no Brasil e, mais recentemente,
também pela Organização das Nações Unidas (ONU), ele é reconhecido como
9
uma das mais relevantes experiências de uso sustentável de recursos naturais
por populações locais em curso no momento na Amazônia. O sistema dá todas as
indicações de que realmente atende aos seus pressupostos de sustentabilidade,
participação, envolvimento e conservação.
Foi a urgente necessidade de conservar esta importante espécie que motivou o
início das pesquisas voltadas para o seu manejo, ainda em 1992. Posteriormente,
foi a sua relevância social, política e econômica a responsável pela implantação,
manutenção, consolidação, aperfeiçoamento e irradiação do manejo. O sistema
de manejo consolidado mostrou-se capaz de, quando corretamente aplicado,
conservar o recurso, gerar melhores condições de vida aos pescadores, e criar novas
oportunidades para outros agentes econômicos regionais, auxiliando na construção
de estratégias sustentáveis de desenvolvimento regional.
Esta prática de manejo foi iniciada ainda em 1998/99 como resultado do esforço
de vários pesquisadores, técnicos extensionistas, e pescadores comunitários que
atuavam na Reserva Mamirauá à época. Hoje, esta prática já representa um caso
exemplar de construção de cadeias produtivas sustentáveis e arranjos produtivos
locais para a Amazônia. Após alguns anos de muita pesquisa científica e da
implantação de alguns experimentos-piloto, principalmente baseados no Setor
Jarauá da Reserva Mamirauá, o sistema de manejo criado passou por uma rápida
fase de crescimento e multiplicação local e regional no Médio Solimões, observada
entre 2002 e 2008. Neste mesmo período, a experiência demonstrou ter alcançado
sua maturidade por ser capaz de identificar seus próprios erros, e de corrigi-los com
presteza e eficácia.
O adensamento destas experiências multiplicadas na Região do Médio Solimões
gerou maior volume de produção deste pescado, e abriu a oportunidade para o
estabelecimento de novos elos desta nascente cadeia, em experiências fomentadas
pela ação do Estado. Hoje, existe um segmento da cadeia produtiva que busca
explorar este maior volume de produção. Ele busca agregar novos valores à cadeia
por meio de processos de beneficiamento que pretendem levar o produto a novos
e mais amplos mercados, muito embora os resultados práticos desta abordagem
ainda sejam questionáveis.
Apesar de lidar com visões distintas, e muitas vezes conflitantes, aos poucos uma
cadeia de valor vai se estruturando no interior da Amazônia, gerando benefício a
seus membros. Tais benefícios são continuados a outros segmentos da sociedade,
por meio da intensificação da atividade econômica regional, e da sua tributação.
Hoje, é dever de todos nós fazer com que esta cadeia atente sempre para os
interesses dos manejadores de pirarucu, que são os protagonistas principais deste
processo de tanta relevância, e para a conservação desta importante espécie.
10
Uma vez consolidada regionalmente esta experiência, agora um maior esforço deve
ser devotado na sua multiplicação em outras partes da Amazônia, a partir do seu
centro irradiador, que é o Médio Solimões.
Embora a consolidação regional no Estado do Amazonas já esteja bem assegurada,
temos ainda um caminho longo buscando a consolidação local de experiências
pioneiras nos Estados do Acre, Tocantins e Rondônia. E até mesmo no Estado do
Pará, que conta com uma das mais antigas experiências de manejo comunitário do
pirarucu, na região de Santarém, no Médio Amazonas, ainda há necessidade de
consolidar as boas experiências de manejo dos pirarucus.
Esforço adicional é, portanto, necessário para consolidar estas frentes de
multiplicação, tanto no Brasil quanto em países vizinhos que já iniciaram o processo
de manejo comunitário de pirarucus, como as Guianas, Peru, Colômbia e mesmo
a Bolívia, país onde a espécie foi acidentalmente introduzida em fins do século
passado, na bacia do rio Beni, e onde hoje já é objeto das primeiras experiências
de manejo em algumas localidades (também visando o controle da população desta
espécie que, naquela bacia, tem o perfil de uma invasora).
Entretanto, nem tudo está completamente resolvido no centro irradiador do modelo
de manejo. No Médio Solimões, ainda há dificuldades de aplicação de alguns dos
mais importantes critérios técnicos para estabelecimento das atividades de manejo.
Tais critérios, não apenas relacionados aos aspectos biológicos das populações
manejadas da espécie, como também relacionados aos aspectos socioeconômicos
e políticos das populações manejadoras, ainda são pouco considerados pelas
instituições responsáveis por fomentar as ações replicadoras, o que coloca em risco
a sustentabilidade e a credibilidade de todo o sistema.
Outras dificuldades também persistem junto aos órgãos de licenciamento e
controle, onde ainda há pouca compreensão acerca de aspectos básicos da biologia
da espécie e acerca da prática de seu manejo, demandando uma discussão mais
qualificada a respeito destes temas. Preencher estas lacunas é outro dos objetivos
deste livro.
E ainda há uma grande limitação à maior expansão do manejo, um grande desafio
a ser superado nos próximos anos: a cuidadosa construção da qualidade sanitária
do produto. Isto irá, finalmente, permitir uma maior democratização da cadeia
produtiva, aumentando as opções de agregação de valor, permitindo que o pequeno
produtor tenha maiores opções de venda e, consequentemente, melhores preços
para seu produto.
Esta mudança estrutural poderá, enfim, ampliar largamente o mercado deste
produto mais valorizado e redefinir o papel dos elos da cadeia, empoderando os
produtores. A possibilidade de venda do produto manejado in natura, resfriado ou
11
congelado, ainda é largamente limitada pela sua baixa qualidade sanitária. Este é,
portanto, o principal desafio científico e tecnológico que devemos enfrentar nos
próximos anos, para aperfeiçoar e democratizar esta nova cadeia produtiva. Para
isto, contamos com a continuidade da parceira entre academia, os institutos de
pesquisa, os órgãos representativos da categoria dos pescadores, e do governo, na
sua capacidade de licenciador, controlador e fomentador de atividades econômicas
sustentáveis. Juntos, todos podem colaborar para aprimorar esta iniciativa já
importante na economia da Amazônia Brasileira.
Este livro não poderia existir sem que um grande número de pessoas tivesse
dedicado seu tempo e seu esforço no planejamento e na organização do mesmo.
Quero, em nome do Instituto Mamirauá, agradecer profundamente a todos aqueles
que colaboraram com este livro, especialmente a sua organizadora, Ellen Amaral,
que esteve à frente de todas as fases de preparação e organização. A ela, nosso
maior e mais representativo agradecimento.
Eu estou certo de que este livro será saudado por todos os seus vários públicos,
atingindo os diferentes alvos aos quais ele é dirigido. Para o bem da conservação
da espécie, e para a perpetuação de uma atividade econômica tão antiga, tão
expressiva, simbólica e representativa da cultura local e tão relevante para a vida
das comunidades ribeirinhas da Amazônia.
Helder L. Queiroz
Julho de 2013
12
PREFÁCIO
O Manejo participativo de pirarucus na Amazônia foi implementado pela primeira
vez na Reserva Mamirauá, no estado do Amazonas, no ano de 1999. Desde então,
a atividade tem sido replicada em diversas regiões da Pan-Amazônia devido a sua
proposta inovadora de aliar a conservação de um recurso natural importante para a
população ribeirinha e a sua exploração econômica.
Realizado em ambientes de várzea por pescadores ribeirinhos com o apoio de
técnicos, extensionistas e pesquisadores de organizações governamentais e
não governamentais, o manejo tem gerado expressivos resultados nos âmbitos
social, ecológico e econômico. Dentre os principais avanços alcançados estão a
regularização da pesca comercial de pirarucu, proibida no estado do Amazonas a
partir de 1996 (Portaria n° 8 de 2 de fevereiro de 1996); o aumento anual médio
na população de pirarucu em cerca de 25%, nas áreas de manejo; o aumento anual
médio na renda gerada em cerca de 29%; e o reconhecimento conferido ao grupo de
pescadores pela prática de ações sustentáveis ecologicamente.
Nesse sentido, considerando o ineditismo da proposta do manejo e a grande
expansão da atividade para as demais regiões Amazônicas com contexto semelhante
ao da Reserva Mamirauá, torna-se fundamental o desenvolvimento de estudos e
a divulgação de seus resultados, assim como a promoção da discussão sobre os
principais desafios a serem enfrentados, e a partilha da expertize adquirida na
assessoria técnica / extensão nas áreas de manejo em desenvolvimento. Sendo
assim, com o intuito de promover o encontro entre os pesquisadores, as lideranças
de pescadores e os técnicos / extensionistas envolvidos no manejo participativo de
pirarucu em ambientes naturais; socializar as informações científicas disponíveis;
debater sobre o apoio técnico e governamental para o manejo da espécie; e
disseminar as diferentes experiências de manejo desenvolvidas na Pan Amazônia foi
realizado o 1° Seminário Internacional sobre Conservação e Manejo de pirarucu em
ambientes naturais em Manaus, em agosto de 2012.
Biologia, Conservação e Manejo Participativo de pirarucus na Pan-Amazônia reúne
a publicação de 18 artigos elaborados pelos principais especialistas e técnicos
ligados ao manejo de pirarucu na atualidade e que participaram do Seminário
internacional em Manaus. Portanto, este documento tem como missão disponibilizar
aos interessados as principais informações sobre o manejo de pirarucu geradas na
última década, a fim de subsidiar suas ações em campo.
13
Para alcançar seus propósitos o presente livro foi organizado em três partes
contendo artigos acerca dos estudos científicos realizados, das assessorias técnica
e governamental prestadas e das experiências de manejo desenvolvidas. A Parte
I “Bases Científicas para o Manejo de pirarucu: Uma década de Conhecimentos
Gerados” traz 10 artigos sobre biologia, ecologia e genética do pirarucu, assim
como sobre economia e documentação fotográfica do manejo. A Parte II “Apoio
técnico e governamental para o manejo: realidade dos Estados do Amazonas e
Pará”, por sua vez, reúne 4 artigos sobre a visão institucional do manejo, método
de avaliação que auxilia o melhor desenvolvimento da atividade, e estratégias para
a recuperação da população de pirarucus em áreas de manejo fora de Unidades de
Conservação, como o caso do Baixo Amazonas. E, por fim, a Parte III “Experiências
de manejo participativo de pirarucu na Pan-Amazônia” apresenta 4 experiências de
manejo desenvolvidas em regiões do Amazonas, Pará e na Reserva Pacaya-Saimiria,
no Perú.
A realização deste livro foi possível graças à colaboração de inúmeras pessoas ligadas
direta ou indiretamente ao manejo participativo de pirarucu em ambiente natural.
Por esta razão, gostaria de agradecer enormemente a participação de cada um dos
autores, que são inteiramente responsáveis pelos trabalhos que compõe esta obra,
assim como dar o meu muito obrigada aos revisores que dedicaram seu precioso
tempo na avaliação desses artigos. Gostaria também de fazer um agradecimento
especial ao diretor do Instituto Mamirauá Dr. Helder Queiroz e a coordenadora Ana
Cláudia Torres, representante da equipe do Programa de Manejo de Pesca desse
Instituto, que não mediram esforços para a concretização do Seminário e deste livro.
E agradeço também ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e ao Instituto
Mamirauá que tornaram realidade o Seminário e esta obra. Por fim, agradeço a Deus
pelas infinitas bênçãos recebidas, a meus pais Dalmir e Ana Amélia Amaral e ao meu
esposo Thiago Antônio de Sousa Figueiredo, pelo apoio incondicional.
Sem mais, vamos aos artigos...
Ellen Sílvia Amaral Figueiredo
14
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
Parte I
Bases científicas para o manejo de
pirarucu:
uma década de conhecimentos gerados
15
O QUE SABEMOS E PRECISAMOS FAZER A RESPEITO DA
CONSERVAÇÃO DO PIRARUCU (Arapaima spp.) NA AMAZÔNIA
Leandro Castello1, 2
Donald J. Stewart3
Caroline C. Arantes4, 5
INTRODUÇÃO
manejo, e conservação do pirarucu.
Algumas populações de pirarucu foram
bem estudadas e manejadas, o que nos
permite avaliar o conhecimento atual
sobre o pirarucu dentro do contexto da
Amazônia. Este capítulo faz uma síntese
do conhecimento atual sobre o pirarucu,
e tenta responder a seguinte pergunta:
O que sabemos sobre o pirarucu, e o
que precisamos fazer a respeito de sua
conservação?
Práticas insustentáveis de pesca têm
impactado as populações de pirarucu
(Arapaima spp.) na maior parte da
Amazônia (BAYLEY; PETRERE, 1989;
CASTELLO et al., 2013a). O pirarucu
passou de peixe dominante das pescarias
Amazônidas um século atrás, a ser um
peixe cada vez mais raro (VERÍSSIMO,
1895; ISAAC et al., 1993). Mas apesar
disso, o pirarucu continua sendo um
peixe símbolo da Amazônia. Embora
muitos outros peixes sejam importantes,
como o curimatá (Prochilodus nigricans),
por exemplo (CRAMPTON et al., 2004)
poucos peixes se destacam na sua
importância como o pirarucu, sendo
o peixe de maior interesse para as
populações ribeirinhas.
METODOLOGIA DE ANÁLISE
Esta revisão da literatura cobriu tópicos
relacionados à biologia, ecologia, e
manejo do pirarucu. Com relação à
biologia e ecologia, os tópicos revisados
foram a taxonomia, habitat, história de
vida, crescimento, e reprodução. Com
relação ao manejo, os tópicos revisados
foram a captura e comércio, medidas
de manejo, monitoramento, ameaças,
Vários esforços de pesquisa e manejo
têm nas últimas décadas avançado o
conhecimento da biologia, ecologia,
1
2
3
4
5
Woods Hole Research Center, Falmouth, Massachusetts, Estados Unidos
Department of Fish and Wildlife Conservation, Virginia Polytechnic Institute and State University,
Blacksburg, Virginia, Estados Unidos
Department of Environmental and Forest Biology, College of Environmental Science and Forestry, State
University of New York, Syracuse, New York, Estados Unidos
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia Santarém, PA, Brasil
Department of Wildlife and Fisheries Sciences, Texas A&M University, College Station, Texas, Estados
Unidos
17
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
tributários importantes da Amazônia
não possuem nem sequer um espécime.
A noção taxonômica de várias espécies
de pirarucu contrasta com alguns
estudos de variação genética. Hrbek .
(2005) estudaram a variação no DNA
mitocondrial do pirarucu coletado em
mercados regionais ao longo da calha
do
Solimões-Amazonas,
incluindo
um mercado na Bacia do Tocantins,
e concluíram que suas amostras
representavam uma única população de
pirarucu. Araripe et al. (2013) estudaram
variação genética de amostras de
pirarucu separadas por várias distâncias
—25, 100, e >1300 km— e concluíram
que há um alto grau de diferenciação
genética entre amostras separadas por
mais de 1300 km de distância. Araripe
. não mencionam a possibilidade de
haver mais de uma espécie. No entanto,
Watson (2011) encontraram unidades
evolutivas distintas separadas pelas
bacias dos rios Branco e Essequibo, e
concluiu que há mais de uma população
de pirarucu na Guyana.
Até hoje, o único exemplar conhecido
de A. gigas é o holótipo (i.e., espécime
usado para descrever originalmente
espécie), o qual foi coletado perto de
Santarém, Pará, Brasil, em cerca de 1787
(STEWART, 2013a). Outros exemplares
de A. gigas não foram encontrados em
habitats naturais da bacia Amazônica.
A discrepância entre os estudos atuais
e o alto nível de incerteza quanto
à taxonomia do pirarucu reforça a
necessidade de estudos adicionais. A
falta de informações mais refinadas a
cerca da taxonomia do pirarucu requer
que este estudo considere apenas o
gênero Arapaima.
e status das populações. A literatura
utilizada foi aquela publicada em meios
científicos reconhecidos. Com base na
revisão desses tópicos discutimos o
que precisamos fazer a respeito de sua
conservação.
BIOLOGIA E ECOLOGIA
Taxonomia
O pirarucu tem sido considerado como
sendo um gênero monotípico há mais
de 140 anos (e.g. FERRARIS, 2003),
incluindo apenas a espécie Arapaima
gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822). Isso
se deve a um resumo publicado em um
catálogo, onde Günther (1868) listou as
três espécies descritas por Valenciennes
(em CUVIER; VALENCIENNES, 1847:
A. agassizii, A. mapae e A. arapaima) na
sinonímia de A. gigas sem apresentar
análise ou razão. No entanto, estudos
recentes mostram evidência não só
da validade da espécie A. agassizii
(STEWART, 2013a), mas também
descrevem uma espécie nova da
Amazônia Central (STEWART, 2013b;
Figura 1). Existem, portanto, no
mínimo ,cinco espécies de pirarucu.
Se considerarmos que a taxonomia do
pirarucu quase não tem sido estudada,
é provável que exista um número ainda
maior de espécies.
Hoje em dia, é possível determinar
a distribuição geográfica apenas do
gênero Arapaima e as localidades de
coleta das espécies descritas (Figura 2).
No entanto, a distribuição geográfica
das espécies é impossível de ser
determinada devido à falta de
informações. Coleções ictiológicas
possuem apenas um espécime de
pirarucu em poucas localidades, e vários
18
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
Figura 1 – Comparação de diferenças morfológicas de três espécies de pirarucu: A) Arapaima
leptosoma, foto tomada em um aquário em Sevastopol, Ucrânia (comprimento do peixe desconhecido,
cabeça e cauda curvadas por efeito da foto; veja agradecimentos; B) Arapaima leptosoma , holotipo,
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) 16847, 77.6 cm comprimento padrão, Estado do
Amazonas, Rio Solimões, perto de Anori (STEWART, 2013b); C) juvenile Arapaima sp. incertae sedis,
INPA 26582, 61.9 cm comprimento padrão, Estado do Amazonas, Reserva Mamirauá (Jarauá); D)
Arapaima agassizii, holotipo, aproximadamente 98 cm comprimento padrão, Bacia Amazônica, Brasil
(fonte STEWART, 2013a). Setas indicam diferenças importantes na forma das cavidades sensoriais
preoperculares, orientação da base da nadadeira peitoral, e forma das nadadeiras dorsais, anais, e
caudais. Peixes B e C também diferem na sua espessura. As manchas grandes nas nadadeiras caudais
e ausência de manchas meio-laterais em A tornam esta espécie muito rara. As diferenças entre B e
C indicam a presença de, pelo menos, duas espécies na Amazônia Central (STEWART, 2013b).
19
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 2 – Resumo da informação disponível sobre a distribuição geográfica do gênero Arapaima no norte
da América do Sul. Mapa modificado de Castello e Stewart (2010). Fronteiras políticas são mostradas com
linhas pontilhadas. Estrelas indicam cidades mencionadas no texto. Áreas em azul indicam áreas alagáveis (CASTELLO, et al., 2013). Área de introdução do pirarucu na Bolívia é de Miranda-Chumacero, et al.
(2012). Localidades de coleta de espécies diferentes são indicadas por letras: G = A. gigas, M = A. mapae,
A = A. arapaima, e L = A. leptosoma; a localidade para A. agassizii é desconhecida (Stewart 2013 a, b).
Habitat
O pirarucu habita principalmente
áreas de planícies alagadas na bacia
do Amazonas e Essequibo, incluindo
florestas alagadas, rios, lagos, e
algumas drenagens costeiras do Brasil.
A distribuição geográfica do pirarucu
geralmente é determinada por barreiras
geográficas, como as quedas de água
que têm correnteza forte e impedem
sua passagem (Figura 2). O pirarucu
habita especialmente ambientes com
correnteza fraca ou nula como os lagos
(QUEIROZ; SARDINHA, 1999; CASTELLO,
2008a).
Migração, crescimento e reprodução
Nas planícies de alagação dos rios de
água branca, chamadas de várzea (SIOLI,
1984), o pirarucu faz migrações laterais
ao longo do ano seguindo a inundação
das águas (LOWE-MCCONNELL, 1964;
CASTELLO, 2008a). O pirarucu vive nos
lagos de várzea, mas também pode ser
encontrado nas praias dos rios e em
alguns canais durante a época de seca
(Figura 3). É nessa época que o pirarucu
adulto forma o casal. Quando o nível do
rio sobe um pouco, o casal constrói o
ninho na beira das florestas de restinga
20
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
descer, a prole mede cerca de 30-50 cm
de comprimento, e a prole e o pirarucu
adulto começam a migrar para os canais
de paraná e cano, e depois migrando
para dentro dos lagos.
Ao contrário do que alguns autores
sugerem (ISAAC et al., 1993), o
pirarucu cresce rápido e se reproduz
relativamente cedo.
Em condições onde não há pesca ou
nas quais os pescadores respeitam o
tamanho mínimo de abate, o pirarucu
cresce até 88 cm de comprimento no seu
primeiro ano de vida, 123 cm no segundo
ano, 154 cm no terceiro ano, 174 no
quarto ano, e 188 no seu quinto ano
de vida (ARANTES et al., 2010). Nessas
condições, a fêmea do pirarucu no Rio
Solimões atinge maturidade sexual a
partir de 157 cm de comprimento total
que circundam os ambientes de lago,
ressaca, e paraná (CASTELLO, 2008a;
CASTELLO, 2008b). O casal de pirarucu
deposita, fertiliza, e cuida dos ovos
até que os ovos eclodam. Há indícios
que o gênero possa fazer múltiplas
desovas em um mesmo ano (LÜLING,
1964; NEVES, 1995). O macho cuida da
prole, e migra para as florestas alagadas
que oferecem um ambiente rico em
comida. Muitos peixes também migram
lateralmente para as florestas alagadas
da várzea em busca das frutas e insetos
que são fáceis de serem predados neste
ambiente. Alguns desses peixes são
alimentos preferidos do pirarucu adulto,
enquanto insetos e pequenos camarões
são alimento preferido do pirarucu
jovem (SÁNCHEZ, 1969; QUEIROZ,
2000). Quando o nível da água começa a
Figura 3 – Diagrama esquemático das migrações do pirarucu no ambiente de várzea durante
o ano (baseado em CASTELLO, 2008a, CASTELLO, 2008 b).
21
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
e aos três anos de idade (ARANTES
et al., 2010). Godinho et al., 2005
determinaram que o comprimento de
primeira maturação do pirarucu no Rio
Tocantins é 145–154 cm e 115–124 cm,
de comprimento total para fêmeas e
machos, respectivamente. No entanto,
Arantes et al. (2010) mostraram que a
seletividade da pesca feita com arpão
e redes malhadeiras tende a diminuir a
velocidade de crescimento do pirarucu
através da remoção da população
daqueles indivíduos que são maiores
entre aqueles da mesma corte e que
(por isso) crescem mais rapidamente.
Portanto, o crescimento do pirarucu é
afetado pelas práticas de pesca.
Dieta e papel no ecossistema
O pirarucu tem sido considerado um
predador de topo de cadeia trófica.
Por isso, ele provavelmente regula a
estabilidade do ecossistema que habita.
O pirarucu é prioritariamente piscívoro;
suas presas são, geralmente, peixes
pequenos e abundantes, especialmente
os detritívoros e onívoros (SÁNCHEZ,
1969; QUEIROZ, 2000). No entanto, um
estudo atual encontrou evidência de
isótopos de nitrogênio que o pirarucu
é um peixe onívoro (WATSON et al.,
2013). Até o momento nenhum estudo
determinou o papel que o pirarucu
exerce para o ecossistema.
Dinâmica populacional
As populações de pirarucu podem
se recuperar rapidamente da sobreexploração em grande parte devido
ao cuidado parental, crescimento e
maturação sexual rápido. Cinco
populações de pirarucu que se
encontravam sobre-exploradas e que
passaram a ser exploradas de maneira
sustentável aumentaram em abundância
a uma taxa média de 25% ao ano
(ARANTES, 2006). Castello et al. (2011a)
desenvolveram um modelo empírico da
dinâmica de uma população de pirarucu
e estima que populações bem manejadas
de pirarucu podem render anualmente
cerca de 1.5 kg/ha de peixe inteiro. No
entanto, essa estimativa é cinco vezes
maior que a estimativa de Sánchez
(1969) de 0.3 kg/ha de várzea, a qual foi
obtida com base na observação de séries
históricas de dados de produção. Isso
indica a necessidade de entender melhor
a capacidade produtiva das populações
de pirarucu, pois ela pode variar nas
diferentes partes da bacia Amazônica.
Tamanhos populacionais
Usando uma análise genética, Hrbek
et al. (2005) estimaram que a população
de pirarucu em uma área de aproximadamente 100.000 km2 na bacia Amazônica seria de 300.000 indivíduos. No
entanto, censos populacionais feitos na
Reserva Mamirauá mostraram a existência de pelo menos 50.000 indivíduos
em uma área de cerca 1.000 km2 onde
as populações de pirarucu estão sendo
bem manejadas (ARANTES et al., 2006).
Castello et al. (2011a) propuseram uma
classificação da densidade do pirarucu
por tipo de manejo, e estimaram que,
atualmente, a população no ecossistema
de várzea é em torno de 800.000 indivíduos maiores de 1 m de comprimento.
No entanto, é difícil extrapolar dados
de censos populacionais existentes para
áreas grandes porque as densidades de
pirarucu podem variar muito, de 0 a 200
indivíduos/ha, dependendo do manejo.
22
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
Tendências populacionais
Acredita-se que as populações de
pirarucu estão seguindo uma tendência
geral de declínio na Bacia Amazônica. No
século XIX e início do XX, o pirarucu era
responsável pela pesca mais importante
da Amazônia (VERÍSSIMO,1895), mas
a partir dos anos 1950 as capturas e o
comprimento dos indivíduos capturados
começaram a reduzir (ISAAC et al., 1993).
Existem dados de captura disponíveis e
analisados para pouquíssimas regiões e
todos os dados mostram predominância
de juvenis, um sinal comum de sobreexploração pesqueira. A série de dados
mais completa e de longo prazo é para
o pirarucu seco e salgado desembarcado
em Manaus, Estado do Amazonas, Brasil
(CASTELLO; STEWART, 2010). Contudo, a
maior parte das capturas de pirarucu não
são registradas (VIANA , 2004; VIANA et
al., 2007; CASTELLO et al., 2009) devido à
ausência de esforços de monitoramento
e ao caráter descentralizado da pesca
na Amazônia. A única análise existente
de tendência populacional do pirarucu
foi feita por Queiroz e Sardinha (1999),
e os resultados sugeriram declínio
populacional.
Exceções a essa tendência de declínio
populacional existem em áreas onde
comunidades praticam esforços de
manejo e conservação. Diversas
comunidades ribeirinhas atualmente
estão desenvolvendo iniciativas de
conservação do pirarucu (MCGRATH
et al., 1993; CASTELLO et al., 2009;
CASTELLO et al., 2011b). Entretanto,
a efetividade e a extensão geográfica
dessas iniciativas são incertas. Não
existem dados consistentes disponíveis
sobre o número de comunidades
que está conservando o pirarucu
efetivamente, muito menos sobre as
tendências nas populações de pirarucu
na área dessas comunidades.
MANEJO E CONSERVAÇÃO
Medidas de manejo
As tentativas governamentais de manejar
a pesca do pirarucu na Amazônia não
foram efetivas. Na maioria dos países,
existem regras de tamanho mínimo
de captura e defeso reprodutivo que
são amplamente desrespeitadas pelos
pescadores e, portanto, ineficazes
em assegurar a sustentabilidade das
populações de pirarucu. Um exemplo
claro disso é o caso do Brasil, onde
o órgão governamental responsável
(IBAMA) implementou um tamanho
mínimo de captura (1.5 m) em 1986
(Portaria nº 14-N, de 15 de fevereiro
de 1993) e um período de defeso
reprodutivo (de dezembro a maio) em
1991 (Portaria Normativa no 489 de 05
de Março de 1991). O IBAMA também
proibiu a pesca do pirarucu no Estado do
Tocantins em 1990 (Portaria Normativa
de 23 de Março de 1990), e no Estado
do Amazonas em 1996, e finalmente no
Acre em 2008. No entanto, a pesca ilegal
é tão comum na Amazônia brasileira que
a grande maioria do pirarucu pescado
e comercializado é proveniente de
pescarias ilegais (Figura 4). A fiscalização
das medidas de manejo é praticamente
nula porque o IBAMA carece de recursos
humanos e financeiros para fazer seu
trabalho efetivamente, especialmente
em uma área enorme e complexa como
a Bacia Amazônica (CASTELLO et al.,
2009). Por exemplo, em Tefé até 1999
apenas oito fiscais do IBAMA eram
23
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
SARDINHA, 1999; MARTINELLI; PETRERE
JR., 1999; CASTELLO, 2004). Métodos
convencionais de marcação e recaptura
são praticamente impossíveis de serem
usados para fins de estimação de
abundância em áreas abertas devido ao
alto custo e demanda de trabalho, além
das enormes áreas envolvidas. Em muitos
casos, os desembarques registraram
menos de 20% das reais capturas de
pirarucu. O monitoramento efetivo da
captura pode ser feito pelos próprios
pescadores, mas requer investimento
em capacitação e continuidade.
responsáveis por fiscalizar uma área de
251.000 km2 (CRAMPTON et al., 2004).
Hoje, em 2013, o escritório do IBAMA
em Tefé foi desativado e substituído
pelo ICMbio, que dedica-se apenas a
questões pertinentes de Unidades de
Conservação e não tem responsabilidade
pela atividade pesqueira fora de áreas
dessas áreas.
Sistema de monitoramento:
A ausência de informações sobre as
populações e capturas de pirarucu tem
sido um problema impedindo o manejo
sustentável (ISAAC et al., 1998; QUEIROZ;
Figura 4 - Estrutura de tamanho típico da pesca do pirarucu na Amazônia. Dados de captura são de Viana
et al. (2004) para a reserva Mamirauá em 1998, e dado de primeira reprodução é de Arantes et al. (2010).
24
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
Captura
A maior parte da pesca pirarucu
está concentrada na época da seca.
Nesta época, os níveis baixo da água
restringem a área disponível para os
peixes que ficam mais vulneráveis a
pesca (VERÍSSIMO, 1895; WELCOMME,
1979). A pesca é feita usando arpão ou
malhadeira, ou uma combinação dos
dois, embora as malhadeiras tenham
sido cada vez mais usadas. No entanto,
a pesca com arpão é tradicional, feita
desde os anos 1800, e é preferida pelos
pescadores experientes por ser mais
seletiva. Outros métodos como anzol e
linha de mão também são usados.
A captura de juvenis de pirarucu para
suprir a aquicultura também é comum.
Ainda não existe a tecnologia necessária
para reproduzir o pirarucu em cativeiro,
então a maioria das empresas de
aquicultura dependem da coleta de
indivíduos em ambiente natural.
Contudo, não existem dados oficiais
disponíveis sobre a quantidade total
de alevinos capturados, os locais de
translocação, a sustentabilidade dessa
captura, e o impacto causado sobre
as populações naturais (CASTELLO;
STEWART, 2010). No entanto, o pirarucu
proveniente de cultivo é comercializado
muitas vezes como sendo “sustentável”
ou a solução para a sua sobre-exploração.
(CASTELLO; STEWART; ARANTES, 2013).
A sobre-pesca ocorre em toda a bacia
Amazônica, com exceções das áreas
de algumas comunidades que estão
conservando o pirarucu com diferentes
níveis de sucesso.
A degradação de habitat pode ser uma
ameaça ainda mais perigosa que a sobrepesca, mas a capacidade do pirarucu
sobreviver habitats degradados ainda
é desconhecida. Por exemplo, mesmo
nas regiões do Baixo Amazonas perto
da cidade de Santarém onde as florestas
da várzea tem sido amplamente
desmatadas , existem populações bem
manejadas de pirarucu (MCGRATH et al.,
2008; CASTELLO, 2013b), o que sugere
certa resiliência por parte do gênero.
Outra ameaça é a translocação de
indivíduos. A noção equivocada de
que só existe uma espécie de pirarucu
e a ausência de regulamentação e
de fiscalização têm levado a uma
translocação
descontrolada
de
indivíduos jovens entre diversas partes
da bacia, quase sempre para abastecer
iniciativas de aquicultura. Um exemplo
claro de alterações ambientais e sociais
causados por essa translocação é a
invasão do pirarucu na Bolívia. MirandaChumacero et al. (2012) mostraram que
iniciativas de aquicultura introduziram
o pirarucu no Rio Madre de Dios, na
Amazônia Peruana onde o pirarucu não
existia (Figura 2). Em cerca de 20 anos, o
pirarucu então colonizou o Rio Madre de
Dios, e sua presença tem provavelmente
causado vários impactos. A introdução
de espécies novas de pirarucu que é
causada pela translocação descontrolada
pode reduzir a variabilidade genética
e até mesmo levar espécies locais à
extinção.
Principais ameaças
A principal ameaça ao pirarucu é a sobrepesca, ainda que haja outros fatores
preocupantes, como a degradação dos
habitats e a translocação de indivíduos
para aquicultura. No Baixo Amazonas,
em uma área de mais de 2.400 km2 de
várzea, por exemplo, as populações
estão criticamente sobre-exploradas
25
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Estado de conservação:
pirarucu em toda a área de manejo.
Depois, em colaboração com Instituto
Mamirauá e o IBAMA, os pescadores
usam os dados para determinar cotas
de pesca para o próximo ano (VIANA et
al., 2004). O Instituto Mamirauá provê
apoio institucional e assistência técnica
aos pescadores, o IBAMA supervisiona
as ações de manejo e pode autorizar
ou não autorizar as cotas de pesca, e
os pescadores são responsáveis por
cumprir e fiscalizar as regras de manejo.
Uma análise recente com base em
dados de algumas comunidades bem
estudadas concluiu que esse modelo
de manejo parece ser efetivo para
conservação do pirarucu (CASTELLO et
al., 2011b). Em muitas comunidades,
a renda dos pescadores mais do que
dobrou, os pescadores engajaram no
processo, e as populações de pirarucu
se recuperaram rapidamente (VIANA et
al., 2004; ARANTES et al., 2006; VIANA
et al., 2007; CASTELLO et al., 2009;
CASTELLO et al., 2011b). Esse modelo
de manejo foi incorporado na legislação
Estado do Amazonas 2004, criando uma
exceção `a proibição local. Através dessa
legislação e dos trabalhos de várias
instituições, o modelo de manejo tem
se disseminado rapidamente. Enquanto
em 1999 apenas quatro comunidades
manejavam o pirarucu, atualmente mais
de 100 comunidades e três municípios
estão manejando somente no Estado do
Amazonas. No entanto, Castello et al.
(2011b) mostraram que não há evidência
de sustentabilidade da pesca em várias
dessas áreas de manejo. Legislações
semelhantes foram implementadas no
Acre em 2008 e na Guyana em 2006.
O pirarucu foi listado como em estado
“vulnerável” na lista vermelha de
espécies ameaças de extinção da União
Internacional para conservação da
natureza (IUCN) em 1986 e 1988. No
Brasil, a espécie A. gigas está incluída
como “Espécie Sobreexplotada ou
Ameaçada de Sobreexplotação” no
anexo 2 do Instrução Normativa número
5 do IBAMA de 21 de maio de 2004. Nos
termos deste regulamento, colheitas
de pirarucu são permitidas. Depois,
passou a ser listado na categoria “dados
insuficientes”. Isso significa que não é
possível fazer uma avaliação criteriosa
a respeito dos riscos de extinção com
base na pouca informação existente.
Arapaima gigas é a única espécie de
peixe de água doce listada no Anexo II,
anexo este proposto pela Convenção
Internacional de Comércio de Espécies
Ameaçadas (CITES). O estado de
conservação do pirarucu no Brasil não
foi avaliado rigorosamente e ele consta
na lista Brasileira de espécies ameaçadas
de extinção proposta pelo Ministério o
Meio Ambiente do Brasil.
Avanços no manejo sustentável
Um modelo novo de manejo do pirarucu
foi desenvolvido na Reserva Mamirauá.
O modelo se embasa na capacidade
que alguns pescadores experientes
possuem de utilizar uma metodologia
para contar o número de pirarucus
no momento que os indivíduos vêm
à superfície para respirar (CASTELLO,
2004). No modelo de manejo, todos
os anos os pescadores realizam censos
populacionais, ou sejam contam
26
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
O QUÊ SABEMOS?
Foi mostrado que o cuidado parental e
rápido crescimento e maturação sexual
do pirarucu permitem crescimento
populacional acelerado e capturas
significantes. O hábito de respiração
aérea permite censos populacionais
acurados
feitos
pelos
próprios
pescadores.
O
comportamento
migratório lateral feito em escala
geográfica pequena, permite o manejo
na escala das comunidades ribeirinhas.
Por fim, o seu alto valor de mercado
permite retorno econômico significante.
Em suma, a informação disponível indica
que o pirarucu possui características
biológicas e ecológicas que permitem a
sua exploração sustentada.
No entanto, o conhecimento atual
sobre o pirarucu ainda é deficiente.
Como foi mostrado, há lacunas grandes
com relação a quase todos os aspectos
relacionados a este gênero. A maioria
dos estudos existentes provém da
Amazônia Central e há uma carência de
estudos em outras regiões. É, portanto,
provável que estudos futuros mostrarão
um alto grau de variação com relação a
parâmetros populacionais, devido a uma
combinação de fatores de diversidade
específica, populacional, ambiente
ecológico e influências ambientais e
antrópicas.
Também foi mostrado que as medidas
de manejo de tamanho mínimo de 1.5
m de comprimento total e de defeso
durante os meses de enchente e
cheia são relativamente adequadas. É
possível que apenas estas duas medidas
sejam capazes de assegurar o manejo
sustentado do pirarucu. No entanto,
essas duas medidas de manejo raramente
têm sido realmente cumpridas na
prática devido a falta de fiscalização e
a pesca ilegal e descontrolada. A falta
de monitoramento deixa os órgãos do
governo e os pescadores desprovidos de
informação necessária para tomar ações
de prevenção e remediação. Em suma,
a informação disponível indica que a
falta de manejo é a principal causa da
insustentabilidade da pesca do pirarucu.
O desenvolvimento do novo modelo de
manejo de pirarucu na Reserva Mamirauá
com base nas contagens de pirarucu
feitas pelos próprios pescadores
representa um avanço importante em
direção a conservação do pirarucu.
Mas esse modelo de manejo sozinho
não é suficiente. Castello et al. (2011b)
mostrou que a maioria dos problemas
afetando o manejo de pirarucu feito por
comunidades deve-se à falta de apoio
institucional e técnico. Embora o modelo
de manejo desenvolvido seja efetivo,
ele requer ações de monitoramento,
fiscalização, resolução de conflito,
entre outras. A participação ativa dos
governos, além do estabelecimento
efetivo de estruturas de colaboração
entre instituições, são fundamentais
para a conservação do pirarucu na PanAmazônia e precisam ser fortalecidos.
O QUÊ PRECISAMOS FAZER?
Os maiores avanços no manejo
sustentado do pirarucu provêm da
integração de ações de pesquisa e
manejo. Pesquisa sobre a habilidade
de pescadores de contar pirarucu,
junto com pesquisas sobre a biologia e
ecologia do pirarucu, proporcionaram
os elementos básicos para que ações de
27
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
o primeiro foco de atenção de qualquer
iniciativa de manejo e conservação.
manejo pudessem desenvolver um novo
modelo de manejo junto a comunidades
ribeirinhas. Portanto, sugere-se que
ambos, pesquisa e manejo devem ser
prioridades para garantir a conservação
do pirarucu.
Iniciativas de manejo sustentável
e conservação de pirarucu devem
prestar atenção à ampla diversidade
de aspectos biológicos, ecológicos, e
humanos relacionados ao pirarucu e
sua pesca na Amazônia. Embora ainda
existam poucos estudos, é de se esperar
que a diversidade de espécies de
pirarucu seja acompanhada de variações
de aspectos-chave da história de vida,
tais como crescimento e reprodução.
Também é de se esperar que aspectoschave da história de vida do pirarucu
também variam mesmo quando se trata
da mesma espécie, não só em função de
fatores ambientais incluindo estrutura
de habitat e ciclos hidrológicos mas
também em função das práticas de
pesca. Portanto, não se pode assumir
que características de vida do pirarucu
seja igual ao longo da bacia Amazônica,
como por exemplo em regiões do
Tocantins ou na Amazônia Central
onde sabe-se que há duas espécies.
Essa diversidade de histórias de vida
implica a importância da necessidade
de expandir significativamente o estudo
da biologia e ecologia do pirarucu assim
das práticas de pesca.
Um aumento no número de pesquisas
sobre a biologia e ecologia do pirarucu
é essencial para promover o seu manejo
sustentado e conservação. No entanto,
regras de manejo simples como o
tamanho mínimo e defeso reprodutivo
têm se mostrado efetivas, devendo ser
AGRADECIMENTOS
Nossas pesquisas foram financiadas
pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Conselho
Nacional de Desenvolvimento Tecnológico e Pesquisa, Ministério da Ciência e Tecnologia, National Geographic
Society,
Overbrook
Foundation,
Wildlife Conservation Society, e Applied
Biodiversity Science - NSF-IGERT
program. A imagem na Figura 1A foi
adaptado de G. Chernilevsky (Wikimedia
Commons, Arapaima gigas 2009 G2.jpg).
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30
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
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31
IMPLICAÇÕES DA BIOLOGIA, ECOLOGIA E CONTAGENS
PARA O MANEJO DO PIRARUCU
Caroline Arantes1,2
Leandro Castello3,4
APRESENTAÇÃO
sido que muitos aspectos importantes
da biologia, ecologia, e contagens do
pirarucu não são considerados, ou
até mesmo desconhecidos. Embora
as informações relevantes estejam
disponíveis na literatura, muitas
vezes elas se encontram dispersas
em diferentes documentos e artigos
científicos dificultando sua aplicação
na prática. Este capítulo visa sintetizar
vários estudos sobre a biologia, ecologia
e a avaliação dos estoques do pirarucu
e analisar as implicações desses estudos
para o manejo. Primeiro, descrevemos
os resultados de pesquisas sobre cinco
aspectos-chave da ecologia e biologia
e avaliação dos estoques do pirarucu,
sendo esses: migração, reprodução e
crescimento, contagens e distribuição.
Em seguida, discutimos como esses
aspectos afetam manejo do pirarucu.
Acredita-se que esta análise pode
melhorar a qualidade do manejo do
pirarucu.
As populações do pirarucu (Arapaima
spp.) estão em declínio na maior parte da
Amazônia. As exceções estão em algumas
áreas que vem utilizando o modelo
de manejo de pirarucu originalmente
desenvolvido na Reserva Mamirauá
(Figura 1, CASTELLO; STEWART;
ARANTES, 2013; CASTELLO; STEWART
2010). Esse modelo Mamirauá de manejo
tem sido efetivo na conservação do
pirarucu em comunidades das Reserva
Mamirauá e Amanã, onde a abundância
das populações de pirarucu aumentou,
em média, em 25% a cada ano (ARANTES
et al., 2006). Entretanto, esse modelo de
manejo tem sido amplamente difundido
na Amazônia e há dúvidas bem
justificadas quanto a qualidade de sua
implementação (CASTELLO; STEWART;
ARANTES, 2013; ANDRADE et al., 2011,
ARANTES et al.,2007). Razão disso tem
1
2
3
4
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia Santarém, PA, Brasil
Texas A&M University, College Station, TX, Estados Unidos
Department of Fish and Wildlife Conservation, Virginia Polytechnic Institute and State University,
Blacksburg, Virginia, Estados Unidos
Woods Hole Research Center, Falmouth, MA, Estados Unidos
33
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Modelo de Manejo de Pirarucu
Contagem
Cota de pesca
Defeso
Tamanho mínimo
Figura 1 – Modelo Mamirauá de manejo do pirarucu. As principais fases do manejo são: i) levantamento
de estoques através das contagens, ii) estabelecimento de cotas de pesca, e iii) cumprimento das regras
de tamanho mínimo e defeso reprodutivo.
seca, o pirarucu habita principalmente
os lagos, mas também os ambientes
de paraná e canais do rio (CASTELLO,
2008b). Mesmo durante a seca, o nível da
água segue variando e o pirarucu pode
seguir migrando entre os ambientes,
incluindo diferentes lagos dependendo
da altura que a água alcançar. No início
da enchente, os ambientes aquáticos
começam a se conectar e o pirarucu
continua a habitar os lagos e paranás,
mas já pode migrar para os ambientes
de canais dos lagos e ressacas. O nível
da água continua subindo e o pirarucu
migra para as florestas alagadas
durante a cheia, onde se alimenta
nesses ambientes ricos em alimentos.
Na vazante, o pirarucu é obrigado a
migrar para fora das florestas alagadas
que se tornam secas. O pirarucu migra
primeiro para os ambientes de canais
dos paranás e canais dos lagos e
ressacas e depois para os lagos. Muitos
indivíduos podem migrar para os lagos,
mas outros podem também permanecer
nos paranás, ressacas e canos dos lagos.
O nível da água começa a subir e o ciclo
recomeça.
O pirarucu habita as planícies de
alagação do Rio Amazonas, ecossistema
conhecido como várzea. Seu ciclo de
vida é regido pelas variações do nível
da água e pela diversidade de ambientes
que compõe a várzea. Sua reprodução
nesse
ecossistema
é
complexa,
envolvendo desde a formação de casais
até ao cuidado com a prole. Na várzea,
abundante em alimento, o pirarucu
cresce rapidamente, especialmente
no primeiro ano de vida. O pirarucu
possui preferência marcada por habitats
específicos, sendo a importância desses
habitats para seu ciclo de vida destacada.
Todos esses aspectos serão descritos
com mais detalhes a seguir.
ASPECTOS DA ECOLOGIA E BIOLOGIA
DO PIRARUCU
Migração
O pirarucu migra entre os ambientes da
várzea seguindo as flutuações do nível
da água ao longo do ano, deslocamento
conhecido como migração lateral
(Tabela 1, FERNANDEZ, 1997, JUNK et
al., 1989, CASTELLO, 2008a, CASTELLO;
STEWART; ARANTES, 2013). Durante a
34
Implicações da biologia, ecologia e contagens para o manejo do pirarucu
• Caroline Arantes • Leandro Castello
Crescimento e Reprodução
Os pirarucus formam casais durante
a seca nos lagos (FONTANELE 1948,
QUEIROZ; SARDINHA 1999, QUEIROZ,
2000; CASTELLO, 2008b). No início
da enchente, quando a água está
com aproximadamente 1 metro de
profundidade, os casais de pirarucus
constroem ninhos nas margens dos
lagos, paranás e ressacas. Esses ninhos
são buracos escavados no solo com
diâmetro médio de 57 cm e 16 cm de
profundidade (CASTELLO, 2008b). A
fêmea deposita os ovos no ninho e o
macho os fecunda (QUEIROZ, 2000).
Geralmente, o macho cuida da prole por
cerca três meses nas florestas alagadas.
Se o casal de pirarucus for morto pela
pesca, há grande chance de que toda
sua prole também não sobreviva.
Isso faz com que as populações sejam
vulneráveis a pesca predatória.
O pirarucu cresce rápido. Ao final do
primeiro ano de vida, ele atinge mais de
80 cm de comprimento e, ao quinto ano
de vida, mede mais de 188 cm (ARANTES
et al., 2010) (Tabela 2). O pirarucu
na Reserva Mamirauá se reproduz a
partir de 157 cm de comprimento,
alcançado aos três anos de idade
quando o tamanho mínimo de captura
é respeitado (Figura 2). Entretanto,
quando o tamanho mínimo de captura
não é respeitado e os pirarucus pescados
são predominantemente juvenis, o
pirarucu se reproduz mais tarde, aos
cinco anos de idade. Isso acontece
Tabela 1 – Principais tipos de ambientes aquáticos e terrestres da várzea.
AMBIENTE
DESCRIÇÃO
Rio
Canal principal com largura maior que 3 km, profundidade maior que 50m e com alto
fluxo de água (SIOLI, 1984).
Paraná
Canal que transporta água do rio ao longo do sistema de várzea e as suas extremidades
são conectadas ao rio (SIOLI, 1984).
Lagos
Os lagos da várzea possuem diversas formas e tamanhos (SIOLI, 1984) e não secam
durante o ciclo da água.
Cano
Canais que conectam os lagos a qualquer outro corpo hídrico. Os canos podem secar
durante a seca, tornando os lagos completamente isolados (CRAMPTON, 1999).
Ressaca
Um tipo de lago raso com saída larga e constantemente aberta. A maioria seca
durante a época da seca (classificação local)
Chavascal
Áreas mais baixas da várzea. São compostas por extensas áreas de vegetação baixa,
arbustiva e pantanosa. Os solos ficam inundados por 6 a 8 meses, e o nível da água
pode atingir 7 metros durante a cheia (AYRES, 1995)
Restinga Baixa
Terrenos mais altos compostas por florestas altas. As restingas baixas apresentam
sub-bosque relativamente abertos, os solos ficam inundados por 4 a 6 meses, e o
nível da água pode atingir 5 metros durante a cheia (AYRES, 1995).
Restinga Alta
São como as restingas baixas, entretanto localizadas em terrenos ainda mais altos,
as florestas são mais antigas, e tem maior diversidade de espécies e áreas basais das
árvores (AYRES, 1995). Os solos ficam inundados por 2 a 4 meses, e o nível da água
pode atingir 1 a 2,5 metros durante a cheia.
35
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
apenas 10% em torno do valor real. As
contagens dos pescadores foram quase
idênticas (altamente correlacionadas, r
= 0.98) às estimativas de abundância.
Por exemplo, em um primeiro lago, os
pescadores contaram 9 indivíduos onde
havia 7 pirarucus, em um segundo lago,
os pescadores contaram 59 pirarucus,
onde havia 63 e assim por diante.
Entretanto, quando as contagens dos
pescadores são feitas individualmente,
as diferenças entre contagens e valor
real de abundância são maiores, em
média 30% (ARANTES et al., 2007). A
acurácia das contagens de pirarucu
feitas pelos pescadores individualmente
foi avaliada através da comparação das
contagens de 34 pescadores feitas em
lagos pequenos e fechados da Reserva
Mamirauá com as capturas de todos os
pirarucus usando redes de arrasto nos
mesmos lagos contados (ARANTES et
al., 2007; metodologia conhecida por
certificação de contadores). As contagens
feitas pelo pescador individualmente
porque a pesca ilegal de juvenis retira
da população natural indivíduos que
crescem mais rápido, deixando na
população indivíduos com crescimento
lento e reprodução tardia. Assim implica
que onde há pesca ilegal de juvenis
sexualmente imaturos, ocorre um
atraso na maturação sexual que tende
a diminuir as taxas de crescimento da
população (CASTELLO et al., 2011). Isso
prejudica ainda mais a recuperação de
populações sobre-exploradas (ARANTES
et al., 2010).
Contagens e distribuição
O pirarucu é um peixe especial porque
os pescadores podem contá-lo no
momento em que ele vem à superfície
para respirar. Comparações de contagens
de pirarucu feitas por pescadores com
estimativas de abundância obtidas
através da marcação e recaptura
(CASTELLO, 2004) mostraram que os
pescadores em grupos podem contar
o pirarucu com erros que variam em
Tabela 2 – Chave de idades por comprimento do pirarucu na Reserva Mamirauá para situações com e
sem respeito ao tamanho mínimo de captura. Medianas dos comprimentos retrocalculados [Ln (cm)];
amplitudes interquartis [(Aiq (cm)]; tamanho da amostra (n). Tabela modificada de ARANTES et al., 2010.
Idade (Ano)
Sem respeito ao tamanho mínimo
Com respeito ao tamanho mínimo
Ln (cm)
Aiq
n
Ln (cm)
Aiq
n
1
67,3
18,6
269
88,3
24,6
269
2
96,9
22,4
247
123,6
26,0
238
3
119,6
27,5
172
154,4
24,0
227
4
144,4
31,4
61
174,9
19,1
113
5
166,3
29,9
16
188,9
13,5
15
6
172,7
1
36
Implicações da biologia, ecologia e contagens para o manejo do pirarucu
• Caroline Arantes • Leandro Castello
(conectividade) (ARANTES et al., 2011).
A abundância do pirarucu é maior em
lagos com maior volume de água e com
maior conectividade com outros corpos
d’água. A conectividade é importante
porque facilita o movimento dos peixes
entre ambientes. Canos compridos e
rasos secam rápido durante a vazante
e demoram mais tempo para receber
água durante a enchente, assim os lagos
ficam isolados por mais tempo. Canos
curtos e profundos mantêm a água por
mais tempo durante o ciclo da água.
A abundância de pirarucu nos paranás
também é influenciada pela profundidade
destes. Quanto maior a profundidade,
maior a abundância (ARANTES et al.,
2011). A disponibilidade de vegetação
são menos acuradas do que quando
feitas em grupos, porque em grupos as
tendências individuais dos pescadores
de sub ou sobre-estimar tendem a
se anular. Por exemplo, quando um
pescador conta indivíduos de pirarucu
a mais, outro conta indivíduos a menos.
As contagens são feitas todos os anos
pelos pescadores durante o período
da seca quando os lagos e outros
ambientes aquáticos estão isolados.
Atenção especial é dada a lagos ou locais
dos paranás onde são encontradas as
maiores abundâncias de pirarucu. A
abundância de pirarucu nos lagos está
relacionada à profundidade da coluna
da água e área do lago (volume de
água disponível), e ao comprimento
e profundidade dos canos dos lagos
Figura 2 – Medianas dos comprimentos totais por classe de idade do pirarucu e L50 que representa o
comprimento no qual 50% da população está sexualmente madura. As curvas representam situações com
(círculos fechados) e sem (círculos abertos) respeito ao tamanho mínimo de captura. Figura modificada
de ARANTES et al., 2010.
37
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
pescadores tenham experiência na pesca
do pirarucu feita com arpão, porque
pescadores inexperientes podem fazer
contagens com erros bastantes altos,
embora, na média, esses erros sejam
minimizados (ARANTES et al., 2007).
Atualmente, o único método de
contagem validado é o de Castello
(2004). Alterações do método sem
validação não asseguram contagens
acuradas, portanto, representam um
risco a sustentabilidade do manejo. Isso
não significa que não possam existir
outros métodos igualmente eficientes
para contar pirarucu. Alguns grupos
de manejadores identificam limitações
no uso das contagens causadas,
principalmente, pelas variações nas
características físicas do ambiente que
podem alterar o comportamento do
pirarucu (por exemplo, características
físico-químicas da água, cobertura por
diferentes tipos de capim, como aningais,
etc.). Seria interessante conhecer a
validade de outros métodos que podem
ser desenvolvidos e validados usando
os mesmos experimentos descritos em
Castello (2004) e Arantes et al., (2007).
Contudo, até que esses métodos
sejam validados, aconselhamos o uso
do método desenvolvido por Castello
(2004).
É importante conhecer e considerar
as tendências nas contagens dos
pescadores e dos grupos de pescadores
de sub ou sobre-estimar as contagens.
Para isso, a certificação de contadores
(validação das contagens) é uma
importante ferramenta (ARANTES et
al., 2007). As contagens devem ser
feitas preferencialmente em grupos,
e não individualmente, porque, como
mencionado, quando as contagens
são feitas em grupo as tendências dos
flutuante (ou macrófitas) durante o
período da cheia também influencia a
abundância do pirarucu na seca do ano
seguinte (AFFONSO; QUEIROZ; NOVO,
2013). A preferência do pirarucu por
habitats amplos, profundos e com alta
conectividade determina que 75% de
todo os pirarucus do sistema de 80
lagos da Reserva Mamirauá concentrese em apenas 15% dos lagos (ARANTES
et al., 2011).
No modelo de manejo de Mamirauá,
todos os anos, os pescadores contam
o número de pirarucus na sua área
de manejo, e usam as contagens para
determinar cotas de pesca (Figura
1). A determinação das cotas é feita
em colaboração entre os pescadores,
técnicos e o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA). Os pescadores
recebem autorizações para a pesca do
pirarucu sob a condição de cumprir as
regras de limite de cota de pirarucu,
de tamanho mínimo de captura, e
do período de “defeso” reprodutivo
do recurso (Figura 1). Assim, o que
apresentamos sobre a bioecologia
e contagens de pirarucu devem ser
incorporados nas quatro medidas
principais do modelo de seu manejo
(Figura 1): contagens, cotas de pesca,
tamanho mínimo de captura e período
de reprodução (Figura 1).
COMO
A
BIOLOGIA,
ECOLOGIA
CONTAGEM DEVEM SER INCORPORADAS AO MANEJO DAS POPULAÇÕES DO
PIRARUCU?
Contagem
As contagens devem ser feitas por
pescadores de pirarucu experientes e
capacitados na metodologia validada
por Castello (2004). É necessário que os
38
Implicações da biologia, ecologia e contagens para o manejo do pirarucu
• Caroline Arantes • Leandro Castello
taxas de captura de 25% do número
de adultos contados no ano anterior
aparentam ser sustentáveis (CASTELLO
et al., 2011). Cotas de pesca maiores do
que 25%, até 40% também aparentam
ser sustentáveis, mas por serem altas
requerem cautela, monitoramento e
avaliação de acordo com o descrito
mais abaixo. Além disso, é provável
que outras populações de pirarucu de
outras regiões possuam parâmetros
populacionais diferentes das do pirarucu
da região da Reserva Mamirauá, onde a
simulação das principais fases do ciclo
de vida do pirarucu foi desenvolvida.
Por isso, em geral deve haver precaução
e considerar os seguintes fatores:
1) é importante assegurar a qualidade
e a veracidade das contagens, já que
elas são a base para as cotas de pesca.
Metodologias como as apresentadas
em Arantes et al., (2007) e Andrade
et al., (2011) podem ajudar a garantir
contagens mais acuradas.
2) a pesca ilegal influencia negativamente
a abundância de pirarucu. Pesca de
juvenis, ou durante o período do defeso,
ou pesca em quantidades maiores do
que aquela cota autorizada devem ser
registradas e consideradas quando no
momento de avaliar as cotas de pesca.
3) as decisões sobre sua área de
manejo devem ser tomadas não
somente com base nas contagens
feitas em um determinado ano, mas
também com base na avaliação das
tendências populacionais (Figura 3),
além dos outros fatores já citados. As
tendências populacionais podem ser
avaliadas observando-se os padrões nas
densidades populacionais ao longo dos
anos de contagens. O modelo de manejo
é adaptativo, isso implica que ele está
em constante avaliação: ou seja, todos
os anos o grupo interessado avalia todo
pescadores de sub ou sobre-estimar
tendem a se anular.
Também é importante considerar a
migração do pirarucu. Por mais precisas
que as contagens sejam, elas sempre
têm um erro associado. Esse erro é
intrínseco da própria contagem feita
pelo grupo de pescadores que, em
situações ideais varia em torno de
10% do valor real da abundância. Mas
ocorre também porque durante a seca
o pirarucu continua migrando entre
os habitats da várzea. Para minimizar
os erros provenientes da migração, as
contagens precisam ser feitas durante
a seca quando os ambientes estão
isolados. Assim, assegura-se que um
indivíduo de pirarucu contado em um
ambiente, não é o mesmo indivíduo
contado em outro ambiente.
Além disso, é importante considerar se
houve expansão ou redução no tamanho
da área contada. A expansão da área
contada (e.g. aumentar o número de
lagos ou corpos hídricos contados de
um ano para o outro) geralmente é
acompanhada por aumento no número
de indivíduos contados. Parece bastante
lógico que a quantidade de pirarucus
aumenta quando a área contada também
aumenta. Uma maneira de corrigir esse
problema é avaliando as tendências
populacionais usando as densidades
populacionais e não o número de
indivíduos contatos. A densidade
populacional pode ser facilmente obtida
dividindo-se o número de indivíduos
contados pela área total do ecossistema
(em km2 ou ha) contado.
Cotas
Uma simulação das principais fases do
ciclo de vida do pirarucu (processos de
crescimento, reprodução, mortalidades
natural e por pesca) mostrou que as
39
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
velmente a medida mais importante
para assegurar a sustentabilidade do
pirarucu. São essas medidas que garantirão a reprodução. Quando bem manejadas, as populações de pirarucu podem
aumentar em 25% ao ano (ARANTES et
al., 2006). Assim, as regras de tamanho
mínimo e defeso reprodutivo possibilitam que haja aumentos nas abundâncias
e nas cotas de pesca.
A unidade de manejo do pirarucu deve
ser todo o sistema hídrico, ou sistemas
de lagos, e não somente os lagos (CASTELLO et al., 2008 a b, ARANTES et al.,
2011, ARARIPE et al., 2103). Geralmente, manejadores falam em manejo de
lagos, mas como demonstrado, o pirarucu habita a várzea e não somente os
lagos (CASTELLO 2008a; ARANTES et al.,
2011). Entretanto, porque a determina-
o conjunto de informações disponíveis,
e com base nessa avaliação, o grupo
toma decisões sobre o manejo. O grupo
interessado deve avaliar, por exemplo,
as tendências populacionais, se houve
pesca ilegal, se houve possíveis erros
nas contagens, expansão ou redução nas
áreas contadas, além dos aspectos da
organização coletiva detalhado em outro
capítulo (AMARAL; TORRES; PERALTA et
al., 2013). Essa avaliação fornece a base
para a adaptação das cotas de pesca e
para a melhoria do manejo (Figura 1).
OUTRAS
IMPLICAÇÕES
PARA
O
MANEJO E CONSIDERAÇÕES GERAIS
Tamanho mínimo e defeso reprodutivo
O cumprimento das regras de tamanho
mínimo e defeso reprodutivo é prova-
Densidade de pirarucus (Ind/ha)
500
400
Aumentando
300
Estável
200
100
Diminuindo
0
1
2
3
4
5
6
Ano
Figura 3 – Situação hipotética mostrando relações entre as densidades de pirarucu e três
diferentes tendências populacionais ao longo dos anos (aumentando, estável e diminuindo).
Populações diminuindo merecem cotas de captura reduzidas ou nula. Populações crescendo
merecem cotas de captura maiores que aquelas de anos passados, e populações estáveis
merecem cotas iguais aquelas de anos passados.
40
Implicações da biologia, ecologia e contagens para o manejo do pirarucu
• Caroline Arantes • Leandro Castello
ção de lagos de preservação é uma das
estratégias de conservação mais usadas
da Amazônia, é interessante que esses
sejam os lagos mais amplos profundos
e com alta conectividade com os canais
principais.
Duas questões são relevantes a esse
capítulo. A primeira é que a maior parte
das pesquisas gerando informações
para serem aplicadas ao manejo são
provenientes de uma área que representa
menos de 1% da área de distribuição
do pirarucu, a Reserva Mamirauá. Por
isso, alguns aspectos descritos, como o
tamanho de maturação sexual, podem
ser diferentes para outras regiões. A
segunda é que a taxonomia de Arapaima
está em fase de revisão. As considerações
sobre a biologia e ecologia do pirarucu
apresentadas neste capítulo foram feitas
ao nível do gênero Arapaima porque há
pouco conhecimento para as diversas
espécies de Arapaima (CASTELLO;
STEWART; ARANTES, 2013), e assim,
as informações apresentadas não são
referentes a nenhuma espécie em
particular.
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42
NOTAS SOBRE A BIOLOGIA REPRODUTIVA DO
PIRARUCU Arapaima gigas Schinz 1822
Kelven Lopes
Rossineide Rocha
Maria Auxiliadora P. Ferreira
Helder L. Queiroz
RESUMO
Neste trabalho, apresentamos a escala
de desenvolvimento das gônadas de
pirarucus construída por meio da sua
análise morfológica e histológica. Na
análise macroscópica das gônadas
das fêmeas, usamos os critérios
discriminatórios como coloração, grau de
turgidez, irrigação sanguínea periférica
e diâmetro de ovócitos visíveis. No
caso dos machos, os mesmos critérios
discriminatórios foram adotados, com
exceção do último, substituído pela
presença de sêmen. Foram utilizados
para a análise, ovários e testículos
de pirarucus pescados na Reserva
de Mamirauá, na Amazônia Central
Brasileira, onde a pesca sustentável
desta espécie é realizada desde 1998.
Fragmentos de gônadas foram removidas,
fixadas e submetidas à técnica de rotina
histológica. Fatias de tecido foram
analisadas utilizando um microscópio de
luz. Ambos os sexos apresentaram uma
única gônada, localizada no lado lateroesquerdo da cavidade celomática. Para a
escala macroscópica de desenvolvimento
gonadal de fêmeas, seis estádios
gonadais foram descritos, I imaturo,
II maturação inicial, III maturação
avançada, IV maduro, V desovado e VII em
repouso. Histologicamente, os ovários
são cobertos pela túnica do ovário,
composta de tecido conjuntivo, fibras
musculares lisas e os vasos sanguíneos.
Os ovócitos foram classificados em seis
diferentes fases de desenvolvimento,
Cromatina-nucléolo,
Perinucleolado,
Alvéolos corticais, Vitelogênicos, Pósvitelogênicos e Atrésicos. A escala de
desenvolvimento gonadal macroscópica
para o sexo masculino é composto de
quatro fases diferentes, I imaturo, II em
maturação, III maduro e V espermiado.
A análise histológica das gônadas
masculinas demonstrou a presença
de uma túnica albuginean, células do
músculo liso, vasos sanguíneos, túbulos
seminíferos que apresentam variações de
acordo com o grau de desenvolvimento,
falta a análise histológica. Finalmente,
foram apontados algumas sugestões para
a pesca manejada da espécie por meio
do uso da escala de maturação sexual
proposta neste estudo, como ferramenta
auxiliar no monitoramento reprodutivo
dos animais abatidos.
43
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
ABSTRACT
We present the scale of development
of the gonads pirarucus Arapaima gigas
built through its morphological and
histological analysis. In the macroscopic
analysis of the gonads of females
use discriminatory criteria such as
color, degree of turgidity, peripheral
blood flow, and diameter of oocytes
visible. In the case of males, the same
discriminatory criteria were adopted,
except for the last, replaced by the
presence of semen. Were used for
the analysis of ovaries and testicles
caught in pirarucus Mamirauá Reserve,
the central Brazilian Amazonia where
sustainable fishing of this species is
held since 1998. Fragments of gonads
were removed, fixed and subjected
to routine histological technique.
Tissue slices were analyzed using a
light microscope. Both sexes showed a
single gonad, located on the lateral-left
coelomic cavity. For the macroscopic
scale of gonadal development of
females, six gonadal stages were
described, I immature, II early maturing,
III advanced maturation, IV mature, V
spawned and VII at rest. Histologically,
the ovaries are covered by the tunica
ovarian, composed of connective
tissue, smooth muscle cells and blood
vessels. The oocytes were classified into
six different stages of development,
Chromatin-nucleolus,
Perinucleolus,
Cortical alveoli, Vitellogenic, Postvitellogenic and Atretic. The scale of
macroscopic gonadal development in
males consists of four different phases,
I immature, II maturing, III mature and
V At rest. Histological analysis male
gonads showed the presence of a tunic
albuginean, smooth muscle cells, blood
vessel tubules vary according to the
development degree, lack histological
analysis. Finally, some suggestions were
pointed out to fish species managed by
through the use of sexual maturity scale
proposed in this study, as an auxiliary
tool in the monitoring of reproductive
aminals slaughtered.
INTRODUÇÃO
Pertencente à família Arapaimatidae o
pirarucu, Arapaima gigas (SCHINZ,1822),
é um teleósteo de grande porte que
pode alcançar em torno de 3m de
comprimento e pesar até 200-250 kg
(SOUZA; VAL, 1990; WOTTON, 1990;
QUEIROZ, 2000), com endemismo
em grande parte da bacia Amazônica,
ocorrendo no Brasil, nas Guianas,
Venezuela, Peru, Colômbia e Equador.
Entretanto, a espécie também tem
ocorrência moderna na Bolívia, onde
foi introduzido em meados dos anos
oitenta, através do Rio Madre de Dios,
por meio da fuga acidental de animais
numa estação de piscicultura da região
da cidade de Puerto Maldonado, no Peru
(FARREL; AZURDUY, 2006).
Este fisóstomo
apresenta ciclo
reprodutivo
longo,
atingindo
a
maturidade sexual com 4 a 5 anos,
com peso em torno de 40 a 45 kg com
aproximadamente 1,65 m (PONTES,
1977; QUEIROZ, 2000; LOPES, 2000).
Outra característica marcante da espécie
é que ambos os sexos apresentam
somente uma gônada localizada no
lado esquerdo da cavidade abdominal
(LOPES, 2005; LOPES; QUEIROZ, 2009).
A época de desova está relacionada com
o início do período chuvoso, variando
44
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
• Kelven Lopes • Rossineide Rocha • Maria Auxiliadora P. Ferreira • Helder L. Queiroz
sexual (L50) até estudos da história natural
da espécie, foram realizadas na Reserva
Mamirauá (QUEIROZ; SARDINHA, 1999;
QUEIROZ, 2000).
Desde então, ensaios sobre a biologia
reprodutiva vêm sendo desenvolvidos.
Lopes & Queiroz (2009 a) descreveram
a escala de desenvolvimento gonadal
para machos em três estádios, e, para
fêmeas, em cinco estádios por meio
de atributos macroscópicos. Mais
recentemente, e também de maneira
macroscópica, Arantes e colaboradores
(2011) analisaram a maturação sexual e
uma nova avaliação do tamanho médio
à primeira maturação sexual da espécie.
Contudo, dúvidas e lacunas a respeito
da biologia reprodutiva permanecem
sem resposta e demandam por serem
preenchidas. Nesta forma, o presente
trabalho traz à tona uma contribuição
para o maior conhecimento da biologia
reprodutiva do pirarucu, por meio
de estudos histológicos das gônadas
de machos e fêmeas da espécie.
Cabe ressaltar que estes estudos
subsidiaram a confecção de uma escala
macroscópica de maturação gonadal
de fácil visualização, que por meio de
critérios claros e visuais caracterizam
os diferentes estádios gonadais. Esta
caracterização tem por finalidade
auxiliar manejadores em programas
de pesca manejada de pirarucus na
Amazônia, bem como padronizar os
estádios gonadais.
conforme acontecem as chuvas na
Amazônia (QUEIROZ; SARDINHA, 1999).
O pirarucu não apresenta caracteres
sexuais secundários que permitam a
correta diferenciação entre os sexos
por um observador, o que representa
a primeira grande dificuldade para
o
desenvolvimento
do
manejo
reprodutivo da espécie em cativeiro. A
discriminação entre os sexos por meio
de critérios visuais só é possível de
maneira eficiente nos dias antecedentes
à desova, quando a coloração vermelha
do macho torna-se mais intensa,
contrastando com o restante do corpo
escuro e deixando-o aparentemente
mais colorido em relação às fêmeas. Já
a coloração das fêmeas nesta mesma
época torna-se mais pálida em relação
ao macho (FONTENELE, 1948; LOPES,
2005).
As primeiras investigações tangentes
à reprodução se deram há pouco mais
de 60 anos, e os primeiros relatos da
biologia reprodutiva do pirarucu foram
reportados por Osmar Fontenele, analisando o comportamento reprodutivo de
pirarucus em açudes na região nordeste
do Brasil (FONTENELE, 1948).
Após este período, outros estudos envolvendo aspectos da biologia reprodutiva vieram à tona, principalmente
a partir da observação de animais em
vida livre, oriundos de áreas de reserva
do Rio Pacaya no Peru (CEBRELLI, 1972;
FLORES, 1980).
Na década seguinte, outras investigações
mais aprofundadas envolvendo a
biologia reprodutiva de fêmeas, desde
os voltados ao estabelecimento de um
tamanho médio à primeira maturação
MATERIAIS E MÉTODOS
Foram coletados 287 exemplares de
Arapaima gigas, no período de outubro
a dezembro de 2003 a 2005. Os peixes
45
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
foram provenientes da pesca manejada
de pirarucus do Setor Jarauá, da Reserva
Mamirauá (Figura 1).
Os peixes que serviram de base para
estes estudos foram capturados
pelos pescadores tradicionais, com o
auxílio de arpões e malhadeiras com
espaçamento entre nós de 30 cm. Foram
obtidos os seguintes dados biométricos,
comprimento total em centímetros,
peso total em quilogramas e peso das
gônadas em gramas. Realizou-se uma
incisão longitudinal no abdome de cada
animal, para identificação do sexo e
observação dos aspectos macroscópicos
das gônadas como cor, grau de
turgidez, irrigação sanguínea periférica,
e presença ou ausência de sêmen e/ou
ovócitos visíveis a olho desarmado.
Para o estudo histológico, foram
utilizados 43 espécimes de A. gigas, dos
quais 24 fêmeas e 19 machos. As gônadas
foram coletadas e seções destas foram
retiradas e fixadas em ALFAC e mantidas
em álcool 70% até serem processadas,
posteriormente foram submetidas às
técnicas histológicas de rotina.
Figura 1 - Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá localizada na confluência dos rios Solimões
e Japurá, no Estado do Amazonas, destacando o setor Jarauá.
46
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
• Kelven Lopes • Rossineide Rocha • Maria Auxiliadora P. Ferreira • Helder L. Queiroz
RESULTADOS
caracterizados, Estes ovócitos foram
encontrados em todas as fases de
desenvolvimento das gônadas.
Histologia do Ovário
Histologia avalia os tecidos do ponto
de vista de sua formação fisiológica,
bem como a descrição de suas
estruturas microscopicamente, através
da visualização através do microscópio
eletrônico.
Microscopicamente, o ovário do A.
gigas está envolto por uma cápsula de
tecido conjuntivo denso, denominada
túnica ovariana ou albugínea. Também
ocorrem fibras musculares lisas e vasos
sanguíneos.
Este
tecido
conjuntivo
emite
ramificações, formando lamelas que
sustentam as células germinativas em
diferentes fases do desenvolvimento. As
lamelas apresentaram grandes variações
de tamanho, dependendo da fase do ciclo
reprodutivo. Observaram-se ovócitos
em diferentes fases de desenvolvimento,
circundados por envoltórios de folículos,
conforme as descrições abaixo.
Os ovócitos foram classificados
histologicamente em seis fases:
Cromatina-nucléolo
(fase
I),
Perinucleolares (fase II), Alvéolos
corticais (fase III), Vitelogênica (fase
IV), Pós-vitelogênica (fase V) e Atrésicos
(fase VI), de acordo com a (Figura 2) e
seguindo a descrição abaixo.
Ovócitos Pós-vitelogênicos (fase V) –
Citoplasma completamente ocupado
pela presença de grânulos de vitelo, com
alvéolos na parte cortical, quase sempre
em uma forma esférica e de tamanhos
variados, com um núcleo centralizado.
Ovócitos Cromatina-nucléolo (fase I)
- Dispostos em ninhos, inseridos nas
lamelas ovígeras, e são as menores
células encontradas. Eles apresentam
um núcleo central, com nucléolo
individual.
Morfologia é o estudo que descreve
com detalhamento a forma geométrica,
a localização, a posição, bem como, a
coloração de um determinado órgão por
meio da observação.
Ovócitos Alvéolo-corticais (fase III) núcleo central aparente, e vacúolos
localizados na periferia do citoplasma.
Alvéolos
corticais
evidentes
no
citoplasma.
Ovócitos Vitelogênicos (fase IV) apresentam
citoplasma
presente
preenchido com grânulos de vitelo.
A membrana vitelina tornou-se mais
espessa.
Ovócitos Atrésicos (fase VI) caracterizados pela fragmentação ou
ruptura da zona pelúcida. Reabsorção
dos
conteúdos
ovulares
pelas
células foliculares, e estes se tornam
hipotrofiados.
Em relação à morfometria celular
a Figura (3.) traz a evolução celular
mensurada de acordo com o diâmetro
de cada célula individualmente.
MORFOLOGIA
Ovócitos Perinucleolares (fase II) estabelecidos nas lamelas ovígeras,
com núcleos evidentes e esféricos, bem
47
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 2 - Fotomicrografia de ovários de Arapaima gigas (escala 500µm): A- Estádio I: Lamelas
ovígeras (•) contendo ovogônias (*) e ovócitos na fase II ou perinucleolar (II). B- Estádio II:
Lamelas ovígeras constituídas de ovogônias (*), ovócitos na fase II (II) e ovócitos na fase III
ou vitelogênese lipídica (III) caracterizadas pelo núcleo volumoso e vacúolos na periferia do
citoplasma. C- Estádio III: Presença de ovócitos na fase IV ou em vitelogênese lipídica protéica
(IV) – em destaque aumento de vacúolos (v) no citoplasma e presença de material acidófilo na
periferia da célula (seta grossa). D- Estádio IV: Predomínio de ovócitos na fase V ou vitelogênese
completa (V) apresentando envoltório por células foliculares (cabeça de seta). Presença de
ovócitos nas fases II, III e IV.
A reprodução nos peixes é um
fenômeno cíclico e dinâmico. O
desenvolvimento gonadal também
passa por transformações anatômicas
e fisiológicas, sendo assim, possível de
ser mensurado. Desta forma e, como
demonstração do desenvolvimento,
seguem as características morfométricas
de peso nos ovários nos estádios
I Imaturo, II Maturação inicial, III
Maturação avançada, IV Maduro pode
ser vistas na (Tabela 1).
Morfologia do Ovário
O ovário de A. gigas foi identificado
como um órgão singular, de forma
laminada, localizado na parte posterior
esquerda do abdômen. Apresenta
fendas transversais em sua extensão
caracterizando sua forma foliácea
laminada. A forma, o volume, a coloração
e a irrigação sanguínea variaram nos
diferentes estágios de maturidade
observados.
48
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
• Kelven Lopes • Rossineide Rocha • Maria Auxiliadora P. Ferreira • Helder L. Queiroz
Figura 3 – Valores médios do diâmetro dos ovócitos nos diferentes estádios gonadais de Arapaima gigas.
Tabela 1 – Distribuição dos parâmetros morfométricos da escala de desenvolvimento gonadal de A. gigas
na RDSM.
Estádio gonadal
Média comprimento total (cm)
Desvio padrão
Média peso total (k)
Desvio padrão
Média peso gonadal (g)
Desvio padrão
Porcentagem da amostra (%)
Indivíduos avaliados (N)
I Imaturo
II Maturação
inicial
III Maturação
Avançada
IV Maduro
139,6
166,54
177,73
187,14
±19,26
±10,39
±15,32
±16,85
26,5
43,31
52,21
62,08
±7,03
±11,56
±15,61
±18,09
18
37
225,5
474
±9,04
±28,5
±174,8
±275,2
14,6
32,8
27,7
24,8
20
45
38
34
49
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Estádio IV (Maduro) - Nessa fase,
também conhecida como Grávida, a
maior parte dos ovócitos maduros têm
coloração verde-escura, influenciando
a coloração gonadal inteira. A gônada
apresenta também outros ovócitos, de
coloração rosa-amarelada, contudo, em
menor quantidade. Ovário com intensa
vascularização periférica. Nesse estádio,
o órgão apresenta a forma foliácea mais
pronunciada que nos demais. (Figura 7).
Estádios de maturação das fêmeas
são descrito por meio dos aspectos
macroscópicos
Estádio I (Imaturo) – Ovário pequeno,
também denominado de Virgem,
com coloração rosa, forma laminar,
com estruturas folheais transversais
pequenas, sem ovócitos visíveis a olho
nu, pouco irrigado e de consistência
túrgida. A parte final da gônada fundese ao oviduto, e por sua vez ao poro
urogenital (Figura 4.).
Estádio V (Desovado) - Ovário flácido,
de coloração rosa-pálido, com aspecto
hemorrágico na matriz ovariana, que
compõe marcas de desova, com trechos
das membranas distendidas e esvaziadas.
Estes trechos possuem apenas alguns
centímetros de comprimento e largura.
Nesta fase, os ovócitos de coloração
rosa-amarelada estão em maior número,
mas apresenta também ovócitos
de diversos tamanhos e estados de
maturidade, inclusive observam-se ainda
alguns grumos esbranquiçados.
Estádio II (Maturação Inicial) - Ovário
de coloração rosa, de formato laminar,
com estruturas lamelares transversais
evidentes, com poucos ovócitos visíveis
de coloração opaca. Apresenta volume
maior que o de ovários do Estádio I. A
vascularização é mais evidenciada, e o
oviduto pequeno está ligado ao poro
urogenital (Figura 5.)
Estádio III (Maturação Avançada) Ovário de coloração matricial rosa,
com espessura maior que a dos
estádios anteriores, com vascularização
aumentada e presença de vasos
sanguíneos periféricos de maior calibre.
Neste estádio, ocorrem ovócitos
heterogêneos, entretanto, os ovócitos
de coloração verde-escuro predominam
na parte final da gônada. Nesta fase, é
nítida a forma folhosa que distingue o
órgão. (Figura 6.)
Estádio VI (Em repouso) - Ovário de
coloração rosa-claro, translúcido, apresentando consistência mais rígida que
na fase anterior, vascularização pouco
evidente e corpos residuais não identificados.
Os estádios V e VI foram observados e
evidencias em campo, entretanto, não
foi possível obter registros fotográficos
que ilustrem estes estádios de
desenvolvimento gonadal.
50
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
• Kelven Lopes • Rossineide Rocha • Maria Auxiliadora P. Ferreira • Helder L. Queiroz
Figura 4 - Ovário em estádio I, Imaturo.
Figura 5 - Ovário em estádio II, Maturação inicial.
Figura 6 - Ovário em estádio III, Maturação avançada.
Figura 7 - Ovário em estádio IV, Maduro.
51
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
HISTOLOGIA DO TESTÍCULO
A análise histológica do testículo em
A. gigas demonstrou que, ao longo do
desenvolvimento destas gônadas, elas
sempre são cobertas por uma túnica
albugínea. Esta é composta de tecido
conjuntivo, com a presença de fibras
musculares lisas e os vasos sanguíneos.
Internamente, o órgão apresenta túbu-
los seminíferos lobulados, dispostos
longitudinalmente em relação ao testículo. O epitélio germinativo que cobre a
parede interior dos túbulos seminíferos
é organizado em cistos Os túbulos seminíferos apresentam grande variação no
seu diâmetro, dependendo da fase do
ciclo reprodutivo (Figura 8.). Os testículos foram classificados histologicamente
em quatro fases.
Figura 8 - Fotomicrografia de testículos de Arapaima gigas (escala 50µm): A- Estádio 1: Túbulos
seminíferos de parede espessa com presença de espermatogônias (e). Observe a organização de células
indiferenciadas (*) próximas ao tubo. B- Estádio 2: Túbulos seminíferos com epitélio germinativo espesso
apresentando células espermatogênicas (ep) e células espermiogênicas (g) na luz. C- Estádio 3: Túbulos
seminíferos bem desenvolvidos com epitélio delgado apresentando células espermatogênicas (ep) e
acentuada presença de células espermiogênicas (g) na luz.
52
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
• Kelven Lopes • Rossineide Rocha • Maria Auxiliadora P. Ferreira • Helder L. Queiroz
Fase I (Imaturo) - Apresenta túbulos
seminíferos,
alguns
com
um
pequeno diâmetro, com ausência de
células em função dos túbulos. Eles
apresentam bordas grossas, feitas
por epitélio germinativo, contendo
as
espermatogônias
e
células
indiferenciadas dispostas em camadas.
Fase II (em desenvolvimento) Apresenta maior quantidade de túbulos
seminíferos, e estes maiores quando
comparado com a fase anterior. Em
alguns túbulos, há a presença de células
de espermatogênese no interior do
espesso epitélio germinativo.
Fase III (Maduro) - Caracterizado
por apresentar grande diâmetro e
desenvolvidos túbulos seminíferos,
com epitélio germinativo fino. À luz
dos túbulos pode-se observar uma
grande quantidade de células de
espermatogénese.
Fase IV (Em repouso) - Caracterizado por
uma acentuada redução do diâmetro
dos túbulos seminíferos. Alguns
destes apresentam algumas células
espermatogênicas e indiferenciado em
sua luz.
Descrição Macroscópica do Testículo
O testículo de A. gigas, tal como o
ovário, um órgão singular, longilíneo,
semicilíndrico, apresenta bordas lisas,
e está localizado na porção esquerda
da cavidade abdominal. Sustentado
pelo peritônio, prolongando-se até o
poro urogenital através de um ducto
espermático.
A escala de maturidade macroscópica
aqui apresentada para os machos de A.
gigas é composta por quatro estádios
de
desenvolvimento
identificados
nos exemplares avaliados: Estádio I
(Imaturo), Estádio II (Em maturação)
e Estádio III (Maduro) e Estádio V
(Espermiado).
Conforme apresentado na (Tabela 2.)
observa-se o desenvolvimento em peso
das gônadas masculinas de pirarucu
por meio da mensuração dos primeiros
estádios como forma de descrição da
escala de desenvolvimento gonadal.
Tabela 2 - Pesos e comprimentos médios e desvio padrão dos testículos nos diferentes estádios gonadais
de A. gigas.
Estádio gonadal
I Imaturo
II Em maturação
III Maduro
26,5
43,31
52,21
±7,03
±11,56
±15,61
5
8
13
Desvio padrão
±1,57
±2,03
±4,67
Porcentagem da amostra (%)
26,17
36,24
37,58
39
54
56
Média peso total (k)
Desvio padrão
Média peso gonadal (g)
Indivíduos avaliados (N)
53
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Os estádios de maturação dos machos
são descritos a seguir:
Estádio I (Imaturo) - Testículo de
coloração rosa, quase translúcido, de
forma fitácea, espessura fina, com pouca
irrigação sanguínea, com aspecto flácido
e friável (Figura 9.)
Estádio III (Maduro) - Testículo de
coloração rosa, formato elíptico,
apresentando intensa vascularização,
com estrutura geral firme e consistente
(Figura 11)
Estádio V Em repouso - Órgão de
coloração rosa pálido, formato elíptico,
pouco irrigado, consistência flácida.
O estádio V foi observado e evidenciado
em campo, entretanto, não foi possível
obter registros fotográficos que ilustrem
este estádio de desenvolvimento
gonadal.
Estádio II (Em maturação) - Testículo
opaco de coloração rosa, formato
elíptico mais evidente, espessura
proeminente, com irrigação sanguínea
evidente, de aspecto consistente e
estrutura lisa (Figura 10)
Figura 9 - Testículo em estádio I, Imaturo.
Figura 10 - Testículo em estádio II, Em maturação.
Figura 11 - Testículo em estádio III, Maduro.
54
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
• Kelven Lopes • Rossineide Rocha • Maria Auxiliadora P. Ferreira • Helder L. Queiroz
CONCLUSÃO E DISCUSSÃO
intimamente relacionada com o tamanho
de maturidade sexual, uma vez que
reflete o tamanho mínimo de captura
para a espécie (Castello, 2004). Na pesca
de sistemas como este, de pirarucus
na Amazônia brasileira, onde há uma
maior necessidade de envolvimento e
participação dos pescadores em todas
as fases de gestão (VIANA et al., 2007;
ARANTES et al., 2007; CASTELLO et al.,
2009), compartilhar com os pescadores
a informação sobre o tamanho
mínimo de captura é fundamental.
A má aplicação desta ferramenta,
influenciando artificialmente o tamanho
da primeira maturação sexual, pode
facilmente causar sérios problemas para
a gestão das atividades de pesca. Isto é
especialmente relevante em um sistema
de pesca baseado em princípios de
conservação e sustentabilidade, como é
o caso da espécie de estudo.
A determinação dos estágios de desenvolvimento gonadal permitiu uma
melhor compreensão do processo reprodutivo e reduziu o número de erros
contidos nessas avaliações com base
apenas na observação macroscópica
(DIAS et al., 1998). Proporcionando assim, uma ferramenta relevante ao processo de perpetuação sustentável da
pesca manejada por meio de avaliações
reprodutivas dos animais abatidos. Por
meio da discriminação simples dos estádios de desenvolvimento gonadal,
através de uma escala padronizada. A
padronização das escalas de desenvolvimento gonadal subsidia a revisão dos
tamanhos mínimos para a captura de pirarucus, não só para as análises de pesca
no local de estudo, mas também para
aquelas que se desenvolvem em vários
Características reprodutivas do pirarucu
As observações visuais da morfologia
externa dos pirarucus não mostram
um dimorfismo sexual evidente que
permitiria uma distinção entre machos
e fêmeas de A. gigas (FONTENELE,
1948; QUEIROZ, 2000; LOPES, 2005). Só
depois de expor as gônadas, foi possível
determinar o sexo de cada indivíduo.
Outra característica marcante da espécie
é a ausência da gônada direita. Nenhum
vestígio de pareamento gonadal, ou
mesmo de uma gônada direita atrofiada
foram observados (CEBRELLI, 1972;
FLORES, 1980; QUEIROZ, 2000; LOPES,
2005; LOPES; QUEIROZ, 2009 a, b). As
gônadas, em ambos os sexos, foram
sempre encontradas na parte esquerda
da cavidade abdominal.
As Escalas macroscópicas das gônadas e
sua importância para a pesca manejada
É amplamente conhecido pela ciência
pesqueira que não existe um tamanho
fixo em que os peixes começam
a se reproduzir. Mas a frequência
de indivíduos maduros aumenta
gradualmente com o aumento do
tamanho dos animais. O início da
maturidade sexual varia muito entre as
espécies, entre populações da mesma
espécie e mesmo entre indivíduos da
mesma população (VAZZOLER, 1996;
FONTELES FILHO, 1989). Nesta ótica,
outra grande ferramenta que a descrição
facilitada dos estádios gonadais das
fêmeas favorece é a determinação do
tamanho mínimo de captura.
Uma das bases para o sucesso da gestão
das pescas manejadas de A. gigas está
55
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
outros locais onde esta atividade vem
sendo realizada recentemente na Amazônia Central Brasileira (VIANA et al.,
2007; CASTELLO, et al., 2009).
Como o desenvolvimento gonadal e
ovocitáro descritos neste estudo, sugerese que estas descrições sejam utilizadas
como ferramentas de fácil utilização
e que possam subsidiar propostas de
análise dos animais abatidos na pesca
manejada como um indicativo de qual
porcentagem dos animais estão sendo
capturados ainda imaturos. Bem como
o estabelecimento de medidas de
tamanhos mínimos e máximos de abate.
A pesca orientada para retirada
apenas de indivíduos muito grandes
poderia retirar das populações genes
importantes que ocorrem naturalmente
nos indivíduos mais bem adaptados.
Bem como reprodutores grandes
aumentam a resiliência da população
frente a dificuldades naturais e pressões
antrópicas enfrentadas pelas populações
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56
Notas sobre a biologia reprodutiva do pirarucu Arapaima gigas Schinz 1822
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57
INFLUÊNCIA DA COBERTURA DE MACRÓFITAS SOBRE
A ABUNDÂNCIADE PIRARUCUS EM LAGOS DA
RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL MAMIRAUÁ
Adriana Gomes Affonso¹
Helder L. Queiroz²
Evlyn Márcia Leão de Moraes Novo¹
RESUMO
durante a FC em um determinado ano,
maior a abundância de pirarucu 1,5 anos
mais tarde. A reprodução inicia-se com o
aumento do nível da água, com cuidado
parental masculino durante a fase de
cheia, quando os indivíduos jovens se
alimentam exclusivamente de insetos,
moluscos e crustáceos encontrados
nas raízes das macrófitas. O pirarucu
jovem, 1,5 anos depois, atinge o
tamanho de 100 a 120 cm e é incluído
na estimativa da população. A cobertura
de macrófitas aumenta a probabilidade
de sobrevivência das coortes mais
jovens, proporcionando um excelente
ambiente para os primeiros meses
do pirarucu. Este estudo sugere que
mudanças climáticas e pesca em larga
escala podem afetar a extensão de
macrófitas podendo representar uma
ameaça para conservação do pirarucu
e, consequentemente, para uma das
principais fontes de proteína e renda das
populações ribeirinhas. O mapeamento
de cobertura de macrófitas através de
Este artigo investiga a relação entre a
abundância do pirarucu e cobertura de
macrófitas em lagos durante as fases
de cheia (FC) e seca (FS) no período
compreendido entre 1999 e 2009.
Para isso, foram utilizadas imagens TM
Landsat representativas da FC e da FS
para calcular a cobertura de macrófitas
(MCt) em 87 lagos a cada ano. A
abundância total de pirarucus jovens
(pjA) (1,5-2 anos) e adultos (paA) (acima
de 3 anos) foi estimada pelo método de
contagem durante o período de seca
de cada ano. Utilizou-se o método de
regressão linear para modelar a relação
entre o MCt e ambas abundâncias (pjA
e paA). Os resultados indicaram uma
relação linear entre MCt e pjA (r2 =
0,88, confiança de 95%) e MCt e paA
(r2 = 0,81, a 95%) durante FC com uma
defasagem (“time lag”) de 1,5 anos. Não
foi encontrada relação entre ambos
os tipos de abundância e MCt na FS.
Quanto maior a cobertura de macrófitas
¹ Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Divisão de Sensoriamento Remoto, Avenida dos Astronautas,
2
1758, 12227-010, Jardim da Granja, São José dos Campos, SP, Brasil
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Estrada do Bexiga, 2584, 69470-000, Fonte
Boa,Tefé, AM, Brasil
59
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
might affect macrophyte extension and
pose a threat to pirarucu conservation
and fishery. Macrophyte coverage
mapping through remote sensing
images is a key component to identify
priority regions for pirarucu sustainable
management and monitoring.
imagens de sensoriamento remoto é
um componente-chave para identificar
regiões prioritárias para a gestão
sustentável do pirarucu.
ABSTRACT
This paper investigates the relationship
between pirarucu abundance and
macrophyte cover in lakes during high
(HW) and low water (LW) phases from
1999 to 2009. TM Landsat images
acquired during HW and LW were used
to compute macrophyte cover (MCt) at
87 lakes each year. Total young pirarucu
abundance (pyA) (1.5-2 years) and total
adult pirarucu abundance (paA) (above 3
years) were estimated using a counting
method during LW of each year. The MCt
was regressed against pyA and paA. The
results indicated a linear relationship
between both pyA (r2 =0,88, at 95%
confidence) and paA (r2 =0,81, at 95%)
with MCt during HW with 1.5 year lag.
No relationship was observed between
MCt and both types of abundance in LW.
The highest the macrophyte coverage
during HW in a given year the highest
is the pirarucu abundance 1.5 year later.
Reproduction begins at the rising water
level and proceeds with male parental
care during the high water phase,
when young feed exclusively of insects,
molluscs and crustaceans found into
macrophytes root zone. Around 1.5 year
latter this young pirarucu reaches the
size of 100 to 120 cm and is included in
the population estimates. Macrophyte
cover increases the survivor probability
of younger cohorts, providing an
excellent environment during the first
months. This study suggests that climate
changes and also large scale fishery
INTRODUÇÃO
O pirarucu (Arapaima gigas) é o maior
peixe de escamas vivendo em água
doce de todo o mundo (WOOTTON,
1990), atingindo mais de 3 m de
comprimento total, e mais de 200 kg
de peso vivo. Apesar de ser considerada
como uma espécie essencialmente
piscívora (LOWEL-MCCONNEL, 1987), o
pirarucu consome também outros itens
alimentares, como insetos, gastrópodes,
micro e macro-crustáceos, durante as
diferentes fases da vida e ao longo das
fases da hidrógrafa (QUEIROZ, 2000;
IMBIRIBA, 2001).
Estudos mostram que quase todas as
espécies de peixes e invertebrados
consumidos pelos pirarucus são
encontradas na zona das raízes de
macrófitas aquáticas, galhos e outros
substratos inundados (JUNK, 1984;
CRAMPTON, 1999, PETRY et al., 2003;
VILLABONA-GONZÁLEZ et al., 2011).
As macrófitas aquáticas são ambienteschave para a proteção e conservação de
diversas espécies de peixes da várzea
amazônica (SANCHEZ-BOTERO; ARAÚJOLIMA, 2001), atuando ainda como abrigo
e local de forrageamento para diversos
organismos (JUNK, 1984) e com alta
riqueza de espécies de peixes (PETRY
et al., 2003; HERCOS et al., 2012). A
determinação da dinâmica da cobertura
de macrófitas possibilita a estimativa de
60
Influência da cobertura de macrófitas sobre a abundância de pirarucus em lagos da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
• Adriana Gomes Affonso •Helder L. Queiroz • Evlyn Márcia Leão de Moraes Novo
utilizados dados referentes a 87 lagos
do Setor Jarauá inclusos no manejo de
pirarucu no período compreendido
entre 1999 e 2009 (Figura 1).
um dos recursos mais importantes para
o recrutamento de diversas espécies
de peixe e é responsável por grande
parte da biomassa da fauna aquática
Amazônica.
No entanto, a natureza dinâmica e
complexa do ecossistema aquático
amazônico torna adverso o seu estudo.
Deste modo, o sensoriamento remoto
torna possível a análise espaçotemporal desse ecossistema complexo
e fragmentado, por permitir a visão
sinóptica de grandes áreas em várias
escalas. Diversos estudos demonstraram
a aplicabilidade dos sensores remotos
no mapeamento na distribuição espacial
de macrófitas em diferentes fases
do pulso de inundação (HESS et al.,
1995; COSTA, 2005; COSTA; TELMER,
2006; SILVA et al., 2010; LIIRA et al.,
2010). ARRAUT (2010) demonstrou
ainda a forte associação entre o peixeboi amazônico (Trichechus inunguis)
e os bancos de macrófitas aquáticas
flutuantes determinados através de
dados de imagens de satélite.
O objetivo desse trabalho foi analisar a
relação entre a cobertura de macrófitas
nas fases de seca e de cheia em lagos da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá e a abundância de pirarucus
no período de 1999 a 2009, a partir de
imagens de satélite e dados de campo.
DADOS DE CONTAGEM DO PIRARUCU
Foram utilizados os dados de estoque
anual de pirarucu (indivíduos jovens e
adultos), estimados a partir da contagem
do pirarucu (realizada somente no
período de seca), método baseado na
capacidade que os pescadores artesanais
experientes possuem de contar os
indivíduos quando estes emergem para
respirar (CASTELLO, 2004; ARANTES et
al., 2006). A contagem foi realizada no
período de seca em 87 lagos no período
compreendido entre 1999 e 2009.
DETERMINAÇÃO DA COBERTURA DE
MACRÓFITAS
Foram selecionadas 20 imagens do
satélite Landsat/TM (órbita 001/ponto
62), com a menor cobertura de nuvens,
correspondentes às fases de cheia
e seca da hidrógrafa para cada ano
referente ao período compreendido
entre 1999 e 2009, com exceção do
ano de 2003, porque as imagens
disponíveis sem cobertura de nuvens
apresentaram ruídos. De modo a
facilitar o mapeamento de lagos com
dimensões próximas ao limite de
resolução espacial do sensor, aplicou-se
aos dados o método de restauração que
permitiu trazendo a resolução espacial
das imagens TM de 30 metros para 15
metros (BOGGIONE, 2003). Com isso,
tornou-se mais precisa a definição e
mapeamento dos limites dos bancos
de macrófitas em torno dos lagos.
MATERIAL E MÉTODOS
A área de estudo está localizada na
Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá, no Estado do Amazonas, na
planície de inundação dos Rios Solimões
e Japurá, próximo à cidade de Tefé, e a
cerca de 600 km de Manaus (02° 49’S;
65° 00’W). Para esse estudo, foram
61
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Legenda
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
Setor Jarauá
Figura 1 - Imagem Landsat 10/9/2007 com a delimitação da área de estudo
62
Influência da cobertura de macrófitas sobre a abundância de pirarucus em lagos da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
• Adriana Gomes Affonso •Helder L. Queiroz • Evlyn Márcia Leão de Moraes Novo
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para o mapeamento, foi realizada uma
classificação supervisionada com base no
algoritmo de Máxima Verossimilhança,
utilizando as bandas 3, 4 e 5 (BAYLEY;
MOREIRA, 1978; LIIRA et al., 2010;
ARRAUT et al., 2010). As amostras
utilizadas para treinar o classificador
foram selecionadas a partir da análise de
fotografias georreferenciadas obtidas
durante as missões de campo e a partir
da análise do comportamento espectral
de alvos semelhantes bem como
informações adicionais referentes à
forma e localização (SILVA et al., 2009).
As seguintes classes foram mapeadas:
1) Espelho d’água; 2) Mácrofitas; 3)
Nuvens; e 4) Solo exposto (áreas sem
água ou vegetação, ocorrendo somente
na seca). Para cada lago, foi calculada a
área de cada classe (espelho d’água, solo
exposto, macrófitas e nuvem).
Os dados referentes à área de cobertura
por macrófitas na seca e na cheia para
cada um dos lagos foi então somada
para se obter o total de cobertura por
macrófitas na área focal em cada ano
para o qual se dispunha de informações
sobre a contagem. Esses dados
foram então submetidos à análise de
regressão linear simples, tendo como
variável dependente a abundância
anual de pirarucu (soma do número de
indivíduos em todos os lagos para cada
ano) e independente, a área ocupada por
bancos de macrófitas em toda a várzea
(soma da área de macrófitas de todos
os lagos para cada ano) nos períodos de
cheia e seca.
Os resultados mostraram uma alta
correlação entre a área de macrófita
no período de cheia e a abundância
de pirarucu no ano posterior, tanto
para indivíduos jovens como para
adultos. No entanto, não foi observada
nenhuma correlação significativa entre
a abundância de pirarucu e a área de
macrófita do período de seca, fato
também observado por Arantes et al.,
(2011). No presente trabalho, a baixa
correlação pode ser explicada pelo fato
de que a área de macrófitas mapeada
no período de seca incluir aquelas nas
margens dos lagos, não sendo possível
separar, através das imagens de satélite,
as macrófitas sob a água. Dessa forma,
a área total das macrófitas no período
de seca tende a ser superestimada
quando se usam dados de sensores
ópticos como é o caso do sensor TM/
Landat, incluindo as macrófitas que
se desenvolvem sobre a superfície
da água (independentemente de sua
profundidade) e as macrófitas que se
desenvolvem sobre o solo saturado de
água; nesse caso, sem condições de
abrigar populações viáveis de pirarucu
e sem influência direta sobre sua
sobrevivência.
A análise de regressão entre a área
de macrófita na cheia e o número de
indivíduos no ano posterior sugere
que a área de macrófita no período de
cheia em um determinado ano explica
a abundância de pirarucus (jovens e
adultos) no ano subsequente (r²=0,88
para os jovens, e r²=0,80 para adultos).
A figura 2 apresenta o modelo de
regressão linear para os jovens e a figura
3 para os adultos.
63
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
9000
8000
7000
Bodego
6000
5000
4000
3000
2000
0
2
4
6
8
10
12
14
Área de macrófita na cheia (hectare)
Figura 2 – Gráfico de regressão entre a área de macrófita na cheia do ano anterior e a
abundância de jovens (número de indivíduos) no ano posterior.
8000
7000
6000
Pirarucu
5000
4000
3000
2000
1000
0
0
2
4
6
8
10
12
Área de macrófitas na cheia (hectare)
Figura 3 – Gráfico de regressão entre a área de macrófita na cheia do ano anterior e a
abundância de pirarucu (número de indivíduos) no ano posterior.
64
14
Influência da cobertura de macrófitas sobre a abundância de pirarucus em lagos da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
• Adriana Gomes Affonso •Helder L. Queiroz • Evlyn Márcia Leão de Moraes Novo
Esses resultados sugerem que a área de
cobertura de macrófitas no período da
cheia influencia o número de indivíduos
no ano posterior, o que está relacionado
à ecologia reprodutiva da espécie.
Durante o período de seca, os pirarucus
adultos formam seus pares (casais
monogâmicos) nos lagos e canais. Com
o início da enchente (entre novembro
de dezembro) e o aumento do nível
da água, eles constroem os ninhos no
fundo das partes mais rasas encontradas
próximas às margens dos lagos.
Imediatamente após o término da
construção dos ninhos, eles desovam.
Após a eclosão das larvas, as fêmeas
deixam seus ninhos, e os machos cuidam
da prole por pelo menos três meses,
ao longo da enchente. Nesse período,
o macho guia os jovens pela floresta
alagada onde sua alimentação se baseia
exclusivamente de insetos, moluscos e
microcrustáceos na zona de raízes das
macrófitas aquáticas.
Com a descida das águas, o macho
adulto se separa dos jovens, mas ele e
todos os demais pirarucus vivendo no
interior da floresta dirigem-se de volta
aos lagos, canais e rios. Nos lagos, eles
permanecem durante todo o período de
seca, iniciando um novo ciclo (QUEIROZ,
2000; CASTELLO, 2008, 2008a).
Após 1,5, anos o pirarucu jovem
atinge aproximadamente de 100 a cm
de comprimento e é detectado pelos
contadores, sendo então incluído
na estimativa anual da população. A
cobertura de macrófitas aumenta a
probabilidade de sobrevivência dos
recém-eclodidos (“yoy”, ou “youngof-the-year”), fornecendo proteção
e uma excelente fonte de alimento
durante os primeiros meses de vida.
Essas plantas atuam como berçário de
diversas espécies de peixes, sendo que
durante o período da cheia, a maior
parte de sua fauna é composta por
indivíduos jovens (SANCHEZ-BOTERO;
ARAÚJO-LIMA, 2001), atuando ainda
como abrigo e local de forragem para
diversos organismos (JUNK, 1984) e
apresentando ainda uma alta riqueza de
espécies de peixes (PETRY et al., 2003;
HERCOS et al., 2012).
Dessa forma, 1,5 anos depois, esses
indivíduos jovens que se beneficiaram
destes ambientes serão incluídos na
contagem anual. Como foi revelado,
quanto maior a área de cobertura por
macrófitas, maior será o número de
indivíduos no ciclo posterior. Com o
comportamento de cuidado parental do
macho, o adulto também se beneficia
aumentando sua sobrevivência ao
proteger seus filhotes e se protegendo
também de possíveis predadores.
Os bancos de macrófitas representam
ambientes-chave para a proteção e
conservação (HERCOS et al., 2012), não
somente do pirarucu, mas da maioria das
espécies de peixes da várzea amazônica,
garantido ou incrementando o seu
recrutamento biológico.
Mudanças climáticas e distúrbios
relacionados à pesca em grande escala
que possam afetar a extensão da
cobertura de macrófitas nos lagos de
várzea da Amazônia podem representar
uma ameaça imediata à conservação e a
pesca do pirarucu.
No entanto, o mapeamento da cobertura
de macrófitas por meio de dados
de sensoriamento remoto pode
ser uma ferramenta essencial no
65
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
estabelecimento de planos de manejo
da pesca sustentável do pirarucu, não
apenas na Reserva Mamirauá, mas
também em outras áreas de várzea com
características ambientais similares.
Anais... São José dos Campos: INPE, 1978.
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(INPE-7731-PRE/3578).
Disponível em: <http://urlib.net/dpi.inpe.br/
marte@80/2008/09.25.13.57>. Acesso em:
03 set. 2012.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem à FAPESP
(Processo 08/07537-1 e bolsa de
doutorado, Processo: 2008/066610), ao CNPq (Projeto 477885/2007-1;
Processo 550373/2010-1), e a Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
pelo suporte de infraestrutura e
logística.
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do satélite Landsat-7. 2003. 160 p. (INPE10462-TDI/929). Dissertação (Mestrado em
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66
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67
AVALIAÇÃO GENÉTICA DO MANEJO DO
PIRARUCU (Arapaima gigas) NA RESERVA MAMIRAUÁ
Juliana Araripe1
RESUMO
O pirarucu (Arapaima gigas) é um dos
recursos pesqueiros mais importantes
da região amazônica, com indícios de
sobrepesca histórica exercida sobre a
espécie. Uma das estratégias que visam
recuperar estas populações e manter essa
atividade pelas populações ribeirinhas
é a pesca manejada, que vem sendo
desenvolvida desde 1999 na Reserva
Mamirauá. Apesar de alguns indicadores
apontarem para o sucesso deste manejo,
nenhum estudo usando ferramentas
genéticas havia sido desenvolvido para
avaliar essa atividade. Neste estudo, foram
analisados sete loci microssatélites de
314 pirarucus abatidos através de pesca
manejada ao longo de cinco anos (2002
a 2006), buscando avaliar o efeito dessa
atividade nas frequências dos alelos na
população. O número de alelos, riqueza
e frequência alélica, assim como alelos
exclusivos foram estimados para cada ano,
enquanto a comparação entre os períodos
analisados foi realizada através da AMOVA
e Fst par a par. Foram identificados 45
1
alelos, sem uma significante variação
no número absoluto e na riqueza
alélica entre os anos. Os índices de
diversidade
indicaram
variabilidade
similar às previamente descritas para
outras populações da bacia Amazônica e
superior à descrita para a localidade de
Tucuruí. Não foram observados indícios
de perda de variabilidade genética no
período estudado, o que sugere que
a pesca manejada desenvolvida pela
Reserva Mamirauá está sendo capaz de
manter essa diversidade na população.
Entretanto, é importante ressaltar que
estudo de monitoramento contínuo
e de longo prazo, utilizando nossos
resultados como referência, será de
grande importância para auxiliar no
direcionamento do manejo desta espécie
na várzea amazônica.
INTRODUÇÃO
O pirarucu (Arapaima gigas Cuvier, 1817)
é um dos mais importantes recursos
pesqueiros na região amazônica,
Instituto de Estudos Costeiros (IECOS), Universidade Federal do Pará, Alam. Leandro Ribeiro SN, Campus de
Bragança, PA CEP 68.600-000 - [email protected]
69
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
apresentando uma grande biomassa e
agregando um alto valor de mercado
nas principais cidades da região norte
do Brasil. Atualmente, este peixe pode
ser encontrado em grande parte da
Bacia Amazônica, além da bacia do
Araguaia-Tocantins, ocorrendo até o
cerrado brasileiro na porção sul do
estado do Mato Grosso (KIRSTEN et
al., 2012), onde permanecem em lagos
isolados e sujeitos à dinâmica hídrica
muito diferente daquela observada
nos ambientes de várzeas das planícies
amazônicas.
A grande exploração deste recurso
próximo às grandes cidades da região
amazônica, como Belém, Santarém
e Manaus, durante os séculos XIX e
XX levou a uma notável diminuição
do estoque, com dados de estatística
pesqueira indicando uma significativa
diminuição no desembarque desta
espécie nos principais portos da
região amazônica neste período
(VERÍSSIMO, 1895; MENEZES, 1951),
tendo este se tornado comercialmente
extinto próximo a alguns centros
urbanos amazônicos na década de 70
(GOULDING, 1980; BAYLEY; PETRETE JR.,
1989). Mesmo dentro de áreas em que
a pressão de pesca foi historicamente
menos significativa, como a Reserva
Mamirauá (AM), muitos habitantes locais
afirmam ter percebido uma diminuição
na produção deste peixe. Confirmando
essa hipótese, o acompanhamento da
captura de pirarucus dentro da área
focal da Reserva Mamirauá durante
três anos consecutivos também sugeriu
que esta população poderia está sendo
submetida à sobrepesca (QUEIROZ;
SARDINHA, 1999).
Aspectos biológicos peculiares da espécie, principalmente aqueles relacionados
à reprodução e dispersão, são de grande
importância para estudos de dinâmica
populacional e consequentemente conservação e manejo dos mesmos. No caso
do pirarucu, estes dois são intimamente
relacionados. Lowe-McConnell (1987)
cita dois tipos de migração desempenhados por peixes de planícies alagadas: a longitudinal e a lateral. O deslocamento longitudinal, também referido
como migração, foi pouco estudado no
pirarucu, o qual vem sendo tradicionalmente classificado como uma espécie
sedentária (ARARIPE et al., 2013; ISAAC
et al., 1993; BARTHEN; FABRÉ, 2004). O
único estudo que quantificou essa dispersão através de marcação e recaptura foi desenvolvido por Queiroz (2000),
que encontrou uma dispersão média de
13,7 km/ano para pirarucus recapturados de 0,5 a 18 meses após a marcação,
entretanto, estes dados são preliminares devido a pequena recaptura descrita pelo autor. A distância em linha reta
entre o ponto de soltura e de recaptura
variou de 3,9 a 64,2 km, com registro
de recuperação de dois indivíduos cinco anos após a marcação somente a 400
m do local de soltura (QUEIROZ, 2000).
Estudos recentes usando a abordagem
genética para avaliar a capacidade de
dispersão do pirarucu corroboram o padrão sedentário da espécie, havendo diferenciação genética entre os estoques
separados por distâncias a partir de cerca de 100 km em ambientes de várzea
(ARARIPE et al., 2013).
70
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
recurso vem acontecendo em reservas de
desenvolvimento sustentável (RDS), como
a Amanã, Piagaçu-Purus, assim como em
outras unidades de conservação como na
Reserva Extrativista do Lago Cuniã (RO)
e na Ilha do Bananal (TO), que atuam
seguindo, em diferentes graus, o modelo desenvolvido em Mamirauá. Além das
normas federais que regulam a pesca do
pirarucu, o manejo desta espécie dentro
da Reserva Mamirauá baseia-se ainda
em medidas, como o estabelecimento
de cotas a serem anualmente pescadas
que correspondem a até 30 % do total de
adultos contados segundo a metodologia
certificada por Castello (2004). Além das
cotas, ocorre um revezamento dos lagos
anualmente explorados e um monitoramento do tamanho, peso e quantidade
de peixe pescados.
Apesar de estudos recentes indicarem
que a atividade do manejo vem
apresentando aspectos positivos, como
aumento na quantidade de pirarucus
nos lagos manejados (ARANTES et al.,
2006), aumento no preço do pescado e
da renda per capita das famílias destas
comunidades (VIANA et al., 2007),
nenhum estudo foi realizado para
avaliar geneticamente essas populações
manejadas. Evidências relacionadas
ao monitoramento de desembarque
pesqueiro indicam que a cota utilizada
está sendo capaz de manter a viabilidade
do
manejo,
entretanto
estudos
específicos a respeito do nível de
impacto causado pela pesca manejada
de pirarucus na Reserva Mamirauá
podem auxiliar no direcionamento
desta atividade. Neste contexto o uso de
ferramentas moleculares em abordagens
Por outro lado, o deslocamento lateral
para a espécie em várzea foi detalhadamente descrito por Castello (2008a),
sendo este intimamente relacionado às
suas atividades reprodutivas. Durante o
período seco, os reprodutores encontram-se principalmente nos lagos, lagoas temporárias e canais de rios onde
ocorre a formação dos casais, que juntos
constroem o ninho durante o início da
enchente (CASTELLO, 2008b). A fêmea
então libera uma grande quantidade de
gametas, os quais são fecundados pelo
macho, que cuida do ninho até a eclosão dos ovos (LOPES, 2005). As larvas
permanecem no ninho até a completa
absorção do vitelo, o que dura aproximadamente cinco dias (NEVES, 1995).
Os alevinos são gregários, nadando próximo à cabeça do macho, os quais migram para as florestas alagadas, onde
este cuida dos filhotes por alguns meses. Quando o nível das águas começa
a baixar, o pirarucu macho se separa
dos juvenis, e todos, gradualmente, retornam para as porções mais baixas da
várzea (CASTELLO, 2008a), sem que haja
obrigatoriamente um retorno ao sítio
de origem (ARARIPE et al., 2013). Desta
forma, o ciclo é anualmente reiniciado.
O MANEJO DO PIRARUCU NA RESERVA
MAMIRAUÁ
O manejo dos pirarucus na Reserva
Mamirauá foi implementado inicialmente
no setor Jarauá, em 1999, e posteriormente ampliado para outras localidades
na Reserva Mamirauá (IDSM, 2008), assim
como para outras unidades de conservação dentro e fora do estado do Amazonas. Atualmente, a pesca manejada deste
71
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
2002 e 2006 no setor Jarauá, na Reserva
de
Desenvolvimento
Sustentável
Mamirauá - RDSM, Amazonas, Brasil.
O material genético foi obtido a partir
de tecidos musculares de pirarucus
capturados por pescadores da Reserva
Mamirauá, os quais foram colocados
em tubos com álcool para fixação.
Informações a respeito da procedência
de cada indivíduo, número do lacre,
assim como dados morfológicos dos
mesmos também foram registrados em
fichas de campo. Uma vez que todas as
amostras foram retiradas de indivíduos
abatidos, foi descartada qualquer
possibilidade de reamostragem. No
Laboratório de Genética Aplicada
do Campus de Bragança (UFPA), as
amostras foram tombadas e receberam
uma identificação única correspondente
a seu registro na Coleção de Tecidos de
pirarucus.
O isolamento do DNA seguiu o protocolo
padrão sugerido por Sambrook et al.
(1989) utilizando fenol-clorofórmio
e Proteinase K. Para visualização
da integridade e quantificação, foi
realizada uma eletroforese em gel de
agarose 1%. A partir da intensidade da
banda, as amostras foram diluídas para
aproximadamente 5 ng/μl e estocadas
em freezer até sua utilização na reação
de amplificação. Para amplificação da
região genômica contendo as repetições
microssatélites foi utilizada a técnica de
Reação em Cadeia da Polimerase (PCR)
em um volume final de 10μl. Foram
amplificados sete locos (AgCTm7,
AgCAm20, AgCTm4, AgCAm15, AgCAm2,
AgCAm16, AgCAm26) desenvolvidos
por Farias et al., (2003). Os iniciadores
forward foram previamente marcados
relacionadas à biologia da conservação,
especialmente para espécies submetidas
a algum tipo de ameaça, vem sendo
amplamente utilizada (HARTL; CLARK,
1997).
Com pirarucus, particularmente, os
estudos desenvolvidos até o momento
abordam aspectos populacionais e
filogeográfico da espécie ao longo de sua
distribuição (HRBEK et al., 2005; 2007),
capacidade de dispersão (ARARIPE et
al., 2013) e desenvolvimento de novos
marcadores genéticos (FARIAS et al.,
2003; HRBEK; FARIAS, 2008). Dentre os
marcadores genéticos mais utilizados
para avaliação de estoque destacam-se
os microssatélites (SALGUEIRO et al.,
2003; FARIAS et al., 2003; MORGAN
et al., 2008; LORENZEN et al., 2008).
Estes marcadores moleculares são
regiões amplamente distribuídas no
genoma nuclear que apresentam alto
poder discriminante e alto grau de
informação, sendo utilizados para
estudos populacionais e de identificação
forense, dentre outras abordagens
(OLIVEIRA et al., 2006). Neste estudo
objetivamos fazer a primeira avaliação
genética temporal do manejo de
pirarucu na Reserva Mamirauá, gerando
informações relevantes para um
contínuo monitoramento das mesmas,
assim como fazer inferência sobre a
variabilidade genética desta espécie em
ambiente de várzea.
MATERIAL E MÉTODOS
Para verificar se ocorreram mudanças
significativas na diversidade genética
de pirarucus, ao longo de cinco anos de
pesca manejada, foram utilizados 314
indivíduos coletados entre os anos de
72
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
erros de genotipagem mais frequentes
no programa MicroChecker (VAN
OOSTERHOUT et al., 2004) usando a
correção de Bonferroni. Para comparar
os diferentes anos foram identificados
e quantificados o número absoluto,
a riqueza e frequência dos alelos, a
presença de alelos exclusivos, além de
análises de variância molecular (AMOVA)
e índices de diferenciação genética (Fst)
nos programas Genepop 1.2 (RAYMOND;
ROUSSET, 1995), Fstat (GOUDET, 2002)
e Arlequin 3.01 (EXCOFFIER et al.,
2005). Para avaliação do impacto da
pesca manejada sobre as populações,
cada ano amostrado foi analisado
individualmente e, posteriormente,
comparado.
Para
caracterização
genética e estimativa da variabilidade
genética dos pirarucus da Reserva
Mamirauá, foram estimados ainda os
níveis de heterozigosidade observada e
esperada para os marcadores analisados
e comparados com os dados disponíveis
na literatura.
com fluorescências (6-FAM, HEX ou
NED). Em cada poço da placa, foi
adicionado 1,5 μl de uma solução de
dNTP (200 mM de cada nucleotídeo), 1
μl de tampão 10X da Taq (100 mM TrisHCl, 500 mM KCl), 0,5 μl de MgCl2 (50
mM), 0,5 μl de cada iniciador (2 pmol),
0,25 μl de Taq DNA polimerase (5U/μl),
1 μl de DNA (cerca de 5 ng/μl) e 4,75 μl
de água destilada estéril. O programa
de amplificação para todos os locos
consistiu de uma desnaturação inicial
de 94 oC por 2 minutos, seguidos de 35
ciclos de 94 oC por 10 segundos, 58 ºC
por 10 segundos, 72oC por 30 segundos
e uma extensão final de 72oC por 60
minutos. Ao final da amplificação os
produtos foram visualizados em gel de
agarose 1% e diluídos de acordo com a
intensidade da banda visualizada após
eletroforese.
Foi preparada uma solução com
0,25 μl do ET-Rox 550 (Amersham
Biosciences), 7,75 μl deTween 20 0,1%
e 2 μl do PCR diluído para cada amostra
a ser genotipada, sendo esta injetada
no sequenciador automático MegaBace
1000 por 80 minutos a 10 KV. Após
o término da corrida, os padrões de
picos foram analisados pelo programa
Fragment Profiler 1.2 (Amersham
Biosciences) com filtros de picos (peak
filter) e bins definidos para cada loco.
Uma planilha com os alelos identificados
para os sete locos de cada pirarucu
genotipado foi exportada e utilizada
para criação dos formatos específicos
de acordo com os programas de análises
populacionais utilizados.
Após a montagem de um banco de dados
para os sete locos de todos os indivíduos
analisados foi realizada a verificação dos
RESULTADOS
Após a genotipagem, foi identificado
um total de 45 alelos para os sete locos
dos 314 pirarucus analisados no setor
Jarauá. O número absoluto de alelos e
a riqueza alélica estimada detectaram
uma pequena variação entre os cinco
anos com estimativa de riqueza alélica
para a população do Jarauá de 5,08
alelos em média para os cinco anos
analisados (Tabela 1). Não foi observada
significativa variação entre o número de
alelos observado em cada ano de pesca,
o que sugere que a retirada anual de
peixes adultos pela pesca não levou a
uma perda de alelos na população.
73
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
No período estudado foi observada, para
os sete locos analisados, uma variação
de 3 a 12 alelos por loco (Tabela 2). A
comparação entre as frequências dos
alelos em cada período de pesca indicou
que os alelos mais frequentes para
cada loco em cada ano estudado (em
destaque) foi o mesmo para a maioria
dos locos. Somente os locos AgCTm7,
AgCAm15 e AgCAm16 tiveram o alelo
mais frequente variando ao longo do
período, mas essa flutuação foi baixa,
quando comparadas às frequências
relativas destes alelos em cada ano
de despesca. Para o loco AgCTm7, os
alelos mais frequentes foram os 281,
297 e 301, os quais se alternaram na
posição de mais frequente ao longo do
período estudado. Para o AgCAm15, foi
observada uma maior frequência para
o alelo 248 em todos os anos, exceto
2002, quando o mais frequente foi o
232. Entretanto, esta diferença foi de
somente um registro deste alelo, uma
vez que o alelo 232 foi amostrado 48
vezes e o alelo 248, apareceu 47 vezes
entre os pirarucus coletados neste ano.
Da mesma forma, aconteceu com o loco
AgCAm16 para as amostras de 2004. A
diferença do número de observações
entre os dois alelos mais frequentes foi
de somente duas em um total de 186
alelos analisados (93 indivíduos). Estes
resultados sugerem que a flutuação
observada para estes três locos deve
ter sido resultado de um viés amostral
nestas populações, indicando que
não houve grandes flutuações nas
frequências destes alelos.
Foram identificados neste estudo quatro
alelos exclusivos, sendo um identificado
somente nos pirarucus pescados
em 2002, dois alelos nos indivíduos
pescados em 2003 e um em 2004. Todos
estes alelos exclusivos foram os alelos
de menor frequência para o referido
loco naquele ano, exceto o alelo 333 do
loco AgCAm2 que apresentou mais três
outros alelos também com frequência
de 0,0185 no ano de 2003.
Tabela 1 - Número de alelos (Na) e riqueza alélica (Ra) para a população de pirarucus do setor Jarauá nos
anos de 2002 a 2006 para os sete locos microssatélites analisados.
Ano
2002
(N=65)
2003
(N=56)
2004
(N=93)
2005
(N=54)
2006
(N=46)
Na
Ra
Na
Ra
Na
Ra
Na
Ra
Na
Ra
AgCTm4
3
3,000
3
3,000
3
2,995
3
3,000
3
3,000
AgCTm7
7
6,737
9
8,194
9
7,673
7
6,817
7
6,920
AgCAm2
8
7,446
10
9,267
10
8,317
10
9,227
7
7,000
AgCAm15
8
7,872
6
5,587
5
4,950
7
6,026
6
5,797
AgCAm16
5
4,962
5
4,874
5
4,627
4
3,991
5
4,992
AgCAm20
3
2,995
3
2,996
4
3,353
4
3,711
4
3,817
AgCAm26
3
3,000
3
2,963
3
2,995
3
3,000
3
3,000
TOTAL
37
-
39
-
39
-
38
-
35
-
Média
5,286
5,140
5,571
5,268
5,571
4,987
5,429
5,111
5,000
4,932
Locos
74
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
Tabela 2: Frequências alélicas e alelos exclusivos para as populações de pirarucus do setor Jarauá
coletadas entre os anos de 2002 e 2006. Em destaque (sombreado), os alelos mais frequentes para cada
loco em cada ano.
Locos
AgCTm7
AgCAm20
AgCTm4
AgCAm15
AgCAm2
Alelos
Frequência alélicas (ano)
Alelos
2002
2003
2004
2005
2006
273
0,0000
0,0089
0,0109
0,0000
0,0125
281
0,2328
0,2679
0,3261
0,2841
0,2625
283
0,0172
0,0536
0,0489
0,0568
0,0625
289
0,0172
0,0357
0,0489
0,0227
0,0250
295
0,0000
0,0000
0,0054
0,0000
0,0000
297
0,3103
0,2589
0,2772
0,4432
0,2625
299
0,1293
0,0536
0,0870
0,0795
0,1000
301
0,2500
0,2946
0,1848
0,1023
0,2750
303
0,0431
0,0179
0,0109
0,0114
0,0000
305
0,0000
0,0089
0,0000
0,0000
0,0000
265
0,5703
0,5179
0,5376
0,4904
0,5444
267
0,0469
0,0446
0,0323
0,0577
0,0333
269
0,3828
0,4375
0,4247
0,4423
0,4111
271
0,0000
0,0000
0,0054
0,0096
0,0111
279
0,0938
0,0893
0,0968
0,1019
0,1444
285
0,8281
0,8393
0,8495
0,7593
0,8000
287
0,0781
0,0714
0,0538
0,1389
0,0556
230
0,0538
0,0089
0,0538
0,0278
0,0652
232
0,3692
0,3304
0,3011
0,4074
0,2609
234
0,0308
0,0000
0,0000
0,0093
0,0000
240
0,0385
0,0268
0,0323
0,0093
0,0326
242
0,0538
0,1161
0,1129
0,0833
0,0435
248
0,3615
0,4911
0,5000
0,4537
0,5870
250
0,0692
0,0268
0,0000
0,0093
0,0109
252
0,0231
0,0000
0,0000
0,0000
0,0000
299
0,1797
0,2222
0,1685
0,1667
0,2162
301
0,0078
0,0093
0,0054
0,0370
0,0000
305
0,0312
0,0185
0,0109
0,0370
0,0000
313
0,3047
0,2593
0,2337
0,2500
0,2162
315
0,0000
0,0000
0,0000
0,0093
0,0135
75
exclusivos
2004
2003
2002
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Locos
AgCAm16
AgCAm26
Alelos
Frequência alélicas (ano)
Alelos
317
0,0859
0,0648
0,1196
0,0741
0,1216
321
0,0000
0,0185
0,0054
0,0000
0,0000
323
0,3359
0,3426
0,3533
0,3704
0,3378
325
0,0000
0,0185
0,0272
0,0093
0,0135
327
0,0234
0,0000
0,0435
0,0278
0,0000
329
0,0312
0,0278
0,0326
0,0185
0,0811
333
0,0000
0,0185
0,0000
0,0000
0,0000
255
0,4077
0,4196
0,4462
0,4352
0,2717
257
0,0923
0,0357
0,0591
0,0741
0,0870
259
0,4231
0,4732
0,4355
0,4537
0,5652
261
0,0462
0,0179
0,0108
0,0000
0,0435
263
0,0308
0,0536
0,0484
0,0370
0,0326
215
0,2462
0,3571
0,2957
0,2407
0,2717
217
0,1000
0,0268
0,0538
0,0926
0,1087
219
0,6538
0,6161
0,6505
0,6667
0,6196
2003
DISCUSSÃO
A análise de variância molecular (AMOVA)
considerando cada ano separadamente
indicou que toda a variação genética
do conjunto de pirarucus foi observada
dentro do total de indivíduos analisados
(99,99%),
sugerindo
não
haver
subestruturação temporal. O índice de
fixação par a par (Fst) não foi significativo
para nenhuma combinação entre os
anos (dados não mostrados), reforçando
também a ausência de diferenças entre
os períodos analisados. Os índices de
heterozigosidade observada variaram
de 0,539 (ano de 2005) a 0,608 (ano de
2002).
Avaliação temporal da pesca
pirarucu na Reserva Mamirauá
do
Estudos prévios usando indicadores
ecológicos e sociais já indicavam um
significativo crescimento populacional
dos pirarucus da Reserva Mamirauá
(VIANA et al., 2007; ARANTES et al.,
2006). Esta rápida recuperação do
estoque superou a previsão inicialmente
feita por Queiroz; Sardinha (1999),
que estimaram que esta população
de pirarucus na Reserva Mamirauá
poderia ser reduzida à metade do seu
76
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
tamanho em um período de seis anos
devido à sobrepesca que estava sendo
submetida antes da implementação do
manejo. Segundo as análises destes
autores, se a pesca fosse imediatamente
suspensa, a população precisaria de
pelo menos cinco anos para se recuperar
e atingir novamente o equilíbrio
populacional. Entretanto, os dados de
acompanhamento da pesca coletados
pelo Programa Manejo de Pesca (PMP)
demonstram que o estoque não
somente se recuperou em um intervalo
de tempo menor que o previsto, como
também aumentou em mais de 13 vezes
em nove anos.
Os processos que levaram a esse intenso
e considerável aumento populacional
certamente tiveram também efeitos
na variabilidade e estrutura genética
desta população ao longo destes nove
anos de pesca manejada. Estes índices,
provavelmente,
são
influenciados
também
por
fatores
biológicos
relevantes, dentre os quais aspectos
ecológicos e comportamentais, que
podem estar colaborando efetivamente
para isso, tais como a migração lateral
e a capacidade de dispersão dos jovens
e adultos.
Neste contexto, o comportamento
de migração lateral desempenhado
pelos pirarucus parece ter grande
importância nos níveis elevados de
variabilidade genética e na similaridade
entre diferentes anos de exploração
por possibilitar a mistura entre
indivíduos de lagos diferentes. Este
comportamento parece explicar o
grande compartilhamento de alelos
observado por Araripe et al. (2013),
que indicaram uma ausência de
estruturação genética dentro do setor
Jarauá evidenciado por valores de Fst
Tabela 3 - Índices de heterozigosidade observada (Ho) e esperada (He) para as populações de pirarucus
do setor Jarauá nos anos de 2002 a 2006 para sete locos microssatélites. Asterisco (*) corresponde a
diferenças significantes (p<0,01).
2002
(N=65)
Ano
Locos
2003
(N=56)
2004
(N=93)
2005
(N=54)
2006
(N=46)
Ho
He
Ho
He
Ho
He
Ho
He
Ho
He
AgCTm7
0,879
0,775
0,768
0,774
0,717
0,778
0,568
0,720
0.825
0,788
AgCAm20
0,500
0,530
0,500
0,543
0,462
0,538
0,481
0,575
0,400
0,548
AgCTm4
0,344
0,315
0,321
0,300
0,280
0,268
0,315
0,398
0,289
0,340
AgCAm15
0,738
0,725
0,661
0,649
0,591
0,646
0,685
0,626
0,609
0,600
AgCAm2
0,750
0,758
0,722
0,767
0,717
0,782*
0,667
0,770
0,730
0,790
AgCAm16
0,585
0,648*
0,500
0,609
0,548
0,614
0,574
0,612
0,522
0,608
AgCAm26
0,462
0,516
0,482
0,508
0,495
0,492
0,481
0,494
0,609
0,536
Média
0,608
0,603
0,565
0,593
0,544
0,556
0,539
0,599
0,526
0,601
77
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
não significante. Segundo este estudo,
os lagos do Jarauá apresentam perfis
genéticos semelhantes causados pela
mistura entre indivíduos ao longo de
gerações, o qual pode ser determinado
no momento de retorno aos lagos
durante a vazante em cada ciclo anual.
Esse processo, acontecendo anualmente,
promoveria uma mistura genética que,
por sua vez, levaria a uma similaridade
genética entre os diferentes anos de
pesca, tais como observada na presente
análise.
Esse processo de migração lateral
em ambientes de várzea observado
promove uma mistura de indivíduos
durante o período de cheia, quando
grande parte dos pirarucus (adultos e
juvenis) ocupa a floresta recém-alagada
em busca de proteção e alimento. No
retorno aos lagos, durante a vazante,
segundo os dados genéticos, pode
ocorrer sem que exista uma fidelidade
de retorno ao lago de origem, como
proposto por Araripe et al. (2013).
Desta forma, anualmente, acontece uma
efetiva mistura de pirarucus jovens e
adultos de lagos próximos (fina escala),
o que promove essa alta variabilidade
genética no setor e a similaridade
genética ao longo dos anos analisados.
A Figura 1 ilustra a hipótese de retorno
ao lago sem fidelidade obrigatória
sugerida pelos dados genéticos. Nossos
achados corroboram a hipótese de
que pode ou não haver a fidelidade
no retorno ao lago. Considerando
o aspecto sedentário do pirarucu,
acreditamos que esta conectividade
entre as populações aconteça de forma
efetiva nas várzeas da Amazônia, mas
de forma gradual, ao longo do tempo
e do espaço, levando à ausência de
diferenças genéticas entre os anos.
Para testar essa hipótese, sugerimos
que sejam desenvolvidos estudos
detalhados sobre a dispersão de adultos
e juvenis de pirarucus usando marcação
e acompanhamento remoto (GPS), além
do contínuo acompanhamento genético
destes indivíduos.
De acordo com os dados obtidos, a
migração lateral parece ser a principal
causadora da homogeneização da
população de pirarucus no tempo e no
espaço (pequena escala; cerca de 25
km), mas seu raio de alcance é limitado
pelo aspecto sedentário deste peixe.
Essa limitação do deslocamento efetivo
para a dispersão genética é responsável
pela sutil diferença detectada entre
localidade separadas por cerca de 100
km, como Jarauá e Maraã (ARARIPE
et al., 2013), os maiores manejadores
deste pescado dentro da Reserva
Mamirauá, entretanto seria efetivo
para manter a variabilidade genética
dentro do conjunto de lagos ao longo
do tempo. Neste cenário, a dispersão
dos juvenis parece desta forma facilitar
a homogeneização ao longo da
distribuição da espécie, minimizando
os efeitos do sedentarismo. Este
deslocamento, associado à distribuição
contínua da espécie, possibilita o
fluxo gênico na reserva ao longo do
tempo, mas a distância geográfica faz
com que seja observada uma pequena
diferenciação neste estoques em média
escala (cerca de 100 km).
78
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
A
Lago
Floresta seca
Lago
B
Lago
Floresta seca
Lago
C
Lago
Floresta seca
Lago
Figura 1 - Representação da hipótese de retorno ao lago sem fidelidade obrigatória. Perfil do
ambiente de várzea mostrando a dinâmica de dispersão dos pirarucus durante a seca (A e C) e
cheia (B). Adaptado de Ayres (1995).
79
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
A variabilidade genética dos pirarucus
da Reserva Mamirauá
Comparando os índices de variabilidade
genética estimada para os pirarucus
do
setor
Jarauá
com
outras
populações previamente estudadas
foi possível observar que os estoques
da Reserva Mamirauá apresentam
heterozigosidade
elevadas,
assim
como outras populações da bacia
Amazônica, enquanto a população do
sistema hídrico Araguaia – Tocantins
apresentou índices menores (Tabela 4).
A comparação entre as populações da
calha principal do Rio Amazonas usando
os mesmos marcadores microssatélites
indicam valores de heterozigosidade
muito semelhantes, exceto aquelas
estudadas por Hamoy et al. (2008), que
desenvolveu novos iniciadores para
oito locos desenvolvidos por Farias et
al., 2003. Por outro lado, a população
de Santarém estudada por Farias et al.,
2003 mostrou uma Ho mais elevada
(0,63) que a estimada para o setor Jarauá
(0,57) utilizando o mesmo conjunto de
locos. Provavelmente, essa diferença
é um reflexo da diferença no tamanho
amostral nos dois estudos, já que em
estudos de desenvolvimento de primers
microssatélites, tal como de Farias
et al. (2003), o número de indivíduos
analisados é menor do que o necessário
para estudos populacionais. Reforçando
essa hipótese, o estudo desenvolvido por
Carvalho (2008) analisando populações
de pirarucus também de Santarém com
os mesmos sete locos encontrou valores
semelhantes àqueles estimados no
presente trabalho. A baixa variabilidade
genética na população de Tucuruí em
relação às da calha principal da bacia
Amazônica pode estar relacionada a
diferenças geomorfológicas, hídricas e
de histórico de exploração desta subbacia (HENDERSON, 1999; KIRSTEN
et al., 2012). Uma vez que a capacidade
de dispersão, assim como aspectos
reprodutivos
do
pirarucu
são
intimamente relacionados com esses
fatores ambientais, é possível que
diferenças relacionadas à diversidade
genética entre as mesmas sejam
observadas.
A heterozigosidade observada (Ho) é
um dos índices mais utilizados para
estimativa de variabilidade genética
de populações (HAUSER et al., 2002;
PEREZ-ENRIQUEZ et al., 1999, HARTL;
CLARK, 1997). Entretanto, valores de
Ho estimados a partir de diferentes
locos não podem ser diretamente
comparados, uma vez que esta
heterozigosidade depende diretamente
da quantidade de alelos do mesmo e do
número de indivíduos analisados. Desta
forma, comparar a heterozigosidade
observada utilizando um conjunto
de locos no pirarucu com aqueles
estimados a partir de outro conjunto
de locos microssatélites (da mesma
espécie ou não) requer cuidado, sendo
necessário atentar para o número médio
de alelos por locos, pois quanto mais
informativo o marcador (ou seja, quanto
mais alelos identificados), maior é a
heterozigosidade esperada.
O impacto do manejo na variabilidade
genética dos pirarucus do Jarauá
Uma pressão pesqueira exercida de
forma intensiva e prolongada sob
uma população pode levar a uma
diminuição no seu tamanho efetivo
e, consequentemente a alterações
na diversidade genética da mesma
80
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
Tabela 4: Índices de diversidade genética estimados para populações de pirarucus usando marcadores
microssatélites. São indicados número de indivíduos analisados (N), número de locos, médias de
heterozigosidade observada (Ho) e esperada (He), número médio de alelos por loco e fonte.
N
Número
de locos
Média
de Ho
Média
de He
Alelos
por loco
Jarauá – RDSM – AM
314
7
0,56
0,59
6,4
Este trabalho
Jarauá e Maraã – RDSM – AM
463
7
0,57
0,60
7,1
ARARIPE (2008)
Juruti – PA
32
8
0,69
0,72
8,0
HAMOY et al. (2008)
Santarém – PA
60
7
0,55
0,59
4,9
CARVALHO (2008)
Santarém – PA
15
7
0,63
0,66
4,7
FARIAS et al. (2003)*
Santarém – PA
15
14
0,57
0,62
4,3
FARIAS et al. (2003)
Tucuruí – PA
38
7
0,48
0,49
3,1
SOUZA (2006)
Localidade
Fonte
* Dados de FARIAS et al. (2003) somente com os sete locos utilizados neste trabalho
destas populações podem ter um papel
determinante para essa variabilidade.
Dentre estes, a possibilidade de que a
Reserva Mamirauá funcione como uma
fonte de pirarucus para outras áreas deve
também ser considerada. A localização
geográfica da reserva, em uma região
plana e de baixa altitude, pode levar a
uma tendência de migração de pirarucus
das áreas adjacentes para dentro da
reserva ao longo do ciclo hídrico, a
qual funcionaria como um refúgio. Esse
mesmo padrão pode estar acontecendo
ao longo da extensa área de várzea do
Rio Amazonas, que é o maior ambiente
de floresta alagada da Amazônia, com
aproximadamente 200.000 Km2 (AYRES,
1995). A região onde está inserida a
Reserva Mamirauá, é uma das porções
onde este ambiente apresenta maior
área e por isso poderia abrigar uma
maior quantidade deste recurso. Essa
hipótese de que os pirarucus da várzea
do Mamirauá estariam se comportando
segundo um modelo fonte-sumidouro
ainda deve ser testado.
(FRANKHAM et al., 2010). Estes efeitos
ameaçadores podem, entretanto, ser
minimizado por estratégias como
uma pressão de pesca direcionada e
controlada, tal como ocorre com as
populações manejadas. Nestas situações,
o monitoramento genético pode ser de
grande utilidade para avaliação destas
atividades por estabelecer parâmetros
comparáveis dentro das populações
ou entre espécies. No caso da
caracterização genética dos pirarucus
do Jarauá, foi constatada a presença
de mais alelos identificados nesta
localidade do que em outras localidades
também na bacia amazônica usando os
mesmos marcadores.
É importante ressaltar que essa alta
variabilidade genética encontrada na
população de pirarucus da reserva pode
ser resultado de diferentes fatores,
que podem e devem contribuir para a
diversidade genética observada nesta
área, dentre eles o manejo. Fatores
como a pressão pesqueira diferenciada,
aspectos ambientais e demográficos
81
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
os índices de variabilidade, tais como a
heterozigosidade e o número de alelos,
possivelmente seriam mais baixos,
uma vez que alelos de baixa frequência
poderiam desaparecer dessa população
como efeito desta sobrepesca. Além
disso, estratégias como revezamento
dos lagos e a classificação de lagos que
são ou não explorados também parecem
ter tido grande importância para que a
diversidade genética deste estoque se
mantivesse em níveis satisfatórios.
Desta forma, sugerimos que esta análise
seja continuada para acompanhamento
desses parâmetros de diversidade ao
longo de um período maior, assim como
já realizado com outras espécies de
peixes submetidas à sobre-exploração,
tal como o realizado com Pagrus auratus,
na qual um monitoramento ao longo
de 50 anos mostrou uma significante
diminuição na heterozigosidade para
este recurso (HAUSER et al., 2002). Além
disso, a determinação da capacidade
máxima de retirada de pirarucus nestas
áreas ainda precisa ser realizada através
do uso de diferentes ferramentas,
uma vez que a cota de 30% do total
de adulto foi estabelecida sem que
tenha havido um estudo avaliando
sua eficiência. É importante lembrar
ainda que outros aspectos, além desta
capacidade máxima de retirada, devem
ser considerados no estabelecimento
desta cota, tais como as condições
logísticas desta atividade pesqueira e a
comercialização. Amaral (2007) coloca
a comercialização como o principal
gargalo no processo de produção
pesqueira da região e estas questões
devem ser amplamente discutidas antes
de se manter ou aumentar o número de
adultos anualmente retirados.
As pequenas flutuações nas frequências
e composição alélica entre os anos
analisados indicaram que não houve
significativa perda de variabilidade de
cinco anos de pesca no Jarauá. Entretanto,
é importante ressaltar que o intervalo de
tempo estudado é muito curto para que
mudanças genéticas profundas possam ser
detectadas. Nós sugerimos fortemente a
continuidade do monitoramento genético,
usando como referência os parâmetros
gerados neste estudo. O acompanhamento
genético de populações vem sendo
uma importante ferramenta aplicada
em espécies de importância ecológica
e econômica (FONTAINE et al., 1997).
A comparação de aspectos, tais como a
heterozigosidade e o número de alelos
podem ser importantes indicativos de
que processos relacionados à diminuição
populacionais, como sobrepesca e efeito
gargalo de garrafa (bottleneck) que estejam
agindo e possam ser diagnosticados nestas
populações (CHISTIAKOV et al., 2006).
A cota de pesca do pirarucu
Os níveis de variabilidade genética
ao longo destes cinco anos de
monitoramento dos pirarucus da Reserva
Mamirauá sugerem que a cota de pesca
anualmente autorizada pelo IBAMA
parece ser eficiente no sentido de evitar
uma diminuição da diversidade genética
causada pela pesca anual. Análises de
produção máxima sustentável antes da
implementação do manejo indicavam
que, aparentemente, a quantidade
de pirarucus abatidos estava próxima
ou acima dos limites que o modelo
sustentável estabelecia (QUEIROZ;
SARDINHA, 1999). Caso a pesca do
pirarucu tivesse se mantido neste nível,
82
Avaliação genética do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) na Reserva Mamirauá
• Juliana Araripe
CONCLUSÕES
Através desta primeira análise genética
de pirarucus manejados no setor
Jarauá (Reserva Mamirauá), foi possível
determinar que esta população
apresenta uma elevada variabilidade
genética e grande similaridade genética
entre os cinco anos de acompanhamento.
Provavelmente, fatores ecológicos
e ambientais como o processo de
migração lateral e de dispersão dos
juvenis no retorno aos ambientes mais
baixos têm um papel importante neste
processo.
Além disso, no presente estudo, foi
possível fazer a primeira caracterização
genética dos pirarucus manejados,
servindo estes dados como referência
para
monitoramento
constante
dos impactos da pesca sobre essas
populações. A cota que vem sendo
aplicada para pesca deste recurso não
causou alterações no perfil genético
dos pirarucus neste estudo preliminar.
Nós recomendamos, fortemente, que
seja realizado de forma contínua o
monitoramento genético dos pirarucus
da Reserva Mamirauá, uma vez que este
mostrou ser uma importante ferramenta
para o direcionamento das estratégias
do manejo deste recurso pesqueiro.
Caroline Arantes, assim como Simoni
Santos e Luciana Watanabe pelo auxílio
no desenvolvimento do projeto.
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AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi financiado pelo projeto
PPG-7 (CNPq), e apoiado pelo PPGZool/
MPEG, IECOS/UFPA e CNPq pelo
consentimento da bolsa de doutorado.
Gostaríamos, também, da agradecer
ao IDSM pelo apoio dado para coleta
do material biológico dos pirarucus na
Reserva Mamirauá, em especial ao Saíde
Barbosa, Ellen Amaral, Kelven Lopes,
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Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
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Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
FAUNA MACROBENTÔNICA DE LAGOS DE VÁRZEA COMO
INDICADOR DE IMPACTO DA PESCA MANEJADA DE PIRARUCUS
Lorena Almeida
José Souto Rosa-Filho
Daiane Aviz
Helder L. Queiroz
RESUMO
O objetivo deste trabalho foi estudar
as variações espaço-temporais das
associações
macrobentônicas
dos
lagos de várzea da Reserva Mamirauá
(Amazonas, Brasil), correlacionando
tais flutuações às mudanças ambientais
naturais da região e aquelas advindas
da retirada das macrófitas aquáticas
durante a pesca manejada do pirarucu
(Araipamas gigas), utilizando como
descritores a densidade, riqueza,
diversidade e equitatividade. As coletas
ocorreram em novembro de 2009
(Seca – quando ocorre a pesca do
pirarucu) e maio de 2010 (Cheia – sem
pesca). Foram selecionados oito lagos,
sendo quatro classificados como lagos
com pouca atividade da pesca (PAP) e
quatro classificados como lagos com
intensa atividade da pesca (IAP). Para
a coleta,utilizou-se um pegador de
fundo tipo VanVeen (20x20x20 cm). Em
laboratório, as amostras foram lavadas
em malha de 0.3 mm e os organismos
fixados em formol a 5% e identificados
ao menor nível taxonômico possível.
A fauna foi composta por 38 taxa
pertencentes aos filos Annelida,
Mollusca e Arthropoda. Observou-se
que, em ambos os períodos hidrológicos,
os lagos IAP foram mais ricos e diversos.
Os lagos PAP apresentaram as maiores
densidades em ambos o períodos. Os
resultados da CCA demonstraram não
haver diferença entre os descritores
biológicos na estrutura da macrofauna
bentônica entre os lagos PAP e IAP em
ambos os períodos analisados. Dessa
forma, a variação espaço-temporal na
estrutura da macrofauna bentônica, é
provavelmente, mais bem explicada
pelo regime hidrológico e padrões
espaciais naturais e não pela retirada
das macrófitas aquáticas durante a pesca
manejada do pirarucu (Araipamas gigas).
ABSTRACT
The objective of this work was to study
the spatial and temporal variations of
associations macrobentônicas várzea
floodplain lakes Mamirauá (Amazonas,
Brazil), correlating these fluctuations
the region’s natural environmental
changes and those arising from the
removal of macrophytes during the
pirarucu fisheries managed (Araipamas
gigas), using descriptors such as density,
richness, diversity and evenness. the
collections occurred in November
2009 (low water period - occurs when
87
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
vivem em áreas afastadas do litoral e
onde a criação de gado é difícil (BÖHLKE
et al., 1978).
Dentre as espécies de peixes mais
utilizadas na alimentação dos ribeirinhos,
o pirarucu (Araipamas gigas) é um dos
mais importantes recursos pesqueiros
da Amazônia (QUEIROZ; SARDINHA,
1999). Sendo que a pesca manejada
dessa espécie na Reserva Mamirauá é
feita pelas comunidades pescadoras
que habitam o local, utilizando-se de
um consórcio de redes de emalhar com
arpões (QUEIROZ; SARDINHA, 1999).
Nestes lagos, grande parte da vegetação
aquática litorânea, formada por espécies
de macrófitas presas ao substrato e por
algumas outras flutuantes, é retirada
para aumentar a vulnerabilidade dos
peixes adultos, que ficam escondidos
sob as mesmas. Ao tentarem buscar
novos refúgios, ou ao virem à superfície
para respirar, os animais são arpoados,
trazidos até canoas (pequenos barcos
sem motor) e abatidos com golpes na
região craniana (VIANA et al., 2007).
A retirada de macrófitas realizada na
pesca do pirarucu pode contribuir
para degradação do ambiente aquático
devido modificações principalmente
na região litorânea dos corpos d´água
(ESTEVES, 1998). Como consequências
disso, mudanças na biota aquática
podem ocorrer, levando à perda de
diversidade do sistema (FIDELIS et al.,
2008).
Dentre as comunidades biológicas potencialmente afetadas pelas modificações advindas dos artifícios da pesca do
pirarucu, está a dos macroinvertebrados
aquáticos. Estes organismos são um importante componente do sedimento de
fishing for pirarucu) and May 2010 (high
water period - no fishing). Eight were
selected lakes, four classified as lakes
with little fishing activity (PAP) and four
classified as lakes with intense fishing
(IAP). To collect used a gripper bottom
type VanVeen (20x20x20 cm). In the
laboratory the samples were washed
in 0.3 mm mesh and organisms fixed
in 5% formalin and identified to the
lowest possible taxonomic level. The
fauna comprised of 38 taxa belonging
to the phyla Annelida, Mollusca and
Arthropoda. It was observed that in
both hydrological periods lakes IAP
were more rich and diverse. The PAP
lakes had higher densities in both
periods. The results of the CCA showed
no difference between the biological
descriptors in the structure of benthic
macroinvertebrates among lakes PAP
and IAP in both periods. Thus, the
time-space variation in the structure of
benthic macroinvertebrates, is probably
best explained by the hydrological and
natural spatial patterns and not by the
removal of aquatic weeds while fishing
handled the pirarucu (Araipamas gigas).
INTRODUÇÃO
As áreas da Amazônia sujeitas à
inundação periódica por rios de água
branca, como o Solimões e o Amazonas
são denominadas de várzeas. A pesca
nas várzeas, e em especial nos lagos de
várzea, é considerada uma das principais
atividades responsáveis pela principal
fonte de proteínas e renda para muitas
comunidades ribeirinhas (QUEIROZ;
CRAMPTON, 1999). O que faz da
várzea um ecossistema de fundamental
importância para as populações que
88
Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
peraturas entre 30 ºC e 33 ºC. As médias
das temperaturas mínimas oscilam entre
21 ºC e 23 ºC, com pequena amplitude
térmica mensal (entre 8 ºC e 10 ºC), e
alta precipitação pluviométrica (2200
– 2400 mm/ano) (PROJETO Mamirauá,
1996). Na região amazônica, as estações
climáticas constituem dois períodos distintos pelos índices pluviométricos, um
período de cheia (maio a julho) e um
de seca (outubro a dezembro). Sendo
que os meses de junho e outubro são
os meses de pico do período de cheia
e do período de seca, respectivamente
(RAMALHO et al., 2009).
rios e lagos, sendo fundamentais para
dinâmica de nutrientes, a transformação
de matéria e o fluxo de energia (CALLISTO; ESTEVES, 1995), é também, reconhecidamente, um dos componentes
biológicos mais adequados para estudos
de impacto e para o monitoramento de
longo prazo destes (MONTEIRO, 2008).
Tendo em vista a grande importância da
pesca manejada do pirarucu na Reserva
de
Desenvolvimento
Sustentável
Mamirauá, e em várias outras partes
da Amazônia, avaliações cuidadosas
do impacto ambiental dessa atividade
são extremamente importantes para o
aperfeiçoamento e continuidade dos
programas de manejo.
Este trabalho teve como objetivo
estudar as variações espaço-temporais
das associações macrobentônicas dos
lagos de várzea da Reserva Mamirauá,
correlacionando tais flutuações às
mudanças ambientais naturais da região
e aquelas advindas da retirada das
macrófitas aquáticas durante a pesca
manejada do pirarucu (Araipamas gigas).
Locais de Amostragem
As coletas foram realizadas nos períodos seco (novembro/2009) e chuvoso
(maio/2010) em oito lagos, do Setor Jarauá, na Reserva Mamirauá, sendo quatro lagos considerados como Lagos com
Pouca Atividade de Pesca (PAP) e quatro
lagos considerados como Lagos com Intensa Atividade de Pesca (IAP). Os lagos
escolhidos para a classe de intensidade
PAP foram: Tucunarezinho do Panema,
Ressaca do Panema, Ressaca do Tucuxi
e Baixo do rio. Os lagos definidos como
IAP são: Poço do Matá-matá, Poção, Cedrinho do Jaraqui e Curuçá do Centro
(Figura 2).
A classificação dos lagos para cada
categoria de intensidade de pesca foi
feita por meio da quantificação dos
pirarucus pescados em seu interior, e na
sua frequência de uso como ambiente de
pesca manejada. Os lagos classificados
como PAP estão localizados na Zona de
Proteção Integral e de Manutenção da
Reserva Mamirauá, onde a pesca maneja
não ocorre, ou ocorre estritamente
MATERIAL E MÉTODOS
Área de Estudo
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM) está localizada
na confluência dos rios Solimões e Japurá, próxima à cidade de Tefé (Estado do
Amazonas, Brasil) (Figura 1). Esta área
é considerada uma das maiores unidades de conservação em áreas alagadas
do Brasil, sendo a única unidade de
conservação completamente dedicada
à proteção de grandes áreas de várzea
(QUEIROZ, 2007).O clima na Reserva
Mamirauá caracteriza-se por uma temperatura média do ar elevada, com tem-
89
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
para a alimentação e subsistência das
comunidades ribeirinhas. Por sua vez, os
lagos inseridos na classe IAP, localizamse na zona de Uso Sustentável ou de
Comercialização da reserva, onde a pesca
manejada ocorre anualmente em larga
escala. A tabela 1 apresenta a quantidade
de pirarucus pescados em oito anos de
pesca manejada em cada lago analisado.
Tabela 1 – Quantidade total de pirarucus (Araipamas gigas) pescados nos lagos estudados entre os anos
1999-2007.
(Fonte: IDSM)
Classes de Intensidade da Pesca
PAP
IAP
Lagos
Média de pirarucus pescados/ano
Ressaca do Panema
90
Ressaca do Tucuxi
82
Tucunarezinho do Panema
88
Baixo do Rio
102
Poço do Matá-matá
244
Cedrinho do Jaraqui
256
Curuçá do centro
160
Poção
598
Figura 1 – Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá localizada nas confluências dos rios
Solimões e Japurá, Tefé, Amazonas, Brasil, destacando a área de estudo (pontos A, B, C, D, E, F, G e
H). (Adaptado de LOPES; QUEIROZ, 2009).
90
Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
(mg/l) e condutividade elétrica (μS/cm),
utilizando-se a Sonda Multiparamétrica
YSI 6600. Dados de nível da água dos
períodos analisados foram obtidos no
site do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá.
Análise dos Dados
Para cada amostra biológica, foi calculada
densidade (número de indivíduos por
metro quadrado), riqueza (número de
táxons presentes), diversidade (índice
de Simpson) e equitatividade (índice
de J´ de Pillou). Estes descritores
foram comparados entre os lagos
das duas classes de intensidades de
pesca, utilizando análise de variância
unifatorial e bifatorial (ANOVA). Anterior
às análises de variância foi testada a
normalidade da distribuição dos dados
(teste de Kolmogorov-Smirnov) e a
homogeneidade das variâncias (teste
de Levene). Sendo que os dados,
sempre que necessário, sofreram
transformação logarítmica (Log(x+1))
de acordo com Clarke e Warwick (1994).
Nessas análises, foi utilizado o nível de
significância de 5%.
Para descrever quais variáveis ambientais
físicas e químicas analisadas melhor
caracterizavam os períodos hidrológicos
e as classes de intensidade da pesca,
recorreu-se a Análise dos Componentes
Principais (PCA). Além disso, utilizou-se
Análise de Correspondência Canônica
(CCA) para avaliar a correlação entre as
variáveis ambientais e biológicas.
As análises dos dados biológicos e
abióticos foram realizadas empregando
os aplicativos Statistica 8.0, Primer 6.0 e
Sysgran 3.0.
A pesca manejada do pirarucu (Araipama
gigas) ocorre apenas durante o período
seco, ocasião em que os peixes se
concentram nos canais e lagos, que
se encontram isolados uns dos outros
(SAINT-PAUL et al., 2000; SILVANO et
al., 2000; GALACATOS et al., 2004).
Dessa forma, a primeira ocasião de
coleta (período seco) ocorreu durante
a pesca manejada do pirarucu. Sendo
que é durante esse período que ocorre a
intensa retirada das macrófitas aquáticas
fixas no substrato, que são arrancadas e
abandonadas nos próprios lagos.
Coleta Biológica e das Variáveis
Ambientais
Em cada lago, foram definidos, de forma
aleatória, quatro pontos de amostragem
na região litorânea, equidistantes entre
si o suficiente para que cada amostra
fosse independente. Em cada ponto,
em cada ocasião, foram coletadas três
amostras biológicas com auxílio de
um pegador de fundo tipo Van Veen
(20x20x20 cm). Após coletadas, as
amostras foram passadas em malha de
0.3 mm de abertura e o material retido
foi acondicionado em sacos plásticos
com solução de formol a 5% (LINCOLN;
SHEALS, 1979). O material retido nas
malhas foi triado em laboratório,
sob microscópio estereoscópico e
microscópio óptico; os espécimes
coletados foram identificados ao
menor grupo taxonômico possível e
conservados em álcool etílico a 70%.
Paralelo à coleta biológica, para
cada ponto, foi coletada uma
amostra de sedimento para análises
granulométricas, além de variáveis
físicas e químicas da água, tais como:
temperatura (ºC), pH, oxigênio dissolvido
91
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
RESULTADOS
pH, oxigênio dissolvido e temperatura
da água. Enquanto que as amostras da
cheia se diferenciam por apresentar
maior condutividade elétrica.
Dados Ambientais
Os períodos hidrológicos apresentaram
grande distinção com relação às variáveis
ambientais. Como exemplo, observou-se
que o nível da água apresentou variação
entre os períodos analisados (Figura 2).
Os lagos da classe IAP apresentaram os
maiores valores de profundidade dos
pontos em ambos os períodos (Figura 3).
Na figura 3, é possível observar a
distinção entre os períodos de seca
e cheia com base nos resultados da
PCA utilizando variáveis ambientais
(parâmetros físico-químicos da água,
texturais do sedimento e profundidade
das amostras coletadas). O Eixo 1
explicou 49% da variação dos dados
ambientais, separando as amostras
do período da seca das amostras do
período de cheia. Já o Eixo 2 não
mostrou uma separação clara das
amostras, explicando apenas 29% da
variação encontrada. De acordo com
o gráfico, as amostras do período de
seca apresentaram maiores valores de
Associações de macroinvertebrados
bentônicos e impactos mensuráveis
Composição
A macrofauna bentônica foi composta
por 1198 indivíduos pertencentes a
38 taxa, distribuídos em três filos:
Annelida (dois taxa), Mollusca (seis
taxa) e Arthropoda (30 taxa) (Tabela 2).
O período da seca apresentou maior
número de taxa (12), sendo que entre as
classes de intensidade da pesca, os lagos
IAP apresentaram maior número de taxa
em ambos os períodos hidrológicos.
Durante o período da seca, apenas 3
taxa foram exclusivos da classe PAP,
17 foram exclusivas da classe IAP e 9
taxa estiveram presentes em ambas
as classes. Na cheia, nenhum taxa foi
exclusivo da classe PAP, enquanto que
14 taxa foram exclusivos da classe IAP e
5 taxa pertenceram a ambos os períodos
estudados.
Precipitação (mm)
Nível da água (m)
14
12
35
10
33
31
8
29
6
27
4
25
2
23
Precipitação (mm)
Nível da água (m)
37
0
mai/09 jun/09
jul/09 ago/09 set/09 out/09 nov/09 dez/09 jan/10
fev/10
mar/10 abr/10 mai/10
(Fonte: IDSM, 2011)
Figura 2 – Variação do nível da água entre os meses maio de 2009 e maio de 2010, na reserva Mamirauá,
Tefé, Amazonas, Brasil.
92
4
Seco - PAP
Seco - IAP
Cheia - PAP
Cheia - IAP
2
% Areia
Oxigênio dissolvido
PC2
% Silte
Condutividade elétrica
Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
0
-2
-4
-6
-4
-2
Oxigênio dissolvido
Condutividade elétrica
PC1
2
0
4
Profundidadede
Figura 3 – Resultado gráfico da Análise de Componentes Principais (PCA) das amostras dos lagos de
várzea da reserva Mamirauá, Tefé, Amazonas, Brasil, durante a seca e a cheia (Legenda: PAP – Pouca
Atividade Pesqueira; IAP – Intensa Atividade Pesqueira).
Tabela 2 – Presença e ausência de táxons da macrofauna bentônica em dois diferentes níveis de
intensidade pesqueira nos lagos de várzea da Reserva Mamirauá (Tefé, Amazonas, Brasil) durante a Seca
(novembro/2009) e Cheia (maio/2010).
Seca
Táxon
Bivalvia (Mollusca)*
Gastropoda (Mollusca)*
Gastropoda 1 (Mollusca)*
Hidrobiinae (Mollusca)
Physidae (Mollusca)
Planorbinae (Mollusca)
Tubificinae imaturo (Annelida, Clitellata)*
Naidinae (Annelida, Clitellata)
Aulodrilus pigueti (Annelida, Clitellata)
Pristina proboscidea (Annelida, Clitellata)
Pristina osborni (Annelida, Clitellata)
Pristina americana (Annelida, Clitellata)
Dero (Aulophorus) sp. (Annelida, Clitellata)
Opistocysta funiculus (Annelida, Clitellata)
Cheia
PAP
IAP
PAP
IAP
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Nais pseudobtusa (Annelida, Clitellata)
Stephensoniana trivandrana (Annelida, Clitellata)
Hirudinea (Annelida, Clitellata)
93
X
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Seca
Táxon
PAP
Polypedilum sp. A (Arthropoda, Insecta)
Polypedilum sp. B (Arthropoda, Insecta)
Labrundinia sp. (Arthropoda, Insecta)
Cladopelma sp. (Arthropoda, Insecta)
Pelomus psamophilus (Arthropoda, Insecta)
Axarus sp. (Arthropoda, Insecta)
Fissimentum sp. (Arthropoda, Insecta)
Tanytarsus sp. A (Arthropoda, Insecta)
Tanytarsus sp. B (Arthropoda, Insecta)
Tanipus sp. (Arthropoda, Insecta)
Asheum sp. (Arthropoda, Insecta)
Chironomus sp. A (Arthropoda, Insecta)
Chironomus sp. C (Arthropoda, Insecta)
Chironomus sp. D (Arthropoda, Insecta)
Coelotanypus sp. 1 (Arthropoda, Insecta)
Coelotanypus sp. 2 (Arthropoda, Insecta)
Ablabesmya (Karelia) sp. (Arthropoda, Insecta)
Ablabesmya Gr. annulata (Arthropoda, Insecta)
Caladomyia ortoni (Arthropoda, Insecta)
Sarcophagidae (Arthropoda, Insecta)
Ceratopogonidae (Arthropoda, Insecta)
Diptera (Arthropoda, Insecta)
Larva Diptera (Arthropoda, Insecta)
Ephemeptera (Arthropoda, Insecta)
Polymitacidae (Arthropoda, Insecta)
Coleoptera (Arthropoda, Insecta)
Odonata (Arthropoda, Insecta)
Libellulidae (Arthropoda, Insecta)
Gomphidae (Arthropoda, Insecta)
Decapoda (Arthropoda, Crustacea)
Ostracoda (Arthropoda, Crustacea)
Amphipoda (Arthropoda, Crustacea)
Riqueza (nº de taxa)
Cheia
IAP
PAP
IAP
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
15
40
X
X
9
21
(*) Indivíduos juvenis ou imaturos não identificados
Descritores biológicos
classes de intensidade da pesca e, a
diversidade também não apresentou
diferença
significativa
entre
os
períodos hidrológicos analisados. Para
nenhum dos descritores, os fatores
agiram conjuntamente na estruturação
da comunidade de invertebrados
bentônicos.
Os descritores biológicos apresentaram
variação significativa entre as classes
de intensidade da pesca (Tabela 3) e
entre os períodos hidrológicos. Apenas
a densidade e a equitatividade não
variaram significativamente entre as
94
Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
Tabela 3 – Resultado da ANOVA para os descritores densidade, riqueza, diversidade e equitatividade,
utilizando os fatores lagos e períodos hidrológicos. Reserva Mamirauá, Tefé, Amazonas, Brasil.
Variáveis
Densidade
(ind.m-2)
Riqueza
(nº de taxa)
Diversidade
(D)
Equitatividade
(J´)
F
P
F
P
F
p
F
P
Classe de
Intensidade da
Pesca (1)
0.03
0.85
7.50
0.00**
3.11
0.07
1.80
0.18
Períodos
Hidrológicos (2)
12.35
0.00**
16.57
0.00**
4.88
0.02*
7.51
0.00**
Interação (1 – 2)
0.01
0.89
1.37
0.24
0.01
0.90
0.15
0.69
(*) Valor significativo: p<0.05; (**) Valor altamente significativo: p<0.01(
A densidade foi mais alta durante
o período seco, em praticamente
todos os lagos amostrados. Já entre
as classes de intensidade da pesca,
houve pequena variação, sendo
que os lagos PAP foram sempre os
mais densos, pela alta densidade de
organismos no lago Baixo do Rio
(Figura 4).
A riqueza, diversidade e equitatividade
foi relativamente mais alta no período
seco, em praticamente todos os lagos.
Os valores desses índices foram sempre
maiores nos lagos IAP em ambos os
períodos hidrológicos, principalmente,
nos lagos Poço do Matá- matá e Poção,
os mais densos dentro do grupo IAP
(Figura 4).
Figura 4 - Valores médios e erro padrão dos descritores densidade (A), riqueza (B), diversidade (C)
e equitatividade (D) ao longo dos períodos hidrológicos e lagos amostrados na Reserva Mamirauá,
Tefé, Amazonas, Brasil.
95
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
DISCUSSÃO
Embora tenham sido encontradas
diferenças significativas entre IAP e
PAP para alguns parâmetros, estes não
parecem ser relacionados a impacto
que estes sofreriam com a retirada das
macrófitas. Por exemplo, locais onde
as macrófitas estão ausentes deveriam
apresentar maiores temperaturas na
água, pois os raios solares incidiram
diretamente na superfície dos lagos
(PAYNE, 1986). Além disso, locais com
macrófitas era de se esperar maiores
taxas de oxigênio dissolvido, visto
que tais organismos estão entre os
que apresentam maior produtividade
primária em ambientes aquáticos
(ESTEVES, 1998). A retirada da vegetação
enraizada da região litorânea dos lagos
poderiam ainda resultar na mudança da
Relação entre as variáveis ambientais e
as biológicas
O resultado da CCA (Figura 5) apresenta
as correlações entre os parâmetros
ambientais e os parâmetros biológicos,
entre as classes de intensidade da pesca,
durante a seca. É possível observar que
os lagos IAP apresentaram correlações
positivas com a profundidade e negativa
com a condutividade elétrica, enquanto
que os lagos PAP apresentaram
correlações positivas com parâmetros
granulométricos, como % de argila e %
de silte. Durante a cheia (Figura 6), a
grande maioria das amostras dos lagos
PAP apresentou correlação negativa com
% de areia, enquanto que as amostras
dos lagos IAP apresentaram correlações
positivas com a profundidade dos
pontos.
Figura 5 - Resultado gráfico da Análise de Correspondência Canônica (CCA) realizada para o período da
Seca (Nov/2009) nos lagos IAP e PAP, Reserva Mamirauá, Tefé, Amazonas, Brasil.
96
Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
Figura 6 – Resultado gráfico da Análise de Correspondência Canônica (CCA) realizada para o período da
Cheia (mai/2010) nos lagos IAP e PAP, Reserva Mamirauá, Tefé, Amazonas, Brasil.
vegetais subsidiam grandes quantidades
de oxigênio para a fauna, possibilitando
assim,
a
seus
colonizadores,
local para postura de ovos, o que
proporciona condições ótimas para a
sobrevivência de muitos grupos animais
(MASTRANTUONO, 1986, WARD, 1992).
Dessa forma, caso houvesse impacto
da retirada das macrófitas nos locais
impactados (IAP), estes apresentariam
baixos valores de riqueza e diversidade,
o que não foi verificado neste trabalho.
Os lagos impactados acabaram por
serem os lagos mais ricos e mais
diversos.
Os resultados do PCA para os parâmetros
ambientais demonstraram não haver
uma separação dos lagos em classes
de intensidade da pesca em ambos os
textura do sedimento, por processos de
erosão e assoreamento (PAYNE, 1986).
Porém, nenhuma das situações ocorreu
neste estudo, pois os lagos considerados
impactados pela retirada das macrófitas
foram os que apresentaram maiores taxas
de oxigênio dissolvido e, além disso, a
temperatura da água e características
dos sedimentos foram semelhantes
entre as classes de intensidade da pesca.
Sendo assim, a retirada das macrófitas
pareceu não alterar os parâmetros
físico-químicos da água, sendo que estes
variaram naturalmente pela flutuação
anual no nível da água.
Sabe-se que as macrófitas aquáticas são
um dos componentes aquáticos mais
importantes para as comunidades de
macroinvertebrados bentônicos. Esses
97
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
períodos hidrológicos. Isto indica que
a retirada das macrófitas aquáticas não
altera significativamente as variáveis
ambientais dos lagos classificados
como IAP. Dessa forma, as maiores
variações nos parâmetros ambientais
foram influenciadas principalmente
pela flutuação anual do nível da água e
localização geográficas dos lagos.
Os lagos de várzea da Reserva Mamirauá,
apresentaram variações nas suas
características ambientais, relacionadas
principalmente com a sazonalidade
local, ou seja, mudanças nas condições
hidrológicas devido ao aumento dos
índices de precipitação pluviométrica na
região. As chuvas na região amazônicas
são o principal agente modificador
das características ambientais dos
ambientes aquáticos (PADOCH et al.,
2009).
Pelas análises, foi possível observar
que houve uma separação clara entre
as amostras do período da seca e da
cheia, essa grande distinção se dá
principalmente como consequência do
pulso de inundação, o qual influencia,
principalmente,
a
variação
dos
parâmetros físico-químicos dos lagos
de várzea (JUNK, 1989). Além disso,
as amostras da Seca apresentaramse mais dispersas que as amostras da
Cheia. Isso ocorreu pelo fato de que,
durante a seca, os lagos ficam isolados,
apresentando assim características
distintas uns dos outros. Fato diferente
ocorre no período mais chuvoso, no qual
os lagos se conectam uns aos outros,
sendo caracterizados por apresentarem
parâmetros ambientais semelhantes
(HENDERSON, 1999; THOMAZ et al.,
2007).
Apesar de apresentarem parâmetros
ambientais semelhantes no período
chuvoso, ocorreu a formação de
agrupamentos entre os lagos no gráfico
de PCA, do período chuvoso. Os lagos
que se agruparam, no geral, estão
geograficamente próximos uns dos
outros e, dessa forma, estes podem
estar mais conectados entre si do que
com os outros grupos durante o período
chuvoso.
A composição da macrofauna bentônica
dos lagos de várzea da Reserva de
Mamirauá é semelhante à de várias
regiões lacustres do mundo (VOLKMERRIBEIRO et al., 2006), do Brasil
(CALLISTO; ESTEVES, 1998; RODRIGUES;
HARTZ, 2001) e a de lagos de várzea e
de terra firme da Amazônia (FITTKAU
et al., 1975; NESSIMIAN, 1998), com
dominância numérica de Oligochaeta,
Mollusca e larvas de Diptera, que é
também típica de ambientes lênticos
(ESTEVES, 1998; ODUM, 2004). Os
principais táxons representantes dos
dípteros no presente trabalho foram
os Chironomidae, que é caracterizada
por apresentar espécies com grande
adaptação à variação do nível da água,
sendo que algumas podem até suportar
condições hipóxicas (NESSIMIAN, 1998;
CALLISTO, 2000; BUSS et al., 2004).
O decréscimo na densidade e na riqueza
registrado durante o período chuvoso
concorda com trabalhos realizados nos
lagos de várzea da Reserva Mamirauá
(QUEIROZ, 2007), no rio Guapimirim
no sudeste do Brasil (BUSS et al., 2004)
e nos lagos do baixo rio São Francisco
(DEWSON, 2007). A densidade e a
98
Fauna macrobentônica de lagos de várzea como indicador de impacto da pesca manejada de pirarucus
• Lorena Almeida • José Souto Rosa-Filho • Daiane Aviz • Helder L. Queiroz
CONCLUSÃO
riqueza são influenciadas negativamente
pelo aumento das chuvas durante o
período chuvoso, pois a grande descarga
dos rios causa a desestruturação do
sedimento, dificultando o assentamento
de espécies (HIGUTI; TAKEDA, 2002;
BUSS et al., 2004).
As maiores abundâncias de Chironomidae
foram registradas durante o período
seco, o que concorda com estudos feitos
por Higuti e Takeda (2002), Aburaya;
Callil (2007) e Silva et al. (2009), nos quais
foi observado que houve incremento
na quantidade indivíduos dessa família
durante o período de estiagem. No
presente estudo, as maiores densidades
de Chironomidae foram observadas
nos lagos Poço do Matá-matá e Poção,
isso se deveu, provavelmente às altas
taxas de oxigênio dissolvido presente
nesses lagos, o que proporcionou maior
facilidade no estabelecimento de taxa
dessa família (ARMITAGE et al., 1995).
No presente estudo, procurou-se
explicar as variações espaço-temporais
na
estrutura
das
comunidades
macrobentônicas por meio de duas
hipóteses: (1) as variações na estrutura
da comunidade são relacionadas
principalmente
pelas
flutuações
ambientais naturais dos lagos, sem
efeito significativo da retirada das
macrófitas durante a pesca manejada do
pirarucu; e (2) as variações na estrutura
da comunidade são relacionadas
principalmente
às
modificações
ambientais nos lagos, advindas da retida
das macrófitas aquáticas para a pesca
manejada do pirarucu, pelo menos no
período seco.
Considerando que não foi possível
detectar mudanças nos parâmetros
ambientais, causadas possivelmente
pela retirada das macrófitas aquáticas
nos lagos intensamente pescados, a
primeira hipótese foi a mais apoiada
pela análise dos dados biológicos. Não
ocorreram mudanças significativas na
composição, abundância, riqueza e
diversidade, e consequentemente na
estrutura das associações bentônicas
entre os lagos intensamente pescados
(IAP) e aqueles sem a atividade (PAP).
Dessa forma, a variação espaçotemporal na estrutura da macrofauna
bentônica é, provavelmente, mais bem
explicada pelo regime hidrológico
e padrões espaciais naturais e não
pela retirada das macrófitas aquáticas
durante a pesca manejada do pirarucu
(Araipamas gigas). Tal conclusão poderá
ser mais bem embasada após estudos
e monitoramentos em longo prazo,
levando em consideração que diversas
variáveis não analisadas nesse estudo
possam influenciar na distribuição
espacial e temporal da fauna bentônica.
AGRADECIMENTOS
À Drª Alice Takeda e seus orientandos
de mestrado Gisele Pinha e Rômulo
Behrend, pelo auxílio na identificação
dos Oligochaeta e Chironomidae.
Agradecemos
ao
Instituto
de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
99
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
- IDSM pelo financiamento do projeto. E
à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela
bolsa de estudo concedida.
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Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
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102
EFEITOS NA ICTIOFAUNA DA LAGOA TUMICHUCUA
(NORTE DA BOLÍVIA) DEPOIS DA ENTRADA
DO PIRARUCU Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
Guido Miranda-Chumacero1,3
Kelven Lopes2
Yuba Sánchez3
Helder L. Queiroz2
Jaime Sarmiento3
RESUMO
Este trabalho teve como principal
objetivo medir o impacto da introdução
do pirarucu sobre as populações de
peixes nativos da Lagoa Tumichucua
próxima a Riberalta (Departamento de
Beni), ao norte da Bolívia. Foi utilizado
como parâmetro de comparação
um estudo de ictiofauna na mesma
lagoa, realizado em 1981, antes do
aparecimento do pirarucu na região.
Para estimar as mudanças, foi aplicada
a mesma metodologia de amostra
usada em 1981. Utilizando indicadores
de diversidade e de composição de
espécies, foi comparada a estrutura
da comunidade de peixes de ambos
os anos. No estudo de 1981, foram
capturados 3.638 indivíduos, agrupados
em 24 famílias e 88 espécies; em 2008,
foram capturados 8.774 indivíduos,
agrupados em 24 famílias e 95 espécies.
A semelhança na composição de
espécies entre os estudos foi estimada
através do índice de Shannon-Weiner
(H*), que indica uma pequena redução
entre os estudos com 1,34 em 2008 e
1
2
3
1,54 em 1981. Foi utilizado o modelo
paramétrico Chao 1 para estimar
a estrutura da comunidade, que
calcula o número de espécies em uma
comunidade com base nas espécies
raras. Em 1981, foi encontrado um valor
de 90,6 espécies prováveis; em 2008,
foi estimado um total de 97,3 espécies.
O coeficiente comunitário para ambos
os anos indicou uma similaridade de
59%, entretanto outras estimativas de
similaridade, como a da similaridade
proporcional e o índice de similaridade,
chegaram a valores mais reduzidos (23 e
42%, respectivamente).
Através de contagens visuais, foi
estimado o número de pirarucus, tendo
chegado a 76 indivíduos, distribuídos
entre 27 adultos e 49 jovens. Podese observar que para lagoas grandes,
como é o caso de Tumichucua, pouco
se percebe a mudança na riqueza, mas
sim uma grande mudança na estrutura
da comunidade, com diferenças
na abundância das espécies, sua
importância relativa, e na predominância
de diferentes guildas tróficas.
Wildlife Conservation Society (WCS–Bolívia)
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - IDSM
Instituto de Ecologia e Coleção Boliviana de Fauna (IE-CBF-UMSA)
103
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
INTRODUÇÃO
Entre os principais impactos que o ser
humano causou e continua causando
na natureza, a entrada de espécies
exóticas invasoras é a mais devastadora
pela incerteza do grau e do tipo de
perturbação que pode vir a provocar
(COBLENTZ, 1990). Nas últimas décadas,
a ameaça de invasores biológicos exigiu
mais atenção, gerando preocupações
principalmente
nas
sociedades
orientadas para a previsão dos impactos.
Experiências em muitos países e com
diferentes espécies demonstram que os
impactos têm sido muito negativos e
que, na maioria das vezes, ainda se paga
um preço muito alto por isso (SAKAI et
al., 2001; PÉREZ et al., 2004; DRAKE,
2005).
Em muitos casos, as estimativas dos
impactos são difíceis de se calcular,
principalmente pela falta de uma base
de comparação e pela dificuldade de
atribuir as causas da variação de uma
espécie invasora. Geralmente, são
utilizados modelos comparativos entre
lugares com presença do invasor e
lugares similares sem a presença do
mesmo, e em muitos outros, somente
se chega a aproximações gerais
(COLAUTTI; MACISSAC, 2004; TRAVIS;
PARK, 2004; LATINI; PETRERE, 2004).
A principal causa disso é que na quase
totalidade desses casos de invasão não
se têm registros prévios da comunidade
em que entraram e só há registros
depois da introdução. Em muitos casos,
isso significa que não se pode atribuir
de forma conclusiva que as espécies
invasoras tenham causado o impacto
de que são acusadas (HULME, 2003), ou
de que são absolvidas (OJASTI, 2001).
Este último cenário está vinculado às
flutuações naturais das comunidades
e perturbações simultâneas de outra
índole que podem causar mais mudanças
que as mesmas espécies invasoras.
A situação se agrava em ambientes
aquáticos continentais, uma vez que,
por sua conectividade permanente
ou sazonal, facilitam a dispersão de
organismos invasores. Dessa maneira,
a entrada de uma espécie em um
determinado lugar não garante que
somente fique nesse lugar e surge a
possibilidade de sua dispersão livre
por zonas limítrofes ao sistema hídrico
(AGOSTINHO et al., 2005). A introdução
de espécies é considerada como um dos
principais problemas para a conservação
de peixes de água doce (COWX, 2002).
No caso dos peixes, um dos maiores
motivos da dispersão e de fugas de
espécies exóticas é causado pela
piscicultura, através de fugas acidentais,
rompimento de barreiras, ou também
pela fuga de indivíduos pequenos pelo
fluxo de água dos próprios reservatórios
de criação (WELCOMME, 1988; ORSI;
AGOSTINHO, 1999; PATRICK, 2000). Na
maior parte dos casos, as entradas de
peixes não são rapidamente percebidas
nos primeiros anos de seu aparecimento.
Geralmente, são identificadas em
estados avançados ou quando os
danos ambientais são irreversíveis. Em
alguns casos, as entradas nem sequer
são consideradas ameaças, devido à
ausência de estudos sobre seus impactos
potenciais (CASAL, 2006).
O aparecimento do pirarucu (Arapaima
gigas) na Bolívia não é um caso muito
diferente. No final dos anos 1970,
o pirarucu foi introduzido para fins
104
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
comerciais em algumas lagoas da Bacia
do Madre de Dios, próxima a Puerto
Maldonado, no sudoeste do Peru
(MIRANDA-CHUMACERO et al., 2012).
Acredita-se que depois, numa das
grandes cheias do Rio Madre de Dios,
ocorreu um processo de dispersão; após
esse fato o pirarucu chegou à Bolívia
(FARREL; AZURDUY, 2006; MIRANDACHUMACERO et al., 2012).
O pirarucu também foi introduzido
em outras regiões no interior do
Brasil, desde a região amazônica até o
noroeste. O principal motivo que levou
à introdução dos pirarucus nas lagoas
do noroeste do Brasil foi a intenção de
limitar a proliferação das populações de
piranha-vermelha, Pygocentrus nattereri.
Principalmente, pelo fato de ser um
carnívoro de grande porte, ocupando
os primeiros lugares na cadeia alimentar
(CASTELLO, 2004).
Aparentemente,
o
pirarucu
se
estabeleceu com êxito, apesar de sua
entrada ser relativamente recente;
estando distribuído na maior parte
dos rios, córregos e lagoas do norte
da Bolívia. Atualmente, é encontrado
em várias sub-bacias dos rios Madre de
Dios, Orthon, Heath, Manuripi, Beni,
Madidi, Mamoré e Iténez e, no fim da
década de 1990, foi encontrado na Lagoa
Tumichucua, no Rio Beni (MIRANDACHUMACERO et al., 2012).
No início dos anos 1980, na Lagoa
Tumichucua,
foi
realizado
um
levantamento ictiofaunístico, antes da
entrada do pirarucu na lagoa (SWING,
1981; SWING; RAMSAY, 1987). Esse
estudo forneceu informação sobre
a abundância e a diversidade das
espécies nativas de peixes. Graças a
ele, foi possível estabelecer uma base
de comparação em dois momentos da
comunidade presente na lagoa: antes
e depois da entrada do pirarucu. Isso
poderia permitir descrever as mudanças
na comunidade íctica da lagoa e
determinar se tais mudanças podem
estar relacionadas com a presença do
pirarucu.
MATERIAL E MÉTODOS
Área de Estudo
Lagoa Tumichucua
O Rio Beni percorre grande parte do
norte da Bolívia, formando o limite
natural entre os departamentos de La Paz
e de Beni. Nas suas margens, instalou-se
um grande número de populações que
vivem da pesca, entre outras atividades
(CIPTA/WCS, 2010). Perto de sua
confluência com o Rio Madre de Dios, a
22 km da localidade de Riberalta, está a
Lagoa Tumichucua. Essa lagoa apresenta
um tamanho aproximado de 390 ha de
espelho d’água. Em seu interior, há duas
regiões diferenciadas pelo tipo de água,
ou seja, uma com águas brancas e outra
com águas mistas (combinação de águas
brancas e água pretas), o que favorece
a presença de diferentes micro-hábitats
(SIOLI, 1984; Figura 1).
Captura dos peixes
Swing (1981) realizou coletas entre 25 de
setembro e 10 de dezembro de 1981. No
presente estudo, a amostra foi realizada
entre 23 de agosto e 4 de setembro de
2008, nos mesmos pontos de amostra
referidos por Swing, incluindo 15
pontos de amostra no decorrer da Lagoa
(A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N e O)
(Figura 1). Para as amostras de 2008,
105
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
foram usados os mesmos métodos
de pesca mencionados para o estudo
de 1981, com a finalidade de poder
compará-las.
Foram utilizadas redes de emalhar de
20 a 25 m de comprimento e 2,5 m de
altura, com duas baterias de diferentes
aberturas de malha: 20, 30, 50, 60,
65, 70, 75, 90 e 100 mm de nó a nó e
foram colocadas perpendicularmente
nas margens da lagoa durante 8 horas
por dia em cada ponto da amostra, em
dois períodos: no começo do dia (entre
6h e 10h) e à noite (entre 19h e 23h).
Como foram utilizadas duas baterias de
malhas, em alguns dias foram analisados
dois pontos de amostra. Para capturar
espécies pequenas e para cobrir os
diferentes hábitats que geralmente se
encontram próximos à margem, foram
realizados 30 arrastões com uma rede
de 4 m de comprimento por 1 m de
altura com 5 mm de abertura de malha.
Para as espécies de maior tamanho,
foram utilizadas espinelas com 15
anzóis de diferentes tamanhos. Para
efeitos de comparação mediante
Capturas Por Unidade de Esforço (CPUE),
todos esses métodos foram aplicados
com o mesmo esforço em cada um dos
lugares definidos. Os peixes capturados
foram preservados em formaldeído a 4%
e transferidos para álcool a 75%, para
sua conservação definitiva na Coleção
Boliviana de Fauna (CBF) na Universidade
Maior de San Andrés.
Identificação taxonômica
Para a determinação taxonômica do
material colecionado, foram utilizadas
chaves de identificação e descrições
originais das espécies. As identificações
foram realizadas na Área de Peixes da
CBF.
Figura 1 - Lagoa e Comunidade Tumichucua e sua posição referencial. Os pontos nomeados com
letras correspondem às áreas de amostra tanto em 1981 como em 2008. Na imagem, pode-se notar a
predominância de águas pretas na zona sudeste e de águas brancas no extremo noroeste. Imagem de
satélite Google Earth.
106
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Curvas de abundância relativa
Para comparar a diversidade das
espécies e sua abundância, com base
nos referidos por Swing em 1981 e
nos obtidos no presente estudo, foram
utilizadas curvas de abundância relativa.
Foi usado este método gráfico para
descrever a riqueza da comunidade
tanto em 1981 como em 2008, com
base no ordenamento das proporções
das espécies em cada estudo, da mais
até a menos abundante. Foi levantado
o número de indivíduos capturados por
cada espécie (ni), dividido pelo número
total de indivíduos capturados (N),
obtida sua proporção (pi) e expressa
como logaritmo (log pi).
Rarefação
Para fazer uma comparação do
número esperado de espécies entre
as comunidades presentes na Lagoa
Tumichucua em 1981 e em 2008,
foi utilizado o método de rarefação.
Esse método se baseia no cálculo do
número de espécies esperado em
cada estudo, em função do número de
indivíduos capturados. Para isso, foi
usado o programa informático ECOSIM
(GOTELLI; ENTSMINGER, 2009).
Similaridade da composição de espécies
entre o estudo de 1981 e 2008
Para determinar a similaridade ou
dissimilaridade da diversidade de
espécies em cada estudo, foi empregado
o Coeficiente Comunitário (CC):
CC = 2c /(a + b)
onde a é o número de espécies
presentes no ano de 1981, b é o número
de espécies capturadas em 2008, e c é o
número de espécies comuns em ambos
os estudos. O intervalo de valores para
esse índice vai de 0, quando não há
espécies compartilhadas entre ambos os
estudos, a 1, quando nos dois estudos
se tem a mesma composição de espécies
(MORENO, 2001).
Estimativa da riqueza e abundância das
comunidades nos estudos de 1981 e de
2008
Para determinar a riqueza estrutural
possível em ambos os estudos, foi
empregado o modelo paramétrico Chao
1, que é uma estimativa do número de
espécies em uma comunidade baseado
no número de espécies raras, na amostra
(MORENO, 2001):
Chao 1= S + (a2/2b)
onde S é o número de espécies na
amostra do estudo, a é o número de
espécies que estão representadas por
um único indivíduo na amostra do
estudo, e b é o número de espécies
representadas por exatamente dois
indivíduos na amostra do estudo. O
resultado desse método é um valor
que representa o número máximo de
espécies prováveis existentes tanto
em 1981 como em 2008, de acordo
com os dados das espécies registradas
(MORENO, 2001).
Índices de diversidade e equitatividade
Foram calculados índices que medem a
diversidade de uma comunidade como
o de Shannon-Wiener (H) e sua versão
ponderada (H’). Com base nisso, foi
calculada a Equitatividade (E) dentro
da comunidade com a finalidade de
determinar as diferenças entre 1981 e
2008. Também foi calculada a similaridade
proporcional entre ambos os anos (SP)
e, com a finalidade de avaliar o grau de
similaridade, com base no número de
espécies compartilhadas, foi calculado
o índice de Jaccard (MORENO, 2001).
107
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Contagem de pirarucus
Para a contagem dos pirarucus, a lagoa
foi dividida em setores que mantêm
correspondência com as áreas em que
foram realizadas as amostras no estudo
de Swing (1981). Para a estimativa da
quantidade de pirarucus, foi utilizado
o método descrito por Castello (2004),
que consiste na contagem dos peixes no
momento em que saem para a superfície
para captar ar atmosférico. Com esse
método, é possível também classificar,
individualmente, o animal como jovem
ou adulto. Os jovens são aqueles que
não chegam a 1,5 m de comprimento,
e os que ultrapassam esse tamanho
são considerados adultos (ARANTES et
al., 2007). Foram realizadas três séries
de contagens com as quais foi possível
obter a média e o desvio padrão para
cada uma das áreas no interior da lagoa.
Análise por Guilda
Para realizar uma aproximação das
mudanças no funcionamento ecológico
da lagoa, as espécies foram agrupadas
em guildas tróficas, de acordo com
a dieta das mesmas. Foram usados
os dados referidos para as mesmas
espécies em estudos da área ou da
região (POUILLY et al., 2003; PEREIRA
et al., 2007). A partir de então, foram
realizadas análises para determinar
a variação, entre 1981 e 2008, da
abundância relativa de indivíduos e a
riqueza por cada guilda trófica.
RESULTADOS
Composição taxonômica da comunidade íctica de Tumichucua
As ordens com maior proporção das
espécies da Lagoa Tumichucua, tanto em
1981 como em 2008, são Characiformes
(54,5%
e
47,4%,
respectivamente), Siluriformes (22,7% e 31,6%,
respectivamente) e Perciformes (12,5% e
9,5%, respectivamente). Distinguiu-se,
em 2008, a redução dos Characiformes
em 7% e o acréscimo dos Siluriformes em
9%. Existem variações menos marcadas,
como a redução dos Perciformes (por volta de 3%) e o acréscimo dos Gymnotiformes (em 1%) (Figura 2).
Figura 2 - Proporção das espécies de acordo com os principais grupos taxonômicos na Lagoa
Tumichucua para os anos de 1981 (barras brancas) e de 2008 (barras pretas). Foram indicadas as
proporções das ordens no Rio Mamoré como referência (barras cinzas) (POUILLY et al., 2004).
108
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Abundância e riqueza
Swing capturou um total de 3.638
indivíduos em 1981, identificando, a
partir desses, um total de 88 espécies,
agrupadas em 24 famílias. No presente
estudo, foram capturados 8.774
indivíduos (aproximadamente 240% a
mais que em 1981), agrupados em 95
espécies e 24 famílias. Em 1981, a
família Characidae foi a que apresentou
a maior quantidade de indivíduos (n=
2486), seguida da família Cichlidae
(n= 431) e da família Curimatidae (n=
145), enquanto que em 2008 a maior
proporção de indivíduos pertence às
famílias Characidae (n= 5338), Engraulidae
(n= 1378) e Cichlidae (n= 504).
A família Characidae é a mais abundante
tanto no estudo de 1981 como no
presente estudo. Segundo Swing, em
1981, a família Cichlidae foi a segunda
família mais abundante, e passa a ser
a terceira em 2008. Por outro lado, a
família Gasteropelecidae, de terceira, em
1981, passa a ser a quinta em 2008. A
família Engraulidae, que ocupava o nono
lugar em 1981, passa a ser a segunda
mais abundante em 2008. A família
Pimelodidae passou do quinto lugar ao
sexto. E a família Loricariidae mantém a
mesma posição em ambos os estudos,
mas com um grande crescimento no
número de espécies (Figura 3).
Figura 3 - Variação da abundância total e do número de espécies para as famílias mais abundantes e
diversas referidas entre 1981 e 2008 na Lagoa Tumichucua.
109
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
A análise em nível de espécies mostra
mudanças mais notáveis. Em 1981,
a espécie claramente dominante em
abundância era Hyphessobrycon rosaceus,
que não está presente nas capturas do
estudo de 2008. Em 2008, dominam 3
espécies: Odontostilbe sp., Hemmigramus
lunatus e Anchoviella carrikeri.
As formas das curvas de abundância
relativa variam entre 1981 e 2008.
Em 1981, percebe-se uma curva com
maior equitatividade entre espécies e
uma cauda mais comprida que poderia
indicar que muitas das espécies
foram referidas pela captura de um só
indivíduo. Isso também é evidente em
2008, contudo com menos casos desse
tipo. Os aspectos mais chamativos
dessa comparação são o grande
crescimento de Odontostilbe sp. que, em
1981, ocupava um lugar intermediário,
enquanto que em 2008 é uma das
dominantes. Esse mesmo caso se vê na
terceira dominante em 2008, o pequeno
Engraulidae, Anchoviella carrikeri, que, em
1981, tinha uma abundância não muito
alta.
Pelo que se pode observar nas curvas
da categoria abundância, as espécies
que não foram registradas em 2008
ocupavam
lugares
intermediários,
enquanto que as espécies que foram
registradas só em 2008 ocupam as
posições mais baixas (Figura 4). Isso é
comprovado pelo cálculo dos valores
intermediários da abundância relativa
(expressa como logaritmo da abundância
relativa ou pi). Mediante esses cálculos,
pode-se observar que em 1981 a média
geral de todas as espécies é maior que
em 2008.
Realizando esse mesmo cálculo com
as abundâncias das espécies que não
foram registradas em 2008, vemos que
seus valores são intermediários e muito
próximos do valor geral. Esse valor é
muito similar ao valor intermediário
das abundâncias das espécies em
2008. O valor mais baixo em relação
à abundância relativa corresponde às
espécies que foram referidas somente
em 2008 (Figura 5).
Rarefação
Mediante a análise de rarefação, podemse observar duas curvas com cerca de
10% de diferença entre 1981 e 2008.
Nessas curvas, pode-se notar que,
se em 2008 se capturasse a mesma
quantidade de indivíduos que em 1981,
teriam sido registradas somente 80
espécies. Fazendo a análise inversa,
se em 1981 houvesse sido capturada a
mesma quantidade de espécimes que
em 2008, o número de espécies poderia
chegar a 120. Esse número é próximo
do número total de espécies registradas
entre ambos os estudos (129 espécies)
(Tabela 1). Em nenhum dos casos as
curvas chegam a uma assíntota, o que
quer dizer que ainda que não se tenha
conseguido capturar mais indivíduos em
2008, há uma parte da comunidade que
não foi registrada.
Das espécies que não foram registradas
em 2008, o que chama a atenção é
que a espécie com maior abundância
em 1981, Hyphessobrycon rosaceus, é
uma das que não é mencionada. Entre
essas espécies “perdidas” se encontram
as
espécies
com
abundâncias
intermediárias, como Serrapinnus piaba,
Hyphessobrycon heterorhabdus, Parecbasis
cyclolepis e Pyrrhulina brevis.
110
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
1981
-0.5
HYPROS †
2008
ODOSP
HEMLUN §
ANCCAR
-1
HEMUNI
SERPIA †
PRIFIL
TRIANG
APISP
GASSTE MOEINT
CTEHAU
-1.5
CURMEY
MESFES
PRIFIL
HYPHET †
GASSTE
MOEINT
CTEHAU
PSERUT §
PARCYC †
PIMMAC
PIMMAC
PYRVIT
GEOSUR SYNMAR †
CHESP §
PYRBRE †
§ MOEOLI POTALT §
PRONIG
MOESAN ANCCAR
APISP
ROEMYE HOPMAL
DORPUN §
HEMUNI
APHSP PRONIG
MESFES
SATJUR
ODOSP CYPSPI †
LORMAC
CRELEP PRICAL† †
AUCAMB CURMEY HYDSCO§
THOSTE CREPUN
ACHACH
RHAVUL
TRAGAL PHESP§
†
DORSP
HYPSP GYMTHA
MYLDUR
TRIPALB
SORLIM
PIMSP LEPFAS †
HYPSP
§ HEMUNI
LORMAC PTEMUL
RHAVUL
§ PLASQUA
ACHACH
CICPLE MOESAN HYPMEG §
CHAGIB BRAORB †
HOPMAL
†
GEOSUR
TRAGAL
§ PELFLA
POTEIG HEMACI
CICPLEI
PIMSP SERSPI
POTMOT
†
SCHFAS
POTLAT
TRAPAR §
CICBOL
PSETIG §
LEPPAR †
MYLDUR
STEMAC
§ PYGNAT SERHUM §
PSEUFAS
POTMOT EIGVIR
TRIANG
PTEDIS §
†
HOPLIT
CRESEM
HYPTHO §
COLMAC
HYPGUL
CRELEP
CRESEM
GYMCAR
SERRHO
† CHAERY
§ LEPTRI
EIGVIR
TETARG
HEMPLA
† PLATCOS
PTELIT
† POTLAT
§ ANCSP
OXYNIG §
† STEELE
§
MOESP
APHSP §
HOPUNI
PELFLA † LORCAT †
ARAGIG §
PIABRA
PTEGIB † PARALB †
SERRHO
PTEGRA † POTEIG †
†
BRYCSP
†
†
RHAQUE
PYRVIT
SALAFF
† GYMTER
CHAGIB
STEBIM †
SCHFAS
PSEFAS
ACEFAL RHYLAU
§ PTESP
† MIKALT
SORLIM
PIABRA
† EIGMAC
AGEINE
TRIALB
AGEINE
† METLIP
BRYAMA § POTHIS §
COLMAC GYMCAR
CICBOL
PERPER
HYPEDE § RHAROS §
§ OPSBOU
HEMPLA PLASQU
OCHSP § PERPER §
THOSTE
PHRHEM AUCAMB
SERSP § TRISP §
ROEMYE
RHYLAU
ROEBIS § PTEMUL
§ ROEAFF
BUNCOR § POTBRA
LEIMAR § ACEFAL
OTOVES § TETARG
SATJUR
-2
-2.5
-3
-3.5
-4
-4.5
Posición de las especies según su abundancia
Figura 4 - Curvas de abundâncias relativas para as espécies referidas em 1981 (G) e em 2008 (u) na Lagoa
Tumichucua. As espécies presentes em 1981 e que não foram registradas em 2008 estão marcadas com
(†), e as espécies que foram registradas somente em 2008, com (§).
111
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 5 - Valores intermediários da abundância (expressa como logaritmo da proporção
relativa) de todas as espécies em 1981 e 2008, das espécies que não foram encontradas em
2008 (†) e das que somente foram registradas em 2008 (§).
Figura 6 - Rarefação da diversidade de peixes da Lagoa Tumichucua para os estudos de
1981 e 2008.
112
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Tabela 1 - Resumo dos indicadores comparativos entre 1981 e 2008.
Indicador
1981
2008
3638
8775
Total famílias
26
28
Total espécies
Número esperado de espécies com rarefação a 3638 ind.
88
88
95
81
Máximo de espécies possível (Chao1)
90,6
97,3
Índice de diversidade Shannon (H’)
1,34
1,15
H’ ponderado
1,33
1,15
Equitatividade (E)
0,69
0,58
-
~ 76
Abundância total (número total de indivíduos capturados)
Número de pirarucus registrados mediante contagens
Total Famílias (1981+2008)
31
Total Espécies (1981+2008)
129
Espécies próprias de 1981
34
Espécies próprias de 2008
41
Total famílias ausentes 1981
5
Total famílias ausentes 2008
3
Coeficiente Comunitário (1981-2008) (CC)
0,59 (59 %)
Similaridade proporcional entre 1981 e 2008 (SP)
0,23 (23%)
Índice de similaridade de Jaccard
0,42 (42%)
Índices de diversidade e composição de
espécies
Foram aplicados vários índices de
diversidade para medir a variação
entre os resultados de 1981 e 2008. O
índice de Shannon-Weiner (H’) indica
uma pequena redução da diversidade
em 2008 de 1,34 para 1,15. O mesmo
ocorre, como consequência, com a
equitatividade (E) que diminui de 0,68
para 0,59. A Similaridade proporcional
(SS) indica que as comunidades
registradas em 1981 e em 2008 são
similares em somente 23%. Enquanto
que, levando em conta somente as
espécies comuns e exclusivas em
cada ano, a similaridade, com base
no Coeficiente Comunitário, é de 60%
(Tabela 1); por outro lado, levando
em conta a similaridade, com base na
quantidade de espécies próprias para
cada ano (Jaccard), chega-se a 42% de
similaridade. Mediante a estimativa
Chao1, com os dados do estudo de
Swing (1981), pôde-se estimar o máximo
de 90,6 espécies prováveis, com base em
sua estrutura de espécies observadas,
enquanto que, no estudo de 2008, foi
estimado um máximo de 97,3 espécies.
Proporções das Guildas Tróficas
Em ambos os anos, as proporções por
guildas tróficas, tanto no número de
113
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
indivíduos como no de espécies, têm um
comportamento similar: predominância
dos
invertívoros,
seguidos
dos
piscívoros e algívoros. Em ambos os
anos, as guildas menos presentes são os
detritívoros e os parasitas. Em 2008, é
destacado um crescimento significativo
na abundância proporcional de algívoros/
iliófagos e de zooplantívoros com
relação a 1981. Por outro lado, há uma
redução na abundância proporcional
dos invertívoros, principalmente na
sua abundância proporcional. Quanto
à riqueza, não se observa uma grande
diferença; somente uma redução no
número de espécies de invertívoros e
um crescimento pequeno dos piscívoros,
tanto primários como secundários
(Figura 7).
Contagem de pirarucus por tipo de
água
Foi determinada a presença de aproximadamente 76 pirarucus, dos quais
27 ± 1 eram adultos (quer dizer, com
mais de 1,5 m de comprimento) e 49 ±
1 eram jovens (com menos de 1,5 m de
comprimento). Percebeu-se uma maior
preferência dos pirarucus pela área mediana da lagoa (entre os pontos J, N, I,
O, H e G) (Figura 8), com uma clara predominância de águas mistas (Figura 8).
Figura 7 - Variação das proporções (%) na abundância total (acima) e no número de espécies (abaixo) por
cada guilda trófica identificado na Lagoa Tumichucua entre 1981 (barras brancas) e 2008 (barras pretas).
114
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Figura 8 - Variação da média da riqueza entre 1981 (barras brancas) e 2008 (barras pretas) e do número
de pirarucus observados (barras cinzas), de acordo com o tipo de água.
Relacionando essa variação com a
riqueza intermediária observada entre
os pontos de amostra em águas brancas
e entre os pontos com águas mistas,
pode-se observar que, em 1981, os
pontos com águas mistas possuíam
maior riqueza que os pontos com águas
brancas. O oposto ocorre em 2008, em
que a riqueza é maior nos pontos com
águas brancas. Essa variação poderia
estar vinculada à preferência do
pirarucu por águas pretas.
Mudanças na abundância e riqueza de
espécies comerciais
Não foi observada uma redução da
abundância e da riqueza das espécies que
têm importância comercial. Contudo,
pelo contrário, em geral, percebe-se um
crescimento na proporção do número
desse grupo em relação ao total de
capturas entre 1981 e 2008 (Tabela 2).
Discussão
Um dos pressupostos mais amplamente
difundidos sobre os potenciais impactos
das espécies invasoras sobre a ictiofauna
é a redução de espécies nativas (CETRA;
PETRERE Jr., 2001; SCHOENER et al.,
2001). Geralmente, as espécies invasoras
modificam a estrutura da comunidade,
fazendo com que muitas espécies se
desloquem ou que sejam exterminadas
de seu hábitat natural (DEJOUX;
ILTIS, 1992; LATINI; PETRERE, 2004).
As espécies de peixes introduzidas
podem causar alterações no hábitat,
na estrutura das comunidades, podem
produzir hibridação, seguida da perda
do patrimônio genético original, com
a consequente alteração trófica e a
introdução de enfermidades e parasitas
(TAYLOR et al., 1984; PATRICK, 2000).
115
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Tabela 2 – Capturas totais das espécies com maior importância comercial na Lagoa Tumichucua em
1981 e 2008. São indicadas as proporções (%) dessas espécies em relação ao total de indivíduos
capturados em ambos os estudos.
Espécie
1981
(%)
2008
(%)
Brycon spp.
2
0,05
1
0,03
Chalceus erythrurus
3
0,08
---
0,00
Cichla pleizona
7
0,19
25
0,69
Colossoma macropomun
1
0,03
10
0,27
Hemisorubim platyrhynchos
1
0,03
6
0,16
Leiarius marmoratus
---
0,00
1
0,03
Pellona flavipinnis
1
0,03
17
0,47
Phractocephalus hemioliopterus
1
0,03
---
0,00
Piaractus brachypomun
1
0,03
5
0,14
Plagioscion squamosissimus
1
0,03
31
0,85
Prochilodus nigricans
24
0,66
62
1,70
Pseudoplatystoma punctifer
4
0,11
2
0,05
Pseudoplatystoma tigrinum
---
0,00
9
0,25
Sorubim lima
1
0,03
34
0,93
Salminus affinis
1
0,03
---
0,00
Totais
48
1,32
203
5,58
Total Espécies
13
12
Sem dúvida, o tipo de dieta e a
agressividade da espécie invasora
influem
determinantemente
no
impacto sobre as espécies nativas
(PATRICK, 2000; PÉREZ et al., 2004).
Algumas espécies exóticas podem
apresentar dificuldades para se adaptar
a um novo meio, principalmente pelas
suas características reprodutivas.
Em outras, pela falta de estratégias
de
proteção,
restringindo
sua
distribuição
(FLEMING;
GROSS,
1993). Nesse sentido, uma espécie
introduzida para ser invasora deveria
ter a capacidade de se estabelecer em
um período de tempo inferior ao que
leva qualquer espécie da fauna nativa
durante seu processo evolutivo. Este
parece ser o caso do pirarucu na
Bolívia, que, apesar de não ter um
ambiente totalmente propício para
seu desenvolvimento, conseguiu se
estabelecer, talvez graças ao fato de
que não existiam os fatores naturais
que controlassem seu crescimento.
De acordo com a rarefação calculada
para 3.638 indivíduos, a quantidade
capturada em 1981 se reduziu em
cerca de 10% no número de espécies
estimadas em 2008. É necessário levar
em conta, também, que a soma das
diferenças encontradas entre 1981 e
2008 pode ser causada por três fatores:
a) artefatos da amostra, b) mudanças na
comunidade íctica, e c) entrada contínua
de indivíduos de diferentes espécies
devido às cheias do Rio Beni.
116
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Artefatos de amostra
Os dados mostrados de 1981 não são
totalmente claros quanto à metodologia
usada e o detalhe de quais espécies
foram capturadas com cada tipo de
amostra e qual o esforço usado com
cada artefato (SWING, 1985). Agrega-se
a isso o fato de que dificilmente se têm
as mesmas condições de amostra, pelo
que a amostra será sempre um fator a
se considerar nas variações observadas,
apesar de que, para as comparações
entre os dados de ambos os anos, foram
usados os mesmos métodos em ambos
os estudos e foram respeitados os
mesmos pontos de amostra. O tempo de
amostra poderia também ser um fator
determinante, uma vez que no estudo
de 1981 ficou indicado que foram 75
dias (baseados no tempo mencionado
por Swing (1985), mas não indicam os
tempos e dias efetivos de pesca), e em
2008 foram 10 dias inteiros; portanto, o
tempo foi em torno de 65 dias a menos
que em 1981. Ainda assim, em 2008, foi
capturado quase o dobro de indivíduos
que em 1981.
Mudanças na comunidade íctica
A rarefação indica que em ambos os
estudos, apesar da diferença no número
de indivíduos capturados, chegou-se
a um total de espécies de 88 e de 95,
que diminuem em 7 espécies, contudo,
fazendo a análise em função do menor
número de indivíduos capturados
(3836 em 1981), o número de espécies
esperadas se reduz em cerca de 10%.
Isso está respaldado pela estimativa
de riqueza Chao 1, com a qual se pôde
determinar que o máximo de espécies
prováveis para 1981 foi de 90, enquanto
que para 2008 esse máximo foi de 97.
Por isso, poderíamos assumir que as
composições registradas em ambos
os anos correspondem à riqueza da
comunidade que se poderia registrar.
Nesse sentido, fica faltando, portanto,
decifrar o porquê das diferenças
registradas. Segundo o índice de
diversidade de Shannon, existe uma
diminuição da diversidade de 1,34 (em
1981) para 1,15 (em 2008). É difícil
mensurar a significação dessa variação
sem levar em conta a abundância de cada
uma das espécies. Em estudos da área,
esse índice flutua entre 1,4 (TEDESCO et
al., 2005) e 3,8 (SAINT-PAUL et al., 2000).
Então esses valores corresponderiam a
valores entre baixos e intermediários
em relação às comunidades de
peixes na Amazônia. A equitatividade
também diminui entre ambos os anos,
de 0,69 para 0,58, mas fazendo um
cálculo para separar a contribuição
da riqueza específica e da estrutura
da comunidade na diversidade alfa,
percebe-se que ambas as comunidades
não apresentam grande variação (4,1
e 4,0, respectivamente). Essas análises
de diversidade não indicam grandes
diferenças de diversidade entre ambos os
estudos. Em alguns trabalhos, nos quais
se faz uso desses índices, constatou-se
que em uma mesma lagoa a variação
entre sua diversidade entre uma e
outra época de seca não foi significativa
(ESPÍRITO-SANTO et al., 2009). No nosso
caso, a variação temporal não deveria ser
um fator determinante nas diferenças
encontradas, uma vez que a amostra de
2008 foi na mesma época em que foi
realizada a amostra em 1981, a época
seca. Nessa época, a Lagoa Tumichucua
117
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
se caracteriza por seu isolamento
completo. Sem dúvida, para um melhor
entendimento da estrutura natural das
comunidades de forma natural e com a
presença de um fator externo como uma
espécie exótica, seria ideal fazer um
seguimento por vários ciclos hídricos
completos.
A proporção dos principais grupos
taxonômicos com relação ao número
de espécies presentes na lagoa tanto
em 1981 como em 2008 corresponde
ao que geralmente se esperaria
encontrar em lagoas da região
(POUILLY et al., 2004). Entretanto,
é interessante notar que em 2008 a
proporção dos Characiformes se reduz
em 7%, enquanto que a dos Siluriformes
aumenta em quase 8%. Assim como os
Characiformes, os Perciformes diminuem
proporcionalmente. Geralmente, esse
tipo de variação pode estar muito
relacionado aos efeitos da amostra.
Muitos dos Siluriformes eram pequenos.
As espécies mais abundantes em 2008
pertencem ao grupo dos caracídeos
pequenos e os engraúlidos, geralmente
invertívoros e zooplanctófagos, que
se constituem em presas de piscívoros
de porte médio (15 a 30 cm) a grande
(>30 cm). Talvez esse aumento nesses
grupos se deva à diminuição da
abundância e/ou da riqueza de outras
espécies. De acordo com a análise por
guildas tróficas, o mais destacável é o
aumento da abundância de alguns dos
grupos mais baixos das redes tróficas
(zooplantófagos e invertívoros). Essa
observação pode estar relacionada à
redução dos predadores desses grupos
(VITULE et al., 2009).
As mudanças espaço-temporais das
comunidades estão, de certa forma,
começando a ser estudadas e abordadas.
As comunidades das lagoas são muito
mais estáveis que as dos poços e rios,
devido ao tipo de espécies que se
hospedam e pela diferente conectividade
que têm e pelas facilidades de amostra.
E essa conectividade é determinante
para a estabilidade das mesmas. Isso foi
mostrado em vários estudos em que se
percebeu que as lagoas mais distantes do
leito principal dos rios são mais estáveis
quanto à sua composição (RODRÍGUEZ;
LEWIS, 1994; RODRIGUEZ; LEWIS JR.,
1997; POUILLY; RODRÍGUEZ, 2004;
MIRANDA-CHUMACERO;
BARRERA,
2005). A Lagoa Tumichucua se
caracteriza por uma relativa constância
no tempo, por estar um pouco acima
do leito principal. Em resumo, essas
mudanças, se têm variações temporais
fortes, a cada ano voltam a se estruturar
de forma mais ou menos similar.
Assumindo isso, e considerando que
a pressão de pesca tem sido similar
desde então, as diferenças que aqui
mostramos poderiam ser atribuídas a
um fator externo.
De acordo com o que foi observado,
existe uma maior preferência do
pirarucu por lugares com águas
mistas, os quais refletem uma maior
quantidade de indivíduos registrados
nesses lugares. Relacionando isso com
a abundância e a riqueza de espécies,
vemos também nos pontos com águas
mistas que diminuem, contrariamente
ao que geralmente se tem encontrado
em outros estudos, naqueles em que
a diversidade é ligeiramente maior em
águas pretas que em brancas (SAINTPAUL et al., 2000). Isso poderia indicar
uma regionalização ao interior da Lagoa
de Tumichucua, que corresponderia à
predominância dos tipos de água, em
função dos quais os pirarucus teriam
118
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
maior ou menor influência sobre as
espécies nativas.
Os índices de similaridade usados,
que levam em conta vários princípios
de comparação (número de espécies
comuns, número de espécies exclusivas
em cada estudo ou número total
de espécies), em geral indicam que
entre 1981 e 2008 a similaridade não
supera 60%. O índice de similaridade
proporcional que leva em conta as
espécies que são exclusivas em cada
estudo é o que menor similaridade
produz com somente 23%.
Entrada contínua de espécies pelas
cheias
De acordo com a topografia da lagoa,
o extremo nordeste é o que entra em
contato com as águas do Rio Beni,
mas somente em episódios de cheias
extremas. Foi exatamente segundo
a versão dos mesmos povoados de
Tumichucua, que, na cheia de 1997, o
pirarucu chegou à lagoa. Possivelmente,
em algumas cheias, ainda que
aparentemente não tenham sido
consideradas como cheias extremas
históricas, outras espécies pequenas
de peixes podem ter chegado do rio,
permitindo que as espécies fossem
sendo repostas constantemente.
A riqueza aumenta, mas e a abundância?
Em função dos resultados encontrados,
surgem duas perguntas: Por que a
presença do pirarucu deveria afetar as
comunidades de peixes nativas?, se 1)
é uma espécie que em outros lugares
da Amazônia convive com as mesmas
espécies ou com outras similares e 2) é
uma espécie que tem exigências muito
particulares em relação ao hábitat,
que, com sua importância econômica,
foi posta em perigo em outras regiões
da Amazônia?. A resposta a ambas as
perguntas pode estar relacionada ao
afastamento evolutivo, produto das
corredeiras do Rio Madeira. Essas
barreiras naturais isolaram as espécies
nativas do rio acima da presença de
Arapaima gigas por milhões de anos.
Esse isolamento, certamente, fez com
que as espécies evoluíssem em seu
comportamento de uma forma diferente
da das populações das mesmas espécies
rio abaixo.
Os sistemas aquáticos em que A. gigas
evoluiu na Amazônia se caracterizam
por enormes áreas de inundação, nas
quais a água entra pelo bosque e no qual
a produtividade auxilia na existência de
centenas de espécies que fazem uso
desses fenômenos anuais para chegar
a lugares de alimentação e onde a
disponibilidade de refúgios é muito
maior que na bacia alta do Rio Madeira.
Esses fenômenos são menos marcados
na Amazônia Boliviana e menos ainda na
bacia do Rio Beni.
Existe um princípio em ecologia que
consiste em que as comunidades com
maior diversidade são mais fortes a
perturbações frente às comunidades
com poucas espécies (MARCHETTI et
al., 2004). Essa “fortaleza” pode ser
traduzida na resistência às espécies
invasoras, mudanças na riqueza não
significativa e modificações na sua
abundância (MARCHETTI et al., 2004).
De acordo com os dados que foram
levantados nesse estudo, as espécies
que não estão presentes são geralmente
predadoras de espécies pequenas
(POUILLY et al., 2004; POUILLY et
al., 2006). Essas espécies puderam
manter suas presas com abundâncias
relativamente baixas, e, pela presença
de populações de pirarucus, puderam
119
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
deixar este rol, fazendo com que, por
uma questão de espaço e recursos, as
espécies presas aumentem e as posições
de dominância mudem entre 1981 e
2008, por efeito da diminuição de suas
populações.
Outro aspecto que pode estar indicando
um papel de controle sobre o pirarucu
é o uso desse recurso pela comunidade
de Tumichucua, por ser agora uma das
espécies mais valorizadas no comércio
local (CARVAJAL-VALLLEJOS et al., 2011).
A estrutura de uma comunidade íctica
responde a uma série de filtros que
determinam que espécies possam
estar presentes em uma determinada
área ou região (Figura 9). Isso foi
amplamente estudado e aplicado em
vários estudos (TONN et al., 1990;
RAHEL, 2002; POUILLY et al., 2004).
No caso da região da Lagoa Tumichucua,
a riqueza regional amazônica boliviana
é de até umas 900 espécies (IBISCH,
2003; POUILLY et al., 2010), dentre as
quais 250 estão presentes no Rio Beni
(MIRANDA-CHUMACERO . in prep.) e se
estima que umas 140 a 150 pertencem
a sistemas lacustres (LAUZANNE;
LOUBENS 1985; LAUZANNE et al.,
1991; POUILLY et al., 2004; MIRANDACHUMACERO; BARRERA, 2005). Na
Lagoa Tumichucua, foram registradas
95 espécies, riqueza que, inclusive,
encontra-se acima de outras lagoas da
região com características similares
(POUILLY et al., 2004).
A análise efetuada sobre a média das
abundâncias das espécies que se “perderam” e as que “apareceram” em 2008
indica dois aspectos: 1) as espécies
Figura 9 - Representação esquemática sobre o suposto processo em que o pirarucu modificou
a estrutura e a abundância das espécies nativas na Lagoa Tumichucua, levando em conta a série de
filtros modificados a partir de Tonn et al. (1990) que determinam a riqueza local. O tamanho das gotas
representa a abundância relativa das espécies.
120
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
que não foram registradas se encontram com abundâncias intermediárias
em relação a toda a comunidade – isso
demonstra que a mudança, não necessariamente, se deu nas espécies menos
abundantes ou mais raras; 2) o valor médio das abundâncias das espécies que
foram registradas somente em 2008 é o
mais baixo de todos, isso poderia significar que em 2008 se pôde capturar uma
maior proporção de espécies raras.
Essa análise leva a pensar que, apesar de
os valores de riqueza parecerem constantes entre ambos os anos, as espécies
que compõem esta comunidade são diferentes. O mesmo se dá com as abundâncias, que variam, de forma extrema,
em alguns casos, contudo permanecendo e sendo parte da comunidade.
Dificuldades taxonômicas
Um dos grupos em que há os maiores
problemas taxonômicos é nos peixes
(LUNDBERG, 2001). Isso se traduz em
constantes revisões que se agrupam,
reagrupam,
dividem,
mudam,
renomeiam, descrevem e redescrevem
espécies
constantemente.
Essa
dinâmica, em muitos casos, chega a tal
magnitude como a fusão de cerca de 50
espécies nominais em uma só, Rhamdia
quelem (REIS et al., 2003) e a descrição
de uma média de 35 espécies por ano
na Amazônia (LUNDBERG, 2001). Para
efeitos de uma comparação sistemática
e que possam produzir conclusões
mais ou menos conclusivas e da qual
possa surgir decisões, deve-se levar em
conta uma grande suposição: de que os
nomes das espécies refletem as espécies
biológicas que estão presentes em
determinado lugar; neste caso, a Lagoa
Tumichucua. Ao revisar a lista original
das espécies de peixes mencionadas
no estudo, que é a base de comparação
do presente, nós nos encontramos com
espécies que, por revisões, mudarão
de nome ou foram agrupadas a outras.
Essas mudanças foram rastreadas
para cada uma das espécies e se
puseram os nomes válidos para efeitos
de comparação. Neste momento, é
necessário indicar que, se as espécies
foram bem identificadas, se ocorrer uma
mudança em sua sistemática, colocar o
nome pode ser tão fácil como mudar
uma etiqueta, mas se houver mudanças
nos que se dividem em espécies, nomear
corretamente inclui a revisão de cada
indivíduo capturado.
CONCLUSÃO
Estabelecer índices de medição dos
impactos de uma espécie invasora
em uma comunidade íctica como a da
Lagoa Tumichucua não é tão fácil como
determinar as variações na riqueza da
mesma em um antes e um depois, pelo
que é necessário analisar a estrutura
dessas espécies quanto a seus Guilda,
a abundância de cada espécie e,
sobretudo, as flutuações temporais.
Por
conseguinte,
pelos
dados
mencionados
neste
trabalho,
poderíamos concluir que: i) não foram
registradas 31 espécies que tinham
sido registradas em 2008; ii) foram
observadas mudanças na abundância
das espécies; iii) poder-se-ia assumir
que exista mais impacto em regiões
com águas pretas que com brancas;
iv) é possível que estejam ocorrendo
modificações na abundância dos Guilda
de peixes invertívoros; v) estar-se-ia
121
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
incrementando a abundância e a riqueza
de espécies zooplantófagas e iliófagas;
vi) aparentemente não existiriam maiores
mudanças na presença e na abundância
das espécies usadas tradicionalmente
na pesca comercial; vii) características
biológicas como tamanho e idade da
primeira maturação sexual aliada a
grande pressão de pesca e viii) podese concluir que os dois estudos são
complementares quanto à determinação
do número total de espécies que podem
estar presentes na Lagoa Tumichucua.
Por tudo isso, poderíamos admitir que
a presença do pirarucu, em algumas
lagoas grandes, como na de Tumichucua,
com grande quantidade de espécies e
micro-hábitats e, portanto, uma elevada
riqueza, uma conectividade cíclica, e
com diferentes profundidades, produz
mudanças que não se traduzem na perda
significativa da biodiversidade, mas sim
em fortes mudanças na estrutura da
comunidade de peixes. Essa mudança
na estrutura da comunidade pode ter
efeitos em longo prazo que dificilmente
podem ser analisados com uma avaliação
inicial como a que foi feita neste estudo.
Sem dúvida, a presença do pirarucu em
lagoas como esta pode ser benéfica
do ponto de vista econômico. A pesca
controlada dessa espécie, além de gerar
benefícios interessantes, como já ocorre
na Comunidade de Tumichucua e na
TCO Tacana II, poderia ajudar a financiar
sistemas de automonitoramento da
pesca na comunidade, mediante o
qual poderiam ser tomadas decisões
temporais para conservar a ictiofauna
e manter um equilíbrio entre o
aproveitamento das espécies nativas e
de Arapaima gigas.
AGRADECIMENTOS
Este projeto foi apoiado pelo Instituto
de
Desenvolvimento
Sustentável
Mamirauá - IDSM (Brasil) e WCS Bolívia,
em colaboração com o Instituto de
Ecologia da Universidade Maior de San
Andrés, graças ao financiamento da
Moore Foundation. Este projeto não
teria sido possível sem a ajuda logística
do Primeiro Distrito Naval de Riberalta.
Um sincero agradecimento aos Caps.
Calla e Pedraza e ao nosso querido,
divertido e incondicional, Suboficial
Celso Quispe por seu valioso apoio na
pesca e como motorista . Aos cidadãos
que apoiaram a pesca: o Sr. Ricardo
Yamara, Jesús Batte, Francisco Farfán,
Jonás Yamara, Danny Farfán e Meraldo
Beyuma. Às diferentes autoridades
da Comunidade Tumichucua por seu
apoio: Armando Beyuma (Presidente da
OTB), Luis Melgar (Corregedor). À Sra.
Ana Rivero, por sua deliciosa comida.
Ao Sr. Saúl Farfán, por nos apoiar com
o gerador; e ao Sr. Gerardo Imanoreco,
pela moradia durante nossa estada. E
a toda a comunidade em geral, por seu
apoio e colaboração no desenvolvimento
do projeto e por ter compartilhado
conosco sua grande experiência.
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Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Anexo 1
Lista das espécies de peixes capturadas tanto em 1981 como em 2008. Ressalta-se que
as espécies que não foram capturadas em 2008 e em 1981 com (†), x significa que a
espécie estava presente.
Familia
Especie
Codigo
1981
2008
Achiridae
Achirus achirus
ACHACH
x
x
Ageneiosidae
Ageneiosus inermis
AGEINE
x
x
Anostomidae
Leporinus fasciatus
LEPFAS
x
†
Leporinus trifasciatus
LEPTRI
†
x
Rhytiodus lauzannei
RHYLAU
x
x
Schizodon fasciatus
SCHFAS
x
x
Arapaimidae
Arapaima gigas
ARAGIG
†
x
Aspredinidae
Bunocephalus coracoideus
BUNCOR
†
x
Auchenipteridae
Auchenipterus ambyiacus
AUCAMB
x
x
Trachelyopterus galeatus
TRAGAL
x
x
Belonidae
Potamorrhaphis eigenmanni
POTEIG
x
x
Callichthyidae
Hoplosternum littorale
HOPLIT
x
†
Characidae
Acestrorhynchus falcatus
ACEFAL
x
x
Aphyocharax sp.
APHSP
x
x
Brachychalcinus orbicularis
BRAORB
x
†
Brycon amazonicus
BRYAMA
†
x
BRYSP
x
†
Brycon sp.
Chalceus erythrurus
CHAERY
x
†
Charax gibbosus
CHAGIB
x
x
Cheirodon sp.
CHESP
†
x
CTEHAU
x
x
Gymnocorymbus ternetzi
GYMTER
x
†
Gymnocorymbus thayeri
GYMTHA
x
†
Hemigrammus lunatus
HEMLUN
†
x
Hemigrammus unilineatus
HEMUNI
x
x
Hyphessobrycon heterorhabdus
HYPHET
x
†
Hyphessobrycon megalopterus
HYPMEG
†
x
Hyphessobrycon rosaceus
HYPROS
x
†
Metynnis lippincottianus
METLIP
x
†
Moenkhausia intermedia
MOEINT
x
x
Ctenobrycon hauxwellianus
126
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Familia
Especie
Codigo
2008
Moenkhausia oligolepis
MOEOLI
†
x
Moenkhausia sanctaefilomenae
MOESAN
x
x
Moenkhausia sp.
MOESP
†
x
Odontostilbe sp.
ODOSP
x
x
Paragoniates alburnus
PARALB
x
†
Parecbasis cyclolepis
PARCYC
x
†
Phenacogaster sp.
PHESP
†
x
Prionobrama filigera
PRIFIL
x
x
Pristobrycon calmoni
PRICAL
x
†
Roeboides affinis
ROEAFF
†
x
Roeboides biserialis
ROEBIS
†
x
Roeboides myersii
ROEMYE
x
x
Salminus affinis
SALAFF
x
†
Serrapinnus piaba
SERPIA
x
†
Serrasalmus sp.
SERSP
†
x
TETARG
x
x
Triportheus albus
TRIALB
x
x
Triportheus angulatus
TRIANG
x
x
Apistogramma sp.
APISP
x
x
Cichla pleizona
CICPLE
x
x
Cichlasoma boliviense
CICBOL
x
x
Crenicara punctulatum
CREPUN
x
†
Crenicichla lepidota
CRELEP
x
x
Crenicichla semicincta
CRESEM
x
x
Geophagus surinamensis
GEOSUR
x
x
Mesonauta festivus
MESFES
x
x
Mikrogeophagus altispinosus
MIKALT
x
†
Tetragonopterus argenteus
Cichlidae
1981
Satanoperca jurupari
SATJUR
x
x
Clupeidae
Pellona flavipinnis
PELFLA
x
x
Curimatidae
Curimatella meyeri
CURMEY
x
x
CYPSPI
x
†
Cyphocharax spilurus
Potamorhina altamazonica
POTALT
†
x
Potamorhina laticeps
POTLAT
x
†
Potamorhina latior
POTLAT
x
†
127
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Familia
Cynodontidae
Doradidae
Especie
Codigo
1981
2008
Psectrogaster rutiloides
Steindachnerina bimaculata
PSERUT
†
x
STEBIM
x
†
Steindachnerina elegans
STEELE
x
†
Hydrolycus scomberoides
HYDSCO
†
x
Rhaphiodon vulpinus
RHAVUL
x
x
Doras punctatus
DORPUN
†
x
DORSP
†
x
Opsodoras boulengeri
OPSBOU
†
x
Oxydoras niger
OXYNIG
†
x
Platydoras costatus
PLACOS
x
†
Pterodoras granulosus
PTEGRA
x
†
Doras sp.
Trachydoras paraguayensis
TRAPAR
†
x
Engraulidae
Anchoviella carrikeri
ANCCAR
x
x
Erythrinidae
Hoplerythrinus unitaeniatus
HOPUNI
x
†
Hoplias malabaricus
HOPMAL
x
x
Gasteropelecus sternicla
GASSTE
x
x
Gasteropelecidae
Thoracocharax stellatus
THOSTE
x
x
Gymnotidae
Gymnotus carapo
GYMCAR
x
x
Hemiodidae
Hemiodus unimaculatus
HEMUNI
†
x
Hypophthalmidae
Hypophthalmus edentatus
HYPEDE
†
x
Pyrrhulina brevis
PYRBRE
x
†
Pyrrhulina vittata
PYRVIT
x
x
Lepidosirenidae
Lepidosiren paradoxa
LEPPAR
x
†
Loricariidae
Ancistrus sp.
ANCSP
†
x
Hemiodontichthys acipenserinus
HEMACI
†
x
Hypoptopoma gulare
HYPGUL
x
†
HYPTHOR
†
x
Lebiasinidae
Hypoptopoma thoracatum
HYPSP
x
x
Loricaria cataphracta
LORCAT
x
†
Loricariichthys maculatus
LORMAC
x
x
Otocinclus vestitus
OTOVES
†
x
Hypostomus sp.
Pterygoplichthys disjunctivus
PTEDIS
†
x
Pterygoplichthys gibbiceps
PTEGIB
x
†
Pterygoplichthys lituratus
PTELIT
†
x
128
Efeitos na ictiofauna da Lagoa Tumichucua (Norte da Bolívia) depois da entrada do pirarucu Arapaima gigas (SCHINZ, em CUVIER, 1822)
• Guido Miranda-Chumacero • Kelven Lopes • Yuba Sánchez • Helder L. Queiroz • Jaime Sarmiento
Familia
Especie
Codigo
1981
2008
Pterygoplichthys multiradiatus
PTEMUL
x
x
PTESP
†
x
Hemisorubim platyrhynchos
HEMPLA
x
x
Leiarius marmoratus
LEIMAR
†
x
Perrunichthys perruno
PERPER
x
x
Phractocephalus hemioliopterus
PHRHEM
x
†
PIMSP
x
x
Pimelodus maculatus
PIMMAC
x
x
Pseudoplatystoma punctifer
PSEPUN
x
x
Pterygoplichthys sp.
Pimelodidae
Pimelodella sp.
PSETIG
†
x
RHAQUE
x
†
Sorubim lima
SORLIM
x
x
Potamotrygon brachyura
POTBRA
†
x
Potamotrygon histrix
POTHIS
†
x
Potamotrygon motoro
POTMOT
x
x
Prochilontidae
Prochilodus nigricans
PRONIG
x
x
Scianidae
Plagioscion squamosissimus
PLASQU
x
x
Serrasalmidae
Colossoma macropomun
COLMAC
x
x
Mylossoma duriventre
MYLDUR
x
x
PIABRA
x
x
Pygocentrus nattereri
PYGNAT
†
x
Serrasalmus humeralis
SERHUM
†
x
Serrasalmus rhombeus
SERRHO
x
x
Serrasalmus spilopleura
SERSPI
†
x
Eigenmannia macrops
EIGMAC
x
†
Eigenmannia virescens
EIGVIR
x
x
RHAROS
†
x
Pseudoplatystoma tigrinum
Rhamdia quelen
Potamotrygonidae
Piaractus brachypomun
Sternopygidae
Rhamphichthys rostratus
Synbranchidae
Trichomycteridae
Sternopygus macrurus
STEMAC
†
x
Synbranchus marmoratus
SYNMAR
x
†
Ochmacanthus sp.
OCHSP
†
x
Trichomycterus sp.
TRICSP
†
x
129
A INTRODUÇÃO DE Arapaima cf. gigas NA AMAZÔNIA BOLIVIANA:
IMPACTOS NAS PESCARIAS, CADEIAS DE VALOR EMERGENTES
E PERSPECTIVAS PARA A GESTÃO COMUNITÁRIA
Fernando M. Carvajal - Vallejos1, 3, Alison Macnaughton2,
Claudia Coca1, Selín Trujillo4, Joachim Carolsfeld2,
Paul A Van Damme1
RESUMO
O Arapaima cf. gigas (paiche em espanhol
e pirarucu no Brasil) foi introduzido
no norte da Amazônia boliviana nos
anos 70. Esta pesquisa apresenta uma
visão geral de algumas das mudanças
que estão ocorrendo nas pescarias
comerciais locais 40 anos após essa
introdução. As pescarias podem ser
separadas em dois agrupamentos
gerais – com base urbana e rural –
dependendo da tecnologia utilizada,
as áreas de pesca e os pescadores
envolvidos. Foi realizado um estudo dos
desembarques comerciais (composição
e volumes) e características da cadeia de
valor durante o período de baixo nível
de água (agosto – setembro de 2011).
Os resultados demonstram que a pesca
comercial na região explorou mais de
25 espécies diferentes, com pirarucu
contribuindo 80% dos desembarques
totais de base urbana, e 35% dos
desembarques rurais. Foi constatado
que a cadeia de valor tem dois canais
principais inter-relacionados, um com
espécies nativas menores abastecendo
os mercados locais em Riberalta,
e outro com o Arapaima e algumas
espécies nativas maiores exportados
principalmente para os centros urbanos
na Bolívia (Santa Cruz, Cochabamba e La
Paz) e no Brasil. Pescarias artesanais da
Amazônia boliviana estão em transição,
em parte por causa da introdução do
pirarucu, mas também devido a outros
fatores. A participação rural na pesca
comercial está aumentando à medida
que o acesso rodoviário está sendo
aprimorado.
Os conflitos estão emergindo enquanto
territórios indígenas exigem seu direito
FAUNAGUA (Instituto de Pesquisas Aplicadas em Recursos Aquáticos), final Av. Max Fernández, s/n, zona
Arocagua Norte, Sacaba, Cochabamba, Bolívia. www.faunagua.org
2
World Fisheries Trust (WFT), 434, Russell St. Victoria B.C., Canadá V9A 3X3, telefone 1-250-380-7585.
www.worldfish.org
3
Unidad de Limnologia y Recursos Acuáticos (ULRA), Facultad de Ciencias y Tecnología (FCyT), Universidad
Mayor de San Simón (UMSS), Calle Sucre frente al parque La Torre, s/n, Cochabamba, Bolívia, telefone
(591 4) 4.235.622 . lab-ulra.com
4
FEUPECOPINAB, Riberalta, Bolívia
* Autor para correspondência: [email protected]
1
131
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
de pescar comercialmente, mudando
o padrão de acesso a recursos. Um
projeto integrado de pesquisa e
desenvolvimento da pesca na região
está em andamento. São consideradas
também algumas reflexões sobre
processos participativos na gestão de
pescarias e os meios de subsistência
locais em transição. Finalmente, são
apresentadas algumas implicações e
futuras perspectivas relativas à gestão
comunitária.
INTRODUÇÃO
Pescarias artesanais de água doce são
extremamente importantes em muitas
partes do mundo, particularmente em
países em desenvolvimento, em que
eles fornecem sustento e emprego
para inúmeras pessoas, muitas vezes
economicamente marginalizadas. Na
maioria das vezes, são projetos de
múltiplas espécies que dependem de
vários elementos da biodiversidade
aquática local. A introdução das espécies,
embora seja uma das principais ameaças
à biodiversidade, podem contribuir
significativamente para essas pescarias,
às vezes mudando dramaticamente
seu caráter e benefícios sociais.
(CUCHEROUSSET; OLDEN, 2011).
A Amazônia boliviana contém uma notável riqueza de biodiversidade de peixes,
com pelo menos 700 espécies (CARVAJAL-VALLEJOS; ZEBALLOS FERNÁNDEZ,
2011), não incluindo a diversidade que,
provavelmente, existe nos lugares mais
remotos e menos estudados da região.
Uma parte dessa biodiversidade são de
peixes de médio para grande porte que
suportam as tradicionais pescas de subsistência e, mais recentemente, a pesca
comercial em pequena escala. O peixe
é a principal fonte de proteína em muitas das áreas rurais (SALAS et al., 2011;
CARVAJAL-VALLEJOS et al., 2011b.).
O governo boliviano identificou a
Amazônia como uma região prioritária
para desenvolver e reduzir a pobreza,
enquanto mantém a biodiversidade e
riqueza ambiental. Isso está expresso
na Nova Constituição (CONSTITUCION
DEL ESTADO, 2009) e no Plano Nacional
de Desenvolvimento (PLAN NACIONAL
DE DESARROLLO, 2006). Atualmente,
as pescarias na região são todas em
pequena escala; a maioria em situação
irregular, mal organizada, e sujeita a
uma pressão crescente de exploração
e conflitos entre usuários, além de
estarem ameaçadas pelo aumento
de urbanização e de projetos em
desenvolvimento em grande escala
(como propostas de hidrelétricas) que
irão degradar os hábitats aquáticos.
Pescarias e meios de subsistência
na região estão em transição devido
ao avanço do desenvolvimento, dos
mercados emergentes e da evolução
de políticas e leis governamentais. A
melhoria da segurança alimentar para
a população local é um dos principais
desafios.
Embora a introdução de peixes tenha
estado presente na região de Altiplano
por muitos anos, as pesquisas sobre
os impactos das espécies invasoras
na Bolívia é relativamente nova, com
muito pouca informação sobre seus
impactos ecológicos – particularmente
na Amazônia. Felizmente, o número
de espécies introduzidas na Amazônia
boliviana aparenta ser bastante baixo
(CARVAJAL-VALLEJOS et al., 2011a),
132
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
quando comparado aos países vizinhos,
como o Brasil (por exemplo, ALVES et al.,
2007). No entanto, como a preocupação
pública sobre como prevenir ou tratar
espécies introduzidas para preservação
da biodiversidade existente é pouco
expressada, e como a atual legislação
não regula adequadamente a venda
ou o movimento de espécies não
nativas entre bacias hidrográficas,
as taxas de introdução poderiam
aumentar significativamente. Conforme
apresentado neste relatório, o pirarucu
(Arapaima cf. gigas) é uma espécie que
foi introduzida na região nas últimas
décadas e que está gerando impactos
radicais socioeconômicos e políticos,
ainda que as consequências ecológicas
não sejam bem compreendidas.
Esta pesquisa oferece uma visão geral
sobre as mudanças nas pescarias
comerciais na Amazônia boliviana
e algumas sugestões de direções e
perspectivas futuras em relação às
oportunidades de desenvolver uma
gestão comunitária. Isso começa com
algumas perspectivas sobre as principais
características da pescaria antes da
introdução do pirarucu, seguido por
um breve histórico da introdução
dessa espécie na Bolívia. O Projeto
“Peces para la Vida”, uma iniciativa de
cooperação internacional, com muitos
interessados, cujo objetivo final é ajudar
a construir pescarias sustentáveis e
equitativas, incluindo espécies nativas
e introduzidas é aqui apresentado. São
apresentados também alguns dos dados
coletados por meio deste projeto,
incluindo informações sobre a frota
comercial das pescarias regionais, e
os desembarques urbanos e rurais em
Riberalta. A pesca é caracterizada em
comunidades indígenas rurais da região,
incluindo algumas perspectivas locais;
e descritos os conflitos que surgiram
entre os utilizadores dos recursos. São
apresentadas oportunidades para o
desenvolvimento de modelos de gestão
e planos de extração, e também é
abordada a potencial contribuição dos
processos participativos. Por fim, são
apresentadas algumas reflexões sobre
a pescaria e os meios de subsistência
em transição, seguidos de conclusões e
perspectivas futuras.
Pescarias da Amazônia boliviana
Agricultores rurais e periurbanos e as
comunidades indígenas da Amazônia
boliviana envolvidos na pescaria
artesanal e na aquicultura são os mais
pobres (INE, 2001) e têm os alimentos
mais inseguros (FAO, 2008) do país. Eles
sobrevivem em condições muito básicas
de vida, muitas vezes sem acesso à
educação, saúde, água, saneamento,
estradas, transporte e comunicações.
Em geral, eles não têm influência
política com as autoridades regionais e
nacionais, e são muito mais vulneráveis
a choques sociais, econômicos ou
ambientais do que outros grupos.
Antes da introdução do pirarucu, a
atividade de pesca comercial na região
era praticada primeiramente nos
principais canais fluviais e se concentrava
em peixes de médio a grande porte,
como o pacu (Colossoma) e o tambaqui
(Piaractus), o bagre,
o surubim e
o caparari (Pseudoplatystoma spp.)
(CDP, 1990). Esses peixes abasteciam
mercados regionais em Riberalta, assim
como algumas cidades no interior da
Bolívia e do Brasil. O volume de captura
comercial total estimado era cerca de
50% menor do que é hoje (VAN DAMME
et al., 2011).
133
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Desde esse momento, a pesca comercial
tem aumentado e mudado devido a
diversas razões, independentemente
da chegada do pirarucu. A reforma
agrária no início dos anos 80 resultou
no restabelecimento e fortalecimento
de comunidades tradicionais na região,
seguidos pelo estabelecimento de
territórios indígenas promovendo com
mais clareza os direitos ao acesso e
uso de recursos. Estradas de acesso
e disponibilidade de gelo, ainda em
ambiente rústico, proporcionaram
alguns canais para trazer os peixes para
o mercado, e a demanda por peixe local
aumentou com a crescente população
urbana. Assim, enquanto os recursos das
pescarias estavam cada vez mais sujeitos
a uma variedade de ameaças antrópicas,
incluindo a perda ou modificação de
hábitat e a introdução de espécies não
nativas (CASAL, 2006), as pescarias
continuam a expandir. Atualmente,
eles continuam, provavelmente, dentro
do potencial produtivo da região (VAN
DAMME et al., 2011).
A introdução do pirarucu na Bolívia
O pirarucu é um enorme peixe
de respiração aérea e de língua
óssea, nativo do principal afluente
do Amazonas e de outros rios do
norte da América do Sul, onde é
conhecido também como arapaima ou
paiche. Sua distribuição natural é de
aproximadamente 2 milhões de km2,
incluindo porções Amazônicas no Peru,
Colômbia, Equador, Brasil e Guiana
(CASTELLO; STEWART, 2010). Mais de
40 anos atrás (nos anos 70), a espécie
foi introduzida pelo governo peruano na
parte alta da Bacia do Madera em Puerto
Maldonado, Peru, no Rio Madre de Dios
(CARVAJAL-VALLEJOS et al., 2011a).
Antes disso, o pirarucu não era presente
na porção superior da Bacia do Madera,
possivelmente devido a uma série de
cachoeiras nos 300 km de rio entre
Guayaramerín (Bolívia) e Porto Velho
(Brasil). Após essa introdução, a espécie
expandiu pela corrente ao longo do Rio
Madre de Dios e em bacias conectadas
no território boliviano (CARVAJALVALLEJOS et al., 2011a; MIRANDOCHUMACERO et al., 2012). A falta de
familiaridade com o pirarucu resultou
numa inicial falta de interesse de pesca,
o que provavelmente contribuiu para o
povoamento, tornando-se rapidamente
estabelecida e abundante (CARVAJALVALLEJOS et al., 2011a).
Os primeiros relatos de pirarucu
capturados na região ocorreram no
início dos anos 80 (CARVAJAL-VALLEJOS
et al., 2011a), quando os pescadores
foram surpreendidos pelo tamanho
incrível e pelo comportamento estranho
dos peixes na superfície. Uma vez que
não eram conhecidos anteriormente
na região, foram inicialmente vendidos
em filés como surubim-bagre, uma das
espécies mais procuradas na Bolívia,
assim como as outras espécies que
possuem características de textura e
sabor semelhantes. Dessa maneira, o
peixe começou a abastecer os mercados
regionais, bem como cidades no interior
da Bolívia. Uma vez que foi descoberto
que o pirarucu era muito valorizado
nos mercados brasileiro e peruano, o
interesse na pesca comercial aumentou
rapidamente e significativamente entre
pescadores urbanos e distribuidores em
Riberalta (HERRERA, 2009). Atualmente,
134
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
a carne do pirarucu é bem aceita nos
principais centros urbanos de Santa
Cruz, La Paz e Cochabamba, além
dos mercados regionais nas cidades
amazônicas. Nos mercados bolivianos
em geral, o pirarucu tem preenchido
parte da demanda insatisfeita por peixes.
Em alguns casos, o pirarucu substitui
espécies nativas que são geralmente
menores e que, portanto, requerem
um esforço maior para conseguir um
peso comparável. O pirarucu também é
vendido em quantidades significativas
na fronteira do Peru e do Brasil.
O pirarucu tornou-se um dos peixes
mais importantes comercialmente
na Amazônia boliviana. As poucas
estatísticas disponíveis indicam que
ele substituiu, de forma significativa ,as
espécies nativas comerciais mais caras
dos desembarques em Riberalta, um
eixo de pesca regional dos últimos 10
anos, e que, atualmente, constitui mais
da metade de todo o desembarque da
cidade (VAN DAMME, 2006; CARVAJAL et
al., 2011a). Crescentemente, a pescaria
comercial foi levada dos rios para os
lagos, onde o pirarucu vive. No entanto,
muitos desses lagos estão localizados
em terras recentemente designadas
como comunitárias, incluindo grandes
territórios comunitários indígenas
(Tierra Comunitaria de Orígenes –
TCOs) e comunidades rurais menores,
criando algumas tensões. A introdução
do pirarucu na Amazônia boliviana,
portanto, não só catalisou uma
mudança na composição das pescarias,
mas também na estrutura da cadeia
de valor das pescarias e das relações
socioeconômicas entre os pescadores
comerciais urbanos e das comunidades
indígenas e rurais.
O projeto “Peces para la Vida”
Em 2011, o “Projeto Peces para la
Vida” (PPV) foi lançado para facilitar
as contribuições das pescarias para a
segurança alimentar local dentro do
cenário em transição das pescarias e
sociedades. O objetivo final do projeto é
ajudar a construir uma gestão sustentável
e equitativa das pescarias, incluindo
espécies nativas e introduzidas,
enquanto dados são coletados e
ambientes sociais e organizacionais
de apoio são construídos, operando
através de uma janela de oportunidades
e interesses criados em torno da
avaliação e melhorias de uma cadeia
de valor integrada e participativa.
Fundamentado nos princípios da gestão
baseada na comunidade, o projeto
enfrenta desafios semelhantes para o
desenvolvimento de um tal regime,
conforme descrito por Thompson e
Sultana (2007) e como descrito para o
desenvolvimento da gestão do pirarucu
brasileiro por Castello et al. (2009).
O local da área de estudo está no norte
da Amazônia boliviana (nas bacias
hidrográficas do alto Madera), em torno
da cidade portuária de Riberalta, logo
acima da confluência dos rios Orthon,
1
1
135
O projeto “Peces para la Vida: Pescarias,
Aquicultura e Segurança Alimentar na Amazônia
boliviana” é uma iniciativa de 3 anos (20112014), coordenado por FAUNAGUA, World
Fisheries Trust e AGUA SUSTENTABLE, com o
apoio do IDRC (Centro International de Pesquisa
de Desenvolvimento) e da Agência Canadense
Internacional de Desenvolvimento (ACDI-CIDA)
através do Fundo Canadense Internacional de
Pesquisa de Segurança Alimentar (CIFSRF).
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Madre de Dios e Beni e corredeiras que
são consideradas como uma barreira
para a expansão rio acima de uma série
de espécies de peixes na Amazônia baixa
e central, incluindo o pirarucu. O Beni é
um típico rio andino de águas bravas,
injetando mais sedimentos suspensos
do que qualquer outro afluente da Bacia
do Madera (MOLINA; VAUCHEL, 2011).
Na sua planície relativamente estreita,
o Beni formou lagos (lagos marginais),
que são sazonalmente isolados do
canal principal. O Orthon, que flui
para o Beni abaixo da confluência com
o Madre de Dios, é um rio de águas
mistas (NAVARRO; MALDONADO, 2002),
formado pela confluência dos rios
Tahumanu e Manuripi. O Madre de Dios
flui dos Andes peruanos rio acima da
cidade de Puerto Maldonado. É um outro
significante sistema de águas bravas
que transporta grandes quantidades
de sedimentos em suspensos, e que
faz parte de um mosaico de corpos
d’água, que inclui córregos e pequenos
afluentes.
A área de estudo coincide com a zona
de pescaria da frota comercial de base
urbana em Riberalta. Consiste em
pescadores periurbanos que exploram
espécies nativas de peixes nos rios e
agem como intermediários para trazer
os peixes de lagos (principalmente
o pirarucu) para o mercado. Esses
pescadores estão organizados em duas
estruturas locais de pesca. Varejistas
de pequeno porte, muitos deles
mulheres, também são organizados em
associações locais e ligados diretamente
às organizações de pesca, vendendo o
produto nos mercados urbanos.
Quarenta e oito comunidades indígenas
estão localizadas nas bacias baixas dos
rios Beni, Madre de Dios e Mamoré.
Trinta e cinco delas estão organizadas
em TCOs designados. Com recentes
direitos territoriais garantidos, os
grupos indígenas estão agora lutando
através de conflitos para resolver o
acesso e utilização dos direitos de
recursos
naturais.
Oportunidades
emergentes de pescaria comercial são
uma questão fundamental neste debate.
Uma relativa proporção elevada de
pessoas nas comunidades indígenas
localizadas perto de lagos ou rios
participa de alguma forma de pesca de
subsistência ou de consumo de peixe,
baseado na tradição local. A participação
indígena na pescaria comercial (espécies
nativas e mais recentemente o pirarucu)
está aumentando, embora haja uma
variedade de barreiras, incluindo o
acesso aos mercados.
O TCO Território Indígena Multiétnico II
(TIM II), localizado ao sul de Riberalta e
incluindo partes das bacias de Madre de
Dios e Beni, é um território onde o uso do
peixe está entre as principais atividades
econômicas e de subsistência. Quatro
comunidades nesta área (Trinidacito,
Flor de Octubre, Lago El Carmen,
27 de Mayo) foram consideradas
representativas para coletar dados da
pescaria indígena para este estudo.
A frota das pescarias regionais
Na região estudada, a atividade de pesca
está focada nos lagos e outros elementos
aquáticos associados com os Rios Madre
de Dios, Beni, Orthon, Biata, Ivón e
Geneshuaya. A pesca é realizada por
pescadores de base urbana de Riberalta,
bem como por pescadores rurais das
136
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
comunidades indígenas localizadas
na região circundante de Riberalta,
a principal cidade portuária. Os
pescadores constituem a base produtiva
para a cadeia de valor das pescarias e,
ao mesmo tempo, constituem o grupo
mais vulnerável e que recebe a menor
remuneração para a sua atividade.
O período de estudo correspondeu à
estação de baixo nível de água (alta
atividade de pescaria), entre agosto e
setembro de 2011. Durante o estudo,
os pescadores foram divididos em dois
grupos de acordo com a localização
de residência e propriedade de terra:
1) urbano, e 2) rural (indígenas). Os
pescadores urbanos foram divididos
entre os que possuem barcos ou não:
49 pescadores urbanos possuíam barcos
próprios, 160 pescadores urbanos
não os possuíam. Além disso, 106
pescadores indígenas em TCO TIM II
foram identificados na área de estudo.
Isso representa um possível aumento
a partir dos dados apresentados em
um censo nacional de 2001 que relata
164 pescadores urbanos em Riberalta,
e 52 pescadores indígenas (somente
comunidade de Trinidacito) na região
de estudo (INE, 2001, resumido por VAN
DAMME et al., 2011).
Tradicionalmente, as comunidades
indígenas da região estudada praticam
pescaria de subsistência sazonal, com
estratégias de sustento que também
incluem a colheita de nozes (castaña –
Castanha-do-Brasil) e outros produtos
florestais não madeireiros, caça e
pequenas atividades agrícolas. Devido
a uma série de fatores, incluindo a
melhoria do acesso com novas estradas
e, possivelmente, a perda de plantio
pelo aumento de chuvas e inundações,
muitas dessas comunidades estão, cada
vez mais, participando da pescaria
comercial, com um notável aumento nos
últimos cinco anos.
Desembarques das pescarias de base
urbana em Riberalta
Oitenta e quatro desembarques de base
urbana foram registrados em Riberalta,
durante o período de estudo, 50 em
agosto e 34 em setembro. Para ambos
os meses, apenas 15% (6 170 kg) do
desembarque correspondeu a barcos
grandes (> 1.000 kg de capacidade),
enquanto que 52% (11 122 kg)
correspondeu a barcos de médio porte
(501 – 1 000 kg de capacidade), 13% (5
347 kg) a pequenas embarcações (201 –
500 kg), e os 20% restantes (8 226 kg) a
embarcações bem pequenas (< 200 kg
de capacidade).
Os desembarques de base urbana
foram compostos de 25 espécies,
representando
quatro
ordens.
Characiformes (cinco famílias, 10
espécies) e Siluriformes (quatro famílias,
12 espécies) foram os mais representados
no nível de ordem, enquanto as
famílias Pimelodidae (Siluriformes) e
Serrasalmidae (Characiformes) foram
as mais diversas, com nove e cinco
espécies, respectivamente. A ordem
dos Osteoglossiformes foi representada
por pirarucu, o único peixe não nativo
nesses desembarques. Os desembarques
advindos de barcos de médio e grande
porte são quase exclusivamente de
pirarucu, enquanto que os barcos
pequenos pescam uma variedade de
espécies, incluindo o pirarucu (COCA
MENDEZ et al., 2012).
O volume total de desembarque de peixe
registrado durante o período de estudo
foi de 41.130 kg. Com base nessas
informações, estimamos que 20.565 kg
/ mês são pescados durante o período
137
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
de baixo nível de água. O pirarucu
representou 80% e as espécies nativas
20% do peso total capturado (Figura
1a). 70% por cento da captura (incluindo
quase exclusivamente o pirarucu – 86%
do total de desembarque de pirarucu)
são vendidas para “maioristas” –
os distribuidores atacadistas que
primeiramente enviam o peixe por via
aérea para as principais cidades do
interior da Bolívia. Os 30% dos peixes
restantes (principalmente espécies
nativas e alguns pirarucus) são vendidos
(através dos maioristas, ou diretamente
pelos pescadores) para “minoristas”
– varejistas locais (principalmente
mulheres) que vendem o peixe em
dois mercados locais em Riberalta e
diretamente para restaurantes. Em
alguns casos (principalmente em barcos
muito pequenos), os peixes também são
vendidos diretamente pelos pescadores
aos consumidores.
Desembarques rurais comerciais em
Riberalta
As pescarias indígenas rurais usam
equipamentos
mais
básicos
e
investem menos tempo e dinheiro
em comparação aos pescadores de
base urbana. Em geral, a pescaria rural
ocorre em lagos marginais e córregos
próximos às comunidades. O principal
tipo de equipamento utilizado é a rede
de espera, verificada duas ou três vezes
ao longo de um período de pesca de
sete horas, geralmente no final da tarde
e durante a noite. Uma pesca média de
40 – 80 kg (acumulada ao longo de dois
ou três dias) é, então, transportada para
os mercados em Riberalta como carga
em caminhões regulares que fornecem
serviços às comunidades, ou, com menor
frequência, de motocicleta. Quando o
transporte de caminhão é utilizado, os
peixes em caixas de isopor (às vezes
com gelo) são entregues diretamente
nas casas dos maioristas e de alguns
minoristas, com quem os pescadores têm
contratos verbais para receber peixes.
Os peixes são classificados em pirarucu
e três classificações de peixes nativos,
dependendo da espécie, tamanho e
nível de conservação, cada uma com
um valor diferente. Por exemplo, um
pacu (Colossoma) poderia ser classificado
como de alta qualidade, se for de mais de
um quilograma, mas com uma qualidade
secundária, se menor. Maioristas e
alguns minoristas compram o peixe e
também fornecem gelo e equipamentos
de pesca aos pescadores rurais (a preços
relativamente altos e, frequentemente,
incluindo, uma taxa de serviço), criando
uma relação de dependência em longo
prazo.
No Mercado de Abasto em Riberalta,
22 380 kg/mês de desembarques
pesqueiros rurais foram registrados nos
dois meses de monitoramento, 65% (14
547 kg) foram de peixes nativos e 35%
de pirarucu (Figura 1b). Dos 14.547 kg
de peixes nativos, 29% (4 252 kg) foram
classificados como de alta qualidade,
52% (7 609 kg), de segunda qualidade;
e 18% (2 686 kg), de terceira qualidade.
A pesca em comunidades indígenas
rurais
A atividade pesqueira indígena (de
subsistência e comercial) foi ainda
caracterizada
por
entrevistas
e
observações em quatro comunidades.
138
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
Figura 1 - Contribuição de pirarucu e de espécies nativas para os desembarques das
pescarias urbanas e rurais na cidade de Riberalta durante agosto e setembro de 2011.
Foi descoberto que as pescarias nessas
comunidades eram de quatro ordens
e status taxonômicos compostos de
16 famílias, 38 gêneros e 43 espécies.
As ordens mais importantes para a
pesca de sua subsistência e comercial,
em número de espécies, foram os
Characiformes (23 espécies), Siluriformes
(14 espécies) e Perciformes (5 espécies).
O pirarucu Osteoglossiforme não nativo
também estava presente. As famílias
com mais espécies na criação de
peixes foram Serrasalmidae – nove
espécies (Characiformes), Pimelodidae –
oito espécies (Siluriformes) e Cichlidae
– quatro espécies (Perciformes). A
composição de espécies para a
subsistência era basicamente a mesma
nas quatro comunidades estudadas, mas
a composição de espécies comerciais era
muito diferente em Trinidacito (bacia do
Rio Madre de Dios). Nessa comunidade,
28 espécies são pescadas para consumo
doméstico, enquanto a pescaria
comercial explora quase exclusivamente
pirarucu e esporadicamente quatro
outras espécies de grande porte
(Colossoma
macropomum,
Piaractus
brachypomus, Pseudoplatystoma fasciatum
e P. tigrinum). Em todas as quatro
comunidades, o pirarucu é uma das
espécies mais importantes para as
pescarias comerciais emergentes. As
pescarias comerciais indígenas dessas
comunidades fazem parte dos volumes
de pesca estimados que foram descritos
no tópico anterior (Desembarques
pesqueiros rurais em Riberalta).
Pescadores
da
comunidade
de
Trinidacito (bacia do rio Madre de Dios)
usam principalmente anzóis e linhas
extrafortes e longas linhas para pescar
o pirarucu e, ocasionalmente, outros
peixes nativos de grande porte (por
exemplo, a espécie Pseudoplatystoma). O
uso de redes de espera não é permitido
para a pescaria comercial, de acordo
com as regras informais da pesca local e
da organização comunitária. As redes de
espera utilizadas para peixes pequenos,
para consumo doméstico ou isca, são
permitidas. Existe pouco ou nenhum
uso de gelo para a conservação, e os
pescadores vendem o peixe para um
139
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
minorista local que o transporta ou envia
de moto para maioristas em Riberalta.
Em comparação, as três comunidades
do sul (bacia do Rio Beni) usam
principalmente redes de espera e
linhas, e às vezes, longas linhas para
as pescarias comerciais, incluindo
tamanhos
diferentes
para
fins
comerciais e de subsistência. Enquanto
as comunidades também desenvolvem
tecnologia e conhecimento para pescar
o pirarucu usando grandes redes de
espera especiais, chamados localmente
de “mallón”, a captura de pirarucu
continua a ser menos frequente do que a
das espécies nativas, possivelmente por
causa do tamanho menor dos lagos. O
anzol e a linha são usados para capturar
espécies de pequeno a médio porte
para consumo doméstico. O gelo é mais
acessível (devido ao tráfego constante
nas estradas) e, consequentemente,
utilizado com mais frequência para
conservar os peixes. O transporte para
Riberalta é feito pelo caminhão de
abastecimento diário ou, no caso de
pirarucus particularmente grandes, de
motocicleta.
A cadeia de valor regional de pescarias
A cadeia de valor da pesca comercial
regional é composta basicamente de
seis níveis, ligados em duas cadeias
relativamente diferenciadas, em que os
pescadores (urbanos e rurais) fornecem
peixes a uma série de intermediários para
três principais grupos de consumidores
finais, incluindo Riberalta (mercados
Abasto e Central), principais centros
urbanos da Bolívia e do outro lado da
fronteira para o Brasil. Os atuantes
incluem os pescadores (urbanos e rurais),
maioristas, processadores de peixe
(às vezes contratados pelos maioristas
para limpar e preparar o pirarucu em
pedaços grandes ou filés), minoristas,
diversos
pequenos
exportadores
intermediários e consumidores finais.
Tem-se observado que algumas
espécies específicas do TCO TIM II,
principalmente pirarucu, pacu e piraíba
(Brachyplatystoma filamentosum) às vezes
são comercializadas para os mercados
brasileiros no Estado de Rondônia, com
a ajuda de intermediários na cidade
fronteiriça de Guayaramerín (COCA
MENDEZ et al., 2012). A representação
geral da cadeia de valor e sua principal
relação entre os níveis são representadas
na figura 2.
Opiniões da comunidade indígena
sobre a gestão das pescarias
Embora não se tenha informações suficientes para representar completamente as opiniões dos pescadores rurais
indígenas, os informantes-chave que
foram entrevistados para este trabalho
trouxeram uma série de perspectivas
quanto ao seu interesse no desenvolvimento das pescarias comerciais. Estes
incluíram uma preocupação para a sustentabilidade em longo prazo de recursos aquáticos, e a incerteza sobre a
melhor forma de se conseguir isso, dado
o impacto sem precedentes que o pirarucu está tendo na pescaria de espécies
nativas.
Aspectos positivos da introdução de
pirarucu que foram mencionados pelos
entrevistados incluem: o importante
valor econômico do pirarucu, a sua
abundância relativa em lagos e riachos, a
boa aceitação de sua carne em mercados
comerciais, a captura relativamente
140
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
Figura 2 - Mapa da representação geral da cadeia de valor das pescarias regionais de Riberalta*: O
processamento de peixe refere-se à limpeza, desossa e embalagem em sacos plásticos (de 10 kg) para o
transporte aéreo. As linhas pontilhadas enquadram dois papéis, muitas vezes realizados pelos próprios
distribuidores atacadistas; embora às vezes o processamento seja subcontratado.
simples, a grande quantidade de carne
produzida e facilidade de processamento
(filetagem). Comentários negativos
sobre o pirarucu não foram frequentes,
mas incluiu o fato de que este peixe
não faz parte da dieta tradicional, e
uma percepção de que os estoques de
peixes nativos, que são parte da dieta
tradicional, estão diminuindo por causa
da predação do pirarucu.
Alguns
entrevistados
(pescadores
locais) foram a favor da busca de uma
estratégia para reduzir as populações
gerais de pirarucu a fim de incentivar
141
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
a recuperação dos estoques dos peixes
nativos para níveis históricos. Outros
(líderes comunitários) sugeriram uma
estratégia que permita a exploração em
longo prazo de pirarucu e ao mesmo
tempo conserve a diversidade local. Eles
veem isso como garantia do bem-estar
das famílias que vivem em comunidades
indígenas em longo prazo, assegurando
a segurança alimentar de espécies
nativas e o desenvolvimento econômico
do pirarucu. Em geral, embora
alguns atuantes não enxergassem
a necessidade de uma gestão, a
perspectiva geral da comunidade sugeriu
que a sustentabilidade do pirarucu
deveria ser gerida em longo prazo, da
mesma forma que as espécies nativas.
Avaliações adicionais são necessárias
para determinar a viabilidade desta
abordagem, uma vez que nós ainda não
entendemos completamente como o
pirarucu irá afetar os estoques de peixes
nativos, ou qual o impacto que ele terá
nas relações socioeconômicas dentro
das comunidades e entre elas.
Conflitos emergentes
Conflitos sobre o acesso e uso de direitos
de recursos aquáticos no norte da Bolívia
representam, potencialmente, um dos
problemas mais significativos, tanto para
o fornecimento de peixe aos mercados,
quanto para o bom planejamento de
uso sustentável e de conservação.
Reformas agrárias e o estabelecimento
dos
territórios
indígenas
têm
transformado drasticamente a paisagem
das propriedades rurais, criando
áreas significativas de propriedade
comunitária, cercadas por terras
públicas, cada uma com regras
diferentes (Figura 3). O uso e acesso aos
recursos terrestres, de propriedade legal
e de acesso aos recursos pesqueiros e
sua comercialização continua bastante
indefinido. Por exemplo, enquanto uma
comunidade indígena pode possuir as
vias de acesso a um lago (de acordo
com a lei de territórios indígenas),
a propriedade legal dos recursos
pesqueiros é incerta (a ser definida
com propostas de novos regulamentos
nacionais). A comercialização hoje não é
praticada legalmente (de acordo com as
regras existentes definidas pelo governo
indígena TIM II). Essa incerteza jurídica,
juntamente com a dinâmica da cadeia de
valor que está emergindo com a pesca do
pirarucu e conflitos mais independentes,
entre inerentes atuantes às cadeias de
valor para outras pescarias na região,
representam sérios riscos que poderiam
inviabilizar qualquer avanço em relação
à gestão de recursos integrados e
de melhoria da segurança alimentar.
O projeto PPV tem trabalhado na
criação e construção de instituições de
interesses múltiplos com representação
transversal que estão mostrando uma
promessa substancial, mesmo na
ausência de uma certeza jurídica. Uma
abordagem de pesquisa participativa
para integrar o mapeamento da cadeia
de valor está também ajudando a criar
canais positivos de comunicação entre
atuantes de potencial conflito – por
exemplo, durante a recente revisão
colaborativa de uma proposta de nova
lei pesqueira.
Modelo de gestão proposto e plano de
extração
A fim de alavancar a gestão, uma série
de medidas é necessária, além do
142
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
consenso entre as partes interessadas.
Alguns recursos naturais na Amazônia
boliviana (por exemplo, Caiman yacare)
são geridos através de um “plano de
exploração de recursos”, que inclui
uma série de requisitos para a coleta
de dados, consulta, etc. Parte dessa
informação inclui uma compreensão
mais ampla não só do recurso em si,
mas também das práticas tradicionais e
uso pela população local. Embora este
tipo de plano de gestão não seja exigido
por lei para os recursos de pescarias,
informações básicas sobre a biologia, a
genética, a distribuição, preferências de
hábitat e potenciais áreas de colonização
Figura 3 - Representação de áreas comunitárias (TCOs), cercadas por territórios públicos
na área de estudo, no norte da Amazônia boliviana.
143
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
do
pirarucu
são
urgentemente
necessárias para fornecer informação
para tomada de decisão. Muito pouco
dessa informação está disponível para
os ecossistemas aquáticos bolivianos.
O progresso está sendo feito nesta
frente pelo projeto PPV, principalmente
com abordagens apresentadas pelo
monitoramento participativo – como a
avaliação das unidades de pirarucu por
contagem de indivíduos quando eles
vêm à superfície para respirar o ar, uma
tecnologia adaptada a partir de uma
experiência brasileira (por exemplo,
CASTELLO, 2004).
Contribuição dos processos participativos
Quatro focos metodológicos foram
integrados na maior parte da pesquisa:
a) Uma estratégia de compromisso
das organizações e atuantes locais
que os envolve no projeto de pesquisa
e coleta de dados de campo e em
uma fase posterior na construção do
conhecimento e validação de dados. Isso
foi usado para a pesquisa em pescarias
e cadeias de valor, destinado também
a iniciar o processo de fortalecimento
técnico organizacional e de capital
social.
b)
Uma
“Abordagem
Integrada
de Análise da Cadeia de Valor”
qualitativa desenvolvida por M. John
Wojciechowski no trabalho com as
comunidades de pesca artesanal no
Brasil (MACNAUGHTON et al., 2010) foi
adaptada para o contexto local. Isso foi
implementado através de um workshop
na comunidade com diversas partes
interessadas e grupos de discussão.
c) Uma abordagem quantitativa para
caracterizar a cadeia de valor e construir
uma base de informação de pescarias,
incluindo as vias e volumes de extração,
distribuição e vendas em Riberalta, com
entrevistas de informantes-chave.
d) E, finalmente, um processo de
desenvolvimento de liderança orientado
por atuantes foi baseado na introdução
de inovações técnicas e sociais através
de fóruns de diálogo, intercâmbio
técnico e oportunidades de aprendizado
mútuo.
Esses métodos foram aplicados no
desenvolvimento
dos
seguintes
elementos: a) um levantamento
preliminar da participação rural e
urbana no setor das pescarias, incluindo
elementos de acesso e padrões de
utilização; b) um mapa qualitativo,
conceitual da cadeia de valor que
fornece informações sobre os diferentes
atuantes, relações e fluxos, bem como
os principais pontos de gargalo, que
foram posteriormente discutidos em
fóruns para identificar oportunidades de
uma forma que constrói a transparência,
confiança e colaboração entre os
atuantes diretos e indiretos; c) uma linha
de base quantitativa de informação que
fornece informações-chave da cadeia
de valor e de produção das pescarias;
e d) a integração e validação de dados
qualitativos e quantitativos em oficinas
participativas.
Atividades de formação, incluindo
a monitorização do pirarucu com
base na tecnologia brasileira, têm
proporcionado ricas oportunidades de
aprendizagem e troca mútua que vão
muito além da simples contagem de
peixes. Análises de cadeias de valor e
outros fóruns de partes interessadas
permitiram processos de reflexão
144
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
crítica e transformadora de grupo
de aprendizagem sobre as pescarias.
Apesar de não confrontar diretamente
o acesso existente e conflitos de uso,
esses fóruns ajudaram a identificar
potenciais áreas de interesse comum
e problemas práticos ou gargalos. Isso
pode proporcionar novas oportunidades
para a construção de coalizões e,
finalmente, gestões de conflito.
A abordagem contribuiu para o
fortalecimento e a comunicação entre os
atuantes locais, construindo condições
para a governança colaborativa e o
fortalecimento da gestão social da cadeia
de valor em longo prazo. No workshop, o
foco era sobre a participação conjunta
de representantes do setor de pesca
rural indígena e urbana, representando
as duas perspectivas e seus gargalos
associados em um fórum coletivo.
Todas essas atividades proporcionaram
uma
oportunidade
para
o
desenvolvimento de liderança e o
fortalecimento de capital social,
processos que têm sido identificados
como elementos críticos para iniciativas
de gestão das pescarias com base na
comunidade para ser bem-sucedida,
contribuindo para o sucesso social,
econômico e ecológico por Gutierrez et
al. (2011).
Ostrom (2010), ao descrever a
importância do envolvimento da
comunidade na gestão dos recursos
de que dependem, também se
refere à importância de processos
participativos no sentido de garantir
esse compromisso em longo prazo.
O projeto PPV tem empregado esta
abordagem nas avaliações da cadeia de
valor, treinamentos, e uma variedade
de outras atividades para construir
a capacidade de liderança e gestão.
A situação da Bolívia mostrou suas
particularidades diferentes daquelas
previstas por Ostrom (2010) e Castello
et al. (2009) como elementos-chave para
a construção da gestão comunitária
de sucesso. As pescarias ainda não
experimentaram também o nível de
escassez de recursos que tem sido um
incentivo fundamental para a busca e
adoção de medidas de gestão na maioria
dos casos, incluindo o Brasil. Um
desafio será conceber e implementar
tais medidas preventivamente com
suporte ao usuário. Nas entrevistas
com os principais informantes locais,
também é evidente que pode haver
algumas
éticas
de
conservação
inerentes nas comunidades, e que os
processos participativos empregados no
projeto até o momento podem ajudar
a fortalecer um propício ambiente
positivo para essas perspectivas se
desenvolverem ainda mais.
Pescarias e meios de subsistência em
transição
Há uma série de fatores que enriquecem
e complicam a cadeia de valor e as
situações de gestão das pescarias
no que diz respeito a pescarias de
pirarucu emergentes. Por exemplo,
em um levantamento preliminar
dos impactos socioeconômicos da
introdução de pirarucu e pescaria em
uma comunidade rural, foi identificado
que o novo potencial comercial de
pirarucu estimulou pescadores da
comunidade a formar uma associação
de pescarias. A associação trabalhou
para garantir direitos exclusivos de
145
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
recursos, organização de gerenciamento
de licenças e aprimoramento da
distribuição e vendas diretas do peixe
em mercados regionais. No entanto,
apesar da estratégia organizacional dos
pescadores, as pescarias de pirarucu
nesta comunidade têm, até agora,
reforçado o sistema existente de
“habilito”, construído em relações de
dependência entre os intermediários
e os pescadores locais. Altos custos de
expedição, tecnologia de conservação
inadequada e gargalos para acesso aos
mercados regionais, presumivelmente,
são fatores que favorecem tais relações
(HERRERA, 2009).
O mix de atividades de subsistência
em comunidades rurais também está
mudando, com uma variedade de
implicações. Em alguns casos, houve
uma transição de pescarias de diversas
espécies, que variam na intensidade
sazonalmente e são realizadas para a
subsistência e a atividade comercial
em pequena escala, de uma forma
mais intensiva, pescaria de espécie
única (pirarucu) que se concentra em
vendas comerciais. Isso pode estar
provocando o deslocando de algumas
atividades pesqueiras de subsistência e
aumentando a interação da comunidade
rural na economia baseada em dinheiro,
possivelmente afetando a segurança
alimentar local por meio de mudanças
na dieta e, talvez, um menor consumo
de peixe.
Em geral, a atual tendência crescente
nas aldeias rurais, como Trinidacito,
de priorizar a pesca de pirarucu sobre
outras estratégias de geração de
renda é, provavelmente, parte de uma
estratégia adaptativa. Esta abordagem
também pode incluir outras atividades
(como a coleta de castanha-do-Brasil),
que variam dependendo das condições
ambientais e de mercado; as relações
entre as comunidades rurais da região,
e o simbólico valor/retorno. Em
Trinidacito, por exemplo, os períodos
em que os retornos do empenho na
pesca de pirarucu são adequados,
são atualmente épocas do ano muito
específicas e limitadas, que não são
explicadas apenas pela disponibilidade
do pirarucu.
Conclusões e perspectivas futuras
Desde a introdução do pirarucu na Bolívia,
cerca de 40 anos atrás, as pescarias no
Norte da Bolívia Amazônica têm mudado
significativamente, em parte devido à
influência dessas espécies não nativas.
Além das mudanças estimuladas por
uma melhoria de acesso aos mercados
e novos direitos territoriais, o pirarucu
contribuiu para mudanças sociais e
econômicas significativas relacionadas
às pescarias na região de Riberalta. A
cadeia de valor das pescarias é cada
vez mais complexa à medida que novos
conflitos e obstáculos surgem entre os
diferentes interessados e em diferentes
elos da cadeia.
Desembarques pesqueiros comerciais,
urbanos e rurais são agora fortemente
dependentes do pirarucu, tendo
deslocado outras espécies nativas de
médio a grande porte (principalmente
characoids migratórias e de peixe-gato),
que anteriormente eram a base para
as pescarias comerciais na Amazônia
boliviana. No passado, as pescarias
urbanas eram operadas nos principais
canais do rio, enquanto que agora elas
estão mais concentradas nos lagos
146
A introdução de Arapaima cf. gigas na Amazônia boliviana
• Fernando M. Carvajal - Vallejos • Alison Macnaughton • Claudia Coca • Selín Trujillo • Joachim Carolsfeld • Paul A Van Damme
pertencentes às comunidades indígenas.
Esse novo recurso abundante, com
alto valor econômico, que habita
preferencialmente os lagos, promoveu
novas relações entre usuários e, assim,
levou a conflitos e perguntas sobre
quem deveria manter os direitos de
acesso aos recursos das pescarias.
Essa situação nos leva a refletir sobre
a necessidade de uma legislação para
regulamentar o uso e a exploração dos
recursos aquáticos naturais e como isso
deve ser equilibrado com as iniciativas
de gestão lideradas pela comunidade.
A Bolívia está enfrentando novas
ameaças aos seus recursos naturais,
com a modificação do hábitat e
introduções, sendo as perturbações
mais evidentes que têm impactos
sociais, ambientais e econômicos no
norte da Amazônia. A extensa fronteira
entre a Bolívia, o Peru e o Brasil, sendo
a grande maioria rios compartilhados,
destaca a vulnerabilidade do país a
novas introduções. Políticas internas
e externas deveriam ser desenvolvidas
para minimizar e preparar para possíveis
efeitos causados por espécies invasoras
– sejam eles positivos ou negativos.
Com base nos resultados da pesquisa
até a data, segue uma série de
recomendações:
a) Implementar monitoramento participativo das pescarias (por exemplo,
tecnologia de contagem do pirarucu)
para fortalecer a capacidade local e o
conhecimento da base de recursos.
b) Coletar informações para apoiar
o desenvolvimento de planos de
exploração da pesca que otimizem
e garantam melhores retornos de
subsistência e segurança alimentar.
c) Apoiar o diálogo para acordos e
regulamentos de pescarias para
otimizar
o
desenvolvimento
equitativo e sustentável da cadeia de
valores das pescarias emergentes nas
comunidades indígenas.
d) Desenvolver pesquisas da biologia e
promover a distribuição de pirarucu na
Bolívia e seu papel nos ecossistemas
locais.
e) Explorar as experiências brasileiras
com a gestão do pirarucu para
elementos
que
poderiam
ser
adaptados à realidade boliviana.
AGRADECIMENTOS
Um agradecimento especial para as
pessoas e organizações envolvidas
nesta pesquisa, incluindo as associações
de pesca locais de Riberalta e da
Federação (ASOPESAR, ASOCOPERY,
FEUPECOPINAB), organizações indígenas
regionais (CIRABO, CIPOAP), membros
da equipe de pesquisa: Lesdy Antezana,
Adalid Argote, Aldredo Arteaga,
Federico Machicao, Tamara Pérez,
Tiffanie Rainville, Gabriela Rico, Roxana
Salas, M. John Wojciechowski, Veronica
Zambrana, e os vários pescadores e
mulheres locais por compartilhar seus
conhecimentos e perspectivas.
Este trabalho foi realizado com o auxílio
de uma bolsa do Centro Internacional de
Pesquisa e Desenvolvimento (IDRC) de
Ottawa, Canadá, www.idrc.ca, e com o
apoio financeiro do Governo do Canadá,
oferecido através da Agência Canadense
de Desenvolvimento Internacional
(CIDA), www.acdi-cida.gc.ca, e com o
apoio financeiro do Programa Boliviano
para Pesquisa Estratégica – Programa
de Investigación Estratégica en Bolivia
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147
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
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149
PRODUTIVIDADE E EFICIÊNCIA ECONÔMICA
DA PESCA DE PIRARUCU (Arapaima gigas)
NAS ÁREAS DE MANEJO DAS RESERVAS AMANÃ E MAMIRAUÁ
Ellen Amaral1
Oriana Almeida2
INTRODUÇÃO
As Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá - RDSM e
Amanã - RDSA, localizadas na região
do Médio Solimões, Amazonas –
Brasil, foram criadas em 1996 e 1998,
respectivamente, e desde então tem
funcionado como laboratório de
experiências de manejo participativo
dos recursos naturais (QUEIROZ, 2005;
MOURA, 2007; VIANA et al., 2007).
O manejo é realizado por meio de
cogestão e consiste na combinação
de sistemas de zoneamento para
a conservação da biodiversidade e
normas de exploração sustentável de
recursos que gerem renda, orientados
por bases técnicas e científicas, e pelo
conhecimento local (QUEIROZ, 2005).
A primeira experiência de manejo
participativo de pirarucus (Arapaima
gigas) em Unidades de Conservação, por
exemplo, foi implementada na RDSM,
em 1999.
Após mais de dez anos de
desenvolvimento deste manejo com
1
2
fins comerciais tem-se alcançado
significativos avanços em relação ao
estoque de pirarucus e à melhoria
das condições de vida da população
ribeirinha local envolvida (VIANA et
al., 2007; CASTELLO, 2007; ARANTES
et al., 2006; AMARAL, 2009; CASTELLO
et al., 2011). Em resposta ao manejo, a
população de pirarucus que encontrava
bastante explorada aumentou em mais
de 425% em 10 anos (IDSM, 2011). A
renda domiciliar das famílias, por sua
vez, teve um incremento da ordem
de 107% nas comunidades-alvo dos
trabalhos de alternativas econômicas
(QUEIROZ, 2005).
Ao longo do tempo, o modelo de
manejo de pirarucu expandiu para
outras regiões do Amazonas. O volume
total de pirarucu manejado produzido
no Estado passou de três toneladas,
em 1999, para cerca de 650 toneladas,
em 2007. Maior parte desta produção,
no entanto, tem sido escoada para as
cidades de Manaus e Manacapuru, não
conseguindo atingir mercados mais
atraentes economicamente, devido às
Superintendência Federal de Pesca e Aquicultura do Estado do Tocantins [email protected]
Núcleo de Altos Estudos da Amazônia - Universidade Federal do Pará - [email protected]
151
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
barreiras sanitárias. O aumento da oferta
de peixe manejado passou a concorrer
com à disponibilidade de pescado
ilegal nas feiras e supermercados dessas
cidades, pela ineficiente fiscalização por
parte das organizações competentes
(AMARAL, 2007; 2009).
A concorrência com a produção ilegal
tem-se apresentado como um dos
principais obstáculos para a venda
de pirarucu manejado no estado do
Amazonas, porque aumenta a oferta
e reduz o preço pago pelo produto
manejado (VIANA et al. 2007; 2009).
Por esta razão, a comercialização é
apontada como um dos principais
obstáculos ao manejo (VIANA et al.,
2004;
2007).Poucos estudos tem
sido feitos com objetivo de analisar o
impacto dessas mudanças (AMARAL,
2009). Considerando que o manejo de
pirarucu foi implementado nas RDSs
Mamirauá e Amanã como alternativa
econômica para minimizar os efeitos da
criação das Reservas para a população
local, este estudo tem o objetivo avaliar
a rentabilidade econômica da atividade
para a população envolvida.
MATERIAL E MÉTODOS
Para essa pesquisa, foram utilizados
dados primários, através de pesquisa
de campo e entrevistas, e dados
secundários, fornecidos pelo Instituto
de
Desenvolvimento
Sustentável
Mamirauá Programa de Manejo de Pesca
(PMP - IDSM).
Para avaliar o desempenho econômico do
manejo de pirarucu nas RDS Mamirauá
e Amanã foi feito um levantamento
do número de pescadores, das cotas
de pesca estabelecidas por pescador,
da pesca e dos custos relacionados
a atividade em quatro sistemas que
manejaram pirarucu no ano de 2007.
A coleta em campo foi realizada
entre setembro e dezembro de 2008,
durante o período de planejamento,
pesca e comercialização do pirarucu.
Participaram deste estudo pescadores
dos setores Jarauá, Tijuaca e Colônia de
Pescadores Z-32 de Maraã, que tem suas
áreas de manejo localizadas na RDSM, e
setor Coraci, que tem sua área de manejo
localizada na RDSA (Figura 1). Estas
localidades serão referidas no texto
como Jarauá, Tijuaca, Maraã e Coraci.
Este estudo faz parte da dissertação de
mestrado da primeira autora.
Amostra e Procedimentos de Coleta
O levantamento de informações
econômicas da pesca de pirarucu de
2008 foi feito por meio de entrevistas
estruturadas com pescadores. De
um universo de 497 pescadores das
localidades de Jarauá (312), Tijuaca
(76), Coraci (40) e Maraã (69), que
participaram da pesca em 2007, foi
sorteada uma amostra aleatória de 142
pescadores (29%), respeitando apenas a
proporção de pescadores por localidade.
Todos os pescadores sorteados foram
convidados a participar da pesquisa.
Destes, 104 (21% do universo)
aceitaram participar e ou preencheram
corretamente
os
questionários
entregues. Esta é considerada uma
amostra relevante devido as limitações
desse tipo de levantamento tais como:
grandes distâncias geográficas entre
um sistema de manejo e outro; elevado
número de pescadores participantes
e falta de uma cultura de registro
e controle financeiro por parte dos
pescadores.
152
Produtividade e eficiência econômica da pesca de pirarucu (Arapaima gigas) nas áreas de manejo das reservas Amanã e Mamirauá
• Ellen Amaral • Oriana Almeida
Figura 1 - Área das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - RDSM e
Amanã - RDSA, região do Médio Solimões, Amazonas - Brasil.
A cada pescador da amostra foi entregue
um caderno de anotações (questionário
estruturado) para registrar o tipo de
embarcação utilizada, os insumos
utilizados na pesca e seus custos, os
apetrechos utilizados e o tempo de
pesca. Para os pescadores que não
sabiam escrever, foi solicitado que as
anotações fossem feitas pelos filhos
ou esposa que soubessem escrever.
Ao final do período de pesca, todos os
pescadores amostrados foram visitados
novamente com objetivo de fazer uma
revisão das anotações dos custos e
corrigir os erros encontrados a partir da
lembrança dos próprios pescadores.
Considerando que a unidade de
análise era o domicílio e os ribeirinhos
trabalham sob o modo de produção
familiar, no caso em que havia mais de
uma cota por domicílio (por exemplo,
para a esposa e para marido), a soma
das duas foi considerada como uma cota
única.
Análises Realizadas
Os sistemas de manejo de pirarucu
foram analisados em termos de a)
produtividade pesqueira (captura por
unidade de esforço); b) desempenho
do sistema de manejo em relação as
cotas autorizadas (relação entre cota
e captura) e c) a eficiência econômica
conforme o estudo de Almeida et al.
(2001).
a) Produtividade pesqueira
A produtividade foi medida pela Captura
por Unidade de Esforço (CPUE) em
termos de quilos de pirarucu capturados
por dia, por pescador (PETRERE JR.,
1978b). No caso de três das quatro áreas
estudadas, Jarauá, Coraci e Maraã, o
sistema é relativamente homogêneo e
são utilizados dois tipos de apetrechos
de pesca de forma associada: arpão
e malhadeira. Assim, para avaliar a
produtividade, foi calculado CPUE
dessas três áreas.
153
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
b) Desempenho em relação às cotas de
captura
A partir de 2000, as cotas de capturas
autorizadas pelo IBAMA passaram a
ser em número de peixes, devido ao
advento das contagens (VER CAPÍTULO
CAROL DESTE LIVRO). Desde então, a
relação entre cota e captura tem sido
utilizada como indicativo tanto da
disponibilidade do recurso no ambiente,
quanto da organização dos pescadores
para a produção. Considerando isso,
neste estudo foi elaborado o seguinte
índice para medir o desempenho dos
sistemas de manejo em relação às cotas
de captura autorizadas:
IDP = P/C
Em que:
IDP: é o Índice de desempenho da pesca;
C: é o número de pirarucus da cota do
pescador;
P: é o número de pirarucus pescados
pelo pescador;
onde:
IDP entre 0,0 e 0,39 = Baixo;
IDP entre 0,4 e 0,59 = Regular;
IDP entre 0,6 e 0,89 = Bom;
IDP entre 0,9 e 1,0 = Ótimo
Um IDP baixo pode indicar que os
sistemas de manejo não estão sendo
protegidos, pois os peixes não estão
disponíveis, ou mesmo que falta
organização do grupo de pescadores
para pescar e vender a produção. Em
ambos os casos, o baixo IDP pode
representar prejuízos econômicos ao
grupo por não conseguirem cumprir
cláusulas contratuais de venda. Em
contrapartida, um IDP entre bom e ótimo
pode indicar que o sistema de manejo
possui recurso pesqueiro disponível e
capacidade de produzir, atendendo o
mercado de forma satisfatória.
c) Eficiência Econômica
Para analisar a eficiência econômica
do manejo de pirarucu foi calculado o
custo de produção das áreas de manejo,
a relação benefício-custo e a receita
líquida, com base no estudo de Almeida
et al. (2001).
Para tal, foi levantada a composição dos
custos dos pescadores entrevistados.
Os itens de custo analisados foram:
combustível,
alimentação,
gelo,
utensílios (faca, bota, lanterna, etc.),
mensalidade ou outras despesas com
a associação/colônia. Também foi
incluído o custo de oportunidade da
mão de obra do pescador com base
no salário mínimo. Contribuições para
despesas adicionais das associações,
fornecido em caráter voluntário, não
foram considerados. Também não
foi contabilizada a assessoria técnica
oriunda de organizações sem fins
lucrativos que deram e dão apoio aos
sistemas de manejo.
A renda líquida foi calculada subtraindo
os custos fixos e variáveis da receita
bruta (BUARQUE, 1991). Para identificar
se havia diferenças entre a renda dos
pescadores de cada região, foi calculado
o intervalo de confiança, e, para avaliar
diferenças entre as áreas de manejo foi
realizado o teste Kruskal Wallis e o teste
Mann Whitnney.
Produtividade da pesca manejada e
desempenho em relação às cotas
A cota dos pescadores é estabelecida
com base na cota geral da associação,
dividida pelo número de pescadores
sócios e que possuem Registro Geral de
Pesca (RGP) naquele ano. A partir dessa
média, a cota é ajustada em função
da colaboração de cada pescador à
154
Produtividade e eficiência econômica da pesca de pirarucu (Arapaima gigas) nas áreas de manejo das reservas Amanã e Mamirauá
• Ellen Amaral • Oriana Almeida
associação ao longo do ano (presença
em reuniões, participação nos trabalhos,
respeito às normas), ou subtraída em
função das punições que o pescador
tenha recebido por ter descumprido
alguma norma.
Em 2008, a cota média foi de 7 peixes
por pescador, variando entre 6 peixes
por pescador em Maraã e 19 peixes
por pescador em Jarauá (Amaral, 2009).
Em relação ao CPUE, Jarauá obteve a
maior produtividade de todas as áreas,
com 39,99 kg/pescador/dia, seguido
de Maraã com 34,48 kg/pescador/dia,
Tijuaca com 29,77 kg/pescador/dia e
Coraci, com 26,10 kg/pescador/dia. Essa
alta produtividade do Jarauá pode ser
explicada pela abundância do pescado
nos lagos (Tabela 1). A comparação entre
o desempenho de pesca (relação entre
cota autorizada e quantidade pescada)
e a produtividade (Captura por Unidade
de Esforço - CPUE) das áreas de pesca
foi utilizada para avaliar o potencial
de produção dos diferentes grupos
(disponibilidade de recurso, organização
para a pesca, etc) (Tabela 1).
Nos sistemas estudados, o índice de
desempenho da pesca, que mede
a relação entre a cota e o pescado
efetivamente, mostrou que o Setor
Jarauá teve o menor desempenho com
um IDP=0,68, considerado “bom”.
O desempenho mais baixo de IDP
pode indicar que haja deficiência na
organização produtiva dos pescadores
(Tabela 1). O alto IDP de Maraã, por
sua vez, mostra um processo de pesca
mais eficiente, se comparado aos outros
sistemas.
O setor Coraci obteve a menor
produtividade em relação às demais
áreas, de 26,10 kg/pescador/dia. Este
resultado se deu, provavelmente, pelo
difícil acesso as áreas de pesca (Tabela
1), pois os pescadores tem que carregar
o pescado manualmente em um trecho
do caminho, aumentando o tempo e
esforço no deslocamento da produção.
O setor Coraci obteve a menor
produtividade em relação às demais
áreas, de 26,10 kg/pescador/dia. Este
resultado se deu, provavelmente, pelo
difícil acesso as áreas de pesca (Tabela
1), fazendo com que os pescadores
carreguem o pescado manualmente em
um trecho do caminho, aumentando o
tempo e esforço no deslocamento da
produção.
Tabela 1 – Potencial produtivo da pesca manejada de pirarucu das diferentes localidades de manejo,
através dos índices de desempenho da pesca manejada (IDP) e Captura por Unidade de Esforço (CPUE).
Tijuaca
IDP
DP
CPUE
DP
0,85
0,14
29,77
26,19
Coraci
0,81
0,22
26,10
12,71
Jarauá
0,68
0,18
39,99
17,16
Maraã
1,00
0,00
34,48
13,26
155
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Eficiência Econômica da Pesca de
pirarucu Manejado
a) Estrutura de Custos
Os itens que compõem os custos
são: combustível, alimentação, gelo,
depreciação, despesas com associação
e custo de oportunidade de mão de
obra (Figura 2). Para as quatro áreas de
manejo, a análise mostrou variação na
composição dos custos.
Nos setores Tijuaca, Coraci e Jarauá
o custo de oportunidade de mão de
obra se apresentou como o principal
custo. Os custos não apresentam uma
estrutura idêntica entre regiões. Jarauá,
por exemplo, teve como principal custo
após a mão de obra, o combustível,
17%, seguido de depreciação de
equipamentos.
No caso do Setor
Tijuaca, 33% do custo total foi gasto
com pagamentos de ajudante. Esse é o
único setor que tem muitos pescadores
sem Registro Geral de Pesca e que, por
exigência dos órgãos regulamentadores
da pesca de pirarucu, não têm direito
de ganhar a cota na íntegra. Essa regra
foi estabelecida após diversas iniciativas
de facilitar o processo de retirada
de documentos dos que ainda não
estavam habilitados, mas apresentou
pouco sucesso. Assim, os pescadores
documentados deste sistema precisaram
pagar ajudantes para ajudar a retirada da
cota. Apenas este setor não apresentou
custo com associação, pelo fato de as
associações não cobrarem mensalidades
e funcionarem mediante um sistema
de contribuição voluntária quando
necessita de algum recurso financeiro.
No caso de Maraã, o custo mais alto (45%)
foi relativo às despesas com a Colônia
de pescadores, pois nessa região cada
pescador contribui com 15% do valor
total arrecadado, acrescido de R$20
para pagar os tratadores de pirarucu e
os monitores que fazem o registro do
peixe, além da anuidade, no valor de
R$120.
Figura 2 -Custo médio da pesca manejada de pirarucu em 2008 por item, nos setores Jarauá,
Tijuaca, Coraci e Colônia de pescadores Z-32 de Maraã, nas Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Amanã e Mamirauá.
156
Produtividade e eficiência econômica da pesca de pirarucu (Arapaima gigas) nas áreas de manejo das reservas Amanã e Mamirauá
• Ellen Amaral • Oriana Almeida
O gelo é um custo somente em Maraã.
Boa parte desse gelo é utilizado porque
os pescadores acampam nas áreas
próximas aos ambientes de pesca e
levam suas famílias consigo. As demais
áreas também utilizam gelo, mas não
declaram como despesa, pois o gelo é
fornecido pelo comprador.
Desconsiderando o custo de oportunidade de mão de obra, as maiores despesas passam a ser pagamento de ajudantes, no Tijuaca (56%); combustível,
no Jarauá (36%); e despesas com associação/colônia, nos casos de Maraã (59%) e
Coraci (34%).
Em todas as áreas estudadas os pescadores tiveram retorno econômico positivo (Tabela 2). A média da receita líquida
dos pescadores amostrados foi de R$
1.402,30 por ano. As receitas líquidas
dos pescadores do Jarauá, Tijuaca, Coraci e Maraã foram comparadas através
do teste de Kruskal Wallis (a=0,05).
Assim, verificou-se que as mesmas não
apresentaram distribuição normal aplicando-se o teste Lilliefors. Como foram
verificadas diferenças significativas do
setor Jarauá para as demais áreas de manejo, aplicou-se o teste Mann Whitnney
(a=0,05). A receita líquida do Jarauá foi
significativamente diferente (p=0,003),
sendo bem superior às demais.
(Tabela 2 e Figura 3).
Tabela 2 – Intervalo de confiança das receitas líquidas médias dos pescadores por localidade de manejo.
Área de manejo
Média
Desvio Padrão
IC Inferior
IC superior
Classificação
A
Tijuaca
1.040,26
507,76
896,61
1.183,91
Coraci
2.709,93
1.554,86
2.123,43
3.296,43
B
Jarauá
714,76
642,20
239,01
1.190,51
A
Maraã
798,39
354,70
650,17
946,61
A
Figura 3 - Variação da receita média líquida por pescador das Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Amanã e Mamirauá, por área de manejo, no ano de 2008.
157
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 4 - Lucratividade do manejo de pirarucu por área de manejo.
O custo médio por quilo de pirarucu
também variou entre as áreas sendo que
o maior custo de produção foi em Maraã,
devido ao alto custo de despesas com a
Colônia (Tabela 3). Mesmo assim, essa
área conseguiu negociar o maior preço,
R$ 4,50 por quilo, e obteve um lucro de
41% sobre a receita. O menor custo de
produção por quilo foi no setor Coraci.
O maior saldo entre as áreas foi do setor
Jarauá, o que justifica sua alta receita
líquida total. Isto se dá, provavelmente,
pela abundância do recurso e pelas altas
cotas individuais. No Coraci, entretanto,
a cada R$1,00 investido, retornam
R$2,00 líquido (Tabela 3).
DISCUSSÃO
De modo geral, as quatro áreas de
manejo estudadas apresentaram o
desempenho produtivo positivo, pois
todas estas áreas apresentaram entre
bom e ótimo índice de desempenho.
Isso retrata tanto a disponibilidade do
recurso nos lagos quanto à capacidade
organizacional dos grupos para
captura de suas cotas (AMARAL, 2009).
Todavia, o baixo desempenho do
Tabela 3 - Custo, preço de venda e o receita líquida por quilo de pirarucu de cada área de manejo,
Custos
DP
Preço de venda *
% do custo sobre a receita
Tijuaca
2,49
0,54
3,50
29
Coraci
1,47
0,72
4,00
63
Jarauá
1,30
0,53
3,96
67
Maraã
2,64
0,58
4,50
* Sem desvio padrão porque somente um preço é estabelecido
158
Produtividade e eficiência econômica da pesca de pirarucu (Arapaima gigas) nas áreas de manejo das reservas Amanã e Mamirauá
• Ellen Amaral • Oriana Almeida
Jarauá em relação as demais áreas
pode ser explicado pelos problemas
organizacionais que a associação
enfrentou no ano de 2008.
Em relação ao CPUE das áreas de
manejo, os resultados encontrados
para o Jarauá, de 39,99 kg/pescador/
dia, assim como dos CPUE das demais
regiões são muito superiores aos
encontrados por Queiroz e Sardinha
(1999), para os anos de 1993, 1994 e
1995, nesta mesma área, de 1,28 kg/
pescador/dia, 1,10 kg/pescador/dia, 1,06
kg/pescador/dia, respectivamente. Esse
aumento considerável pode ter ocorrido
em função do aumento populacional
da espécie a partir do manejo iniciado
em 1999. Na década de 1990, Queiroz
e Sardinha (1999) identificaram que
a população de pirarucus estava
bastante comprometida devido a pesca
descontrolada e ao acesso que barcos
geleiros tinham nos locais de pesca.
Desde então, em função das ações de
manejo, as densidades populacionais
de pirarucu apresentaram tendências de
crescimento em cerca de quatro vezes
(ARANTES, 2009).
No manejo, ao contrário, a pesca é
restrita a um grupo que ordena a
exploração do recurso e protege a área,
o que resulta no aumento da população
da espécie. Além desta razão, a pesca
do manejo ocorre de forma diferente
da pesca realizada na década de 1990.
Sua maior característica é a realização
da pesca em um período estabelecido
de cerca de 20 a 40 dias, a organização
dos pescadores em grupo, a utilização
de apetrechos de pesca de forma
associada e uma maior capacidade
de escoamento e armazenamento da
produção. Anteriormente, a pesca
ocorria de acordo com as iniciativas
individuais onde cada pescador pescava
um ou dois pirarucus e não tinha como
armazenar a produção. Mesmo sendo
alto CPUE de 2008, quando comparado
a dados anteriores, a cota é estabelecida
com base na população contada pelos
pescadores e representa cerca de 30%
dos pirarucus adultos contados nos
lagos (VIANA et al., 2004; 2007).
Com relação a eficiência econômica,
a rentabilidade de uma pescaria em
sistema de manejo está fortemente
correlacionada com o sucesso desse
sistema de manejo. Para famílias que
dependem da pesca na região amazônica
que se encontram, em geral, grande
parte abaixo da linha da pobreza, essa
rentabilidade é fundamental (RAUDA
et al., Submetido; PERALTA et al.,
2009). Todas as áreas apresentaram
lucratividade mostrando uma receita
média líquida de R$ 1.402,30 para dois
meses de trabalho. Esse retorno, mostra
que o manejo de pirarucu tem trazido
uma contribuição significativa para a
população local comparado por exemplo,
com a remuneração de pescadores
embarcados na região de Santarém que
são remunerados com uma proporção
menor que o salário mínimo por mês
(ALMEIDA et al., 2003; 2001). Entre os
anos de 2005 e 2006, Peralta et al. (2009)
estimou a renda média anual bruta da
região em $ 3.319,00 (+ - US$ 1,040)
para os moradores da RDS Mamirauá.
Esse valor inclui a renda do pirarucu
dessas famílias. Isso significa que 42% da
renda vêm do pirarucu. Também pouco
mais da metade desse valor (58%) é de
origem da produção doméstica. Assim,
159
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
significa que o pirarucu representa
quase a totalidade de renda dessas
famílias (LIMA, 2006, PERALTA et al.,
2009). Também comparado com as
renda per capita anual médias do IBGE
para região, mesmo considerando as
diferenças metodológicas, pode-se
notar um aumento relevante dos ganhos
dado que a renda anual varia entre R$
692,49 em Maraã e R$ 2.130,60 em
Tefé, municípios onde as Reservas estão
inseridas (IBGE 2000) (VIANA et al. 2007)
e a renda do pirarucu se refere a uma
renda para dois meses.
Como colocado por Ruttan (1998) as
necessidade de conservação podem não
ser a principal razão para conservação,
necessitando incentivos retorno das
atividades para sua sustentabilidade ao
longo do tempo (ALMEIDA, 2009).
CONCLUSÕES
As análises apresentadas mostraram que
o manejo trouxe retorno econômico
positivo no ano de 2008 para os
pescadores envolvidos. Mais que isso.
Considerando a importância da pesca da
espécie para a renda das famílias, podese assumir que o manejo contribuiu para
o aumento na renda, alcançando parte
de seus objetivos iniciais.
Apesar do aumento na receita, alguns
riscos foram identificados como
ameaças ao sucesso do manejo. Por
exemplo, o elevado número de sócios
na Colônia de Pescadores de Maraã, sem
a expansão das áreas de pesca, pode
significar menor retorno econômico
para os participantes do plano de
manejo no futuro próximo.
Essa
área também apresentou expressiva
parte dos custos com despesas com
a Colônia, o que poderia resultar em
uma certa acomodação por parte
desta organização, uma vez que,
independente dos ganhos individuais,
a porcentagem recebida pela Colônia
continua aumentando a cada ano, a
ponto de a manutenção dessa entidade
girar principalmente em torno da renda
gerada pelo pirarucu e, em menor parte,
pelo contribuição dos sócios.
Mesmo com a atual situação econômica
favorável, em função sobretudo da
disponibilidade do recurso e da gestão
participativa do recurso, torna-se
fundamental que os pescadores e suas
instituições continuem a monitorar seus
custos e a fazer planejamento financeiro,
de modo a diminuir custos dos insumos
e dessa forma garantir a diminuição de
seus gastos. Isso porque, ainda nesse
mercado, o preço é em maior parte
definido pelo comprador.
Além disso, atualmente o pirarucu tem
sido vendido inteiro eviscerado, não
havendo processamento adicional que
agregue valor ao produto. Em parte, o
isolamento geográfico das comunidades
e as barreiras naturais da várzea impedem
que se obtenha um produto de melhor
qualidade, e a falta de infraestrutura e
de tecnologia adequadas, corroboram
para a não transformação desse produto.
Mesmo assim, o aumento da produção
pesqueira como resultado dos sistemas
de manejo se tornou uma oportunidade
fundamental de desenvolvimento local
para as famílias ribeirinhas das Reservas.
160
Produtividade e eficiência econômica da pesca de pirarucu (Arapaima gigas) nas áreas de manejo das reservas Amanã e Mamirauá
• Ellen Amaral • Oriana Almeida
AGRADECIMENTOS
Agradecemos aos pescadores de
pirarucu e associações que os
representam pelo apoio na pesquisa,
a equipe do Programa de Pesca do
Instituto Mamirauá e ao Murilo Arantes,
pelo trabalho de campo. A Equipe do
Programa de Manejo de Pesca. Ao Aldrin
do SIG/IDSM. Ao Instituto Mamirauá,
Ministério da Ciência e Tecnologia
e Petrobrás pelo apoio logístico e
financeiro a este estudo.
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commercial fisheries of the lower Amazon: an
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AMARAL, E. S. R. A comunidade e o mercado: os
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AMARAL, E. S. R. O Manejo Comunitário de
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Áreas Protegidas do Brasil, v. 4).
161
A FOTOGRAFIA COMO INSTRUMENTO DE DOCUMENTAÇÃO
DO MANEJO DE PIRARUCU EM MARAÃ, NO AMAZONAS
Rafael Castanheira1
RESUMO
Entre os anos de 2006 e 2010, o manejo
de pirarucu (Arapaima gigas) realizado
pela Colônia de Pescadores Z-32 de
Maraã, no Amazonas foi amplamente
documentado e fotografado. Através da
documentação foi possível (re)construir
a história dessa pesca do ponto de vista
social, econômico e ambiental, com foco
nas relações sociais entre os pescadores
e destes com o meio ambiente. O
resultado dessa pesquisa mostrou
que esse modelo de pesca em Maraã
não tem apenas aumentado o lucro e,
consequentemente, o poder de escolha
e consumo dos pescadores, mas tem
também resgatado os valores culturais
da pesca tradicional e promovido
o espírito de coletividade entre os
pescadores e demais atores envolvidos
neste processo.
ABSTRACT
Since 2006 the pirarucu’s (Arapaima
gigas) fisheries management developed
by Fisher Colony Z-32 in the district
of Maraã, Amazonas, have been
documented and photographed. This
1
documentation tries to (re) construct the
management history, from the social,
economical and environmental point of
view. This research has show that this
fisheries management has increasing
the fisher’s income, holding the cultural
values of this traditional fishing and
finally promoting the collectivity spirit
between fisher and other social actors
involved at this activity.
O MANEJO DE PESCA NA RESERVA
MAMIRAUÁ E A COLÔNIA Z-32 DE
MARAÃ
A
Reserva
de
Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá - RDSM foi criada
em 1990 pelo governo do Estado do
Amazonas, compreendendo uma área
de 1.124.000 hectares, delimitada pelos
rios Solimões, Japurá e Uati-Paraná, na
região do médio Solimões, próxima
a cidade de Tefé (600 km a oeste de
Manaus) (SCM, 1996). Trata-se de uma
categoria de Unidade de Conservação
(UC)2 cuja área protegida é de uso
sustentável com o objetivo de promover
a conservação da biodiversidade e
a exploração racional dos recursos
Rafael Castanheira é fotógrafo, doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e
mestre em Artes e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: rafaelcastanheira@
hotmail.com
163
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
naturais por parte de seus habitantes.
O manejo de pirarucu foi implementado
em 1999, pelo Projeto Mamirauá,
hoje Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá - IDSM, daqui
em diante, Organização Social com
Contrato de Gestão assinado com o
Ministério da Ciência e Tecnologia - MCT.
Juntamente com o Centro Estadual de
Unidades de Conservação - CEUC/SDS,
o IDSM é responsável pela cogestão
da Reserva Mamirauá (Figura 1) e atua
no desenvolvimento de pesquisa,
monitoramento e extensão, visando
à conservação da biodiversidade da
Amazônia pelo uso sustentável dos
recursos naturais e participativo das
comunidades ribeirinhas da região3.
A pesca é uma das principais atividades
praticadas na Reserva Mamirauá e,
no município de Maraã, além de ser a
maior fonte de alimento e trabalho,
ela constitui a identidade do povo da
região. Pescadores locais afirmam que,
no passado, os recursos pesqueiros
do município eram demasiadamente
explorados não apenas por seus
2
3
Unidades de Conservação são áreas legalmente
definidas para a conservação dos recursos
naturais. Existem duas categorias de Unidades
de Conservação no Brasil: as de Uso Sustentável
e as de Proteção Integral. No caso das UCs de
uso sustentável, posteriormente à proteção da
diversidade biológica, dos recursos genéticos,
das espécies ameaçadas e da diversidade dos
ecossistemas, o Sistema Nacional de Unidade
de Conservação (SNUC) estabelece ainda outras
regulamentações que procuram compatibilizar a
conservação à ocupação humana (Lei no 9.985,
de 18 de julho de 2000 – Sistema Nacional de
Unidades de Conservação - SNUC).
Ver www.mamiraua.org.br
moradores, mas também por frotas
pesqueiras comerciais das cidades de
Tefé e Alvarães e de outros municípios
amazonenses,
como
Manaus
e
Manacapuru.
Com a criação da Associação
de Pescadores de Maraã (1998),
transformada, no ano de 2002, em
Colônia de Pescadores Z-32 de Maraã
(COLPEMA, daqui em diante), a atividade
pesqueira tornou-se ainda mais
importante para a economia da cidade,
especialmente, após a implantação do
manejo de pirarucu, que é realizado,
desde 2002, no Complexo do Lago
Preto– área pertencente ao município
de Maraã e inserida também nos limites
da Reserva Mamirauá (Figura 1).
O Complexo do Lago Preto está situado a
17 km em linha reta da sede do município
de Maraã. É neste local, com cerca de 20
km² e 37 lagos, que os pescadores da
COLPEMA começaram em 1999, os seus
trabalhos de preservação ambiental.
Em 2001, a convite dos pescadores
da COLPEMA, os pesquisadores do
Programa de Manejo de Pesca do
Instituto Mamirauá foram ao Complexo
do Lago Preto, fizeram o zoneamento da
área, nomeando os lagos e desenhando,
primeiramente à mão, o mapa que
foi depois detalhado com a ajuda de
imagens de satélite e constataram que
a região possuía quantidade suficiente
de pirarucus para o início do manejo.
A partir desta constatação, elaboraram
o projeto de manejo de pirarucu para
a região, cuja proposta foi enviada e,
posteriormente, aprovada pela Gerência
Executiva do IBAMA no Amazonas para
o ano de 2002.
164
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Fonte : Sistema de Informação Geográfica do Instituto Mamirauá (SIG-IDSM)
Figura 1 – Mapa da Reserva Mamirauá com Complexo do Lago Preto destacado.
A DOCUMENTAÇÃO DO MANEJO DE
PESCA
Inicialmente, o projeto de documentação
do manejo de pirarucu realizado pela
COLPEMA tinha o objetivo de registrar
apenas as etapas desta atividade: as
técnicas de captura do pirarucu, seu
transporte e comercialização, ou seja,
registrar a cadeia produtiva do pescado
proveniente do manejo de Maraã, tendo
em vista a publicação de uma reportagem.
Para isso, além do serviço como
fotógrafo, foi proposto o pagamento
dos gastos referentes aos equipamentos
fotográficos. Por outro lado, a COLPEMA
forneceria o apoio logístico necessário
para a realização do trabalho, como
alimentação, acomodação e transporte
para o deslocamento nos lagos durante
a documentação das atividades do
manejo.
Firmou-se,
naquele
momento,
uma parceria na qual o projeto de
documentação se beneficiaria com o
apoio logístico e, principalmente, com
o consentimento dos pescadores que
aceitaram a realização do trabalho.
Em contrapartida, além da divulgação
dos trabalhos da Colônia Z-32 por tal
publicação, que muito interessou à
diretoria, o projeto previa o direito de
uso das fotografias em seus materiais de
divulgação institucional. Ou seja, para a
COLPEMA, a parceria representou uma
oportunidade de divulgação de seus
trabalhos para a sociedade e, sobretudo,
para as instituições que atuam no setor
pesqueiro do país, além de poder contar
com um banco de imagens sobre suas
atividades, já que, após a realização
da documentação das atividades do
manejo de pesca do ano de 2006,
165
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
foram enviados à sede da Colônia em
Maraã três álbuns com cerca de 1000
fotografias impressas em formato 10
por 15 cm, 50 pôsteres em formato 30
por 40 cm e um CD-ROOM contendo
todas as fotografias digitalizadas.
Da cobertura fotojornalística para o
ensaio documental
Durante a etapa de documentação
na região, entre os meses de julho e
dezembro de 2006, o tempo de trabalho
na cidade de Maraã foi dividido entre
as leituras de textos sobre o manejo e
documentos da COLPEMA, as entrevistas
nas casas dos pescadores e as coberturas
fotográficas de diversas reuniões de
organização para a pesca, bem como
de uma oficina de capacitação dos
pescadores para a comercialização
do pescado oferecida pelo Instituto
Mamirauá.
Além das pesquisas na cidade de Maraã,
onde se pôde acompanhar a rotina de
vida dos pescadores no dia-a-dia com
suas famílias e amigos. Realizaramse diversas viagens ao Complexo
do Lago Preto para acompanhar as
atividades do manejo como, por
exemplo, a fiscalização dos lagos, a
contagem de pirarucus, a preparação
do acampamento e dos flutuantes
de tratamento e monitoramento do
pescado, a pesca do tambaqui e pirarucu,
o pré-beneficiamento dos peixes, seu
escoamento e comercialização nos
mercados de Maraã, Tefé e Manaus.
O resultado do trabalho realizado no
ano de 2006 é um acervo com mais de
3.000 fotografias em preto-e-branco,
textos em caderno de campo, cópias
de documentos e entrevistas gravadas
com pescadores, membros da diretoria
da COLPEMA, técnicos em pesca e
pesquisadores de diversas instituições
privadas e governamentais ligadas à
gestão da Reserva Mamirauá em Maraã,
Tefé, Manaus e Brasília, além de donos
de barcos, despachantes, comerciantes,
empresários e consumidores.
Em janeiro de 2007, depois de
revelados os filmes e transcritas as
entrevistas, relatos e descrições dos
cadernos de anotações, percebeu-se
que havia sido produzido uma grande
quantidade de dados, reunindo um
conjunto de imagens e textos que, se
melhor trabalhado, poderia não apenas
descrever a cadeia produtiva do pescado
manejado de Maraã em uma reportagem
sucinta a ser publicada em um jornal ou
revista, mas, sobretudo, (re)construir a
história do manejo de pesca do ponto
de vista social, econômico e ambiental,
com foco nas relações sociais entre
os pescadores e destes com o meio
ambiente.
Usa-se o termo (re)construir, pois partese do princípio de que toda forma de
documentação fotográfica, ainda que se
pretenda registrar a realidade tal como se
vê, traz consigo a subjetividade do olhar
do fotógrafo. Dessa forma, a câmera
fotográfica não é uma reprodutora
neutra da realidade e toda fotografia é
autoral e traz, além de seu conteúdo, a
expressão, a forma, a escrita por meio
da qual seu autor se exprime. Assim,
constrói-se aqui a história do manejo a
partir de fotografias e textos produzidos
por um autor e sua maneira de olhá-lo.
Diante deste contexto, decidiu-se partir
para a realização de um trabalho que
envolvesse uma narrativa visual4, cujo
conteúdo abrangesse não somente
166
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
a cadeia produtiva do pescado da
COLPEMA (o objetivo inicial), mas,
principalmente, buscasse entender o
que é para o pescador ser pescador (sua
vida familiar, social e financeira), como
é a sua relação com o meio ambiente
e com os colegas de pesca e como ele
enxerga o manejo dentro do contexto
da preservação dos recursos ambientais
de seu município, visando finalmente à
produção de uma exposição fotográfica5.
Ao se entrar em contato com bibliografia
especializada
sobre
Antropologia,
Artes
Visuais,
Fotojornalismo
e
Fotografia Documental, decidiu-se dar
embasamento científico às experiências
que obtidas em campo ao longo desse
trabalho. Para isso, os estudos realizados
entre 2009 e 2011 no mestrado6 do
Programa de Pós-Graduação em Cultura
Visual da Universidade Federal de
Goiás (FAV/UFG), cujo objetivo principal
era discutir o estatuto da fotografia
documental contemporânea a partir de
4
5
6
A narrativa visual da documentação do manejo
de pesca da Colônia Z-32 será apresentada ao
final deste artigo e tem como objetivo mostrar
um conjunto de fotografias que, organizadas em
uma sequência específica visa dar unidade ao
trabalho em sua apresentação do tema.
A exposição fotográfica intitulada pirarucu Z-32
foi realizada na Potrich Galeria de Arte em Goiânia,
Goiás, entre os dias 12 de abril e 13 de maio e
deve seguir como projeto itinerante por outras
capitais do Brasil. O vídeo sobre a exposição
está disponível em: http://www.youtube.com/
watch?v=ZkTgAW0H46U
A pesquisa, intitulada “Visualidades Amazônicas:
a fotografia entre o documento e a expressão”,
foi defendida em abril de 2013 e encontra-se
disponível em: http://www.academico.com/
artigo/visualidades-amazonicas-a-fotografiaentre-o-documento-e-a-expressao.
uma revisão bibliográfica sobre o tema
e da análise crítica do meu trabalho de
documentação do manejo de pesca e
de outros trabalhos de fotógrafos que
atuaram na região amazônica, foram de
muita importância para a conclusão da
documentação do manejo de pesca em
Maraã.
No período de 2007 a 2010, retornava-se
à região somente durante os meses de
outubro e novembro, período da pesca
do pirarucu. A cada ano, permaneciase em Maraã por cerca de 20 dias e
buscava-se colher novos dados por meio
de fotografias, entrevistas e relatos
escritos em caderno de campo que
abordassem diferentes aspectos sobre o
manejo que não haviam sido percebidos
e/ou coletados nos anos anteriores e
poderiam, assim, dar outra perspectiva à
minha pesquisa. Ao longo destes quatro
anos, não apenas vivenciou-se todo o
processo de organização, produção e
comercialização da cadeia produtiva
do pescado manejado do município
de Maraã, mas também procurouse conhecer a cultura da região e,
sobretudo, a cultura do pescador: quem
é, onde vive, como se relaciona com
amigos, família e o meio ambiente.
O TRABALHO DE CAMPO
A abordagem aos pescadores
Ter morado desde o início da pesquisa
na sede da COLPEMA, em Maraã,
representou um fator muito importante
para a aceitação do trabalho por parte
dos pescadores em sua comunidade,
pois, para desenvolver um trabalho
de campo para a produção de um
ensaio documental, é necessário que
os sujeitos fotografados não apenas
aceitem a presença do pesquisador na
167
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
comunidade como também participem
da elaboração dos dados da pesquisa.
Afinal, como questiona Alves, “como
o pesquisador poderá fotografar as
pessoas se elas não o quiserem ali, junto
delas? Ou, mesmo se o aceitarem, e sua
presença causar constrangimentos?”
(2004, p. 110).
Diante deste contexto, procurou-se
conhecer não apenas os pescadores
como todos os moradores da cidade
de Maraã. Para isso, foi fundamental
a ajuda de dois dos principais
informantes nesta pesquisa: Luiz
Gonzaga (o “Luisão”) e Ruiter Braga,
respectivamente presidente e secretário
da COLPEMA em 2006. Na cidade de
Tefé, a Coordenadora do Programa de
Manejo de Pesca do IDSM, Ellen Amaral,
foi a principal informante ao longo
desse trabalho, sobretudo com relação
às questões técnicas e burocráticas
acerca do manejo na Reserva Mamirauá.
Além de o projeto ser apresentado
informalmente aos pescadores nas
ruas da cidade por “Luisão” e Ruiter
Braga, houve sua apresentação formal
a todos os sócios da COLPEMA durante
uma das reuniões de organização para
a pesca. Nesta ocasião, o projeto de
documentação do manejo foi explicado,
sendo que, para realizá-lo, acompanharse-ia as atividades nos lagos para fazer
as entrevistas e fotografias.
Como já foi comentado anteriormente,
foram enviadas à sede da COLPEMA as
fotografias que haviam sido produzidas
no primeiro ano da pesquisa (2006).
Em 2007, ampliou-se muitos retratos
que foram entregues pessoalmente aos
respectivos retratados. Dessa maneira,
nos anos que se seguiram (2008 a
2010) não apenas a abordagem como
também o relacionamento com os
pescadores mudaria. Em 2006, tinhase que se aproximar dos pescadores,
explicar-lhes os motivos do projeto e
os seus objetivos para, talvez, fazer as
entrevistas e fotografias. Naquele ano,
muitos deles mostraram-se receosos e
desconfiados com relação ao trabalho.
Nos anos seguintes, os pescadores já o
conheciam e se sentiam, portanto, mais
confiantes no trabalho de documentação
fotográfica. Assim, o processo inverteuse e, ao chegar aos lagos, houve
situações em que os pescadores pediam
para serem fotografados. Naturalmente,
alguns deles tornaram-se informantes e
parceiros importantes nesse trabalho.
Acredita-se que muitos dos pescadores
queriam ser fotografados, pois além de
poderem ter seus retratos expostos em
suas casas, os pôsteres que haviam sido
enviados a Maraã com suas imagens
em meio aos peixes foram fixados
nas paredes da sede da COLPEMA e
todos que por lá passavam viam tais
fotografias. É a visualidade do manejo
materializada ajudando a (re)construir,
de alguma forma, a história da instituição
no imaginário coletivo da cidade.
É importante ressaltar que o pesquisador
pode se envolver nas atividades que
está documentando, adquirindo o que
chama de recipe-knowlege (MONTEIRO,
2001,). Assim, procurava-se participar
dos trabalhos da COLPEMA: remavase junto com pescadores nos
deslocamentos pelos lagos e igarapés,
montava-se o acampamento à beira do
lago, preparava-se a refeição do dia,
ajudava-se na contagem dos pirarucus
e até mesmo tentava-se pescar por
meio de técnicas que nunca havia
168
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
sido experimentadas antes, como,
por exemplo, o arpão. Ao deixar de
lado a câmera fotográfica e o bloco de
notas para participar das atividades do
manejo, comportava-se dentro uma
metodologia caracterizada como aquilo
que o antropólogo Bronislaw Malinowski
chamou de observação participante7.
Isso, sem dúvida, trouxe proximidade
com os pescadores, aumentando a
cumplicidade, contribuindo de maneira
significativa para o avanço desta
documentação fotográfica.
Os tipos de registros
Para o estudo da comunidade de
pescadores da COLPEMA utilizaram-se
diferentes tipos de registros: diário de
campo, o registro de áudio por meio de
gravador e fita cassete (posteriormente
gravador digital, formato mp3) e,
especialmente, o registro de imagens
por meio da fotografia. O trabalho
de campo envolveu as observações e
reflexões anotadas em cadernos, as
entrevistas e as sessões fotográficas
realizadas nos lagos e nas cidades de
Maraã, Tefé, Manaus e Brasília. A seguir,
serão especificados quando e como
estes registros foram realizados.
7
A observação participante é um termo usado
para definir um método de investigação social
na qual o pesquisador se envolve nas ações
do grupo social que está analisando. Este tipo
de observação implica na sua participação
na vida quotidiana da sociedade que se está
pesquisando, sendo Bronislaw Malinowski um
de seus maiores teóricos. Ver Malinowski (1976).
As entrevistas
Ao longo dos seis anos de trabalho,
realizou-se cerca de 80 entrevistas
com pescadores, membros da diretoria
da COLPEMA, técnicos em pesca e
pesquisadores de diversas instituições
privadas e governamentais ligadas
à gestão da Reserva Mamirauá em
Maraã, Tefé, Manaus e Brasília, além
de donos de barcos, despachantes,
comerciantes e empresários. Parte
das entrevistas, especialmente as dos
técnicos e pesquisadores em pesca,
foi previamente agendada e o roteiro
das perguntas elaborado com base em
pesquisa sobre o assunto abordado.
No entanto, a maioria das entrevistas
com pescadores eram abertas, sem
roteiro, e as perguntas versavam sobre
as atividades que estavam sendo
desenvolvidas no momento, cujo
objetivo era explorar a espontaneidade
e naturalidade dos entrevistados. Com
tempos de duração que variaram de 10
minutos a quase 2 horas, dependendo do
entrevistado e da riqueza de detalhes do
assunto abordado. As entrevistas foram
dividas em 3 grupos: a) pescadores e
membros da diretoria da Colônia Z-32; b)
pesquisadores, técnicos e funcionários
de órgãos ligados à gestão dos recursos
pesqueiros no Brasil; c) empresários e
comerciantes de pescado.
Para escrever o Projeto de Documentação
do Manejo de Pesca, realizou-se
pesquisa em bibliografia especializada
sobre o assunto. No entanto, muitas
informações, especialmente aquelas
referentes à realidade do município de
Maraã como, por exemplo, as histórias da
pesca na região e da criação da COLPEMA
não estão documentadas em livros e
169
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
relatórios e só poderiam ser obtidas
por meio de entrevistas com pescadores
e moradores antigos da cidade. Dessa
forma, em 2006, realizaram-se as
primeiras entrevistas com “Luisão”,
presidente da COLPEMA, e com alguns
pesquisadores do Instituto Mamirauá,
com o objetivo de compreender o
processo de implantação do manejo em
Maraã para, então, finalizar o projeto
e iniciar a documentação fotográfica.
As perguntas dessas entrevistas eram
previamente elaboradas e visavam obter
as informações básicas sobre a realidade
na região.
Há dois momentos e objetivos distintos
na realização das entrevistas. Em 2006,
quando o objetivo da documentação era
a cadeia produtiva do pirarucu visando
à publicação de uma reportagem, as
entrevistas traziam perguntas que
enfocavam a pesca, os peixes e a
administração da COLPEMA e a maioria
dos entrevistados eram membros de sua
diretoria, comerciantes, empresários do
ramo e, principalmente, pesquisadores
de instituições ligadas à gestão dos
recursos pesqueiros na Amazônia,
como, por exemplo, a Secretaria de
Meio Ambiente de Maraã, o Instituto
Mamirauá, o IBAMA, a Secretaria
de Desenvolvimento Sustentável do
Amazonas (SDS – antiga Agroamazon), o
Ministério do Meio Ambiente (MMA), o
Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA
- antiga SEAP) e mais recentemente
o Centro Estadual de Unidades de
Conservação (CEUC).
A partir de 2007, com a mudança da
reportagem para a produção de um
ensaio fotográfico documental, o foco
central do trabalho passou a ser o
pescador e suas relações sociais durante
as atividades do manejo. Nesse segundo
momento, já com outro objetivo e uma
melhor compreensão sobre a realidade
da pesca em Maraã, os entrevistados
eram, exclusivamente, os pescadores e
suas famílias e as perguntas versavam,
principalmente, sobre os seguintes
temas: O que significa para o pescador
ser pescador? Qual é a sua visão sobre
a pesca manejada e sua importância
para a preservação do meio ambiente?
Além do dinheiro que o pescador obtém
no manejo, o que também lhe motiva
para os trabalhos da COLPEMA? Qual
é o papel das mulheres e da família no
manejo? Como os pescadores enxergam
o manejo para o futuro?
Com essa perspectiva, as entrevistas
foram realizadas com os pescadores nos
lagos, em sua maioria, entre os anos
2008 e 2010 e tiveram como finalidade
não apenas conhecer a atividade
pesqueira no manejo da COLPEMA (os
métodos, técnicas e conhecimentos do
pescador sobre o meio ambiente), mas,
sobretudo, entender o que a profissão
de pescador representa para eles. Para
a seleção dos pescadores entrevistados
foram priorizados os seguintes aspectos:
a) presença nas reuniões da COLPEMA e
nos lagos durante a pesca; b) nível de
envolvimento nas atividades do manejo.
Diário de campo
Para fazer as anotações durante as
atividades do manejo de pesca foram
considerados os seguintes aspectos: a) o
evento ou a etapa do manejo que estava
sendo documentada; b) a data, horário e
local da documentação; c) as ações e os
atores envolvidos na cena observada; d)
os discursos e diálogos realizados pelos
atores envolvidos na cena observada.
No diário de campo, anotava-se o dia, a
hora e o local da pesquisa, os números
170
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
dos filmes usados e os nomes, quando
possível, dos pescadores fotografados.
Descrevia-se resumidamente o ambiente
(as características geográficas, as cores
e os cheiros dos locais), os métodos e
técnicas de pesca (arpão ou malhadeira),
como os pescadores se distribuíam nos
lagos, como se posicionavam nas canoas,
o que levavam, comiam e conversavam.
Nele, também eram relatadas as
impressões sobre a pesca e as conversas
entre os pescadores: registros que as
fotografias não podiam captar. Sobre
a “necessária complementaridade”
(virtudes e potencialidades) da escrita e
da visualidade fotográfica, o antropólogo
Etienne Samain, ao introduzir o livro
Argonautas do Mangue, de André Alves
(2004), explica que:
[...] Entre a escrita e a visualidade
existem laços de cumplicidade
necessários. Uma e outra, à sua
maneira e com a sua singularidade
(ora enunciativa, ora ilustrativa,
ora despertadora), complementamse. A escrita indica e define o que
a imagem é incapaz de mostrar. A
fotografia mostra o que a escrita não
pode enunciar claramente .
As fotografias
Nesse trabalho, as fotografias são o
principal instrumento de registro das
atividades do manejo de pesca. Desde
o início dessa documentação, elas
exerceram um papel fundamental na
tomada e, sobretudo, na apresentação
dos dados aos pescadores, já que
muitos deles não sabem ler, e os
textos pouco adiantavam. A partir
do segundo ano de documentação
(2007), as fotografias foram usadas
para análise das atividades do manejo
e debate com alguns pescadores e,
principalmente, com os informantes.
Diante das imagens produzidas no ano
anterior, podia-se discutir e refletir
sobre as cenas registradas. Estas
conversas se mostraram extremamente
importantes para a definição dos temas
e categorias do roteiro de apresentação
das fotografias dessa pesquisa.
Além das conversas com os pescadores
sobre as imagens, realizou-se, via
internet, várias foto-entrevistas8 com
Ruiter Braga, ex-secretário da COLPEMA
e um dos principais informantes da
pesquisa. Atualmente, Ruiter vive em
Tefé (AM) e trabalha para o Instituto
Mamirauá. Ele recebia as fotografias
e perguntas por e-mail, as analisava e
respondia, fazendo comentários valiosos
sobre as imagens, como, por exemplo,
sobre as técnicas de posicionamento
das canoas durante as contagens de
pirarucus, sobre as diferentes formas
de produção dos instrumentos de
pesca, como hastes e arpão, ou sobre
questões mais simples, como a correção
dos nomes dos lagos ou dos nomes e
sobrenomes dos pescadores, citando,
por vezes, seus apelidos.
8
171
Foto-entrevista é a entrevista feita pelo
pesquisador com o seu informante na qual
se utilizam fotografias. Para Collier Junior,
“as fotografias estimulam a memória e dão à
entrevista um caráter de proximidade com os
objetos. O informante regressa a seu barco de
pesca, a seu trabalho com as madeiras, ou à
realização de uma habilidade. A oportunidade
projetiva das fotografias oferece um sentido
agradável de autoexpressão, enquanto o
informante é capaz de explicar e identificar o
conteúdo e instruir o entrevistador com o seu
conhecimento” (1973, p.70).
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Com a câmera fotográfica, procurouse registrar as cenas que melhor
descrevessem as diferentes atividades
realizadas pelos pescadores no manejo.
Em 2006, foram produzidas cerca de
3 mil fotografias. Nos anos seguintes
este número diminui não apenas pela
diminuição do tempo de permanência
na região, mas, principalmente, pelo
fato de a maioria das atividades já terem
sido documentadas para a conclusão
do trabalho. A cada ano, após analisar
as fotografias dos anos anteriores,
percebia-se
que
determinadas
atividades não haviam sido registradas
ou precisavam ser muito bem detalhadas
imageticamente. Assim, para o ano
seguinte, antes de retornar aos lagos,
anotava-se no caderno de campo os
temas que deveriam ser fotografados e
abordados nas entrevistas.
Houve, portanto, um refinamento na
produção das fotografias, haja vista
que à medida que o trabalho evoluía,
diminuíam-se as atividades a serem
registradas. Assim, em 2007 e 2008,
o foco do trabalho estava na figura do
pescador e, nesses dois anos, realizouse a maior parte das entrevistas e
produzi-se, respectivamente, 1050
e 540 fotografias, sendo a maioria
retratos de pescadores. No ano de 2009
e 2010, apenas 216 fotografias foram
produzidas, pois a concentração da
pesquisa voltou-se basicamente para
duas questões muito importantes: a
identificação dos nomes completos
dos pescadores fotografados e a coleta
de suas assinaturas para a Cessão de
Direito de Uso das Imagens.
Da edição das fotografias
Entende-se que o fotógrafo deva criar
mecanismos que facilitem a organização
e edição de suas fotografias. Como
haviam sido produzidas cerca de 5
mil fotografias ao longo do trabalho,
identificar todos os filmes com número
e data de uso foi essencial para que se
pudesse, meses depois, editá-las, criando
e separando-as por temas e categorias.
Pela numeração do filme e sua data de
uso, pôde-se analisar simultaneamente
fotografias, entrevistas e anotações
feitas no diário de campo e contrapor as
informações verbais com as visuais.
A interação das linguagens verbal (escrita)
e visual (fotografia) contribuiu para o
trabalho de edição das imagens, já que,
ao fotografar, o olhar concentra-se no
detalhe recortado pelo enquadramento
e ao escrever a observação voltava-se
para o ambiente geral, os cheiros, as
vozes e as sensações. Nesse contexto,
as entrevistas e anotações em diário de
campo ampliaram a visão sobre o manejo,
ou seja, estimularam a produção de
fotografias de cenas que simplesmente
não haviam sido enxergadas, indicaram
algumas informações que as fotografias
deveriam apresentar e possibilitaram,
sobretudo, ver importantes informações
nas fotografias que já haviam sido feitas
nos primeiros anos deste trabalho e
que, por vezes, tinham sido ignoradas.
Para o desenvolvimento da narrativa
visual, selecionou-se, inicialmente, 680
imagens e num segundo momento
48 que, finalmente, compuseram a
exposição fotográfica. Essa seleção
priorizou não apenas a cadeia produtiva
do pirarucu, mas principalmente, as
172
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Figura 2 – Reunião dos pescadores no Complexo do Lago Preto para definição final das regras do
manejo.
Figura 3 – Com auxílio de motosserra, pescadores cortam e retiram tronco do igarapé de acesso aos
lagos. A limpeza do igarapé é muito importante para facilitar o trânsito no local, diminuindo o tempo
entre o momento da captura do pirarucu e o seu pré-beneficiamento.
173
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 4 – Pescadores remam pelo igarapé em direção ao Lago Preto.
Figura 5 – No primeiro dia de pesca de 2006, formou-se uma fila de pescadores na entrada do
Lago do Canivete. À frente, vê-se a canoa de alumínio dos agentes ambientais e fiscais que são
responsáveis pelo acesso ao lago da pesca.
174
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Figura 6 – Pescadores se espalham com seus arpões pelo lago e aguardam a boiada do pirarucu para
arpoá-lo.
Figura 7 – O pescador Marcelino Orguizes mantém-se atento para perceber qualquer movimento na água.
175
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 8 – Pirarucu “boia” e pescadores jogam os arpões em sua direção.
Figura 9 – Pirarucu “boia” ao lado da canoa e pescador lança seu arpão para capturá-lo em seguida.
176
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Figura 10 – Pescador traz pela arpoeira o pirarucu para próximo da sua canoa e dá-lhe em sua cabeça
o golpe final com a clava de madeira.
Figura 11 – Após cortar a lateral da boca do pirarucu, pescador puxa-o para dentro da canoa.
177
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 12 – Pescador Hamilton Alves de Freitas puxa pirarucu para dentro de sua canoa.
Figura 13 – Pescadores, fiscais, monitores e tratadores de pirarucus se aglomeram no flutuante
para acompanhar os trabalhos de pré-beneficiamento, onde os pirarucus são eviscerados antes do
monitoramento.
178
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Figura 14 – pirarucus são eviscerados pelos tratadores em cima de cavaletes de madeira.
Primeiramente, corta-se a garganta do peixe e retiram-se a língua e as guelras. Abre-se então o bucho
do animal para a retirada das vísceras. Os tratadores são treinados para o serviço e recebem salário
pela temporada de trabalho.
Figura 15 – Os pirarucus são levados para os barcos e acondicionados em câmaras frias com o gelo.
179
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 16 – Ancorado na balsa da Feira da Panair, em Manaus, Amazonas, o barco tem em sua proa
um exemplar de pirarucu que é exibido a fim de atrair os compradores. O pirarucu é vendido inteiro e
eviscerado aos feirantes que tratam e cortam o peixe em partes para revendê-lo no comércio varejista.
Figura 17 – A comercialização de pescado na balsa da Feira da Panair, em Manaus, estende-se até o início
da manhã. Aqui, pirarucus vendidos serão transportados pelos carregadores do porto até os veículos que
os levarão para as diversas feiras da cidade.
180
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Figura 18 – pirarucus são vendidos em partes no comércio varejista da Feira Manaus
Moderna. Os preços variam de acordo com a parte do peixe. A procura maior é pelo filé,
parte mais cara do pirarucu, que pode ser vendido seco e salgado ou fresco.
relações sociais entre os pescadores,
suas famílias e sua cidade. Por razões
óbvias de tamanho, serão apresentadas
a seguir neste artigo apenas parte das
fotografias que compuseram a exposição
pirarucu Z-32.
Os pescadores da Colônia Z-32 de
Maraã9
Na composição da sociedade maraaense,
está presente a cultura indígena milenar
representada por povos de etnias que
habitavam a região antes da chegada
9
Este tópico foi inscrito com base no livro História
de Maraã (no prelo), do professor e ex-Secretário
de Meio Ambiente de Maraã, Edson Siqueira
de Brito e também a partir de duas entrevistas
realizadas com o seu autor, em Maraã, nos 10
de outubro de 2007 e 31 outubro de 2008.
dos europeus no continente americano,
como os Miranha, Cambeba, Kanamarí,
Macu, Mura, Ticuna, Katuquina,
Carapanã, entre outros. Portanto, a
maioria dos habitantes do município
de Maraã é formada pela miscigenação
destas etnias com os brancos, negros
e mulatos vindos de outras partes
do Brasil, principalmente da região
Nordeste, para trabalhar na extração
do látex das seringueiras durante o
ciclo da borracha na Amazônia entre os
anos 1850 e 1920. Esta miscigenação
deu origem aos chamados caboclos
amazonenses.
Os pescadores da Colônia Z-32,
sobretudo os mais antigos, são
geralmente os caboclos semianalfabetos
de vida simples e modesta. Pais e mães
de grandes famílias são pessoas sem
muitas ambições materiais e desprovidas
181
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
de vaidades. Como sua cultura é fruto
dos costumes indígenas, preocupamse com o básico para sobreviver: o que
vão comer e os apetrechos necessários
para a produção de seu alimento.
Mesmo morando na cidade, possuem
suas benfeitorias nas margens dos
rios. Alguns deles também vivem nas
comunidades ribeirinhas do município
e vêm à cidade apenas receber
benefícios do Governo e comprar alguns
mantimentos industrializados. São
populações que, em sua grande maioria,
encontram-se à margem das políticas
públicas e do modo de produção
capitalista, enquadrando-se na categoria
de produtores camponeses ou do modo
de produção familiar.
Como as oportunidades de emprego
formal - com carteira assinada - são
poucas, tanto no pequeno comércio
local quanto na iniciativa pública, a
economia do município de Maraã
é voltada principalmente para as
atividades extrativistas, sendo a pesca
e agricultura as mais praticadas por
seus moradores. Embora mais rentável
e prazerosa, a pesca é uma atividade
instável devido às características
sazonais da natureza, sendo o período
da seca, de agosto a novembro, a época
de maior produtividade. Além do lucro
incerto, a vida de pescador na Amazônia
é penosa e arriscada em razão das
condições precárias de trabalho às quais
este profissional fica exposto.
O manejo de pesca em Maraã tem
aumentado a renda dos pescadores
associados à Colônia Z-32 que todos
os anos sonham em tirar suas cotas
para melhorar sua qualidade de vida,
comprando utensílios domésticos,
material para reformar suas casas e
novos apetrechos de pesca. Ao longo
dos anos, técnicos e pesquisadores
do Instituto Mamirauá têm avaliado a
pesca manejada como positiva, tanto
pelo volume da produção quanto pelo
expressivo faturamento. Mas, além
do dinheiro, percebe-se que o manejo
significa algo muito mais importante
para os pescadores. Como esta pesca
é realizada em grupo todos os anos
na mesma época, ela tornou-se um
evento ansiosamente esperado pelos
pescadores que também a enxergam
como uma grande “festa”, como dizem
alguns. Trata-se da realização de um
sonho para o pescador, pois, além do
lucro e da conservação dos estoques
pesqueiros, este manejo apresenta
importantes aspectos socioculturais,
já que promove a sociabilidade dos
pescadores e mantém vivos os saberes
tradicionais sobre a pesca artesanal.
Apesar de sua importância social,
econômica e cultural, a profissão de
pescador em Maraã (e no Amazonas
de uma maneira geral) era cercada de
preconceitos. Devido a sua situação
econômica muitas vezes precária, os
pescadores eram ainda encarados como
pessoas fracas e sem importância no
quadro social. Em Maraã, no entanto,
este cenário vem mudando com os
avanços da atividade pesqueira após
a implantação do sistema de manejo.
Atualmente, os pescadores se encontram
no centro de um movimento que os
valoriza e os remunera como nunca
antes foram valorizados e remunerados.
Eles hoje percebem o seu real processo
de empoderamento social, o que pode
lhes proporcionar maior emancipação
individual e a necessária consciência
coletiva para lidarem com as questões
técnicas, políticas, históricas e culturais
que envolvem a pesca na Amazônia
Brasileira.
182
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
Nesse sentido, os pescadores profissionais da Colônia Z-32 são importantes
atores sociais e têm consciência de seu
papel transformador no que diz respeito às questões socioeconômicas e ambientais de sua região. Apesar de alguns
ainda continuarem com a pesca de espécies de peixes proibidas ou durante o
período de seu “defeso”, a implantação
do manejo cumpre também o importante papel de educação ambiental na
sociedade maraaense, porque os filhos
de pescadores aprendem conceitos de
preservação e conservação dos recursos
naturais ao acompanharem seus pais na
pesca do pirarucu, outrora proibida no
Amazonas.
O tal de reumatismo que dá, né. É dor
nas costas, antes de ficar véi o bicho tá
tudo cheio de dor. [...] E tem a fome que
o cabra sofre, né. Passa o dia todinho
sem comer, porque não tem condição. É
muito sol e, às vez, vai pela noite, sai aí a
noite todinha no sereno, ai vem a chuva,
às vez não tem onde se esconder, a casa
tá longe e só tem aquele plásticozinho,
aí o carapanã (mosquito) chega. Olha, o
cabra passa a noite ó, todo molhado. É
o frio, né... aí não tem onde fazer uma
comida, o cabra passa a noite com fome,
o dia, a noite, às vez não tem comida
de dia, deixa pra come de noite, a chuva
cai e não sabe fazer fogo, né. Ai passa a
noite todinha ali tremendo ali com frio,
às vez a chuva arreia a noite todinha,
você cansa de fazer isso, cansa, né
amigão? (risadas)”.
Raimundo Ramires dos Santos, o
“Farinha”, pescador, 49 anos, em
entrevista a Rafael Castanheira. Complexo
do Lago Preto, outubro de 2008.
Figura 19 – Raimundo Ramires dos Santos, o
“Farinha”, pescador.
“Companheiro é meio russo ser
pescador. Você vê o olho do pescador
como é que é ó. É sono, é sol olhando
por espelho d’água assim ó, que estraga
muito a vista do pescador. Às vez ele não
tá nem velho e já não enxerga mais. Eu
não enxergo mais a letra dessa aqui ó.
Eu tenho que botá nessa distância pra
mim dizer como é esse nome aqui. Se
botá bem aqui aí mistura tudo e eu não
enxergo mais, ó. Tem um sinosite que dá
na gente também, pelo sereno. Fora o
do olho, tem a resfriedade no corpo, né.
Figura 20 – Ester Severiano de Oliveira é uma das
poucas pescadoras que usam o arpão para pescar
pirarucu.
183
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
“Pra uma mulher pra ser pescadora, ela
tem que pescar e tem que fazer alguma
coisa, remendar a malhadeira, saber
remenda, né. Sabe tratar um pirarucu.
[...] A vida de pescador é muito sofrida
né, mas eu acho bom, acho bom mesmo
pescar assim. Pra mim manter com meus
filhos, por que meu marido morreu né.
Eu tem que pescar, ajudar meu filho.[...]
Além do dinheiro, eu vou por causa que
eu gosto mesmo de pescar, por isso que
eu vou e eu acho animado assim. Pra ir
assim, todos aqueles pessoal, né, pescar
e eu gosto de tá pescando também. Isso
é o motivo pra eu ir pra lá”.
Ester Severiano de Oliveira, pescadora,
39 anos, em entrevista a Rafael
Castanheira. Maraã, 03 de novembro de
2010.
porque aqui pra nóis aqui no Amazonas
é... é o emprego é o salário mínimo é...
trezentos e oitenta, noventa, parece
que é mais ou menos isso. Aí o pobre
pai de família não tem condição de
sustentar família nenhuma. Aí um
pescador consegue fazer isso só num
dia! Ele consegue duzentos, trezentos
reais só num dia, se ele tiver sorte de
pesca ele pega isso. [...] Um pescador
profissional associado ele tem muita
responsabilidade, não pode pescar um
peixe no clandestino. Ele tem que pescar
aquele peixe que tá fora de preservação.
É assim que representa mesmo. Eu
não entendo muito bem não, mas um
pescador profissional ele representa
uma criatura assim social, né. Ele é da
sociedade com certeza! É uma pessoa
que é reconhecida”.
José de Souza Praiano, “Seu Zeca
Praiano”, pescador e presidente da
Colônia Z-32, 59 anos, em entrevista a
Rafael Castanheira. Complexo do Lago
Preto, outubro de 2008.
Figura 21 – José de Souza Praiano, “Zeca Praiano”,
pescador.
“Eu digo: querer ser esse tipo gente,
de pescador é... a gente acha mais fácil
porque o peixe dá mais dinheiro que a
agricultura e qualquer outro emprego,
Figura 22 – Aloísio de Oliveira Veloso, pescador.
“Eu morava no interior, quando eu fui
tirar meu documento, eu tirei como
184
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
pescador, eu era pescador. Aí o tabelião
falou o seguinte: ‘Por que você vai tirar
seu documento como pescador? Você
não acha que seria...fica meio chato
isso daí porque o pescador é sem valor’,
ele respondeu pra mim. Na época era
mesmo, o pescador não era conhecido,
né. Eu digo, realmente eu não sei. Então,
ele disse: ‘tira como agricultor’. Eu digo
jamais eu fazer isso como agricultor,
porque eu não sou agricultor. Eu nasci
e me criei na companhia do meu pai.
Meu pai ele pescava, ele plantava roça,
ele trabalhava na beira, né. Tinha essas
profissão, mas era mais a pesca. E
quando eu me criei, que eu já comecei a
ver o tipo da pesca, que eu achei bonito
e gostei, eu me impatizei por aquilo e
segui. Ai quando eu fui pelo documento,
foi quando ele disse isso. Eu digo,
pra mim é importante eu tirar como
pescador. Eu vou tirar meu documento,
tire e registre como pescador. Por que?
Porque eu sou pescador, então tire meu
documento como pescador. ‘Aí tá bom
depois você não vai se arrepender’,
ele disse. Eu digo, não tem nenhum
problema, eu sou pescador. Só que eu
não entendia na época que o pescador
ia ter um grande valor, como hoje
o pescador é conhecido, né. [...] No
Amazonas todinho o pescador tem valor
porque ele leva peixe às famílias que
por ai você sabe é muito grande, né.
Por toda parte tem o consumo de peixe.
Quer dizer que nóis dá de comer a quem
não pesca”.
Aloísio de Oliveira Veloso, pescador, 52
anos, em entrevista a Rafael Castanheira.
Complexo do Lago Preto, outubro de
2009.
Figura 23 – Paulo Sérgio de Jesus, o “Manaquiri”,
pescador.
“É muito importante o dinheiro que
vem do manejo. Eu já tenho uma casa
toda de alvenaria que tô fazendo pra
mim, tenho meus material, tenho
motor, tenho minha canoa. É uma coisa
que pelo menos até hoje está sendo
útil, né. Mas, além do dinheiro, é uma
coisa que eu acho também bonito é a
gente preservar, né. Porque eu gosto
de ver uma coisa Rafael, que seja bem
organizado né, uma coisa que a gente
possa fazer bonito e outra coisa que
me traz a vim aqui é porque eu acho
muito bonito; é porque nós estamos
descansando o peixe aqui, eu acho
bonito, acho animado a pescaria. É
uma coisa que qualquer um fica atraído
por isso. Eu me alegro demais quando
estou aqui, ver todo mundo unido,
trabalhando. É amizade, todo mundo
tem amizade aqui um com o outro,
um respeita um ao outro. Acontece as
falhas assim da nossa colônia, ninguém
é perfeito, todo mundo falha, né?
Ninguém é perfeito, mas é isso aí, é
uma grande alegria aqui dentro, tá todo
mundo reunido aqui, né”.
Paulo Sérgio de Jesus, o “Manaquiri”,
pescador, 40 anos, em entrevista a
Rafael Castanheira. Complexo do Lago
Preto, outubro de 2009.
185
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
Figura 24 – Wanderlan Corrêa da Silva, o “Valdé”,
pescador
“O que motiva nós além do dinheiro
que ganhamo no manejo... eu acho
que é o fato de você tá sempre vendo
alguma coisa assim diferente, né.Tipo,
lá em Maraã a gente fica o tempo todo
e quando abre isso aqui fica sendo
uma coisa assim diferente, né. Como
se fosse uma festa, né,... tipo assim, a
comemoração de alguma coisa. Então
é mais ou menos isso aí. Por exemplo,
no momento que a pesca é liberada,
o pessoal já tão ansioso pra vir pra se
divertir e até mesmo pra encontrar os
amigos e sair da rotina de lá do dia-adia”.
Wanderlan Corrêa da Silva, o “Valdé”,
pescador, 38 anos, em entrevista a
Rafael Castanheira. Complexo do Lago
Preto, outubro de 2008.
Figura 25 – Luis Gonzaga Medeiros de Matos, o
“Luizão”, pescador
“Não existe mais aquela época do
patrão. Agora o patrão é cada um de
nós que juntos através do manejo
poderemos conservar a natureza e dela
extrair o nosso sustento. [...] O futuro
dessa reserva é vocês [os pescadores da
Colônia Z-32]”.
Luis Gonzaga Medeiros de Matos, o
“Luisão”, 47 anos, discursa em reunião
geral dos pescadores realizada no dia 26
de outubro de 2006. Complexo do Lago
Preto, Maraã (AM).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entende-se a fotografia documental
como aquela desenvolvida a partir de um
projeto de longa duração previamente
elaborado por um autor que possui
conhecimento e envolvimento com
o tema abordado, cujas fotografias
são devidamente organizadas e
apresentadas por meio de uma narrativa
186
A fotografia como instrumento de documentação do manejo de pirarucu em Maraã, no Amazonas
• Rafael Castanheira
que descreve, num determinado tempo
e espaço, as ações e seus personagens.
As fotografias revelam o pensamento
e sentimento de seu autor frente às
situações por ele vivenciadas. Sua
produção está diretamente ligada a
sua biografia: suas origens, os espaços
sociais frequentados, suas referências
visuais e as práticas culturais do seu
tempo. Ademais, para a compreensão
das escolhas técnicas e estéticas que
moldam a linguagem visual de um
fotógrafo é preciso conhecer o contexto
no qual suas obras foram produzidas, a
diversidade dos temas por ele abordados
e a construção da sua narrativa visual.
Neste
artigo,
apresentou-se
a
documentação realizada entre os
pescadores da Colônia Z-32 de Maraã.
Situou-se o leitor sobre o ambiente,
a colônia de pescadores e demais
instituições envolvidas no manejo de
pesca, contextualizando geográfica e
historicamente a atividade. Descreveuse, então, como se deram a elaboração
do projeto de documentação, a
abordagem dos pescadores, a mudança
de objetivos ao longo do trabalho,
a logística na região, bem como os
registros por utilizados e a edição dos
mesmos para, finalmente, se construir
e apresentar a narrativa visual que
compôs o corpus fotográfico analisado
neste trabalho.
Ao
documentar
esta
atividade,
procurou-se reconstruir a história do
manejo de pesca e dos pescadores
da COLPEMA a partir de uma maneira
particular de olhar esta realidade a
fim de não somente montar um banco
de imagens que pudesse servir como
fonte de pesquisa para futuras gerações
de pesquisadores, como também
contribuir para a memória e a formação
do imaginário coletivo sobre a região.
Ao longo dos cinco anos de trabalho
realizando entrevistas com os atores
sociais
envolvidos
no
manejo,
produzindo fotografias e coletando
dados sobre suas atividades, concluise que esse modelo de pesca em
Maraã não tem apenas promovido a
conservação do pirarucu por meio
de uma atividade ambientalmente
responsável, aumentando o lucro e,
consequentemente, o poder de escolha
e consumo dos pescadores, mas tem
também resgatado os valores culturais
da pesca tradicional e promovido
o espírito de coletividade entre os
pescadores e demais atores envolvidos
neste processo.
Acredita-se que esse modelo de manejo
de pesca deva ser estudado e divulgado
não somente para conservar os recursos
naturais e melhorar as condições de
vida dos pescadores, trazendo-os para a
formalidade, mas também para agregar
valor ao produto pirarucu em novos
mercados e promover o intercâmbio
de conhecimentos e tecnologias
aplicadas no manejo entre pescadores,
pesquisadores e empresários de
outras regiões do Brasil e do mundo,
estimulando-os a criar e implementar
novas técnicas que sejam eficazes tanto
para as comunidades de pescadores
quanto para a ciência e a indústria
pesqueira.
187
Parte I - Bases científicas para o manejo de pirarucu: uma década de conhecimentos gerados
REFERÊNCIAS
ALVES, A. Os argonautas do mangue. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2004.
BRITO, E. S. História de Maraã. no prelo.
COLLIER JR., J. Antropologia visual: a fotografia
como método de pesquisa. Tradução Iara Ferraz
e Solange Martins Couceiro. São Paulo, EPU,
1973.
MONTEIRO, Rosana H. Videografias do coração.
Um estudo etnográfico do cateterismo cardíaco.
Tese (Doutorado)Instituto de Geociência,
Universidade Estadual de Campinas. Campinas:
Instituto de Geociências, Universidade Estadual
de Campinas, 2001.
SCM - Sociedade Civil Mamirauá. Mamirauá
management plan. SCM, CNPq/MCT. Brasília,
1996.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico
Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
(Coleção Os Pensadores, 43).
188
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
Parte II
Apoio Técnico e Governamental
para o Manejo de pirarucus
189
VISÃO DO MINISTÉRIO DA PESCA E AQUICULTURA SOBRE A
REGULAMENTAÇÃO DA PESCA DO PIRARUCU (Arapaima gigas)
NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Jeanne Gomes da Silva1
INTRODUÇÃO
A pesca na Amazônia brasileira data
de épocas remotas, segundo Meggers
(1977) e Roosevelt . (1991), há cerca
de oito mil anos quando a região era
explorada apenas pelos índios, os peixes
já se constituíam em recursos naturais
importantes para a manutenção das
populações humanas.
No século XVII, os colonizados
portugueses começaram a utilizar o
pescado como moeda de pagamento e
de troca (Furtado 1981).
De acordo com Veríssimo, 1895 e
Menezes, 1951, no século XIX e início
do século XX, mais de 3.000 ton/ano de
pirarucu foram exportados da Amazônia
Brasileira.
Pelo fato de dispor de uma imensa
bacia hidrográfica, que apresenta rica
diversidade de espécies ictiológicas,
os ribeirinhos da Amazônia sempre
tiveram na pesca uma de suas principais
atividades econômicas.
Atualmente, a pesca com fins econômicos
envolve uma cadeia produtiva ampla,
abrangendo do pescador até o
consumidor final. A pesca do pirarucu
em Unidades de Conservação de uso
sustentável e áreas de Acordos de Pesca
também se encontram dentro dessa
cadeia produtiva.
O ordenamento pesqueiro é peça
fundamental para o fortalecimento da
pesca e demais atividades pesqueiras,
pois através de tal ferramenta se
estabelece as normas que regulamentam
a pesca nos ambientes aquáticos que
compõem uma bacia hidrográfica.
Neste contexto, a regulamentação da
pesca manejada do pirarucu se torna
peça fundamental para a continuidade
da atividade de forma a garantir a
sustentabilidade da pesca da referida
espécie.
Normas de Ordenamento do Uso
Sustentável dos Recursos Pesqueiros no
Brasil
As normas referentes ao ordenamento
do uso sustentável dos recursos
pesqueiros no Brasil são elaboradas de
acordo com a Lei nº 11.959 de 29 de
junho 2009.
Elaboradas ainda baseadas no Decreto
nº 6.981, de 13 de outubro de 2009, que
regulamentou o Art. 27, § 6º, inciso I, da
Lei nº 10.683, de 2003, dispondo sobre
a atuação conjunta do Ministério da
Pesca e Aquicultura/MPA e do Ministério
do Meio Ambiente/MMA nos aspectos
relacionados ao uso sustentável dos
recursos pesqueiros.
191
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Seguindo também a Portaria Interministerial nº 2 de 13 de novembro de 2009,
que regulamentou o Sistema de Gestão
Compartilhada do uso sustentável dos
recursos pesqueiros, de acordo com o
previsto no Decreto nº 6.981/2009.
Portaria Interministerial nº 7 de 21 de
dezembro de 2012, que criou o Comitê
Permanente de Gestão da Pesca e do
Uso Sustentável de Recursos da Bacia
Amazônica/CPG Bacia Amazônica, com o
objetivo de assessorar os Ministérios da
Pesca e Aquicultura e do Meio Ambiente
no uso sustentável da pesca dos recursos
da Bacia Amazônica.
Sistema de Gestão Compartilhada
do Uso Sustentável dos Recursos
Pesqueiros
O Sistema de Gestão Compartilhada é
formado por comitês, câmaras técnicas e
grupos de trabalho de caráter consultivo
e de assessoramento, constituídos
por órgãos do governo de gestão de
recursos pesqueiros e pela sociedade
formalmente organizada.
O Sistema é coordenado pela Comissão
Técnica de Gestão Compartilhada dos
Recursos Pesqueiros/CTGP, formada
pelo MPA, MMA, Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis/IBAMA e Instituto
Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade/ICMBio.
O Sistema de compartilhamento de
responsabilidades e atribuições entre
representantes do Estado e da sociedade
civil organizada tem como objetivo
subsidiar a elaboração e implementação
das normas, critérios, padrões e medidas
de ordenamento do uso sustentável dos
recursos pesqueiros.
De acordo com a Portaria Interministerial
nº 7/2012, o CPG Bacia Amazônica integra
o Sistema de Gestão Compartilhada do
Uso Sustentável dos Recursos Pesqueiros
e vincula- se, com caráter consultivo e
de assessoramento, à Comissão Técnica
da Gestão Compartilhada dos Recursos
Pesqueiros/CTGP, conforme o Decreto nº
6.981/ 2009.
Normas Vigentes relacionadas à Pesca
do pirarucu na Amazônia Brasileira
A Norma Geral referente à pesca do
pirarucu na Amazônia brasileira é a
Instrução Normativa IBAMA nº 34, de 18
de junho de 2004.
Os Estados do Amazonas, Acre e
Rondônia, além de seguirem a Instrução
Normativa nº 34/2004, elaboraram ainda
suas normas próprias, o Amazonas
elaborou a Instrução Normativa IBAMA
nº 1, de 1º de junho de 2005, Rondônia
elaborou a Portaria Normativa IBAMA
nº 24 de 10 de junho 2005 e o Acre
elaborou a Instrução Normativa IBAMA
nº 1, de 30 de maio de 2008.
Regulamentação da Pesca do pirarucu
A regulamentação da pesca manejada
do pirarucu será um mecanismo de
ordenamento e monitoramento da
mesma. Ao longo do tempo a atividade
cresceu muito, o que requer melhor
acompanhamento por partes das
instituições que emitem a autorização
para pesca e a deliberação das guias
para transporte e comercialização do
pescado oriundo das áreas manejadas.
O Ministério da Pesca e Aquicultura,
a
Superintendência
Federal
de
Pesca e Aquicultura do Amazonas,
conjuntamente com o Ministério do
192
Visão do ministério da pesca e aquicultura sobre a regulamentação da pesca do pirarucu (Arapaima gigas) na Amazônia brasileira
• Jeanne Gomes da Silva
Meio Ambiente através do Instituto
Brasileiro dos Recursos Naturais
Renováveis,
Superintendência
do
Amazonas iniciaram em meados de
2010 as discussões visando à elaboração
da Norma que regulamentará a pesca
manejada do pirarucu.
As reuniões de discussões a cerca
da Minuta de Instrução Normativa
Interministerial que regulamentará a
pesca manejada, apontaram que para
a realização da pesca manejada, seria
necessário a elaboração de Plano de
Manejo Sustentável da Pesca do pirarucu
nas áreas onde se pretende se realizar
tal atividade.
De acordo ainda com as discussões, as
questões referentes à elaboração do
Plano de Manejo Sustentável da Pesca
do pirarucu, deverão estar pautadas no
uso sustentável do recurso, desta forma,
o Plano deverá seguir determinados
princípios gerais, como a conservação
dos recursos naturais, a conservação da
estrutura dos ecossistemas aquáticos,
bem
como
o
desenvolvimento
econômico, social e ambiental.
O
Plano
deverá
ainda
seguir
determinados fundamentos técnicos,
como o levantamento criterioso da
espécie disponível na área objeto do
Plano de Manejo, a caracterização
da estrutura do complexo de lagos
e procedimentos de captura que
minimizem danos sobre o ecossistema
aquático. Será estabelecido que, no
mínimo, 70% dos pirarucus contados por
lago ficará como estoque remanescente,
visando assim garantir a exploração
sustentada da espécie.
As discussões iniciaram-se no Amazonas,
mas os Estados do Acre, Rondônia, Pará
vêm realizando a pesca manejada do
pirarucu e o Estado de Roraima tem
demonstrado interesse também em
realizar tal atividade.
A
elaboração
da
Norma
que
regulamentará a pesca manejada do
pirarucu na bacia Amazônica continuará
sendo discutida agora no contexto do
CPG Bacia Amazônica, desta forma os
demais Estados estarão participando
das discussões, conjuntamente com o
Estado do Amazonas.
Visão Atual do Ministério da Pesca e
Aquicultura sobre a Regulamentação
da Pesca do pirarucu
Para o MPA que o ordenamento da
pesca é essencial para a manutenção da
atividade pesqueira, pois entende que
para trabalhar os demais elos da cadeia
produtiva, são de suma importância as
Normas que regulamentam a pesca.
O MPA visualiza que através da
regulamentação da pesca manejada
do pirarucu, o pescador exercerá
suas atividades de pesca de acordo
com os procedimentos e critérios
estabelecidos, o que favorecerá a
melhoria da qualidade de vida do
pescador que se dedica a tal atividade.
Para o MPA, a regulamentação da pesca
do pirarucu é de suma importância,
pois através da mesma se estabelecerá
melhor as questões relacionadas ao
acompanhamento,
monitoramento,
avaliação e fiscalização da pesca do
pirarucu nas áreas de manejo.
A visão atual do MPA é que a publicação
da Norma especifica regulamentando o
manejo da pesca do pirarucu na bacia
Amazônica disciplinará a captura do
mesmo, através do estabelecimento de
193
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
critérios e procedimentos que visam
garantir a conservação da espécie e
será de suma importância para que a
atividade continue acontecendo de
forma sustentável.
O MPA vislumbra ainda que a
regulamentação da pesca manejada
do pirarucu não somente promoverá o
ordenamento da atividade, como também
poderá contribuir para incentivar a
organização das comunidades, para que
assim possam produzir os meios para a
implementação de um comércio melhor
com mercado consumidor em igualdade
de condições, aproveitando de forma
mais satisfatória a atividade em termos
ambientais e socioeconômicos.
CONCLUSÃO
O MPA conclui que a falta de instrumento
legal, referente à regulamentação da
pesca manejada do pirarucu gerou de
certa forma problemas em relação ao
controle da mesma, portanto entende
que a Norma que regulamentará o
manejo será importante para solucionar
determinados problemas enfrentados
no passado, contribuindo assim para a
sustentabilidade da atividade.
Conclui ainda que a falta de equipamentos
e infraestruturas adequadas que
possibilitem melhor conservação do
pescado acaba obrigando o pescador
a vendê-lo por valores de mercado
bem abaixo da média. Portanto
entende como necessário investir em
infraestrutura que garantam melhor
acondicionamento e armazenamento
do pescado e a necessidade de
proporcionar melhores condições de
acampamento aos pescadores durante a
pesca manejada do pirarucu.
O Ministério da Pesca e Aquicultura
conclui ainda, para o maior êxito da
pesca manejada do pirarucu e para que a
mesma continue acontecendo de forma
sustentável, além do estabelecimento da
Norma que regulamentará o manejo, é
fundamental o adequado funcionamento
da cadeia produtiva como um todo.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Leis, Decretos. Lei nº 11.959 de 29
de junho de 2009. Dispõe sobre a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável da
Aquicultura e da Pesca, regula as atividades
pesqueiras, revoga a Lei nº 7.679, de 23
de novembro de 1988 e dispositivos do
Decreto-Lei nº 221, de 28 de fevereiro de
1967 e dá outras providências.
BRASIL, Leis, Decretos. Decreto nº 6.981,
de 13 de outubro de 2009. Regulamenta o
Art. 27, § 6º, inciso I, da Lei nº 10.683, de
2003. Dispõem sobre a atuação conjunta
do Ministério da Pesca e Aquicultura/MPA e
do Ministério do Meio Ambiente/MMA nos
aspectos relacionados ao uso sustentável
dos recursos pesqueiros.
BRASIL,
Leis,
Decretos.
Portaria
Interministerial nº 2 de 13 de novembro
de 2009. Regulamenta o Sistema de Gestão
Compartilhada do uso sustentável dos
recursos pesqueiros de que trata o Decreto
nº 6.981, de 13 de outubro de 2009.
BRASIL, Instrução Normativa IBAMA nº 34,
de 18 de junho de 2004. Estabelece normas
gerais para o exercício da pesca do pirarucu
(Arapaima gigas) na Bacia Hidrográfica do Rio
Amazonas.
BRASIL, Instrução Normativa IBAMA n º 1, de
1º de junho de 2005. Estabelece a proibição
anual da pesca, o transporte, a armazenagem
e a comercialização do pirarucu (Arapaima
gigas) no Estado do Amazonas, durante o
período de 1º de junho a 30 de novembro.
194
Visão do ministério da pesca e aquicultura sobre a regulamentação da pesca do pirarucu (Arapaima gigas) na Amazônia brasileira
• Jeanne Gomes da Silva
BRASIL, Instrução Normativa IBAMA nº
1, de 30 de maio de 2008. Estabelece a
proibição de 1º de junho a 30 de novembro
a captura, o transporte, a armazenagem e a
comercialização do pirarucu (Arapaima gigas)
no Estado do Acre.
BRASIL, Portaria Normativa IBAMA nº 24 de
10 de junho 2005. Estabelece a liberação da
pesca da espécie Arapaima gigas (pirarucu)
anualmente no período de 01 de maio a 31
de outubro, na Reserva Extrativista do Lago
do Cuniã, Estado de Rondônia.
BRASIL, Portaria Interministerial nº 7 de
21 de dezembro de 2012, cria o Comitê
Permanente de Gestão da Pesca e do Uso
Sustentável de Recursos da Bacia Amazônica/
CPG Bacia Amazônica.
FURTADO, L. F. G. pesca: una delimitación
de su historia en Sub. Boletim do Museu
Paraense Emílio Goeldi, Serie Antropologia,
n. 79, 1981. 50 p.
MEGGERS, B. Amazonas: la ilusión de
un paraíso. Rio de Janeiro, la civilización
Brasileira, 1977, 207 p.
MENEZES, RS., Notas biológicas e
econômicas sobre o pirarucu Arapaima
gigas (Cuvier) (Actinopterygii. Arapaimidae).
Serviço de Informação Agrícola/Ministerio
da Agricultura. Série estudos técnicos vol. 3,
p. 9-39. 1951.
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SILVEIRA, M. ; MARANCA, S.; JOHNSON,
R. “Octavo Millenium Alfarería de un
Prehistóricos Medden Shell en el Amazonia
Brasileña”. Ciencia, n. 254, 1991, p. 1621 1624.
VERÍSSIMO, J. A Pesca no Amazônia. Rio
de Janeiro: Livraria Clássica Alves e Cia.
(Monographias Brasileiras III), 206 p. 1895.
195
O PAPEL DA SECRETARIA DE ESTADO DO MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DO AMAZONAS (SDS) NO
APOIO AO MANEJO PARTICIPATIVO DE PIRARUCU (Arapaima gigas)
NAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO ESTADUAIS
João Bosco Ferreira da Silva1
Flávio Ruben P. de Oliveira Júnior2
Gelson da Silva Batista3
INTRODUÇÃO
O Estado do Amazonas tem se destacado
na utilização sustentável dos recursos
pesqueiros. As Unidades de Conservação
Estaduais de uso sustentável são as áreas
pioneiras no manejo desses recursos,
com destaque para o pirarucu (Arapaima
gigas). Esta espécie de peixe apresenta
características peculiares que a torna
apta a ser manejada, como respiração
aérea obrigatória, concentração de
espécimes em corpos d’água lacustres
durante o período de seca e, de acordo
com Queiroz (2000), possui grande
porte, podendo atingir 3 metros de
comprimento e 200 quilogramas de
peso.
O manejo se tornou efetivo com
o desenvolvimento do método de
contagem visual para estimar a
abundância de pirarucu (CASTELLO,
2004), fundamentado na habilidade de
pescadores artesanais experientes em
contar o número de pirarucus (tanto
adultos quanto os jovens) no momento
que vêm à superfície da água para
realizar a respiração aérea.
1
2
3
O manejo de pirarucu se iniciou em 1999
em um dos setores (Jarauá) da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá
(RDSM). Com a criação da SDS, em 2003,
essa atividade passou a ter suporte
(técnico e logístico) para a realização
das etapas do manejo. No entanto,
com a criação do Centro Estadual de
Unidades de Conservação -CEUC, em
2007, houve maior aporte de recursos
nessa atividade, fato este que ajudou
a consolidar o manejo de pirarucu
que vinha sendo realizado na RDSM
pelos Institutos de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá - IDSM e Fonte
Boa e na Amanã, pelo IDSM, assim
como auxiliar na implementação do
manejo na RDS Piagaçu-Purus (sob a
coordenação do Instituto Piagaçu) e,
mais recentemente, na RDS Uacari, no
Médio rio Juruá.
Em 13 anos de manejo desta espécie, a
atividade é desenvolvida atualmente em
20 setores de quatro reservas estaduais
de uso sustentável, todas da categoria
RDS, e em 16 áreas em todo o Estado do
Amazonas.
Engenheiro de Pesca, Núcleo de Pesca SDS/CEUC
Graduando em Engenharia de Pesca – UFAM, Núcleo de Pesca SDS/CEUC
MSc., Analista Ambiental do IPAAM
197
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Outras Unidades de Conservação de
uso sustentável criadas pelo Estado do
Amazonas têm grande potencial para
desenvolver o manejo de pirarucu,
entre elas estão a RDS Cujubim, no
médio rio Jutaí e a Reserva Extrativista
de Canutama, no Médio rio Purus. Para
a atividade de manejo pesqueiro ser
implementada nestas áreas protegidas
é fundamental ter a parceria de uma
instituição, pública ou da sociedade
civil organizada, que possa conduzir
os trabalhos a ser realizados para
efetivamente consolidar a atividade
nestas UCs. O sucesso do manejo de
pirarucu, nos primeiros anos, depende
dessas parcerias.
O objetivo deste trabalho é mostrar
o apoio que o Estado do Amazonas
vem dando, através da SDS, para o
desenvolvimento da atividade de
manejo de pirarucu nas unidades
de conservação de uso sustentável
gerenciadas pelo CEUC.
DESENVOLVIMENTO
Para tomar frente ao novo cenário
político-econômico e ambiental que se
configurou no Brasil, no início dos anos
2000, o Governo do Estado do Amazonas,
a partir de 2003, iniciou um processo de
adequação na estrutura governamental
que incluiu a extinção de algumas
secretarias de Estado e autarquias e a
criação de novas. Neste cenário, o Estado
do Amazonas criou a Secretária de Estado
de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável do Amazonas (SDS).
A SDS foi criada pela Lei n° 2.783, de 31
de janeiro de 2003, com reestruturação
organizacional estabelecida pela Lei
Delegada n° 66, de 06 de maio de 2007,
integrando a estrutura administrativa
do Poder Executivo do Governo do
Estado do Amazonas, como órgão da
Administração Direta.
A SDS atua em articulação com Instituto
de Proteção Ambiental do Amazonas
(IPAAM), Agência de Desenvolvimento
Sustentável do Amazonas (ADS) e
Companhia de Gás do Amazonas
(CIGÁS), que são as autarquias
vinculadas a SDS. A estrutura conta
também com a colaboração de órgãos
colegiados: Conselho Estadual de Meio
Ambiente (CEMAAM); Conselho Estadual
de Desenvolvimento Sustentável de
Povos e Comunidades Tradicionais do
Amazonas (CDSCPT/AM); Conselho
Estadual de Reserva da Biosfera da
Amazônia Central (CERBAC); Fórum
Amazonense de Mudanças Climáticas,
Biodiversidade, Serviços Ambientais e
Energia (FAMC) e Fórum Permanente
das Secretarias Municipais de Meio
Ambiente do Amazonas (FOPES-AM).
No âmbito do Sistema SDS, foi criada
a Unidade Gestora do Centro Estadual
de Mudanças Climáticas e do Centro
Estadual de Unidades de Conservação.
A SDS tem por finalidade atuar
na
formulação,
coordenação
e
implementação da política estadual de
meio ambiente, dos recursos hídricos
e da fauna e flora, além da gestão de
florestas e do ordenamento pesqueiro,
visando à valorização econômica, a
sustentabilidade dos produtos florestais
198
O papel da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS)
no apoio ao manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas unidades de conservação estaduais
•João Bosco Ferreira da Silva •Flávio Ruben P. de Oliveira Júnior • Gelson da Silva Batista
madeireiros e não madeireiros e com
ações de fortalecimento das cadeias
produtivas, por meio da articulação
com a Secretaria de Estado de Produção
Agropecuária, Pesca e Desenvolvimento
Rural Integrado (SEPROR), Instituto
de Desenvolvimento Agropecuário e
Florestal Sustentável do Estado do
Amazonas (IDAM) e ADS.
Nesse contexto, a SDS possui atribuições
de melhorar a qualidade de vida das
pessoas; conservar a natureza; promover
o crescimento econômico; e atenuar as
mudanças climáticas.
Sua missão é garantir a proteção da
natureza e o uso dos recursos naturais,
com
valorização
socioambiental,
visando o desenvolvimento sustentável
do Amazonas.
Tem como visão ser referência nacional
e internacional na formulação e gestão
de políticas ambientais e de desenvolvimento sustentável.
A partir de 2002, por meio da SDS, o Governo do Amazonas intensificou a criação de Unidades de Conservação como
um instrumento estratégico de ordenamento territorial, objetivando conciliar
a conservação dos recursos naturais
com o desenvolvimento socioeconômico das comunidades locais. A conservação da biodiversidade e estímulo às
atividades econômicas sustentáveis em
áreas protegidas são formas de assegurar melhores condições às famílias que
residem nesses espaços protegidos.
O Estado do Amazonas possui,
atualmente, 27% de seu território
protegido
por
Unidades
de
Conservação, incluindo as federais
(15%) e estaduais (12%), totalizando
42.335.533,20 milhões de hectares. De
2003 a 2009, houve um incremento
de 157% no número de unidades de
conservação estaduais. Esse fato mostra
a estratégia que o Governo do Estado
adotou para promover a conservação
da biodiversidade, reconhecimento e
valorização das populações tradicionais
e controle do desmatamento ilegal.
As terras indígenas representam 27,7%
da área do Estado, o equivalente a 43,19
milhões de hectares, distribuídos em
173 terras indígenas de 66 etnias. O
Estado do Amazonas possui 54,8% de
seu território legalmente protegidos.
As Unidades de Conservação criadas
pelo poder público estadual, estão
distribuídas em 32 Unidades de Uso
Sustentável e nove de Proteção Integral.
Aproximadamente, 81% das Unidades
de Conservação estaduais são de Uso
Sustentável, sendo quinze RDSs, oito
Florestas, cinco APAs e quatro Resex
(Figura 1).
A gestão das Unidades de Conservação
Estaduais é realizada pelo Centro
Estadual de Unidades de Conservação
(CEUC). O CEUC foi instituído pelo
Decreto pela Lei Complementar n° 53,
de 5 de junho de 2007 - Sistema Estadual
de Unidades de Conservação (SEUC).
Com sede em Manaus, o CEUC possui
aproximadamente 50 técnicos (lotados
na capital e no interior) atuantes no
processo de criação, implementação e
gestão das Unidades de Conservação
Estaduais.
199
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Figura 1 – Crescimento do número de Unidade de Conservação Estadual entre os anos de 2002 até
2009.
Desde 2003, a SDS priorizou o árduo
processo de criação das Unidades de
Conservação Estaduais. No entanto, nos
últimos quatro anos, a SDS vem dando
ênfase na implementação dessas áreas
protegidas. O que a SDS, através do
CEUC, vem fazendo é consolidar uma
política de estado que proporciona o
desenvolvimento socioeconômico das
comunidades locais com a manutenção
da qualidade ambiental.
Com o propósito de promover o
crescimento de atividades sustentáveis
a SDS vem apoiando e incentivando o
uso adequado dos recursos naturais,
com ênfase no ordenamento e manejo
dos recursos pesqueiros.
ORDENAMENTO
PESQUEIRO
ESTADO DO AMAZONAS
NO
O processo de ordenamento que é
realizado pelo CEUC/SDS, e instituições
parceiras, atende aos princípios da
gestão cooperativa ou compartilhada,
pois proporciona a participação direta,
na tomada de decisão, dos agentes
sociais da pesca (pescadores), sociedade
civil organizada e órgãos do Poder
Público que têm relação direta com
a temática da pesca e instituições
de pesquisa governamentais e não
governamentais.
Uma das estratégias adotadas pela SDS
para implementar o manejo de pirarucu
vem sendo o complexo processo de
ordenar áreas dentro e no entorno das
Unidades de Conservação. As ações
de ordenamento pesqueiro que são
realizadas pelo corpo técnico do CEUC, e
das instituições parceiras, nas Unidades
de Conservação de Uso Sustentável, têm
o objetivo de subsidiar a elaboração e
implementação de normas, critérios,
padrões e medidas de ordenamento do
uso sustentável dos recursos pesqueiros
para que sirvam como eficientes
instrumentos de gestão.
200
O papel da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS)
no apoio ao manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas unidades de conservação estaduais
•João Bosco Ferreira da Silva •Flávio Ruben P. de Oliveira Júnior • Gelson da Silva Batista
O Estado do Amazonas passou a ter
competência plena para legislar sobre
o ordenamento pesqueiro nas águas
de sua jurisdição, com o advento da Lei
Federal n° 11.959, de 29 de junho de
2009 (nova Lei da Pesca). Com essa nova
atribuição, a equipe técnica da SDS, em
2010, montou um Grupo de Trabalho
e iniciou a discussão para a elaboração
de um instrumento de ordenamento
da pesca que contemplasse o manejo
de pirarucu. Devido à legislação em
vigor determinar que o pirarucu só
pode ser retirado da natureza por meio
de manejo de ambientes aquáticos em
áreas de Unidades de Conservação e
de acordo de pesca, tal proposta foi
regulamentada através da Instrução
Normativa SDS n° 03, em abril de 2011,
estabelecendo normas e procedimentos
para a elaboração e regulamentação de
Acordo de Pesca como instrumento de
gestão pesqueira.
Com o advento desta norma estadual,
ainda em 2011, foram regulamentados
os Acordos de Pesca da Ilha da Paciência,
no município de Iranduba (Figura 2), e
do Mamori, no município de Careiro.
As propostas desses Acordos já vinham
sendo discutidas desde 2007, e foram
ajustadas para atender aos preceitos da
IN SDS n° 03/2011.
Figura 2 – Acordo de pesca da Ilha da Paciência, no município de Iranduba.
201
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
A área do Acordo de Pesca da Ilha da
Paciência é composta por 32 lagos de
várzea, dos quais sete são destinados ao
manejo de pirarucu. A regulamentação
desta área e a eficiente vigilância dos
lagos realizada pelos comunitários
vêm proporcionando a recuperação do
estoque de pirarucu, principalmente
nos ambientes que não sofrem pressão
de pesca. Muito em breve, a área deste
acordo será a mais próxima de Manaus
a ter manejo de pirarucu com cota
autorizada.
Em julho de 2012, como resultado do
processo de discussão iniciado em março
do mesmo ano, a SDS regulamentou o
acordo de pesca dos setores Maiana e
Solimões do Meio, na RDS Mamirauá
(Figura 3). Nessa área, existe 136 lagos,
dos quais 54 estão destinados ao manejo
de pirarucu. O grande diferencial
deste acordo foi o seu processo de
elaboração, o qual seguiu integralmente
o que determina a IN SDS n° 03/11. O
acordo iniciou com a instituição do
Comitê Condutor do Acordo (CCA),
regulamentado pela IN SDS n° 25, de
14 de março de 2012, composto por
16 instituições representantes do Poder
Público e da sociedade civil organizada.
Figura 3 - Acordo de pesca regulamentado pela SDS na RDS Mamirauá.
202
O papel da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS)
no apoio ao manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas unidades de conservação estaduais
•João Bosco Ferreira da Silva •Flávio Ruben P. de Oliveira Júnior • Gelson da Silva Batista
As discussões para a elaboração
deste acordo foi uma das mais difíceis
já realizadas por esta Secretaria,
pois envolvia a disputa por áreas,
tradicionalmente
utilizadas
por
pescadores da sede do município de
Fonte Boa, dentro dos setores Maiana
e Solimões do Meio, na RDS Mamirauá.
Esse conflito existia desde o início da
criação da reserva, mas tomou maior
proporção a partir de 2004, quando
iniciou a atividade de manejo do pirarucu
naquela área. A intervenção do Estado,
através do CEUC/SDS, foi determinante
para o adequado zoneamento da área
e regulamentação de regras de uso dos
ambientes aquáticos ali existentes.
A regulamentação deste acordo fez
cessar o conflito entre pescadores
ribeirinhos e urbanos, pois esses
dois grupos passaram a ter áreas
diferenciadas para o uso dos recursos
pesqueiros.
MANEJO DOS RECURSOS PESQUEIROS
Dentre as ações de geração de renda
que vêm sendo coordenadas pelo
CEUC nas UCs Estaduais de Uso
Sustentável, através do Departamento
de Manejo e Geração de Renda (DMGR)
e instituições parceiras, destaca-se
o manejo de ambientes aquáticos
com ênfase na captura sustentável de
pirarucu (Arapaima gigas). Vale ressaltar
que o manejo dessa espécie só pode
ser implementado em áreas onde o
ordenamento pesqueiro esteja definido.
A pesca comercial do pirarucu é
proibida o ano todo no Estado do
Amazonas pelas Instruções Normativas
do IBAMA 34/2004 (1 de dezembro a 31
de maio) e 01/2005 (1 de junho a 30 de
novembro). A captura desta espécie é
permitida apenas em áreas de manejo
em Unidades de Conservação e Acordos
de Pesca, assim como em criações em
cativeiro devidamente regularizadas
pelos órgãos competentes.
O manejo de pirarucu é uma das
atividades de maior destaque na geração
de renda nas UCs. Atualmente, essa
atividade é realizada em quatro Reservas
de Desenvolvimento Sustentável do
Estado (Mamirauá, Amanã, PiagaçuPurus e Uacari).
O objetivo do manejo de pirarucu
é proporcionar a recuperação dos
estoques dessa espécie nas Unidades de
Conservação gerenciadas pelo Estado
e gerar renda para a manutenção das
populações usuárias e comunidades
tradicionais das áreas protegidas.
Na metodologia empregada no manejo,
adota-se o resultado da contagem de
pirarucus adultos do ano anterior como
base para solicitar a cota do ano corrente,
prevendo-se a remoção de, no máximo,
30% dos peixes adultos contados,
deixando-se os 70% do restante como
forma de assegurar a reprodução e a
continuidade da população (CASTELLO,
2004; VIANA et al., 2007).
A SDS, através do CEUC e instituições
parceiras, vem apoiando o manejo de
pirarucu nas Reservas estaduais ao
longo de todas as etapas: organização
comunitária, elaboração de regras de uso
do recurso, capacitação de pescadores,
monitoramento dos estoques de
pirarucus, vigilância e fiscalização dos
ambientes aquáticos, definição de
plano de produção, contagem, pesca e
comercialização da produção.
A atividade vem sendo realizada nas
203
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
UCs estaduais e, a cada ano, está sendo
aperfeiçoada pelos usuários desses
recursos (VIANA et al., 2007; AMARAL, et
al., 2011), através das diretrizes técnicas
do CEUC e de instituições parceiras,
e vem contribuindo diretamente na
geração de renda para as comunidades
residentes, tendo impacto significativo
na melhoria da qualidade de vida dos
beneficiários.
Em 2011, o IBAMA (órgão que emite
a licença para a pesca desta espécie)
autorizou cota de 12.045 peixes adultos
para as reservas estaduais. No entanto,
devido às dificuldades encontradas pelas
comunidades locais para realizarem a
pesca (difícil acesso aos lagos, petrecho
de pesca insuficiente, curto período
de tempo para a captura dos peixes,
entre outros), foram capturados 11.009
pirarucus (eficiência de captura de
94%), tendo como beneficiados 2.112
pescadores (1.072 famílias) de 115
comunidades ribeirinhas (Figura 4).
Figura 4 - Estimativa de produção de pirarucu para 2012.
A produção total foi de 592,6 toneladas
e gerou um faturamento bruto de
R$ 2.883.108,58. Os beneficiários do
manejo de pirarucu, nas quatro reservas,
tiveram renda média de R$ 1.365,11. No
entanto, para os 1.688 pescadores da
RDS Mamirauá, a renda média foi de R$
1.690,65.
Em 2012, a produção de pirarucu
manejado foi de 643 toneladas e gerou
faturamento de 3,1 milhões de reais
(Figura 5).
204
O papel da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (SDS)
no apoio ao manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas unidades de conservação estaduais
•João Bosco Ferreira da Silva •Flávio Ruben P. de Oliveira Júnior • Gelson da Silva Batista
Fonte: SDS/CEUC, 2012.
* Dados atualizados/safra 2012.
Figura 5 - Histórico da produção de pirarucu e receita gerada nas reservas estaduais.
Nos últimos seis anos, o Governo do
Estado e os diversos parceiros do
Sistema SDS, com destaque para os
Institutos Mamirauá, Piagaçu e Fonte
Boa, vêm implementando o manejo
de pirarucu nas reservas criadas pelo
Estado, e criando condições para que
essa atividade tenha resultado efetivo
na geração de renda e melhoria da
qualidade de vida das comunidades
das áreas protegidas. O reflexo desse
trabalho conjunto foi o aumento, em
2012, em 7,8% no faturamento bruto
gerado e de 20% no faturamento médio/
pescador (Figura 6).
As Unidades de Conservação Estaduais,
em 2012, foram responsáveis por 74%
da produção de pirarucu em todas
as áreas manejadas no Amazonas.
Este
desempenho
extraordinário
se deve a uma política agressiva de
sustentabilidade da pesca desenvolvida
pela SDS, através do CEUC e instituições
parceiras.
CONCLUSÃO
A partir de 2003, com a criação da
SDS, o Estado do Amazonas passou
a criar condições, juntamente com
outras instituições, para que o manejo
de pirarucu se tornasse uma atividade
geradora de renda para as comunidades
locais.
O aumento significativo na criação
de Unidades de Conservação de Uso
sustentável, a elaboração de instrumentos
legais para a regulamentação de Acordos
de Pesca, a elaboração e implementação
de planos de manejo de recursos
pesqueiros e o apoio em todas as etapas
do manejo foram medidas decisivas
para a ampliação no número de áreas
205
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
manejadas, para o aumento na produção
de pirarucu e na geração de renda
dos manejadores. Esses fatores vêm
proporcionando melhores condições de
vida para os moradores e usuários das
reservas onde é realizado o manejo de
pirarucu.
REFERÊNCIA
AMARAL, E.; SOUSA, I. S.; GONÇALVES, A.
C. T.; BRAGA, R.; FERRAZ, P.; CARVALHO,
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Desenvolvimento Sustentável Mamirauá –
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Universityof St. Andrews. 2000.
206
RECUPERANDO A PESCA DO PIRARUCU
NO BAIXO AMAZONAS, BRASIL
Leandro Castello1,2
Caroline C. Arantes3,4
Fabio Sarmento3
David G. McGrath1,2
INTRODUÇÃO
A pesca do pirarucu (Arapaima spp.) está
em declínio na maior parte da Amazônia
(CASTELO; STEWART; ARANTES et al.,
2013; CASTELLO ; STEWART, 2010).
No Baixo Amazonas, Estado do Pará,
Brasil, a situação é típica de áreas fora
de reservas biológicas ou extrativistas.
Lá, o pirarucu é ameaçado não só pela
pesca, mas também pela degradação de
habitat. Mais da metade dos habitats de
floresta alagada que provêm condições
de alimentação e reprodução ao pirarucu
no Baixo Amazonas foram desmatados
(CASTELLO, 2011a; b; RENO et al., 2011).
Visando promover a sustentabilidade
da pesca no Baixo Amazonas, muitas
comunidades têm desenvolvido os
chamados acordos de pesca, nos quais os
pescadores negociam e implementam
regras de uso dos recursos pesqueiros
(CASTRO, 2000; FUTEMA, 2000; CASTRO;
MCGRATH, 2002; MCGRATH et al., 2008;
ALMEIDA et al., 2009). Esses acordos de
pesca têm levado ao desenvolvimento
de uma estrutura institucional grande
1
2
3
4
na região que envolve 140 comunidades
e representa um bom ponto de partida
para o desenvolvimento de práticas
sustentáveis da pesca de pirarucu
(MCGRATH et al., 2008). No entanto,
os acordos de pesca permitem apenas
a definição de regras de pesca, não
sendo possível excluir pescadores
de outras comunidades do manejo.
Essa deficiência fere um princípio da
sustentabilidade da pesca: o direito de
quem investe no manejo do recurso
a ter direito exclusivo de usufruir os
benefícios gerados pelas suas ações
(OSTROM 1990; MCGRATH et al.,
2004). Além disso, os acordos de
pesca não se enfocam no pirarucu,
deixando-o vulnerável à sobreexploração (CASTELLO et al., 2013).
Por exemplo, os comprimentos médios
dos pirarucus capturados mostram
que há predominância de indivíduos
sexualmente imaturos (Figura 1), o que
é um sinal típico de sobre-exploração
pesqueira (HILBORN; WALTERS 1992;
CASTELLO et al., 2011a).
Woods Hole Research Center, Falmouth, Massachusetts, Estados Unidos
Endereço atual: Department of Fish and Wildlife Conservation, Virginia Polytechnic Institute and State
University, Blacksburg, Virginia, Estados Unidos
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia Santarém, PA, Brasil
Department of Fish & Wildlife, Texas A&M University, College Station, Texas, Estados Unidos
207
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Figura 1 - Tamanho médio de captura atual de Martinelli e Petrere (1999) em Santarém,
região do Baixo Amazonas. Tamanho de primeira maturação sexual é de Arantes et al.
(2010) para o pirarucu na Reserva Mamirauá.
AVANÇOS RECENTES
Os autores têm, nos últimos quatro anos,
se dedicado a implementar práticas
sustentáveis de pesca do pirarucu na
região do Baixo Amazonas. Ao longo dos
anos, a equipe de trabalho tem variado
entre duas e três pessoas e contado com
as instalações do Instituto de Pesquisas
Ambiental da Amazônia (www.ipam.org.
br). A primeira parte do trabalho visou
avaliar o estado da pesca do pirarucu na
região. Dados de abundância de pirarucu
foram coletados em comunidades,
com base nas contagens de pirarucu
(CASTELLO, 2004) e em entrevistas
com pescadores e lideranças das
comunidades. Os dados de abundância
mostraram que os estoques de pirarucu
estão ‘esgotados’ (Figura 2-A; CASTELLO
et al., 2011b). Apenas cerca de 5% das
comunidades possuem populações de
pirarucu que podem ser consideradas
‘bem manejadas’. Além disso, as
entrevistas indicaram que as regras de
tamanho mínimo de captura e defeso
não são respeitadas e que a maioria
das comunidades não realiza nenhuma
ação de manejo de pirarucu (Figura 2-B).
Assim, a situação da pesca do pirarucu
no Baixo Amazonas é crítica e requer,
urgentemente, ações de manejo.
A segunda parte do trabalho visa reverter
essa situação. Para isso, os autores têm
adaptado à realidade regional o modelo
Mamirauá de manejo de pirarucu para
áreas protegidas, o qual se embasa no
cumprimento de três regras de manejo:
tamanho mínimo de captura (1,5 m),
período de defeso (Dezembro a Maio),
e determinação de cota de pesca com
base em dados de contagem (CASTELO;
STEWART; ARANTES et al., 2013;
CASTELLO, et al., 2011c). Três linhas de
ação principal têm sido conduzidas na
implementação desse modelo de manejo:
capacitação, organização comunitária,
208
Recuperando a pesca do pirarucu no baixo Amazonas, Brasil
• Leandro Castello • Caroline C. Arantes • Fabio Sarmento • David G. McGrath
e desenvolvimento de políticas de
manejo. Até o momento, cerca de 240
pescadores de 25 comunidades foram
capacitados com relação à lógica e os
princípios ecológicos do manejo do
pirarucu. Além disso, 85 pescadores
foram treinados no método de contagem
de pirarucu, e desses, 53 fizeram uma
avaliação técnica da sua capacidade
de contar pirarucu. As atividades de
organização comunitária têm almejado
incentivar o cumprimento das regras de
manejo, resolver conflitos, e estabelecer
sistemas de fiscalização, o qual não é
feito de maneira adequada pelos órgãos
ambientais competentes. Um plano de
manejo está sendo desenvolvido em 5
comunidades e uma proposta de política
de manejo de pirarucu para a região do
Baixo Amazonas foi submetida para
consideração à Secretaria de Pesca e
Aquicultura do Pará (SEPAq-PA)
A
B
Cidades
Corpos d’ água
Área das comunidades
Figura 2 - Mapas da abundância do pirarucu (A) e do grau de organização (B) em comunidades da região
do Baixo Amazonas, do Estado do Pará, Brasil.
209
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Estes resultados têm ajudado a criar
agora um momento oportuno para
construir uma estrutura institucional e
política efetiva para o manejo sustentado
do pirarucu no Baixo Amazonas. As
atividades de treinamento, organização,
e manejo têm motivado atores-chave
sobre a necessidade de manejar
o pirarucu. Embora nem todas as
comunidades da região tenham interesse
no manejo do pirarucu, algumas delas
têm. Membros do governo, incluindo
a SEPAq-PA e o Ministério da Pesca e
Aquicultura (MPA), têm participado de
discussões e workshops relacionados ao
tema, e têm demonstrado interesse em
colaborar na implementação do manejo
do pirarucu. De forma complementar,
a proibição da exclusão de pescadores,
que fere um princípio da ação coletiva,
poderá ser modificada através da
implementação de uma nova política
fundiária que transformou as áreas
das comunidades da região do Baixo
Amazonas em Projetos de Assentamento
Agroextrativista (PAEs).
Os Planos
de Utilização dos PAEs, elaborados
pelos moradores e aprovados pelo
INCRA, estabelece que os membros da
comunidade têm direito exclusivo sobre
os seus recursos pesqueiros, eliminando
uma dificuldade do manejo pesqueiro.
PASSOS FUTUROS
O desenvolvimento da pesca sustentável
de
pirarucu
nas
comunidades
interessadas no manejo depende,
principalmente ,da implementação de
um conjunto de condições necessárias.
Do ponto de vista das comunidades, a
falta de uma política coerente de manejo
do pirarucu e a falta de fiscalização
das regras de manejo são os principais
obstáculos para o desenvolvimento
de práticas sustentáveis de pesca do
pirarucu. A equipe de trabalho está há
quatro anos tentando coordenar com a
SEPAq-PA e com o MPA a regulamentação
da pesca do pirarucu. Espera-se que
a implementação de uma política de
manejo sustentado aumente, em muito,
a demanda das comunidades tanto por
fiscalização quanto por apoio técnicoinstitucional aos órgãos competentes.
A carência por trabalhos de organização
comunitária é muito grande e impossível
de ser atendida com base nas condições
modestas financeiras, de infraestrutura
e quantidade de pessoas atuando na
equipe. Órgãos regionais precisam estar
preparados para suprir essas demandas.
Considerando os avanços e entraves dos
últimos anos, a equipe planeja continuar
seus esforços nas três linhas principais de
ação que têm sido conduzidas. Planejase complementar essas ações com uma
expansão dos esforços de engajamento
dos órgãos governamentais e não
governamentais através da articulação
política, formação de novas parcerias, e
disseminação dos trabalhos realizados.
AGRADECIMENTOS
O Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq),
a Fundação Gordon e Betty Moore, e
a WWF-UK proveram financiamento.
D. Pinheiro e D. Gurdak ajudaram a
produzir a figura 2. Diversos pescadores
e lideranças comunitárias contribuíram
para o desenvolvimento do trabalho
aqui descrito.
210
Recuperando a pesca do pirarucu no baixo Amazonas, Brasil
• Leandro Castello • Caroline C. Arantes • Fabio Sarmento • David G. McGrath
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211
A AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA COMO FERRAMENTA
PARA TOMADAS DE DECISÃO EM
PROCESSOS DE MANEJO DE PIRARUCU (Arapaima gigas)
Ellen Amaral
Ana Cláudia Torres
Nelissa Peralta
A adequada gestão dos recursos
pesqueiros requer ações multilaterais
tanto por parte do Estado quanto por
parte dos pescadores por envolver
sistemas de manejo socioecológicos
complexos e multiníveis (BERKES, 2007;
2008). O envolvimento de pescadores
no manejo tem sido reconhecido
como fator fundamental para sua
sustentabilidade (POMEROY, 1995;
CASTELLO et al., 2008). Há também
o reconhecimento de que o Estado
deve continuar desempenhando papel
importante no processo (RATNER, 2012),
não apenas normatizando a pesca,
mas oferecendo assistência e serviços
(administrativos, técnicos e financeiros)
para apoiar a sustentabilidade dos
arranjos institucionais e organizações
locais (POMEROY; BERKES, 1997). Por
isso, a gestão compartilhada1 tem sido
considerada uma maneira eficaz de
integrar interesses semelhantes, mas,
por vezes, divergentes.
A gestão compartilhada já foi definida
como uma divisão de poderes e
responsabilidades sobre um sistema
1
2
de recursos naturais (POMEROY,
1998)2. Mais recentemente, passou
a ser entendida como um processo
de negociação, de aprendizado
e, principalmente, de solução de
problemas relacionados à gestão de
recursos naturais (CARLSSON; BERKES,
2005). Uma situação onde dois ou mais
agentes negociam, definem e garantem
entre si uma divisão justa de tarefas e
responsabilidades de manejo sobre
um território, ou conjunto de recursos
naturais (BORRINI-FEYERABEND, 2000).
Um processo de governança, onde esses
mesmos agentes exercem atividades
apoiadas em objetivos comuns, para que
as pessoas e as organizações tenham
uma determinada conduta, satisfaçam
suas necessidades e respondam às suas
demandas (ROSENAU, 2000).
Por assim ser, trata-se de uma “nova”
abordagem de manejo pesqueiro
participativo
que
vem
sendo
implementada em algumas regiões
do Brasil, sobretudo na Amazônia,
que integra os aspectos biológicos
a aspectos políticos, institucionais e
Também chamada de manejo participativo ou comanejo
Fisheries co-management can be defined as a partnership arrangement in which government agencies,
local communities, and other stakeholders share the responsibility and authority over a fishery
(Pomeroy, 1998)
213
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
econômicos da população que explora
o recurso pesqueiro. Podemos dizer
ainda que esta seja uma evolução dos
sistemas convencionais de manejo
pesqueiro que se baseiam apenas em
informações biológicas e ecológicas
para a determinação de cotas de
captura, desconsiderando os processos
sociais (CASTELLO, 2008).
As incertezas sobre o tamanho, a
composição e a distribuição espacial
dos
estoques
pesqueiros,
sua
dinâmica e os consequentes erros
na aplicação de normas de manejo
podem ser obstáculos a um manejo
de pesca eficiente (HOLLAND, 2010).
Segundo a FAO (2005), cerca de 25%
dos estoques pesqueiros do mundo
estão sobre-explorados e depletados
apesar das medidas convencionais de
manejo implementadas. Muitos desses
problemas poderiam ser mitigados se
o conhecimento ecológico tradicional
dos pescadores fosse considerado
(POMEROY, 1995; CASTELLO, 2008),
como ocorreu com o método
participativo desenvolvido para os
censos populacionais de pirarucu
(Arapaima gigas) (CASTELLO, 2004). Além
disso, outras variáveis sociais, políticas
e econômicas, como o comportamento
das lideranças, os sistemas de
acompanhamento de sanções, a
capacidade produtiva, os custos da
produção e os preços praticados no
mercado, as formas de distribuição
de benefícios, entre outros, são
importantes e devem ser consideradas
no processo de manejo participativo de
recursos pesqueiros.
Por esta razão, para avaliar os resultados
do manejo de pesca e até para calcular
taxas de extração anuais, deve-se
levar em consideração não apenas
critérios biológicos como o tamanho
da população, mas também critérios
sociais, econômicos e políticos (RATNER
et al., 2012). Como os ecossistemas
e os grupos sociais que os utilizam
respondem por vezes de forma
imprevisível à exploração de recursos,
para levar em consideração essas
mudanças socioecológicas, o manejo
deve ser adaptativo, ou seja, deve ajustarse às incertezas e incluir diferentes
perspectivas e tipos de conhecimentos
disponíveis (conhecimentos locais,
técnicos e científicos), incluindo os
usuários nos processos de solução de
problemas e na tomada de decisões
(CARLSSON; BERKES, 2005). No lugar de
prescrições ou normas fixas, o manejo
adaptativo foi formulado, originalmente,
como forma de lidar com as incertezas
e a complexidade desses sistemas
(HOLLING, 1978).
Para isso, formas de geração de
informações e de avaliação de
resultados são centrais e devem
levar em consideração as diferentes
perspectivas dos grupos envolvidos.
Métodos de geração e troca de
informações, avaliação e comunicação
de resultados relacionados ao manejo
adaptativo da pesca têm sido discutidos
em diversos contextos (SMITH et al.
1999; HOLLAND, 2010). Na Amazônia,
estudos sobre manejo de recursos
pesqueiros têm foco na construção dos
acordos e dos arranjos institucionais. Os
acordos formais são meramente o ponto
de partida. Os mecanismos de solução
de problemas instalados e postos em
prática na lida diária dos sistemas de
214
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
manejo são responsáveis pelos níveis
de sucesso ou fracasso desses sistemas.
Mas os estudos raramente tratam sobre
como os agentes colocam em prática
esses acordos, ou seja, dos seus modos
de comunicação, de aplicação e sanção
das normas. Sendo assim, o objetivo
deste capítulo é descrever um método
de avaliação participativa de sistemas
de manejo de recursos pesqueiros
na região do médio Solimões (AM) e
analisar seus efeitos sobre as ações
dos grupos responsáveis pelo sistema
(técnicos, pescadores e diretorias das
organizações).
Sendo assim, o capítulo está dividido
em três partes. A primeira apresenta um
breve histórico do manejo participativo
de pirarucu e do desenvolvimento do
método de avaliação; a segunda descreve
o método em si, seus pressupostos,
critérios, modos de aplicação; e a terceira
parte analisa alguns resultados da
aplicação do método em cinco sistemas
de manejo participativo na região do
Médio Solimões, no Amazonas.
Parte 1: Breve histórico do manejo de
pirarucu no Médio Solimões
A primeira pesca manejada do pirarucu
aconteceu no estado do Amazonas em
1999, na comunidade São Raimundo
do Jarauá, Reserva de Desenvolvimento
Sustentável
Mamirauá
RDSM.
Assessorada pelo Instituto Mamirauá,
o manejo de pirarucu vem sendo
desenvolvido e aperfeiçoado ao longo
do tempo, como um manejo adaptativo,
sempre
seguindo
princípios
de
sustentabilidade ecológica; princípios
de justiça e equidade na distribuição das
obrigações, benefícios e penalidades;
gerando retorno econômico aos
pescadores (VIANA et al., 2007; AMARAL,
2009). No Brasil, a experiência difundiuse para outros municípios do estado do
Amazonas como Fonte Boa, Itacoatiara,
Jutaí, Juruá, Tonantins (BESSA; LIMA,
2010), e para outros estados como Pará,
Rondônia, Roraima e Acre. Países como
Peru, Colômbia, Bolívia e Guiana Inglesa
também utilizam em partes de sua
região Amazônica, algumas ferramentas
desenvolvidas em Mamirauá para o
manejo da espécie.
Ao longo de mais de uma década, o
manejo participativo do pirarucu tem
gerado resultados sociais, ecológicos
e econômicos bem expressivos.
Dentre eles, os mais importantes são
a regularização da pesca comercial de
pirarucu; o aumento anual médio da
população de pirarucu nas áreas de
manejo em cerca de 25%, (ARANTES
et al., 2006; CASTELLO et al., 2011); o
aumento anual médio na renda gerada
pela atividade em cerca de 29% (AMARAL,
2009); e o reconhecimento conferido ao
grupo de pescadores pela prática de
ações sustentáveis ecologicamente.
Para manejar o pirarucu, os pescadores
realizam uma série de atividades ao
longo de um ano, estando envolvidos em
maior ou em menor grau nas mesmas,
dependendo da época. Amaral . (2013)
concluíram ser sete as principais ações
responsáveis por uma implementação
efetiva do manejo participativo de
pirarucu em ambiente natural, que
compõem o ciclo de atividades
realizadas ao longo de um ano, sendo
elas: 1) organizar, 2) estabelecer zonas
de proteção e uso, 3) proteger a área,
215
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
4) estimar a população de pirarucus3, 5)
pescar, 6) vender e 7) avaliar. As ações são
desenvolvidas tanto pelos pescadores,
quanto pela diretoria das associações
de pescadores4 e pela assessoria técnica
prestada pelo Instituto Mamirauá. Este
capítulo trata, especificamente, da
última etapa no ciclo de atividades dos
sistemas de manejo de pirarucu – a
avaliação anual do sistema.
3
4
As cotas de pirarucu manejado são estabelecidas
com base nas contagens, chegando até 30% dos
adultos contados de um determinado lago. Até o
ano de 2009, somente as contagens subsidiavam
as cotas. Nos últimos anos, a assessoria técnica
vem discutindo junto aos pescadores sobre a
necessidade de se incluir indicadores sociais e
econômicos na determinação das cotas.
Optou-se por diferenciar os pescadores
das diretorias de suas associações para
avaliar melhor a participação de cada sócio,
considerando que existe uma tendência passiva
dos mesmos em deixar que a diretoria assuma
toda a responsabilidade do manejo, restando
a eles apenas a pesca. A diretoria, por sua vez,
toma para si a responsabilidade e também o
poder de decisão, muitas vezes não consultando
os demais pescadores em tomadas de decisões
importantes. Isto é prejudicial ao sistema e passa
a haver um ruído na comunicação e já houve
casos de os pescadores não terem conhecimento
de algumas regras acordadas com a equipe
técnica. Além disso, o pescador que não participa
das reuniões, não se sente comprometido com o
ciclo de atividades e simplifica o manejo apenas
a ação de pescar. Por esta razão, pode não
obedecer as regras. Outra vertente possível é
a diretoria ficar sobrecarregada de atividades e
desistir de sua função. Razão esta que promove
uma alta rotatividade das equipes de liderança.
Ou, na pior das hipóteses, pode haver desvio de
verbas da associação em benefício de alguns.
Por essas razões acreditamos que deve haver um
olhar nessa direção, para avaliar qual o grau de
participação assim como o nível de organização
do grupo.
Fóruns de avaliação participativa do
manejo
Os fóruns de avaliação participativa têm
como objetivo acompanhar e avaliar
o andamento do sistema de manejo
como um todo, atentando-se para
todas as etapas do processo. Esses
fóruns baseiam-se nos princípios da
democracia deliberativa: de igualdade,
razoabilidade e publicidade.
A democracia deliberativa é uma forma
de democracia onde a deliberação é
central na tomada de decisões e onde a
legitimidade das normas e das decisões
advém da autêntica deliberação pública
e não apenas das preferências agregadas,
como ocorre em processos de votação
(BOHNAN; REHG, 1997). A democracia
deliberativa envolve deliberação pública
para atingir o bem coletivo, um processo
que requer igualdade entre seus
membros, e que também pode moldar
os próprios interesses dos envolvidos
de modo que contribua para a formação
de uma compreensão pública de bem
comum (COHEN, 1997).
No contexto da democracia deliberativa,
todos os afetados têm a chance de
emitir opiniões, questionar decisões,
e propor soluções. Os argumentos
devem ser apresentados, reconhecidos
e
legitimados
coletivamente
e
a argumentação deve ser feita
publicamente, assim os participantes
devem justificar seus argumentos com
base no interesse comum (ZACHRISSON,
2010).
Nas Reservas Mamirauá e Amanã, os
fóruns de avaliação participativa foram
criados para gerar os processos de
negociação entre diferentes grupos que
compartilham a responsabilidade sobre
um sistema de recursos pesqueiros e
precisam resolver em conjunto questões
216
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
relacionadas ao seu uso sustentável.
A solução de problemas envolve um
aprendizado adaptativo que, ao levar
em consideração os diferentes tipos de
conhecimento (de usuários, técnicos e
cientistas), produz estratégias de manejo
que são deliberadas coletivamente, ou
seja, são debatidas e discutidas de forma
a produzir opiniões bem informadas,
onde participantes estão dispostos a
revisar suas preferências à luz de novas
informações e argumentos propostos
pelos demais.
O desenvolvimento do processo de
avaliação do manejo
A princípio, o fórum de avaliação
participativa recebeu o nome de reunião
de “devolução de dados”, onde os
técnicos apresentavam aos pescadores
resultados de alguns indicadores que
eram monitorados, como o número
de pirarucus contados, o tamanho dos
pirarucus pescados, a taxa de captura
em relação à cota5 liberada, etc. Essas
informações eram discutidas com os
pescadores e, a partir daí, havia uma
deliberação sobre a cota que seria
solicitada ao IBAMA. A ideia era tentar
5
A divisão das cotas de pesca é realizada pelas
associações de pescadores e obedecem a critérios definidos coletivamente nas assembleias.
Geralmente, a cota é dividida igualmente entre
os participantes. Aqueles que realizaram mais
atividades em prol do sistema ganham uma porcentagem a mais (contadores, diretoria, vigilantes) e aqueles que descumpriram as regras, são
penalizados com a redução de suas cotas. Dessa
forma, os pescadores pescam suas cotas, entregam a produção para o comprador, e posteriormente, recebem sua parte quando a diretoria faz
a divisão do pagamento.
considerar outros aspectos do manejo e
não apenas o tamanho da população de
pirarucus, para a determinação das cotas
de extração, pois havia a convicção entre
os técnicos que outros aspectos sociais
e econômicos eram determinantes da
sustentabilidade do manejo e deveriam
também ser considerados.
Tal convicção nasceu, em parte, de
experiências concretas onde as regras de
manejo foram violadas e as populações
de pirarucus foram afetadas devido aos
resultados desastrosos em algumas
etapas, como na comercialização
do pescado, ou da baixa capacidade
produtiva das associações, ou da
fragilidade da proteção da área. Essas
fragilidades do processo de manejo
não eram avaliadas sistematicamente
e só vinham à tona após o manejo.
Havia necessidade de identificar tais
fragilidades antes delas impactarem o
sistema de forma definitiva.
O pedido de cotas não era estabelecido
meramente com base na população de
pirarucus contada, pois o grupo avaliava
o histórico de atuação dos pescadores
no que diz respeito às taxas de captura
nos anos anteriores. Muitos sistemas
não conseguiam pescar a cota em sua
totalidade e isso sugeria que havia
alguma fragilidade no sistema, como
a baixa capacidade de pesca por falta
de petrechos, ou baixa produtividade
devido ao método selecionado para
a pesca (individual ou coletivo), etc.
Portanto, os técnicos tentavam mostrar
durante as “reuniões de devolução” de
dados que outros critérios deveriam
ser avaliados para o pedido da cota
e não meramente os censos das
populações de pirarucus. Entretanto,
217
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
durante esse processo, os técnicos
responsáveis pela solicitação de cotas
para o manejo de pirarucus, não se
sentiam confortáveis com a dinâmica
estabelecida durante a “devolução de
dados”, quando a assessoria propunha
uma cota que era “negociada” com os
pescadores, mas a palavra final ficava
com os técnicos e essa avaliação era
considerada muito subjetiva. E os
técnicos sentiam a necessidade de
procedimentos mais claros tanto para
o pedido das cotas, quanto para uma
avaliação sistematizada, que também
levasse em consideração as informações
qualitativas prestadas pelos pescadores
e observasse todas as etapas do manejo.
A metodologia e a linguagem da
reunião de devolução também eram
questionadas
pelos
pescadores,
que, algumas vezes, não entendiam
claramente o significado de alguns
conceitos usados por técnicos durante as
reuniões, ou mesmo da importância do
cumprimento de determinada regra para
o manejo. Em determinados momentos,
havia uma falta de entendimento ou
clareza em relação aos temas discutidos,
e aos critérios de avaliação. Por essa
razão, havia a necessidade de melhorar
a linguagem e a comunicação para
que ambos os grupos se entendessem
melhor.
A partir de 2010, técnicos do programa de
Manejo de Pesca do Instituto Mamirauá
começaram a formular uma proposta de
avaliação participativa mais sistemática
que incluía indicadores sociais e
econômicos e atribuía pontos a eles, de
forma que o nível de desempenho em
cada indicador impactava a cota a ser
solicitada (AMARAL; QUEIROZ, 2011).
Embora, a proposta incluísse mais
indicadores no processo de avaliação
(Quadro 1), não resolvia ainda a questão
da dificuldade de comunicação entre os
grupos e a possibilidade de inclusão dos
próprios pescadores na formulação do
pedido de cota.
Nesse sentido, havia a necessidade de
viabilizar a produção de informações por
meio de aprendizado colaborativo entre
os técnicos e os usuários dos sistemas,
considerando a efetiva participação dos
pescadores no processo, como vital para
se alcançar bons resultados. A partir do
processo de “devolução dos dados” de
2011, foram mantidos os indicadores de
avaliação nos campos ambiental, social
e econômico, com a inovação de incluir
os próprios manejadores não só no
debate, como a proposta anterior, mas
no processo de tomada de decisão sobre
a definição das cotas de captura.
A adequação da avaliação das etapas
do manejo junto aos pescadores, e
que resultou no método de avaliação
participativa implementado para o
manejo de 2011 e 2012 (descrito a
seguir), se deu, portanto, da necessidade
de avaliar as fragilidades do grupo, e
propor estratégias a serem adotadas
tanto pela assessoria técnica quanto
pelos manejadores para melhoria do
sistema de manejo, de forma a atender
os princípios de sustentabilidade
socioambiental e econômica.
Parte 2: Método de avaliação
participativa
O método avalia etapas fundamentais
do processo de manejo, tais como: a
organização coletiva; o respeito ao
zoneamento; a eficácia do sistema de
proteção da área adotado pelo grupo;
218
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
o estabelecimento e cumprimento
das regras; a aplicação do método de
contagem conforme artigo de Arantes
e Castelo, 2013, no levantamento
do estoque de pirarucu nas áreas e a
qualidade das informações; a capacidade
do grupo na captura da cota estabelecida
e no monitoramento da produção;
o desempenho na comercialização;
a forma como se dá a distribuição
dos benefícios obtidos no grupo e se
este considera os esforços individuais
no alcance dos objetivos coletivos;
e se o grupo dedica-se a avaliar seu
desempenho no cumprimento destas
etapas, com vistas a um planejamento
de estratégias que minimizem os riscos
de imprevistos na atividade do manejo.
O novo método de avaliação pretende
medir a evolução do sistema de manejo
ao longo dos anos, e é tratado como um
processo de capacitação continuada,
uma vez que tem como preceito
básico estimular a transparência do
processo de manejo e as relações de
confiança entre técnicos e pescadores.
Enquanto a equipe técnica se utiliza
do momento de avaliação para planejar
as suas ações, como os cursos a serem
oferecidos, os grupos de manejadores
podem
identificar
na
avaliação
uma oportunidade de compartilhar
experiências,
reconhecer
suas
potencialidades e dificuldades, pensar
em estratégias para aperfeiçoar os
métodos de controle e o planejamento.
O método segue as seguintes premissas:
ele é sistêmico (1), ao avaliar o manejo
em seus aspectos sociais, ambientais e
econômicos; é claro e acessível (2), o
que possibilita aos pescadores facilidade
em visualizar suas fraquezas e fortalezas
e monitorá-las; e é resolutivo (3), pois
seus resultados podem impulsionar
a implementação de ações efetivas e
o grau de atendimento às normas de
manejo. A hipótese a ser testada é a
de que uma avaliação sistêmica pode
servir de “estímulo” ao melhoramento
dos sistemas de manejo, onde o
atendimento às regras e aos princípios
do manejo6 sejam estimulados e
premiados, promovendo, de fato, a
conservação do recurso pesqueiro,
um melhor retorno econômico para os
pescadores e a organização coletiva.
Etapas de avaliação
O método consiste em avaliar cada
etapa do manejo, buscando relacionar
o que foi bom, o que foi ruim e como
melhorar.
Para avaliar cada etapa,
foi necessário esclarecer por meio
de um roteiro de questões diretivas,
cada conceito, critério ou tema da
avaliação. O que ajudou na comunicação
entre pescadores e técnicos. As
perguntas diretivas se transformam em
instrumento de investigação para saber
como o grupo se organiza para execução
das tarefas, como podemos observar no
Quadro 1.
Para cada etapa do manejo a ser avaliada,
foi definido um peso que descreve a
importância da atividade, segundo a
experiência dos técnicos e pesquisadores
do Instituto Mamirauá que assessoram
os sistemas de manejo. Esse peso
6
219
Segundo Amaral et al., 2013, os princípios
fundamentais do manejo participativo de
pirarucu são a sustentabilidade ecológica, a
justiça e equidade social e o retorno econômico
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
é definido em porcentagem e tem
relação direta para o estabelecimento
do pedido de cota que é de no máximo
30% dos pirarucus adultos contados
durante o levantamento do estoque
realizado anualmente por uma equipe
de pescadores do grupo.
Quando todos os critérios de avaliação
forem considerados BONS, a área de
manejo terá sua cota máxima de 30% dos
adultos contados solicitada. Isto porque,
entende-se que os princípios do manejo
estão sendo respeitados e que estão
garantindo a conservação da espécie
(respeito ao tamanho mínimo, período
do defeso, controle de exploração, etc.).
Quadro 1. Etapas do processo de manejo participativo sustentável de pirarucu nas Reservas de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã.
Critério de avaliação Conceito
Peso
Perguntas diretivas
5%
Organização
Coletiva
O grupo se reúne? Com que frequência? Quantos
sócios participam? Os sócios se sentem livres
para opinar? Todos falam? Como a diretoria/
coordenação reage as críticas? Procura responder
as dúvidas dos sócios? As decisões mais
importantes são tomadas em assembleia? Os
sócios conhecem quais as atribuições de cada
membro da diretoria/coordenação? Os diretores
cumprem seu papel? O presidente representa a
opinião da maioria? O acordo mantém recurso
alocado para pagar despesas c/ o manejo ao longo
do ano? Quem gerencia o dinheiro do acordo/
associação/colônia? A prestação de contas é
feita? Com que frequência? As informações são
repassadas de forma clara?
Avalia-se
o
nível
de
organização do grupo de
manejo considerando a
participação dos sócios nas
atividades de manejo ao
longo do ano, frequência
nas
reuniões,
trabalho
da diretoria, união do
grupo, formas de controle
financeiro, entre outros.
5%
Obediência às
regras
Avalia-se se o Regimento
Interno
do
sistema
contempla as normas de
uso, o grau de atendimento
dessas normas a partir
do trabalho de vigilância
feito
pelos
próprios
manejadores e, para os
casos de descumprimento
desses acordos, se há devida
aplicação das penalidades.
Existe um Regimento Interno? As regras são
claras? Existem dúvidas? O grupo respeita as
normas? As penalidades previstas têm sido
aplicadas? Quais regras são mais fáceis de serem
controladas? Quais as mais difíceis? Por quê?
O Regimento Interno já foi revisto? Com que
frequência?
220
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
Zoneamento
Avalia-se o respeito ao
ordenamento
espacial
proposto na fase de
implementação do manejo e
ao zoneamento das Reservas,
assim como a existência ou
não de conflitos com outros
grupos e/ou comunidades
do entorno e sua eficiência
enquanto ferramenta de
conservação do recurso.
Sistema de
Vigilância
Avalia-se
a
efetividade
do sistema de vigilância
implementado pelo grupo de
manejadores, a frequência
do mesmo, a participação ou
não dos sócios nas rondas e
o custos da atividade.
Levantamento de
Estoque
Avalia-se o tamanho da
população, a qualidade das
contagens realizadas pelos
contadores, por sistema de
manejo, e dos registros nas
fichas. Avalia-se também a
formação dos contadores
em cursos, certificações, etc.
Capacidade
Produtiva
Avalia-se a capacidade do
grupo em capturar toda
a cota solicitada e se os
apetrechos utilizados são
adequados e em número
suficiente para a produção
daquele determinado ano.
Monitoramento
Avalia-se a qualidade do
registro das informações
coletadas durante a pesca e a
organização dos monitores,
considerando que esta
etapa é fundamental para
a emissão das guias de
trânsito e a comercialização.
4%
O grupo compreende o que é o zoneamento? Para
que serve? A categoria dos lagos está definida
adequadamente? Cumprem com seu objetivo? O
grupo respeitou o zoneamento definido?
4%
Existe uma estratégia de proteção da área? Como
é feito? A atividade envolve todos os sócios? O
que um vigilante pode fazer? Como a diretoria/
coordenação sabe quem participou da atividade?
Existem Agentes Ambientais participando da
atividade? Como eles participam? Qual o seu
papel?
3%
Os contadores que realizam as contagens são
capacitados? As equipes de contagem são
acompanhadas pelo menos de um contador
certificado? Todas as informações solicitadas nas
fichas de contagem preenchidas? As contagens
são feitas de acordo com as orientações do curso
de contagem? O resultado das contagens se
reflete no momento da pescaria?
3%
O grupo conseguiu capturar toda cota solicitada?
Em quanto tempo? A que se justifica o sucesso/
insucesso na pesca? O grupo se reúne com
antecedência para planejar a execução da pesca?
Há divisão de tarefas? Como foi essa organização?
Quantos bodecos morreram durante a pesca?
A que se justifica isso? Qual o peso e tamanho
médio dos peixes capturados? Há uma razão pra
isso?
2%
Quantos atuaram como monitores? O nº é
suficiente? Todos passaram por treinamento?
A execução da atividade foi planejada e se
desenvolveu de forma organizada? As informações
da produção foram verificadas ao final de cada
dia e antes da entrega das fichas? Se as fichas
de monitoramento foram bem preenchidas e com
letra legível? Poucos erros são encontrados pela
equipe técnica?
221
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Comercialização
Distribuição dos
benefícios
Avaliação
Participativa
Avalia-se o trabalho
da diretoria na busca
de
compradores
e
nas
negociações,
o
cumprimento
dos
prazos, tanto da chegada
do barco, entrega da
produção e pagamentos,
e se a negociação foi
formalizada através de
contrato.
Avalia-se se a distribuição
de benefícios foi feita
de forma transparente
e justa e se há controle
sistemático
da
participação dos sócios
nas atividades. Avalia-se
também se a diretoria
presta contas de forma
devida.
2%
O grupo negociou com alguns dos
compradores presentes na Rodada de
Negócios? A venda foi formalizada por
contrato? A logística e o pagamento
ocorreram conforme o combinado? O preço
negociado cobre os custos e gera renda?
Avalia-se o número de
sócios presentes na
reunião e a qualidade
da participação dos
mesmos nas discussões e
na votação.
Dinâmica da reunião de avaliação
Durante a reunião de avaliação
participativa, a seguinte dinâmica é
realizada: em primeiro lugar, a equipe
técnica apresenta como será feita a
reunião, os itens a serem avaliados são
explicados detalhadamente, assim como
o processo de votação e,em seguida,
cada um dos critérios é posto em
discussão na seguinte sequência:
a. Manejadores avaliam como foi a
atividade ao longo do ano.
a. O técnico responsável pelo
acompanhamento da área se manifesta
e apresenta seu parecer técnico com
relação à mesma.
b. Há um debate com base em três
perguntas básicas: O que foi bom? O
1%
Os sócios conhecem os critérios para
divisão de cota/ganhos estabelecidos no
Regimento? A divisão segue estes critérios?
Existem dúvidas e insatisfações com a
divisão? Quais? Por quê? O que fazer para
melhorar?
1%
Quantos dos sócios beneficiados estão
presentes na reunião? A maioria dos
presentes expressa sua opinião sobre
os temas discutidos? As informações
apresentadas pelos manejadores relatam
a realidade dos fatos? Houve discordância
entre a opinião de técnicos e manejadores?
Como a situação foi resolvida.
que foi ruim? Como melhorar? (Todos os
participantes têm direito de expressar
suas opiniões).
c. Ao final da discussão, um relator
apresenta um resumo dos debates.
d. São distribuídos papeis em branco
para que os pescadores e técnicos
avaliem a atividade por meio de seu
voto. As notas podem ser 1, 2, 3 e 4,
e correspondem a ruim, fraco, bom e
ótimo, respectivamente.
Tabela de desempenho das áreas de
manejo e interpretação dos resultados
Após a votação, calcula-se a média dos
votos dos pescadores, dos votos dos
técnicos e, em seguida, obtém-se a
média ponderada para aquele critério
(MF).
222
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
MF = MT + MM
Onde:
MF = média final
MT = média dos técnicos
MM = média dos manejadores
Caso a média final do critério seja entre
1.0 e 1.9, isso significa que os votantes
(pescadores e técnicos) avaliaram o
atendimento do critério entre RUIM
e FRACO, devendo o grupo repensar
suas estratégias referentes a esse
ponto. Portanto, ele não receberá a
porcentagem do peso daquele critério e
no placar ele ficará com a cor vermelha
e com o valor 0.
Quando a média final estiver entre 2.0
e 2.9, subtende-se que este critério foi
considerado entre FRACO e BOM, ou
seja, apesar de haver problemas com
este ponto, o grupo já está buscando
formas de resolvê-lo, ou ainda está
em tempo de recuperá-lo e por isso,
receberá 50% do valor referente aquele
critério (ver tabela I).
Com a média final entre 3.0 e 4.0,
ganhará 100% do valor do critério (tabela
I), visto que, na avaliação, este ponto
foi considerado como BOM ou ÓTIMO,
atendendo, portanto, grande parte do
que é esperado para ele. Os valores e a
cor correspondentes à média final podem
ser observados nas tabelas 1 e 2.
Tabela 1. Valor (%) e cor atribuídos a cada critério de acordo com a média final.
Média Final
Valor da Cota
Cor
1.0 a 1.9
2.0 a 2.9
3.0 a 4.0
0%
50%
100%
Vermelho
Amarelo
Verde
Tabela 2. Resultado da avaliação participativa em um sistema de manejo.
Critérios
Média dos
votos dos
Sócios
DP
Média dos
votos dos
Técnicos
DP
Média
Final
Valores
máximos
referentes
aos pesos dos
Critérios
Valores
referentes
aos pesos
das médias
finais
1 Organização Coletiva
2,00
0,00
3,00
0,45
2,50
5,00%
2,50%
2 Contagem
3,00
0,00
1,75
0,50
2,40
5,00%
2,50%
3 Vigilância
2,00
0,00
2,00
1,00
2,00
4,00%
2,50%
4 Obediência as normas
2,75
0,50
3,00
0,00
2,90
4,00%
2,00%
3,00%
5 Divisão de Benefícios
3,00
0,50
3,40
0,55
3,20
3,00%
6 Capacidade de Pesca
3,30
0,00
4,00
0,00
3,65
3,00%
3,00%
7 Monitoramento
3,00
0,00
3,00
0,00
3,00
2,00%
2,00%
2,00%
8 Zoneamento
3,30
0,50
3,40
0,55
3,35
2,00%
9 Comercialização
3,00
0,00
3,00
0,00
3,00
1,00%
1,00%
10 Avaliação Anual
3,00
0,00
3,40
0,55
3,20
1,00%
1,00%
30,0%
21,50%
113
81
Total
Cota de pirarucu para 2012
223
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Cálculo da cota a ser solicitada
Para se fazer a somatória dos pontos
e obter o valor da cota de pirarucu, é
preciso atribuir valores a cada critério
de avaliação com base nas tabelas 1 e
2. A somatória dos valores de todos os
critérios avaliados resultará na cota a
ser solicitada para a próxima safra. No
exemplo abaixo, o sistema de manejo
recebeu cota de 21,5% dos pirarucus
adultos contados nos corpos d’água.
Sistemas de manejo avaliados e período
de análise
Neste capítulo, relata-se a experiência de
aplicação do novo método de avaliação
participativa em cinco sistemas de
manejo participativo de pirarucu com
pelo menos cinco anos de existência e
assessorados pelo Instituto Mamirauá,
nas RDS Mamirauá e Amanã. Os sistemas
foram denominados de sistemas A, B, C,
D e E. Os anos analisados foram 2011 e
2012.
Parte 3: Efeitos da avaliação
participativa sobre as ações dos agentes
do manejo
A avaliação participativa é uma
ferramenta metodológica aplicada a
todas as etapas do sistema de manejo,
detalhando os acontecimentos, na
tentativa de identificar os fatores que
influenciam para o êxito ou insucesso
das etapas num determinado momento.
As informações obtidas podem alarmar
o grupo em um primeiro momento,
levando alguns a questionar a
efetividade do manejo. No entanto, o
propósito de conhecer os problemas é
encará-los como fragilidades, inerentes
a uma atividade que envolve um
grupo de pessoas, com perfil e ideias
diferentes, mas que se dispusera a
realizar uma atividade em conjunto, e
sob a orientação de atores externos,
que propõem procedimentos diferentes
daqueles habitualmente vivenciados na
pesca de caráter individual ou familiar.
Sendo assim, conhecer as fragilidades
desta atividade representa ser capaz de
analisar a situação e propor estratégias
para melhoria.
O manejo participativo de pirarucu
é uma medida de conservação
relativamente nova. Atualmente, o
direito de uso deste recurso está
garantido legalmente apenas àqueles
que adotam um conjunto de medidas
regulatórias7. Como por exemplo, a
organização do grupo de usuários para
efetuar a proteção da área, o respeito
às leis de tamanho mínimo8 e defeso9,
o uso de estratégias de pesca menos
impactantes, a venda da produção a um
melhor preço para melhorar a renda
familiar e diminuir a pressão sobre o
recurso. Propor uma avaliação nestes
moldes significa estar disposto a correr
riscos. O risco principal está no grupo
de manejo, não compreendendo o
propósito da avaliação, procurar atribuir
notas que não traduzem o teor das
discussões, numa estratégia de alcançar
7
8
9
224
O manejo de pirarucus é regulado pela Instrução
Normativa do IBAMA nº 1, de 1º de junho de
2005.
Tamanho mínimo de captura de pirarucus no
estado do Amazonas é regulado pela Portaria
do IBAMA, n0 8, de 2 de fevereiro de 1996
e publicada no Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 fev. 1996.
O período de defeso no estado do Amazonas é
regulado pela Instrução Normativa do IBAMA nº
34, de 18 de junho de 2004.
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
uma média final que permita o ganho
da pontuação total em cada critério, e
que resulte ao final, na obtenção da cota
máxima de 30% dos pirarucus adultos
contados. Ainda que isso ocorra, a nota
dos técnicos será o fator de equilíbrio.
Por exemplo, se a nota do grupo for 4,0 e
a dos técnicos 1,0 a soma corresponderá
a 5,0 e a média final a 2,5 que resultará
na obtenção da metade da porcentagem
daquele critério. O grupo já terá
discorrido sobre a etapa, levantando
pontos positivos e negativos, e
propondo medidas para melhoria, o que
subsidiará o planejamento da assessoria
para atuar no ano seguinte nos pontos
de maior fragilidade.
A seguir fazemos uma descrição das
atividades de avaliação participativa em
cinco sistemas de manejo de pirarucu
nos anos de 2011 e 2012.
Sistema A
O sistema de manejo A, envolve
atualmente, pescadores de comunidades
de uma unidade de conservação e
pescadores urbanos de uma colônia
de pescadores que estão trabalhando
em conjunto por meio de um acordo
de pesca. O acordo de pesca é aqui
entendido como os acertos formais ou
informais entre grupos de usuários para
o uso coletivo de recursos pesqueiros
de uma determinada área. Em 2011,
o sistema de manejo beneficiou, por
decisão do grupo envolvido, apenas os
pescadores da Associação Comunitária e
não da Colônia de Pescadores.
Durante a avaliação participativa do
manejo de 2011, o sistema A obteve
nota máxima e alcançou a cota total
permitida de 30% dos adultos contados.
A nota representou o mérito do grupo
a partir da aprovação do regimento
interno10 e do bom desempenho em
todas as etapas. Em 2012, houve a troca
da diretoria da Associação Comunitária
e com isso a necessidade de repactuar
os compromissos e fazer cumprir as
normas estabelecidas pelo grupo, para
ganhar a confiança e o respeito dos
demais, fatores indispensáveis a uma
boa gestão. Ademais, o distanciamento
do representante da Colônia de
Pescadores que fazia parte do acordo
de pesca em 2012, em função de seu
afastamento para candidatar-se a
vereador, repercutiu negativamente no
processo de comercialização e na divisão
dos benefícios. Em virtude disso, a cota
obtida pelo grupo na avaliação de 2012
caiu para 26,5% dos adultos contados,
que correspondeu a uma cota de 1.247
pirarucus (Tabela 3).
Como a coordenação dos trabalhos ficou
a cargo da Associação Comunitária, sem
que houvesse o devido acompanhamento
dos outros membros do grupo não se
aplicaram as penalidades previstas no
regimento interno a quem descumprisse
as regras.
A divisão de benefícios não foi feita de
forma adequada, porque não considerou
os adiantamentos dos sócios, o que
resultou na necessidade de acessar parte
do fundo de manutenção para pagar os
membros do grupo.
A nota da avaliação do item
“comercialização” refletiu a condição
do grupo da Associação Comunitária
10
225
Documento que reúne as regras estabelecidas
por um grupo para regulamentar o seu funcionamento. No manejo, esse documento direciona
a execução do trabalho dos pescadores e de sua
coordenação e serve de mecanismo de controle,
monitoramento e avaliação para a equipe técnica
(AMARAL et al., 2013).
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
Tabela 3 - Avaliação do Sistema A.
Média 2011
Média 2012
Desempenho
1
Critério
Organização Coletiva
3,70
3,3
-0,4
2
Contagem
3,05
3,6
0,5
3
Vigilância
3,30
3,2
-0,1
4
Obediência às normas
3,35
2,8
-0,5
5
Divisão de Benefícios
3,35
2,9
-0,4
6
Capacidade de Pesca
3,70
3,7
0,0
7
Monitoramento
3,75
3,5
-0,3
8
Zoneamento
3,45
3,0
-0,5
9
Comercialização
3,30
3,0
-0,3
10
Avaliação Anual
3,60
3,59
0,0
30,00%
26,5%
-3,5%
Cota
que esteve sozinho à frente desta etapa,
aceitando a repesagem da produção,
mesmo havendo ficado acertado em
contrato que a produção seria paga pelo
peso do monitoramento.
Nota-se que a avaliação participativa
demonstrou que na maioria dos critérios
o Sistema A teve um pior desempenho
de 2011 para 2012. Embora isso possa
parecer alarmante, na verdade era
esperado, pois foi apenas em 2012 que
todos os grupos envolvidos no Acordo
foram avaliados, e, como foi o primeiro
ano de trabalho conjunto entre os
usuários, as dificuldades foram muito
maiores do que aquelas enfrentadas pela
Associação Comunitária em 2011. De
qualquer forma, a Tabela 1 mostra que o
método também permite acompanhar a
evolução do desempenho dos sistemas
de manejo ao longo dos anos.
Sistema B
Este sistema envolve uma Colônia de
pescadores urbanos que maneja, há dez
anos, um sistema de lagos dentro da
RDSM. O sistema envolve um grande
número de pescadores (mais que 400)
que, além de participar do manejo da
área em questão, também realizam a
pesca comercial em outros lugares.
Na primeira avaliação participativa, o
debate demonstrou que havia grandes
dificuldades na organização coletiva,
vigilância, obediência às normas e
divisão de benefícios (Tabela 4), o que
levou a assessoria a definir para 2012
a realização do Curso Educação para
o Manejo, voltado principalmente aos
diretores da organização, visto que, os
sócios atribuíam a eles, o pouco poder
de mobilização do grupo e falta de zelo
pelo bom cumprimento das etapas do
manejo, principalmente no que diz
respeito à aplicabilidade das normas
contidas no regimento interno.
A partir da elaboração do regimento
interno e dos treinamentos realizados
com o grupo foi possível perceber
alguns avanços na organização coletiva.
No entanto, a avaliação permitiu
observar que poucos sócios se
expressam nas reuniões; há decisões
do grupo que não estavam sendo
cumpridas pela diretoria, mas também
há críticas infundadas aos diretores, que
226
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
adotam respostas duras que acirram
os conflitos internos; a comunicação
entre diretoria e sócios para repasse
de informações ainda é falho, gerando
muitas dúvidas, principalmente em
relação aos investimentos feitos com o
recurso de 15% do faturamento líquido
do manejo direcionado à Colônia. Na
avaliação de 2011, por exemplo, alguns
sócios que se opunham à diretoria eleita,
tentaram prejudicá-la dando baixíssimas
notas para alguns critérios que refletiam
exclusivamente a ação da diretoria,
tentando manipular o resultado da
avaliação. Também em função disso, em
2011, o grupo de manejadores obteve
nota baixa e apenas 22% da cota de
pirarucus (Tabela 4).
A vigilância é um desafio para este
grupo, pois é custeada pela própria
colônia e não conta com a atuação de
agentes ambientais. Ademais, o sistema
de vigilância não consegue envolver a
totalidade dos que são beneficiados com
o manejo, havendo falhas no rodízio, no
cumprimento integral do período e no
repasse de informações entre as equipes
no momento da troca.
Tabela 4 - Avaliação do Sistema A.
Critério
Média 2011
Média 2012
Desempenho
1
Organização Coletiva
2,70
3,1
0,4
2
Contagem
3,90
3,8
-0,07
-0,13
3
Vigilância
2,80
2,7
4
Obediência às normas
2,80
2,8
0,0
5
Divisão de Benefícios
2,80
2,9
0,1
6
Capacidade de Pesca
3,45
3,6
0,1
7
Monitoramento
3,15
3,4
0,3
8
Zoneamento
3,60
3,5
-0,1
9
Comercialização
3,60
2,7
-0,9
10
Avaliação Anual
3,55
3,2
-0,39
22,00%
24,0%
2,0%
Cota
Em 2012, os problemas persistiram,
com um agravante na questão da
comercialização, uma vez que, os
sócios da colônia demonstraram-se
insatisfeitos com a forma com que o
processo de negociação da produção
foi conduzido pelos diretores. Apesar
de, até o início da temporada de pesca,
ainda haver pendências no pagamento
da produção de 2011 por parte do
comprador, os diretores voltaram a
negociar com o mesmo. A falta de
pagamento repercutiu, principalmente,
no enfraquecimento do sistema de
vigilância. Isso se refletiu na avaliação
do grupo, resultando na definição de
um pedido de cota para 2013 de 3.196
peixes, equivalente a 24% do número de
pirarucus adultos contados.
No item obediência às normas, percebeuse que ainda houve o desrespeito por
parte de alguns sócios às regras do
estatuto e do regimento, embora em
número bem menor, se comparado
a outros anos. Um fato marcante em
2012, que causou atrito na relação
entre assessoria técnica e o grupo
de manejadores, foi a continuidade
da pesca depois da data de início do
227
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
defeso. Da parte dos manejadores ainda
houve manifestação de insatisfação com
a forma de distribuição dos benefícios,
que afirmaram haver favorecimento
de alguns sócios mais próximos à
diretoria. No monitoramento, a nota
atribuída pela assessoria técnica referese, principalmente, à demora na entrega
das fichas originais de monitoramento,
necessárias para inserção dos dados
complementares do banco de dados
que subsidia as análises e a elaboração
do relatório técnico. A nota atribuída ao
item comercialização foi resultante da
venda da produção não haver se dado
por meio de contrato, bem como no
atraso no pagamento.
Na maioria das avaliações participativas
realizadas em outros sistemas, não
há uma diferença significativa entre
as notas atribuídas por técnicos e
pescadores, mas em 2012, há uma
diferença muito grande no sistema
em questão (Tabela 5). Mesmo depois
de expostas todas as fragilidades do
sistema, as notas atribuídas aos critérios
pelos pescadores foram muito mais altas
que as notas de técnicos, mostrando que
as notas não refletiram as discussões.
Isso já havia ocorrido também em 2011.
Portanto, deve-se analisar melhor a
adequação do método de avaliação
participativa
para
determinação
de cotas em casos como este.
Neste sistema, o método de avaliação
participativa foi importante para
orientar as ações da assessoria técnica,
que identificou a necessidade de mais
acompanhamento da diretoria da
Colônia de pescadores, e a realização
de mais cursos de “educação para o
manejo”, pois os técnicos notaram que os
membros do sistema não se apropriaram
devidamente
desses
princípios.
Tabela 5 - Avaliação do Sistema B em 2012.
Média
dos
votos
dos
Sócios
Média Final
Valores
máximos
referentes
aos pesos dos
Critérios
Valores
referentes
aos pesos das
médias finais
1 Organização Coletiva
2 Contagem
0,5
3,1
5,0%
5,0%
0,4
3,8
5,0%
5,0%
2,2
0,6
2,7
4,0%
2,0%
2,1
0,6
2,8
4,0%
2,0%
0,9
2,6
0,7
2,9
3,0%
1,5%
3,7
0,6
3,4
0,5
3,6
3,0%
3,0%
3,6
0,7
3,2
0,4
3,4
2,0%
2,0%
8 Zoneamento
3,7
0,6
3,3
0,7
3,5
2,0%
2,0%
9 Comercialização
3,2
0,8
2,2
0,4
2,7
1,0%
0,5%
10 Avaliação Anual
3,1
0,8
3,2
0,8
3,2
1,0%
10%
Total
30,0%
24,0%
Cota de pirarucu para
2012
3.995
3.196
DP
Média dos
votos dos
Técnicos
DP
3,5
0,7
2,7
3,9
0,4
3,8
3 Vigilância
3,1
0,8
4 Obediência as normas
3,4
0,6
5 Divisão de Benefícios
3,3
6 Capacidade de Pesca
7 Monitoramento
Critérios
Cota de pirarucu para
2013
3.196
228
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
Sistema C
Este sistema envolve um grupo de
pescadores de diversas comunidades
situadas dentro da RDSM que maneja,
há mais de dez anos, um sistema de
lagos. O grupo historicamente se
destacou por ter uma forte organização
coletiva e pela atuação dos sócios nas
etapas do manejo e, por isso, em anos
anteriores, quase sempre conseguia
obter a cota máxima de 30%. Mas com
a avaliação participativa em 2011 e
a inclusão de todos os critérios do
manejo no diagnóstico do desempenho
do grupo, algumas fragilidades foram
detectadas nos itens vigilância e
zoneamento. O problema identificado
na vigilância devia-se ao fato de que
a responsabilidade pela execução
desta atividade estava sendo atribuída
unicamente aos agentes ambientais
voluntários11. Os pescadores não se
envolviam na atividade, tornando-a
menos eficiente, uma vez que o grupo
só atuava quando demandado com
bastante insistência pelos agentes,
que também são manejadores e têm
participação nos ganhos provenientes do
manejo. Ao detectar essa fragilidade, os
próprios membros do grupo decidiram,
posteriormente, ajustar o sistema de
proteção da área, definindo como um
dos critérios para obtenção de cota, a
participação nas rondas de vigilância, o
que inclusive, diminuiu o uso dos lagos
na categoria de comercialização fora
11
Os participantes de mutirões ambientais,
indicados por entidades civis ambientalistas ou
afins, devidamente treinados e credenciados pela
Coordenação Geral de Fiscalização Ambiental
do IBAMA que atuam na vigilância e proteção
ambiental de um território.
do período estabelecido para a pesca
coletiva.
Com relação ao zoneamento12, o
debate que ocorreu durante a avaliação
participativa de 2011 demonstrou que,
embora o grupo tivesse oficialmente
lagos de preservação no sistema
de zoneamento, estes não estavam
cumprindo com essa finalidade,
visto que, os membros do grupo os
utilizavam para manutenção, pois as
comunidades teriam poucos lagos
para sua alimentação. Além disso,
os manejadores recém-ingressados
ao grupo afirmavam desconhecer a
definição da categoria de uso dos lagos
estabelecida pelo grupo.
No ano de 2012, o grupo não registrou
a morte incidental de bodecos
(pirarucus juvenis) durante a pesca e
isso refletiu na perda de pontos no
item “monitoramento”. Outro tema
que resultou em perda de pontos foi a
comercialização, pois o pagamento foi
realizado além do prazo estabelecido
em contrato. Essas questões fizeram
com que o grupo obtivesse na avaliação
28,5% do número de pirarucus adultos
contados.
Ainda que o grupo tenha alcançado
média satisfatória em 80% dos
critérios avaliados, confirmando o
bom desempenho organizacional, a
avaliação serviu para que a assessoria
tomasse conhecimento de situações
que influenciaram a execução das
12
229
O zoneamento de lagos consiste em definir
três tipos de uso aos ambientes a partir
de suas características: preservação (não
uso); manutenção (uso para subsistência) e
comercialização (uso coletivo na pesca comercial
manejada).
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
etapas do manejo. Dentre elas, o fato
de que são poucos os comunitários
que complementam a renda com outra
atividade, ocasionando uma pressão
maior sobre o recurso pesqueiro ao
longo do ano e, consequentemente, o
descumprimento das regras por parte
de alguns membros do grupo. Outro
problema encontrado, foi o alto índice
de inadimplência com a associação.
A não participação de mulheres nas
atividades de manejo de pesca do grupo
também foi apontada como um fator
negativo. A estabilidade, ou possível
declínio nas contagens, é resultado de
invasões e pesca feita por moradores
durante a época da cheia e no período
anterior a contagem; devido à morte de
bodecos durante a pesca de tambaqui;
e a vegetação presente nos ambientes
que tem dificultado as contagens de
pirarucus nesses locais.
As médias mais baixas atribuídas, tanto
pelos manejadores quanto pela equipe
técnica foram nos itens monitoramento
e comercialização. Foram reconhecidas
as fragilidades no monitoramento dos
bodecos; e na comercialização, pois
o grupo não barganhou e negociou a
produção com o primeiro comprador que
demonstrou interesse pela produção.
Ademais, o pagamento não ocorreu de
acordo conforme o estabelecido em
contrato.
O emprego do método de avaliação
participativa demonstrou resultados
satisfatórios neste sistema, pois
possibilitou que os próprios pescadores
identificassem algumas falhas que antes
não eram publicamente discutidas,
como o fato dos agentes ambientais
ficarem com toda a responsabilidade
sobre as rondas de vigilância.
Tabela 6 - Avaliação do Sistema C.
Média 2011
Média 2012
Desempenho
1
Organização Coletiva
Critério
3,50
3,1
-0,4
2
Contagem
3,25
3,6
0,3
3
Vigilância
2,50
3,1
0,6
4
Obediência às normas
3,10
3,3
0,2
5
Divisão de Benefícios
3,80
3,4
-0,4
6
Capacidade de Pesca
3,65
3,5
-0,2
7
Monitoramento
3,75
2,8
-1,0
8
Zoneamento
2,50
3,4
0,9
9
Comercialização
3,50
2,8
-0,7
10
Avaliação Anual
Cota
3,50
3,9
0,4
27,00%
28,5%
1,5%
Sistema D
Este sistema envolve um acordo de
pesca entre grupo de pescadores
urbanos e pescadores de comunidades
residentes na RDS Amanã que,
conjuntamente, protegem um sistema
de lagos historicamente usado na pesca
comercial da região. O grupo fez sua
primeira pesca manejada em 2007.
230
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
Em 2011, os debates mostraram grande
insatisfação dos membros do acordo
com a organização coletiva, atribuída
às informações contraditórias advindas
de membros da coordenação do
acordo sobre a forma como realizar
as atividades e também, devido a
falta de comando do grupo. Em 2012,
essa desarticulação da equipe de
coordenação das colônias de pescadores
fez com que a avaliação desse critério
se mantivesse baixa. Os problemas com
a organização coletiva repercutiram em
problemas com a vigilância, a obediência
às normas, comercialização e avaliação
anual. A fragilidade em administrar
a participação dos beneficiários do
manejo na vigilância fez com que,
em determinados momentos, a área
tivesse 20 pessoas atuando e em outros
momentos, apenas duas pessoas, sem
intensificar esforço na vigilância noturna
e sem a atuação de agentes ambientais.
Isso pôs em risco a proteção da área,
bastante visada por pescadores urbanos
alheios ao acordo. A fragilidade do
sistema de vigilância tem impactado a
população de pirarucus que apresentou
uma redução nos últimos 02 anos.
O grupo relatou que houve reduzida
participação de sócios nas assembleias
que ocorreram na área de manejo;
isso fez com que alguns sócios não
tivessem clareza sobre as atribuições
das coordenações e as regras do
regimento. No que diz respeito ao
critério obediência às normas, muitas
penalidades deixaram de ser aplicadas,
devido à omissão dessas informações
nos relatórios produzidos pelos
coordenadores das equipes de vigilância.
Ao avaliar a comercialização, as
evidências eram de que a negociação
com o comprador da produção não
havia sido exitosa, uma vez que, as
embarcações não foram disponibilizadas
na época prevista, resultando em
algumas interrupções na captura; e
principalmente, que o pagamento total
da produção ainda estava pendente.
Diante dessa situação, a colônia para
efetuar o repasse aos pescadores teve
que acessar recursos próprios. Esses
acontecimentos tiveram forte influência
em todos os critérios avaliados, o que
gerou o resultado final de 22,5%.
O desempenho do sistema piorou em
2012 e isso está refletido na avaliação
participativa que diminuiu em cinco
pontos percentuais a cota. Neste caso,
as evidências mostram que o grupo não
utilizou o método para definir estratégias
Tabela 7 - Avaliação do Sistema D.
Média 2011
Critério
Média 2012
Desempenho
1
Organização Coletiva
2,80
2,9
2
Contagem
3,25
3,5
0,1
0,3
3
Vigilância
3,50
2,9
-0,6
4
Obediência às normas
3,10
2,9
-0,2
5
Divisão de Benefícios
3,80
3,3
-0,5
6
Capacidade de Pesca
3,60
3,3
-0,3
7
Monitoramento
3,75
3,0
-0,7
8
Zoneamento
3,25
3,5
0,2
9
Comercialização
3,50
2,6
-0,9
10
Avaliação Anual
Cota
3,50
3,0
-0,5
27,50%
22,5%
-5,0%
231
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
para mitigar os problemas encontrados
em 2011. Além disso, a ausência de mais
de 70% dos membros do grupo durante
a avaliação participativa demonstra que
os mesmos não consideraram essa uma
ferramenta importante para o manejo.
Sistema E
O sistema E envolve um grupo de
pescadores de quatro comunidades de
um mesmo setor da RDS Amanã que
compartilha o uso de um sistema de
lagos desde 2008. Em 2011, a avaliação
participativa evidenciou fragilidades na
contagem e no sistema de vigilância
da área. Na contagem perceberamse incertezas quanto à aplicação do
método, visto que, alguns contadores
estavam deixando de contar a totalidade
dos pirarucus juvenis (de 100 a 149 cm),
uma vez que, estes não têm influência na
definição da cota. No entanto, é como
base no número de indivíduos juvenis que
se analisa a sustentabilidade do sistema
ao longo dos anos de manejo, avaliação
de possíveis tendências de crescimento
ou estabilidade da população. Para
trabalhar essa fragilidade do grupo,
a assessoria promoveu um novo
treinamento, para esclarecer dúvidas e
padronizar os procedimentos entre os
contadores do acordo.
Quanto à vigilância, o grupo só
estava atuando no período da seca,
considerando que durante a cheia, os
pirarucus dispõem de um número maior
de áreas que servem de esconderijo,
dificultando sua captura. Entretanto,
durante a avaliação, os participantes
consideraram que o sistema não se
demonstrava eficiente, visto que, os
agentes ambientais voluntários do setor
já haviam flagrado por algumas vezes,
pescadores de áreas vizinhas tentando
pescar nas áreas de manejo.
Em 2012, o problema com a vigilância
não foi totalmente superado, embora
tenha melhorado. Fatores como
a carência de atuação de agentes
ambientais e a presença de barcos
transportando produtos ilegais na área
do setor, ainda exige muito empenho e
investimentos nesta etapa do manejo.
Na avaliação participativa em 2012,
ficou evidente que os procedimentos
equivocados adotados durante as
contagens anteriores haviam sido
corrigidos, mostrando os efeitos das
ações de capacitação realizadas pela
assessoria técnica. No que diz respeito
ao zoneamento da área, veio à tona a
discussão sobre os novos ambientes
listados e contados, que não haviam sido
descritos, nem ao menos mencionados
durante a implementação do manejo.
O grupo esclareceu que ao iniciar as
ações de manejo relacionou apenas
quatro ambientes, nos quais iniciou o
levantamento do estoque de pirarucus.
No entanto, com o bom desempenho
das ações de manejo, outros ambientes
que até então não continham pirarucus
começaram a apresentar indivíduos
dessa espécie e em bom número, o
que levou os manejadores a incluíram
estes novos ambientes na contagem,
sem relacioná-los no sistema de
zoneamento. Portanto, seria necessário
rever o sistema de zoneamento da
área, uma vez que, o grupo relatou ter
dúvida em relação aos limites das áreas
de manutenção e comercialização, dada
a proximidade destas áreas com áreas
utilizadas por outras comunidades do
setor.
232
A avaliação participativa como ferramenta para tomadas de decisão em processos de manejo de pirarucu (Arapaima gigas)
• Ellen Amaral • Ana Cláudia Torres • Nelissa Peralta
Tabela 8 - Avaliação do Sistema E.
Média 2011
Média 2012
Desempenho
1
Organização Coletiva
3,35
3,4
0,1
2
Contagem
2,50
3,4
0,9
3
Vigilância
2,60
2,9
0,3
4
Obediência às normas
3,30
3,3
0,0
5
Divisão de Benefícios
3,50
3,8
0,3
6
Capacidade de Pesca
3,85
3,1
-0,7
7
Monitoramento
3,60
3,2
-0,4
8
Zoneamento
3,70
2,5
-1,2
9
Comercialização
3,85
3,7
-0,2
10
Avaliação Anual
3,10
3,6
0,5
25,50%
27,0%
1,5%
Critério
Cota
Ficou claro que a aplicação do método
de avaliação participativa teve efeitos
positivos sobre este sistema de manejo,
servindo para orientar tanto a assessoria
técnica em relação às necessidades
de treinamento do grupo, quanto os
próprios pescadores que entenderam
que deveriam tomar medidas para
melhorar o sistema de vigilância da
área e sua atuação no levantamento de
estoques.
CONCLUSÕES
Os resultados da aplicação do método
de avaliação participativa entre
os anos de 2011 e 2012 nos cinco
sistemas tratados aqui mostram que
três deles apresentaram melhorias de
desempenho. Dois sistemas tiveram
pior desempenho, mas em relação ao
sistema A, esse resultado era esperado
já que apenas em 2012 todas as partes
do acordo de pesca realmente se
envolveram no manejo, assim apenas
no segundo ano, novos desafios foram
impostos ao grupo, tais como: planejar,
comercializar e dividir benefícios de
maneira a envolver e contemplar as
três partes interessadas, uma vez que,
as coordenações estão estabelecidas
geograficamente distantes.
Mais importante foi notar que a
aplicação do método de avaliação
participativa possibilitou evidenciar
fragilidades das organizações na
execução de atividades que só tornamse exitosas quando envolvido o coletivo
dos beneficiados com o manejo. E que
não eram discutidas ou equacionadas
pelo grupo porque eram enfrentadas por
uma pequena parte do mesmo, como no
caso dos problemas de vigilância da área
divulgados pelos agentes ambientais
do sistema C. A publicidade desses
problemas ou a inclusão deles na agenda
de discussão do grupo, possibilitou a
formulação de estratégias endógenas
que melhoraram o sistema de vigilância
da área.
A avaliação participativa permitiu
também uma discussão mais profunda
sobre aspectos do processo de manejo
considerados triviais, visto que, já
vinham sendo aplicados por muito
tempo, como a questão da aplicação
233
Parte II - Apoio Técnico e Governamental para o Manejo de Pirarucus
do método de contagem ou o próprio
zoneamento da área. Esses aspectos
eram pouco discutidos anteriormente,
pois as avaliações se concentravam nos
problemas mais importantes, como o
sistema de vigilância e a organização
coletiva. Uma avaliação sistêmica e
detalhada de todos os aspectos do
manejo possibilitou identificar os
problemas e a definir estratégias para
abordá-lo.
Temos observado nestes dois anos de
aplicação do método, que as notas
atribuídas pelos grupos de manejadores
e pelos técnicos não destoaram, salvo
em poucos casos, e algumas vezes a
avaliação dos grupos por intermédio das
notas parece ser ainda mais criteriosa
que a avaliação dos técnicos. Isso nos
mostra que os grupos têm demonstrado
interesse em usar a avaliação
participativa para melhorar sua atuação.
No sistema B, entretanto, nos dois
anos de aplicação do método, houve
uma tendência dos membros do grupo
de tentarem manusear os resultados
da avaliação, seja para prejudicar a
diretoria, seja para aumentar a sua cota
de pirarucus. Isso mostra que o método
pode não ser adequado para definir as
taxas de extração dos recursos naturais
em alguns sistemas. No caso do sistema
B, isso pode estar ocorrendo devido
ao número elevado de pescadores
envolvidos.
Os resultados positivos da aplicação
do método de avaliação participativa
também são frutos de uma relação
de confiança construída ao longo de
anos, marcada por erros e acertos de
ambas as partes, e principalmente, pelo
reconhecimento da importância do
saber tradicional e do conhecimento
técnico-científico, na implementação
e execução do manejo. O método
de avaliação participativa deve ser
considerado como uma ferramenta para
auxiliar a cogestão e, por isso, deve ser
totalmente adaptável ao contexto em
que se insere, mas sempre integrando os
princípios básicos de sustentabilidade
ecológica, social e econômica.
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236
O que sabemos e precisamos fazer a respeito da conservação do pirarucu (Arapaima spp.) na Amazônia
• Leandro Castello • Donald J. Stewart • Caroline C. Arantes
Parte III
Experiências de manejo participativo
de pirarucus na Pan-Amazônia
237
A GOVERNANÇA NO MANEJO DE PIRARUCU NA
RESERVA EXTRATIVISTA DO BAIXO JURUÁ, AMAZONAS
Paula Soares Pinheiro1, Raimundo Ferreira Lima2,
João da Silva Ferreira2, Jusecleide Gomes Ferreira2,
Marcelo Costa Ferreira2, Tatiana Maria Machado de Souza3,
Isaura de Oliveira Bredariol3 e Ana Luiza Castelo Branco Figueiredo3
RESUMO
Este artigo descreve a experiência
de manejo de pirarucu da Reserva
Extrativista (RESEX) do Baixo Juruá,
AM, com enfoque na governança pelas
comunidades e instituições cogestoras
da RESEX (associação-mãe e Instituto
Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade). O manejo é realizado
em seis áreas e envolve 95 pessoas
de nove comunidades da RESEX. A
comparação da governança nos sistemas
de manejo em relação ao aumento ou
diminuição nas populações de pirarucu
ao longo do tempo sugere que a
organização comunitária, respaldada e
apoiada pelas instituições, é essencial
para a conservação dos recursos
pesqueiros. Um fator preponderante
1
2
3
para o sucesso do manejo é o repasse
de poder às comunidades no processo
de tomada de decisão, o qual deve ser
acompanhado do esforço conjunto
das comunidades, suas representações
e governo na vigilância de lagos,
fiscalização e organização da atividade.
INTRODUÇÃO
O manejo de pirarucu é a principal
estratégia de conservação dos recursos
pesqueiros aliada à organização social e
geração de renda na Reserva Extrativista
(RESEX) do Baixo Juruá, no estado do
Amazonas. Um fator preponderante
para o sucesso do manejo é o repasse
de poder às comunidades no processo
de tomada de decisão. As comunidades
têm autonomia para elaborar regras
Escola de Recursos Naturais e Meio Ambiente, 103 Black Hall, Universidade da Flórida, PO Box 116455,
Gainesville, FL 32611, Estados Unidos. E - mail: [email protected]
Associação dos Trabalhadores Rurais de Juruá, Rua Senador João Bosco, 36, Centro, Juruá-AM, 69.520000
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Rua Senador João Bosco, 36, Centro, Juruá
-AM, 69.520-000
239
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
para proteção e vigilância dos lagos,
pesca e monitoramento, através da
Associação dos Trabalhadores Rurais
de Juruá (ASTRUJ) e apoio do Instituto
Chico
Mendes
de
Conservação
da Biodiversidade (ICMBio). Este
empoderamento incentiva uma maior
participação das comunidades, essencial
para aumentar a governança dos lagos
e recursos pesqueiros da RESEX. Em um
complexo de lagos vigiado diariamente
pelos comunitários nos últimos sete
anos, o número de pirarucus aumentou
sete vezes, reforçando a relação entre
governança comunitária e conservação.
O principal objetivo do manejo
comunitário, iniciado em 2005, era
de impedir as frequentes invasões
de barcos de pesca e recuperar os
estoques pesqueiros para subsistência
e comercialização. Além de conflitos
com invasores, os manejadores
ainda enfrentam dificuldades como
resistência por parte de moradores
que não seguem as regras do manejo,
controle de territórios extensos e
falta de infraestrutura para vigilância e
comercialização.
ÁREA DE ESTUDO
Na RESEX do Baixo Juruá, unidade de
conservação federal com 187.982,31
hectares localizada no interflúvio
Juruá-Purus, vivem aproximadamente
150 famílias em doze comunidades
agroextrativistas, totalizando cerca
de 750 pessoas. A RESEX é cogerida
pelo ICMBio e ASTRUJ, associação que
representa os moradores, e possui
plano de manejo e conselho deliberativo
atuante desde 2009.
Há seis sistemas de manejo de pirarucu
na RESEX, compreendendo lagos de
várzea do rio Juruá e outros ambientes
aquáticos ao longo do rio Andirá, como
remansos, ressacas e lagos. O manejo,
que começou com 16 pessoas de duas
comunidades, hoje envolve 95 pessoas
de nove comunidades.
TRABALHO REALIZADO
A principal estratégia da ASTRUJ
para controlar invasões tem sido a
vigilância comunitária, que conta com
flutuantes em pontos estratégicos e
rádiocomunicação. No complexo de
lagos do Planeta, onde a população
de pirarucus teve maior aumento,
49 moradores de duas comunidades
revezam-se em turnos semanais de
vigilância. Nesta área, o ICMBio, com
apoio da ASTRUJ, facilitou a elaboração
do regimento interno da pesca. Entre as
regras elaboradas e monitoradas pelos
manejadores, consta, por exemplo,
que faltas na pesca e vigilância serão
descontadas do lucro de cada manejador,
atrelando-se benefícios proporcionais ao
esforço individual, de modo a incentivar
uma maior participação no manejo.
Em outras áreas, é necessário fortalecer
o processo organizativo, como no rio
Andirá. O grupo de manejo é pequeno
(26 pessoas de cinco comunidades) e tem
o desafio de controlar a pesca predatória
em um rio que faz o limite da reserva
com a área de entorno, onde a pesca
por pescadores de fora é permitida.
Somam-se a isso o desinteresse e a
resistência de parte dos moradores da
região. Além disso, o grupo de manejo
aparentemente é frágil. A perda de poder
dos agentes ambientais voluntários e de
uma importante liderança comunitária
240
A governança no manejo de pirarucu na Reserva Extrativista do Baixo Juruá, Amazonas
• Paula Pinheiro • Raimundo Lima • João Ferreira • Jusecleide Ferreira • Marcelo Ferreira • Tatiana Souza • Isaura Bredariol • Ana Luiza Figueiredo
em 2012 levou à descontinuidade do
trabalho de vigilância feito desde 2005. A
redução em 47% no número de pirarucus
contados entre 2011 e 2012 no Andirá
sugere que as populações de pirarucu
são afetadas pela baixa governança. Para
contornar estas dificuldades, o ICMBio
vem intensificando a fiscalização na área
e a ASTRUJ está buscando melhorar as
condições de vigilância e estimular o
trabalho através de convênios com a
Companhia Nacional de Abastecimento
(CONAB).
Nos outros sistemas de manejo, as
próprias comunidades definem as
regras de uso e proteção de lagos, com
pouca intervenção das instituições.
Os lagos são relativamente próximos
às comunidades e dão acesso às áreas
de roçado, facilitando o zelo pelos
moradores. As comunidades controlam,
com maior ou menor eficiência, os
moradores que descumprem com as
regras. Em três áreas, o número de
pirarucus flutua ao longo dos anos, mas
continua superior ao início do manejo.
Somente em um sistema, as contagens
vêm diminuindo continuamente. Neste,
um pequeno grupo se interessa pela
preservação mas não consegue impedir
a pesca predatória no lago. Este grupo
necessita de maior apoio institucional
na organização social e incentivo à
vigilância permanente do lago, de modo
a recuperar os estoques pesqueiros.
A pesca do pirarucu manejado, realizada
coletivamente pelos manejadores,
teve início em 2007. Desde então, a
cota autorizada subiu de 229 para 371
pirarucus e a cota capturada de 222
para 356. A relação cota capturada/
autorizada variou entre 94 e 98%, exceto
no ano de 2009, em que somente 44%
da cota foi pescada por falta de gelo
e em respeito aos manejadores que
decidiram não pescar naquele ano. Ao
longo do manejo, houve aumento na
produção pesqueira de pirarucu (13 para
19 toneladas) e redução no tamanho
(1,86m para 1,81m) e peso médio (59 kg
para 56kg) dos peixes.
A comercialização do pirarucu tem
progredido desde 2007. O preço do
charuto aumentou de R$ 4,25 para R$
6,00/kg e o do filé de R$ 5,00 para R$
7,00/kg. O faturamento líquido passou
de R$ 56.000,00 para R$ 198.000,00,
devido ao aumento no número de
áreas, crescentes cotas, adiantamento
da pesca e comercialização de outros
pescados. A ASTRUJ cobra uma taxa de
5% do faturamento pela coordenação
do manejo. A renda dos manejadores
também vem aumentando, variando de
acordo com a produtividade das áreas:
no complexo do Planeta cada manejador
ganhou cerca de R$ 3.000,00 em 2012,
enquanto no Andirá a renda foi de R$
800,00.
CONCLUSÃO
A comparação da governança nos
sistemas de manejo em relação ao
aumento ou diminuição nas populações
de pirarucu ao longo do tempo sugere
que a organização comunitária,
respaldada e apoiada pelas instituições,
é essencial para a conservação dos
recursos pesqueiros. O sucesso do
manejo depende do esforço conjunto
na vigilância de lagos, fiscalização e
organização da atividade. Há ainda que
superar entraves à comercialização,
como a concorrência com pirarucu
241
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
ilegal e falta de estrutura de transporte,
armazenamento e processamento do
pescado, o que pode elevar muito a
renda dos manejadores e o interesse no
manejo por outros moradores da RESEX.
AGRADECIMENTOS
À Fundação Inter-Americana (IAF)
pelo apoio financeiro à pesquisa de
doutorado de P.S. Pinheiro. As opiniões
expressas aqui não necessariamente
representam a visão do IAF.
242
MANEJO DO PIRARUCU NA RDS PIAGAÇU PURUS:
ESTRATÉGIAS PARA CONSERVAÇÃO
José Gurgel Rabello Neto1
INTRODUÇÃO
O manejo do pirarucu na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Piagaçu
Purus, RDS-PP foi, inicialmente, pensado
como uma possível estratégia a ser
adotada, visando reverter o processo
de exploração ilegal que ocorria na
reserva muito antes de sua criação,
em 2004. Os primeiros diagnósticos
feitos sobre a atividade pesqueira na
área da reserva indicaram uma série
de irregularidades, principalmente na
exploração do tambaqui, (Colossoma
macropomum) e do pirarucu, (Arapaima
gigas). O maior problema da exploração
das duas espécies era o grande número
de indivíduos jovens comercializados.
A pesca do pirarucu apresentava ainda
o agravante de ser também direcionada
aos adultos na época reprodutiva,
em uma pescaria que era conhecida
localmente como a “pesca da choca”.
Durante a “choca”, o macho e a fêmea
que cuidam da ninhada ficam mais lentos,
mais visíveis e, consequentemente, mais
vulneráveis, e suas capturas acabam
levando à perda de toda a ninhada.
1
Nesta época, os exemplos de sucesso
alcançados com o manejo do pirarucu
na RDS Mamirauá já eram bastante
conhecidos no meio acadêmico e
começavam a ser amplamente difundidos
entre vários municípios do Estado.
Dentro da RDS-PP no entanto, entre as
comunidades locais, o conhecimento
sobre esta alternativa de manejo, que
aliava conservação do recurso e geração
de renda, não era ainda muito bem
compreendido.
A ideia de se investir no manejo do
pirarucu, sensibilizando e incentivando
os pescadores locais sobre a
possibilidade de iniciar este trabalho,
foi uma estratégia para poder envolver
as comunidades de pescadores locais no
processo de zoneamento e construção
de regras de uso dos recursos pesqueiros
que se iniciava naquela ocasião.
Os primeiros intercâmbios entre os
pescadores ocorreram em 2006 por
meio de visitas técnicas realizadas,
inicialmente, por dois moradores
da RDS PP (Sr. Sebastião Amorim e
o Sr. Raimundo Duarte) às áreas de
Rua dos Marupás nº 85, Conjunto Acariquara, Bairro Coroado III. Manaus – AM, CEP 69082674. E - mail:
[email protected]
243
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
manejo em Santarém – PA e na RDS
Mamirauá – AM. Na oportunidade,
esses dois pescadores realizaram curso
de capacitação sobre a metodologia de
contagem visual e auditiva de pirarucus
proposta por Castelo (2004). A partir
de então, essas duas pessoas, com a
orientação de um técnico, tornaram-se
os difusores desta ideia do manejo nas
suas comunidades locais e ajudaram a
construir o processo de organização
para o manejo do pirarucu, na RDS-PP.
ÁREA DE ESTUDO
A RDS-PP foi criada no ano de 2003,
pelo Governo do Estado do Amazonas e
localiza-se na região do baixo rio Purus,
entre as coordenadas geográficas 4°05’ e
5°35’ S e 61°73’ e 63°35’ W. Esta Unidade
de Conservação (UC) faz limite com a
Reserva Biológica de Abufari, e com duas
áreas indígenas, Terra Indígena (TI) Lago
do Ayapuá e TI Itixi-Mitari, compondo
a área de um novo corredor ecológico
na Amazônia Central, no sentido nortesul. Este mosaico de terras protegidas
possui cerca de 1,3 milhões de hectares.
A RDS-PP tem, atualmente, uma área de
827.317 hectares, que abrange quatro
municípios: Anori, Tapauá,Coari e
Beruri. Sua fisionomia é composta por
40% de áreas periodicamente alagáveis e
o restante por terra firme.
A área da RDS-PP apresenta grande
heterogeneidade, tanto da diversidade
de habitats existentes (várzea do rio
Solimões, várzea do rio Purus, lagos de
água branca e preta, igarapés, igapós,
florestas de várzea e de terra firme)
como da diversidade social, que envolve
55 comunidades, diversos grupos sociais
e níveis de interações socioeconômicas
(pescadores residentes e externos à
reserva, barcos recreios, regatões e
comunidades indígenas no entorno).
Essa grande heterogeneidade permitiu
que a mesma fosse delimitada
em setores, o que possibilitou o
estabelecimento de unidades de manejo
diferenciadas, restringindo as formas de
interações entre ambiente-usuário em
cada unidade de manejo. Os critérios
estabelecidos para a delimitação
dos setores foram a fitofisionomia, a
hidrografia, as áreas tradicionais de
uso dos recursos e as rotas de acesso.
Foram definidos sete setores dentro
dos limites da RDS-PP, cujo produto
foi a sistematização espacial de
unidades manejáveis, com certo grau de
integridade ecossistêmica, aliada à uma
forma de organização socioeconômica
existente na área.
O manejo do pirarucu é desenvolvido
em três setores da RDS-PP, setor Ayapuá
com duas comunidades participantes,
setor Itapuru com quatro comunidades
e setor Caua/Cuiuanã com duas
comunidades (Figura 1). Atualmente, o
manejo do pirarucu envolve cerca de
cem famílias.
TRABALHO REALIZADO
Com os pescadores das comunidades da
RDS-PP discutindo as bases do que seria
o futuro Manejo Participativo do pirarucu
na Reserva, a concepção do objetivo do
zoneamento, e de como ele poderia
ajudar nesta proposta de manejo que
se desenhava, foi de extrema valia para
um zoneamento adequado. Da mesma
forma, as propostas de regras de uso
dos recursos foram também elaboradas
visando um ótimo aproveitamento do
potencial de produção da várzea em
termos de reprodução do pirarucu.
244
Manejo do pirarucu na RDS Piagaçu Purus: estratégias para conservação
• José Gurgel Rabello Neto
Figura 1 - Mapa da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu Purus, RDS-PP, indicando a
setorização da Reserva.
O melhor exemplo para isto foi a escolha
dos lagos prioritários para proteção,
que eram adequados como refúgio de
grandes peixes na seca e como área de
reprodução do pirarucu na subida da
água. Da mesma forma, foi discutido o
fato de que o uso dos lagos na várzea,
mesmo para a pesca de peixes menores,
durante a vazante, poderia espantar os
pirarucus antes que os lagos perdessem
a conexão com os canais principais.
Assim, esta foi a justificativa para que
a pesca neste período fosse suspensa,
sendo liberada quando os lagos
perdessem a conexão e os pirarucus não
pudessem mais se dispersar. Este fato,
junto com a vigilância voluntária dos
pescadores que se fortalecia na época,
garantiram um grande e rápido aumento
na quantidade de pirarucus nos três
setores trabalhados.
Cada
setor
foi
elaborando
e
implementando seu manejo de forma
diferenciada, tanto nas iniciativas de
vigilância, com serviços pagos pelas
comunidades e/ou com serviços
voluntários dos pescadores, como no
nível de envolvimento das comunidades
com as demais atividades do manejo.
As contagens e a vigilância, juntamente
com a suspensão da pesca ilegal de
pirarucus por parte das comunidades
teve início em 2007, primeiramente no
setor Ayapuá, onde quatro comunidades
faziam parte do manejo na época, e
onde o aumento do número de peixes
possibilitou que uma primeira cota de
exploração controlada fosse sugerida
e solicitada ao IBAMA, ainda em 2009,
(Tabela 1). Entretanto, enquanto a
autorização estava tramitando entre
o órgão gestor da reserva, CEUC e o
245
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
IBAMA, duas comunidades da parte
sul do setor pescaram uma grande
quantidade de pirarucus. O Instituto
Piagaçu comunicou o fato ao CEUC e
IBAMA e a solicitação foi, então, negada.
A partir de então, apenas a parte norte
do setor, com outras duas comunidades
permaneceram trabalhando no manejo,
continuando a preservar a espécie
e fazendo uma vigilância efetiva. O
setor, então, foi dividido através das
áreas de uso correspondentes destas
comunidades, e a pesca autorizada vem
sendo realizada desde 2011.
O setor Itapuru, com quatro
comunidades, foi o que mais evoluiu
a partir de então, com uma liderança
forte que ajudava a organizar grupos de
vigilantes voluntários e com uma área de
proteção que mostrou um crescimento
exponencial no número de pirarucus em
poucos anos (tabela – 01).
Neste setor, as contagens e a vigilância
tiveram início em 2008, e já em 2010
uma primeira cota foi solicitada e
autorizada para a pesca manejada, o
que ocorreu também em 2011 e 2012.
Para o devido monitoramento da
produção e da própria pesca manejada,
pescadores foram treinados para
registrar as informações pertinentes à
pesca, como aparelhos de pesca, tempo
de pesca e local de pesca, bem como
as características do pescado, como
comprimento, peso inteiro e eviscerado.
Os mesmos pescadores foram treinados
a
reconhecerem
e
registrarem
características
macroscópicas
das
gônadas dos pirarucus pescados, para
classificá-los entre machos e fêmeas
e quanto aos estádios gonadais,
conforme proposto por Lopes e Queiroz
(2009). O setor Itapuru na RDS-PP foi o
primeiro local no Rio Purus, no Estado
do Amazonas, a receber autorização
para a pesca manejada de pirarucus.
Neste setor, os principais problemas
apresentados em todos os anos são a
falta de apoio na vigilância e fiscalização
da área, a grande facilidade de acesso na
área por invasores na época da cheia, e a
necessidade de uma maior organização
nas atividades do manejo, que crescem à
medida que cresce também o número de
pirarucus nos lagos e na cota autorizada.
À medida que o setor vizinho (Caua/
Cuiuanã) foi se envolvendo no manejo,
ações conjuntas de vigilância foram
sendo incentivadas e isto aumentou,
de certa forma, a proteção da área.
Todos os anos, parte da renda obtida
com a venda dos peixes é também
destinada à vigilância, e desta forma
foram adquiridos um flutuante base
de vigilância, combustível para ações
de fiscalização e o pagamento de vigia
local no tempo de maior pressão de
invasores.
O setor Caua/Cuiuanã foi o último a
se envolver no manejo do pirarucu,
iniciando as contagens somente em 2009,
embora tenha trabalhado na proteção
de sua área devido à pesca de outras
espécies. Com o início das contagens
neste setor, ficou evidente a efetividade
das áreas de proteção escolhidas, e a
resposta ao respeito às regras de uso
através do aumento rápido do número
de peixes contados (tabela – 01). Apesar
de ter sido o último setor a se envolver
no manejo, e de ter apresentado grande
dificuldade no primeiro ano em contar
com trabalho voluntário dos moradores,
principalmente no primeiro ano de
246
Manejo do pirarucu na RDS Piagaçu Purus: estratégias para conservação
• José Gurgel Rabello Neto
contagem, hoje é o setor que mostra
maior união e envolvimento, com
grande número de pessoas dedicadas
ao manejo. Além da vigilância mais bem
estruturada, que conta com flutuante de
vigilância e sistema de rádio com vigia
pago pela comunidade (com recursos
advindos da venda do pirarucu), o setor
iniciou por conta própria um sistema
de monitoramento de pesca, que foi
apoiado pelo Instituto Piagaçu, através
de capacitação de monitores e material
adequado para medir, pesar e registrar
informações, bem como para divulgar
internamente estes resultados na
comunidade.
Um problema que ocorreu nos três
setores e que vem sendo trabalhado e
contornado, é com relação ao poder de
pesca e material de pesca adequado para
a pesca manejada. O fato é que a pesca
como era feita anteriormente, de forma
ilegal, não fazia distinção entre peixes
grandes e pequenos, e os materiais
de pesca que estavam disponíveis
nas comunidades não se mostravam
adequados para a captura de peixes
adultos, acima do tamanho mínimo
permitido. Este problema é, em parte,
contornado à medida que os recursos
obtidos são destinados à aquisição de
materiais de pesca adequados, solução
que foi adotada pelos três setores.
Os três setores foram estruturando o
manejo de forma comunitária, dividindo
custos e atividades e, mais tarde,
quando conseguiram a autorização para
a pesca e comercialização decidiram
realizar a pesca de forma comunitária,
dividindo os lucros conforme o nível
de envolvimento e dedicação que cada
pescador ou morador apresentava.
Estas decisões estão regulamentadas
em regimentos internos por setor,
onde várias regras e regulamentos
ajudam a organizar as etapas do manejo
com um todo, desde a vigilância, as
contagens, a pesca, o monitoramento,
a comercialização e a repartição dos
benefícios e investimento em estrutura,
fiscalização e materiais de pesca.
Uma característica que não pode ser
negligenciada quando falamos em
manejo de pirarucus, é o fato de que
além do pirarucu, outras espécies
são protegidas através do manejo,
e que muitos ilícitos que ocorriam
anteriormente, por usuários internos
e externos da reserva, deixaram de
ocorrer ou passaram a ocorrer com
uma intensidade bem menor. Uma
prática que era comumente observada
na região do Itapuru e do Caua/Cuiuanã
até o ano de 2008, era a captura ilegal
de botos. Esta captura era realizada por
pescadores externos, que vinham em
barcos do município de Manacapuru,
e capturavam dezenas de botos para
distribuir para os barcos que realizavam
a pesca da piracatinga em outros locais,
utilizando os botos como isca. Relatos
de moradores afirmam que cerca de 80
botos foram abatidos somente em 2008
nesta região.
Com o início do manejo do pirarucu, os
moradores não permitiram mais que isto
ocorresse, assim como a invasão da área
por barcos de passeio que, anualmente,
procuravam o local para caçar patos
e não frequentam mais estes setores.
Isto mostra que o manejo de pirarucus
deve ser encarado como um manejo do
ambiente como um todo, garantindo
a conservação da paisagem com seus
componentes, servindo como um meio
eficaz de conservação.
247
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Tabela 1 - Evolução das contagens de bodecos e pirarucus nas áreas de manejo dos setores Ayapuá.
Itapuru e Caua/Cuiuanã, entre 2007 e 2012.
Setor
Ayapuá
Itapuru
Caua/Cuiuanã
Ano
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Bodeco
0
0
31
245
263
852
pirarucu
7
20
60
239
326
920
Bodeco
-
188
1239
2473
3440
3990
pirarucu
-
267
769
1969
3100
3375
Bodeco
-
-
347
804
1419
1989
pirarucu
-
-
135
408
532
1101
CONCLUSÃO
O manejo do pirarucu traz consigo um
poder de conservação e organização do
uso de diversos recursos, não somente
o pirarucu, mas indo além do manejo
de uma só espécie. É também um ganho
para a conservação da paisagem e seus
componentes.
Como um peixe-símbolo da bacia
amazônica, o manejo do pirarucu se
apresenta como um resgate à cultura
tradicional, fortalecendo e divulgando
o valor dos conhecimentos tradicionais
dos pescadores dentro e fora da área de
atuação do manejo.
Acreditando que o manejo participativo
do pirarucu é um processo ainda
em desenvolvimento na RDS-PP,
entendemos que a cota de abate a ser
solicitada aos órgão competentes,
deve levar em consideração todos os
problemas e fortalezas existentes em
cada setor, principalmente questões
ligadas ao poder de pesca, organização
dos envolvidos e transparência na
comercialização,
repartição
dos
benefícios e investimentos no manejo.
Uma busca constante por fortalecer
e avaliar a acuidade e veracidade
nas contagens, seguida de apoio
necessário para um programa interno
de vigilância de cada setor devem ser
preocupações basilares para o contínuo
desenvolvimento do manejo.
REFERÊNCIAS
CASTELLO, L. A method to count pirarucu
Arapaima gigas: fi- shers, assessment, and
management. North American Journal of
Fisheries Management, v. 24, n. 2, p. 379389, 2004.
LOPES, K. S.; QUEIROZ, H. L. Uma revisão
das fases de desenvolvimento gonadal de
pirarucus Arapaima gigas (Schinz, 1822) por
meio da análise macroscópica como uma
proposta para unificação destes conceitos e
sua aplicação prática nas reservas Mamirauá
e Amanã. UAKARI, v. 5, n. 1, p. 39 - 48, 2009.
248
PROGRAMA DE MANEJO DE PESCA DE PIRARUCU COMO
FERRAMENTADE GESTÃO PARTICIPATIVA DOS RECURSOS
HIDROBIOLÓGICOS NA RESERVA NACIONAL PACAYA SAMIRIA
Jorge Luis Gómez Noriega1
RESUMO
Esta experiência tem como objetivo
evidenciar e propor aos programas
de manejo de pesca uma ferramenta
de
gestão
participativa
dos
recursos hidrobiológicos baseados
na implementação do manejo do
Arapaima gigas “pirarucu” na Reserva
Nacional Pacaya Samiria. Entre os
principais êxitos, podemos mencionar:
o envolvimento da população local
organizada no controle e na vigilância da
área natural protegida (14 organizações
comuns participando); a recuperação
das populações de pirarucu da Cocha El
Dorado (de 10 espécimes em 1994 a 500
espécimes adultas em média, por ano,
na atualidade), representando benefícios
diretos e indiretos para a população
local, produto da comercialização de
produto manejado nos mercados locais
e, ainda, gerando informações biológica
e socioeconômica relevantes para a
tomada de decisões desta importante
espécie na Amazônia peruana.
INTRODUÇÃO
A Reserva Nacional Pacaya Samiria (RNPS)
é a segunda área natural protegida em
extensão geográfica do Peru e constitui
1
a área de bosque inundável protegido
mais extenso da Amazônia (INRENA,
2000).
O
“pirarucu”
é
uma
espécie
hidrobiológica de grande importância
ecológica, social e econômica para a
RNPS e seu povo. Essa espécie é muito
valorizada pelos povos amazônicos por
causa da qualidade e do rendimento de
sua carne, assim como pelas grandes
possibilidades que oferece para seu
manejo em meio natural.
Ancestralmente,
essa
espécie
hidrobiológica era explorada de
maneira irracional e desordenada,
tanto por povos forasteiros como
pelos da própria RNPS, gerando uma
diminuição drástica de suas populações
naturais, em particular da Cocha El
Dorado, chegando a estimarem-se, no
ano de 1994, apenas 10 exemplares.
Essa situação fez com que a Fundação
Peruana para a Conservação da
Natureza – ProNaturaleza – explorasse
alternativas viáveis para a proteção, o
manejo e a recuperação dessa espécie.
Em 2004, através de um processo
participativo que envolveu a população
local assentada na RNPS, foi aprovado
o primeiro programa de manejo de
Fundación Peruana para la Conservación de la Naturaleza-ProNaturaleza; Director Regional de Loreto.
249
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
“pirarucu”, constituindo o primeiro
Plano de Manejo Pesqueiro para a
Amazônia peruana.
Este documento técnico contém os
alinhamentos de manejo que tornaram
possíveis a recuperação e o uso
sustentável da espécie, como: tamanhos
mínimos de captura, períodos de
interdição, quotas de pesca, delimitação
das áreas de manejo, entre outros
que vêm sendo implementados pela
população local organizada em grupos
de manejo nas bacias do Rio Yanayacu
Pucate e Pacaya no interior da RNPS.
Os grupos de manejo reconhecem
a importância do mesmo para a
sustentabilidade do recurso, já que,
com o tempo, eles puderam perceber
que as populações de ambas as espécies
aumentou, o que lhes permitiu também
aumentar sua receita do produto da
comercialização desses recursos. É
por isso que elas se organizaram, em
coordenação com a administração da
área protegida, para realizar o controle e
a vigilância, evitando assim a entrada de
forasteiros que pretendessem realizar a
pesca indiscriminada.
A implantação do programa de manejo
para o “pirarucu” na Cocha El Dorado da
RNPS, permitiu, então, à administração
da área protegida ordenar a pescaria
dessa espécie assim como reforçar
o controle e a vigilância através da
participação organizada da população
local.
Além disso, conseguiu-se uma melhor
coordenação entre as instituições
públicas e privadas que têm competência
sobre esses recursos, como a Direção
Regional da Produção de Loreto –
DIREPRO, o Instituto de Pesquisas da
Amazônia Peruana – IIAP, a Universidade
Nacional da Amazônia Peruana – UNAP,
a Fundação Peruana para a Conservação
da Natureza – ProNaturaleza, a
Sociedade Peruana de Direito Ambiental
SPDA, entre outras.
Atualmente, essa experiência vem sendo
replicada em outros setores da Reserva
e da região Loreto.
MATERIAIS E MÉTODOS
A experiência baseada na implementação
do programa de manejo de pesca de
“pirarucu” na RNPS foi realizada desde
seu início de maneira participativa
e complementando o conhecimento
científico com o conhecimento ancestral,
em todas as fases da implementação
do programa de manejo, oferecendo
assistência técnica e aproximação às
instituições do estado competentes na
gestão do recurso pesqueiro na região.
A respeito da metodologia para
contagem e determinação da quota
de pesca anual, foi utilizado o censo
por boiadas, o que permitiu estimar
o número de exemplares adultos na
Cocha El Dorado anualmente. Além
disso, foi realizado o acompanhamento
das temporadas de pesca, durante o
qual foram registradas informações
de capturas, esforço, tamanhos,
pesos, sexo, entre outros parâmetros
necessários para o manejo da espécie.
Para caracterizar a pesca do “pirarucu”,
realizamos
o
acompanhamento
aos pescadores que trabalham na
região, durante um ciclo hidrológico,
registrando a seleção das áreas de
pesca, os tipos de arte, a frequência
de uso, a eficiência e o processamento
das capturas, determinando as rotas
250
Programa de manejo de pesca de pirarucu como ferramenta de gestão participativa dos recursos hidrobiológicos na Reserva Nacional Pacaya Samiria
• Jorge Luis Gómez Noriega
de
comercialização,
quantidades
comercializadas e preços obtidos nas
campanhas de pesca anual.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
1. Sobre a Participação dos atores na
gestão da RNPS
Atualmente, trabalham 14 organizações
de 4 comunidades nas bacias dos Rios
Yanayacu Pucate e Pacaya. Elas realizam
atividades de controle e vigilância em
coordenação com o pessoal da área que
permitiu diminuir a pressão de pesca
ilegal nesses dois setores.
Conseguiram-se o envolvimento e
a participação ativa das instituições
do estado peruano nas atividades
contempladas no programa de manejo
pesqueiro através do Comitê de Gestão
da RNPS, validando a ferramenta de
gestão e contribuindo para que seja
replicada em outros setores da Reserva
e da região Loreto.
2. Sobre a Recuperação da população
e Geração de Informação biológica da
espécie manejada
Foram possíveis a recuperação e a
manutenção da população de “pirarucu”
na Cocha El Dorado da RNPS, começando
com 10 exemplares adultos contados
em 1994 até 500, em média, nos últimos
anos.
Tem-se a informação biológica da
espécie que data desde a aprovação
da primeira versão do programa de
manejo pesqueiro de pirarucu, no ano
de 2004, até o ano de 2011. Como
resultado da aplicação dos alinhamentos
de manejo e respeitando a legislação
pesqueira a respeito do uso racional
desta espécie, foram aproveitadas seis
oportunidades, capturando um total
de 394 indivíduos de pirarucus adultos.
É preciso assinalar que 100% dos
exemplares capturados ultrapassaram
o tamanho mínimo de captura, que é
de 160 cm. Esses dados confirmam que
as populações de pirarucu na Cocha El
Dorado se mantiveram estáveis e que
o aproveitamento atual não afetou as
populações.
A densidade de exemplares adultos
contabilizados na Cocha El Dorado
durante os últimos 12 anos de manejo
apresenta flutuações entre 0.49 e 2.46
ind/Ha, com uma média de 1.11 ind/Ha,
os mesmos que em conjunto percebem
uma tendência positiva do recurso,
assim como um comportamento cíclico
das densidades com intervalos de 2 a 3
anos.
Na figura 4, pode-se observar os
tamanhos médios de captura dos
exemplares coletados durante a
implementação do programa de manejo
pesqueiro, o que evidencia o respeito
dos alinhamentos de conservação da
espécie que regula sua extração em
um tamanho estabelecido pelo estado
peruano, que é de 160 cm e que garante
a manutenção das populações naturais.
A proporção calculada entre os sexos
com base nos exemplares capturados
na Cocha El Dorado entre os anos
de 2004 e 2012 foi de 0.84, com uma
composição de 45.63% de machos e
54.37% de fêmeas, o que nos permite
afirmar que a população mantém seu
equilíbrio com relação à proporção de
sexos em populações naturais estáveis,
garantindo a sobrevivência da espécie.
251
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Indivíduos
Figura 1 - Exemplares adultos contados na Cocha El Dorado 1994 – 2012.
Comprimento (m)
Fonte: Fichas de capturas de pirarucu, 2004 – 2011, ProNaturaleza, Programa Regional Loreto – PRL
Figura 2 - Frequência de tamanhos de pirarucus capturados na Cocha El Dorado RNPS 2004 – 2011.
252
Programa de manejo de pesca de pirarucu como ferramenta de gestão participativa dos recursos hidrobiológicos na Reserva Nacional Pacaya Samiria
• Jorge Luis Gómez Noriega
Fonte: Fichas de censos, anos 2000 – 2012, ProNaturaleza, Programa Regional Loreto – PRL.
Figura 3 - Densidade de pirarucus adultos recenseados na Cocha El Dorado, 2000 – 2012.
Figura 4 - Tamanho médio de captura de exemplares de pirarucu 2003 – 2011.
253
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Figura 5 - Proporção de exemplares Machos contrastados com Fêmeas capturados na Cocha El Dorado
2004 – 2012.
3. Sobre os benefícios econômicos e
sociais
3.1. Benefícios Diretos
Os benefícios econômicos recebidos
por cada pescador, produto da
comercialização de carne de pirarucu,
aumentam para S/. 3500 nuevos soles ($
1300, aproximadamente) por pescador
por temporada de pesca, o que lhes
permite adquirir alguns bens e serviços,
além da capitalização da organização.
Além disso, eles utilizam parte da pesca
de exemplares como alimento para suas
famílias, o que contribui para diminuir
os níveis de deficiência de proteína nas
mesmas.
3.2. Benefícios Indiretos
A atividade de pesca e proteção do
pirarucu tem um impacto social na
comunidade devido à geração de postos
de trabalho remunerado, o que permite
dinamizar a economia comum. Além
disso, 2% dos ganhos gerados com a
atividade são destinados a fins sociais
que a comunidade em assembleia
comum decide, com o que se consegue
sensibilizar o povo de que o manejo e
o uso sustentável dos recursos naturais
se apresentam como uma alternativa
que contribui para o desenvolvimento
das populações locais envolvidas no
processo.
CONCLUSÕES
Após a implementação do programa de
manejo pesqueiro na sua primeira fase
e, atualmente, em sua segunda fase,
podemos concluir o seguinte:
Os programas de manejo pesqueiro são
uma poderosa ferramenta de gestão
participativa dos recursos naturais
254
Programa de manejo de pesca de pirarucu como ferramenta de gestão participativa dos recursos hidrobiológicos na Reserva Nacional Pacaya Samiria
• Jorge Luis Gómez Noriega
quando existe o compromisso dos
atores envolvidos em todas as etapas
do processo.
O conhecimento oferecido pelas
organizações comuns é importante em
um desenho de propostas de manejo e
ordenação dos recursos naturais.
As ações de manejo lideradas por
organizações comuns de manejo
devem conjugar o conhecimento
científico e o ancestral (conhecimento
local).
A população local recebe e adota as
técnicas e os alinhamentos de manejo
sempre e quando esses sejam gerados
em coordenação entre a população
local e as diferentes instituições
públicas e privadas.
A acessibilidade aos recursos de maneira ordenada é um fator fundamental
para consolidar organizações de manejo.
As atividades de conservação têm que
ser rentáveis para que sejam sustentáveis.
RECOMENDAÇÕES
O êxito e a sustentabilidade dos
programas de manejo dependem, em
grande parte, do envolvimento das
instituições competentes do estado e das
populações locais que as implementam.
255
A EXPERIÊNCIA DA ASSOCIAÇÃO AGROEXTRATIVISTA DE
AUATÍ-PARANÁ NO MANEJO COMUNITÁRIO DE PIRARUCU NA
RESEX AUATÍ-PARANÁ, AMAZONAS, BRASIL
Edvaldo Tavares de Lira1
Enrique Araújo de Salazar2
Miguel Arantes3
RESUMO
A Reserva Extrativista Auatí-Paraná
(RESEX Auatí-Paraná) é uma Unidade de
Conservação Federal de uso sustentável,
situada na região do médio Solimões.
Possui como foco principal o manejo
comunitário de pirarucu, atividade esta
que vem sendo realizada desde 2004,
em áreas desta RESEX e da vizinha
Reserva Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá (RDSM).
O presente trabalho teve por objetivo
apresentar, de forma sintética, a questão
do manejo dentro da reserva.
ABSTACT
The Auatí-Paraná Extractive Reserve
(RESEX Auatí-Paraná) is a Federal
Conservation Unit located in the middle
Solimões region, permitting sustainable
resource use. The reserve establishes
community-based pirarucu fishing
management as a primary activity,
which has been implemented since 2004
in areas of the Reserve, in addition to
1
2
3
the neighboring Mamirauá Reserve for
Sustainable Development.
The present work aims to present
questions of fisheries management in
the reserve.
INTRODUÇÃO
A Reserva Extrativista Auatí-Paraná
(RESEX
Auatí-Paraná)
foi
criada
por Decreto Presidencial em 7 de
agosto de 2001, atendendo a uma
demanda das comunidades locais,
sendo estas incentivadas pela igreja
católica e pelo Conselho Nacional
de Populações Extrativistas (CNS).
Dentre as atividades desenvolvidas na
região da RESEX, destaca-se o Manejo
Comunitário do pirarucu, que teve início
no ano 2004, com apoio do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)
e do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável de Fonte Boa (IDSFB). A partir de 2008, a Associação
Agroextrativista de Auatí-Paraná (AAPA)
Associação Agroextrativista de Auatí-Paraná (AAPA) – Fonte Boa (AM)
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – Tefé (AM)
Acadêmico Curso Superior em Tecnologia em Produção Pesqueira/ Universidade Estadual do Amazonas/
Fonte Boa (AM)
257
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
passou a responsabilizar-se pelo
manejo, que atualmente é apoiado pelo
Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio), órgão
gestor da Unidade de Conservação (UC).
O ICMBio vem apoiando o manejo
com auxílio dos programas Áreas
Protegidas da Amazônia (ARPA) e
Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Esse apoio
tem se dado através do fornecimento
de combustível para reuniões de
mobilização pré-manejo, através da
viabilização de participação comunitária
em capacitações, na colaboração
para resolução ou minimização de
conflitos, bem como na fiscalização
visando a coibição da pesca ilegal.
O objetivo deste trabalho é apresentar
o Manejo do pirarucu na RESEX AuatíParaná, utilizando dados de 2007 a
2012. Embora o manejo na RESEX
tenha se iniciado em 2004, não se
tem dados sistematizados do período
compreendido entre aquele ano e 2006.
MATERIAL E MÉTODOS
Descrição da UC
A RESEX Auatí-Paraná (Figura 1) está
contida em uma área aproximada de
146.950,82 ha, abrangendo terras
inseridas nos territórios dos municípios
de Fonte Boa, Japurá e Maraã.
Atualmente, abriga 13 comunidades
situadas no interior da Unidade de
Conservação (UC) e mais 3 comunidades
consideradas usuárias, situadas na
Reserva de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá
(RDSM,
UC
Estadual
gerenciada pelo Centro Estadual de
Unidades de Conservação (CEUC).
A população atual está estimada em
1.376 pessoas, distribuídas em 284
famílias.
Geograficamente, a RESEX AuatíParaná encontra-se localizada entre
as coordenadas - 02º 23’ 09” S; - 66º
40’ 55” W e - 02º 00’ 28” S ; - 66º 59’
55.16” W (pontos referentes aos limites
Oeste e Leste, na margem esquerda
do canal Auatí-Paraná). O canal AuatíParaná é o corpo d’água que divide
a RESEX da RDS Mamirauá (RDSM).
Cerca de 25.950 ha (17,65 %) da área
total da RESEX são constituídos por
terras alagáveis, onde predominam
ambientes de igapó e várzea.
Diversos lagos, igarapés e canais,
tanto os situados ao norte da margem
esquerda do canal Auatí-Paraná (RESEX),
como ao sul da margem direita (RDSM)
representam os ambientes de pesca
manejada do pirarucu. O manejo
comunitário de pirarucu é a atividade
produtiva mais importante da reserva,
envolvendo hoje 14 das 16 comunidades
(ICMBio, 2012).
MÉTODO
Para a edição do presente trabalho,
utilizou-se da revisão de dados
constantes no Plano de manejo
pesqueiro da RESEX (DAMASCENO .,
2006/2007), no Plano de Manejo da
RESEX Auatí-Paraná (ICMBio, 2012),
bem como nos Relatórios de Manejo
dos Recursos Pesqueiros da RESEX
Auatí-Paraná: Manejo Comunitário do
pirarucu (ARANTES, 2008 - 2011) e em
Arantes, 2012.
258
A experiência da Associação Agroextrativista de Auatí-Paraná no manejo comunitário de pirarucu na Resex Auatí-Paraná, Amazonas, Brasil
• Edvaldo Tavares de Lira • Enrique Araújo de Salazar • Miguel Arantes
Figura 1 – Localização da RESEX Auatí-Paraná.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Introdução Geral ao Processo de Manejo
O manejo do pirarucu em Auatí-Paraná
tem sido realizado desde 2004, com
autorização do IBAMA e regulamentado
por duas Instruções Normativas (IN)
deste órgão ambiental mesmo: IN 34, de
18 de junho de 2004; IN 01, de 10 de
junho de 2005. Inicialmente, o Instituto
de Desenvolvimento Sustentável de
Fonte Boa (IDS-FB), órgão ambiental do
município de Fonte Boa, acompanhava
o processo do manejo na RESEX.
Com o fortalecimento do manejo nas
comunidades, a partir do ano de 2008,
a Associação Agroextrativista de AuatíParaná (AAPA) passou a responsabilizarse pela coordenação da atividade e
pela representação das comunidades
frente ao órgão que avalia e autoriza
as cotas, bem como aos parceiros
da atividade, com apoio do ICMBio.
A AAPA foi fundada em fevereiro de 1998,
tendo inicialmente o objetivo principal
de representação das comunidades
associadas na luta pela criação da RESEX
e, posteriormente, o acompanhamento
da implementação e consolidação da UC.
No âmbito do manejo de pirarucu, a
AAPA organiza as atividades do manejo,
a elaboração de relatórios, a solicitação
de cotas, a compra dos lacres, a
solicitação de guias de transporte e o
cadastramento dos barcos envolvidos
na pesca. O ICMBio acompanha as
atividades relativas ao manejo junto à
AAPA, monitora e fiscaliza o manejo
do pirarucu, apoiando na articulação
de parcerias e na busca de recursos
para realização de capacitações, além
de atuar na moderação de possíveis
conflitos.
259
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Durante o período que antecede
a pesca, quando se inicia a época
da vazante e os lagos se isolam do
curso d’água principal, é realizado o
levantamento de estoque de todos os
ambientes aquáticos manejados através
da contagem, normalmente realizada
entre agosto e setembro. O resultado
da contagem é a base para liberação
das cotas do ano seguinte. A cota é
disponibilizada por comunidade e pode
ser de, no máximo, 30% da quantidade
de pirarucus ADULTOS contados na área
de manejo.
As contagens de pirarucu são feitas
a partir de uma técnica que agrega
os conhecimentos tradicionais dos
pescadores e o conhecimento científico.
Para a contagem são formadas equipes
de contadores. Atualmente, são 31
contadores capacitados, sendo que 2
serão certificados. Os corpos d’água
envolvidos são divididos em setores;
cada equipe fica responsável por contar
a quantidade de peixes que vão à
superfície no seu setor.
Através da observação visual e auditiva,
os pescadores constatam quantos
peixes sobem à superfície para respirar
(boiada), num intervalo de 20 minutos.
Observando a boiada, os pescadores
podem avaliar se é um bodeco (peixe
com menos de 1,50 m) ou adulto (acima
de 1,50 m) e assim estimar a população
do peixe no ambiente aquático.
Após a contagem é iniciado o processo de
pesca, que dura, em média, uma a duas
semanas, dependendo da comunidade,
da quantidade de pescadores envolvidos,
da cota que deverão tirar e da distância
dos lagos até a beira do Auatí-Paraná,
onde fica a embarcação. A pesca é
feita, normalmente, entre setembro e
novembro. Algumas comunidades fazem
uso de redes (malhadeiras), outras
utilizam apenas a pesca com arpão e
outras utilizam ambos os apetrechos.
Os peixes, assim que pescados,
são abertos e eviscerados, sendo
posteriormente realizada a sexagem,
através da visualização das gônadas; a
pesagem e a medição dos “charutos”,
com auxílio de balança e fita métrica,
respectivamente. Todas as informações
obtidas são registradas através das
fichas usuais de monitoramento e dos
relatórios finais da pescaria (ARANTES,
2012).
O monitoramento da pesca é uma
exigência do IBAMA para liberação
do manejo. Sendo assim, também são
capacitados monitores comunitários,
que ficam responsáveis pela coleta
de todas as informações exigidas
pelo IBAMA referentes a cada peixe.
Essas informações são enviadas para a
AAPA, que faz a compilação dos dados,
elaboração do relatório e envia para
o IBAMA. Este relatório é o subsídio
utilizado pelo IBAMA para liberação do
manejo do ano seguinte.
Cada comunidade possui regras próprias
para a organização do manejo. Em geral,
as comunidades pescam coletivamente
e dividem o recurso pelas famílias que
participaram da pesca. O monitoramento
e a vigilância dos corpos d’água também
são realizados pelos comunitários.
Geralmente, são realizados a partir
de rodízios estabelecidos entre os
manejadores. Algumas comunidades
contratam vigias.
A
comercialização
do
pirarucu
manejado é feita de forma direta entre
260
A experiência da Associação Agroextrativista de Auatí-Paraná no manejo comunitário de pirarucu na Resex Auatí-Paraná, Amazonas, Brasil
• Edvaldo Tavares de Lira • Enrique Araújo de Salazar • Miguel Arantes
a comunidade e o comerciante. A AAPA
tem atuado no auxílio na identificação
dos compradores, na identificação da
documentação dos barcos de pesca e
na elaboração dos contratos de compra
e venda. A AAPA tem, ainda, realizado
a busca por melhores mercados para
o pirarucu da RESEX, entretanto tem
encontrado grandes dificuldades na
tentativa de obter maiores valores,
devido a intensa pesca ilegal do peixe
na região.
Resumo dos resultados do manejo
Na figura 2 abaixo, são mostrados os
resultados das contagens realizadas
entre 2007 e 2012. O período 2007/2008
não apresenta a contagem de bodecos
porque os dados não foram repassados
pelo IDS-FB.
A figura 3 mostra a Relação Cota
Autorizada/Cota Capturada entre 2007
e 2012.
A diferença entre as cotas autorizadas
e capturadas pode ser explicada pelo
baixo esforço de pesca de algumas
comunidades em função do número de
pescadores utilizados, devendo-se aqui
ressaltar que algumas comunidades
resolvem não pescar comercialmente
todos os anos, preferindo guardar seus
lagos por períodos de um ano ou mais,
visando garantir estoques futuros. Assim
mesmo, fazem contagem.
Obs.: Algumas comunidades não
pescam comercialmente todos os anos,
preferindo guardar seus lagos por
períodos de 1 ano ou mais, visando
garantir estoques futuros. Por isso da
diferença entre cotas autorizadas e
capturadas.
Figura 2 – Dados da Contagem Anual de pirarucu na RESEX Auatí-Paraná. Fonte: AAPA.
261
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Figura 3 – Relação entre cotas autorizadas e capturadas entre 2007 e 2012. Fonte: AAPA.
Resultados Econômicos
Tabela 1 - Dados referentes ao peso e ao valor bruto obtido na venda de pirarucu na RESEX Auatí-Paraná
nos anos de 2008 a 2012 (Fonte: ARANTES, 2012)
Ano
Quantidade
Peso (Kg)
Valor Bruto (R$)
2008
2068
102.276
362.394,00
2009
1949
93.197
356.357,00
2010
1991
99.252
328.393,60
2011
673
33.595
154.982,00
2012
1419
69.948
287.397,00
Total
8100
398.268
1.489.523,60
Principais problemas enfrentados
Pesca ilegal – A captura de pirarucu
ilegal é intensa na região, pois se trata
de espécie muito demandada pelo
mercado. A ausência de uma base do
IBAMA na região, bem como uma base
local do ICMBio e do baixo efetivo de
pessoal do órgão gestor
atividade de fiscalização. O
é vendido livremente nas
interior do Amazonas e até
feiras de Manaus.
dificulta a
peixe ilegal
cidades do
mesmo nas
Desrespeito aos acordos de uso – Ainda
são comuns as invasões dos lagos e
262
A experiência da Associação Agroextrativista de Auatí-Paraná no manejo comunitário de pirarucu na Resex Auatí-Paraná, Amazonas, Brasil
• Edvaldo Tavares de Lira • Enrique Araújo de Salazar • Miguel Arantes
demais corpos d’água por pessoas de
fora da UC ou mesmo por moradores
das comunidades locais, que protegem
seus ambientes de manejo, mas
pescam nos das outras comunidades,
desrespeitando
acordos
internos.
Mesmo que não acessem as áreas com o
objetivo de pescar pirarucu, as invasões
com o objetivo de pescar outras
espécies acaba prejudicando o manejo,
espantando a espécie-alvo.
Observa-se que o plano de manejo
pesqueiro da RESEX (DAMASCENO .,
2006 – 2007), que inclui o zoneamento
dos ambientes de pesca, não tem
sido respeitado. Diversos “lagos”
zoneados como de manutenção ou de
preservação estão sendo manejados.
Pelo que foi apurado em várias reuniões
realizadas com as comunidades, muitos
desconhecem os termos dos acordos e
do zoneamento.
posicionamento do Estado do amazonas
através do Centro Estadual de Unidades
de Conservação (CEUC), que é o gestor
da área.
Conflitos pelo uso de recursos – Neste caso,
tem-se especificamente o conflito entre
as comunidades Itaboca e Santa União.
Esta última solicitou reconhecimento
indígena e, estimulada por uma
associação indígena e pelo escritório
regional da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI-Tefé), bloqueou o acesso a um
complexo de lagos denominado Buiuçu,
situado da RDSM, no entorno imediato
da RESEX, mesmo sem ter se tornado
efetivamente uma terra indígena. Este
complexo de lagos era manejado em
conjunto por ambas as comunidades
(que são aparentadas), mas atualmente
Santa União impede o manejo por parte
de Itaboca, mesmo a comunidade em
questão tendo autorização do IBAMA
para realizá-la. Como se trata de uma
área situada na RDSM, é necessário um
Baixo preço pago aos pescadores – O valor
pago aos pescadores tem sido bastante
baixo. Em 2012, por exemplo, o quilo do
pirarucu inteiro e eviscerado foi vendido
a R$ 4,50 e R$ 5,00, valor este que não
paga o árduo trabalho realizado nas
atividades do manejo.
Escassez de recursos financeiros – O manejo
de pirarucu demanda a realização de
uma série de atividades, principalmente
para capacitações dos grupos sociais
envolvidos, tanto para planejamento das
ações pré-manejo, como para a execução
da contagem, da pesca e da avaliação de
cada ciclo de pesca. Para que isso ocorra
é necessário apoio financeiro, que nem
sempre está acessível.
Mortandade de indivíduos jovens – A
mortalidade de filhotes de pirarucu
(budecos ou bodecos) ainda é
considerável na pesca, notadamente
naquelas áreas onde são utilizadas
malhadeiras. É preciso estudar formas
de diminuir esta mortalidade.
DISCUSSÃO
Como soluções ou ações para
minimização dos problemas, pode-se
resumir o seguinte:
Pesca ilegal – Intensificação da
fiscalização na região, incluindo ações
nos mercados das cidades amazonenses,
particularmente naquelas localizadas
na região do alto e médio Solimões,
bem como em Manaus. A presença
mais constante do ICMBio na reserva,
o fortalecimento do órgão em termos
263
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
de número de analistas e/ou técnicos
ambientais; a presença mais constante
do IBAMA e do Instituto de Proteção
Ambiental do Amazonas (IPAAM) nas
cidades são ações fundamentais para
coibir a pesca ilegal do pirarucu.
Desrespeito aos acordos de uso – Estabelecer
novos acordos e novo zoneamento
das áreas de pesca, deixando material
impresso para as comunidades e
sensibilizando
a
população
das
comunidades para a necessidade do
respeito ao que foi acordado.
Zoneamento – Revisar tecnicamente
o zoneamento a categorização dos
corpos d’água destinados ao manejo.
Sugere-se, ainda, rever a pertinência da
existência de lagos de manutenção, pois
se observa que também têm sido usados
na pesca comercial, tanto de pirarucu,
como de outras espécies.
Conflitos pelo uso de recursos – No caso
de Itaboca e Santa União, far-se-á
necessária a intervenção do Estado e
da FUNAI-DF, caso contrário, o conflito
tende a piorar. Vale ressaltar que novos
conflitos como este estão latentes. Em
caso de omissão do Estado e da FUNAIDF, torna-se necessária a comunicação
ao Ministério Público e/ou ao Ministério
da Justiça.
Escassez de recursos – Sensibilizar as
fontes
financiadoras,
procurando
viabilizar a participação de técnicos
do ARPA e do PNUD em atividades de
campo relacionadas ao manejo.
Mortandade de indivíduos jovens – Buscar
formas de diminuir a mortalidade de
indivíduos jovens de pirarucu durante
a pesca. Uma estratégia aparentemente
bem sucedida tem sido realizada pela
comunidade Cordeiro por incentivo do
comprador. Parte do lago é isolada por
rede de malha grossa e de pequeno
diâmetro. Os budecos capturados são
colocados neste cercado e liberados
após o término da pesca.
Baixo preço pago aos pescadores – O
baixo valor pago ao pescador reflete
muito a concorrência com o pirarucu
ilegal. O combate à pesca ilegal nas
áreas de manejo, bem como uma
intensa fiscalização nas cidades poderá
colaborar bastante com a melhoria do
valor do peixe. Além disso, observase que as comunidades não costumam
realizar a contabilidade da atividade,
não computando o investimento
realizado para a realização do manejo
como um todo.
CONCLUSÃO
O manejo de pirarucu em Auatí-Paraná
vem se desenvolvendo e melhorando
ao longo dos anos. Trata-se de um
processo adaptativo, em que pescadores
e instituições vão aprendendo e
procurando melhorar.
É preciso investimento na atividade,
principalmente de investimento em pessoal técnico capacitado para acompanhar o processo. Deve haver esforço no
aumento de pessoal certificado.
Considerando que do pirarucu se
aproveita quase tudo; considerando que
seu couro possui bom valor de mercado;
considerando que o pescador recebe
muito pouco pelo pescado, tornase necessário estudar uma maneira
de garantir uma maior remuneração
aos comunitários participantes do
manejo, agregando valor em seu
264
A experiência da Associação Agroextrativista de Auatí-Paraná no manejo comunitário de pirarucu na Resex Auatí-Paraná, Amazonas, Brasil
• Edvaldo Tavares de Lira • Enrique Araújo de Salazar • Miguel Arantes
produto (considerando aqui o valor dos
subprodutos).
É preciso fazer com que o pirarucu
manejado consiga superar o produto
clandestino.
Para
isso,
torna-se
necessário um maior esforço na
fiscalização.
O investimento na conservação e
na preservação dos ambientes de
reprodução e desenvolvimento do
pirarucu é necessário. Para tanto, é
preciso que as comunidades sejam
constantemente conscientizadas da
importância da proteção de seus lagos
e igarapés para sua sustentabilidade
e que o órgão gestor intensifique sua
presença na reserva, principalmente
com atividade de fiscalização.
REFERÊNCIAS
ARANTES, M. Relatório Final do Manejo
do Participativo do pirarucu manejado na
RESEX Auatí-Paraná. 2008. 1-14 p.
ARANTES, M. 2009. Relatório Final do Manejo
do Participativo do pirarucu manejado
na RESEX Auatí-Paraná. 2009. 1-25 p.
ARANTES, M. Relatório Final do Manejo
do Participativo do pirarucu manejado na
RESEX Auatí-Paraná. 2010. 3-25 p.
ARANTES, M. 2011. Relatório Final do
Manejo do Participativo do pirarucu
manejado na RESEX Auatí-Paraná. 2011.
5-43 p.
ARANTES, M. Caracterização do peso e
comprimento do pirarucu (Arapaima gigas)
manejado na Reserva extrativista de AuatiParaná, Fonte Boa, Amazonas. 2012. 28 p.
Trabalho de Conclusão de Curso (Tecnólogo
em Produção Pesqueira), Universidade
Estadual do Amazonas (UEA). Fonte Boa,
2012.
DAMASCENO, J. M. B.; NETO, J. O. M;
ALMEIDA, L. H.; MELO, W. O; CORRÊA, G.
D.; RODRIGUES, A. E. C.; SANTOS, A. D.
Plano de manejo pesqueiro da Reserva
Extrativista Auatí-Paraná. Fonte Boa: 2006.
91p. Relatório preliminar.
DAMASCENO, J. M. B.; NETO, J. O. M;
ALMEIDA, L. H.; MELO, W. O; CORRÊA, G.
D.; RODRIGUES, A. E. C.; SANTOS, A. D.
Plano de manejo pesqueiro da Reserva
Extrativista Auatí-Paraná. Fonte Boa: 2007.
68p. Relatório preliminar.
ICMBio. Plano de Manejo da Reserva
Extrativista Auatí-Paraná. Tefé, AM: ICMBio,
2012.
265
O MANEJO PARTICIPATIVO DE PIRARUCU (Arapaima gigas)
NAS RESERVAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
MAMIRAUÁ E AMANÃ
Ana Cláudia Torres Gonçalves1
INTRODUÇÃO
Assim como em toda a região amazônica,
a pesca é uma das principais atividades
praticadas nas RDSs Mamirauá e Amanã,
fonte de alimentação, comércio e renda
para grande parte de sua população,
sendo o pirarucu a espécie de maior
importância econômica. Na década de
70 do século passado, em decorrência
da intensa exploração, a população de
pirarucus entrou em declínio levando o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) a estabelecer em 1989, um
tamanho mínimo de captura (150
cm) e, em 1990, o período de defeso
reprodutivo (1° de dezembro a 31
de maio). Devido a grande extensão
geográfica da Amazônia e à ineficiência
da fiscalização, essas medidas surtiram
pouco efeito prático, e em 1996, qualquer
tipo de captura e venda de pirarucu foi
proibida no Amazonas (Portaria IBAMA
8/96), sendo permitida apenas em áreas
manejadas ou provenientes de cultivo,
o que afetou inúmeras famílias que
residem em áreas de várzea.
1
Em função disso, o Instituto Mamirauá
iniciou pesquisas sobre aspectos
da pesca, biologia e ecologia da
espécie, com vistas na elaboração de
uma proposta de manejo. Por haver
a disposição dos pescadores em
trabalhar de forma legalizada, isso
possibilitou que pesquisadores do
Instituto Mamirauá encaminhassem ao
IBAMA – Amazonas em 1999 um projeto
solicitando a autorização para a pesca
do pirarucu em caráter experimental,
a partir da adoção de medidas de
exploração sustentável, que consistia
na adequação do tamanho das malhas
das malhadeiras, no estabelecimento
de uma porcentagem de retirada com
o devido controle e monitoramento e a
identificação dos pirarucus capturados.
O projeto adotava o sistema de rodízio
de lagos; a comercialização em mantas;
e a definição da cota em toneladas,
utilizando como base de cálculo a
estimativa da produção de pirarucu
em várzeas da Amazônia Peruana, que
é da ordem de 0,3 kg/ha/ano (BAYLEY
et al., 1992). O projeto foi aprovado
e, em 1999, ocorreu a primeira pesca
Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - IDSM
267
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
manejada, envolvendo 42 pescadores
do Setor Jarauá/RDS Mamirauá e
uma produção de pouco mais de três
toneladas. A quantidade autorizada
correspondia a aproximadamente 1/3 do
número de pirarucus existentes na área,
estando sob baixa pressão de pesca.
Embora impondo uma redução drástica
na produção, essa solução satisfez os
pescadores, que passariam a explorar
o pirarucu em sua área de uso com
autorização do IBAMA, além de estarem
em conformidade com as normas do
Plano de Manejo da RDSM, pois esses se
comprometiam a respeitar a legislação
existente que regulamenta a pesca na
região.
Em 2000, disponibilizou-se uma nova
ferramenta para o monitoramento dos
estoques de pirarucu, um método de
contagem com base no conhecimento
dos pescadores de pirarucu, de avaliar
a quantidade de peixes nos ambientes
antes de iniciar a pesca. Esse método está
fundamentado ainda no comportamento
do pirarucu, que tem a necessidade
de vir à superfície da água com certa
regularidade para respirar, e é quando
são detectados visualmente ou através
da audição por pescadores experientes.
Comparações entre as estimativas
obtidas a partir de experimentos de
marcação e recaptura e as contagens dos
pescadores demonstraram que esses
pescadores conseguem contar com
grande precisão o número de pirarucus
maiores do que 1 m de comprimento
total existentes em lagos durante os
meses de seca (CASTELLO, 2004).
Esse método passou, desde então, a ser
utilizado pelos pescadores e técnicos
do Instituto Mamirauá para monitorar
os estoques na área da RDSM e para
estimar a quantidade de pirarucu a ser
capturado na área do Setor Jarauá. O
número de pirarucus adultos contados
em 1999 serviu de base para o pedido de
cota para o ano de 2000, encaminhado
para o IBAMA/AM, solicitando o abate
de aproximadamente 30% do número de
adultos contados, o que corresponderia
a aproximadamente 120 peixes ou
cerca de três toneladas (assumindo-se o
tamanho médio de captura de 155 cm,
40-50 kg de peso total ou 20-25 kg de
carne por peixe).
Os pescadores, por sua vez, propuseram
que a cota fosse estabelecida em
número de peixes ao invés de
tonelagem, o que facilitaria a partilha da
cota entre os pescadores, levando em
consideração o grau de envolvimento/
comprometimento dos pescadores nos
trabalhos da associação e do manejo
(participação em reuniões e rondas
de vigilância dos lagos, bem como,
a adimplência com o pagamento da
contribuição mensal, entre outros). A
proposta foi aceita pelo IBAMA/AM e,
desde então, as autorizações emitidas
estabelecem a cota em número de
peixes.
A partir de então, a experiência de
manejo consolidou-se, expandindo-se
para outras áreas das RDSs Mamirauá
e Amanã, bem como, para diversas
regiões no Estado do Amazonas, em
outros estados e até em outros países.
Assim, este artigo pretende descrever
os principais resultados alcançados,
em 14 anos de experiência nessa
região, enfatizando algumas estratégias
adotadas pelo Instituto Mamirauá em
sua assessoria aos grupos de manejo.
268
O manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã
•Ana Cláudia Torres Gonçalves
Figura 1 - Área das Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM) e Amanã (RDSA).
Figura 2 - Localização dos sistemas de manejo de pirarucu nas Reservas de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá (RDSM) e Amanã (RDSA), assessorados pelo Programa de Manejo de Pesca
do Instituto Mamirauá.
269
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
ÁREA DE ATUAÇÃO
Inserida na planície de alagação dos rios
de água branca da Amazônia, a Reserva
de
Desenvolvimento
Sustentável
Mamirauá – RDSM é delimitada pelos
Rios Solimões, Japurá e pelo AuatiParaná, e abrange uma área de 1.124.000
ha. A principal característica ambiental
da RDS Mamirauá é a grande variação
no nível das águas dos rios, que ocorre
todos os anos. Os alagamentos sazonais
dos rios Solimões e Japurá causam uma
elevação do nível da água de dez a doze
metros da estação seca para a cheia,
anualmente, o que a denomina como
ecossistema de várzea (IDSM, 2006).
A
Reserva
de
Desenvolvimento
Sustentável Amanã – RDSA foi criada
em 1998, com uma área de 2.350.000
ha. Está localizada entre a bacia do
Rio Negro e a bacia do Rio Solimões
na região do baixo curso do rio
Japurá. A biodiversidade é fortemente
determinada pela influência dos tipos
de água, branca e preta, presentes na
área, e é composta principalmente por
ambientes de terra firme, igapó e de matas
de várzea (VALSECCHI; AMARAL, 2009).
A população destas duas Reservas
é
de
aproximadamente
13.382
habitantes entre moradores localizados
dentro de seus limites e moradores
do entorno, reconhecidos como
usuários.
Essa
população
está
distribuída em aproximadamente 264
localidades, organizadas em 23 Setores
políticos2(Banco de Dados IDSM, 2011).
1
Os Setores são agrupamentos humanos organizados em comunidades, localidades e sítios que
compartilham a gestão e o uso de recursos naturais de uma determinada área das Reservas.
A área de Mamirauá está sobreposta em
partes dos municípios de Uarini, Fonte
Boa e Maraã e, a área de Amanã está
sobreposta em partes dos municípios
de Maraã, Coari, Codajás e Barcelos.
Estas duas Unidades de Conservação
têm influência ainda em mais quatro
municípios do entorno: Tefé, Alvarães,
Jutaí e Tonantins (MOURA, 2007). O
principal centro urbano mais próximo
é Tefé, com uma população de 61.453
habitantes (IBGE 2010), situada a 516
km de Manaus.
O Programa de Manejo de Pesca do
Instituto Mamirauá assessora sete
sistemas de manejo assim distribuídos,
na Reserva de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá: Setor Jarauá,
Setor Tijuaca, Complexo de Lagos JutaíCleto (Setor Aranapú) e Complexos de
Lagos Preto, Tigre e Itaúba (Colônia de
Pescadores Z-32 de Maraã); e na Reserva
de Desenvolvimento Sustentável Amanã:
Setor Coraci, Complexo de Lagos
Pantaleão (Setor São José e Colônias
de Pescadores Z-4 de Tefé e Z-23 de
Alvarães) e Complexo de Lagos Paraná
Velho (Setor Amanã).
RESULTADOS
Ao longo de 14 anos, o manejo
participativo do pirarucu assessorado
pelo Instituto Mamirauá tem gerado
resultados sociais, ecológicos e
econômicos bem expressivos. Dentre
eles: i) a regularização da pesca comercial
de pirarucu, proibida no Estado do
Amazonas em 1996; ii) a recuperação
dos estoques de pirarucu em seus
ambientes naturais, aumentando em
aproximadamente 447% em média o
estoque natural da espécie nas áreas
270
O manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã
•Ana Cláudia Torres Gonçalves
manejadas, uma vez que, a cota de pesca
é estabelecida a partir do resultado das
contagens; iii) o estabelecimento de
uma exploração racional, prevendo-se a
remoção de aproximadamente 30% dos
adultos, deixando-se os 70% restantes
para assegurar a reprodução da espécie;
iv) a melhoria da renda dos pescadores;
e v) o reconhecimento conferido aos
grupos de pescadores pela prática de
ações sustentáveis.
A renda proveniente da pesca desta
espécie, além de contribuir para a
composição da renda doméstica, tem
possibilitado investimentos na aquisição
de apetrechos de pesca e melhoria
das embarcações. Em 2012, a pesca
proporcionou aos mais de mil pescadores
em 27 comunidades ribeirinhas e três
colônias dos municípios do entorno da
reserva um faturamento bruto médio de
R$ 1.586,92 com valores individuais que
variaram de R$ 126,40 a R$ 6.130,00.
O Programa de Manejo de Pesca do
Instituto Mamirauá (PMP/IDSM) é
responsável-técnico por duas de onze
áreas de manejo de pirarucu no Estado
do Amazonas (IBAMA, 2012), atuando
em parte da RDS Mamirauá e na RDS
Amanã, na região próxima a Tefé. A
participação destas duas áreas foi da
ordem de 34% do total da produção
de 910.594 kg capturados no estado,
em 2011. Ao longo de 14 anos de
manejo já foram produzidas mais de
2.286 toneladas de pirarucu gerando
um faturamento bruto de mais de dez
milhões de reais. Até 2008, a produção
quase que em sua totalidade estava
sendo comercializada para o mercado
regional (Manaus e Manacapuru). Nos
últimos dois anos, o mercado local (Tefé,
Alvarães e Maraã) vem absorvendo mais
de 90% da produção. Isso é resultado
das inúmeras estratégias de divulgação
do produto, que vão desde a realização
de feiras nos municípios do entorno das
áreas de manejo até eventos envolvendo
a participação de comerciantes e
compradores locais.
Um resultado social expressivo no manejo
em Mamirauá e Amanã é a participação
de pescadores urbanos de Tefé, Alvarães
e Maraã, municípios do entorno das
reservas, em iniciativas de manejo dos
recursos pesqueiros de uma Unidade de
Conservação, uma vez que, até 2001 o
uso dos recursos naturais das Reservas
Mamirauá e Amanã estava restrito às
comunidades de moradores. Essas
colônias vêm tentando garantir áreas
de pesca dentro das áreas protegidas
para uso de seus sócios, visto que,
estes pescadores sofreram uma redução
significativa de suas áreas de pesca nos
últimos 20 anos devido à criação de
várias Unidades de Conservação e Terras
Indígenas. Diferentemente, da Colônia
Z-32 de Maraã, as Colônias Z-4 de Tefé
e Z-23 de Alvarães enfrentaram maior
resistência para acessar os recursos
das Reservas. Apoiado pelo Instituto
Mamirauá e a Gerência Executiva do
IBAMA – Tefé, os acordos consolidaramse e têm gerado resultados positivos
em diversos aspectos que vão desde a
recuperação dos estoques de peixe na
área até amenizar conflitos de décadas
entre pescadores urbanos e ribeirinhos.
Além de atuar no âmbito local,
a experiência tem estimulado a
implementação de novas iniciativas
de manejo dos recursos pesqueiros
em diversas regiões da Pan-Amazônia.
271
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Tabela 1 - Indicadores gerais do manejo de pirarucu nas RDS Mamirauá e Amanã.
Indicadores
1999
2000
2001
2002
2003
2004
3,2
3,5
6,5
32,9
58,5
128,6
215
Local
87%
0%
0%
0%
0%
8%
16%
Estadual
13%
100%
25%
93%
100%
90%
82%
Nacional
0%
0%
75%
7%
0%
2%
2%
146.940
146.609
601.041
733.357
Produção (toneladas)
Mercado
Faturamento Bruto (R$)
10.801
20.262
52.042
2005
Nº Beneficiados
42
46
107
235
277
429
565
Nº Comunidades
4
4
11
18
18
18
16
Nº Colônias
0
0
0
1
1
1
Indicadores
Produção (toneladas)
2006
2007
2008
2010
2011
2012
221,8
228,2
323,9
217,8
301,2
304,2
Local
11%
5%
18%
63%
32%
94%
90%
Estadual
89%
95%
82%
37%
68%
6%
10%
Nacional
0%
0%
0%
0%
0%
0%
0%
834.331
851.757
1.490.270
967.257
1.510.993
1.683.721
Nº Beneficiados
642
682
718
1.013
922
959
1.061
Nº Comunidades
16
16
23
25
20
21
27
‘
1
1
3
3
3
3
3
Mercado
Faturamento Bruto (R$)
241,3
1
2009
1.031.771
No Brasil, a experiência difundiu-se
para outros municípios do estado do
Amazonas como Fonte Boa, Itacoatiara,
Jutaí, Juruá, Tonantins (BESSA; LIMA,
2010), e para outros estados como Pará,
Rondônia, Roraima e Acre. Países como
Peru, Colômbia, Bolívia e Guiana Inglesa
também utilizam algumas ferramentas
desenvolvidas em Mamirauá para o
manejo da espécie, em partes de sua
região Amazônica. A contribuição desta
experiência também pode ser verificada
na influência de políticas públicas locais
e nacionais como a Instrução Normativa
(IN) n°1, de 1° de junho de 2005, que
regulamenta a pesca do pirarucu
manejado; a IN n° 29 de 1° de janeiro
de 2003, que regulamenta os Acordos
de Pesca; e a IN n° 19 de 24 de junho de
2009, que oficializa o Acordo de Pesca
do Pantaleão, na Reserva Amanã.
DESAFIOS
Entre os desafios atuais do manejo em
Mamirauá e Amanã estão: i) a valorização
do produto; ii) o fortalecimento das
organizações de pescadores para
que desenvolvam a autogestão e
assumam integralmente a condução
e o custeio das etapas do manejo; iii)
o desenvolvimento de ferramentas de
controle, monitoramento e avaliação
da atividade, que desconstruam a
concepção de que o manejo se resume
a contar e pescar; e iv) a capacidade
de influenciar políticas públicas,
participando ativamente das discussões
que visam definir de uma Instrução
Normativa Estadual que regulamente
o manejo, buscando fazer com que
contemplem as especificidades de cada
região.
272
O manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã
•Ana Cláudia Torres Gonçalves
Na tentativa de contribuir para a
valorização do pirarucu do manejo, que
em 2012, alcançou o preço médio de R$
5,32/kg, a assessoria realiza anualmente
uma Rodada de Negócios, onde
pescadores, potenciais compradores
de pirarucu e fornecedores de
insumos, reúnem-se para estabelecer
possibilidades de negociação. O evento
ganha repercussão e a cada ano registrase a presença de maior quantidade
de pessoas interessadas em comprar
pirarucu. No entanto, o fator que
interfere decisivamente na negociação
é a disponibilidade de infraestrutura
e logística por parte do comprador,
visto que, a maioria dos grupos de
manejo não dispõe de barco para o
transporte da produção e a exigência,
em especial dos representantes de redes
de supermercado e compradores de
outros estados é que a produção possa
ser entregue em Manaus, onde poderia
ser processada, atendendo as exigências
sanitárias do Ministério da Agricultura.
Neste sentido, os grupos de
manejadores pleiteiam junto às
agências financiadoras e à Fundação
Amazonas Sustentável recurso para
investir nas unidades de recepção e
pré-beneficiamento (evisceração) e na
aquisição de barcos transportadores
que permitam transportar a produção
até centros comerciais que ofereçam
melhores preços pela produção. O
governo do estado, por sua vez, instalou
uma Unidade de Beneficiamento
em Maraã, área que detém maior
porcentagem da cota das áreas
assessoradas pelo Instituto Mamirauá, e
pretende construir outras unidades em
Fonte Boa, Tefé e importantes centros
de desembarque de pescado visando
absorver toda a produção, promovendo
maior competitividade de mercado para
este produto.
Objetivando fortalecer as organizações
de pescadores, a assessoria realiza
anualmente o Encontro de Manejadores,
que oportuniza aos manejadores de
pirarucu, a troca de experiências com
pescadores de outras áreas de manejo,
identificando problemas e propondo
soluções para o seu melhor desempenho.
Em, 2012, o encontro reuniu mais de
100 pescadores e ainda representantes
do Instituto de Proteção Ambiental do
Amazonas – IPAAM e do Centro Estadual
de Unidades de Conservação – CEUC
que apresentaram propostas de ações
visando o combate ao comércio ilegal
de pirarucu, que disputa mercado com
o produto do manejo.
Em relação à dificuldade das organizações
em desenvolver a autogestão e assumir
integralmente a condução e o custeio
das etapas do manejo, o PMP/IDSM
diagnosticou a fragilidade de algumas
organizações em transmitir aos seus
associados os princípios do manejo,
etapas cujo cumprimento é fundamental
para que o manejo alcance plenamente
a
sustentabilidade
ambiental
e
socioeconômica. Em alguns grupos, em
10 anos de manejo, o nº de beneficiários
cresceu mais de 900%. No entanto,
a maioria do grupo não reconhece a
importância da organização, ao qual
estão vinculados, para obtenção do
manejo; bem como, da participação
individual para o bom andamento do
grupo em algumas etapas do manejo que
são avaliadas pela equipe técnica, como:
organização coletiva, zoneamento e
vigilância do complexo de lagos.
273
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
Outra fragilidade identificada é quanto à
gestão da organização, pagamentos de
tributos, gerenciamento e prestação de
contas, dada a falta de conhecimento,
habilidade e aptidão dos dirigentes.
Então, nestes casos, traçamos uma
abordagem diferente, empenhando
esforços para trabalhar as fragilidades
da organização, a partir da retomada
destes princípios junto à diretoria, que
nem sempre é a mesma que iniciou
o processo de manejo. O propósito
é capacitar os diretores para que
estes trabalhem a sensibilização dos
associados. A iniciativa, normalmente,
exige da equipe um aprimoramento da
metodologia do curso, que aborda as
temáticas: organizar, zonear, proteger,
contar, pescar, vender e avaliar, em
três módulos ao longo de nove
dias. Já se começa a perceber uma
flexibilidade maior dos diretores na
hora de negociarmos com eles algumas
mudanças de postura e adequações
na forma de gestão; e a compreensão
de que o desempenho obtido pelo
grupo nas etapas do manejo influencia
decisivamente para o pedido de cota
apoiado pela assessoria técnica. E
mais, que a falta de planejamento e
mobilização comprometem a execução
do manejo e encarecem o processo.
Para desconstruir a concepção errônea
disseminada de que o manejo se
resume a contar e pescar e desenvolver
mecanismos de controle, monitoramento
e avaliação do manejo, o programa, em
2011, evidenciou todas estas etapas do
manejo, quando aperfeiçoou a forma de
avaliar, desenvolvendo um método de
avaliação participativa que considera
tanto o parecer técnico quanto a opinião
dos que executam o manejo, atribuindo
nota aos critérios avaliados e que
reunidos embasam as cotas de pesca,
que não ultrapassam 30% dos pirarucus
adultos contados.
Nesta avaliação, a equipe técnica
avalia o desempenho organizacional
do grupo; a partir do cumprimento
das normas e aplicação de penalidades
estabelecidas pelo regimento interno,
e da iniciativa do grupo em lidar com
os imprevistos. Avalia-se também se
o grupo implementou um sistema de
vigilância que promova a colaboração
dos beneficiários e se este é eficiente
a ponto de garantir a proteção da área.
Em relação à contagem (levantamento
de estoque), avalia-se a segurança
e a responsabilidade do grupo na
aplicabilidade do método. Avalia-se
também se houve controle da produção
e se esta foi devidamente monitorada
pelos manejadores. Não menos
importante, é avaliar o que os dados
da contagem revelam em relação à
saúde dos ambientes e a possibilidade/
eficiência de captura da cota. Por fim,
outros fatores como a forma como
os ganhos são distribuídos e se esta é
justa, considerando o envolvimento e
comprometimento dos beneficiados
com a execução das etapas do manejo,
também são avaliados.
Influenciar políticas públicas talvez
seja o maior e mais complexo desafio
vivenciado pela equipe técnica que
assessora os sistemas de manejo, pois
envolve uma variedade de instituições,
com pontos de vista e diretrizes quase
sempre divergentes. Desde 2011, o PMP/
274
O manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã
•Ana Cláudia Torres Gonçalves
IDSM vem participando da discussão
da Instrução Normativa Estadual
para regulamentação do manejo
sustentável de pirarucu em Unidades de
Conservação de Uso Sustentável e em
áreas de Acordos de Pesca, pois com o
fechamento dos escritórios do IBAMA
no interior do estado e a publicação
da Lei Complementar nº 140 de 08 de
dezembro de 2011, que altera a Lei
no 6.938, de 31 de agosto de 1981 e
fixa normas para a cooperação entre
a União, os Estados e os Municípios
nas ações administrativas decorrentes
do exercício da competência comum
relacionada à proteção do meio
ambiente, combatendo a poluição em
qualquer de suas formas e promovendo
a preservação das florestas, da fauna
e da flora. O licenciamento do manejo
passa a ser atribuição do estado.
A primeira proposta de minuta indicou
que se considerasse a contagem do
mesmo ano para o estabelecimento
da cota a ser capturada, isto seria
interessante, se as regiões que fazem
manejo no estado não apresentassem
realidades tão diferentes quanto ao
período de cheia e vazante e se os
departamentos de análise dos processos
pudessem atuar de forma ágil na
emissão dos pareceres. Essa proposta
ocasionaria redução do tempo hábil
para a pesca, pois na região assessorada
pelo Instituto Mamirauá, os ambientes
só apresentam condições ideais para
contagem, ou seja, isolamento dos
mesmos, a partir da segunda quinzena
de setembro, o que possibilitaria, na
melhor das hipóteses, trinta dias para
a execução da pesca, visto que, os
ambientes só podem ser explorados
após o recebimento das autorizações
e após a realização das contagens que
subsidiam as cotas do ano seguinte.
Em 2012, a convite do Instituto de Pesos
e Medidas do Estado do Amazonas –
IPEM/AM, órgão delegado do Instituto
Nacional de Metrologia, Qualidade e
Tecnologia – INMETRO o PMP/IDSM
tem participado ativamente do GT de
discussão que visa à elaboração de uma
Instrução Normativa específica para a
certificação do produto pirarucu Salgado
Seco, no Programa Selo Amazônico
do INMETRO. Alguns ajustes já foram
realizados, visando à consolidação
dos comentários recebidos durante a
Consulta Pública da Instrução Normativa,
divulgada por meio da Portaria Inmetro
nº 364 de 16 de julho de 2012. A
comissão é formada pela Fundação
Centro de Análise, Pesquisa e Inovação
Tecnológica – FUCAPI; Superintendência
da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA;
Secretaria Executiva de Pesca e
Aquicultura/Secretaria de Produção Rural
do Estado do Amazonas – SEPA/SEPROR;
Secretaria de Estado do Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável – Centro
Estadual de Unidades de Conservação –
SDS/CEUC e Ministério da Agricultura,
Produção e Abastecimento – MAPA.
Nossa participação garantiu que
a IN contivesse exigências de
procedimentos para obtenção do
pirarucu, como matéria-prima do
produto a ser certificado, prezando
pela sustentabilidade socioambiental
do manejo em meio a um processo
produtivo de grande escala, que tende a
exigir produção a qualquer custo.
275
Parte III - Experiências de manejo participativo de pirarucus na Pan-Amazônia
CONSIDERAÇÕES
Lidar com pessoas em meio aos
princípios do associativismo sempre foi
e continuará sendo um enorme desafio,
porém uma medida necessária em se
tratando de manejo de recursos naturais,
que são bem de uso comum, mas que
precisam ser usados de forma moderada
e racional, pois são recursos renováveis
até certo ponto, vulneráveis à extinção
quando explorados em demasia.
Ainda que a equipe técnica adote os
mesmos procedimentos de trabalho
para todos os sistemas, o manejo ganha
contornos diferentes a partir de fatores
como: a localização da área; a disposição
dos ambientes; o potencial produtivo
do sistema; o perfil dos pescadores
envolvidos, a capacidade produtiva do
grupo, o nível de comprometimento do
grupo com as etapas do processo e a
habilidade em negociar a produção.
O bom desempenho do manejo de
pirarucu em Mamirauá e Amanã se deve
ao caráter participativo2 com que vem
sendo conduzido, fomentando uma
gestão ambiental compartilhada entre
pescadores, pesquisadores, técnicos
e instituições. E para que o manejo
continue a atender o princípio social,
é fundamental que haja controle,
monitoramento e avaliação, pois é na
avaliação onde é possível identificar
conjuntamente as potencialidades e
fragilidades do grupo, para definir
estratégias para se trabalhar as fraquezas
de cada sistema.
A perspectiva é que os atores envolvidos
no processo do manejo possam unir
forças e trabalhar uma proposta
conjunta de gestão socioeconômica
dos empreendimentos de apoio à
cadeia produtiva do pirarucu, para
que a oferta de preço e as condições
tornem-se mais atraentes, aumentando
assim, a competição de mercado pelo
pirarucu, exigindo dos compradores
investimentos em infraestrutura e
logística adequados ao comércio de
pirarucu desta e demais regiões. Isso
exige que haja participação ativa de
todos nas discussões que visam definir
políticas públicas que contemplem as
especificidades de cada região.
2
Entende-se como manejo participativo
o uso sustentável de um sistema de
bens, cujo acesso exclusivo é permitido
apenas a um grupo de atores sociais,
e que é por este grupo protegido e
gerenciado através de um sistema
de zoneamento e de normas de uso,
ambos definidos com base em uma
aliança entre conhecimento científico
e saberes tradicionais (IDSM, 2011). Tal
aliança é considerada parte fundamental
do manejo participativo, por subsidiar
o estabelecimento de normas de
uso sustentável. Exemplo disso foi o
desenvolvimento de um método de
levantamento populacional do pirarucu
realizado através das contagens feitas
pelos pescadores (CASTELLO, 2004).
O método permitiu a apropriação das
ações de manejo por parte dos usuários
do sistema (VIANA et al., 2007).
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O manejo participativo de pirarucu (Arapaima gigas) nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã
•Ana Cláudia Torres Gonçalves
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277
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na Pan-Amazônia - Instituto Mamirauá