A dúvida cartesiana dos sentidos
na primeira meditação
como elemento fundamental para compreensão
das meditações metafísicas de Descartes
Juliana Abuzaglo Elias
Martins
Doutoranda em Filosofia
pela UFRJ
[email protected]
Palavras Chave
Dúvida, Conhecimento, Sentidos, Descartes
Resumo
No presente trabalho pretendemos expor a dúvida cartesiana em
relação aos sentidos apresentada na Primeira Meditação. Pretendemos mostrar que a mesma é fundamental para compreender o
próprio projeto filosófico de Descartes na obra Meditações Metafísicas. Também ela é fundamental para entender o exemplo do
próprio modelo de Dúvida que o pensador moderno se apóia e se
utiliza para construir suas argumentações ao longo desse texto.
Na Primeira Meditação Descartes nos mostra sua desconfiança em
relação aos sentidos. Entretanto, este “desconfiança” ou dúvida
não deve ser vista como algo aleatório ou infundado. Pretendemos
expor neste texto que a dúvida é sobretudo usada como base para
a construção e reconstrução da argumentação das ideias expostas
por Descartes e está assim sempre baseada em sólidos pensamentos: duvida-se de algo porque existem razões e motivos pertinentes
para isso e não porquê simplesmente se deseja. Com isso, é possível
concluir, ao contrário do que muitos manuais filosóficos tentam
expor que Descartes, em seu projeto filosófico, antes de estar preocupado em responder aos céticos sobre a possibilidade ou não de
produção de conhecimento, estava já partindo do pressuposto de
que: A) é sim possível conhecer, e B) que este conhecimento - o
científico - independe da dimensão sensitiva.
Introdução
Neste trabalho pretendo expor que a questão da Dúvida apresentada por Descartes na primeira de suas seis meditações é fundamental para se obter um entendimento razoável do projeto de
Filosofia apresentado por Descartes em sua obra máxima, Meditações Metafísicas 1.
Na primeira meditação temos o problema da Dúvida. Na segunda
aparece o Cogito. Na terceira é provada a existência de Deus. Na
quarta, a questão do erro. Na quinta, as essências matemáticas e na
sexta, o mundo externo.
Alguns comentadores cartesianos como Martial Gueroult2 e Janet
Broughton 3 defendem em suas obras que na primeira meditação,
Descartes, ao tratar da questão da Dúvida, pretende resgatar as
dúvidas céticas. Estas de modo geral, se tratam da possibilidade de
218
1 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas,(Coleção Pensadores) tradução de Bento Prado
Junior. 3ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
2 GOUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons 2 vols. Paris: Aubier,1953.
3 BROUGHTON, Descartes’s Method of Doubt, Princeton and Oxford: Princeton University
Press, 2003.
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conhecimento. Deste modo, as meditações cartesianas, teriam como
objetivo um diálogo com a tradição cética, demonstrando haver
possibilidade sim de conhecimento dos temas e pontos que perpassam a referida obra. Dentre estes pontos, se destacam: a questão da
existência de Deus, da Alma e do Mundo.
Segundo então tais intérpretes, na primeira meditação, o pensador
apresentaria motivos fortes para duvidar de supostas “fontes de
conhecimento”. Estas fontes seriam: os sentidos, a imaginação e a
razão que é representada pelo Deus Enganador. Ao longo da obra,
com a prova da existência de Deus, ele eliminaria tal hipótese de
um Deus enganador, e conseqüentemente a possibilidade de se
questionar e duvidar da razão e assim provar que é possível conhecer. Assim, outro objetivo da obra de Descartes seria provar que a
razão não falha e que pode e deve ser fonte de conhecimento.
Esta talvez seja a leitura que ficou delegada e consagrada a Descartes; tido como muitas vezes pai do racionalismo moderno, de modo
pejorativo e um tanto quanto superficial é visto como defensor
cego da razão, como sendo a única fonte de conhecimento.
O presente texto tem como objetivo examinar e reapresentar a dúvida em relação aos sentidos apresentada por Descartes na primeira
meditação, mostrando ao mesmo tempo como uma compreensão
desta meditação ajuda a entender que o objetivo de Descartes em
sua obra é muito mais do que dialogar com a tradição cética e responder ao cético provando que a razão não falha e a conseqüente
indubitabilidade das ideais claras e distintas. Antes de dialogar com
a tradição cética, mostrando ser possível o conhecimento, Descartes
na primeira meditação e nas demais dialoga com a tradição aristotélica, tendo como alvo não o cético, mas o modelo de conhecimento aristotélico. Esta é a posição defendida por alguns intérpretes
como Rocha em seu artigo Observações sobre a dúvida cartesiana.4
Primeira meditação
De modo geral podemos dizer que a questão da Dúvida apresentada na primeira meditação é dividida em etapas: primeiro, temos a
dúvida em relação aos sentidos, depois uma breve passagem que
corresponderia a uma dúvida relativa à imaginação e a dúvida em
relação à própria razão, mais conhecida como hipótese do Deus enganador. Por se utilizar da ordem das razões ao expor suas ideias,
toda argumentação cartesiana segue um encadeamento lógico e
cada ideia, por sua vez, relaciona-se com a anterior e serve de base
para a seguinte. Deste modo, podemos afirmar, sem receio, que
tanto a dúvida da imaginação quanto a duvida da razão estão relacionadas também com a dúvida dos sentidos. Desta forma, estas
duas serão por nós aqui expostas.
No início da primeira meditação, logo na abertura do texto o pensador alerta que irá, “[...] desfazer-me de todas as opiniões a que
até então dera crédito e começar tudo novamente desde os fundamentos.” 5. Nesta passagem, podemos entender que ele está afirmando que vai se desligar de todo conhecimento obtido até então.
219
4 ROCHA, E. Observações sobre a dúvida cartesiana. O que nos faz pensar. Rio de Janeiro.
Vol 1, nº28, p 5-24, Dez 2010.
5 DESCARTES, R. Op. Cit..p.85.
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Quais seriam as opiniões que ele dera crédito? E o que significa começar tudo de novo desde os fundamentos? Aqui, acreditamos que
Descartes está se referindo ao modelo aristotélico de conhecimento,
também adotado por São Tomas de Aquino na idade medieval.
Neste modelo, todo conhecimento nasce dos sentidos, a partir de
uma percepção sensível6. O filósofo dá continuidade a suas ideias
dizendo logo depois da passagem supracitada que irá desfazer-se
das antigas opiniões e que sua intenção é dedicar-se “[...] imediatamente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas”.7 Qual seria esse princípio? O próprio explica: “Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro
e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos.” 8
Nessa afirmação temos a confirmação de que o alvo de crítica e
análise de descartes são os sentidos, ou ao menos podemos afirmar que seu alvo são ideias que se baseiam nos sentidos ou algum
modelo ou instancia de produção de conhecimento que se apóie
fundamentalmente nos sentidos. Isso nos leva a crer que, ao iniciar
a sua exposição da dúvida e tratar análise desta questão é mesmo o
modelo de conhecimento tomista aristotélico que ele tem em vista
e está se referindo.
A dúvida dos sentidos
Para uma boa compreensão da dúvida dos sentidos, podemos afirmar que ela possui dois momentos. O primeiro seria a desconfiança
de Descartes em relação às qualidades dos objetos ou das coisas
do mundo que são sensivelmente percebidos por nós, e o segundo,
seria referente à própria existência desses objetos, dessas coisas. O
pensador então inicia sua exposição argumentando que: “[...] experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de
prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma
vez.” 9 Em seguida continua sua argumentação afirmando que esse
engano gerado pelos sentidos se refere às coisas “[...] pouco sensíveis e muito distantes.” 10
Tentaremos aqui especular um pouco para compreender melhor o
que o filósofo quis dizer com isso. Em relação ao primeiro momento da dúvida. Trata-se da qualidade de objetos. Por exemplo, um
avião de longe pode me parecer pequeno. Contudo , mais de perto,
o percebe grande. De longe, posso ver um carro preto e de perto,
perceber que sua cor real é azul. Em outras palavras, pode haver
e há divergência entras as percepções que tenho de qualidades de
objetos e coisas particulares do mundo que entro em contato.
220
6 Em linhas gerais, poderíamos assim resumir o modelo de conhecimento de Aristóteles e
também adotado por Tomás: Com três etapas, a primeira, onde tenho percepções sensíveis,
o mundo me afeta. A segunda que seria, a partir destas percepções sensíveis, na qual formo pela minha imaginação, de modo arbitrário, uma imagem sensível. Uma última etapa
então, corresponde a operação intelectual. Meu intelecto então decompõe esta imagem
e abstrai o que existiria nela de inteligível. A parte ativa de meu intelecto chega assim a
um conceito. Que será então retornada a experiência, através do juízo, pela ideia, para ser
aplicado às coisas do mundo e assim teríamos o conhecimento de algo.
7 DESCARTES, R. Op. Cit. p.85.
8 Idem.
9 Idem,.p.86
10 Idem.
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Dando então progresso a sua exposição, Descartes explica que algo
escapa a esse argumento. Diz ele:
Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes no que se
refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras das quais não se pode razoavelmente
duvidar (...): por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao
fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos
e outras coisas semelhantes. 11
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Este seria então o segundo momento da dúvida dos sentidos: mesmo que os sentidos me enganem, pois há forte e evidente inconsistência das percepções sensíveis quanto às qualidades de objetos
sensíveis das coisas no mundo particular, eles não podem me enganar em relação à percepção que possuímos da existência desses
mesmos objetos. Em outras palavras, mesmo que as percepções
sensoriais nos enganem com relação à percepção de como são esses
objetos, se são pequenos, grandes, preto ou azul, é inegável que as
percepções não nos enganam em relação à existência dessas coisas,
pois mesmo percebendo uma qualidade de modo equivocado, é um
fato real e comprovado que o objeto em questão existe. Isto não se
pode duvidar. De sua existência.
Dando prosseguimento em relação ao seu argumento Descartes
passa então a examinar a possibilidade de mesmo nesses casos, e
sob condições ideais, ainda assim as percepções sensíveis nos poderem enganar, em relação à existência desses objetos. O filósofo
então se pergunta, se haveria algum caso em que poderia equivocadamente estar certo da existência de algo, mas depois comprovar
que me enganei? É dentro dessa perspectiva que aparece o famoso
argumento de Descartes sobre o Louco.
O argumento da loucura se mostra como um primeiro motivo para
se poder duvidar desses casos nos quais a percepção sensível da
existência de algo nos enganaria. Nas palavras de Descartes:
E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam
meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos
(...) que constantemente asseguram que são reis quando são
muito pobres; que estão vestidos de ouro e púrpura quando
estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um
corpo de vidro 12.
Contudo este argumento não pode ser completamente aceito, pois
se refere a apenas alguns casos específicos, nos quais as percepções
(dos indivíduos loucos) não são as ideais. Nas palavras de Descartes
– que, por sua vez, foram tão criticadas por Foucault - o louco é
o indivíduo “[...] cujo cérebro, perturbado e ofuscado pelos negros
vapores da bile.” 13 Desta maneira, ele manipula e distorce as percepções sensíveis e consequentemente as informações que recebe
delas. Logo, suas percepções não são confiáveis e este ideia do
louco é rejeitada para servir de base a uma validade ou não de uma
percepção sensorial sobre a existência de coisas no mundo.
A seguir, ele introduz a hipótese do sonho que vai tentar superar,
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11 Idem.
12 Idem.
13 Idem.
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de alguma forma, as particularidades presentes no argumento da
loucura. Sob quais condições poder-se-ia duvidar das percepções
sensíveis da existência das coisas? Em outras palavras, quais seriam condições legitimas de se examinar e investigar uma percepção confiável de que algo existe no mundo.
A hipótese é desta maneira introduzida: “[...] todavia devo aqui
considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume
de dormir e de representar em meus sonhos [...]”14. Nesta passagem
o pensador deixa claro que diferentemente do caso do louco que
se aplica a apenas alguns homens, o sonho, diz respeito a todos os
homens, pois todos eles possuem o costume de sonhar. Como então,
nesse argumento, o filósofo problematiza se os sentidos são ou não
são fonte segura de percepção da existência das coisas?
Descartes diz que quando dormimos sentimos e percebemos coisas
de modo tão real quanto se estivéssemos acordados; de fato, por
vezes quando sonhamos ocorre de termos a impressão que nossas
percepções tem a mesma intensidade e vitalidade de quando estamos acordados, ou em vigília. Isto posto, ele coloca que, se quando
sonhamos percebemos as coisas de modo muito real, só que na
realidade, elas não existem, pois estamos apenas sonhando e deitados em nossa cama, o que garante que ao estarmos acordados, em
vigília, tendo percepções que julgamos reais, estas mesmas coisas
que percebemos como reais não existam também? Em outras palavras: não há critérios para avaliar e distinguir se as coisas que o
percebemos como existente quando estamos acordados, existem de
fato ou não. No sonho as percepções e representações das coisas
são falsas, pois possuem origem na minha imaginação, e na vigília essas percepções se assemelham as de quando estou dormindo,
podendo também ser frutos de minha imaginação.
Assim, novamente, a dúvida em relação aos sentidos permanece.
Esta conclusão leva a segunda etapa da dúvida cartesiana: a dúvida da imaginação. Que por sua vez também faz parte do modelo de
conhecimento tomista aristotélico15. Esta seria mais uma evidência
de que a alvo do filósofo moderno em suas considerações nesta
obra é este modelo de conhecimento empírico de inspiração aristotélica e não o cético.
Para duvidar da imaginação, enquanto fonte de conhecimento ou
fonte de produção de ideias é mostrada que as ideias compostas
nesta faculdade são arbitrarias, isto é, são formadas pela mente
de modo arbitrário e não necessário. Descartes faz inclusive uma
analogia entre quadros de pintura que também são arbitrariamente
compostos pelos artistas. As percepções sonho seriam arbitrárias e
por tanto do formadas por arbitrariedade e não necessidade.
14 Idem.
15 No modelo tomista aristotélico de conhecimento, que já explicamos brevemente na
nota 7, temos a partir das percepções sensíveis a formação de imagens pela faculdade da
imaginação. Esta operação é arbitraria. Logo em seguida, o aspecto inteligível da imagem
seria abstraído pela parte ativa do intelecto, constituindo dessa forma, o conceito. Isso
é suficiente para Descartes questionar a imagem sensível como ponto de partida para o
conhecimento das coisas.
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Deus Enganador
Já pro final da meditação Descartes introduz a última etapa da
dúvida, que envolve a introdução da hipótese do Deus enganador.
Esta hipótese está relacionada, como podemos constatar no próprio
texto, à operação puramente intelectual, ou a razão, o intelecto.
Sendo assim, é mais uma evidencia textual de que esta etapa da
argumentação equivaleria igualmente como as etapas dos sentidos
e da imaginação, ao modelo aristotélico de conhecimento.
Depois de analisar as ideias da imaginação, Descartes apresenta
uma diferenciação entre estas e outras ideias com as seguintes palavras: “[...] ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça,
mãos e outras semelhantes possam ser imaginárias, é preciso, todavia, confessar que há coisas ainda mais simples e mais universais
que são verdadeiras e existentes [...]” 16. Em seguida ele afirma no
que parece exemplificar as mesmas:
[...] Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral, e
sua extensão; juntamente com a figura das coisas extensas,
sua quantidade, ou grandeza, e seu número; como também o
lugar em que estão o tempo que mede sua duração e coisas
semelhantes.17
Em seguida ele trata diretamente da Matemática. As ideias matemáticas poderiam e são efetivamente coisas que escapam aos
motivos da dúvida, por serem um determinado tipo de operação
racional. Diz ele:
[...] a Aritmética e a Geometria e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão de coisas muito simples e muito
gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não natureza contém alguma coisa de certo e indubitável. Pois quer eu
esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão
sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que
quatro lados [...] 18.
O que parece haver aqui é uma oposição entre as ideias da imaginação e por conseqüente arbitrárias e uma outra classe de ideias
que seriam da ordem da razão. Estas ideias, ao contrário das formadas por arbitrariedade, são consideradas por Descartes como
sendo ‘necessárias’. Este outro tipo de ideia seriam as ideias matemáticas. Uma vez que a matemática, é considerada uma operação
puramente intelectual, ou seja, da razão, suas ideias serão ideias
puramente da razão. E é justamente a essa classe de ideias - da
razão - que envolverá a dúvida do Deus Enganador, que dentro do
contexto de nossa exposição equivaleria ao último estágio da dúvida cartesiana exposta na primeira meditação.
Segue as palavras do pensador que introduzem a hipótese do Deus:
[...] Ora, quem pode assegurar que esse Deus não tenha feito
com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo
extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e
que, não obstante, eu tenha o sentimento de todas essas coisas... E, mesmo, (...) que eu me engane todas as vezes em que
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16 DESCARTES, R. Op. Cit..p.87.
17 Idem.
18 Idem.
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faço a adição de dois mais três, ou em que e numero os lados
de um quadrado[...]19
Na citação acima, evidencia-se que Descartes está se referindo a
uma operação intelectual racional pura - a matemática. Entretanto cabe observar que embora se trata de operações puramente
intelectuais, elas parecem depender ainda dos sentidos em algum
nível, haja vista o vocabulário usado por Descartes que remete a
percepção de coisas sensíveis ou materiais: corpo extenso, figura,
grandeza e lugar. Em outras palavras, estas operações e ideias matemáticas reproduzem um modelo de abstração que parte e depende
de dados sensíveis: medir a grandeza de uma figura, sua extensão,
o lugar, a área de um corpo extenso.
No modelo de conhecimento de inspiração aristotélica, como já
mencionamos anteriormente, há uma última etapa que seria equivalente a uma operação cognitiva puramente mental ou uma operação abstrativa da razão que abstrai da imagem sensitiva aquilo
que há de intelectual nela, o conceito. Dessa maneira, acreditamos
que a hipótese do Deus enganador apresentada por Descartes está
se referindo e questionando a validade do último momento do modelo de conhecimento empirista aristotélico. Essa seria mais uma
evidencia que descartes está se referindo ao modelo de conhecimento tomista aristotélico.
Este fato pode nos levar a uma importante conclusão: a razão colocada em dúvida com a Hipótese do Deus enganador não é a razão
que Descartes defende, e nem tem como resultado as conhecidas
ideias claras e distintas, ou seja, o modelo de Descartes. A razão
aqui questionada e analisada parece ser a razão aristotélica, ou
empirista, entendida enquanto operação puramente intelectual, mas
que depende em algum nível dos sentidos, isto é, trata-se de uma
retomada de teses antigas e não da tese do próprio Descartes.
Conclusão
Diante do que foi exposto, gostaríamos de afirmar que o objetivo
de Descartes na Primeira Meditação é dialogar coma a tradição
aristotélica e, não com a tradição cética como pensam vários
intérpretes. Pretendemos mostrar aqui que as etapas da dúvida
cartesiana, na primeira meditação, a saber, Sentidos, Imaginação
e Razão, equivalem elas mesmas às etapas do modelo de conhecimento dessa tradição.
Uma das características principais desse modelo epistêmico tomista
aristotélico é o fato de que todas as ideias em nosso intelecto se
originam e passam pelos sentidos. Pois como vimos, mesmo uma
operação intelectual se baseia num dado – no caso, uma imagem
– que se origina nos sentidos. Parece-nos assim que o objetivo de
Descartes de Primeira Meditação é preparar o leitor para duvidar
radicalmente dos sentidos, se desligando das crenças empiristas do
modelo cognitivo aristotélico, segundo o qual todo conhecimento
depende dos sentidos.
É importante deixar claro que apesar de toda critica e questionamento de Descartes aos sentidos, ele não está dizendo que os sen-
224
19 Idem.
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tidos não nos dão algum tipo de conhecimento, mas sim que eles
não podem ser tidos como fonte única de todo conhecimento. Ele
não nega que os sentidos nos dão algum conhecimento. Por exemplo, na sexta meditação, ele falará que os sentidos nos fornecem
conhecimento de como me encontro no mundo, de como sou afetado por esse mundo e, mais importante, que o mundo existe.
Entretanto, Descartes acredita que existem conhecimentos que não
necessitam dos sentidos ou de percepções sensoriais. Os exemplos
mais clássicos seriam o conhecimento do Cogito e Deus, provados
na segunda e terceira meditações respectivamente.
Por último, cumpre dizermos e ressaltarmos que diante do que foi
exposto, a Primeira Meditação não abriga em sua ênfase – como
muitos manuais de filosofia acreditam e interpretes defendem - um
diálogo entre Descartes e a tradição cética. Entendemos que ainda
que possam haver ecos e preocupações de questões céticas da época, a ênfase da discussão ali travada não seria a possibilidade de se
conhecer, pois Descartes já parte do pressuposto que é sim possível
conhecimento, a ênfase do texto analisado, seria antes questionar
que o conhecimento científico filosófico exigências e uma ordenação do modelo cognitivo empirista/aristotélico, cuja tese central,
como vimos é a de que todo conhecimento depende de uma operação abstrativa a partir do sensível. Descartes quer mostrar que
existem conhecimento que não dependem dos sentidos. E a partir
disso, as Meditações seguintes a primeira, serão para demonstrar
isto: é possível obtermos conhecimento independente dos sentidos.
Em especial, o alvo cartesiano, parece ser a defesa de que o conhecimento científico, que na época não era diferenciado do filosófico,
não deve, segundo o filósofo, pelas razões já expostas acima, ser
entendido a partir de percepções sensoriais.
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Bibliografia
BROUGHTON, Descartes’s Method of Doubt, Princeton and Oxford:
Princeton University Press, 2003.
DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, (Coleção Pensadores) 3ª
Ed.Tradução de Bento Prado Junior. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
GOUEROULT, M. Descartes selon l’ordre des raisons 2 vols. Paris:
Aubier,1953.
ROCHA, E. Observações sobre a dúvida cartesiana. O que nos faz
pensar. Rio de Janeiro. Vol 1, nº28, p 5-24, Dez 2010.
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Juliana Abuzaglo Elias Martins