III SEMINÁRIO INTERNACIONAL VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS:
ILEGALISMOS E LUGARES MORAIS
GT 11- Redes Criminais, Dispositivos de Classificação e Punição
NOVAS ABORDAGENS DE RUA:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MECANISMO DE
MAPEAMENTO E CLASSIFICAÇÃO DA POPULAÇÃO DE RUA
MARIANA MEDINA MARTINEZ
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Apresentação
O objetivo deste texto é apresentar o ponto de encontro (e de tensão) entre as
práticas de usos dos espaços públicos realizadas pelas pessoas que habitam as ruas,
que são como práticas antidisciplinares (DE CERTEAU 1998), e a política de gestão
dos espaços urbanos na cidade de São Carlos/SP. Mais precisamente, relato sobre um
dispositivo novo da Política de Assistência Social chamado Abordagem de Rua, aqui
tratado como um mecanismo de controle e mapeamento dos espaços públicos. É esta
fronteira de tensão entre duas lógicas em relação (uma antidisciplinar e a outra de
gestão dos ilegalismos1) que me interessa em particular para realizar alguns
desdobramentos etnográficos e teóricos neste texto.
Escolhi apresentar a problemática da gestão dos ilegalismos a partir da
Abordagem de Rua, ao invés de tratá-la do ponto de vista das pessoas que vivem nas
ruas, pois a intenção é investigar o encontro e a relação entre duas lógicas em tensão.
Meu intuito é produzir uma etnografia do encontro entre os agentes institucionais e o
público-alvo desta política. A ideia é compreender a lógica de mapeamento da
população de rua, do ponto de vista dos profissionais, e entender, a partir deste olhar,
como a rua é compreendida pelos gestores. Dito de outro modo, seria preciso entender
como a rua é pensada a partir da lógica de gestão do espaço urbano. Contudo,
pretendo demonstrar como a lógica de quem vive nas ruas contrasta com sua lógica
correspondente e, assim, problematiza as categorias institucionais.
Partindo
do
pressuposto
que
a rua apresenta modos de pensamentos
contrastantes com as práticas governamentais, o deslocamento que ela oferece nos
serve de instrumento analítico para interrogar, por vias quase que exóticas, a forma
como são pensadas as pessoas em situação de rua, e, sobretudo, para desnaturalizar a
noção de população.
1
A noção de ilegalismo, exposta na obra Vigiar e Punir [1975] de Michel Foucault, traz uma nova discussão sobre o
par legal/ilegal. A “gestão dos ilegalismos”, para utilizar o termo que o próprio autor propõe, faz alusão ao modo
como a aplicação das leis em casos de transgressão operam na administração e produção da delinquência. A
gestão das transgressões é uma espécie de economia da ilegalidade.
2
A instituição abordando a rua
A Abordagem de rua é mecanismo novo previsto no escopo de implementação do
CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) 2, instituição onde
fiz parte da etnografia aqui apresentada 3. O serviço é caracterizado pelo deslocamento
dos agentes institucionais para a abordagem à população de rua em vias públicas. É
também definido como um serviço de prevenção e busca ativa (MDS, CREAS - Guia de
Orientação: s/d). Portanto, neste modelo observamos um padrão novo de intervenção
institucional baseado na busca contínua pelo seu público-alvo, através do qual é
possível mapear os locais de riscos e ampliar o atendimento assistencial para além de
suas instalações.
No CREAS da cidade de São Carlos, a abordagem é realizada por uma
Educadora Social através de uma ronda pela cidade, juntamente com o motorista do
veículo, cujo objetivo é mapear os principais pontos por onde a população de rua
costuma transitar, abordá-la em seus locais de convivência e realizar a criação de
vínculos4 (entre a instituição e a população de rua) em ambientes extrainstitucionais.
Na parede de seu escritório, a Educadora Social responsável pelo serviço pendura
um grande mapa da cidade, onde demarca, com tarraxas de mural, a distribuição dos
pontos de convívio5 da população de rua de São Carlos, previamente fixados graças às
rondas pela cidade. O retorno aos locais pré-marcados ocorre semanalmente. Os
pontos identificados são praças, rodoviária, estação ferroviária e alguns bairros
2
O CREAS é uma unidade pública estatal de prestação de serviços de proteção social especial de alta
complexidade. Trata-se de um modelo novo de gestão pública municipal que atende sujeitos que já tiveram seus
vínculos familiares e comunitários rompidos. O CREAS de São Carlos tem o atendimento exclusivo à população de
rua da cidade. Vinculado às orientações da nova Política Nacional de Assistência Social – PNAS (2004) e o
Sistema Único de Assistência Social – SUAS (2005), o CREAS foi implementado sob os parâmetros deste modelo
de gestão, porém, é uma iniciativa assumida pelo município. Existem apenas algumas unidades de CREAS em
todo o Brasil que tem o atendimento exclusivo à população de rua.
3
Durante o período do Mestrado a pesquisa de campo foi realizada em duas etapas. A primeira delas consistiu em
investigar o CREAS, com o intuito de entrar nos ambientes institucionais de atendimento à população de rua.
Posteriormente, fiz uma etnografia nas ruas, junto à população de rua em seus locais de convívio.
4
Embora o termo vínculo seja comum também no campo da Saúde Mental, não cabe aqui tentar realizar
aproximações. No caso do atendimento à população de rua, realizado no CREAS, o vínculo é pensado como uma
relação na qual o profissional cria um laço com o usuário, permitindo que a equipe profissional possa futuramente
atuar num plano de intervenção que tem como finalidade última a ressocialização do sujeito. Sobre o vínculo na
Saúde mental, sugiro SARTORI, Lecy (2010).
5
O termo ponto de convívio cumpre na Abordagem de Rua uma função estritamente estratégica que diz respeito ao
rastreamento dos locais ocupados pelas pessoas que vivem nas ruas. Não são consideradas, deste ponto de vista,
a diferenciação dos territórios produzidos nas ruas que, como veremos em seguida, podem ser territórios de um
único sujeito ou de vários deles, podem ser arranjos habitacionais ou esconderijos.
3
domiciliares, somando, atualmente, oito pontos de convívio 6 da população de rua. As
visitas frequentes aos mesmos lugares são necessárias porque que uma série
infortúnios acompanha sua rotina de trabalho. Quando os locais parecem ter sidos
desocupados, a agente institucional deve averiguar a desocupação retornando diversas
vezes. Quando o ponto é, de fato, desocupado, cabe a agente partir em busca de pistas
para saber se o abandono é efetivo ou se ocorreu a migração deste ponto para outro
local. Em outras ocasiões, a Educadora Social identifica os moradores de rua nos
pontos mas não os aborda porque estão envolvidos em brigas ou discussões entre
eles, fato corriqueiro na rotina da abordagem.
Quando encontra os moradores de rua em seus territórios, o motorista estaciona o
veículo e a agente vai ao encontro deles. Se o ponto identificado já foi visitado em
outras ocasiões, a profissional conversa por alguns minutos para saber se querem
algum tipo de ajuda. No contexto do projeto institucional, a assistência oferecida nas
ruas é pensada nas seguintes formas: a requisição de novos documentos, o
agendamento de consultas médicas, o atendimento psicológico, o contato com os
familiares
do
abordado.
Oferecer
os
serviços
do
CREAS
em
ambientes
extrainstitucionais é uma estratégia defendida pela equipe para estabelecer uma
relação de confiança entre o profissional e a população de rua, algo fundamental para a
aproximação com seu público. O atendimento na rua é entendido pela equipe
profissional como uma forma de conceder direitos a toda à população de rua, e não
apenas àqueles entram no serviço. Contudo, o objetivo principal da abordagem é
estabelecer uma relação de confiança que posteriormente poderá ser transformada em
vínculo institucional, isto é, transformar o morador de rua em usuário7 do CREAS.
Identificando os perfis: da diversidade das ruas à unidade da população
Na abordagem inicial devem ser feitas algumas perguntas que permitam ao
6
Os dados apresentados neste texto foram colhidos durante uma entrevi sta com a Educadora Social responsável
pela Abordagem de Rua realizada em Abril de 2011.
7
Na Política Nacional de Assistência Social (2004) o termo usuário é referido para caracterizar o público -alvo dos
serviços prestados pelo governo. Constitui-se o público usuário de Assistência Social cidadãos e grupos que se
encontram em situações de vulnerabilidade e riscos. A transformação do abordado em usuário indica a formação
do vinculo que o permitiu entrar na rede e a aplicação de planos de ressocialização ao mesmo.
4
profissional colher os principais dados sobre o sujeito abordado: o nome, a idade, o
tempo que está na rua, os vínculos familiares e sua cidade de origem. A partir destas
informações colhidas, o abordado pode ser classificado pela profissional de três formas:
a) população de rua da cidade; b) itinerante; c) sujeito que não está em situação de rua.
Os três perfis identificados diferenciam-se pelo tipo de vínculo que o sujeito estabelece
com a cidade, sendo este o principal critério para a classificação da população de rua.
Tendo em vista que a abrangência do atendimento institucional é restrita ao
município, o CREAS deve, de acordo com suas diretrizes, ofertar o serviço apenas à
população de rua local. Para tanto, a instituição deveria criar um critério de classificação
da população de rua da cidade (grifos meus)8, cujo perfil passa a ser formalmente
designado como seu público referenciado. Assim, teriam direito aos serviços apenas
àqueles que possuem um vínculo mais duradouro com o município, de modo que os
itinerantes recém-chegados, por terem um vínculo ainda frágil, não são contabilizados
como parte da população local.
A classificação da população de rua baseia-se, como já vimos, no tipo de vínculo
que a pessoa produz com a cidade, tendo como plano teórico de fundo os parâmetros
de classificação encontrados no estudo de Vieira et all (1992), a partir do qual a
situação de rua é pensada de acordo com os seguintes parâmetros: ficar na rua, estar
na rua e ser da rua. Segundo os dados apresentados neste estudo, e utilizados no
CREAS como parâmetro de classificação, ficar na rua indica os casos mais recentes de
situação de rua; o estar na rua indica os casos de sujeitos que começam a estabelecer
relações com pessoas de rua e adotam novas estratégias de sobrevivência; o ser da
rua indica um tempo de rua mais prolongado, neste sentido, a rua torna-se seu espaço
de relações pessoais, de trabalho e de obtenção de recursos.
A identificação do perfil do abordado ocorre quando a profissional consegue colher
as informações necessárias mas, para isso, é preciso voltar no local diversas vezes. A
Educadora Social ressalta que o contato inicial deve ser bastante ameno, por isso a
8
Os grifos são necessários para demarcar a formulação de um critério que é elementar na delimitação do público
com direito ao atendimento do CREAS, baseado em uma restrição territorial. Os itinerantes por não estarem
fixados numa única cidade não têm direito ao atendimento. Como estes não são considerados população de rua
da cidade, deixa-se subentendido que os itinerantes não fazem parte da demanda dos serviços.
5
oferta dos serviços institucionais serve como uma forma de aproximação. A estratégia
de abordagem inicial é importante para estabelecer aos poucos uma relação de
confiança, elementar na construção do vínculo institucional.
Embora os parâmetros de classificação pareçam operar como representações
estanques dos perfis encontrados numa população, o encontro provocado pela
Abordagem de Rua coloca à prova os modos como se têm pensado a rua a partir do
modelo populacional. Os contrastes visíveis entre as duas lógicas permitem confrontar
também no plano analítico os seus respectivos modos de funcionamento. Verificaremos
em seguida, a partir de um recorte específico centrado nos modos de produção de
vínculos, como poderão ser pensados os contrastes entre a instituição e a rua.
a) O olhar da gestão:
Como vimos acima, o vínculo estabelecido com a cidade é o principal critério para
a delimitação da população em questão. Teriam direito ao atendimento institucional
apenas a população de rua da cidade: aqueles que possuem familiares ou já estão há
bastante tempo em São Carlos mas que tiveram os vínculos comunitários ou de
parentesco rompidos. Por sua vez, os itinerantes, em menor quantidade nas contagens,
são aqueles que não possuem nenhum tipo de vínculo com a cidade já que estão
apenas de passagem. Embora sejam sempre abordados pelo serviço, os itinerantes
devem ser acompanhados pela agente institucional apenas para que sua estadia no
município seja controlada9. O terceiro perfil identificado pela abordagem é contemplado
por aqueles que não estão em situação de rua, possuem familiares na cidade mas não
romperam seus vínculos mais elementares. Este último é entendido como um perfil de
risco que, embora não esteja exatamente no perfil populacional esperado, pode vir a se
tornar parte da população de rua da cidade. A Abordagem de rua os encontra porque
são confundidos com o público-alvo deste mecanismo, por fazerem uso de drogas nos
espaços públicos ou por frequentarem os mesmos espaços apropriados por pessoas
9
Os itinerantes têm direito ao atendimento no Albergue Noturno. O tempo máximo de perm anência na instituição é,
apenas, a pernoite (das 17h às 7h). Encerrado o período de estadia, o itinerante recebe a passagem rodoviária,
doada pelo Albergue, para seguir caminho a uma cidade próxima do município, cujos destinos são previamente
selecionados pela administração institucional.
6
que vivem nas ruas.
Muitos tipos de vínculos podem ser produzidos na relação entre pessoas e
espaços, contudo, o tipo específico que é alvo de intervenção institucional é o vínculo
que faz fixar o sujeito na cidade. A intervenção institucional deve ser incisiva para evitar
que, principalmente, os itinerantes se fixem na cidade, através de trabalho (informal ou
formal) e de relações pessoais com a população de rua local. É este laço que deve ser
rapidamente desfeito ou contido para evitar que a população de rua da cidade cresça
gradualmente. De outro modo, uma outra espécie de vínculo é também fortemente
controlada que diz respeito ao laço produzido com o mundo da rua, pensado, segundo
a lógica de classificação operada no CREAS, no limite da indigência, isto é, quando a
rua torna-se o espaço primeiro das relações pessoais e de sobrevivência.
Embora a caracterização de uma população seja uma operação que demanda
grandes esforços para codificar uma variedade de situações em uma categoria
homogênea, a torção implica, a despeito de sua funcionalidade conceitual, em acionar
um conjunto de estratégias que visam, no limite, o controle de pessoas e dos espaços.
b) O olhar de quem vive na rua:
De modo adverso, o vínculo mais fundamental para quem vive nas ruas não é
aquele produzido com a cidade, mas com a rua. Ainda de modo contrastante com a
lógica institucional, a rua, para eles, é um modo de vida, uma forma de produzir
movimento em suas trajetórias. São os movimentos que os deslocam territorial e
existencialmente, e podem ser codificados num sistema classificatório que varia entre
dois pontos fixos: o deslocamento entre territórios e a fixação territorial. Deste modo,
notamos duas categorias que expressam os pontos máximos e mínimos da mobilidade,
demarcando os dois pontos fixos do sistema, que são representados respectivamente
pelos termos trecheiro e pardal.
O trecheiro é aquele que não se fixa por muito tempo numa cidade, vive pingando
(transitando) por trechos de cidades diferentes. Vale notar que trechos são espaços
7
urbanos apropriados pelas pessoas que habitam as ruas nos quais elas pingam 10. Já o
pardal, por ocupar o ponto mínimo da mobilidade nesse sistema classificatório, é aquele
que se fixa num único trecho por um período de tempo mais prolongado. As duas
categorias se constituem a partir do movimento, deste modo, produzem identidades
contrastivas entre aqueles que se deslocam e aqueles que se fixam.
Como não há identidades atreladas aos sujeitos em si, o que produz uma pessoa,
do ponto de vista dos trecheiros e pardais, são os deslocamentos e os respectivos
vínculos feitos e desfeitos nos territórios. É como se as próprias relações que os
atravessam constituíssem suas próprias pessoas 11.
Deste modo, as formas de se pensarem a si mesmos escapam por completo da
lógica populacional. Não há variáveis que possam ser pensadas para este conjunto
específico de pessoas quando o modo de funcionamento destas vidas é avesso aos
modos disciplinares.
Os pontos de convívio: locais de riscos e territórios
O olhar estratégico que é necessário para o mapeamento dos locais de
convivência da população de rua é aquele atento em rastrear as formas de indigências
mais gritantes nos espaços públicos. A Abordagem de rua cumpre o propósito de
mapeamento e prevenção dos riscos 12. A lógica de gestão populacional encontrada na
abordagem se liga a uma tecnologia de geoprocessamento, ainda que de forma muito
embrionária. O princípio nela encontrado é o de associar informações às coordenadas
do mapa, produzindo dados georreferenciados. Os pontos de convívio demarcados no
10
A expressão “pegar um trecho” indica a movimentação pelas ruas, isto é, o deslocamento por trechos de cidades
diferentes. O trecheiro pode pingar de trecho em trecho de modo que neste movimento é possível se deslocar po r
muitos estados brasileiros. Existem muitos casos de trecheiros que estão no trecho há mais de uma década. Para
mais informações sobre os trecheiros ver BROGNOLI (1996) (1999), MARTINEZ (2011).
11
Estudos melanésios , como os realizados por STRATHERN (2006), poderiam servir de modelo comparativo para
pensar os modos de funcionamento do sistema trecheiro. Para reforçar a obsolescência do termo sociedade,
Strathern cunha a noção de socialidade, como uma espécie de matriz relacional. Na socialidade melanésia, a
antropóloga afirma que um indivíduo nunca é apenas um, mas é constituído de múltiplas relações.
12
O conceito de risco, assim como foi utilizado por CASTEL (1987), pode servir como uma ferramenta produtiva para
pensar as estratégias de mapeamento da população de rua. Na perspectiva adotada pelo autor, o modelo de
gestão encontrado nas sociedades pós-disciplinares dispõe de tecnologias sociais que minimizam o impacto direto
das intervenções terapêuticas e, em sentido oposto, ampliam o gerenciamento admini strativo e preventivo de uma
população de risco. Um risco, de acordo com o argumento, não deriva de um perigo preciso ou real, mas de um
cálculo dos fatores que tornam provável a emergência de anomalias ou comportamentos de desvio. Prevenir -se é
antes posicionar-se de forma antecipada diante dos riscos que uma população apresenta.
8
mapa da profissional responsável são como pontos de denúncia dos perigos, são alvos
potenciais onde a gerência institucional deve atuar. A funcionalidade prática da
abordagem, um mecanismo próprio para esquadrinhamento do espaço, permite
produzir, atualizar, controlar e disponibilizar informações de todo o território municipal.
Assim, a rua é entendida pela instituição como o local onde esta população inicia
trajetórias de alcoolismo, vícios, ócio; é todo um universo moralmente inaceitável. Deste
modo, são os vínculos que ligam pessoas com espaços espúrios que devem ser
prontamente desfeitos. Mais do que isso, são práticas adversas às convenções sociais
que são reproduzidas em espaços onde o controle dos riscos é evidentemente feito
porque são espaços gerenciáveis.
Contudo, os pontos de convívio, assim designados na cartografia institucional, não
revelam uma multiplicidade de territórios 13, que são espaços apropriados e construídos
por trecheiros e pardais. Como no espaço público são alvos de muita violência, as pessoas
que habitam as ruas procuram certos lugares que possam lhes servir de abrigo ou de
esconderijo, chamados por eles de mocós. Qualquer casa abandonada, buraco, posto de
gasolina podem tornar-se um mocó. Os pardais e usuários de crack (aqueles que não
têm trajetórias de rua) geralmente ocupam um mocó para passarem a noite escondidos
fumando pedra14, pois dizem que nas ruas podem ser pegos pela polícia. Estes
esconderijos são taticamente avaliados antes de serem ocupados, de modo que os
mocós devem ser, antes de tudo, locais que lhes garantam segurança. Há, ainda,
aqueles que criam e ocupam mocós para servirem como suas habitações, longe do
alcance público. Geralmente constroem seus arranjos com utensílios domésticos
achados nos lixos ou adquiridos em doações.
Para identificar os mocós, a Educadora Social diz ter aprendido a técnica com os
usuários do CREAS. São por tentativas de acertos e erros que a profissional encontra
13
Para Deleuze e Guattari (2002) um território possui uma relação intrínseca com a subjetividade que o delimita,
sendo definido pela emergência de matérias de expressão e não pela função que o território contém, pois a
expressividade é anterior às funções. Os territórios são formados por elementos, investidos e ordenados por um
código externo a eles e estaria ligado a uma ordem de subjetivação individual ou coletiva. Um território surge numa
margem de liberdade dos códigos, como um desvio de finalidades: “Se é verdade que cada meio tem seu código, e
que há incessantemente transcodificação entre os meios, parece que o território, ao contrário, se forma no nível de
certa descodificação” (P.113).
14
Pedra é o termo utilizado para referir-se ao crack.
9
os mocós, já que nunca se sabe se o possível mocó está de fato ocupado. Quando
estão ocupados, é preciso pedir licença antes de entrar no local, como uma forma de
iniciar um contato pacífico.
Outros tipos de territórios são construídos em torno de uma rede de relações que
se cristaliza num espaço determinado, chamado por eles de trecho. As relações
reproduzidas nos trechos são constituídas por uma banca, um conjunto de pessoas
com ou sem trajetória de rua que convivem com uma certa frequência no mesmo local,
negociam um conjunto de códigos de condutas 15 que, por sua vez, delimita os membros
que pertencem e podem conviver naquele espaço. A banca pode continuar existindo no
território onde foi criada mesmo que seus membros sejam constantemente renovados.
Assim, o território permanece com seus códigos de funcionamento particulares sem que
estes códigos dependam de pessoas específicas para serem produzidos. Dito de outro
modo, a banca é sempre o produto da negociação das relações ocorridas num trecho
em particular. Neste sentido, tanto a banca como o trecho estão repletos de uma
subjetividade que os delimitam.
Basta sentar-se junto a uma banca para compartilhar das práticas realizadas em
coletivo (beber pinga, fumar maconha ou pedra), no entanto, não se diz que o sujeito
pertence a ela. O pertencimento a uma banca só ocorre quando se passa a frequentá-la
constantemente e, sobretudo, a seguir as instruções de conduta que são sempre
negociadas entre os frequentadores. Deste modo, para aqueles sujeitos que buscam
fora do espaço privado espaços específicos para o uso de drogas, como são os casos
daqueles que não estão em situação, encontram nas bancas uma dinâmica ideal para
tal prática.
A agente institucional da Abordagem de Rua sabe identificar uma banca porque
seus membros estão quase sempre bebendo pinga em roda. Nas bancas, a Educadora
15
A principal intermediação das relações numa b anca, e que faz com que seus os códigos de funcionamento se
atualizem, ocorre através do respeito. Como uma noção preeminente para a organização das b ancas, o respeito é
uma relação travada entre seus membros que prevê certos comportamentos a serem seguidos, senão o respeito é
quebrado e ocorre a expulsão do membro que não o seguiu. O código respeito pode ser renovado ou negociado
dependendo da configuração que se cria numa b anca, além disso, cada membro deve apreender de forma gradual
e individualmente o código compartilhado, por isso este código aproxima -se mais da noção instrução sobre
conduta, ao invés de estar ligado a uma noção juralista de normas. A noção de instrução sobre conduta é
verificada em estudos prisionais, dos quais destaco a etnografia sobre o proceder, realizada por Adalton Marques
(2009).
10
Social encontra um pouco de tudo: trecheiro, pardal e aqueles que não estão em
situação de rua. A profissional precisa retornar outras vezes à banca para conseguir
identificar o perfil de cada um de seus membros. Muitas vezes é convidada a retornar à
banca mas, nem sempre seus membros aceitam conhecer as instalações do CREAS.
Pensando nos pontos de tensão entre a rua e a instituição, notamos que a
classificação dos atores, importante para a delimitação do público a ser atendido pelo
CREAS, não é uma tarefa fácil a ser realizada durante a abordagem, de modo que há,
sobretudo nas bancas, uma intersecção de atores com trajetórias muito distintas, fato
que dificulta uma formatação do que seria uma suposta população de rua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A lógica de “prevenção e busca ativa”, encontrada tanto na Assistência Social
quanto em outros campos de atuação estatal, parece fazer despontar um novo
dispositivo de gestão da vida (FOUCAULT 1978, 1979). É no encontro (e na tensão)
que a lógica de busca e de mapeamento da Abordagem de Rua é também formada
pela
sua
lógica
correspondente menor: a antidisciplinar. Assim, os serviços
institucionais, sobretudo o caso aqui relatado, estão repletos de pontos de
compartilhamentos mútuos entre a instituição e a rua.
Contudo, são
nas
zonas
de
intersecção
que
prevalece
as formas de
funcionamento dos dois universos em questão. No encontro, a lógica institucional opera
de modo ativo, classifica os atores, delimita seu público restrito de atendimento. É
também na relação entre as duas razões operacionais que os modos de vida de
trecheiros e pardais desconstroem todo o argumento do modelo populacional.
Mas por outro lado, a tensão provocada no encontro sugere que a entrada na rede
institucional é desejada para aqueles que se deixam ser cooptados, mas que, ainda
assim, há táticas para aqueles que preferem manterem-se fora do alcance deste
mecanismo. Contudo, é impossível não dizer que é potente a consolidação de uma
instituição que circula pela cidade à procura de seu público-alvo, cujo alcance é quase
ilimitado. Em verdade, a potência é mesmo grande: uma instituição sem muros que a
cerce.
11
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