III SEMINÁRIO INTERNACIONAL VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS: ILEGALISMOS E LUGARES MORAIS GT 11- Redes Criminais, Dispositivos de Classificação e Punição NOVAS ABORDAGENS DE RUA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MECANISMO DE MAPEAMENTO E CLASSIFICAÇÃO DA POPULAÇÃO DE RUA MARIANA MEDINA MARTINEZ UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS Apresentação O objetivo deste texto é apresentar o ponto de encontro (e de tensão) entre as práticas de usos dos espaços públicos realizadas pelas pessoas que habitam as ruas, que são como práticas antidisciplinares (DE CERTEAU 1998), e a política de gestão dos espaços urbanos na cidade de São Carlos/SP. Mais precisamente, relato sobre um dispositivo novo da Política de Assistência Social chamado Abordagem de Rua, aqui tratado como um mecanismo de controle e mapeamento dos espaços públicos. É esta fronteira de tensão entre duas lógicas em relação (uma antidisciplinar e a outra de gestão dos ilegalismos1) que me interessa em particular para realizar alguns desdobramentos etnográficos e teóricos neste texto. Escolhi apresentar a problemática da gestão dos ilegalismos a partir da Abordagem de Rua, ao invés de tratá-la do ponto de vista das pessoas que vivem nas ruas, pois a intenção é investigar o encontro e a relação entre duas lógicas em tensão. Meu intuito é produzir uma etnografia do encontro entre os agentes institucionais e o público-alvo desta política. A ideia é compreender a lógica de mapeamento da população de rua, do ponto de vista dos profissionais, e entender, a partir deste olhar, como a rua é compreendida pelos gestores. Dito de outro modo, seria preciso entender como a rua é pensada a partir da lógica de gestão do espaço urbano. Contudo, pretendo demonstrar como a lógica de quem vive nas ruas contrasta com sua lógica correspondente e, assim, problematiza as categorias institucionais. Partindo do pressuposto que a rua apresenta modos de pensamentos contrastantes com as práticas governamentais, o deslocamento que ela oferece nos serve de instrumento analítico para interrogar, por vias quase que exóticas, a forma como são pensadas as pessoas em situação de rua, e, sobretudo, para desnaturalizar a noção de população. 1 A noção de ilegalismo, exposta na obra Vigiar e Punir [1975] de Michel Foucault, traz uma nova discussão sobre o par legal/ilegal. A “gestão dos ilegalismos”, para utilizar o termo que o próprio autor propõe, faz alusão ao modo como a aplicação das leis em casos de transgressão operam na administração e produção da delinquência. A gestão das transgressões é uma espécie de economia da ilegalidade. 2 A instituição abordando a rua A Abordagem de rua é mecanismo novo previsto no escopo de implementação do CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) 2, instituição onde fiz parte da etnografia aqui apresentada 3. O serviço é caracterizado pelo deslocamento dos agentes institucionais para a abordagem à população de rua em vias públicas. É também definido como um serviço de prevenção e busca ativa (MDS, CREAS - Guia de Orientação: s/d). Portanto, neste modelo observamos um padrão novo de intervenção institucional baseado na busca contínua pelo seu público-alvo, através do qual é possível mapear os locais de riscos e ampliar o atendimento assistencial para além de suas instalações. No CREAS da cidade de São Carlos, a abordagem é realizada por uma Educadora Social através de uma ronda pela cidade, juntamente com o motorista do veículo, cujo objetivo é mapear os principais pontos por onde a população de rua costuma transitar, abordá-la em seus locais de convivência e realizar a criação de vínculos4 (entre a instituição e a população de rua) em ambientes extrainstitucionais. Na parede de seu escritório, a Educadora Social responsável pelo serviço pendura um grande mapa da cidade, onde demarca, com tarraxas de mural, a distribuição dos pontos de convívio5 da população de rua de São Carlos, previamente fixados graças às rondas pela cidade. O retorno aos locais pré-marcados ocorre semanalmente. Os pontos identificados são praças, rodoviária, estação ferroviária e alguns bairros 2 O CREAS é uma unidade pública estatal de prestação de serviços de proteção social especial de alta complexidade. Trata-se de um modelo novo de gestão pública municipal que atende sujeitos que já tiveram seus vínculos familiares e comunitários rompidos. O CREAS de São Carlos tem o atendimento exclusivo à população de rua da cidade. Vinculado às orientações da nova Política Nacional de Assistência Social – PNAS (2004) e o Sistema Único de Assistência Social – SUAS (2005), o CREAS foi implementado sob os parâmetros deste modelo de gestão, porém, é uma iniciativa assumida pelo município. Existem apenas algumas unidades de CREAS em todo o Brasil que tem o atendimento exclusivo à população de rua. 3 Durante o período do Mestrado a pesquisa de campo foi realizada em duas etapas. A primeira delas consistiu em investigar o CREAS, com o intuito de entrar nos ambientes institucionais de atendimento à população de rua. Posteriormente, fiz uma etnografia nas ruas, junto à população de rua em seus locais de convívio. 4 Embora o termo vínculo seja comum também no campo da Saúde Mental, não cabe aqui tentar realizar aproximações. No caso do atendimento à população de rua, realizado no CREAS, o vínculo é pensado como uma relação na qual o profissional cria um laço com o usuário, permitindo que a equipe profissional possa futuramente atuar num plano de intervenção que tem como finalidade última a ressocialização do sujeito. Sobre o vínculo na Saúde mental, sugiro SARTORI, Lecy (2010). 5 O termo ponto de convívio cumpre na Abordagem de Rua uma função estritamente estratégica que diz respeito ao rastreamento dos locais ocupados pelas pessoas que vivem nas ruas. Não são consideradas, deste ponto de vista, a diferenciação dos territórios produzidos nas ruas que, como veremos em seguida, podem ser territórios de um único sujeito ou de vários deles, podem ser arranjos habitacionais ou esconderijos. 3 domiciliares, somando, atualmente, oito pontos de convívio 6 da população de rua. As visitas frequentes aos mesmos lugares são necessárias porque que uma série infortúnios acompanha sua rotina de trabalho. Quando os locais parecem ter sidos desocupados, a agente institucional deve averiguar a desocupação retornando diversas vezes. Quando o ponto é, de fato, desocupado, cabe a agente partir em busca de pistas para saber se o abandono é efetivo ou se ocorreu a migração deste ponto para outro local. Em outras ocasiões, a Educadora Social identifica os moradores de rua nos pontos mas não os aborda porque estão envolvidos em brigas ou discussões entre eles, fato corriqueiro na rotina da abordagem. Quando encontra os moradores de rua em seus territórios, o motorista estaciona o veículo e a agente vai ao encontro deles. Se o ponto identificado já foi visitado em outras ocasiões, a profissional conversa por alguns minutos para saber se querem algum tipo de ajuda. No contexto do projeto institucional, a assistência oferecida nas ruas é pensada nas seguintes formas: a requisição de novos documentos, o agendamento de consultas médicas, o atendimento psicológico, o contato com os familiares do abordado. Oferecer os serviços do CREAS em ambientes extrainstitucionais é uma estratégia defendida pela equipe para estabelecer uma relação de confiança entre o profissional e a população de rua, algo fundamental para a aproximação com seu público. O atendimento na rua é entendido pela equipe profissional como uma forma de conceder direitos a toda à população de rua, e não apenas àqueles entram no serviço. Contudo, o objetivo principal da abordagem é estabelecer uma relação de confiança que posteriormente poderá ser transformada em vínculo institucional, isto é, transformar o morador de rua em usuário7 do CREAS. Identificando os perfis: da diversidade das ruas à unidade da população Na abordagem inicial devem ser feitas algumas perguntas que permitam ao 6 Os dados apresentados neste texto foram colhidos durante uma entrevi sta com a Educadora Social responsável pela Abordagem de Rua realizada em Abril de 2011. 7 Na Política Nacional de Assistência Social (2004) o termo usuário é referido para caracterizar o público -alvo dos serviços prestados pelo governo. Constitui-se o público usuário de Assistência Social cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos. A transformação do abordado em usuário indica a formação do vinculo que o permitiu entrar na rede e a aplicação de planos de ressocialização ao mesmo. 4 profissional colher os principais dados sobre o sujeito abordado: o nome, a idade, o tempo que está na rua, os vínculos familiares e sua cidade de origem. A partir destas informações colhidas, o abordado pode ser classificado pela profissional de três formas: a) população de rua da cidade; b) itinerante; c) sujeito que não está em situação de rua. Os três perfis identificados diferenciam-se pelo tipo de vínculo que o sujeito estabelece com a cidade, sendo este o principal critério para a classificação da população de rua. Tendo em vista que a abrangência do atendimento institucional é restrita ao município, o CREAS deve, de acordo com suas diretrizes, ofertar o serviço apenas à população de rua local. Para tanto, a instituição deveria criar um critério de classificação da população de rua da cidade (grifos meus)8, cujo perfil passa a ser formalmente designado como seu público referenciado. Assim, teriam direito aos serviços apenas àqueles que possuem um vínculo mais duradouro com o município, de modo que os itinerantes recém-chegados, por terem um vínculo ainda frágil, não são contabilizados como parte da população local. A classificação da população de rua baseia-se, como já vimos, no tipo de vínculo que a pessoa produz com a cidade, tendo como plano teórico de fundo os parâmetros de classificação encontrados no estudo de Vieira et all (1992), a partir do qual a situação de rua é pensada de acordo com os seguintes parâmetros: ficar na rua, estar na rua e ser da rua. Segundo os dados apresentados neste estudo, e utilizados no CREAS como parâmetro de classificação, ficar na rua indica os casos mais recentes de situação de rua; o estar na rua indica os casos de sujeitos que começam a estabelecer relações com pessoas de rua e adotam novas estratégias de sobrevivência; o ser da rua indica um tempo de rua mais prolongado, neste sentido, a rua torna-se seu espaço de relações pessoais, de trabalho e de obtenção de recursos. A identificação do perfil do abordado ocorre quando a profissional consegue colher as informações necessárias mas, para isso, é preciso voltar no local diversas vezes. A Educadora Social ressalta que o contato inicial deve ser bastante ameno, por isso a 8 Os grifos são necessários para demarcar a formulação de um critério que é elementar na delimitação do público com direito ao atendimento do CREAS, baseado em uma restrição territorial. Os itinerantes por não estarem fixados numa única cidade não têm direito ao atendimento. Como estes não são considerados população de rua da cidade, deixa-se subentendido que os itinerantes não fazem parte da demanda dos serviços. 5 oferta dos serviços institucionais serve como uma forma de aproximação. A estratégia de abordagem inicial é importante para estabelecer aos poucos uma relação de confiança, elementar na construção do vínculo institucional. Embora os parâmetros de classificação pareçam operar como representações estanques dos perfis encontrados numa população, o encontro provocado pela Abordagem de Rua coloca à prova os modos como se têm pensado a rua a partir do modelo populacional. Os contrastes visíveis entre as duas lógicas permitem confrontar também no plano analítico os seus respectivos modos de funcionamento. Verificaremos em seguida, a partir de um recorte específico centrado nos modos de produção de vínculos, como poderão ser pensados os contrastes entre a instituição e a rua. a) O olhar da gestão: Como vimos acima, o vínculo estabelecido com a cidade é o principal critério para a delimitação da população em questão. Teriam direito ao atendimento institucional apenas a população de rua da cidade: aqueles que possuem familiares ou já estão há bastante tempo em São Carlos mas que tiveram os vínculos comunitários ou de parentesco rompidos. Por sua vez, os itinerantes, em menor quantidade nas contagens, são aqueles que não possuem nenhum tipo de vínculo com a cidade já que estão apenas de passagem. Embora sejam sempre abordados pelo serviço, os itinerantes devem ser acompanhados pela agente institucional apenas para que sua estadia no município seja controlada9. O terceiro perfil identificado pela abordagem é contemplado por aqueles que não estão em situação de rua, possuem familiares na cidade mas não romperam seus vínculos mais elementares. Este último é entendido como um perfil de risco que, embora não esteja exatamente no perfil populacional esperado, pode vir a se tornar parte da população de rua da cidade. A Abordagem de rua os encontra porque são confundidos com o público-alvo deste mecanismo, por fazerem uso de drogas nos espaços públicos ou por frequentarem os mesmos espaços apropriados por pessoas 9 Os itinerantes têm direito ao atendimento no Albergue Noturno. O tempo máximo de perm anência na instituição é, apenas, a pernoite (das 17h às 7h). Encerrado o período de estadia, o itinerante recebe a passagem rodoviária, doada pelo Albergue, para seguir caminho a uma cidade próxima do município, cujos destinos são previamente selecionados pela administração institucional. 6 que vivem nas ruas. Muitos tipos de vínculos podem ser produzidos na relação entre pessoas e espaços, contudo, o tipo específico que é alvo de intervenção institucional é o vínculo que faz fixar o sujeito na cidade. A intervenção institucional deve ser incisiva para evitar que, principalmente, os itinerantes se fixem na cidade, através de trabalho (informal ou formal) e de relações pessoais com a população de rua local. É este laço que deve ser rapidamente desfeito ou contido para evitar que a população de rua da cidade cresça gradualmente. De outro modo, uma outra espécie de vínculo é também fortemente controlada que diz respeito ao laço produzido com o mundo da rua, pensado, segundo a lógica de classificação operada no CREAS, no limite da indigência, isto é, quando a rua torna-se o espaço primeiro das relações pessoais e de sobrevivência. Embora a caracterização de uma população seja uma operação que demanda grandes esforços para codificar uma variedade de situações em uma categoria homogênea, a torção implica, a despeito de sua funcionalidade conceitual, em acionar um conjunto de estratégias que visam, no limite, o controle de pessoas e dos espaços. b) O olhar de quem vive na rua: De modo adverso, o vínculo mais fundamental para quem vive nas ruas não é aquele produzido com a cidade, mas com a rua. Ainda de modo contrastante com a lógica institucional, a rua, para eles, é um modo de vida, uma forma de produzir movimento em suas trajetórias. São os movimentos que os deslocam territorial e existencialmente, e podem ser codificados num sistema classificatório que varia entre dois pontos fixos: o deslocamento entre territórios e a fixação territorial. Deste modo, notamos duas categorias que expressam os pontos máximos e mínimos da mobilidade, demarcando os dois pontos fixos do sistema, que são representados respectivamente pelos termos trecheiro e pardal. O trecheiro é aquele que não se fixa por muito tempo numa cidade, vive pingando (transitando) por trechos de cidades diferentes. Vale notar que trechos são espaços 7 urbanos apropriados pelas pessoas que habitam as ruas nos quais elas pingam 10. Já o pardal, por ocupar o ponto mínimo da mobilidade nesse sistema classificatório, é aquele que se fixa num único trecho por um período de tempo mais prolongado. As duas categorias se constituem a partir do movimento, deste modo, produzem identidades contrastivas entre aqueles que se deslocam e aqueles que se fixam. Como não há identidades atreladas aos sujeitos em si, o que produz uma pessoa, do ponto de vista dos trecheiros e pardais, são os deslocamentos e os respectivos vínculos feitos e desfeitos nos territórios. É como se as próprias relações que os atravessam constituíssem suas próprias pessoas 11. Deste modo, as formas de se pensarem a si mesmos escapam por completo da lógica populacional. Não há variáveis que possam ser pensadas para este conjunto específico de pessoas quando o modo de funcionamento destas vidas é avesso aos modos disciplinares. Os pontos de convívio: locais de riscos e territórios O olhar estratégico que é necessário para o mapeamento dos locais de convivência da população de rua é aquele atento em rastrear as formas de indigências mais gritantes nos espaços públicos. A Abordagem de rua cumpre o propósito de mapeamento e prevenção dos riscos 12. A lógica de gestão populacional encontrada na abordagem se liga a uma tecnologia de geoprocessamento, ainda que de forma muito embrionária. O princípio nela encontrado é o de associar informações às coordenadas do mapa, produzindo dados georreferenciados. Os pontos de convívio demarcados no 10 A expressão “pegar um trecho” indica a movimentação pelas ruas, isto é, o deslocamento por trechos de cidades diferentes. O trecheiro pode pingar de trecho em trecho de modo que neste movimento é possível se deslocar po r muitos estados brasileiros. Existem muitos casos de trecheiros que estão no trecho há mais de uma década. Para mais informações sobre os trecheiros ver BROGNOLI (1996) (1999), MARTINEZ (2011). 11 Estudos melanésios , como os realizados por STRATHERN (2006), poderiam servir de modelo comparativo para pensar os modos de funcionamento do sistema trecheiro. Para reforçar a obsolescência do termo sociedade, Strathern cunha a noção de socialidade, como uma espécie de matriz relacional. Na socialidade melanésia, a antropóloga afirma que um indivíduo nunca é apenas um, mas é constituído de múltiplas relações. 12 O conceito de risco, assim como foi utilizado por CASTEL (1987), pode servir como uma ferramenta produtiva para pensar as estratégias de mapeamento da população de rua. Na perspectiva adotada pelo autor, o modelo de gestão encontrado nas sociedades pós-disciplinares dispõe de tecnologias sociais que minimizam o impacto direto das intervenções terapêuticas e, em sentido oposto, ampliam o gerenciamento admini strativo e preventivo de uma população de risco. Um risco, de acordo com o argumento, não deriva de um perigo preciso ou real, mas de um cálculo dos fatores que tornam provável a emergência de anomalias ou comportamentos de desvio. Prevenir -se é antes posicionar-se de forma antecipada diante dos riscos que uma população apresenta. 8 mapa da profissional responsável são como pontos de denúncia dos perigos, são alvos potenciais onde a gerência institucional deve atuar. A funcionalidade prática da abordagem, um mecanismo próprio para esquadrinhamento do espaço, permite produzir, atualizar, controlar e disponibilizar informações de todo o território municipal. Assim, a rua é entendida pela instituição como o local onde esta população inicia trajetórias de alcoolismo, vícios, ócio; é todo um universo moralmente inaceitável. Deste modo, são os vínculos que ligam pessoas com espaços espúrios que devem ser prontamente desfeitos. Mais do que isso, são práticas adversas às convenções sociais que são reproduzidas em espaços onde o controle dos riscos é evidentemente feito porque são espaços gerenciáveis. Contudo, os pontos de convívio, assim designados na cartografia institucional, não revelam uma multiplicidade de territórios 13, que são espaços apropriados e construídos por trecheiros e pardais. Como no espaço público são alvos de muita violência, as pessoas que habitam as ruas procuram certos lugares que possam lhes servir de abrigo ou de esconderijo, chamados por eles de mocós. Qualquer casa abandonada, buraco, posto de gasolina podem tornar-se um mocó. Os pardais e usuários de crack (aqueles que não têm trajetórias de rua) geralmente ocupam um mocó para passarem a noite escondidos fumando pedra14, pois dizem que nas ruas podem ser pegos pela polícia. Estes esconderijos são taticamente avaliados antes de serem ocupados, de modo que os mocós devem ser, antes de tudo, locais que lhes garantam segurança. Há, ainda, aqueles que criam e ocupam mocós para servirem como suas habitações, longe do alcance público. Geralmente constroem seus arranjos com utensílios domésticos achados nos lixos ou adquiridos em doações. Para identificar os mocós, a Educadora Social diz ter aprendido a técnica com os usuários do CREAS. São por tentativas de acertos e erros que a profissional encontra 13 Para Deleuze e Guattari (2002) um território possui uma relação intrínseca com a subjetividade que o delimita, sendo definido pela emergência de matérias de expressão e não pela função que o território contém, pois a expressividade é anterior às funções. Os territórios são formados por elementos, investidos e ordenados por um código externo a eles e estaria ligado a uma ordem de subjetivação individual ou coletiva. Um território surge numa margem de liberdade dos códigos, como um desvio de finalidades: “Se é verdade que cada meio tem seu código, e que há incessantemente transcodificação entre os meios, parece que o território, ao contrário, se forma no nível de certa descodificação” (P.113). 14 Pedra é o termo utilizado para referir-se ao crack. 9 os mocós, já que nunca se sabe se o possível mocó está de fato ocupado. Quando estão ocupados, é preciso pedir licença antes de entrar no local, como uma forma de iniciar um contato pacífico. Outros tipos de territórios são construídos em torno de uma rede de relações que se cristaliza num espaço determinado, chamado por eles de trecho. As relações reproduzidas nos trechos são constituídas por uma banca, um conjunto de pessoas com ou sem trajetória de rua que convivem com uma certa frequência no mesmo local, negociam um conjunto de códigos de condutas 15 que, por sua vez, delimita os membros que pertencem e podem conviver naquele espaço. A banca pode continuar existindo no território onde foi criada mesmo que seus membros sejam constantemente renovados. Assim, o território permanece com seus códigos de funcionamento particulares sem que estes códigos dependam de pessoas específicas para serem produzidos. Dito de outro modo, a banca é sempre o produto da negociação das relações ocorridas num trecho em particular. Neste sentido, tanto a banca como o trecho estão repletos de uma subjetividade que os delimitam. Basta sentar-se junto a uma banca para compartilhar das práticas realizadas em coletivo (beber pinga, fumar maconha ou pedra), no entanto, não se diz que o sujeito pertence a ela. O pertencimento a uma banca só ocorre quando se passa a frequentá-la constantemente e, sobretudo, a seguir as instruções de conduta que são sempre negociadas entre os frequentadores. Deste modo, para aqueles sujeitos que buscam fora do espaço privado espaços específicos para o uso de drogas, como são os casos daqueles que não estão em situação, encontram nas bancas uma dinâmica ideal para tal prática. A agente institucional da Abordagem de Rua sabe identificar uma banca porque seus membros estão quase sempre bebendo pinga em roda. Nas bancas, a Educadora 15 A principal intermediação das relações numa b anca, e que faz com que seus os códigos de funcionamento se atualizem, ocorre através do respeito. Como uma noção preeminente para a organização das b ancas, o respeito é uma relação travada entre seus membros que prevê certos comportamentos a serem seguidos, senão o respeito é quebrado e ocorre a expulsão do membro que não o seguiu. O código respeito pode ser renovado ou negociado dependendo da configuração que se cria numa b anca, além disso, cada membro deve apreender de forma gradual e individualmente o código compartilhado, por isso este código aproxima -se mais da noção instrução sobre conduta, ao invés de estar ligado a uma noção juralista de normas. A noção de instrução sobre conduta é verificada em estudos prisionais, dos quais destaco a etnografia sobre o proceder, realizada por Adalton Marques (2009). 10 Social encontra um pouco de tudo: trecheiro, pardal e aqueles que não estão em situação de rua. A profissional precisa retornar outras vezes à banca para conseguir identificar o perfil de cada um de seus membros. Muitas vezes é convidada a retornar à banca mas, nem sempre seus membros aceitam conhecer as instalações do CREAS. Pensando nos pontos de tensão entre a rua e a instituição, notamos que a classificação dos atores, importante para a delimitação do público a ser atendido pelo CREAS, não é uma tarefa fácil a ser realizada durante a abordagem, de modo que há, sobretudo nas bancas, uma intersecção de atores com trajetórias muito distintas, fato que dificulta uma formatação do que seria uma suposta população de rua. CONSIDERAÇÕES FINAIS A lógica de “prevenção e busca ativa”, encontrada tanto na Assistência Social quanto em outros campos de atuação estatal, parece fazer despontar um novo dispositivo de gestão da vida (FOUCAULT 1978, 1979). É no encontro (e na tensão) que a lógica de busca e de mapeamento da Abordagem de Rua é também formada pela sua lógica correspondente menor: a antidisciplinar. Assim, os serviços institucionais, sobretudo o caso aqui relatado, estão repletos de pontos de compartilhamentos mútuos entre a instituição e a rua. Contudo, são nas zonas de intersecção que prevalece as formas de funcionamento dos dois universos em questão. No encontro, a lógica institucional opera de modo ativo, classifica os atores, delimita seu público restrito de atendimento. É também na relação entre as duas razões operacionais que os modos de vida de trecheiros e pardais desconstroem todo o argumento do modelo populacional. Mas por outro lado, a tensão provocada no encontro sugere que a entrada na rede institucional é desejada para aqueles que se deixam ser cooptados, mas que, ainda assim, há táticas para aqueles que preferem manterem-se fora do alcance deste mecanismo. Contudo, é impossível não dizer que é potente a consolidação de uma instituição que circula pela cidade à procura de seu público-alvo, cujo alcance é quase ilimitado. Em verdade, a potência é mesmo grande: uma instituição sem muros que a cerce. 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. 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