ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI E EDUCADORES SOCIAIS: QUESTÕES PARA A PEDAGOGIA SOCIAL E PARA A FORMAÇÃO DE EDUCADORES SOCIAIS. Emerson Zoppei Faculdade de Educação/USP – Doutorando Email: [email protected] Este trabalho faz parte da dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2004 intitulada “O itinerário das passagens: a lição do (des)encontro entre adolescentes e educadores sociais no Fórum da Vara Infância e da Juventude/Brás da cidade de São Paulo”, na qual eu analiso as relações sociopedagógicas possíveis entre educadores sociais e adolescentes no projeto “Olha o menino” nos anos 2000 e 2001. O objetivo dessa comunicação é cotejar algumas passagens dessa dissertação e analisá-las a partir do referencial da Pedagogia Social em construção no Brasil na expectativa de contribuir com o debate, que está posto nessa área, sobre a teorização das práticas socioeducativas e a formação dos educadores sociais. PROJETO OLHA O MENINO. ORIGEM. Em julho de 2000 o grupo, então já denominado “Olha o Menino”, em parceria com o ILANUD/São Paulo e com a PAJ (Procuradoria de Assistência judiciária – Área da Infância e da Juventude) firma um convênio com a FEBEM/SP1 (Fundação do BemEstar do Menor/SP) e começa a executar um projeto de atendimento a adolescentes e seus responsáveis na Vara da Infância e da Juventude (Brás/SP) nas fases de conhecimento do processo legal (Oitiva e Audiências no Fórum) e de execução da 1 As siglas das unidades da antiga FEBEM/SP seguirão a nomenclatura da época. medida socioeducativa visando à garantia e a efetivação dos direitos preconizados no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). ÁREA DE ATUAÇÃO. Para compreender melhor a forma como se dá o atendimento, faz-se necessário compreender o percurso que o adolescente percorre quando da prática do ato infracional: 1ª. - Na delegacia de polícia, elabora-se o BO (Boletim de Ocorrência). Dependendo da gravidade do delito, o adolescente é encaminhado à UAI (Unidade de Atendimento Inicial/FEBEM); senão, ele é liberado para a casa, acompanhado dos responsáveis. No dia seguinte, deve comparecer ao Fórum; 2ª. – se não foi liberado, ele é encaminhado à UAI. Os funcionários administrativos fazem o seu cadastro e, em seguida, ele é entrevistado por técnicos da FEBEM. Esse relatório e o cadastro inicial são anexados ao BO e encaminhados ao MP (Ministério Público) no Fórum; 3ª. - no Fórum, o adolescente passa pela oitiva informal com o promotor, caso ele seja formalmente acusado do ato, ele também passará pela audiência. Após a audiência, ele receberá a sentença. Todo esse processo dura até 45 dias. Em alguns casos, o adolescente aguarda a sentença nas UIP’s (Unidade de Internação Provisória); 4ª. – recebimento ou não de alguma medida socioeducativa. O projeto “Olha o Menino” acompanhava os adolescentes desde a sua entrada na UAI até o cumprimento da medida socioeducativa, principalmente, a de internação nas UE’s (unidades educacionais). A atuação era feita de forma interdisciplinar com equipes de advogados e estagiários do Direito, estudantes de psicologia e educadores sociais. Consistia na orientação e no acompanhamento dos adolescentes, intermediandoos e aproximando-os dos procuradores, promotores, juízes e equipes técnicas da FEBEM. OS ATENDIMENTOS DAS EQUIPES. No período da manhã, a equipe do Direito, que estava na UAI, recebia da FEBEM as cópias dos BO’s e os relatórios dos adolescentes que seriam apresentados ao MP no período da tarde. Após a leitura, a equipe chamava-os para o atendimento, que consistia, primeiramente, no esclarecimento das dúvidas sobre o processo, e, depois, na coleta de informações sobre o adolescente no intuito de compreender a sua história de vida e ajudá-los em suas defesas. Essas informações eram repassadas para a outra equipe do direito no Fórum2. A equipe lia os relatórios e orientava os responsáveis presentes. Em seguida, relatava as informações que dispunham ao Procurador que faria a defesa dos adolescentes. As outras equipes complementavam esse trabalho. A equipe de Psicologia atendia grupos de adolescentes nas UIP’s com o objetivo de dar-lhes suporte enquanto aguardavam a sentença. Discutiam-se temas como a família, a vida infracional, a internação provisória e o projeto de vida3. As informações obtidas eram discutidas com a equipe técnica da unidade, a fim de enriquecer o relatório de acompanhamento psicosocial do adolescente feito por essa equipe. Este relatório era, muitas vezes, utilizado tanto pelos procuradores como instrumento de defesa quanto pelos promotores e juízes. Os educadores sociais atendiam, prioritariamente, aqueles que viviam em situação de rua ou usuários de drogas ilícitas ou que não tinham respaldo sóciofamiliar4. A situação de vulnerabilidade individual e social desses adolescentes, principalmente nos dois primeiros casos, era um fator que contribuía na reincidência das infrações e, em alguns casos, poderia tornar-se motivo de internação. EDUCADORES SOCIAIS5 O Fórum era o espaço de referência da atuação dessa equipe, porém ela se desdobrava para outros: as UIPs, as Unidades de internação, as unidades de Semiliberdade, as casas dos familiares, as ruas da cidades de São Paulo (para aqueles que viviam em situação de rua), as entidades sociais para futuros encaminhamentos dos adolescentes e familiares: tratamento à drogadição, profissionalização, arte e cultura, apoio psicológico, apoio às vítimas de violência doméstica etc. 2 As oitivas informais e audiências ocorriam no período da tarde. Como o foco deste trabalho é a Educação Social, não se discutirá a atuação dessas outras equipes. 4 Esses adolescentes eram identificados pela equipe do direito na UAI. 5 Entende-se por Educação Social: “todos aqueles processos educativos que compartilham, no mínimo, dois dos três seguintes atributos: a) dirigem-se prioritariamente ao desenvolvimento da sociabilidade dos sujeitos; b) têm como destinatários privilegiados indivíduos ou grupos em situação e conflito social; c) têm lugar em contextos ou por meios educativos” (Trilla, 2003 : 28). 3 No Fórum, não havia um lugar ou uma sala para o atendimento. Tudo era feito no corredor, um espaço ENTRE: entre as salas da promotoria, dos juízes, do recâmbio e da FEBEM. Daí o uso da expressão “ITINERÁRIO DA PASSAGEM” para representar esse lócus da relação sociopedagógica. Esses espaços ENTRE seriam espaços produtores de formas de ser e existir que, paulatinamente, são introjetadas pelos adolescentes nesse ir e vir, como, por exemplo, a forma de ser e existir do menino de rua - para aqueles que vivem em situação de rua; a do “menor” – para aqueles que cometem ato infracional; a do filho abandonado e/ou de família desestruturada – para aqueles que vivem em situações “conflituosas” com as famílias de origem. Pode-se dizer que há um intenso processo de fabricação de modos de existir nesses espaços ENTRE. Vejamos como esse processo podia se revelar6. Com os papéis prontos, a transferência da delegacia para a UAI podia ser feita. Na entrada, havia um balcão que impedia a passagem de todos. Como uns e outros não são iguais no Brasil, e toda diferença é transformada em desigualdade, compreender, desde já, o lugar de “um” e do “outro” era a primeira lição a ser aprendida. Logo, para o “um”, levantava-se o balcão. Já para o “outro”, mandava-se passar por baixo. “esse é um tipo de sociabilidade que não constrói a alteridade, mas apenas o espelho no qual a superioridade do ego se vê confirmada. É isso que neutraliza a dimensão moral inscrita nas relações sociais, pois não há propriamente o que julgar, o que escolher, não há o problema do justo e do injusto, a regra não está sujeita ao questionamento e existe apenas para confirmar o lugar de cada um na ordem natural das coisas”. (Telles, 2001, p.65) Inseridos, imediatamente, eles tinham que aprender como andar: mãos para trás e de cabeça baixa. E a dizer: “sim, senhor(a)”, “não, senhor(a)”. Em algumas oitivas informais, ouvia-se, de alguns promotores quanto estavam com os adolescentes, a palavra “DENADAI”. Isso era uma forma de dizer que eles seriam internados provisoriamente7. 6 Ver também: (Oliveira, 1996 e 1999); (Ota, 2002) e (Miraglia, 2001). DENADAI era o nome da empresa que fornecia o marmitex nas Unidades de Internação Provisória da FEBEM. 7 As famílias também sofriam esses processos de construção de identidade, principalmente, aquelas de “família incompetente” e de “família desestruturada”. Diante desse quadro, a preocupação da equipe dos educadores sociais era sempre instigar, no adolescente e nos responsáveis, a desconstrução desse discurso “pronto”, para que eles pudessem perceber e se conscientizar tanto da sua história de vida quanto vislumbrar outros caminhos ou perspectivas de vida que não sejam aqueles já prescritos naquelas identidades. RELATOS DE ATENDIMENTOS. Atendimento 1. – escrito por mim. Num certo dia, D. Maria8, mãe de um adolescente, procurou, no fórum, a educadora. Eu presenciei o atendimento. O seu filho estava internado provisoriamente na FEBEM e, naquele dia, passaria pela audiência de apresentação com o juiz. Ela chegou atrasada, quase no fim da tarde. Não pôde ver o filho, pois ele já tinha retornado à FEBEM. Ela também não pôde falar com Juiz, Promotor e Procurador. Ela não sabia o que tinha acontecido com o filho, pois, como morava na rua, não tinha “endereço fixo” (embora ela e o filho tivessem se fixado embaixo de um viaduto muito famoso em São Paulo - o “minhocão”), a polícia não a encontrou. Diante dessa situação, a educadora conversou com o adolescente e, com as informações, ela encontrou a mãe e informou-a sobre o dia da audiência. Chegou atrasada? “Mãe relapsa!!!”, recriminariam os mais afoitos. Não. Ela se explicou ... Aliás, explicar-se é quase um dever para muitas dessas pessoas com as quais a gente trabalha. Viver, nesses casos, é estar na berlinda – legalidade/ilegalidade, logo, é estar num julgamento ou pré-julgamento constantemente. A desconfiança existe. A honestidade precisa ser demonstrada. A explicação: ninguém poderia tomar conta dos seus pertences. Caso contrário, ela adicionaria a sua lista de “faltas” outro item: o de ser uma ”sem-teto”. Ao vê-la com um vestido comprido e uma blusa, lembrei-me imediatamente de uma personagem do conto “Soroco, sua mãe, sua filha” de Guimarães Rosa: “Ele [Soroco] hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua 8 Todos os nomes são fictícios. Os relatos foram extraídos da dissertação. roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso” (Rosa, 1994: 398). Com certeza, ela vestia a sua melhor roupa, humildosa. Combinava? Pelas regras da etiqueta, não. Importa realmente? Estar diante do juiz é coisa séria. Precisa demonstrar (ou explicar-se) humildemente que é digna, que o seu filho também o é, etc. Intimamente, gostaria de dizer em alto e bom som: “Este é o meu filho! Ele tem mãe! Ele tem família!” Estes instantes alongaram-se indefinidamente para mim. Imaginei todo o seu preparativo. A escolha da roupa. Cada peça, um pensamento, uma angústia. “Mas quem ficará cuidando das minhas coisas? Ah!!, fulano chegou. Eu já volto, tá? Possibilidades??? Perder novamente o filho (?). Seus braços estavam limpos. Sua face também. A limpeza em sua polissemia: uma semântica para dizer quem é quem neste aparecer social. Um pequeno detalhe se mostrou. D. Maria se esqueceu de limpar a nuca. Uma faixa de sujeira, revelações e significações que estavam para além da higiene pessoal. Era uma marca dos seus dramas e tramas pessoais e sociais inscritos no próprio corpo. O corpo aparece como suporte de símbolos que dialetizam relações de ordem e desordem. Atendimento 2. Escrito pela educadora CARLA 16/10/00 - A princípio achei que Carla comportava-se como qualquer adolescente de sua idade: inconsequente atrevida. Mas por trás de sua desinibição surgiram, após a conversa, tristeza e desesperança muito marcantes. Toda história que contava trazia sua sensação de abandono. Falava coisas como: “eu só dependo de mim, nunca tive quem olhasse por mim.” Falamos sobre seu imediatismo e da importância de estar viva, apesar de todas adversidades por que tivesse passado. Falei-lhe de sua força e de como isso era importante. Uma frase foi marcante: “A única coisa de que me arrependo foi de ter nascido”. Carla não quer fazer contato com a família, diz não conhecer sua mãe. A única pessoa de quem fala bem é sua sogra. Carla foi detida com o namorado e por isso conversamos também sobre a validade dessa relação. A cada momento Carla dizia uma coisa sobre isso. Falava de como gostava dele e depois descrevia brigas. Dizia-se magoada pelo fato dele tê-la metido naquela situação, mas achava que poderia ter escolhido e não foi obrigada, por isso devia segurar as pontas. A relação com sua sogra parece ser muito forte, Carla quer defendê-la de tudo e todos. Há ainda o fato de Carla estar grávida. Diz que quer criar seu filho em paz e não vai abandoná-lo como foi abandonada, mas descreve situações em que põem sua vida e a do bebê em risco. Saí do recâmbio prometendo voltar para dizer o que aconteceria com ela, mas não tive tempo. Quando Carla passou pelo corredor, eu estava conversando com Emerson. Ela virou-se e parece ter feito questão de voltar-se para trás e mostrar sua decepção. Seu olhar forte me deixou desconcertada. 26/10/00 - Eu dizia a Carla que tínhamos em comum a impaciência e a petulância, já que agora não acho palavra melhor. No fundo, depois pensando, achei que estava mentindo. A impaciência até vai, mas o ímpeto de Carla achei que nunca tive. Hoje conversamos de novo e ela continua forte. Tão forte e frágil ao mesmo tempo. Tão dona de seu nariz e tão vulnerável. Disse a verdade quando disse que ela tinha muita força. Ela realmente tem raios e setas no olhar, como a filha da Chiquinha Gonzaga que ela interpretou na UAI. Para lá foi o melhor dia lá. Ela sabia toda sua fala de cor. Sou morena, bonita e galante Tenho raios e setas no olhar Ninguém pode uma lira de Dante Os encantos que eu tenho a cantar Sou morena que quando passeio Deixo raios de luz como um astro Só uma réqua de gente Que veio me dizendo, seguindo os meus passos: “Foi um sucesso.” Conversamos sobre sua relação com o namorado. Ela o chama de marido. Fiquei triste com algumas coisas que ouvi, depois comecei a desconfiar que aquela história tinha alguma fantasia. Pensando agora, será que já não era a história do João de Santo Cristo e da Maria Lúcia que ela estava contando? Uma ameaça com uma faca em troca da ameaça de Carla de abandoná-lo. Depois de alguns “tapas” na cara, amarrada na cama, seguidos beijos. Ela disse que chorava por dentro e sorria por fora. Por que será que, para mim, a fantasia pareceu ter acabado aí? Cantamos então, de maneira desconexa, a longa saga cabocla: “...só prá sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu...”, “...comia todas as menininhas da cidade e na escola até o professor com ele aprendeu...”, “...para o inferno ele foi pela segunda vez...”, “... com Maria Lúcia, Jeremias se casou e um filho nela ele fez...”. Carla está grávida. O que quer no futuro? Cuidar do filho, mas quer brigar com qualquer um para se livrar da raiva. E de pensar que eu também causei raiva. Raiva não, ódio. Carla me odiou no dia em que disse que iria avisá-la sobre sua internação, mas não fiz. E eu senti isso no seu olhar, no seu olhar de raios e setas. Carla me odiou e não teve medo ou motivo para não me dizer isso claramente. Ela queria ser avisada se iria ser internada, passou pelo corredor e eu estava conversando. Em seguida foi posta no camburão. Tudo é tão intenso. Ela sente raiva quando vê as meninas apanhando dos monitores. Bom sinal. Então lhe contei um segredo: eu também tenho raiva e não posso avançar sobre os monitores por isso. O espanto: “eu também posso trabalhar na FEBEM?”. E em poucos minutos, naquela salinha, construiu uma FEBEM gigante, com as meninas podendo levar as mães para elas verem onde as filhas dormem, vendo as atividades. As filhas é que iriam visitar as mães nos finais de semana. Nenhum monitor iria bater nas meninas e todas iriam usar roupas do mundão. Falamos ainda da mãe que a abandonou e de quem ela não quer nem saber. Mas nem por isso ela pode ser ofendida. Falamos da mãe que ela tem que é a sogra. Ela disse que fica presa, mas se alguém maltratar esta mulher, ela mata. Falamos de suas poesias. Antigamente, ela escrevia tudo o que sentia, mas seu namorado disse que aquilo era criancice e que suas poesias eram coisas de gente boba. Não, Carla, por favor, não pare de escrever. Contou idas e vindas de seu namoro e sua vida. Amanhã ela vai ser internada. Internada na FEBEM que não é a sua. 27/10/00 - Carla não foi internada. Recebeu medida de semi-liberdade. Sobre esse atendimento, na entrevista que eu fiz com a educadora, ela comentou: Olha como é engraçado, eu nem lembro exatamente, (...) eu lembro quando eu fui na FEBEM, e aí a gente conversou e ela começou a contar o que ela tinha feito naqueles dias de internação, ela falou que tinha participado de uma peça lá, da Chiquinha Gonzaga, eu sei que ela fez uma descrição da Chiquinha Gonzaga que ela era assim, assado, que ela era super forte, e ela lembrava dos versos que ela tinha dito, que ela disse, os versos e tal, e eu achei que naquele momento ela estava falando dela, se ela tivesse feito a descrição e me tivesse perguntado de quem estava falando, eu diria: “você está falando de você”, e aí eu disse isso pra ela (...) ela se espantou com a possibilidade que ela pudesse trabalhar na FEBEM, e assim, eu tive o privilégio de dizer pra ela, “você pode trabalhar na FEBEM, você pode trabalhar onde você quiser”, eu não estou falando que, amanhã, você decide, e vai lá e trabalha, mas que você pode, tem que saber que você pode (...) quantas vezes ela confessou que ninguém disse pra ela que ela podia, quantas vezes ela pensou que poderia fazer alguma coisa e sempre disseram pra ela que ela não poderia, então é assim, nesse sentido que eu acho que é meio dependente das coisas da vida, do azar, do que eu falei antes, porque assim, ela poderia ter dito isso para uma técnica, antes de entrar ali, e a técnica falasse que não, você já foi internada e como é que você vai trabalhar na FEBEM, eu acho que isso assim, pode ter aberto possibilidades que de repente não tinha sido abertas (...) era o que tinha o que acontecer, acho que foi uma das vezes em que você está procurando equilíbrio; eu acho que eu fiquei uns três segundos a mais naquele ponto de equilíbrio do que você acredita, foi por isso que me marcou, eu acho que nessa coisa do educador de ficar na corda bamba, quando você fica, eu acho que, uns dois segundos em cima da corda, você se sente mais seguro. E algumas "descobertas" deste encontro: Entrevistador - Então, esse caso teve um significado muito grande pra você enquanto educadora? Educadora - Teve. Não que isso significa que eu queira repetir. Ai gente, então, eu falei isso para a CARLA e nananã, e então, eu sempre falarei isso. Não. Foi para aquela pessoa. Entrevistador - Será que você também não poderia ter dito para você mesma que você poderia ser educadora, Márcia? Educadora - Ah? Entrevistador - Da mesma forma que você disse a ela da possibilidade dela ser, não poderíamos pensar que ao falar isso, ao mesmo tempo, você estaria ... [a educadora interrompeu e completou ...] - Que eu falei isso pra mim? É! Pode! Aí que bonito!!!. (risos) . É, pode ser!! CONCLUSÕES. Corredores longos. Percorrer estes caminhos tortuosos é vivenciar no próprio corpo e na subjetividade a gramática e a semântica social do “que faz o brasil, Brasil”, como diria DaMatta (1994), ou seja, um Brasil que se revela como uma sociedade autoritária, porque “[...] nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. [...] O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. [...] Enfim, quando a desigualdade é muito marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica” (Chauí, 2000, p. 89). Desta forma, será nesse labirinto social que se engendrará e reforçará a figura secular do “menor infrator”, “família desestruturada”, a partir de uma intensa produção de discursos e de escutas “enviesadas” sobre eles. E passarão a existir, a ser julgados e compreendidos a partir dessa imagem. Qualquer discurso diferente do permitido tornase ruído, logo, descartável. Esse processo de nominação do outro elimina qualquer possibilidade de estranhamento, de emergência do novo nas relações9 com os adolescentes. Tudo já é 9 Pode-se dizer: o juiz, o promotor, monitores, técnicos da FEBEM, educadores sociais etc. Todos estão propensos a agir desta forma. sabido e pré-estabelecido. Este “sutil” deslizamento semântico do que vem a ser o outro “garante” a segurança do encontro e a manutenção da ordem. Na realidade, esse encontro é um desencontro. A operação aqui é a da negação do outro, da negação da fala do outro, da violação do corpo do outro. Um caso emblemático que ilustra bem essa situação foi o atendimento com o adolescente Marcos numa das unidades de internação do Complexo do Tatuapé. Durante uma hora e meia, ele se colocava, agia e pensava a partir da figura do “menor infrator”. Qualquer resgate de fragmentos da sua história de vida era utilizado por ele para confirmar quem e o que ele era – o “menor infrator”. Foi preciso um intenso diálogo de desconstrução desta fala. Conseguiu-se uma brecha, pois ELE se mostrou numa outra perspectiva. Outra história apareceu. A possibilidade de se auto-construir foi dada, consequemente, caminhos novos de vida poderiam ser vislumbradas, quando se quer, até então podiam ser sonhadas - eis o inédito-viável freiriano da relação sociopedagógica10. E mais, aprendeu-se que : 1. “Era preciso reaprender a olhar tudo como se fosse pela primeira vez” (Sabino apud Lispector, 1992, p. 45) - eis uma pedagogia da sensibilidade do olhar; 2. Que o primeiro momento de qualquer ensino nunca pode ser uma ‘fala’: ‘tem’ que ser uma ‘escuta’” (Fétizon, 2002, p.3) - eis uma pedagogia da escuta; 3. o encontro radical - eu-com-o-outro-no mundo, eis uma “pedagogia comunicacional”, Estes são os grandes desafios que ainda são colocados para a Pedagogia Social. 10 É significativo também, como em muitas outros atedimentos, os adolescentes se antecipavam e já produziam esses discursos. É possível imaginar que eles nos imaginavam como mais um dos que os ouve somente a partir e para confirmar aquela fala padronizada, instituída. Era nítido observar uma certa estranheza, em muitas situações, por parte dos adolescentes quando perguntávamos sobre outros assuntos da sua história de vida, pois, “o que eu (adolescente) devo falar agora?”, “o que eles (educadores) querem ouvir?”, “posso ou não posso falar da ...?”, “será bom ou não para o processo...?”. BIBLIOGRAFIA CHAUÍ, M. in: NOBRE, Marcos & REGO, José Márcio. Conversas com filósofos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2000. DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 7a. ed., 1994. FÉTIZON, Beatriz. Sombra e luz: o tempo habitado. São Paulo: Zouk, 2002. LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro. São Paulo: Siciliano, 1992. MIRAGLIA, Paula. Rituais da violência: a Febem como espaço do medo em São Paulo. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2001. OLIVEIRA, Salete Magda de. Inventário de desvios: os direitos dos adolescentes entre a penalização e a liberdade. Dissertação de mestrado. São Paulo, Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 1996. ______________________ . A moral reformadora e a prisão de mentalidades: adolescentes sob o discurso penalizador. In São Paulo em Perspectiva, 13(4), pp.75-81, 1999. OTA, Nilton Ken. A liberdade Assistida e os Sentidos da Lei: a percepção dos adolescentes. – Pesquisa com adolescentes em Liberdade Assistida no município de São Paulo. 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